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Anais do VII Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (2011)
Verdade e subjetividade nos estudos de Foucault sobre a ética clássica: uma
estética da existência
Daniel Verginelli Galantin*
RESUMO
Nesta comunicação apresentamos inicialmente as principais alterações pelas quais passam os
estudos de Michel Foucault durante os anos 80, quando estes são redirecionados para o campo
da ética na Grécia clássica e período helenístico. Trata-se do estudo das técnicas através das
quais os indivíduos se constituem a si mesmos enquanto sujeitos éticos a partir de relações de
si para consigo e com os outros. Para isso nos concentramos na introdução de “O uso dos
prazeres” e “O cuidado de si”. Em seguida destacamos a articulação entre verdade e
subjetividade neste momento (nos restringimos à Grécia clássica). Entre gregos, a figura da
verdade está intimamente ligada à prática da liberdade na vida política. No entanto, apesar da
inseparabilidade entre a constituição de si como sujeito ético e sujeito de conhecimento, esta
verdade não é fruto de uma hermenêutica do desejo como no caso do cristianismo, mas sim
daquilo que Foucault denomina “estética da existência”. Por esse termo devemos entender
uma existência que não se pauta pela obediência a um código transcendente de aplicação
universal, mas por certos princípios gerais que regem o bom uso dos prazeres, evitando que o
indivíduo se torne escravo destes. Daí sua ligação com a liberdade: para entrar na vida política,
era necessário governar a si mesmo, de modo a não se deixar escravizar pelas próprias paixões.
Foucault encontra na Grécia clássica uma noção de verdade diferente da verdade profunda de
si resultado de uma hermenêutica do desejo, e diferente daquela que participa da produção de
sujeitos assujeitados como verificado na modernidade (verdade como norma); o estatuto deste
“si” é, então, diferente daquele do sujeito moderno. Por fim, com o auxílio de algumas
entrevistas e comentadores, apontamos para a atualidade política das pesquisas de Foucault na
década de 1980.
PALAVRAS-CHAVE: Foucault, verdade, subjetividade, ética.
* Aluno do Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista CAPES. E-
mail: [email protected].
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Introdução: o novo eixo de estudo da década de 1980
A partir da década de 1980 os estudos de Michel Foucault passam por um significativo
deslocamento com relação àqueles dos anos 70. Nos últimos foram estudadas as articulações
entre poderes e saberes em suas transformações históricas, as quais fazem aparecer novos
objetos, e especialmente novos sujeitos. A partir dos anos 80, Foucault desloca seu olhar para a
Grécia clássica (por volta do século IV a.C.), o período helênico-romano (séculos I e II d.C.), e os
primeiros cristãos (IV e V d.C.). Entre os oito anos que separam a publicação dos dois primeiros
volumes de “História da Sexualidade”, em diversos cursos no Collège de France e outras
conferências, Foucault dedicou-se a estudar as técnicas através das quais os indivíduos se
constituem a si mesmos enquanto sujeitos éticos a partir de relações de si para consigo e com
os outros. Portanto, trata-se de um deslocamento ao mesmo tempo cronológico e temático.
No prefácio de “O Uso dos Prazeres” Foucault sistematiza como teria chegado ao si
mesmo que se autoconstitui a partir das técnicas de si. Ao retomar o projeto de “História da
Sexualidade”, o filósofo francês aponta para o fato deste apresentar-se enquanto “uma história
da sexualidade enquanto experiência, se entendemos por experiência a correlação, em uma
cultura, entre campos do saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”.
