UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
MANDRÁGORAS:
MITOS E ASPECTOS DA CULTURA DE ISRAEL
A PARTIR DE GÊNESIS 25 A 36
GLÓRIA MARIA DELLA LÍBERA PRATAS
São Bernardo do Campo 2010
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
MANDRÁGORAS:
MITOS E ASPECTOS DA CULTURA DE ISRAEL
A PARTIR DE GÊNESIS 25 A 36
Por
GLÓRIA MARIA DELLA LÍBERA PRATAS
Orientador: Prof. Dr. Milton Schwantes
Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
para a obtenção do grau de mestre.
São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil 2010
A dissertação de mestrado sob o título “Mandrágoras: Mitos e Aspectos da cultura
de Israel a partir de Gênesis 25 a 36”, elaborada por Glória Maria Della Libera Pratas
foi apresentada e aprovada em 12 de março de 2010, perante banca examinadora composta
pelos professores Doutores Milton Schwantes (Presidente/UMESP), Tércio Machado
Siqueira (Titular/UMESP) e Renatus Porath (Titular/EDT).
__________________________________________
Prof. Dr. Milton Schwantes
Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Jung Mo Sung
Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião
Área de Concentração: Literatura e Religião no Mundo Bíblico
Linha de Pesquisa: Estudos históricos e literários do mundo biblico
Toda a beleza do mito é justamente seu mistério inacessível,
seu enigma não decifrado.
Arnaldo Jabor
Agradeço a obtenção da Bolsa do IEPG para finalizar minha graduação
e ao meu orientador, prof. Dr. Milton Schwantes, por também contribuir com esse processo.
AGRADECIMENTOS
Há sempre uma porta aberta para cada um de nós! Ao adentrarmos por ela
encontraremos oportunidades que nem sequer um dia almejamos. Eu adentrei e vivi esse
desafio! E nesse caminho encontrei pessoas que , sem elas, seria mais um desafio e, talvez,
impossível de ser concluído. Assim, a essas pessoas que me auxiliaram nessa trajetória
dedico esse espaço que não ficará somente em minha memória, ou na de cada uma delas,
mas gravado na eternidade que o tempo a este papel proporcionará.
Primeiramente quero expressar a minha gratidão e o meu louvor a Deus que me
possibilitou chegar até aqui, grau onde jamais sonhei, ou almejei, um dia chegar. Agradeço
a sensação de paz e conforte que ele me proporcionou diante das dificuldades, do desânimo
e das minhas fraquezas, me conduzindo com sua mão segura até o final dessa trajetória.
Uma pessoa a quem devo um eterno agradecimento e mérito por chegar a este grau é o
é o professor Milton Schwantes, meu orientador, que ouso chamar de amigo. Seu incentivo,
paciência, ensinamentos, orientação e investimento me conduziram ao fim desta jornada.
Desde os tempos da Faculdade de Teologia ele acreditou no meu potencial e me levou a
acreditar também.
Dedico, aqui, um espaço muito especial aos meus filhos Marjorie e César. Agradeço a
compreensão e amor. Vocês suportaram os meus momentos de dificuldades, de cansaço e
por mais difícil que fosse, compreenderam minha ausência e horas sem dormir. Vocês me
deram coragem e incentivo quando eu já não tinha. Por tudo, e mais isso tudo, é que eu amo
7
muito vocês. Outra pequena pessoinha da família a quem não posso deixar de dedicar
algumas linhas é o meu grande amigo Fred do bem-me-quer, meu cãozinho, que não
desgrudou de mim um só momento nas noites e madrugadas, que passei escrevendo. Sua
companhia me animava e exalava alegria e carinho.
Outro espaço especial está reservado para minhas amigas e suas diferentes
participações e incentivos. À Aline Oliveira, minha amiga de mestrado, e hoje mestre e
amiga de coração, parceira de trabalhos, companheira, amiga e uma grande incentivadora
deixo um carinhoso agradecimento. À Rute Storelli meio amiga/meio irmã o meu muito
obrigado por estar sempre ao meu lado, pelo carinho e por ser tão presente, sempre. À Rita
de Souza que com sua dedicação e carinho me auxiliou nessa difícil jornada. À Sirley
Antoni pela pessoa maravilhosa que tanto me orientou nas tardes que passamos juntas
dividindo o seu chimarrão... muito obrigada amiga! À Regiane e Ana Fonseca amigas que
em seu trabalho na pós-graduação me auxiliaram e vibraram com a continuidade dos meus
estudos e bolsa.
Quero, também, agradecer àqueles/as que não me deixaram abater pelos vários
acontecimentos que dificultaram a minha jornada em 2009. O apoio, palavras de consolo e
incentivo foram fatores decisivos. São pessoas importantes que não esquecerei e que
acreditaram que eu era capaz de chegar até aqui.
Um agradecimento especial ao prof. Tércio Machado Siqueira e a todos os professores
e professoras que permitiram que eu obtivesse uma Bolsa IEPG para terminar esta
graduação e novamente ao meu orientador por contribuir com isso.
A todos/as o meu carinho, respeito e o agradecimento. Que Deus abençoe ricamente a
cada um/a de vocês que me proporcionaram este final feliz.
PRATAS, Glória Maria Della Libera. Mandrágoras: Mitos e aspectos da cultura de Isarael no
Gênesis 25 a 36. São Bernardo do Campo, 2010. 126 f. São Bernardo do Campo, Universidade
Metodista de São Paulo. Dissertação de Mestrado, 2010.
Sinopse
A sexualidade de Lea e Raquel, o útero, as mandrágoras e o corpo de Jacó são fatores
que definem o alicerce do nosso texto como espaços de diálogo, mediação e estrutura do
cenário. O destaque principal está sob o capítulo 30.14-16 que retrata a memória das
mandrágoras. Como plantas místicas elas dominam o campo religioso e como plantas
medicinais elas são utilizadas para solucionar problemas biológicos.
As instituições e sociedades detentoras de uma ideologia e de leis que regulamentam
uma existência apresentam na narrativa, duas irmãs, mas também esposas de um mesmo
homem que, manipuladas por essa instituição que minimiza e oprime a mulher,
principalmente a estéril, confina-as como simples objeto de sexualidade e mantenedoras da
descendência por meio da maternidade.
A memória das mandrágoras é sinal de que a prática existente circundava uma religião
não monoteísta. Ela existia sociologicamente por meio de sincretismos, força e poderes
sócio-culturais e religiosos. Era constituída das memórias de mulheres que manipulavam e
dominavam o poder sagrado para controle de suas necessidades. O discurso dessas
mulheres, em nossa unidade, prova que o discurso dessa narrativa não se encontra somente
no plano individual, mas também se estende a nível comunitário, espaço que as define e lhes
concede importância por meio do casamento e dádivas da maternidade como continuidade
da descendência.
