Brasil Holandshistria, memria e patrimnio compartilhado
Brasil Holandshistria, memria e patrimnio compartilhado
Hugo Coelho Vieira
Nara Neves Pires Galvo
Leonardo Dantas Silva
Copyright 2012 Instituto Ricardo Brennand
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Publishers: Joana Monteleone/Haroldo Ceravolo Sereza/Roberto Cosso
Edio: Joana Monteleone
Editor assistente: Vitor Rodrigo Donofrio Arruda
Projeto grfico, capa e diagramao: Allan Rodrigo
Traduo: Sarah Caroline Bailey/Eduardo Germnio
Reviso: ris Morais Arajo
Imagem da capa: Engenho, de Frans Post (1661)
Alameda Casa Editorial
Rua Conselheiro Ramalho, 694, Bela Vista
cep 01325-000 So Paulo, SPTel. (11) 3012-2400
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cip-brasil. catalogao-na-fonte sindicato nacional dos editores de livros, rj
V241b
brasil holands: histria, memria e patrimnio compartilhadoHugo Coelho Vieira [et al.] (orgs.).So Paulo: Alameda, 2012. 338 p.
Inclui bibliografiaISBN 978-85-7939-148-4
1. Brasil Histria Domnio holands, 1624-1654. 2. Holandeses Brasil Sculo XVII. 3. Brasil Civilizao Influncia holandesa. I. Vieira, Hugo Coelho.
11-5846. CDD: 981.61 CDU: 94(815.61)
029374
Sumrio
Apresentao
Introduo
Prefcio
Parte 1 - Historiografia do Brasil Holands
A obra de Jos Antnio Gonsalves de MelloEvaldo Cabral de Mello
No tempo dos flamengos: memria e imaginaoPedro Puntoni
As perspectivas da Holanda e do Brasil do Tempo dos flamengosErnst van de Boogaart
Parte 2 - Arte, Iconografia e Cultura Visual no Brasil Holands
A obra de Frans Post Bia e Pedro Corra do Lago
O envolvimento mitolgico do Brasil Holands: interpretao dos trabalhos de Albert Eckhout e Frans Post (1637-2011)
Rebecca Parker Brienen
Frans Post, a paisagem e o extico: o imaginrio do Brasil na cultura da Holanda do sculo XVII
Daniel de Souza Leo Vieira
21
7
19
31
11
45
13
65
67
75
91
Parte 3 - Estratgias, Dinmicas e Histria no Brasil Holands
Joo Maurcio: um prncipe renascentista Leonardo Dantas Silva
A estratgia da saudade: aspectos da administrao nassovianaRicardo Jos de Lima e Silva
Jerusalm pernambucanaRonaldo Vainfas
Entre os rios e o mar aberto: Pernambuco, os portos e o Atlntico no Brasil holands
Rmulo Luiz Xavier do Nascimento
Percursos feridos: homens de guerra nas tramas do tenebroso mundo Atlntico e nos labirintos da capitania de Pernambuco, de 1630 a 1635
Hugo Coelho Vieira
Parte 4 - Memria, Acervos e Patrimnio Compartilhado
O Instituto Arqueolgico e os estudos sobre o Brasil HolandsGeorge Flix Cabral de Souza
O museu sinagoga Kahal Zur Israel e a memria holandesa em Pernambuco Daniel de Oliveira Breda
Memria e cultura partilhada Marcos Galindo
O espao-dinmica organizacional em perspectiva histriaPaulo Emlio Martins
123
125
141
165
193
223
253
255
277
295
323
foi pensando na trade Museu, Pesquisa e Educao e com o objetivo
de trazer contribuies importantes no que se refere discusso sobre o
perodo da histria, tradicionalmente conhecido como Brasil Holands,
que o Instituto Ricardo Brennand, em virtude do ano da Holanda no
Brasil, realizou, de 16 a 19 de novembro de 2011, o I Colquio Internacio-nal sobre o Brasil Holands: Histria, Memria e Patrimnio Compartilhado.
Referncia nacional no que se refere ao acervo sobre o Brasil Holan-
ds, o Instituto Ricardo Brennand abriu ao pblico pela primeira vez com
a exposio Albert Eckhout volta ao Brasil: 1644-2002 e abriga hoje uma im-
portante coleo do pintor Frans Post, reunindo vinte quadros que cor-
respondem a dez por cento da produo hoje conhecida deste artista no
mundo. Compem ainda esta Coleo obras raras, documentos, manus-
cristos, alm da biblioteca particular do historiador Jos Antnio Gonsal-
ves de Mello, ao qual muito nos orgulha ter a sua filha, Diva Gonsalves de
Mello, trabalhando quase que diariamente, h dois anos, transcrevendo
os textos e anotaes deixados por seu pai, ora em folhas avulsas ora nas
contracapas dos mais de 5 mil livros provenientes de sua biblioteca, ad-
quirida pelo colecionador Ricardo Brennand em 1999.
Apresentao
8 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
Uma instituio ainda jovem, prestes a comemorar o seu dcimo ani-
versrio, o Instituto Ricardo Brennand tem contribudo significativamen-
te para o desenvolvimento cultural da Regio Norte-Nordeste, colocando
Pernambuco na rota de importantes exposies e provocando, desta ma-
neira, o estmulo visitao do pblico em museus. Em 2006, com a cria-
o do Ncleo de Pesquisa, o Instituto Ricardo Brennand vem transfor-
mando espaos e acervos em laboratrio de pesquisa e experimentao,
possibilitando a produo do conhecimento atravs de aes educativas
e culturais. Em 2011, em virtude do ano da Holanda no Brasil, o Instituto
realizou o seu primeiro Colquio sobre o Brasil Holands, que assumiu um
papel importante neste processo de comunicao cientfica e agilizando a
transmisso do conhecimento para estudantes e demais interessados por
este perodo da histria.
com honra e orgulho que realizamos este importante evento
de carter cientfico, financiado pela Embaixada do Reino dos Pases
Baixos em parceria com o Arquivo Histrico Judaico de Pernambuco,
Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico de Pernambuco, Fun-
dao Joaquim Nabuco/Museu do Homem do Nordeste, Universidade
Federal de Pernambuco, representada pela Ps-Graduao em Histria
e seu laboratrio Liber, Universidade de Pernambuco e o seu Instituto
de Apoio (IAUPE) e Fundao Getlio Vargas, atravs do Programa de
Estudos de Administrao Brasileira.
A presente publicao rene artigos de especialistas que partici-
param do Colquio de modo a proporcionar um leque de reflexes
atuais e relevantes, discutidas sob a tica da memria e do patrimnio
compartilhado entre o Brasil e a Holanda. Quero externar meus agra-
decimentos a todos os conferencistas, de modo especial ao Embaixa-
dor Evaldo Cabral de Mello, que aceitou o desafio de abrir o nosso
evento por vdeo-conferncia encarando todos os aparatos tecnolgi-
cos e que, em seu artigo, ressalta a importncia da obra do historiador
Jos Antnio Gonsalves de Mello, cuja biblioteca particular encontra-
-se salvaguardada neste Instituto.
9Apresentao
Ronaldo Vainfas, Pedro e Bia Corra do Lago, Rebecca Parker, Paulo
Emlio Martins, Rmulo Xavier, Pedro Puntoni, Leonardo Dantas, Ernst
Van den Boogart, Marcos Galindo, Aruza de Holanda, Marlia Azambu-
ja, juntando-se aos trabalhos acadmicos de jovens pesquisadores e no
por isso menos importantes, como Daniel Vieira, Daniel Breda, Ricardo
Lima e o nosso estimado Hugo Coelho Vieira idealizador deste Col-
quio e pesquisador do Ncleo de Pesquisa deste Instituto no poupa-
ram esforos em compartilhar as suas pesquisas sobre arte e historiogra-
fia do Brasil Holands, estratgias e dinmicas no Atlntico Holands e
modos de governar do Conde Maurcio de Nassau.
Esta publicao integra a misso deste Instituto em constituir, pes-
quisar e difundir um acervo museolgico, bibliogrfico e arquivstico
voltado preservao da memria, da arte e da cultura, em especial
do Brasil Holands, possibilitando a circulao destes textos no pas,
tornando a produo do conhecimento mais acessvel e fomentando as
discusses sobre a histria, a memria e o patrimnio compartilhado
entre o Brasil e a Holanda.
Nara neves pires galvo
Coordenadora Geral do Instituto Ricardo Brennand
na lio do poeta portugus, quando Deus quer, o homem sonha e a obra
nasce. Como no poema de Fernando Pessoa, para a realizao I Colquio
Internacional sobre o Brasil Holands Histria, Memria e Patrimnio Compar-tilhado, Deus quis que a terra fosse toda uma, e Que o mar unisse, j no se-parasse, de modo que o conhecimento da vida e da obra desse perodo se
tornasse revelado, afastando a poeira do tempo e as espumas dos sculos
que o encobriam.
Para isso Deus quis que homens de nacionalidades, saberes e atividades
diferentes dessem s mos e, diante de um s ideal, voltassem aos estudos
acerca do perodo do Brasil Holands, compreendido entre 1630 e 1654, em
colquio realizado na cidade do Recife entre os dias 16 a 19 de novembro de
2011, sob os auspcios do Instituto Ricardo Brennand com apoio da Embai-
xada dos Pases Baixos e outras entidades nominadas neste volume.
Na reunio em questo, estudiosos do Brasil Holands, especialistas
dos mais diversos conhecimentos estiveram expondo e debatendo ideias
que muito contriburam para o aprimoramento do conhecimento de to im-
portante tema.
Os resultados dos seus pronunciamentos esto reunidos nas pginas
deste livro que o Instituto Ricardo Brennand tem a honra de coeditar com a
Introduo
12 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
Alameda Casa Editorial (So Paulo) em colaborao com as diversas insti-
tuies participantes de to importante evento cientfico.
