Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
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VELHICE E ESQUECIMENTO: o Mal de Alzheimer nos
relatos midiáticos1 THE OLD AGE AND FORGETFULNESS: the issue of
Alzheimer’s disease in media narratives Ana Paula Goulart Ribeiro 2
Resumo: Nas últimas décadas, mudaram os sentidos sociais da velhice, sobretudo
no que se refere à relação com a memória. De guardião das lembranças, o idoso
passou a ser, cada vez mais, percebido como um ser do esquecimento, que sofre de
patologia ou disfunção grave. A associação da sua figura a doenças como o
Alzheimer é um exemplo disso. O medo e a angústia que envolvem esse tipo de
distúrbio geram, nas mídias, um conjunto significativo de relatos, que este trabalho
busca analisar.
Palavras-Chave: memória, esquecimento, mídia
Abstract: In recent decades, the social meaning of old age have changed, especially
in relation to memory. Guardian of memories, the elderly came to be perceived as a
being from oblivion, suffering disease or severe dysfunction.
The association of your figure to diseases such as Alzheimer's is an example. Fear
and anguish involved in this type of disturbance generate, in the media, a
significant number of narrativas, that this paper analyzes
Keywords: memory, forgetfulness, media
“Davam a impressão de ser tão velhos que provavelmente
nem lembravam ao certo por que estavam ali.”
Ismail Kandaré – Abril Despedaçado
Introdução
Nas últimas décadas, mudaram os sentidos sociais da velhice, sobretudo no que se
refere à relação com a memória. De guardião das lembranças, o idoso passou a ser, cada vez
mais, percebido como um ser do esquecimento, que sofre de patologia ou disfunção grave. A
associação da sua figura com uma série de doenças demenciais, sobretudo o Alzheimer, é um
exemplo disso.
O medo e a angústia que envolvem esse tipo de distúrbio tem possibilitado o
surgimento de uma quantidade expressiva de produtos especializados no assunto, como
revista de divulgação científica voltadas para o aconselhamento do grande público. Tem
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Memória nas Mídias do XXV Encontro Anual da Compós, na
Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Professora da UFRJ, doutora em Comunicação e Cultura, [email protected].
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também gerado um conjunto significativo de relatos testemunhais, seja na forma de livros, de
vídeos postados no YouTube ou de reportagens jornalísticas.
É uma parte desse conjunto de textos que este trabalho buscará analisar. Acreditamos
que, no conjunto, eles nos dizem muito sobre um certo tipo de enunciação midiática e sua
articulação com a memória. A questão talvez se configure hoje com uma das dimensões mais
problemáticas e desafiadoras para entendermos tantos os processos de subjetivação e quanto
os de dinamização das identidades sociais no mundo contemporâneo.
A velhice e o lugar da memória
Jacques Le Goff (1992, p. 449), em seu clássico texto sobre memória e história,
comenta que a Idade Média venerava os velhos, justamente porque os via como “homens-
memória”, prestimosos e úteis para a sociedade. Eram os anciões que transmitiam para as
gerações mais novas poder e sabedoria. O historiador francês dá o exemplo de uma disputa
em torno do pagamento de um imposto, que é solucionada quando se decide chamar idosos
como testemunhas. Sua palavra – baseada na capacidade de lembrar fatos do passado – tinha
poder incontestável, legitimador de ações jurídicas. Tinha, portanto, força de lei.
Claro que há muito essa associação positiva entre velhice, memória e testemunho já
não mais existe. A modernidade ocidental provocou deslocamentos significativos também
nesse campo. No seu belíssimo ensaio “Envelhecer e morrer” – que no Brasil foi publicado
como um anexo do livro A Solidão dos Moribundos – Norbert Elias chama atenção para o
lugar que o velho e moribundo ocupam nas sociedades modernas – lugar que, na realidade,
expressa a relação dos indivíduos com sua própria morte. No seu clássico História da Morte
no Ocidente, Philippe Ariés que trabalha a mesma ideia. Apesar de haver diferenças
explícitas entre os dois autores, ambos defendem que a morte se deslocou do espaço público
para o privado e deste, cada vez mais, para a dimensão do íntimo, do quase “não dito”.