Ressaltamos que nem a noção de experiência1 nem a de subjetividade2 estavam presentes nos
estudos genealógicos, mas podemos perceber como saber e normatividade referem-se à
articulação entre saber e poder do momento genealógico. Este novo deslocamento implica em
procurar entender de que maneira “os indivíduos são levados a reconhecer-se como sujeitos de
uma sexualidade” (FOUCAULT, 2010, p.10). Conforme apontado, esta última faceta não existia
anteriormente; os sujeitos eram constituídos no interior do campo de imanência formado pelas
articulações entre poderes e saberes, articulações específicas e localizadas histórica e
geograficamente (sendo então passíveis de mudanças); mas eles não eram levados a
reconhecer-se em nada, uma vez que tratavam-se de sujeitos constituídos a partir de técnicas
1 A concepção de experiência aparece enquanto experiência trágica em “História da Loucura” (FOUCAULT, 1997,
pp.26-29) num sentido significativamente diferente daquele referido por Foucault nesta introdução. 2 Entendemos subjetividade como a dimensão que se constitui pelos três eixos (saber, poder e práticas de si), e
não apenas pelos dois eixos que caracterizam as pesquisas dos anos de 1970 (saber e poder).
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de sujeição, processos normalizadores que produziam verdades concomitantemente à própria
produção destes sujeitos; tratava-se, enfim, de sujeitos assujeitados. Digamos que estava
presente o lado passivo da última frase citada (o “levados a”), mas não o lado reflexivo, não o
“reconhecer-se”.
Foucault resume este deslocamento constituinte do terceiro eixo de seus estudos da
seguinte maneira: “a fim de analisar o que é designado como ‘o sujeito’; convinha pesquisar
quais são as formas e as modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se
constitui e se reconhece como sujeito” (FOUCAULT, 2010, p.12). A noção de verdade também
passa por esse deslocamento. Após os estudos dos jogos de verdade considerados entre si
(arqueologia), e considerados em sua articulação com os poderes (genealogia), foi necessário
“estudar os jogos de verdade na relação de si para si e a constituição de si mesmo como sujeito,
tomando como espaço de referência e campo de investigação aquilo que poderia chamar-se
‘história do homem de desejo’”. Para realizar uma história da verdade Foucault opera esse
deslocamento e revê todo seu percurso filosófico a partir do mesmo; trata-se de interrogar:
Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser próprio a pensar quando se percebe como louco, quando se olha como doente, quando reflete sobre si como ser vivo, ser falante, ser trabalhador, quando se julga e se pune enquanto criminoso? Através de quais jogos de verdade o ser humano se reconheceu como homem de desejo?3 (FOUCAULT, 2010, p.13).
O número de orações construídas na forma passiva e reflexiva já é, no mínimo, um indício de
que este sujeito não pode ser considerado nem o sujeito soberano das filosofias do sujeito,
nem o sujeito assujeitado, constituído no campo de imanência das articulações entre saberes e
poderes (pois ele se constitui e se reconhece). Trata-se de outra abordagem do sujeito, não
3 Podemos perceber como Foucault se refere aos seus trabalhos anteriores: “História da Loucura”, “Nascimento da
Clínica”, “As Palavras de as Coisas”, “Vigiar e Punir”, “História da Sexualidade” respectivamente. No entanto este olhar retrospectivo serve antes para entendermos a singularidade do momento no qual ele é lançado (as pesquisas da década de 1980), que para entendermos as obras às quais ele se refere. Caso contrário, estaríamos adotando uma concepção de história radicalmente anti-foucaultiana para os próprios trabalhos de Foucault, na medida em que estaríamos projetando retrospectivamente o presente da década de 1980 nos estudos das décadas de 1960 e 1970. Isso tornaria a obra de Foucault marcada pela continuidade e latência de elementos que apenas progrediriam com o tempo.
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mais como constituinte e nem como constituído; daí a torção e certa imprecisão no uso das
palavras, como se Foucault tentasse fazê-las dizer mais que seu significado usual.
Constituição do sujeito ético na Grécia clássica: ausência de referência à lei e estética da
existência
Com o recorte apontado anteriormente, Foucault investiga as maneiras através das
quais os comportamentos sexuais foram alvo de preocupações e formulações morais. Dizer que
a sexualidade é sempre alvo de interdições fundamentais não basta, pois “ocorre
freqüentemente que a preocupação moral seja forte, lá onde precisamente não há obrigação
nem proibição” (FOUCAULT, 2010, p.17). Tais regras criadas para reger campos éticos não
codificados estritamente são os elementos para os quais o filósofo francês dirige seus estudos.