São mulheres que dominaram um espaço na história com suas lutas e vitórias, com
atos de amor e de sofrimento, de crenças e poderes numa experiência religiosa dominada
pelo masculino que vai além do nosso conhecimento atual. As lutas firmadas na fé e na
ideologia dessas mulheres definiram e acentuaram seu papel de protagonistas nas narrativas
9
bíblicas que estudamos no Gênesis. A conservação dessas narrativas, e do espaço teológico
da época, definiu espaços, vidas, gerações e tribos que determinaram as gerações
prometidas e fecharam um ciclo: o da promessa de Iahweh quanto à descendência desde
Abraão.
Os mitos e as crenças foram extintos para dar espaço a uma fé monoteísta, mas a
experiência religiosa dessas mulheres definiu um espaço: do poder sagrado e místico que
corroborava com suas necessidades e definiam sua teologia.
PRATAS, Glória Maria Della Libera. Mandrakes: Myths and aspects of culture in Isarael
Gênesis 25 a 36. São Bernardo do Campo, 2010. 126 f. São Bernardo do Campo,
Universidade Metodista de São Paulo. Dissertation of Masters Degree, 2010.
Abstract
Rachel and Leah’s sexuality, the womb, the mandrakes and Jacob’s body are factors
that define the foundation of our text as spaces of dialogues, mediation and structure of the
scene. The prominence of this scene is under chapter 30.14-16 that it portrays the memory
of the mandrakes. As mystics plants they dominate the field religious and as medicinal
plants they are used to solve health problems biological.
The institutions and holders societies of an ideology and laws that regulate an
existence present in the narrative, two sisters, but also wives of one exactly man, who
manipulated for this institution that minimizes and oppresses the woman, mainly the barren
one, confining them it simple object of sexuality and holders of a descent by means of the
maternity.
The memory of the mandrakes is signal of that practical the existing one surrounded a
religion not monotheist. It existed sociological by means of partner-cultural and religious
syncretism, force and powers. She was constituted of the memories of women who
manipulated and dominated the sacred power for control of its necessities. The speech of
these women in our unit test that the speech of this narrative does not only meet in the
individual plan, but also extends the communitarian level, space defines that them and it
grants to importance by means of the marriage and gifts to them of the maternity and as
continuity to them of the descent.
They are women who had dominated a space in history with its fights and victories,
with acts of love and suffering, beliefs and powers in a religious experience dominated by
11
the masculine that goes beyond our current knowledge. The fights firmed in the faith and
the ideology of these women had defined and accented its paper of protagonists in the
Biblical narratives that we study in the Genesis. The conservation of these narratives, and
the theological space of the time, defined spaces, lives, generations and tribes who had
determined the engaged generations and had closed a cycle: of the promise of Iahweh how
much to the descent since Abraham.
The myths and the beliefs had been extinct to give to space to a faith monotheist, but
the religious experience of these women defined a space: of the sacred and mystic power
that it corroborated with its necessities and they defined its theology.
.
SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................................... 14
CAPÍTULO 1 História e tradições em Gênesis 25-36 ........................................................... 18
1 História das origens do povo de Israel........................................................................... 21
1.1 Genealogias que irão compor a história ................................................................... 26
1.3 Substrato religioso................................................................................................. 35
1.4 Histórias das genealogias: migração, casamento e procriação ............................... 38
2. Tradições ................................................................................................................... 53
2.1 Espaços histórico-sociais ....................................................................................... 54
2.2 Associação de Iahweh com seu povo ...................................................................... 55
2.3 Casamentos .......................................................................................................... 56
3 Conclusão ............................................................................................................... 58
CAPÍTULO 2 ANÁLISE EXEGÉTICA DO GÊNESIS 30.14-16.......................................... 59
1 Tradução literal ........................................................................................................... 61
1.1 Tradução........................................................................................................... 61
1.2 A forma ............................................................................................................ 61
1.3 Lugar, datação e autoria ..................................................................................... 71
1.4 Conteúdo .......................................................................................................... 73
2 Conclusão ................................................................................................................... 78
Capítulo 3 SÍMBOLOS, MITOS E RELIGIÃO: A RELIGIOSIDADE NO ANTIGO ISRAEL81
1 Mito ........................................................................................................................... 83
1.1 Mandrágoras: mito ou lenda?.............................................................................. 89
2. Religião ..................................................................................................................... 94
2.1 Mito e religião ...................................................................................................... 97
13
2.1 Mito, religião e sociedade .....................................................................................101
3 Mandrágora................................................................................................................106
3.1 Farmacopéia da Mandrágora: verdades e mitos ......................................................109
3.2 Raquel e as Mandrágoras......................................................................................112
CONCLUSÃO .................................................................................................................115
REFERÊNCIAS ..............................................................................................................120
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa visa fazer um estudo do texto do Gênesis 25-36 no que tange ao
imaginário social, cultural e religioso das narrativas bíblicas. A unidade selecionada,
para análise exegética, encontra-se no capítulo 30.14-16 cujo tema é sexualidade,
esterilidade e fecundidade.
Mais especificamente analisaremos a unidade questionando a sociedade e sua
construção de poder vigente, no qual o masculino sobrepõe ao feminino.
Analisaremos, conjuntamente, a religiosidade que constrói, reforça e reproduz esse
poder dominante sobre mulheres, casamentos e maternidade.
Desvendar o modo de vida e os costumes das pessoas da história dos primórdios,
uma sociedade extremamente distante, é árdua tarefa, pois a narrativa textual
encontra-se de forma parcial e não nos auxilia numa leitura precisa, ou mesmo correta,
dos fatos e modo de vida Por essa razão torna-se mais acentuada a complexidade de
fatos estranhos e incompreensíveis do bloco a ser analisado. Isso nos leva a recapitular
15
uma frase da teóloga Elvira Moisés, em sua tese de doutorado,: “isso não impede que
o nosso olhar atual não auxilie na nova leitura”1
A unidade a ser estudada traça uma história de luta por um espaço social e pela
maternidade frente à esterilidade de Raquel. Para solucionar essa questão ela recorre
às mandrágoras, planta mística conhecida por seus poderes afrodisíacos e de
fertilidade. Como o papel da mulher na construção do tecido social está ligada à
sexualidade, ao corpo, a esterilidade e maternidade trabalharemos os conflitos que
envolvem as duas irmãs na construção de um espaço, dentro de um mesmo casamento,
com o personagem Jacó. As disputas pelo amor e pela maternidade delineiam o
quadro das irmãs Lea e Raquel. São histórias tecidas e constituídas em uma sociedade
clânica cuja atividade principal é o pastoreio e a agricultura. É nesse contexto que o
exercício de poder interage com as necessidades cotidianas do espaço doméstico.
O bloco 12-50 tece histórias de primogenitura, de aparições de Iahweh se
revelando a seu povo e conversando com ele, de bênçãos e maldições, de manipulação
e conflitos quanto a casamentos, maternidade, esterilidade e construção de relações de
poder do masculino sobre o feminino.
Quando defini o tema escolhi o livro do Gênesis , por ser o livro da história das
origens do universo, de um povo e de uma sociedade. Essas histórias, por vezes, estão
carregadas de lendas e mitos que circundam céus e terra, vida e morte e na herança
dos herdeiros da promessa dos patriarcas e matriarcas da época pré-monárquica.