Norbert Elias (2012, p. 15) afirma: “Como outros aspectos animais, a morte, tanto
como processo como imagem mnemônica, é empurrada mais e mais para os bastidores da
vida social durante o impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso significa que eles
também são empurrados para os bastidores, são isolados”. O autor chega mesmo a afirmar
que, a despeito de a espécie humana ser uma comunidade de mortos, a morte é, no mundo
moderno, recalcada. O fim da vida se tornou mais oculta, menos presente, menos familiar do
que era antes. As pessoas passaram a viver mais, e a morte deixou de ser um evento
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corriqueiro. Ficou mais fácil esquecê-la no curso da vida. E, quando ela irrompe
inadvertidamente, provoca desconforto. Não gostamos de pensar na morte, não gostamos de
falar sobre ela.
Em seu primoroso texto Sobre a Transitoriedade, Freud (1986) fala de algo parecido.
Ele nos diz sobre a dificuldade que temos de lidar com a efemeridade do mundo e com nossa
própria finitude. Comenta sobre nosso desejo de escapar das forças de destruição, sobre nossa
exigência de imortalidade, que infelizmente não pode reivindicar seu direito a realidade.
Mas para além do deslocamento fundamental provocado pela modernidade de que
falam Elias e Ariés, parte importante da bibliografia sobre memória sublinha o papel singular
que a prática mnemônica ocupa na idade avançada, mesmo no mundo moderno. É na velhice
que a evocação do tempo pretérito se dá como mais ênfase. Isto se explica pelo lugar que o
idoso ocupa nas sociedades ocidentais. Ora, o que rege efetivamente a atividade mnemônica é
a função social exercida no presente por aquele que lembra (HALBWACHS¸1990). Quando
o sujeito deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida do
seu grupo, resta-lhe lembrar, ser a memória da sua coletividade. Para o idoso, lembrar seria
quase que uma espécie de obrigação social, que não pesa sobre os homens de outras idades.
Na bibliografia brasileira vale destacar a obra de Ecleia Bosi. No seu livro Memória e
Sociedade, a autora chama atenção para a velhice como o tempo, por excelência, da memória.
É no momento em que, afastado das demandas cotidianas da profissão, o indivíduo pode
parar para pensar sobre o seu passado. O presente já não o solicita com tanta intensidade e ele
pode dispor de mais tempo para a atividade reflexiva. Pode se ocupar consciente e
atentamente da sua história e, algumas vezes, da história da coletividade a que pertence.
O livro da Ecleia Bosi foi publicado, pela primeiro vez, em 1973, há mais de 40 anos.
E ainda hoje é um texto de referência sobre os estudos de memória no Brasil. No entanto, é
interessante perceber que alguns dos aspectos destacados pela autora em relação às
“lembranças de velhos” (subtítulo do livro) parecem não mais se aplicar de uma forma
simples às sociedades contemporâneas.
Nossa hipótese é de que, nas últimas décadas, novos deslocamentos ocorreram. Nos
parece que, de recalcado, o velho voltou à cena. O aumento da expectativa de vida fez surgir
novos termos para se referir aos idosos, presentes na mídia e na fala de senso comum, como
“pessoas da terceira idade”. Nesse caso, os velhos saem dos espaços privados e vão para a
cena pública: praticam esportes; viajam; são saudáveis, fortes, ágeis; têm vida social intensa;
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são independentes, têm boa memória, lucidez e, o mais importante, são capazes de se manter
jovens. O velho é, portanto, valorizado pela sua negação.