O Colquio contou com a participao dos palestrantes Evaldo Cabral de Mello, a quem coube fazer a videoconferncia de abertura, seguindo-se
de Ronaldo Vainfas (UFF), Rebeca Parker (Universidade de Miami), Pedro e
Bia Corra do Lago, Daniel de Souza Leo Vieira (UFPE), Paulo Emlio Mar-
tins (FGV), Ricardo Lima (UPE), Pedro Puntoni (USP), Leonardo Dantas Sil-
va (Instituto Ricardo Brennand), George Cabral de Souza (Instituto Arque-
olgico Histrico e Geogrfico Pernambucano), Cristiano Borba (FUNDAJ),
Ernst van den Boogaart, Ricardo Jos de Lima e Silva (UFPE), Rmulo L. X.
Nascimento (UPE), Daniel Breda (Arquivo Judaico de Pernambuco), Mar-
cos Galindo (UFPE) e Hugo Vieira Coelho (Instituto Ricardo Brennand).
Paralelamente ao ciclo de palestras foram ministrados trs pequenos
cursos: Os artistas holandeses e a representao do Brasil, a cargo dos professo-
res Daniel Leo Vieira (CNPq-UFPE) e Marlia Azambuja Ribeiro (UFPE);
Fontes, acervos e metodologia para pesquisa do Brasil holands, por Marcos Galin-
do (UFPE) e Aruza Holanda (Instituto Ricardo Brennand); Brasil Holands:
histria e historiografia, por Daniel de Oliveira Breda (Arquivo Histrico Ju-
daico de Pernambuco) e Hugo Coelho Vieira (Instituto Ricardo Brennand).
Por tudo isso, o Instituto Ricardo Brennand se sente gratificado em po-
der ter cumprido o seu propsito de tornar possvel o congraamento de
estudiosos do perodo do Brasil Holands ao mesmo tempo em que propor-
cionava o encontro das geraes dos nossos dias com especialistas do tema
nos Estados Unidos e na Europa.
Como nos faz lembrar diuturnamente o nosso incentivador e patro-
no Ricardo Coimbra de Almeida Brennand, usando as palavras do poeta
portugus Fernando Pessoa, Deus quis que a terra fosse toda uma, para que o
sonho dos homens testemunhasse o nascimento da obra.
Leonardo Dantas SilvaCoordenador de Pesquisa do Instituto
Ricardo Brennand
os projetos na rea da cultura so caminhos abertos. preciso ter um
norte para chegar. Se, por um lado, vivemos em tempos que os valores
da mdia transmitem mais velocidade do que reflexes crticas, por outro
lado, os projetos culturais tm demonstrado novos rumos para a produ-
o histrica, para o esclarecimento da memria e para o conhecimento
de seu patrimnio.
Este livro o resultado de um projeto que busca contribuir para a
formao de especialistas, professores, alunos e interessados na histria
da ocupao neerlandesa no Brasil colonial. Os artigos demonstram que
o ofcio do historiador tambm um exerccio de sensibilidade, conheci-
mentos de poca, formas de ser, pensar e sentir, e, nesse processo, o leitor
poder se estranhar e se reconhecer, chorar e sorrir. Os textos tratam de
vidas, mortes, esperanas, sofrimentos e alegrias. Foi necessrio trazer
luz do perodo a dimenso do humano.
Portanto, Brasil Holands: Histria, Memria e Patrimnio Comparti-lhado fruto das reflexes realizadas no I Colquio Internacional so-
bre o Brasil Holands, ocorrido entre 16 e 19 de novembro de 2011, no
Instituto Ricardo Brennand, em virtude do Ano da Holanda no Brasil,
Prefcio
14 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
que contou com o patrocnio da Embaixada do Reino dos Pases Baixos
atravs do Fundo Neerlands para o Patrimnio Cultural Comum e que
se torna vivel e oportuna pela parceria com a Alameda Casa Editorial.
O Colquio teve um carter pioneiro por conseguir reunir a Univer-
sidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade de Pernambuco
(UPE), a Fundao Joaquim Nabuco (Fundaj), o Arquivo Histrico e Ju-
daico de Pernambuco (AHJPE) e o Instituto Arqueolgico, Histrico e
Geogrfico Pernambucano (IAHGP). Alm dessas, o evento contou com
o apoio e a promoo da Fundao Getlio Vargas (FGV-RJ) atravs do
Programa de Estudos da Administrao Brasileira (ABRAS).
Neste sentido, tanto o Colquio quanto este livro rene especialistas
e profissionais renomados e incentiva novas possibilidades para jovens
pesquisadores que desejam contribuir e dialogar com a historiografia do
perodo. O debate sobre as questes referentes ao Brasil Holands tam-
bm servem para repensar a relao atual entre o Brasil e a Holanda j
que o fio tnue que liga o passado com o presente estreito. Assim, tanto
o Colquio quanto este livro buscam conectar mltiplos olhares entre as
vrias histrias dispersas e ao mesmo tempo unidas por um complexo
mundo Atlntico.
Sabe-se que a histria do denominado Brasil Holands exerce gran-
de fascnio sobre a sociedade brasileira e no de hoje que o tema caro
aos pesquisadores, em especial aos historiadores de Pernambuco. Estes
foram beneficiados pelas coletas documentais feitas por Jos Hygino Du-
arte Pereira e Joaquim Caetano Silva, em fins do sculo XIX, e que hoje se
encontram nos acervos do Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico
Pernambucano e na Biblioteca Nacional, respectivamente.
Na ltima dcada, jovens historiadores tm repensado a ocupao
neerlandesa no Brasil a partir de novas questes. Logo, torna-se inerente
o retorno aos estudos do perodo neerlands no Brasil. Sendo assim, a
Alameda Casa Editorial e o Instituto Ricardo Brennand, espao cultural
sem fins lucrativos, inaugurado em setembro de 2002, que tem como sua
principal misso a difuso da cultura brasileira atravs da histria, da
arte e da educao (arte-educao) no poderia deixar contribuir para o
15Prefcio
Ano da Holanda no Brasil, sendo o assunto extremamente ntimo ao seu
acervo museolgico e bibliogrfico.
Desta maneira, escolhemos como imagem para a capa do livro uma
das obras de Frans Post pintada em 1661, intitulada Engenho, quadro
que hoje pertence e se encontra na exposio de Frans Post e o Brasil
Holands na coleo do Instituto Ricardo Brennand, que retrata com
maestria a moagem da cana-de-acar do sculo XVII, tendo como pano
de fundo a presena da capela e da casa-grande, elementos marcantes
da sociedade do acar ou da aucarocracia, como diz Evaldo Cabral de
Mello. Trata-se de uma pintura a leo sobre madeira, com dimenses de
45,7 x 71,3 centmetros.
A escolha da paisagem de Frans Post se justifica pelo dilogo que o
quadro e o artista fazem com a histria, a memria e o patrimnio com-
partilhado do perodo em tela e dos artigos deste livro. O quadro por-
tador do discurso criador de Frans Post, que produziu um conceito de
paisagem brasileira para o perodo colonial, demonstrando as cores e a
riqueza de detalhes da vida social brasileira pelos olhos do colonizador.
Post foi o herdeiro da escola de Harlem e do legado da pintura holandesa
na arte que cria o conceito de paisagem, do termo paesaggio surgido ante-
riormente na Itlia. Os elementos do quadro que esto na capa deste livro
so temas recorrentes na trajetria do pintor, com pinceladas precisas,
dialogando com os textos que se seguem e com a histria das colees que
possuem quadros de Post.
Quadro este, que j pertenceu a Joaquim de Souza Leo, primeiro
estudioso brasileiro sobre Frans Post e que hoje pode ser observado pelos
brasileiros no Instituto Ricardo Brennand, j tendo a obra percorrido em
Hannover trs colees diferentes: em 1779 no Von Hacke, em 1822 no
Hausmann e em 1857 no Rei George V da Inglaterra. Depois o quadro
chegou a um leilo em Berlim em 1925 quando, posteriormente, em 1938,
antes da segunda Guerra Mundial, passou para as mos de Joaquim de
Souza Leo. A trajetria do quadro continua quando o Engenho volta para
Europa, chegando a Amsterd no ano de 1976, at por fim chegar cole-
o do Instituto Ricardo Brennand em 2003.
16 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
O percurso, a formao do pintor, bem como as trajetrias, as dinmi-
cas e as estratgias do Brasil Holands foram profundamente discutidos
pelos artigos elaborados neste livro. Os textos apresentados foram o resul-
tado do trabalho, disciplina, ateno, empenho e ousadia para dialogar v-
rias opinies, sem esquecer que a cultura e o social devem ser entendidos
como um conjunto de significados partilhados e construdos por homens e
mulheres para explicar o mundo. Nos artigos o leitor encontrar reflexes
sobre a histria e a historiografia, uma interessante anlise das trajetrias
das obras de Frans Post e o dilogo entre a histria e reas afins. Muitos
desses trabalhos so resultados da experincia de profundos conhecedores
do assunto, resultado do silncio e disciplina dos arquivos e bibliotecas.
Nos captulos da primeira parte do livro, Historiografia do Brasil Ho-lands, o leitor encontrar textos produzidos por especialistas na hist-
ria e na historiografia do Brasil Holands. Os historiadores demonstram
com propriedade sua relao com tema e a forma astuta que analisam
as produes historiogrficas do Brasil Holands ao longo do tempo no
Brasil. O primeiro artigo escrito por Evaldo Cabral de Mello, grande
referncia no tema, que faz uma bonita homenagem a Jos Antnio Gon-
salves de Mello. Evaldo mostra a relevncia imprescindvel da produo
de Jos Antnio Gonsalves de Mello para os assuntos pernambucanos e
seu conhecimento pela documentao relativa ao Brasil no exterior, de-
monstrando tambm a intimidade que possui com obra deste historia-
dor de quem primo legtimo e se considera herdeiro de sua produo.
Pedro Puntoni tambm reflete sobre a produo do autor de Tempo dos
Flamengos, corroborando a importncia dos trabalhos deste historiador
para aqueles que desejam conhecer o Brasil Holands. O captulo final
desta primeira parte produzido pelo historiador holands Ernst van den
Boogaart que amplia a discusso sobre a historiografia do perodo e traa
um panorama de vrios autores.