1 Elvira Moisés da SILVA. Teologia, Memória e Poder das mulheres na tenda: uma leitura crítica à
estruturação das teologias bíblicas a partir de Gênesis 29-30. São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de Ensino Superior, 2002, p.12. (Tese de Doutorado)
16
Em um primeiro momento apresentarei uma síntese do bloco 25-36 do Gênesis
para situar o/a leitor/a, a respeito da história dos formadores de Israel, seu modo de
vida, constituição familiar e na aliança promessa que perpassa essas vidas no seu
espaço geográfico, social, cultural e religioso.
Em segundo a análise exegética será feita sob a unidade 30.14-16 abordando
especificamente o diálogo entre Lea e Raquel acerca das mandrágoras. Como esta
pesquisa está centralizada nas mandrágoras como detentora de poderes e mitos,
pertencente a uma cultura religiosa não monojavística, trabalharemos esse tema
valorizando a discussão e o acordo de Raquel com Lea sobre essa planta envolta em
misticismos, lendas e sincretismos cujo personagem, Raquel, acredita irá lhe conceder
a tão almejada maternidade.
Num terceiro momento discursaremos sobre os mitos – mito e religião e religião
e sociedade – numa abordagem antropológica e sociológica da unidade histórica.
Neste capítulo discursaremos, também, sobre os valores farmacológicos atribuídos à
mandrágora que, como planta medicinal detém o mito de planta afrodisíaca e de cura
da esterilidade. A Mandrágora, desde a Antiguidade, detinha a importância de ser uma
planta com poderes, cercada de mitos e lendas que circularam e atravessaram séculos
entre os povos. Assim, ela faz parte do universo mítico que expressa o mundo e a
realidade humana, numa representação e visão coletiva, vinda até nós, através de
várias gerações, seja pela representatividade do sagrado ou por intermédio dos
símbolos que ela detém.
Desse modo, como finalização, trabalharemos a conclusão em que abordaremos,
em linhas gerais, os pontos constatados no decorrer desta pesquisa.
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA E TRADIÇÕES
EM GÊNESIS 25-36
O bloco do Gênesis 25-36 é um complexo literário de tradições locais, religiosas
e familiares de um povo de vida nômade que protagoniza a história ancestral do povo
de Israel. São histórias de vida, preservadas pela oralidade, que nos remetem a
fragmentos de memória de um povo de origem pré-tribal de viajantes, de tradição
clânica, que buscam a preservação da sua genealogia nos casamentos e na maternidade
como continuidade de sua descendência numa aliança-promessa, dada por Iahweh, de
que seriam formadores de nações.
Os textos bíblicos que compõem esse bloco do Gênesis, bem como o livro em
geral, contêm fatos complexos e de difícil compreensão por serem fatos ocorridos com
pessoas comuns numa sociedade muito distante. Portanto, árdua tarefa será estudá- los
à luz de uma visão atual, em nossa sociedade moderna, que nos auxilie na leitura e
compreensão das sociedades clânicas e seu modo de vida nos tempos primevos.
19
Neste capítulo não analisaremos todo o bloco, mas algumas perícopes que nos
ajudarão a tecer e a compreender melhor a teia genealógica existente em seu conteúdo
histórico-social- religioso, na tríade Jacó-Lea-Raquel e, em especial, a unidade do
capítulo 30.14-16 que discursa a respeito das mandrágoras. O estudo dessa unidade
nos ajudará a compreender melhor o papel na negociação de Raquel e Lea acerca das
mandrágoras, planta conhecida e utilizada na época como afrodisíaca e cura para a
esterilidade.
Juntamos a esse conhecimento, a fé de Raquel, uma esposa estéril, na crença
popular que cercava essa planta para a cura do seu problema. Raquel pertencia à uma
sociedade clânica em que à mulher era fadado o papel de reprodutora, de geradora da
descendência. Esse fator antropológico e sócio-cultural, existente no contexto dessas
sociedades, gerava conflitos, abandonos e rejeição de seus esposos para as mulheres
estéreis como Raquel.
Dessa maneira, buscar a solução para a esterilidade era ponto primordial para
essas mulheres e a mandrágora era, ao menos, um caminho, um remédio que gerava
esperança e não uma solução concreta. O fato concreto é que a sociedade da época se
encarregou de manter o mito ao ponto de termos um relato sobre as mandrágoras em
duas passagens no livro sagrado: no Gênesis e no Cântico dos Cânticos.
Assim, nos passos do contexto histórico e religioso dessa sociedade a unidade a
ser analisada, terá o útero como a chave para o cumprimento da aliança-promessa de
Iahweh, iniciada em Abraão, perpassando por Isaac e chegar até Jacó. Portanto, sendo
o útero o realizador da promessa, encontraremos um fator interessante a ser
mencionado e um pouco analisado: as “matriarcas” escolhidas para o cumprimento
20
dessa promessa são estéreis. Uma das tentativas de Raquel para cura de sua
esterilidade foi as mandrágoras, mas como foi a esperança e o resultado final para as
outras “estéreis matriarcas”? Nosso estudo vai de encontro ao universo sócio-cultural-
religioso da época até chegarmos em nosso ponto crucial: a nossa personagem, Raquel
e as mandrágoras.
A crença nas mandrágoras não era considerada um fator idolátrico. Por ser
anterior ao surgimento do javismo situações e vivências míticas faziam parte da vida
sócio-cultural e da religiosidade da época. As aparições de Iahweh também são
cercadas de misticismo (hierofanias), afinal, ele se dirigia pessoalmente a esses
homens em palavras.
Portanto, não era somente a Moisés a quem Iahweh falava claramente “boca a
boca” (Nm 12.6-8), mas também a Abraão, Isaac e Jacó. Todos os três
experimentaram o impacto de Deus na sua vida.2 Kaiser menciona que:
Mais espantoso ainda era o fato de que o próprio Senhor
aparecia (lit. “Se deixava ver” [wayyera’]) a esses homens,
naquilo que subseqüentemente tem sido chamado uma
teofania (Gen 18.1). A realidade da presença do Deus vivo
sublinhava a importância e a autenticidade das Suas palavras
de promessa, conforto e orientação.3
Igualmente, veremos que Iahweh irá impactar a vida da esposa de cada um dos
“patriarcas”, pois todas eram estéreis e receberam a maternidade das bênçãos de
Iahweh. No bloco 12-50 do Gênesis temos enfáticas palavras de bênção e promessas
da parte de Iahweh para com eles. E sobre a promessa Dele os fatos ocorreram.
2 Walter C. Kaiser Jr. Teologia do Antigo Testamento. Tradução de Gordon Chown, 2ª. Edição, São
Paulo: Editora Vida Nova, 2008, 312p. p.88. 3 Walter C. Kaiser Jr. Teologia do Antigo Testamento . 2008, p.88
21
Assim, estudaremos nesse capítulo conjunturas cruciais na história desses
homens e mulheres que tiveram uma experiência além da compreensão humana e
mítica com Iahweh.
1 História das origens do povo de Israel
É uma tarefa difícil esclarecer as origens de Israel e sua história primitiva.