Há, no entanto, aqueles que não se encaixam nessa configuração ideal. São os velhos
mesmo, os moribundos de que falava Elias: doentes, frágeis, dependentes. Nesse caso, a
velhice é socialmente investida de várias conotações pejorativas. No mundo de
supervalorização da produtividade, da aceleração e da performance, o velho-moribundo é um
pária, um inútil, um fardo. A velhice, nesses casos, é usualmente associada à decadência, à
incapacidade, à inutilidade e à proximidade da morte. Cada vez mais, a esses sentidos parece
se somar um outro: o da incapacidade de lembrar.
A senilidade ou a demência do idoso não é um fenômeno novo. Mas parece que antes
não nos preocupávamos muito com ele. Aquilo que no passado chamávamos, sem muita
preocupação, de arteriosclerose e outros nomes afins (os adjetivos que acompanhavam os
velhos eram “gagá”, “caduco”, “esclerosado”) – e que servia para designar o idoso de forma
meio jocosa, mas não muito grave – ganhou agora uma denominação médico-científica, que a
todos apavora: Mal de Alzheimer.
O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa, que afeta à memória, mas também as
relações e o comportamento pessoais. Foi descoberta em 1906 pelo psiquiatra e
neuropatologista Alois Alzheimer, que – ao fazer autópsia em um de seus pacientes –
percebeu que havia lesões no seu cérebro até então nunca observadas em outros enfermos do
mesmo tipo. Ainda hoje, passados mais de um século, não se sabe a cura e nem as causas da
doença.
O imperativo da memória e o terror do esquecimento
A reflexão apresentada aqui sobre velhice e esquecimento faz parte de uma pesquisa
mais ampla que desenvolvo há vários anos sobre a mídia e os usos do passado no mundo
contemporâneo. A ideia que defendo – apoiada no trabalho de vários autores (HUYSSENS,
2000; COLOMBO, 1991; SARLO, 2007) – é a de que vivemos numa cultura da memória,
que nos impele o tempo todo a lembrar e a arquivar. Vivemos um terror geral de
esquecimento e, nesse contexto, a memória emerge quase que como um dever ou obsessão
tanto no plano individual quanto coletivo. Fazemos continuamente referências ao passado,
marcadas pelo exagero e excesso. Somos ávidos por consumir produtos memorialísticos e por
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venerar as coisas de outrora. O passado exerce forte apelo e se impõe como um imperativo,
tal como a felicidade (FREIRE FILHO, 2010).
A emergência da chamada cultura da memória dataria, segundo alguns autores, no
final da década de 1970 e início da década de 1980. Ora sabendo que o uso do termo
Alzheimer – apesar de ter sido cunhado no início do século XX – só recentemente se tornou
usual no Brasil, nos fizemos algumas perguntas. Seria possível traçar algum paralelo entre
um fenômeno e outro? A popularização do Alzheimer teria alguma relação com o boom da
memória? A partir de quando começou a se falar da doença no país? Trata-se, de fato, de algo
relativamente recente?
Para começar a pensar essas questões fizemos um levantamento bastante simples nos
dois principais jornais do país – Folha de S. Paulo e O Globo – e na revista de maior
circulação nacional, a Veja, cujos acervos hoje se encontram disponibilizados na internet.
Buscamos simplesmente identificar a partir de quando e em que quantidade a palavra
“Alzheimer” aparecia nessas publicações. O resultado foi o seguinte:
O Globo
Folha de S. Paulo
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Veja
O levantamento nos deixou surpresos. Apesar de confirmar nossa hipótese sobre a
relação que esse fenômeno tem com a chamada cultura da memória, os números soaram mais
significativos do que nós mesmos supúnhamos. Foi exatamente nos anos 1980 – quando
começa a aparecer de forma ainda tímida a palavra Alzheimer na imprensa informativa
brasileira – que a doença foi descrita nos EUA como uma epidemia e a maior ameaça à saúde
pública naquele país. Nesse período, a enfermidade era praticamente desconhecida por aqui.