No mundo greco-latino tais preocupações estavam relacionadas ao que Foucault denomina
artes da existência.
Deve-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer da sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. Essas ‘artes de existência’, essas ‘técnicas de si’, perderam, sem dúvida, uma certa parte de sua importância e de sua autonomia quando, com o cristianismo, foram integradas no exercício de um poder pastoral e, mais tarde, em práticas de tipo educativo, médico ou psicológico. De qualquer modo, dever-se-ia, sem dúvida, fazer e refazer a longa história dessas estéticas da existência e dessas tecnologias de si (FOUCAULT, 2010, pp.17-18).
Para realizar o estudo das éticas antigas, faz-se necessária uma arqueologia das preocupações
morais, focada no âmbito discursivo dos temas e inquietações que perpassam as morais cristã e
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greco-latinas (trata-se da sub-sessão “As formas de problematização”4); e uma genealogia das
práticas (trata-se da sub-sessão “Moral e prática de si”). Quanto a esta última, Foucault aponta
três possíveis modos de se investigar uma moral. Poder-se-ia problematizar os códigos morais,
ou a ação dos indivíduos perante estes códigos. Mas Foucault propõe outra via. Trata-se de
estudar a autoconstituição de si como sujeito ético: “(...) a maneira pela qual é necessário
‘conduzir-se’ – isto é, a maneira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito moral,
agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código” (FOUCAULT, 2010,
p.34). Em suma, trata-se das diversas maneiras pelas quais se pode seguir uma série de
prescrições; as diferentes maneiras de se conduzir e se constituir como sujeito ético. Foucault
destaca quatro pontos aos quais tal autoconstituição refere-se. A determinação da substância
ética (que no caso de “O uso dos prazeres” são os aphrodisia5); o modo de sujeição (a chresis6);
a elaboração do trabalho ético (enkrateia7) e a teleologia do sujeito moral (sophrosune8). Nos
concentramos na relação entre verdade e subjetividade, a relação entre o si mesmo e a verdade
na constituição de si como sujeito ético. Esta relação está trabalhada no quarto item do
primeiro capítulo de “O uso dos prazeres”, onde a sophrosune é investigada em sua
especificidade.
4 Nesta vertente arqueológica da investigação Foucault destaca o medo da masturbação, o esquema da fidelidade, a imagem da repugnância a homens efeminados e o elogio à abstenção sexual, tanto entre antigos como entre modernos. A rápida e introdutória comparação acaba por mostrar como apesar da aparente continuidade, há uma grande diferença entre ambos os períodos. Trata-se de problematizar leituras simplistas que colocam a moral cristã pré-formada na pagã antiga (dando legitimidade histórica à primeira), ou colocando esta última enquanto um lugar de liberdade de comportamentos em comparação com o rigorismo cristão (projetando retrospectivamente para os antigos uma noção moderna de liberdade). 5 “Os aphrodisia são atos, gestos, contatos, que proporcionam uma certa forma de prazer” (FOUCAULT, 2010,
p.53), o que inclui a comida a bebida e os prazeres do sexo. Foucault utiliza a palavra na língua grega para diferenciá-la tanto da “carne” cristã quanto da “sexualidade” laica moderna. 6 A reflexão grega sobre o uso dos prazeres (tradução de chresis aphrodision) não toma a forma da fixação de um código universal de regras às quais os indivíduos devem se sujeitar. Trata-se antes de “elaborar as condições e as moralidades de um ‘uso’: o estilo daquilo que os gregos chamavam chresis aphrodision, o uso dos prazeres” (FOUCAULT, 2010, p.67). Na moral grega clássica trata-se de um ajustamento que leva em conta a necessidade, o momento e o status. 7 A enkrateia (pode ser traduzida por “continência”) é uma forma de relação consigo necessária à conduta moral dos prazeres. Ela se caracteriza por uma luta de si contra si mesmo, com vistas a garantir “uma forma ativa de domínio de si que permite resistir ou lutar e garantir sua dominação no terreno dos desejos e dos prazeres” (FOUCAULT, 2010, p.80). 8 A sophrosune (pode ser traduzida por “temperança”) é o estado para o qual tende a enkrateia; esta última é
como a condição para a sophrosune.