Segundo Donner os povos civilizados do Antigo Oriente estiveram longe de responder
sobre as suas origens, pois dificilmente se pode esperar documentos históricos,
sobretudo, quando os envolvidos no processo viviam como nômades4.
A história das origens é um complexo narrativo, que aborda as tradições sócio-
culturais e religiosas, dos tempos pré-tribais, contendo registros da vida de um povo
nômade, marcado por lutas, fugas, maternidade, esterilidade, enriquecimento, acordos,
casamentos e poligamia.
Nas sociedades clânicas, típicas dos tempos pré-tribais, o direito e a posição de
cada pessoa na família eram indicados pela religião. A família era composta de um
pai, de uma mãe, de filhos e de escravos e a cada indivíduo competia uma disciplina.
Todos obedeciam à religião doméstica, mas tinham no pai o detentor das funções mais
elevadas, fosse no culto ou na autoridade do lar.
Segundo Fustel de Coualges a lei que permite ao pai comercializar bens ou até
mesmo matar o seu filho – como no caso de Abraão e Isaac – não foi criada pela
cidade. Ela é muito mais antiga. Quando a cidade começou a escrever suas leis ela
4 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. São Leopoldo: Sinodal, 2000, p.24.
22
encontrou direitos já estabelecidos, enraizados nos costumes. Esse antigo direito não é
obra de um legislador: ao contrário, impôs-se ao legislador. Seu berço está na família5.
Dessa maneira podemos compreender, um pouco melhor, o porquê de toda a
trama encontrada nas narrativas bíblicas incompreensíveis e inadmissíveis, em alguns
momentos, para a nossa atualidade. Elas estão centradas na família, mas é a religião
que determina a ordem dos acontecimentos. Está acima das leis e detém costumes que
legalizam a poligamia e o concubinato para que teçam a descendência.
A maternidade é o que dá poder e status à mulher da sociedade clânica. A
promessa para Abraão, Isaac e Jacó, estende-se para a esterilidade de suas esposas:
Sara, Rebeca e Raquel. Estas foram ele itas para gerar a primogenitura que, por sua
vez, será a descendência dos ancestrais do povo de Israel. A luta pela maternidade
dessas mulheres estéreis, vinculada a uma mesma promessa dada por Iahweh aos seus
esposos, é o que torna emocionante a composição histórica de todo o bloco 25-36.
Essas histórias narram não somente a luta pela maternidade, mas outras lutas de
igual importância como a de Jacó e Esaú pela primogenitura; o trabalho de Jacó para
conseguir casar-se com Raquel, a mulher que amou desde o primeiro momento e por
ela trabalhou anos. Outro momento difícil para Jacó foi o de desvencilhar-se de seu
sogro Labão e adquirir os seus direitos de liberdade junto à família que ali compôs e
com ela partir. Outros fios tecem, não com menor importância, essa história, mas em
Jacó termina a aliança-promessa, iniciada em Abraão, sendo uma das histórias mais
intrigantes do complexo da descendência histórica de Israel.
5 Fustel de Coulages. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.93.
23
As dificuldades e lutas desse povo têm como pano de fundo o poder da religião,
que reveste e domina a sociedade, principalmente a clânica. A mulher não tem uma
posição tão elevada e de igualdade para com a dos homens. Dentre essas
desigualdades, encontramos o fato de que só aos homens era dado o direito de
representar os antepassados e lhes prestar culto. Ela não representava os antepassados,
pois não descende deles (esse é um direito apenas dos homens e primogênitos), mas a
ela se dá um importante papel: a maternidade, a continuidade da genealogia. Esse
papel não lhes dá notoriedade na sociedade, pois elas nasceram para a “função” de
reproduzir. Fica evidente, então, que quando ela é estéril, “incapaz” para essa função,
pode ter a rejeição de seu esposo e seu casamento desfeito.
Portanto, se a mulher está predestinada ao casamento e a maternidade, a
esterilidade será a sua decadência. O seu reconhecimento e valor social estão num
útero fértil, como o de Lea. Assim, é nesse contexto que se desenvolve a base do
nosso estudo adentrando nesse terreno da mulher-mãe/mulher-estéril. Ele nos levará
ao nosso texto: o das mandrágoras (30.14-16). Essa unidade será estudada sob um
ponto de vista antropológico-cultural juntamente com o seu valor histórico-religioso.
Decerto é uma tarefa difícil abordarmos o que concerne à sociedade nômade ou
o que é prioritário nela. É certo que a vida nômade, nos clãs do qual pertenciam os
ancestrais de Israel, produziram certas formas de sociedades, comportamentos e
peculiaridades religiosas. Na narrativa bíblica percebemos que o ponto central e
inicial da história está no poder e na sucessão advinda de uma aliança-promessa de
Iahweh para com Abraão e sua descendência, ou seja, uma aliança que perpetuaria
através dos primogênitos.
24
Esse direito de primogenitura era o que conservava a unidade durante a série de
gerações impedindo-a de se fragmentar. Ela conservava, também, o patrimônio,
considerado bem comum que ficavam sob a autoridade do primogênito tendo este o
poder de pater. A autoridade principal não estava no pai, mas acima dele, ou seja, na
religião doméstica. Nela residia a autoridade indiscutível, pois cada família prestava
culto a uma divindade e esta detinha o seu deus doméstico (terafins).
Os antigos israelitas foram caracterizados, não como beduínos ou condutores de
caravanas, mas ‘ibrî “termo hebraico que se relaciona com este vocábulo e caracteriza
os antigos israelitas como grupos estrangeiros, de status inferior legal.”6 Eles foram
assim caracterizados por serem nômades errantes que permaneciam em um ou outro
estado, temporariamente. Eles trilhavam grandes distâncias, juntamente com a família,
seu gado maior e menor (constituído geralmente por ovelhas e cabras) e fincavam suas
tendas em semi-desertos e estepes7, ocupando áreas próximas a pastagens adequadas e
poços de água 8.
Uma peculiaridade que Donner9 apresenta a respeito desses dois grupos é que os
agricultores vivem na aldeia ou na cidade, em moradias fixas de tijolos dedicando-se
preponderantemente ao cultivo da lavoura e horta (cereais, vinho, verduras e frutas) e
à criação de gado, principalmente o bovino e em menor escala às ovelhas e cabras.
Eles viveram quase que exclusivamente da agricultura e da pecuária até meio século
atrás
6 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 2000, p.35. 7 Tipo de formação campestre que se caracteriza pela pouca densidade da vegetação herbácea, xerófila,
rasteira e com predominância de gramíneas, que ocorre em tufos afastados, deixando o solo descoberto. É uma formação vegetal de planície sem árvores, comp osta basicamente por herbáceas. É uma zona de transição vegetativa e climática entre a área de savana e o deserto.
8 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 2000, p.36. 9 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 2000, p.52.