E foi justamente pela dificuldade em conseguir diagnóstico para sua esposa que o dentista
Jacob Guterman – depois de viver um período nos Estados Unidos – decidiu fundar no Brasil,
em 1990, a Associação dos Familiares dos Doentes com Alzheimer. (LEIBING, 1999: 3-4)
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A configuração do mundo contemporâneo (ou pós-moderno, como alguns preferem
chamar) estabelece um conjunto de demanda sociais que, na medida em que definem padrões
difíceis e quase impossíveis de se alcançar, geram angústia, mal-estar. Esse cenário define
também novas fronteiras para o normal e o patológico. Nos parece que o Alzhemeir surge ao
lado de outras doenças do nosso tempo – quase todas com forte centralidade da questão
cerebral e psíquica (depressão, ansiedade, insônia, síndrome do pânico).
Não podemos ignorar que o fato de o Alzheimer ter sido inserido na pauta das
questões socialmente debatidas e o fato mesmo da palavra ter sido tão amplamente
incorporada ao nosso vocabulário a partir das décadas de 1990 e 2000 se deve também aos
avanços científicos nesse campo, sobretudo na neurociência. Mas, a nosso ver, se trata de um
sintoma social mais amplo. Afinal, partimos da ideia de que nossas práticas discursivas criam
as realidades em que vivemos e também aquelas em que adoecemos.
Vivemos numa sociedade que supervaloriza a cognição – as representações gráfica do
cérebro estão presentes em praticamente todas capas das revistas especializadas que
analisamos (e em várias outras que não tivemos tempo de incorporar a nosso corpus). Este é
um ponto importante para entendermos porque, embora seja possível que os sintomas centrais
do que chamamos Alzheimer seja encontrado em todas as sociedades, só em algumas delas
(como nos EUA) é possível se detectar uma epidemia dessa doença. Somente as mudanças
demográficas (aumento da expectativa de vida e envelhecimento da população) e o
desenvolvimento da ciência (sobretudo a neurociência, como já mencionamos) não explicam
a obsessão pós-moderna pela memória e pelo esquecimento.
Ao falar sobre este assunto não é possível desconsiderar a dimensão do sofrimento e,
nesse sentido é importante chamar atenção para o fato de que diagnóstico de Alzheimer é
muito mais assustador do que o de outros tipos de senilidade – algumas, aliás, que a maioria
de nós desconhece, como demência vascular, demência por corpos de Lewy, demência fronto
temporal e hidrocefalia de pressão normal – ou de qualquer outros males da velhice.
Alzheimer conota dependência e morte. Significa ficar vulnerável às vicissitudes de um meio
permeado por incertezas. A doença foi considerada “um dos maiores males do século XXI”.
(AOD, no 1, p. 14) A expansão do termo parece, portanto, expressar um certo tipo terror pelo
esquecimento que é mais amplo. Nesse caso, o medo é patologizado e se espalha pela cultura.
O Alzheimer e as revistas especializadas
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Analisamos, para este trabalho, dois conjuntos de materiais empíricos: um de
impressos, composto por revistas especializadas – que reproduzem o discurso da autoajuda,
travestido em divulgação científica e aconselhamento médico – e outro audiovisual, formado
por programas televisivos e produções amadora ou semiprofissional divulgadas no YouTube.
No levantamento que fizemos ao longo de 2015 e em janeiro de 2016, primeiro de
uma forma não sistemática nas bancas de jornal da cidade do Rio de Janeiro e, depois, de
uma forma mais rigorosa na internet, ficamos bastante surpresos com a quantidade de
publicações especializadas em Alzheimer. Havia também algumas revistas que tratavam da
memória associada a outras doenças, como a depressão, por exemplo. E publicações que
associavam simplesmente esquecimento e envelhecimento. Foram sobre essas que nos
debruçamos.3
Os textos dessas revistas seguem um padrão muito regular e se assemelham em quase
tudo: nos assuntos abordados, no tratamento das questões, nas metáforas usadas, nas
representações visuais, nos grafismos etc. Todas fornecerem conselhos e prescreverem
comportamentos que auxiliam os indivíduos a preservarem – mesmo frente à inevitabilidade
do tempo e do envelhecimento – suas capacidades menmônicas. São aconselhamentos sobre
o melhor tipo de comportamento que os indivíduos devem ter para manter o bom
funcionamento de suas funções cerebrais. São recomendadas atividades intelectuais, como a
leitura e exercícios de memória, palavras cruzadas e jogo de xadrez, assim como atividade
física regular e dieta saudável. Além de listarem os melhores alimentos para auxiliar a
memória, algumas publicações trazem também receitas de comidas contra o Alzheimer, “com
ingredientes saborosos que ajudam a prevenir a doença”. (Alz, no 2, p. 41) A revista Saúde é
Vital chega a apresentar “o primeiro cardápio com base científica voltado à prevenção do
Alzheimer” (SEV, 2015, p. 31).