Na segunda parte do livro, Arte, Iconografia e Cultura Visual no Brasil
Holands, o leitor encontrar uma discusso especfica sobre a produo de
Frans Post, primeiro pintor da paisagem brasileira e primeiro paisagista
17Prefcio
das Amricas, que o Instituto Ricardo Brennand tem o orgulho de possuir
a maior coleo do mundo. O primeiro captulo desta parte, escritos por Bia
e Pedro Corra do Lago, especialistas na obra de Frans Post, demonstram
a possibilidade de sistematizar a histria do pintor e sua carreira com sua
produo artstica. O texto de Rebecca Parker Brienen, historiadora titular
de Histria da Arte da Universidade de Miami, analisa a obra de Post e de
Eckhout pela trajetria de suas obras e pela histria das aquisies dessas
por colees no mundo, revelando que as trajetrias de cada obra esto in-
timamente vinculadas com a valorizao e o reconhecimento dessas obras.
Daniel de Souza Leo Vieira finaliza essa parte do livro com um interessan-
te artigo que analisa a obra de Frans Post atravs de sua formao e vivncia
com a cultura visual da Holanda do sculo XVII, explicando a imagem de
Post sob a perspectiva da Histria Cultural.
Nos textos da terceira parte do livro, Estratgias, Dinmica e Histria
do Brasil Holands, o leitor encontrar artigos variados sobre diferentes
olhares do perodo que abordam a figura de Johan Maurits van Nassau
Siegen, a histria dos judeus com o perodo e a relao do Brasil Holan-
ds com o mundo Atlntico. O primeiro captulo desta parte escrito por
Leonardo Dantas Silva, maior editor dos assuntos referentes ao Brasil Ho-
lands e Coordenador do Ncleo de Pesquisa do Instituto Ricardo Bren-
nand. Leonardo aborda a relao de Nassau com as cincias e a impor-
tncia do Conde de Siegen para o desenvolvimento dos neerlandeses no
Brasil Colnia. Quem tambm analisa as aes de Joo Maurcio Nassau
o economista Ricardo Lima, buscando refletir sobre o plano adminis-
trativo de seu governo. Alm da anlise sobre Nassau, o leitor tambm
encontrar uma viso panormica da experincia dos judeus portugue-
ses na Holanda e no Brasil com o artigo do historiador Ronaldo Vainfas,
reconhecido professor titular de Histria Moderna da Universidade Fe-
deral Fluminense. O captulo de Rmulo Xavier, professor de Histria
da Universidade de Pernambuco, explica a importncia dos portos da
capitania de Pernambuco para a dominao dos holandeses no Brasil. O
artigo Percursos feridos, de Hugo Coelho Vieira, pesquisador do Ins-
18 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
tituto Ricardo Brennand, aborda sobre as dificuldades da soldadesca do
perodo e um pouco de suas trajetrias em Pernambuco e sua relao com
o Atlntico Sul.
A quarta parte do livro, Memria, Acervos e Patrimnio Compartilhado
discute a contribuio desses assuntos para o Brasil Holands, especial-
mente em Pernambuco. O primeiro artigo do historiador George Felix
Cabral de Souza, professor de Histria da Universidade Federal de Per-
nambuco e vice-presidente do Instituto Arqueolgico, Histrico e Geo-
grfico Pernambucano, que esclarece a importncia do Instituto Histrico
mais antigo do Brasil e sua aproximao com os estudos sobre o perodo
holands. O captulo de Daniel de Oliveira Breda, vice-presidente do Ar-
quivo Judaico de Pernambuco, explana a partir da lgica do Patrimnio
Cultural Compartilhado e do museu-sinagoga Kahal Zur Israel a compre-
enso dos judeus sefardim durante a presena neerlandesa em Recife. O
texto de Marcos Galindo, professor do Departamento de Cincia da Infor-
mao da Universidade Federal de Pernambuco, aborda a importncia da
preservao dos arquivos para a difuso da memria e do conhecimento
na perspectiva das noes de patrimnio compartilhado. O captulo de
Paulo Emlio Martins, professor e coordenador do Programa de Estudos
da Administrao Brasileira da Fundao Getlio Vargas, expe a impor-
tncia da organizao dos espaos de memria buscando uma aproxima-
o entre administrao e histria.
Brasil Holands: Histria, Memria e Patrimnio Compartilhado fruto
de uma soma de esforos entre profissionais que buscam contribuir para
a formao crtica da histria. Assim, esperamos que o livro possa pro-
porcionar novas descobertas e motivar outras discusses. Sabemos que a
vida e a histria no um palco de cartas marcadas, mas um terreno frtil
com tramas, caminhos e trajetrias incertas, pois a vida um campo de
luta como foi o perodo neerlands no Brasil.
Hugo Coelho VieiraPesquisador do Instituto Ricardo Brennand
parte iHistoriografia do Brasil Holands
o lugar e a ocasio so eminentemente adequados a recordar o histo-
riador Jos Antnio Gonsalves de Mello. O Instituto Ricardo Brennand,
que hoje nos acolhe e que abriga no seu valioso acervo a biblioteca de
Jos Antnio, localiza-se no antigo engenho de So Joo que pertenceu
a Joo Fernandes Vieira, tema da grande biografia que lhe dedicou Jos
Antnio. Destas terras, partiu numa madrugada de junho de 1645, o
grupo de insurretos que, ao cabo de nove anos de guerra, reconstituiu a
unidade da Amrica portuguesa. Por outro lado, reune-nos o tema que
foi mais caro a Jos Antnio que qualquer outro, o do domnio holands
no Nordeste. Alvssaras, portanto, aos promotores deste I Colquio Inter-nacional sobre o Brasil Holands, o Instituto Ricardo Brennand e a Embai-
xada do Reino dos Pases Baixos em parceria com o Arquivo Histrico
Judaico de Pernambuco, com o Instituto Arqueolgico, Histrico e Ge-
ogrfico de Pernambuco (que Jos Antnio presidiu por longos anos),
com a Fundao Joaquim Nabuco (de que ele foi o primeiro diretor),
com a Universidade Federal de Pernambuco, com a Universidade de
Pernambuco e com a Fundao Getlio Vargas.
A obra de Jos Antnio Gonsalves de Mello
Evaldo Cabral de MelloEmbaixador e Historiador do Brasil
22 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
Por trs de todo grande historiador, h um grande pesquisador
ele prprio. Jos Antnio Gonsalves de Mello foi ambos em grau su-
perlativo. Sua obra extensa: alm de Templo dos flamengos, a coleo
de biografias dos restauradores pernambucanos publicada nos anos
cinquenta; o livro sobre Antnio Fernandes de Matos, que de mestre-
-pedreiro tornou-se um dos renovadores da paisagem urbana do Recife
na segunda metade do sculo XVII; o volume de crtica histrica de fon-
tes da histria regional intitulada Estudos pernambucanos (1960); e final-
mente Gente da nao: cristos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654 (1898), obra para a qual Jos Antnio preparou-se durante quase meio
sculo, desde que abordara as relaes entre judeus e os holandeses no
seu livro de estreia, e que o consagrara aos trinta anos, precocidade rara
entre historiadores. Se Rimbaud deixou de escrever poesia aos vinte
anos, via-de-regra os historiadores no esto preparados para produzir
obra slida antes dos trinta e cinco, quarenta. Os livros de Jos Antnio
esto longe, porm, de esgotar seu labor historiogrfico, que abrange
tambm, por um lado, uma srie de monografias de histria local, ver-
dadeiros modelos deste gnero de trabalho; e, por outro, a publicao
de nmero relevante de textos inditos relativos histria pernambuca-
na, bem como a reedio de fontes j conhecidas.
J se disse de Jos Antnio que entrara em histria pernambu-
cana como outros entraram em religio. A fecundidade da sua obra
vem da, do fato de que ele investiu sua vida na pesquisa histrica.
Dela s o distraam suas tarefas de professor de Histria da Amrica
e de Histria do Nordeste na Universidade Federal de Pernambuco; e
sua passagem pela direo do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais e do Instituto de Cincias do Homem, daquela mesma Univer-
sidade. Mas Jos Antnio logo compreendeu que o desempenho de
funes de gesto teria absorvido a maior parte do tempo que desejava
destinar ao trabalho historiogrfico. Para tanto, ele contou sobretudo
com a dedicao e a vigilncia da mulher excepcional que foi sua es-
posa, Ivone Gonsalves de Mello.
23A obra de Jos de Antnio Gonsalves de Mello
Jos Antnio foi eminentemente um scholar, um estudioso de enorme
capacidade de concentrao intelectual. Na historiografia brasileira, foi o
seu o esforo mais abrangente e sistemtico de pesquisa j realizada por
um nico indivduo. No decurso de quase sessenta anos de investigao
arquivstica, ele compulsou no Brasil e fora dele praticamente toda a do-
cumentao existente sobre a histria pernambucana. No Recife, traba-
lhou no Arquivo Pblico estadual, no Instituto Arqueolgico e Geogrfi-
co Pernambucano, na Biblioteca Pblica, nos acervos de reparties como
o das Obras Pblicas, em arquivos eclesisticos paroquiais e de confrarias
religiosas; na Bahia, no Arquivo Pblico do Estado. Para se avaliar seu
conhecimento dos acervos locais, basta consultar o trabalho que dedicou
s fontes de Pereira da Costa. No Rio de Janeiro, ele pesquisou na Biblio-
teca Nacional, no Arquivo Nacional, no Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro, na Biblioteca do Ministrio das Relaes Exteriores, no arquivo
do antigo Ministrio da Guerra. Em So Paulo, no Instituto de Estudos
Brasileiros, em especial na coleo Alberto Lamego.