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Após ter se concentrado na enkrateia, entendida como um tipo de continência o qual
não visa acabar com a luta interna entre paixões (pathos), mas sim equilibrá-las (o que implica
na prática de exercícios que visam atingir e manter tal equilíbrio), Foucault dirige sua atenção à
sophrosune destacando o aspecto político que esta assume na Grécia clássica:
Embora seja tão importante governar os desejos e prazeres, e apesar do uso que se faz deles constituir um alvo moral de tal preço, não é para conservar ou reencontrar uma inocência de origem; não é, em geral – salvo, evidentemente, na tradição pitagórica para conservar uma pureza; é para ser livre e poder permanecê-lo (FOUCAULT, 2010, p.97).
A liberdade dos cidadãos em seu conjunto não pode ser separada do domínio que cada um
deles é capaz de exercer sobre si mesmo. Esta liberdade não deve ser entendida como livre-
arbítrio ou liberação, nem independência de coerções exteriores ou interiores. Ela é poder que
se exerce sobre si mesmo, e seu pólo oposto é a escravidão diante das próprias paixões: “Ser
livre em relação aos prazeres é não estar a seu serviço, é não ser seu escravo” (FOUCAULT,
2010, p.98). Ainda mais que uma não-escravidão com relação a si mesmo e aos outros, a
reflexão grega clássica coloca que a liberdade, “na sua forma plena e positiva ela é poder que se
exerce sobre si, no poder que se exerce sobre os outros” (FOUCAULT, 2010, p.99). Isso implica
numa indivisibilidade ou isomorfismo entre governo de si e governo dos outros; ou seja, aquele
que comanda os outros deve acima de tudo ser também capaz de comandar a si mesmo. Por
isso, o tirano político é frequentemente caracterizado não apenas em sua relação com a pólis –
sua falta de cuidado com a justiça na mesma –, como também em sua relação consigo mesmo:
ele é incapaz de dominar a si mesmo9.
9 Já no curso “Hermenêutica do Sujeito”, Foucault encontra no “Alcebíades” de Platão a correspondência entre governo de si e governo dos outros – no caso trata-se do cuidado de si o qual é necessário para se cuidar da pólis. Sócrates aborda Alcebíades para mostrar-lhe que ele não tem a tekhné necessária para governar a cidade apenas quando este pretende transformar seu privilégio estatutário em ação política efetiva: “Não se pode governar os outros, não se pode bem governar os outros, não se pode transformar os próprios privilégios em ação política sobre os outros, em ação racional, se não se está ocupado consigo mesmo. Entre privilégio e ação política, este é, portanto, o ponto de emergência da noção de cuidado de si” (FOUCAULT, 2010h, p.35).
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A especificidade da constituição do campo ético quanto à relação entre verdade e
subjetividade na Grécia clássica torna-se evidente quando Foucault o compara com o
cristianismo. A relação entre verdade e subjetividade entre os gregos, segundo Foucault,
jamais assume a forma de uma decifração de si por si e de uma hermenêutica do desejo. Ela é constitutiva do modo de ser do sujeito temperante; não equivale a uma obrigação para o sujeito de dizer a verdade sobre si próprio; nunca abre a alma como um domínio de conhecimento possível onde as marcas dificilmente perceptíveis do desejo deveriam ser lidas e interpretadas. A relação com a verdade é uma condição estrutural, instrumental e ontológica da instauração do indivíduo como sujeito temperante e levando uma vida de temperança; ela não é uma condição epistemológica para que o indivíduo se reconheça na sua singularidade de sujeito desejante, e para que possa purificar-se do desejo assim elucidado (FOUCAULT, 2010, pp.109-110).