25
A respeito dos nômades, Donner10 esclarece que, devido à constante mudança de
localidade para atender as necessidades de seu rebanho, eles desenvolveram uma
agricultura modesta. Alguns nômades procuraram integrar-se a povoações rurais, já
existentes, e outros foram atraídos e absorvidos pelas cidades. É nesse ambiente que o
nosso protagonista, Jacó, vai trabalhar para Labão por catorze anos para ter Raquel
como esposa. Isso denota que Labão está arraigado a uma terra adquirida e preservada
por gerações (lei da primogenitura). Ele também está ligado a religião doméstica, pois
tem um terafim que é roubado por Raquel quando estes deixam as terras de seu pai
(31.19). Na unidade que analisaremos percebemos que as mandrágoras nasceram nas
terras de Labão cultivadas por Jacó (30.14-16).
A mandrágora que Ruben traz para sua mãe Lea, faz com que Raquel a negocie
para obter a sua tão desejada maternidade. A leitura dessa unidade nos aproxima, um
pouco mais, das esferas do social e do religioso, na cultura de Lea e Raquel, e cuja
razão principal da história é a reprodução humana, a continuidade da família que lhes
garante a descendência, culto aos antepassados e reconhecimento social.
Esses grupos, de agricultores seminômades, de sociedade e organização clânica,
irão compor o cenário da nossa pesquisa numa recontagem da cultura, dos mitos e
símbolos atuantes na religiosidade tribal. O destaque deste cenário está sob o capítulo
30.14-16 que retrata a memória das mandrágoras. Como plantas elas dominam o
campo religioso e como produtos medicinais elas são utilizadas para solucionar
problemas biológicos. Esse período não era considerado idolátrico pois as
mandrágoras existem sociologicamente antes do javismo.11
10 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 2000, p.52. 11 Elvira Moisés da SILVA. Teologia, Memória e Poder das mulheres na tenda:uma leitura crítica à
26
1.1 Genealogias que irão compor a história
Todo o bloco 25-36 é composto por genealogias. É uma novela composta de três
gerações de primogenituras, composta por Abraão, Isaac e Jacó, geradoras da
ancestralidade de Israel, sendo que o primeiro e o último deles têm maior destaque,
pois o conjunto literário sobre Abraão e Jacó é mais complexo e cheio de narrativas,
ao passo que há poucas narrativas sobre Isaac.
Uma característica dessas narrativas é o fato delas terem sido construídas quase
que unicamente sobre fatores humanos, sendo que em determinados momentos
Iahweh comparecia de forma ativa e sobrenatural, dirigindo os acontecimentos;
declarando suas escolhas; fazendo alianças e determinando as genealogias. Schwantes
explica que a genealogia é “um gênero literário que, junto com o itinerário, perpassa
todo o Pentateuco e lhe vai dando estrutura e configurando seu esqueleto”12.
Ao abordarmos a origem, a genealogia, o elemento humano e também
sobrenatural que permeia todo o nascimento de Israel, não podemos deixar de narrar,
conjuntamente, que essa nação nasceu, não somente de uma terra seca, mas, também,
do ventre seco de suas mulheres que pela ação de Iahweh, tiveram aberta a sua madre
e geraram nações. Em nossa unidade (30.14-16) encontramos Raquel buscando nas
mandrágoras a solução para a sua esterilidade, mas a sua maternidade é narrada,
alguns versos à frente, como sendo ação de Iahweh.
Iahweh agia de forma ativa, presente, e lhes falava como a um humano e Dele
recebiam a fala profética e a promessa das gerações que viriam. Apesar de Iahweh
estruturação das teologias bíblicas a partir de Gênesis 29-30. 2002, p.5.
12 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. São Leopoldo: Oikos, 2008, p.13.
27
com eles dialogar, como seres humanos, ouviram e desacreditaram (17.12-14) que de
suas esposas estéreis se cumpriria a promessa de gerarem as nações.
No capítulo 17 vemos que Iahweh inicia sua ação para compor as nações. Ele
apresenta-se de forma “humana” a Abraão (17.1), e promete que ele será o pai de uma
multidão de povos (17.5) por intermédio de Sara, sua esposa, e ele se chamará Isaac
(17.19). Sara está com 90 anos e até o momento não havia dado nenhum filho a
Abraão. Apesar dos momentos de incredulidade, Sara concebe e dá a luz a Isaac
(21.2-3).
Iahweh havia prometido a Abraão uma descendência numerosa, mas ele tinha
apenas o filho da promessa, Isaac. Ismael, filho de Abraão com a escrava Agar, fora
expulso das tendas por Sara e já havia partido com sua mãe abrindo, nesse momento,
um novo círculo narrativo na história, longe de Abraão.
A preocupação, de Abraão, agora, é encontrar uma esposa para Isaac, para que
se cumpra a aliança-promessa das nações. O servo de Abraão é enviado a outra terra
para escolher uma noiva para Isaac. Ali ele encontra Rebeca, prima de Isaac e a
escolhe para com ele se casar. Esse é um casamento endogâmico, (casamento com
membros de sua própria classe ou tribo, com a finalidade de conservar sua nobreza ou
sua raça), típico entre os padrões clânicos. Para Abraão a esposa de Isaac era a
esperança para o cumprimento da promessa de Iahweh de conceber muitos filhos e
deles gerar as nações. Isaac tinha a idade de quarenta anos quando se casou com
Rebeca, filha de Batuel, o arameu, de Padã-Arã e irmã de Labão, o arameu (25.20).
Protagonizando novo momento da história dos ancestrais temos Rebeca como
mais uma esposa estéril. A narrativa diz que “Isaac rogou ao Senhor por sua mulher”,
28
para que concebesse filhos (25,21) e o Senhor ouviu a oração, e Rebeca, concebeu a
gêmeos. Havia duas nações no seu ventre. Nasce Esaú e Jacó. O texto fala da oração
de Isaac mas não fala da oração de Rebeca13, apenas que “ela foi consultar o Senhor,
pois as crianças lutavam no seu ventre” (25,21).
Esaú era forte e caçador enquanto Jacó era astuto e gostava de viver na tenda.
Enquanto Isaac apreciava Esaú, Rebeca preferia a Jacó. A partir desse momento as
narrativas detalham os momentos conturbados da história entre os irmãos: Jacó se
utiliza da fraqueza de Esaú para obter a primogenitura que é trocada por um prato de
lentilhas.
Outro momento conturbado entre os irmãos é tecido pela ardilosa trama armada
por Rebeca para que Jacó tome a bênção de Isaac, antes de ele morrer, em lugar de seu
irmão, Esaú. Com a ajuda de Rebeca, sua mãe, Jacó faz um cozido e ela reveste seus
braços e pescoço para que ele se pareça com Esaú e receba a bênção de Isaac.
Isaac já velho de dias, e cego, tateia o corpo de Jacó para aperceber-se se era o
corpo peludo de Esaú e abençoa Jacó. Quando Esaú descobre o ocorrido fica
inconformado e se revolta dizendo: “É a segunda vez que me enganou. Ele tomou o
meu direito de primogenitura e eis que agora tomou a minha bênção” (27.36). As
bênçãos, uma vez proferida, são irrevogáveis. Esaú passa a odiar Jacó e promete matá-
lo após a morte de seu pai.