Graas ao apoio de Joaquim Amazonas, magnfico reitor da Universi-
dade Federal de Pernambuco, Jos Antnio permaneceu por longo tempo
na Europa em misso de pesquisa. Comeando por Portugal, ele procedeu
ao levantamento de tudo o que podia interessar histria pernambucana
no Arquivo Histrico Ultramarino, na Torre do Tombo (que frequentou
anualmente at poucos anos antes do seu falecimento), na Biblioteca Na-
cional de Lisboa, na Biblioteca da Ajuda, nas Bibliotecas Pblicas de vora
e do Porto, no Arquivo da Universidade de Coimbra e em acervos parti-
culares, como o da Casa de Cadaval. Na Holanda, examinou incansavel-
mente a documentao existente no Arquivo Geral do Reino, no Arquivo
da Casa Real, no Arquivo da Comunidade Reformada de Amsterd, no
Arquivo Municipal da mesma cidade e no Arquivo da Universidade de
Leiden. Na Espanha, no escaparam sua ateno nem o Arquivo das
ndias em Sevilha, nem a Biblioteca Nacional de Madri nem sobretudo o
Arquivo Geral de Simancas. Por fim, trabalhou na Biblioteca Nacional de
Paris e na British Library em Londres. De suas misses oficiais, Jos Ant-
24 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
nio redigiu minuciosos relatrios; e catalogou a documentao relativa a
Pernambuco no Arquivo Histrico Ultramarino.
Seu interesse incidiu sobre ampla gama de temas, a comear pela
histria dos nossos monumentos civis, militares e religiosos. Atraia-o
fortemente o estudo da arquitetura e de outras artes coloniais, como a
azulejaria e a pintura. Prendiam-no igualmente as realizaes dos arte-
sos e mestres de obras como os marceneiros Remgio Kneipp e Jules
Branger, o entalhador Moreau, o ourives Cristvo Rausch, o litgrafo
Krauss, o desenhista Schlappriz, os mestres Cristvo lvares e Manuel
Ferreira Jcome todos salvos por Jos Antnio da vala comum da nos-
sa Ansia brasileira. Tinha um fraco digamos proustiano pelo desenho
das antigas grades e portes de ferro. A histria urbanstica do Recife
foi outra das suas preferncias, como atesta sua histria do bairro da
Capunga, onde viria a falecer e onde residiu a maior parte da sua vida,
primeiro na casa dos pais, na rua Cardeal Arcoverde, depois, j casado
com Ivone, na rua das Graas, quase frente igreja matriz, posterior-
mente na rua das Pernambucanas, 420, casaro de stio prximo do Ca-
pibaribe, pintada a vermelho sangue-de-boi, que ele adquiriu por volta
de 1944, adicionando-lhe um segundo andar e mobiliando-a com peas
raras, inclusive de Branger.
Em conexo com o domnio holands, ele ocupou-se tambm da
cartografia recifense, da capitulao batava no Recife em 1654, da epi-
grafia, dos calvinistas neerlandeses, em especial o clebre predicante
Vicent Soler, da numismtica batava, bem como dos judeus e cristos-
-novos que ergueram a primeira sinagoga das Amricas, que ele, Jos
Antnio, viria a localizar na atual rua do Bom Jesus. Outros temas da
sua especial predileo foram introduo dos vegetais exticos em Per-
nambuco, a presena inglesa entre ns, a emigrao de trabalhadores
belgas e aorianos para a provncia no sculo XIX, a prosopografia dos
vereadores recifenses do sculo XVIII. necessrio mencionar tambm
o captulo sobre o perodo neerlands com que enriqueceu a Histria da
civilizao brasileira dirigida por Srgio Buarque de Holanda e os inme-
25A obra de Jos de Antnio Gonsalves de Mello
ros verbetes com que contribuiu para o Dicionrio de Histria de Portugal,
organizado por Joel Serro, e para a Enciclopdia Focus.
Igualmente fundamental foi sua iniciativa de organizar edies cr-
ticas, exaustivamente anotadas, de documentos inditos que ele mes-
mo traduziu; ou de reeditar textos j conhecidos mas por eles revistos
com o rigor de sempre, como os relatrios oficiais do governo holands
do Recife, que reuniu em dois volumes, intitulados Fontes para a hist-ria do Brasil holands (os originais do terceiro volume extraviaram-se
infelizmente nos desvos negligentes do Servio do Patrimnio Hist-
rico e Artstico Nacional no Recife). Outros documentos por eles reve-
lados so o testamento de Francisco Barreto de Menezes, restaurador
de Pernambuco; as confisses de Pernambuco relativas visitao in-
quisitorial de 1593-1595; o Breve compndio escrito em finais do sculo
XVII sobre o governo da Cmara Coutinho; a memria redigida pelo
companheiro de La Ravardire que o acompanhou na priso de Olinda
aps a conquista portuguesa do Maranho; os roteiros de penetrao
do territrio pernambucano no perodo colonial; os ris dos contribuin-
tes que pagaram o donativo para o dote de D. Catarina de Bragana e
para a indenizao dos Pases Baixos pela perda do Nordeste; o dirio
do governador Correia de S (1749-1756); os documentos relativos
Congregao do Oratrio do Recife; a Relao das praas fortes (1609),
redigida por Diogo de Campos Moreno em preparao do seu Livro que
d razo do Estado do Brasil (1612); o chamado Livro de sada das urcas do
porto do Recife (1595-1605).
Entre os textos j conhecidos mas que ele reeditou com maior abran-
gncia e rigor contam-se os Dilogos das grandezas do Brasil, segundo o
apgrafo, que o nico completo, existente na Universidade de Leiden,
na Holanda; as Cartas de Duarte Coelho, com a correspondente leitura
paleogrfica, na qual se esmerou a professora Cleonir Xavier de Albu-
querque; as Obras completas do naturalista Manuel Arruda da Cmara;
as principais crnicas da guerra holandesa, como as Memrias dirias do
donatrio Duarte de Albuquerque Coelho, o Valeroso Lucideno, de Cala-
26 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
do, a Nova Lusitnia, de Brito Freyre, a Histria da guerra de Pernambuco,
de Diogo Lopes de Santiago, a histria do governo de Nassau de autoria
de Gaspar Barleus, os Desagravos do Brasil, de Loreto Couto, a crnica
do Dr. Manuel dos Santos sobre a guerra civil de 1710-1711. Inigualvel
faina editorial em que contou com a colaborao entusistica e quotidia-
na de Leonardo Dantas Silva. Por fim, cumpre mencionar os volumes
de material do Dirio de Pernambuco, repositrio de enorme importncia
para a histria social do Nordeste, que apareceram sob o ttulo de O
Dirio de Pernambuco e a histria social do Nordeste (1840-1889), Dirio de
Pernambuco: arte e natureza no Segundo Reinado, e Dirio de Pernambuco:
economia e sociedade no Segundo Reinado.
Uma historiadora francesa publicou h anos um livro intitulado Le
got de larchive. No o vejo na estante sem me lembrar de Jos Ant-
nio. Sob este aspecto, ele est mais prximo de Varnhagen, Capistrano,
de Afonso de E. Taunay, do que dos historiadores atuais, pressionados
pelas obrigaes universitrias e mimados pelas modernas facilidades
de reproduo do documento. A internet e o CD-Rom esto abolindo a
aventura dos arquivos. Outrora, o historiador tinha muito da pachorra
de um frade, daqueles beneditinos que fundaram no sculo XVII a crti-
ca das fontes e cuja a relao com o documento destilava algo de sensu-
al, ligado ao tato, ao odor, vista. Vrias vezes, Jos Antnio exprimiu
sua preocupao com o lado negativo das facilidades tecnolgicas de
que dispe o historiador atualmente e que tendem a afast-lo do contac-
to imediato com o documento. Uma das suas grandes alegrias consistia
em fornecer a outro estudioso o texto que o ajudasse ou esclarecesse,
reclamando quando o interlocutor lhe solicitava apenas um trecho de
manuscrito em vez de pedir o manuscrito inteiro.
Intelectualmente, a grande influncia intelectual sobre Jos Antnio
foi a de Gilberto Freyre, como ele era o primeiro a reconhecer. Gilberto,
primo de seu pai, o mdico Ulysses Pernambucano de Mello, recrutou-
-o nos anos trinta para a equipe de pesquisadores que, em torno dele,
pesquisava toda as tardes no grande salo do terceiro andar da Biblio-
27A obra de Jos de Antnio Gonsalves de Mello
teca Pblica de Pernambuco, sita ento na rua do Imperador, no antigo
prdio de cmara e cadeia, onde frei Caneca passara seus ltimos dias.
Numa atmosfera de poema de Joaquim Cardozo, a brisa do alto do mar
soprava permanentemente pelas janelas abertas de par em par sobre
o rio e o caes Martins e Barros. Foi ento que, por sugesto de Gilber-
to, Jos Antnio comeou a aprender alemo e holands para ler a rica
documentao relativa ao perodo batavo no Nordeste que em fins do
sculo XIX Jos Higino Duarte Pereira fizera copiar nos Pases Baixos.
Desde o falecimento de Alfredo de Carvalho em 1916, no havendo na
terra quem dominasse a lngua do herege, o acervo, empoeirado e es-
quecido, dormia no Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogrfico Per-
nambucano. Jos Antnio encetou sua leitura (trata-se de cerca de trinta
cdices) e j em 1934 contribuiu com um estudo sobre A situao do ne-
gro sob o domnio holands para o Primeiro Congresso Afro-Brasileiro
do Recife.
A inspirao de Gilberto Freyre detectvel em Tempo dos flamen-gos, que constitui basicamente uma histria social do Brasil holands,
explorando, por conseguinte, uma perspectiva at ento indita na his-
toriografia do perodo, cujas obras fundamentais (Netscher, Varnhagen
e Watjen) ou eram de histria militar e administrativa ou de histria
econmica. Ademais de analisar as relaes entre os holandeses, a vida
urbana e a vida rural, Tempo dos flamengos detm-se nas atitudes do go-
verno e dos colonos batavos relativamente aos negros, ndios e judeus.