Em outras palavras, a constituição do sujeito ético grego passa por uma relação com o
verdadeiro (pois o que hoje denominamos por ética e epistemologia, não se separavam na
antiguidade), que não é o dizer a verdade profunda sobre si. Nem decifração de si por si e nem
hermenêutica do desejo. Trata-se de uma verdade que dota o indivíduo de uma capacidade
autoconstitutiva de sujeito temperante, tornando-o senhor de si, e talvez pudéssemos dizer
que o torna autônomo, no sentido estrito: aquele capaz de dar a si suas próprias regras e com
isso tornando-se capaz de cuidar da cidade – por isso a figura da lei está praticamente ausente
nos textos estudados por Foucault. Através de exemplos encontrados em Xenofontes, nosso
autor mostra que a ética que guiava os prazeres, quando tratava do princípio da necessidade,
implicava em sustentar o prazer pelo desejo tomando o cuidado de não multiplicar desejos não
naturais. Por exemplo, deve-se dormir motivado pelo cansaço e não pela ociosidade. “A
necessidade deve servir de princípio diretor nessa estratégia, a qual, como se vê, nunca pode
tomar a forma de uma codificação precisa ou de uma lei aplicável a todos da mesma maneira e
em todas as circunstâncias. Ela permite um equilíbrio na dinâmica do prazer e do desejo”
(FOUCAULT, 2010b, p.70). Este equilíbrio permite escapar à intemperança, a qual nada mais é
que uma conduta que não remete a uma necessidade:
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Concebida assim a temperança não pode tomar a forma de uma obediência a um sistema leis ou a uma codificação das condutas; ela também não pode valer como um princípio de anulação dos prazeres; ela é uma arte, uma prática dos prazeres que é capaz, ao ‘usar’ daqueles que são baseados na necessidade [,] de se limitar ela própria (FOUCAULT, 2010b, p.71).
A relação com a verdade na ética antiga não passa por uma hermenêutica do desejo
como no cristianismo, mas por aquilo que o filósofo francês denomina por “estética da
existência”.
Deve-se entender com isso uma maneira de viver cujo valor moral não está na conformidade a um código de comportamento nem em um trabalho de purificação, mas depende de certas formas, ou melhor, certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles se faz, nos limites que se observa, na hierarquia que se respeita. Pelo logos, pela razão e pela relação com o verdadeiro que a governa, tal vida inscreve-se na manutenção ou reprodução de uma ordem ontológica; e, por outro lado, recebe o brilho de uma beleza manifesta aos olhos daqueles que podem contemplá-la ou guardá-la na memória (FOUCAULT, 2010, p.110).
A estética da existência se nos apresenta como um “modo de sujeição” – um dos quatro
vetores da constituição do sujeito ético. O “modo de sujeição” diz respeito à “maneira pela qual
o indivíduo estabelece sua relação com essa regra e se reconhece como ligado à obrigação de
pô-la em prática” (FOUCAULT, 2010, p.35). Foucault dá três exemplos quanto à fidelidade:
pode-se ser fiel por reconhecer-se como ligado a um grupo social que proclama a fidelidade;
por considerar-se ligado a uma tradição espiritual que deve ser revivida ou mantida; por
responder a um apelo, colocar-se como exemplo ou querer dar à própria vida pessoal “uma
forma que corresponda a critérios de esplendor, beleza, nobreza ou perfeição” (FOUCAULT,
2010, p.35). Este último modo é precisamente a estética da existência10, o que mostra como a
10 No entanto vale ressaltar que por vezes o próprio Foucault mistura a noção de estética da existência com alguns outros conceitos incipientes neste período. Cf (FOUCAULT, 2010, pp.17-18), quando são misturados os temos “técnicas de si” e “estética da existência”. Reencontramos tal indistinção na entrevista “Sexualité et Solitude” (FOUCAULT, 2001b, p.987) onde a confissão forçada de um louco é apresentada como uma técnica de si, enquanto que pouco depois as técnicas de si serem definidas em termos próximos da estética da existência. Parece-nos que as técnicas de si são parte da constituição de qualquer sujeito, quer em meio a uma produção heterônoma, quer em meio a uma produção menos regulamentada.