No capítulo 29 do Gênesis, Jacó, temendo que seu irmão Esaú o matasse, foge
da casa do pai, em Canaã, e vai para Haran, na Mesopotâmia. Ele é enviado para a
13 Elvira Moisés da SILVA. Teologia, Memória e Poder das mulheres na tenda:uma leitura crítica à estruturação das teologias bíblicas a partir de Gênesis 29-30. 2002. 236f. Tese do Curso de Pós-graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2002, p.31.
29
casa de seu tio, Labão, irmão de Rebeca. Ele aproveitou a viagem para, também,
atender a um pedido de seu pai, que queria que ele se casasse com uma das filhas de
seu tio, Labão, já que seu irmão Esaú, aos quarenta anos, se casa de maneira
exogâmica (não aparentados ou com grau de parentesco distante). Sociologicamente
falando, as leis e os casamentos dentro do clã, conservavam a linhagem, garantiam a
preservação da identidade e impediam a dispersão dos bens familiares, especialmente
no casamento com a prima (casamento entre os filhos de uma irmã ou irmão,
matrilateral). Dessa maneira o filho recuperava, mesmo que em parte, os bens saídos
do patrimônio por ocasião do casamento do pai.
Chegando a Haran, Jacó vai à fonte na qual sabia que, no passado, Eliezer –
servo de Isaac – havia encontrado sua mãe, Rebeca. No local, encontra alguns pastores
e entre eles vê a bela Raquel, uma das filhas do tio, apaixonando-se imediatamente por
ela: “E beijou Jacó a Raquel e ergueu sua voz e chorou” (29.11).
Jacó trabalha para Labão para poder se casar com Raquel. Ele é enganado pelo
sogro e toma Lea em casamento pensando ser Raquel. Labão alega ser costume
desposar primeiramente a mais velha, mas vemos que houve astúcia da parte dele
(“qualidade” familiar como vimos em Rebeca, também, anteriormente). Jacó firma
novo contrato com Labão por mais sete anos para casar-se com Raquel. Como Sara e
Rebeca, Raquel também é estéril. Enquanto Lea, sua irmã, gera filhos a Jacó, Raquel
permanece com a madre fechada.
No caso de Raquel, não vemos Jacó orar, mas a encontramos questionando Jacó
por ele não lhe dar filhos, ao que ele lhe responde: “Acaso estou eu em lugar de Deus
que te negou o fruto do ventre?” (30.1-2) Esse acontecimento leva Raquel a buscar
30
nas mandrágoras (30.14) um meio de fertilidade e cura para a sua esterilidade, tema
este da nossa pesquisa. Raquel concebe, não com a utilização das mandrágoras, mas
no momento em que “Iahweh lembrou-se dela” (30.22). Lea e Raquel (e Bila e Zila
suas servas) cumprem a aliança-promessa de Iahweh de uma grandiosa descendência
dando doze filhos e uma filha a Jacó, sendo apenas dois de Raquel. Nascem as doze
tribos.
Muitas diferenças de estilo e tema distinguem as histórias desses ancestrais.
Todas, no entanto, se movem na mesma esfera social e política “aquela da família,
onde tantas coisas espantosas acontecem que suporta tão severas tensões”14, como
ressalta Gerhard Von Rad.
São narrativas de homens como Abraão, Isaac, Jacó, Esaú e José e de mulheres
como Sara, Hagar, Rebeca, Lia e Raquel que dentre tantas outras seguem compondo
essa história. Cada um/a desses/as personagens teve papel marcante e fundamental,
pois sem eles não haveria história.
Molina fala das narrativas da seguinte forma: “El narrador en efecto es una
artesano, utiliza la experiência humana como suerte de argamasa con la que se
construye, uniendo las palabras como si fuesen ladrillos, el edifício de la memória.”15
1.2 A história das origens pré-tribais
No relato do Gênesis 25-36, em sua complexa história das origens pré-tribais,
encontramos nas tradições Abraão/Sara e Jacó/Raquel/Lia, diferenças, tanto na
14 Gerhard Von Rad,. Genesis: A Commentary. Philadelphia: Westminster Press, 1972, p. 34. 15 Techi Molina. No hay silencio que pueda apagar La voz que nace. In: Nuevamerica, n. 59, Buenos
Aires, 1993, p.6.
31
construção literária como nos conteúdos abordados.16 A teóloga Heide Jarschel, em
sua dissertação de mestrado, sobre o bloco do Gênesis 25-36, fala dessas diferenças
como sendo três: “promessas da terra e descendência; contrato de trabalho e
casamento e lugares santos e primogenitura de herança; grupos de famílias e das
relações de parentesco dos clãs”17 Ela complementa essa análise dizendo que o que há
em comum entre essas três tradições narrativas e o restante do Pentateuco, ao qual
pertence o livro do Gênesis, é uma estrutura literária composta por perícopes de
origem familial-popular.
Encontramos essa origem familial nas informações históricas iniciadas nos
primeiros grupos que originaram o povo de Israel: as tribos ou clãs. Essas tribos eram
uma organização social elaborada por camponeses e pastores, das estepes e das
montanhas, com a finalidade de experimentar um novo modelo de acesso a terra.
Segundo Schwantes as narrativas mais antigas em Gênesis 12-25 e 25-36 não
incluem nem a tribo e nem o estado. Para ele a instituição básica daquele s tempos era
a família ou o clã como vemos a seguir:
A instituição básica daqueles tempos é a família ou o clã. Esta
família não aparece como elo de um conjunto social maior,
seja ele uma tribo ou um estado. A família das origens aparece
como grandeza social auto-suficiente e autárquica. Os laços
que mantém com outros grupos familiais não interferem no
próprio grupo, mas existem com vistas ao matrimônio, à
preservação das respectivas famílias.18
16 Heidi Jarchel. Gênesis 25-36: Cotidiano transfigurado. Dissertação de mestrado. Umesp, 1994. p18. 17 Ibidem, p.18 18 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens., 2008. p.73.
32
Tal organização se constituía em um grupo de pessoas, unidas por parentesco e
linhagem, definidas pela descendência de um ancestral comum. Mesmo se os reais
padrões de consangüinidade forem desconhecidos, não obstante os membros do clã
reconhecem um membro fundador ou ancestral maior. Como o parentesco, baseado
em laços, pode ser de natureza meramente simbólica, alguns clãs compartilham um
ancestral comum estipulado, o qual é um símbolo da unidade do clã.
Ao estudarmos a formação dessa organização social vemos que elas privilegiam
questões familiares clânicas: nascimento, casamento, vida e morte. As diversas
relações e os problemas familiares são tematizados nas histórias do Gênesis 12-25 e
35-36. Schwantes as relaciona da seguinte forma:
Relação marido-esposa (Abraão/Sara, Isaque/Rebeca,
Jacó/Raquel) relação entre as esposas na poligamia (Sara-Agar
Lia-Raquel); relação mulher-filho (Sara, Rebeca e Raquel são
estéreis durante certo período de suas vidas), relação entre
irmãos (Jacó-Esaú, José-irmãos); relação entre sogro e genro
(Labão-Jacó); etc. Todas essas tensões são estritamente
familiares clânicas. Tensões e intrigas, amor e ternura variam
no cenário19.