Os textos fornecem informações sobre os diferentes estágios da doença, com dicas
sobre como lidar com o paciente em cada fase. “O diagnóstico clínico é sempre um baque,
mas não precisa ser uma sentença”, assim começa um dos muitos textos que trazem
“sugestões de hábitos que ajudam a retardar a doença e promovem melhoria na vida do
paciente” (CPAP, no 3, p. 10)
O editorial do Guia Minha Saúde resume bem a proposta dessas publicações: “O que
fazer quando alguém da sua família é diagnosticada com Alzheimer ou Parkinson?
3 Ver a lista das revistas no final do texto, acompanhada das respectivas siglas que usaremos ao longo do texto.
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Possivelmente, os primeiros sentimentos são de angústia e um certo desespero (...). Contudo,
aos poucos, essas emoções nada agradáveis cedem espaço para a busca da informação (...)”.
E, assim, as revistas estão prontas para falar sobre o diagnóstico correto, os tratamentos
existentes, os avanços da medicina, as atividades que podem fazer com que a doença não
progrida. Fornecem também dicas para cuidadores, sejam familiares ou profissionais, lidarem
com os enfermos no dia a dia.
O discurso dessas revistas é essencialmente prescritivo, normativo, e se repete com
uma regularidade espantosa em todas as publicações a que tivemos acesso. Chama atenção a
ausência completa de relatos testemunhais. Nenhum paciente, parente ou cuidador é
convidado a falar. É dada voz apenas aos especialistas: psiquiatras, neurologistas, geriatras,
psicólogos, pesquisadores e professores.
Outro aspecto que nos parece significativo é que, apesar de a doença não acometer
apenas idosos – e isso é um dado sublinhado em várias as publicações – a sua associação com
o envelhecimento é geral e constante – as fotos, por exemplo, são sempre de velhos. E, como
vários textos costumam lembrar, uma das dificuldades na identificação da doença está no fato
de que seus primeiros sintomas serem facilmente confundidos com o processo natural do
envelhecimento, em que o idoso começa a apresentar dificuldade em realizar tarefas que
antes lhe eram habituais.
“Até que ponto é normal” é o título de uma matéria que busca explicar “quando a falta
de memória na terceira idade pode significar um problema maior”. (Alz, no 2, pp. 12-13)
Apesar de a questão do diagnóstico ser tratada, em geral, com certa complexidade, há uma
matéria – intitulada “Positivo para Alzheimer” – que traz um teste, de apenas 5 minutos, para
ajudar o leitor a detectar a doença. São apresentados 10 itens a serem analisados, entre eles, a
memória, as habilidades de linguagem e comunicação, a atenção e a concentração, o
comportamento e a personalidade. (AOD, no 1, pp. 16-19)
No conjunto dos textos, há uma matéria que se destaca. Trata dos direitos de quem
tem Alzheimer, como medicamento gratuito, treinamento para familiares, acompanhamento
com equipe multidisciplinar, isenção do imposto de renda e aposentadoria acrescida de 25%.