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obediência à lei é apenas uma das figuras possíveis na constituição do sujeito ético, e não a
única.
Ao final do capítulo no qual concentramos nossas atenções, aparece outra comparação
com o cristianismo. Esta deixa evidente que apesar de alguns conteúdos de austeridade
semelhantes, a moral pagã antiga difere da cristã essencialmente na constituição do sujeito
ético, e não pelo código estritamente. No caso do cristianismo, a substância ética não é o
conjunto dos aphrodisia, mas alguns atos definidos minuciosamente e os desejos escondidos
nos recônditos da carne. A forma de sujeição não será um savoir-faire do bom uso dos prazeres,
mas o respeito à lei e “obediência a uma autoridade pastoral”. Assim, o sujeito moral cristão
não se caracteriza por uma maestria e dominação de si sobre si, mas por uma renúncia a si e
busca por pureza cujo modelo é a virgindade.
A partir daí, pode-se compreender a importância, na moral cristã, dessas duas práticas, ao mesmo tempo opostas e complementares: uma codificação dos atos sexuais, que se tornará cada vez mais precisa, e o desenvolvimento de uma hermenêutica do desejo e dos procedimentos de decifração de si (FOUCAULT, 2010, p.113).
No cristianismo (especialmente em sua faceta monástica) era necessário buscar uma verdade
profunda de si mesmo para poder livrar-se do mal que se tem dentro de si (a verdade implicava
na renúncia a si e na obediência); na modernidade a verdade investigada por Foucault (cujo
modelo é a norma) era produzida na própria constituição dos sujeitos (sujeitos assujeitados e
obedientes); na Grécia clássica tratava-se de outra relação, com uma verdade que é também
outra. Esta implicava na constituição de um si mesmo dotado de auto-domínio e, portanto,
livre. Nem verdade de si com renúncia a si, nem produção heterônoma do sujeito; como
apontado anteriormente, talvez possamos dizer que se trate de uma produção autônoma do
sujeito na relação deste consigo mesmo e com os outros. Autônoma pela ausência de
referência à figura da lei e pela modalização casuística da ética, ou seja, tratam-se de princípios
gerais precisamente para que eles possam ser modelados, adaptados a cada caso, em cada
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momento. Na introdução que serve aos dois últimos volume da “História da Sexualidade”,
nosso autor define o estatuto e o papel de tais discursos verdadeiros:
O papel desses textos era o de serem operadores que permitiam aos indivíduos interrogar-se sobre sua própria conduta, velar por ela, formá-la e conformar-se, eles próprios, como sujeito ético; em suma, eles participam de uma função ‘etopoética’, para transpor uma expressão que se encontra em Plutarco (FOUCAULT, 2010b, p.20).
Estes são alguns elementos que fazem com que este si não seja indício de um retorno ao
sujeito na década de 1980, e “se em seus últimos trabalhos Foucault fala do sujeito, não se
trata do sujeito epistêmico ou genealógico, mas de um sujeito ético, constituído através de
práticas de si” (ORTEGA, 1999, p.45), as quais são elas também variáveis histórica e
geograficamente e apresentam a capacidade de transformar o ethos deste próprio sujeito. Por
motivos heurísticos, podemos dizer que nos estudos das práticas de si, Foucault trata de
subjetividades, e não de um sujeito. Acreditamos ser possível avançar ainda mais na definição
do estatuto de tal subjetividade constituída a partir das práticas de si ao colocá-la não
enquanto constituída, e nem constituinte (ORTEGA, 1999, p.63), mas no gerúndio reflexivo:
constituindo-se. Assim indicamos melhor a dobra sobre si e o movimento que caracterizam a
subjetividade, em detrimento dos atributos de fixidez, unidade e identidade da noção de
sujeito, pois não há acabamento no trabalho exercido sobre si.