Indicativo do carter abrangente da pesquisa realizada no Recife e no
Rio, o fato de que, quando a partir dos anos cinquenta, Jos Antnio
pde consultar os arquivos neerlandeses, no lhe ser necessrio rever
o livro, que permanece at hoje em seu texto original.
Os anos que se sucederam redao de Tempo dos flamengos correspon-
deram a um perodo de hesitao do ponto-de-vista do historiador, mas no
do pesquisador, que continuou seu trabalho nos arquivos pernambucanos.
quela altura, Jos Antnio cogitou de escrever a histria social do Capi-
baribe, para qual esquadrinhou, com a ajuda de Haroldo Carneiro Leo,
28 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
a parcela do acervo da antiga Repartio de Obras Pblicas do Estado, j
ento depositada no Arquivo Pblico. Ele tambm reuniu a documentao
indispensvel preparao de uma histria da Sociedade de Agricultura
de Pernambuco. Mas tais projetos no foram adiante.
Da generosidade intelectual de Jos Antnio, sou, sem falsa mo-
dstia, a pessoa mais indicada para falar, pois fui certamente seu maior
beneficirio. Meus livros muito devem a seus cadernos de pesquisa
e aos volumes da sua biblioteca, pois fui dos raros a quem ele fazia a
concesso de emprest-los; e assim mesmo depois de constatar que o
pretendente mantinha com o livro a mesma relao de respeito fsico,
que era a sua: nada de grifar, rabiscar nas margens ou dobr-lo. O tema
de O norte agrrio e o Imprio fui busc-lo num artigo seu sobre o pro-
testo na imprensa pernambucana de fins do Segundo Reinado contra
a discriminao sofrida pelas provncias do Norte no seu trato com o
governo imperial; e foi ele quem me cedeu a cpia das atas da Sociedade
Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco, que utilizei naquele ensaio.
Poderia multiplicar tais exemplos. Foi ele quem me indicou o processo
relativo ao ingresso de Felipe Pais Barreto na Ordem de Cristo sobre o
qual montei O nome e o sangue. Foi ele quem me ps a par da aquisio
pelo Arquivo da Universidade de Coimbra dos cdices com correspon-
dncia dos governadores de Pernambuco entre a expulso dos holande-
ses e os meados do sculo XVIII, o que me permitiu escrever A fronda dos
Mazombos. Sem Jos Antnio e a sua obra, eu simplesmente no poderia
ter feito a minha.
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Wtjen, Hermann. O domnio colonial hollandez no Brasil: um captulo da histria colonial do sculo XVII. Traduo de Pedro Celso Ucha Cavalcanti. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.
gilberto freyre, no prefcio que fez para o livro de estreia de Jos
Antonio Gonsalves de Melo (datado de 1944, mas publicado em 1947),
lembra que, em 1907, o historiador pernambucano Alfredo de Carva-
lho explicava que, se algum estivesse andando pelo serto nordestino
e encontrasse, de repente, uma antiga runa, abraada de trepadeiras
e coberta de lquens, e resolvesse perguntar aos moradores prximos
qual a sua origem, ou quem eram seus primitivos construtores, teria
certamente por resposta: obra do tempo dos framengos Tudo que
houvesse de misterioso e inexplicvel nos vestgios de um passado
intangvel, era remetido pela imaginao popular para o perodo da
dominao holandesa. Tempo tido como de opulncia e maior adian-
tamento artstico, de um passado mais forte e substancial do que o
presente de agruras e misrias.
Segundo Freyre, ainda em 1944, a lenda persistia. Para ele, o tempo
dos framengos continua igual na imaginao de nosso povo ao tempo dos
mouros na imaginao dos portugueses. Quando publicado em 1947, o
livro de Gonsalves de Mello surpreendeu pelo trato cuidadoso e inova-
dor de um assunto j to mastigado e visitado pela historiografia: ana-
No tempo dos flamengos: memria e imaginao
Pedro PuntoniProfessor de Histria do Brasil na Universidade de So Paulo e pesquisador do CNPq
32 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
lisou aspectos do cotidiano da vida urbana e rural do Brasil Holands
(1630-1654), assim como as atitudes dos holandeses para com os negros,
os ndios, os portugueses e os judeus.
O livro de Lus da Cmara Cascudo, Geografia do Brasil Holands,
no pode ser entendido fora deste contexto. O livro foi escrito em 1945
(como o denuncia a frase de abertura) e, seu ensaio introdutrio, havia
sido publicado trs anos depois nos Anais do IV Congresso de Hist-
ria Nacional organizado pelo Instituto Histrico (Rio de Janeiro, 1948).
Publicado em 1956 na coleo Documentos Brasileiros da editora Jos
Olympio, quando j era dirigida por Octvio Tarquinio de Sousa (seu
primeiro diretor, como se sabe, foi Gilberto Freyre).
Da mesma forma que Gonsalves de Mello (a quem o livro dedi-
cado), Cmara Cascudo busca desvendar esses mistrios do tempo dos
flamengos. Contudo, procura entend-los na forma de sua circunstncia
viva na memria. Certa volta, quando se definia como um provinciano
incurvel, Cmara Cascudo no confessara que jamais abandonou o
caminho que leva ao encantamento do passado? Como salienta na pri-
meira parte de Geografia, os holandeses no so para ele apenas um
assunto de pesquisa, mas uma presena. Em suas palavras, o holands
conquistou e dirigiu a regio brasileira em que nasci e vivo, a mais
amada e conhecida. No o encontro apenas nos livros, mapas, ntulas
e relatrios da Goectroyerd Westindische Companie, mas na recordao in-
consciente de sua visita de vinte e quatro anos, inapagvel na memria
nordestina. So familiares aos meus olhos e ouvidos lugares e nomes ci-
tados em Barlu, Marcgrave, Moreau, Nieuhof e nos frades cronistas da
reconquista. Neste sentido, o perodo de domnio flamengo era, antes,
uma fase quase domstica nas lembranas coletivas. Uma espcie de
hgira, dividindo um tempo distante e nevoento (p. 13).
O professor de histria do Atheneu j havia publicado outros pe-
quenos estudos sobre a presena holandesa no Nordeste, seja nas pla-
quetes O braso holands do Rio Grande do Norte (Natal, Imp. Official,
1936), Tricentenrio de Guararapes (Recife, 1949) e Os holandeses no Rio
33No tempo dos flamengos: memria e imaginao
Grande do Norte (Natal, Depto. Educao, 1949), como nos captulos cor-
respondentes do seu livro sobre a Histria do Rio Grande do Norte (Rio
de Janeiro, MEC, 1955). Nestes trabalhos, como no livro em questo, o
historiador aliou a erudio, o apego mincia e ao anedtico com o
esforo interpretativo.
Geografia est dividido em duas partes. Na primeira, Cmara Cas-
cudo estuda a presena holandesa no Nordeste do Brasil, abordando-a
em diversos aspectos, como o clima, a alimentao, os caminhos e estra-
das, a arquitetura, o folclore, o vocabulrio, o tratamento dado aos escra-
vos e ndios etc. A segunda parte composta de oito estudos monogrfi-
cos (alguns deles com adendas) relativos geografia do Brasil Holands,
nos quais so analisados aspectos dos nomes e lugares das capitanias
conquistadas pela Companhia das ndias Ocidentais, a saber: Bahia, Ser-
gipe, Alagoas, Pernambuco, Paraba, Rio Grande (do Norte), Cear e Ma-
ranho. A toponmia alia-se, ento, anlise dos caminhos de penetrao
e comunicao e s formas de ocupao e sua descrio. A documentao
utilizada por Cmara Cascudo essencialmente a cartografia impressa na
crnica de Barleus (o conjunto de mapas desenhados por Margrave e ilus-
trados com desenhos de Post) e os relatrios, crnicas e outras descries
que haviam sido impressos, na poca ou em edies crticas posteriores.
Nada muito original. O historiador aproveitava-se da enorme quantidade
de tradues e reimpresses destes papis do sculo XVII, assim como da
fecunda tradio historiogrfica que tinha se debruado com mincia so-
bre o episdio do domnio holands. A anlise dos mapas e da geografia
ao tempo dos flamengos entremeada, com clara influncia de Gilberto
Freyre, por episdios s vezes extemporneos e por consideraes de
natureza sociolgica sobre personagens e homens. Contudo, o tom domi-
nante o do folclorista e do antiqurio.
Para se ter uma ideia, nos adendos monografia sobre Pernambu-
co, Cmara Cascudo dedica umas pginas ao episdio do boi voador,
quando Nassau conseguiu engabelar a populao do Recife na inaugu-
rao da ponte que ligava o bairro de Boa Vista cidade. Anunciando
34 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
que um boi voaria de um lado para outro da rua, manejou a coisa at
que fez lanaram um couro recheado de palha, o que enganou os mais
crdulos. O movimento foi tanto de um lado para o outro da ponte que,
naquele primeiro dia, o pedgio j rendeu um boa nota para o governo.
O caso exemplar. Por meio de uma mistificao, os holandeses conse-
guem obter algum lucro. A lgica mercantil aproveita-se credulidade da
populao, inclinada ao maravilhoso, imersa em uma viso de mundo
dominada pelo fantstico. a lira popular, evocada pelo folclorista C-
mara Cascudo, que sentencia: Afora essas desgraas que no lembra /
O povo que as mirou, / Conserva o mais que viu bem na memria / O
boi que l voou!
O estudioso dos mapas e da geografia do Brasil Holands tem neste
livro sua referncia obrigatria. Jaime Corteso que no tomo segundo
de sua Histria do Brasil nos velhos mapas (Rio de Janeiro, Instituto Rio
Branco, 1971) dedica dois captulos cartografia e s gravuras holan-
desas do Brasil no deixa de lembrar o alto interesse do estudo de
Cmara Cascudo. Com relao geografia pernambucana, o trabalho se
completa, vale lembrar, pelo estudo minucioso de Gonsalves de Mello
sobre A cartografia holandesa do Recife, um estudo dos principais mapas
da cidade no perodo de 1631-48 (Recife, IPHAN, 1976), e (mais prximo
de ns) o Atlas histrico-cartogrfico do Recife, organizado por Jos Luiz
Mota Menezes (Recife, Massangana, 1988).