O que era designado para um, era também para os outros. Schwantes relata que
quando havia fome, todos os integrantes da família eram igualmente atingidos pela
escassez. A miséria da fome não estava reservada para alguns (veja 47.13-26). Para
Schwantes existe uma diferença significativa entre as condições de vida da mulher e
da criança entre os círculos abraâmicos e as cidades-estado. Nas cidades, crianças
eram sacrificadas. Entre os nômades, a criança é a grande esperança de sobrevivência
[...] Nas cidades a mulher destina-se ao harém (12.10-20; 20; 26). Entre os nômades a
19 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. 2008. p.73
33
mulher chega a desempenhar papel de relativa autonomia, como podemos ver nas
narrativas sobre Sara (cap. 18) e Rebeca (caps. 24 e 27).20
Sociologicamente falando, as leis e os casamentos dentro do clã, não somente
conservavam a linhagem, mas também garantiam a preservação da identidade e
impediam a dispersão dos bens familiares. Essas leis mantinham fundamentos que
operavam a favor da dignidade e do respeito para com a vida humana. Um dos
“mandamentos clânicos” em relação ao casamento, que não somente resguardava a
linhagem, a identidade e os bens, mas a segurança da mulher quando viúva, é a Lei do
levirato (Deuteronômio 25.5-7) .
O levirato era uma instituição que existia entre os israelitas, e outros povos do
Oriente Médio Antigo (como os assírios e os hititas), e consistia na obrigação imposta
às mulheres de se casarem com o irmão mais novo do falecido marido. Assim, o
cunhado tinha a responsabilidade de, através desse casamento com a viúva de seu
irmão, dar um herdeiro do sexo masculino ao falecido, de modo que o nome deste não
desaparecesse em Israel e mantivesse a propriedade em seu nome.
Desta forma, o primogênito, levava o nome do pai “legítimo” (ou seja, o
primeiro marido falecido), sendo o tio (pai biológico) o representante do pai. A
importância dessa lei, que já é consuetudinária (direito que surge dos costumes de
certa sociedade antes de Dt 25:5-10), foram constituídas não só para manter o nome
da família, já que proibia o casamento da viúva fora da família do marido, mas,
sobretudo, para a manutenção das propriedades dentro do clã.
20 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. 2008. p.74.
34
Assumir a responsabilidade de cumprir esse dever para com o falecido irmão é a
essência do significado do levirato, como vemos no Gênesis 38 (episódio de Tamar e
Onã) e também na história de Rute (onde na falta de um cunhado, um parente mais
próximo assume esta responsabilidade).
Diante desse conjunto de leis clânicas de proteção e preservação, notamos que a
organização familial-clânica não era somente auto-suficiente, e autárquica, mas era,
também, juridicamente autônoma e religiosamente autárquica.21 Por serem nômades, e
em boa parte pastores, sua auto-suficiência econômica vinha da terra, do plantio de
cereais e pequenas plantações e trocavam seus produtos com os camponeses da vila.
Esses pastores se esquivavam dos tributos, mais uma razão para sua vida nômade.22
As famílias eram juridicamente autônomas23. As questões eram resolvidas
dentro da própria organização clânica, na família. Eles somente se utilizavam dos
portões das cidades para questões especiais, como no caso da Lei do levirato, por
exemplo, do qual poderiam fazer parte os anciãos, as pessoas em causa (acusado e
acusador), as testemunhas e as pessoas que quisessem assistir.
Outro fator de autonomia era a religiosidade. A organização clânica era
religiosamente autárquica24: elas não dependiam dos santuários nas cidades-estado.
Suas práticas religiosas eram familiares e ocorriam dentro do lar ou nos carvalhais e
colunas. O próprio ancião da família fazia às vezes de sacerdote valendo-se para tanto
dos instrumentos caseiros: circuncisão (17.23-27) e oferta de holocausto(22.1-19)25
21 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. 2008. p.74. 22 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. 2008, p.74. 23 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. 2008, p.74. 24 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. 2008. p.74. 25 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. 2008. p.74.
35
As questões quanto à religião, leis e os ritos religiosos têm suas peculiaridades,
mas sua diretriz é para beneficiar e preservar a família. A preocupação com a família,
a preservação da terra, dos seus costumes, bens e religiosidade fez com que a
organização social clânica gerasse leis e rituais para que as gerações futuras
beneficiassem sua descendência como a preservação dos costumes, da família e da
herança. Não podemos esquecer que a religião era a base para a constituição dessas
leis.
Conforme nos relata Schwantes, a família-clânica, esboçada em Gênesis 12-25 e
25-36 (e também nos caps. 37-50), não há de ter sido a sociedade ideal, pois se
diferenciava em alguns momentos das cidades-estado que a circundavam26. Contudo,
pudemos constatar que para o clã e a tribo, as relações entre pais e filhos e a família
são de significado fundamental.
1.3 Substrato religioso
O material primitivo cerca os eventos cruciais da vida humana. Os antigos
israelitas tinham práticas e concepções, como outro povo ou sociedade, que se
conservaram até os tempos atuais. Segundo Fohrer, embora a preservação memorial
nos tempos subseqüentes tenha preservado o substrato religioso, outras informações
comuns, desapareceram com a mudança da vida nômade para a sedentária27.
Alguns elementos conhecidos, hoje, na comunidade judaica atual, vêm desse
material primitivo e das informações que sobreviveram a períodos posteriores. Elas
preservaram alguns substratos da vida e dos costumes desse povo nômade. Mas o
26 Milton Schwantes. História de Israel: vol. 1. Local e origens. 2008. p.74. 27 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p. 39
36
substrato religioso foi preservado, seja por estar integrado à fé, à adoração, aos atos
ritualísticos ou por sobreviver, separadamente, como superstição, mas freqüentemente
atacados pela religião oficial.28
Dentre esses substratos ou “essência das memórias religiosas” uma das práticas
mais comuns, conservadas e vivas dentro da comunidade e da religiosidade israelita, é
a “circuncisão”29, a remoção cirúrgica do prepúcio. Segundo os escritos da Torá, a
circuncisão é de extrema importância religiosa e consideravelmente saudável para o
judeu:
Se bem que atenda a uma necessidade de higiene, segundo
afirmam os mais eminentes médicos do mundo, têm para o
judeu um sentido religioso muito elevado. Ela é o símbolo, a
prova e a condição para entrar na aliança que o Eterno
estabeleceu com o patriarca Abraão. Pela circuncisão o
israelita está realmente comprometido num pacto indissolúvel
com Deus, a virtude e o dever. [...] Esta aliança não é uma
idéia, uma palavra30.
Essa era uma prática encontrada entre os povos que se relacionavam com os
israelitas, como os amonitas, moabitas e edomitas. No Egito a circuncisão era apenas
exigida para os sacerdotes. Fohrer relata que a circuncisão, pode ter sido,
originalmente, um rito de maioridade ou até uma iniciação para o matrimônio (cf. Gn
34.14ss). Porém, a breve narrativa da circuncisão do filho de Moisés, por sua mãe
Zípora (Ex 4.24-26), confirma ou legitima a mudança para a circuncisão de infantes.