Informações preciosas, a que poucos têm acesso (TSAP, no 1, p. 21)
O imaginário futurista, de resolução dos problemas via tecnologia, também está
presente nas revistas. Há uma nota emblemática, publicada na Alzheimer no 2, que informa
que a Samsung desenvolveu uma aplicativo para as pessoas enfermas reconhecerem seus
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familiares e amigos. Sempre que alguém cadastrado na lista do usuário se aproximar do
doente, o dispositivo, chamado Backup Memory, emite uma notificação com os dados da
pessoa. A revista também comenta sobre um novo teste – desenvolvido por cientistas
japoneses –, que detecta o Alzheimer 10 anos antes de ele se manifestar. A técnica identifica
o acúmulo da proteína beta-amiloide no sangue, uma das prováveis causas da doença. Outra
publicação lembra que o mapeamento genético – no estilo Angelina Jolie – pode ser uma
alternativa para prevenir e tratar o Alzheimer. (AOD, no 1, pp. 24-25)
Em geral, as revistas adotam um discurso “asséptico”. Não há concessão à emoção.
Os textos são centrados sobretudo nos aspectos científicos, no jornalismo de serviço e na
autoajuda. Aqui, cabe ao indivíduo, mais do que ao Estado ou à coletividade, agir para conter
e controlar o Mal do Alzheimer. Chama atenção o uso do termo “adiar”, também muito
usado, como se inevitável fosse desenvolver a doença, mesmo seguindo todas as medidas e
precauções recomendadas.
Alguns exemplos de sentenças comuns: “Saiba o que fazer para ter uma memória boa
por toda a vida”; “É possível 'treinar' sua mente para objetivos específicos, e usar alguns
truques para deixar de esquecer coisas importantes”; “Como ter uma velhice sem problemas
de memória?”; “Estimule o poder da sua mente e melhore sua memória!”.
Duas questões se sobressaem: 1) o medo dos efeitos da velhice e do esquecimento e 2)
a preocupação com aumento da performance. Nessas narrativas, há uma clara devoção ao
corpo e à mente perfeitos, à alimentação saudável. Parecem se basear na crença da tecnologia
e da ciência como verdadeiros redentores da finitude humana. No contexto do tecnoconsumo,
é como se a imortalidade fosse passível de compra na banca de jornal.
O “Mal de Azar” e os testemunhos audiovisuais
Há muitas semelhanças entre os textos das revistas e àqueles da maioria dos
programas jornalísticos que foram por nós assistidos, assim como em vários vídeos postados
no YouTube. Ao fornecer uma série de explicações científicas e indicações sobre como
evitar, adiar e até mesmo prevenir o Alzheimer, eles parecem atender o desejo vão de
contensão da nossa própria transitoriedade. Assim é tratado o assunto em algumas
reportagens apresentadas em programas como o Fantástico e BemEstar, ambos da TV Globo.
Nesses casos, em geral, há uma preocupação maior com informação precisa e mais
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aprofundada. Merece destaque a cuidadosa e esclarecedora matéria de seis minutos do Dr.
Drauzio Varela, exibida em março de 2014.
O material audiovisual estudado, no entanto, é muito mais rico e variado e apresenta,
em alguns casos, diferenças muito marcantes em relação às abordagens que se centralizam
nos aspectos médico-científicos do fenômeno e ao discurso normativo-prescritivo das revistas
especializadas. Nesse sentido, nos chamou a atenção os vídeos nos quais o caráter
testemunhal ganha relevo e mesmo destaque. Neles, a dimensão emocional sempre aparece,
mas de maneiras variadas. A emoção ganha forma seja 1) como desabafo angustiado, 2)
como registro do sacrifício filial, 3) como demonstração da dignidade e também 4) pela
exploração dos aspectos sensacionais.
Um exemplo do primeiro caso é o vídeo postado por uma mulher que se diz chamar
Elaine. Em plano americano, ela dá seu testemunho, com voz pausada e rosto constrito: “Sou
uma pessoa igual a você, igual a todo mundo, cheia de problemas, cheia de dificuldades,
cheia de coisas para enfrentar. O que eu estou enfrentando hoje é o Alzheimer da minha mãe.