Geografia do Brasil Holands. Neste bonito livro que merece e recla-
ma uma segunda edio o Nordeste e as lembranas dos flamengos se
misturam numa deliciosa narrativa que procura desassombrar mist-
rios daqueles tempos e, paradoxalmente, busca enlevar a memria em
um clima enigmtico.
* * *Mas o livro de Jos Antonio Tempo dos flamengos que desperta,
para ns, o maior interesse.
Ainda garoto, fora seduzido pelo seu primo Gilberto Freyre a dedi-
car-se ao estudo da lngua holandesa com o intuito de manusear os pa-
35No tempo dos flamengos: memria e imaginao
pis copiados por Jos Hygino Duarte Pereira na Holanda e que haviam
sido entregues, em 1886, ao Instituto Arqueolgico, Histrico e Geogr-
fico Pernambucano. Aprenda holands antigo para especializar-se no
conhecimento do perodo flamengo da histria brasileira, havia dito
Freyre ao menino de 13 ou 14 anos. O jovem, esquivo a festas e brilhos
que ajudara na elaborao da primeira edio do clssico Casa-grande
& senzala (1933) publicou, no ano de 1937, um estudo que havia sido
apresentado ao 1o. Congresso Afro-Brasileiro de Recife. O trabalho,
onde j se faz ver o uso das fontes holandesas, tratava da situao do
negro sobre o domnio holands (publicado in: G. Freyre e outros, No-vos Estudos Afro-brasileiros, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1937,
p. 201-221).
Este texto foi a base sobre a qual edificou o seu primeiro e talvez
mais importante e divulgado livro: Tempo dos flamengos, influncia da ocu-pao holandesa na vida e na cultura do Norte do Brasil (Rio de Janeiro, Jos
Olympio Editora, 1947). Sucesso entre os historiadores nacionais e es-
trangeiros, o livro surpreendeu pelo trato cuidadoso e inovador de um
assunto j to mastigado e visitado pela historiografia. Analisou aspec-
tos do cotidiano da vida urbana e rural do Brasil holands (1630-1654),
assim como as atitudes dos holandeses para com os negros, os ndios,
os portugueses e os judeus. Para tanto, o autor se utilizou de amplo
material fornecido pela escola pernambucana, que havia, ao longo de
cem anos, escarafunchado os episdios militares e polticos do tempo
da dominao holandesa e da insurreio pernambucana, bem como
da historiografia estrangeira e da documentao holandesa, que, como
vimos, comeara a dominar. O resultado um livro de grande densi-
dade, consequncia da maneira acertada de lidar com a tradio dos
estudos regionais e com as inovadoras abordagens da histria social,
ento em voga. Com um p no mais atual fazer historiogrfico, Gon-
salves de Mello no rejeitava o que lhe ofereciam os grossos volumes
das revistas trimestrais dos Institutos do Imprio. Com seu trabalho de
simples pesquisador pesquisador cheio de interesse pelo social e
36 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
pelo humano e olhando com olhos de mope para o que seja meramente
poltico ou administrativo ou de puro aspecto cronolgico (como se
autodefiniu no seu Tempo dos flamengos, p. 27) oferece-nos uma obra de
grande significado.
Sua paixo pelo documento levou-o tambm a realizar inmeras
misses a arquivos da Europa, atrs de informaes e cpias de papis
que fossem pertinentes para a histria do Nordeste. Sua misso de 1951-
52, em Portugal, nos arquivos da Torre do Tombo, Biblioteca Nacional
de Lisboa, da Ajuda, de vora e do Porto, havia sido patrocinada pelo
reitor Joaquim Amazonas, da ento Universidade do Recife. Naquela
momento, Jos Antonio trabalhava na redao de uma srie biogrfi-
ca dos mais importantes restauradores de Pernambuco. No entanto, o
historiador, com sua seriedade e desejo de vasculhar a fundo a histria
colonial nordestina, tinha examinado vasta documentao, providen-
ciando cpias em microfilmes daquilo que se mostrasse de interesse.
Para se ter um exemplo, como nos relata J. H. Rodrigues, s no Arquivo
Histrico Ultramarino, examinara, um por um, todos os documentos
das 93 caixas e 126 maos de Pernambuco, todos referentes a Alagoas,
Paraba, Rio Grande do Norte, Cear e Piau, e mais os do sculo XVII da
Bahia, Rio de Janeiro, Maranho, Angola e Aores (A pesquisa histrica
no Brasil, Rio de Janeiro, INL, 1952, p. 109). Com pacincia e generosida-
de organizou e deixou neste arquivo, para a consulta de quem interessar
possa, trs relaes de documentos.
De volta ao Brasil, ocupou a cadeira de Histria da Amrica na Uni-
versidade do Recife, tendo ainda ministrado cursos de paleografia, his-
tria do Nordeste, tcnicas e mtodos de pesquisa. Entre os anos 1957-
58, sob o patrocnio desta mesma instituio, voltou Europa, desta vez
para os arquivos de Holanda, Frana, Inglaterra e Espanha. Examinou,
em Haia, os mesmos papis que Joaquim Caetano da Silva (1852-61) e
Jos Hygino Duarte Pereira (1885-86) haviam consultado e feito copiar.
Percebeu e corrigiu erros e lacunas nas colees que foram trazidas ao
Brasil e descobriu farta documentao que muito contribuiria para a
37No tempo dos flamengos: memria e imaginao
histria do Nordeste colonial. A opinio de J. H. Rodrigues, para quem
o resultado no correspondeu ao esforo, uma vez que o perodo
holands est esgotado no conhecimento da sua evoluo e significa-
o, evidentemente no se sustenta. Vrios historiadores, como Frede-
ric Mauro, C. R. Boxer, Stuart Schwartz, Evaldo Cabral de Mello, Luiz
Felipe de Alencastro e Vera Ferlini, para citar alguns, tm usado das
informaes obtidas pelas misses de Gonsalves de Mello para produ-
zir um entendimento mais aprofundado das diversas dimenses sociais,
econmicas e culturais colocadas pelos episdios e processos desenca-
deados neste perodo de nossa histria colonial.
A transcrio, traduo e publicao de documentos outra di-
menso essencial da obra de Jos Antonio, o que permitiu aos histo-
riadores o acesso a papis e informaes de rara importncia. Para ele,
nunca foi to verdadeira a observao do historiador francs Pierre
Goubert: souvent le vritable indit cest limprim. Deve-se ao his-
toriador a melhor edio dos Dilogos das Grandezas do Brasil, um dos
documentos fundamentais para a histria do Nordeste brasileiro, que
foi composto em 1618. Tal como a de 1877, publicada por Varnhagen,
a sua provm do apgrafo que se encontra na Biblioteca de Leiden, na
Holanda. No entanto, o resultado de sua transcrio um texto integral
e cuidadosamente corrigido. Jos Antonio tambm resolveu definitiva-
mente, atravs de argumentos claros e encadeados, a questo da auto-
ria do manuscrito, problema que vinha ocupando os mais importantes
historiadores do pas. A seu ver, estavam certos Capistrano de Abreu
e Rodolfo Garcia, que viam em Ambrsio Fernandes Brando o verda-
deiro autor dos Dilogos.
Alm deste, Jos Antonio preparou e publicou vrios outros im-
portantes documentos, entre os quais as Cartas de Duarte Coelho ao Rei (Recife, Imprensa Universitria, 1967) com a leitura paleogrfica de
Cleonir Xavier de Albuquerque , A cartografia holandesa do Recife (Re-
cife, IPHAN/MEC, 1976), com oito mapas seiscentistas e comentrios,
e os dois grossos volumes de Fontes para a histria do Brasil holands
38 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
(vol. 1 Economia Aucareira; vol. 2 Administrao) (Recife, MinC/
SPHAN/Pr-Memria, 1981) so os mais importantes. Destes ltimos, o
volume 1 rene a mais farta coleo de documentos j publicada para a
compreenso e estudo da economia e da sociedade aucareira no nor-
deste colonial, no perodo que vai do final do sculo XVI at a metade
do XVII. A maior parte destes documentos, cujos originais encontram-
-se nos arquivos da Holanda, foram cuidadosamente decifrados, trans-
critos e traduzidos dos manuscritos gticos do holands do sculo XVII.
Seu trabalho, porm, no se resumiu apenas publicao de docu-
mentos relativos histria quinhentista ou seiscentista de Pernambuco.
O historiador selecionou e publicou uma srie de textos recolhidos nas
pginas do Dirio de Pernambuco, jornal editado naquele estado desde os
anos 1825. O trabalho est dividido em trs volumes: dois deles sobre
a histria social do Nordeste (Recife, Dirio de Pernambuco, 1975) e
mais outro sobre arte e natureza (Recife, Massangana, 1985), e todos
trazem ampla documentao para o historiador da segunda metade do
sculo XIX. Foram selecionados textos sobre economia, demografia, cul-
tura, estudos biogrficos, relaes de Pernambuco com o Imprio, o uso
da fotografia, o mobilirio etc., que nos permitem compor um quadro
da economia e da vida social pernambucana nos tempos do segundo
reinado. Iniciativa da direo do Dirio, na comemorao dos seus 150
anos de vida, a pesquisa de Gonsalves de Mello permitiu que voltasse
quele antigo ambiente de trabalho, quando, ainda adolescente, colabo-
rou com seu primo Gilberto Freyre.
Ainda coletou e fez publicar a Obra reunida de Manuel Arruda da C-mara (Recife, Fundao de Cultura Cidade do Recife, 1982), precedida
de um estudo biogrfico deste frei carmelita, representante modelar
da gerao ilustrada do final do sculo XVIII, assim como foi autor de
uma introduo sobre a obra e a vida de Domingos de Loreto Couto, au-
tor pernambucano setecentista, na republicao de seu livro Desagravo
do Brasil e glrias de Pernambuco (Recife, Fundao de Cultura Cidade do
Recife, 1981), de 1757.