Conclusão: implicações políticas contemporâneas dos estudos éticos de Michel Foucault
Por fim, nos parece válido destacar a contemporaneidade política das investigações de
Foucault nos anos 80. Seu trabalho com os antigos não nos parece nem pura erudição, nem a
procura, nos gregos, da solução para o enfrentamento às tecnologias de poder totalizadoras e
individualizadoras de nossa época, descritas na conferência “Omnes et Singulatim”, de 1981
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(FOUCAULT, 2001b, p.953). Foucault deixa claro na entrevista “A propósito da genealogia da
ética”, de 1983: “Não, eu não procuro por uma solução de rechange11; não se encontra a
solução de um problema na solução de outro problema colocado em outra época por pessoas
diferentes” (FOUCAULT, 2001b, p.1205). Antes que uma história das soluções, o que seu
trabalho faz, é deslocar certas problematizações políticas ao construir uma nova perspectiva do
passado em relação ao presente. Foucault notou bem, na entrevista “O sujeito e o poder” (de
1982), que as lutas políticas contemporâneas mudaram. Elas se constroem contra um tipo de
poder
que se exerce na vida cotidiana das pessoas, que classifica os indivíduos em categorias, designa-os por sua individualidade e lhes fixa em suas identidades, lhes impõem uma lei de verdade a qual eles devem reconhecer em si mesmos e que os outros devem reconhecer neles. Trata-se de uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos (FOUCAULT, 2001b, p. 1048).
Ou seja, são lutas contra a submissão de subjetividades. Estas novas lutas trazem consigo novos
objetivos:
sem dúvida o objetivo principal hoje não é o de descobrir, mas de recusar o que nós somos. É necessário imaginarmos e construir aquilo que poderíamos ser para nos desvencilharmos dessa espécie de ‘dupla constrição’ política que é a individualização e a totalização simultâneas das estruturas do poder moderno (FOUCUAULT, 2001b, p.1051).
Contrariamente às lutas políticas pautadas pela organização partidária ou pela ótica estatal,
trata-se não mais de lutar por reconhecimento identitário (o que, é preciso ressaltar, coloca em
questão o modo de atuação de alguns movimentos sociais), e nem pela realização e conquista
de algo que já somos em estado latente e só não somos de fato porque somos reprimidos ou
iludidos. Trata-se de abandonar o que já somos, as identidades que nos são conferidas pelos
11
A tradução dos originais em francês é de nossa responsabilidade. Decidimos manter o termo “rechange” no original por ele ser difícil de traduzir, apesar de seu sentido ser simples. O prefixo “re” diz respeito a um estado de coisas anterior ao atual, enquanto o substantivo “changement” significa mudança. Logo, rechange nada mais é que trazer de volta um estado de coisas do passado, e que no caso se refere à ética greco-romana.
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mecanismos de assujeitamento, para que diferenciemo-nos de nós mesmos. Para isso parece-
nos ser necessário outro tipo de relação de nós para conosco e com os outros, novos
experimentos éticos de constituição de subjetividades, para os quais os trabalhos de Foucault
nos anos 80 apontam, contudo sem carregar com isso qualquer prescrição ou normatividade.
BIBLIOGRAFIA
CANDIOTTO, César. Foucault e a crítica da verdade. Belo Horizonte: Autêntica; Curitiba:
Champagnat, 2010.
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2010a.
________________. História da Sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 2010b.
________________. Dits et écrits, tome I. Paris: Gallimard, 2001a.
________________. Dits et écrits, tome II. Paris: Gallimard, 2001b.
ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999.