Eu tenho que transmitir isso para vocês, porque é muito importante. É uma doença muito
difícil de lidar. (...) Tem que ter muita força, tem que acreditar e saber lidar. Eu preciso
dividir isso com alguém. E você pode ser esse alguém, que amanhã pode precisar de tudo o
que eu vou falar agora. Preste bem atenção, nunca perca a paciência, ame com profundidade.
Reconheça isso como uma coisa especial na sua vida”.
Já o registro do sacrifício filial pode ser exemplificado por um vídeo que se tornou
viral na internet e que emocionou muitas pessoas. Mãe e filha conversam carinhosamente. A
mãe, com Alzheimer, inverte os papéis e se diz filha de sua filha, que ocupa o lugar de sua
cuidadora. Palavras doces e gestos amorosos dão o tom singelo e delicado a toda a cena. O
cenário construído é idílico e, nele, não há conflitos ou sofrimentos. As confusões e a falta de
memória da idosa não gera angústia ou tristeza, mas um ambiente sereno e tranquilo.
Muito diferente é o vídeo de um senhor se diz portador de Alzheimer. O tom de sua
voz é seguro e ligeiramente agressivo. Seu rosto demonstra certa perturbação e angústia, que
se contrapõem a sua fala, que tenta passar segurança e positividade. É um exemplo do que
chamamos demonstração de dignidade. Seguem alguns trechos de seu discurso: “O médico,
na visita de hoje, disse que eu estou muito melhor. Meu Alzheimer se estabilizou. Isso para
mim foi um milagre. Nossa Senhora colocou a mão na minha cabeça. Isso me emociona
muito. Deus é o grande responsável pela minha cura. (...) Estou vivo, satisfeito (...) O Mal de
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Alzheimer não me faz mal (...) Hoje, eu me sinto ótimo. Eu me sinto curado praticamente. Eu
nunca me achei tão bem, tão lúcido, tão tranquilo, tão feliz, tão exuberantemente feliz”.
Por fim, para exemplificar a exploração dos aspectos sensacionais, podemos citar a
reportagem especial sobre o pugilista Maguila, exibida no programa Domingo Show, da Rede
Record, em fevereiro de 2015. O apresentador/repórter Geraldo Luis, inicialmente, faz uma
longa entrevista com a esposa do boxer. Apresenta um relato da biografia de Maguila e,
finalmente, entrevista o próprio, que o recebe sentado numa cadeira ao lado da mulher, no
hospital onde está vivendo. Os movimentos de câmera, a música de fundo, os closes no rosto
do entrevistado, tudo colabora para criar um clima grandiloquente e um certo suspense. A
emoção é exacerbada por todos os recursos de edição. Maguila está calmo (evidentemente,
sob efeito de tranquilizantes) e não demonstra confusão mental, o que – apesar de tudo – lhe
dá certa dignidade. Sua fala é um pouco enrolada, mas perfeitamente compreensível. Apesar
disso, é sempre acompanhada de legenda. “Maguila, a luta continua”, comenta Geraldo Luis.
“A luta só para quando a gente morre”, responde o pugilista. “Quero viver muito”; “Luto até
o último dia”. E o apresentador continua: “Todo mundo pergunta por você. O Brasil todo
pergunta por você. O Brasil não se esqueceu de você. O Brasil não se esquece de você. (...)
Estou aqui para falar para você não desistir.” Como se conversasse com uma criança, ele faz
carinho no rosto do Maguila e segura suas mãos. O pugilista conta que sua mãe morreu com
Alzheimer e que sempre chamou a doença de “Mal de Azar”.
Considerações finais
As angústias dos sujeitos – a dificuldade de lidar com o esquecimento e o sofrimento,
num contexto de forte apelo à felicidade e à memória – se somam aos desafios da ciência,
transformados em matéria de consumo rápido nas revistas de divulgação científica. Nesse
contexto, pouco se fala de sofrimento. A ideia é evitá-lo, superá-lo e talvez mesmo negá-lo.