39No tempo dos flamengos: memria e imaginao
Esta dimenso generosa de sua obra poderia, sobretudo nos tempos
de agora, servir de exemplo aos historiadores profissionais. Ao realizar a
pesquisa em fontes manuscritas que demonstrem interesse no apenas ao
esforo monogrfico em curso, no poderia o pesquisador preparar a trans-
crio e publicao, ainda que simples, de documentos? No resta dvida,
no entanto, que carecemos ainda de melhor preparo de nossos jovens pro-
fissionais, que por vezes, como o caso da Universidade de So Paulo, no
tiveram sequer uma aula de paleografia em seu curso de graduao.
As pesquisas realizadas nos arquivos portugueses, entre os anos de
1951 e 1952, foram patrocinadas com o intuito de permitir a redao de
uma srie de biografias para as comemoraes do Tricentenrio da Res-
taurao de Pernambuco, em 1954. O historiador havia planejado escre-
ver sobre a vida dos dez mais importantes restauradores e, demonstran-
do sua enorme capacidade de trabalho, fez vir a pblico, naquela data,
as biografias de Francisco de Figueroa, Antnio Dias Cardoso, Henrique Dias (esta com segunda edio de 1988, pela Massangana), Dom Antnio Feli-pe Camaro, Felipe Bandeira de Melo e Frei Manoel Calado do Salvador (todas
pela Universidade do Recife, 1954).
Dois anos depois, publicaria a biografia de Joo Fernandes Vieira, em
dois grossos volumes (idem, 1956).
As de Francisco Barreto de Menezes, Andr Vidal de Negreiros e
de Martim Soares Moreno, igualmente previstas, no foram concludas.
Talvez esta ltima pelo fato de Afrnio Peixoto j haver publicado, em
Lisboa, uma estudo da vida deste fundador do Cear, iniciador do Ma-
ranho e do Par, heri da restaurao do Brasil, contra franceses e ho-
landeses trabalho que, no entanto, peca pela parcialidade e patriotice.
Quanto ao General Comandante das Foras da Restaurao e Governa-
dor Geral do Brasil, Gonsalves de Mello acabou por publicar um estu-
do biogrfico, em 1976, como introduo edio de seu testamento (O
testamento do General Francisco Barreto de Menezes, Recife, IPHAN/MEC,
1976). O documento, que havia sido descoberto no Algarve, oferece-
-nos um flagrante precioso da sociedade luso-brasileira do sculo XVII,
40 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
pois nos revela fidalgo e alto administrador do Ultramar a exercer a
mercncia, lado a lado com sua funo de governo (p. 9).
As seis biografias, publicadas em 54, so estudos monogrficos muito
precisos, onde o autor reuniu todos os elementos que lhe foi possvel ob-
ter, indicando os pontos perfeitamente conhecidos de suas vidas e as indi-
caes que lhes dizem respeito e que ainda no foram trazidos ao conheci-
mento dos estudiosos. Apesar de sua inteno de simples pesquisador,
inegvel que este esforo foi de vital importncia para o entendimento
das guerras coloniais entre luso-brasileiros e os soldados da Companhia
das ndias Ocidentais, bem como para toda a histria da presena holande-
sa no Nordeste brasileiro. Gonsalves de Mello, fazendo uso de um gnero
um pouco mal visto pela historiografia de ento, preocupada com as es-
truturas e a histria econmica, acabou trilhando um caminho importante
para a reconstruo histrica, no s ao nvel do acontecimento, mas do
cotidiano, rastreando a vida de homens tidos e glorificados como heris
da ptria e de Pernambuco, seja para mostrar algumas de suas virtudes,
mas essencialmente para enfrentar o passado em suas mistificaes. Deste
modo, Gonsalves de Mello no hesitou em mostrar que o Governador da
gente preta, como era chamado no tempo dos conflitos o negro Henrique
Dias (consagrado heri da restaurao, usado direita e esquerda, seja
como smbolo de harmonia e acomodao entre as raas no Brasil, seja
como exemplo da bravura e dedicao do elemento negro) havia sido ca-
pito-de-mato e se envolvido tambm no combate a quilombos. Tudo isto
sem cair em julgamento anacrnico, coisa que certamente no lhe cabia fa-
zer. Como ele mesmo alertava ao leitor, embora j se tenha lamentado que
o Governador dos negros se tivesse prestado a servir de capito-de-campo
para a recaptura dos de sua cor, deve-se compreender o caso no com os
sentimentos de nossos dias, mas do ponto de vista do sculo XVII, de uma
sociedade escravocrata (p. 28).
A biografia de Joo Fernandes Vieira difere no s por ser mais
completa e extensa que as demais (so cerca de 750 pginas, em dois
volumes), mas por tratar, com nova e abundante documentao de ar-
41No tempo dos flamengos: memria e imaginao
quivos do Brasil e Europa, de diversos episdios da presena holan-
desa no Brasil e da histria de Pernambuco no sculo XVII, entre eles,
por exemplo, uma importante discusso das causas da ecloso do mo-
vimento restaurador, em 1645. Todavia, como j foi notado, o estudo
peca pela pouca importncia dada aos episdios da recolonizao luso-
-brasileira em Angola. Em verdade, a escola pernambucana, atenta
s glrias do episdio da restaurao, no tem dado devida ateno ao
desenrolar dos episdios na outra margem do Atlntico. Assim, a bio-
grafia de Gonsalves de Mello no confere ateno ao perodo em que
Vieira fora governador de Angola entre os anos 1658 e 1661, ttulo que
obtivera como remunerao pelos servios prestados na guerra contra
os holandeses. Das cerca de 750 pginas de sua biografia, apenas 35 so
dedicadas ao perodo, quando a que se revelaria parte da trama que
unira Angola ao Brasil e constitura um grupo de luso-brasileiros dire-
tamente interessados no controle dos negcios africanos, notadamente
do trfico de escravos.
Nada, contudo, pode nublar tamanho esforo. O livro no apenas
magnfico, como sua escrita agrada a nosso esprito moderno. Em pou-
cas palavras: uma obra-prima. Esta sua srie biogrfica, sobre os restau-
radores de Pernambuco (um dicionrio biogrfico de um episdio,
nas palavras de J. H. Rodrigues), no encontra paralelo na historiografia
nacional, pela sua extenso e importncia. Escapando do interesse per-
sonalista ou do retrato poltico das biografias que pipocaram no Brasil
na primeira metade deste nosso sculo, Gonsalves de Mello faz, ao con-
trrio, atravs do enfoque individual, uma verdadeira histria social do
episdio da restaurao.
No ano de 2000, saiu uma nova edio deste livro pela Comisso
Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, em
parceria com o Centro de Estudos de Histria do Atlntico, da Ilha da
Madeira. Mais uma vez, tivemos de l, da outra margem do Atlntico,
exemplos de competncia e bem-fazer. A explicao mais prosaica fica
pelo fato de que o restaurador era natural dessa ilha, filho de um portu-
42 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
gus com uma mulata rameira a quem chamam a Bem-feitinha pelo
menos segundo um testemunho da poca. Condensando dois volumes
em um s, esta edio ainda supera a princeps, no apenas pela be-
leza da composio, como pelo fato de nos oferecer as notas no rodap,
cortesia que nossos modernos editores j no tm prestado ao leitor.
Que, por sua vez, parece cada vez mais desinteressado em valorar essas
pequenas coisas.
As pesquisas de Jos Antonio na Europa, nos anos 50, ainda resulta-
riam na redao de mais uma biografia, publicada em 1957, sob o patro-
cnio da Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Desta
vez, da vida de Antnio Fernandes de Matos (Recife, Ed. dos Amigos
da DPHAN, 1957), personalidade de maior relevo da vida do Recife
seiscentista, que o historiador se ocupa. Mestre pedreiro portugus,
Matos ascendeu social e economicamente na segunda metade do sculo
XVII, tendo sido responsvel pela construo de vrias Igrejas em Olin-
da e no Recife, entre outras obras, como a casa da Moeda e fortalezas. A
monografia, alm de contribuir para a histria das artes e da arquitetu-
ra colonial, assim como das irmandades e ordens religiosas, nos ajuda
a entender o cotidiano daquela burguesia recifense, da qual sairia o
movimento dos mascates. A descrio dos termos do testamento de An-
tnio Fernandes de Matos so surpreendentes, e nos ajudam a dimen-
sionar os parmetros nos quais navegavam os interesses capitalistas
destes homens obcecados pelo enriquecimento. A densidade do esprito
religioso imprimia marca indelvel na vida cotidiana; exemplo disto a
determinao das despesas da testamentaria, isto , gastos com enter-
ro, obrigaes religiosas e caridade, onde o burgus havia despendido
a quantia de 174:354$476. Para se ter uma ideia, entre os anos de 1703 e
1722, s na Ordem III de So Francisco, foram mandadas rezar perto de
120 mil missas pela alma do falecido! (p. 81-89)
Se o exerccio de criar uma srie biogrfica, associava-se, em 1954,
s determinaes do movimento comemorativo, e resumia-se, portanto,
apenas aos mais importantes restauradores, em seu livro Gente da nao:
43No tempo dos flamengos: memria e imaginao
cristos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654 (Recife, Massangana,
1989), o historiador nos ofereceu um vasto painel biogrfico. Desta fei-
ta, seus personagens principais so os judeus residentes no Nordeste,
entre os anos 1630 e 1640. De fato, a parte terceira do livro um dicio-
nrio biogrfico que, diferentemente da obra monumental de Pereira da
Costa (1882), onde interessava apenas a vida dos brasileiros clebres,
preocupa-se em enumerar as informaes obtidas sobre a vida de an-
nimos (ou mesmo conhecidos) comerciantes, carregadores, fabrican-
tes de camisas, traficantes de escravos etc., sejam eles cristos-novos,
sejam judeus confessos. O historiador proporciona, assim, uma fonte de
informaes de inigualvel valor pesquisa.