Nos vídeos, de formas as mais variadas, são expostas as angústias, os sofrimentos e os
medos que envolvem pacientes, familiares e potencialmente qualquer indivíduo ao
envelhecer – que no contexto do aumento da expectativa de vida – sofrem com a perda da
memória (e suas capacidades cognitivas em geral).
Ao lado do discurso das publicações impressas fundamentado em prescrições e
conselhos (no modelo autoajuda), nos parece que o gênero testemunhal, no sentido mais
amplo, é o que mais se presta a dar forma ao terror do esquecimento nos produtos midiáticos
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de nossa cultura. O Mal do Alzheimer aparece como algo passível de ser domesticado
(adiado, amenizado ou, pelo menos, entendido) ou como um elemento da exibição de si – que
parece buscar, na exposição da dor e do sofrimento, uma espécie de expiação do pecado. E
aqui o testemunhal se aproxima do confessional. Não é por acaso que esse se avizinha, de
forma bastante explícita algumas vezes com o discurso religioso.
A antropóloga Annete Leibing – do Instituto de Psiquiatria da UFRJ – chama atenção
para duas dimensões presentes nos pacientes de Alzheimer: o desaparecimento da pessoa
querida (que pouco a pouco vai se desligando da realidade – fenômeno denominado “a morte
antes da morte” ou “perda do self”) e a subjetividade ainda existente no corpo doente, que
sobrevive ao declínio cognitivo e que torna o indivíduo capaz de dar e receber carinho (o que
a autora chama de “manutenção do eu”).
No livro Quem, eu?, Fernando Aguzzoli (2014) conta como abandonou tudo para
cuidar da avó com Azheimer. Há um trecho que exemplifica, em minha opinião, a tensão
entre essas duas dimensões coexistentes (a perda do self e, ao mesmo tempo, a manutenção
do eu). “Meu maior medo era ser esquecido, mas a primeira vez em que vovó me esqueceu
ela disse: ‘Eu esqueci quem tu és, mas não esqueci que te amo’. E aquilo foi suficiente para
eu entender que meu medo era muito egoísta, havia muito mais coisa em jogo”.
Nos discurso de caráter mais testemunhal, há uma busca de valorização da
subjetividade relacional, aquela que sobrevive a perda do self cognitivo. Essa tendência
contrasta com o modelo médico e de autoajuda presente nos discursos das revistas
especializadas. Arriscamos a dizer que, nesses testemunhos, há uma fala que resiste (ou pelo
menos problematiza e tensiona) o modelo do doente como o velho-moribundo, espécie de
morto-vivo, que causa terror, medo e que, cada vez mais, é apartado do mundo e em relação
ao qual as pessoas de outras faixas etárias têm dificuldade de se identificar.
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Letras, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2007.
Revistas analisadas:
Como prevenir Alzheimer e Parkinson. Ano 1, no 1, 2014. (CPAP)
Como prevenir Alzheimer e Parkinson. Ano 1, no 2, 2014.
Como prevenir Alzheimer e Parkinson. Ano 2, no 3, 2015.
Como prevenir Alzheimer e Parkinson. Ano 2, no 4, 2015.
Como prevenir Alzheimer e Parkinson. Ano 3, no 5, 2016.
Tudo sobre Alzheimer e Parkinson – Guia Minha Saúde Especial. Ano 1, no 1, 2015. (TSAP)
Tudo sobre Combate ao Envelhecimento – Guia Minha Saúde Especial, Ano 1, no 08, 2015. (TSCE)
Alzheimer. Ano 1, no 1, 2015. (Alz)
Alzheimer. Ano 1, no 2, 2015.
Alzheimer e outras Demências. Ano 1, no 1, 2015. (AOD)
Exercício contra o Alzheimer. Ano 1, no 1, 2015. (ECA)
Alimentos para o Cérebro. Ano 1, no 1, 2015. (APC)
Saúde é Vital. 05/2015. (SEV)
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