O livro Gente da nao, resultado de incansveis trabalhos nos ar-
quivos da Holanda, Inglaterra, Portugal e Brasil, desenvolve as pginas
finais de seu primeiro livro, onde trata da presena dos judeus no Bra-
sil holands. Esta sua obsesso pela genealogia e histria dos cristos-
-novos e judeus pode explicar-se, curiosamente, pelo fato de que entre
seus antepassados estaria Duarte de S, que em Olinda, no ano de 1594,
confessara ao Visitador do Santo Ofcio ter raa de cristo-novo pela
parte da me. Jos Antonio faz assim sua a histria que seu ofcio.
Mas o aspecto quase proustiano do estudo no descarta sua importncia
para a histria da presena holandesa no Nordeste brasileiro. Um crtico
mais apressado poderia ver neste livro apenas mais uma obra de um
historiador preocupado apenas com mincias, e deixar de perceber que
as concluses a que chega este autor trazem elementos fundamentais
para a compreenso dos enredos que reuniam nossa histria colonial
aos episdios da histria europeia. Em verdade, acredito que a leitura
deste livro permite-nos reforar a hiptese do historiador Eddy Stols,
para quem o grupo de mercadores ligados aventura colonial da Com-
panhia das ndias Ocidentais era um novo grupo de empreendedores
corsrios, incipiente burguesia popular e nacionalista, em oposio
burguesia tradicional que tinha os seus interesses comerciais j defi-
nidos. Isto se for possvel a aproximao ou identificao dos interesses
44 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
dessas burguesia tradicional com os do grupo de judeus e cristos-
-novos portugueses, moradores em Lisboa, Amsterdam ou Brasil, que
detinham o controle deste comrcio colonial. Segundo Stols, o novo
grupo, que procurava o estabelecimento de uma nova dinmica e a
conquista de espao no lucrativo comrcio de produtos tropicais, teria
imposto a soluo da fundao de uma Companhia de Comrcio como
maneira de controlar o iminente conflito entre os dois grupos de inte-
resses. Tratava-se de uma soluo para que os Estados Gerais mantives-
sem o controle e organizao da vida econmica das Provncias Unidas,
ameaadas por guerra civil, no nvel econmico. A fundao da Com-
panhia das ndias Ocidentais teria sido, em suas palavras, uma nacio-
nalizao avant la lettre (cf. Os mercadores flamengos em Portugal e
no Brasil antes das conquistas Holandesas, Anais de Histria, Assis, 5;9-
54, 1973). Deste modo, os conflitos surgidos no Brasil Holands, entre
os anos 1638 e 1645 entre o grupo de comerciantes holandeses e a comu-
nidade judaica, que eram antes de natureza econmica que religiosa
(Gente da Nao, p. 261), podem ser vistos tambm como ricochetes das
disputas travadas na Holanda.
Este livro foi produzido, em sua primeira edio de 1989, com
apoio de uma subscrio. Entre os interessados em ver o livro impresso,
estavam Jos Mindlin e a Metal Leve S.A. Esta logo se esgotou, exigin-
do uma segunda que foi feita com alguns acrscimos. Desta vez com
apresentao de Jos Mindlin, que notava a importncia do estudo fei-
to com pacincia beneditina. Nas suas palavras (que evoco aqui para
encerrar esta minha apresentao), o autor transforma o que poderia
ser uma simples transcrio de nomes e fatos, num fascinante (e horripi-
lante) relato dos extremos de crueldade a que o fanatismo pode condu-
zir. Ao mesmo tempo, d a conhecer uma face importante da histria do
Nordeste brasileiro, de seu desenvolvimento econmico e intelectual, e
do papel que tanto judeus como cristos-novos exerceram no perodo
holands, e mesmo antes dele.
45No tempo dos flamengos: memria e imaginao
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As perspectivas da Holanda e do Brasil do Tempo dos Flamengos
Ernst van den BoogaartHistoriador e curador de exposies histricas sobre o Brasil Holands
o jesuta antonio vieira descreveu meu pas de origem como aquele in-
ferno frio e aguado. Como vocs vo entender, estou extremamente grato
ao Instituto Ricardo Brennand pela oportunidade de fugir daquela regio
condenada. Considero uma honra dar a palestra final deste encontro.
Esta conferncia dedicada ao passado compartilhado entre Bra-
sil e Holanda durante o sculo XVII. Esse rtulo uma descrio diplo-
mtica. Afinal, aquele passado compartilhado consistia de uma dca-
da de conflito violento, um perodo muito curto de ocupao holandesa
e outra dcada de guerra destrutiva. Os protagonistas desse conflito
lutaram pelo domnio exclusivo de um pas. No estavam inclinados a
compartilhar muita coisa ou, caso necessitassem, o fariam estritamente
nos seus prprios termos. No entanto, certamente verdadeiro que os
historiadores brasileiros e holandeses compartilharam esse passado por
muito tempo.1 Por mais de cento e cinquenta anos estudaram e escreve-
ram a respeito dele.
1 J. H. Rodrigues, A pesquisa histrica no Brasil (Rio de Janeiro, 1952); Marcos Cezar de
Freitas (ed.), Historiografia brasileira em perspectiva (So Paulo, 1998).
48 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
Nos seus estudos sobre o sculo XVII, quanto aos confrontos entre
os holandeses e os habitantes do Nordeste, os historiadores brasileiros
e holandeses estabeleceram muito terreno em comum. Porm, isso no
quer dizer que vejam as questes sob a mesma tica, que atribuam sig-
nificados idnticos ou at semelhantes aos pontos sobre os quais concor-
dam. Nesta fala gostaria de apresentar algumas observaes sobre essas
perspectivas e atribuies de significado divergentes. O que tenho a ofe-
recer uma explorao preliminar, uma obra em andamento. Ofereo as
observaes como questes para discusso; de maneira nenhuma como
afirmaes definitivas sobre a questo.
As primeiras duas monografias sobre o perodo holands no Brasil
foram escritas no meio do sculo XIX pelo brasileiro Francisco Adolfo
de Varnhagen e o holands Pieter Marinus Netscher. Consideravam-se
historiadores cientficos. Para eles isso significou vrias coisas. Primeiro,
tiveram que evitar pressuposies teolgicas e partidarismo definido.
Era para se estudar a histria como assunto puramente secular, centra-
do sobre a poltica. Na sua viso, no a igreja, e sim, o estado nacional
mantinha o povo junto, exprimia sua vontade coletiva mais rigorosa-
mente e determinava sua vida da forma mais profunda. Segundo, a
abordagem cientfica implicava numa obrigao de tentar encontrar a
verdade, toda a verdade e nada alm da verdade. Antes de escrever,
os historiadores cientficos tiveram de coletar e avaliar criticamente em
princpio todas as fontes disponveis, publicadas e no publicadas, por-
tuguesas e holandesas. Como juzes imparciais tiveram que evitar no
s partidarismo religioso, mas tambm nacional. Por mais que tentas-
sem ser cientficos, tanto Varnhagen como Netscher, mesmo assim, que-
riam celebrar os grandes feitos dos seus ancestrais masculinos. Nesse
sentido, suas histrias cientficas ainda estavam claramente conectadas
ao estilo laudatrio e exemplar de escrever a histria.
Embora Varnhagen e Netscher concordassem amplamente sobre
como estudar seu tema e escrevessem sobre os mesmos fatos e eventos
histricos, suas obras demonstram uma divergncia de perspectiva de-
49As perspectivas da Holanda e do Brasil do Tempo dos flamengos
vida estrutura nacional e poltica que aplicaram s suas narrativas. A
forma pela qual cada historiador viu seu passado foi moldada segundo
as preocupaes contemporneas das comunidades do estado nacional
em que cada um viveu.
O diplomata e historiador Varnhagen comeou a estudar o perodo
holands como parte do seu trabalho mais abrangente: a Histria geral do
Brasil e mais tarde dedicou um estudo separado a isso: a Histria das lutas
com os holandeses no Brasil. Ele dedicou a Histria Geral principalmente ao
perodo colonial, mas nela passou uma mensagem que ele considerou ser
altamente relevante para seus contemporneos no Imprio independente
brasileiro. Para Varnhagen as continuidades entre os perodos coloniais e
nacionais importavam mais que as diferenas. Ele valorizou a continui-
dade do reinado no Brasil de monarcas da Casa Portuguesa de Bragana.
Para ele, o centralismo inerente monarquia garantiu a integridade do
imenso territrio adquirido durante o perodo colonial; o princpio mo-
nrquico de classificao social por descendncia manteve uma hierarquia
social que havia se justificado durante muitos sculos; a monarquia man-
teve o papel principal no governo e sociedade dos homens, brancos, de
lngua portuguesa; a continuidade entre os perodos colonial e nacional
havia protegido o Brasil dos recorrentes separatismos regionais e de re-
volues sociais que contaminaram os pases de lngua espanhola circun-
dantes; a unidade do seu imenso territrio e a estabilidade social foram as
melhores garantias do Brasil pelo seu continuado desenvolvimento e pela
sua posio enquanto poder nas Amricas.
A perspectiva nacional-monrquica do sculo XIX sobre o passa-
do colonial brasileiro moldou a viso de Varnhagen sobre o perodo da
ocupao holandesa no sculo XVII. As lutas contra os invasores, con-
duzidas pelo governo imperial portugus e os homens de poder locais
haviam evitado a diviso da costa brasileira entre vrias naes euro-
peias. Enquanto durante os mesmos anos no sculo XVII, os espanhis
perderam o monoplio de colonizao no Caribe e tiveram que permitir
a ocupao pelos holandeses, pelos ingleses e pelos franceses, os portu-
50 Brasil Holands: histria, memria e patrimnio compartilhado
gueses no Brasil reafirmaram seu monoplio atravs da expulso dos
holandeses. O conservadorismo monarquista de Varnhagen parece ter
um trao liberal, mas isso no parece ter influenciado seu tratamento
do perodo holands. Diferentemente de historiadores depois dele, Var-
nhagen no