28 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p. 39 29 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p. 39 30 Roberto Luiz Guttmann,. Torá, a lei de Moisés. São Paulo: Editora Sêfer, 2001, p.38.
37
Em todo caso, permanece em aberto a questão se a narrativa vê a circuncisão como
proteção contra os demônios31.
Os costumes relacionados a uma tradição, como relatos sobre luto, são também
primitivos. Segundo Fohrer,
não é mais possível determinar quais dentre os costumes que
aparecem no Antigo Testamento já eram praticados pelos
antigos israelitas. Para Fohrer o propósito quanto ao repasse
fúnebre era duplo: prover força vital para o morto (por
exemplo, por meio de lágrimas, que fornecem umidade
criadora e vital); ou desviar o mal que ameaçava o defunto
(por exemplo, com a mudança de roupar como meio de
disfarce). O lamento pode ter um dos dois propósitos
seguintes: fazer o morto reviver ou expulsar o espírito
desencarnado32.
Algumas práticas como sexo e alimentos puros e impuros são parte de outro
traço primitivo que é a proibição religiosamente motivada designada pelo termo
“tabu”. Os alimentos considerados impuros, um antigo tabu alimentar, proibia comer
animais impuros (porco), certas partes dos animais puros (sangue e gordura) e animais
não caçados ou abatidos pelo ser humano. Quanto ao abate, um animal só é
considerado morto se todo o seu sangue se esgotou. Enquanto houver sangue, ainda há
vida (Lv 17.14). Outra gama de tabu é encontrada na esfera sexual, como: copular,
ejacular, menstruar e a liberação de psus na região genital fazem que a referida pessoa
se torne tabu. Segundo Fohrer, até o sagrado pode ser considerado tabu quando em
contato com o profano.33
31 Idem, p. 39. 32 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p 39 33 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p. 39.
38
Esses substratos ainda são elementos fundamentais dentro da esfera religiosa
israelita. Cabe, aqui, esclarecer que a vida nômade, ainda que não o elemento
fundamental da religião israelita34, pode ter sido o elemento constitutivo da formação
de Israel por conduzir a certas formas de sociedade, de comportamento e de
peculiaridades religiosas.
As memórias trazem e preservam histórias, em seu conjunto das práticas e
concepções humanas, perpetuadas na vida de homens, mulheres, crianças e anciãos.
Enfim, os antigos israelitas mantiveram o seu legado até os dias atuais e dele se
revestem como purificadores e mantenedores de sua fé e cultura.
1.4 Histórias das genealogias: migração, casamento e procriação
Gênesis 25-36 é uma composição de blocos e relatos sobre a esfera familiar. Em
nenhuma outra tradição, os relatos de casamento ocupam lugar tão especial como na
construção desse bloco literário35. Não são somente histórias sobre casamentos que
encontramos nesse bloco, mas de alianças de Iahweh com os personagens principais
dessa novela, iniciando na pessoa de Abraão e continuando na sua descendência, ou
seja, em Isaac e Jacó. Essa aliança promessa é a fonte propulsora das migrações, lutas,
fugas, procriação, disputas e poligamia, entre outras. Segundo Jarschel, é uma tarefa
complexa compreender tantas memórias, de tanta gente e em tantos lugares
diferentes.36
Essas memórias de migrações, nascimentos, descendências, conflitos entre
irmãos e irmãs, casamentos, trabalho, engodo, fuga, temor, artimanhas e
34 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p. 39. 35 Haidi Jarchel. Gênesis 25-36: Cotidiano transfigurado. p.33. 36 Haidi Jarchel. Gênesis 25-36: Cotidiano transfigurado. p.15.
39
enriquecimento são relatos, narrativas, que compõe a história dos principais
personagens da história ancestral do povo de Israel: Abraão, Sara, Rebeca, Isaac, Jacó,
Esaú, Labão, Lia, Raquel, Bila e Zilpa.
As ações de Iahweh na vida e destino desses personagens se fazem sempre no
tempo presente para inclinar os corações a uma ação específica e fazê- las cumpridas.
Um exemplo dessas ações nas narrativas é a de ordenação de migração dada a Abraão:
“Sai-te da tua terra, e da tua parentela, e da casa de teu pai, para a terra que Eu te
mostrarei” (12.1). É Iahweh agindo na vida dos seres humanos e das nações, cujo
destino ele governa e determina.37 Ele é o protagonista dessa novela e outorga ou nega
as dádivas da natureza, a pessoas específicas, e em momentos específicos, como no
caso da esterilidade de Sara, Rebeca e Raquel: de três mulheres estéreis nascem as
nações que formaram Israel.
Para compreendermos melhor essas histórias vamos dividi- las em três blocos:
Abraão/Sara (12-25); Isaac/Rebeca (24-28); Jacó/Esaú/Raquel/Lia (25-36). Para cada
um desses blocos temos como acontecimentos em comum a migração, o casamento e a
procriação. O elemento fundante é a promessa que deles as nações surgirão. Esses
personagens são conhecidos, historicamente, como “patriarcais”. Mas, conforme
esclarece Jarschel,
Devemos abandonar essa definição porque as memórias
trazem histórias de muitas mulheres também. As histórias
dessas famílias são histórias de andanças, de conflitos com o
povo da cidade, de casamentos e de reproduções, onde estas
mulheres têm papel fundamental. 38
37 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p. 236. 38 Haidi Jarchel. Gênesis 25-36: Cotidiano transfigurado. 1994, p18.
40
Um novo estágio na revelação divina iniciou-se em Gênesis 12. Nessa nova era,
houve uma sucessão de escolhidos por Iahweh para estender a Sua palavra de bênção
para toda a humanidade. Abraão, Isaac e Jacó recebem essa eleição divina e marcaram
uma nova fase na bênção divina acumulada.
A tradição que compõe o quadro do Gênesis 25-36 não é formada apenas pelas
relações e conflitos de parentesco ou de casamentos, mas de conflitos econômicos
também. A interligação existente entre os três blocos é uma estrutura literária
composta por perícopes de origem familial-clânica. Suas histórias são recheadas de
questões comuns. Segundo Schwantes, “entre blocos e perícopes há uma relação
direta. Um não existe sem o outro. Os blocos existem como junção de perícopes e
estas constituem blocos”.39
Esses blocos são um relato das muitas memórias autônomas e das tradições
históricas de Abraão/Sara; Isaac/Rebeca; Jacó/Esaú/Raquel/Lia que têm suas histórias
entrelaçadas por questões comuns, marcadas por diferenças em seus enfoques e
conflitos e, também, em sua teologia.
O fator teológico é o principal elemento que irá gerar os conflitos, a migração,
os casamentos e a procriação nos blocos a serem estudados e principia pela revelação
de Iahweh, em forma de uma promessa e de uma aliança a Abraão e a sua
descendência.
39 Milton Schwantes. Teologia bíblica . São Leopoldo, s.d., mimeografado, p.17.
41
1.4.1 Primeiro bloco: Abraão e Sara
Abraão recebe a bênção e a promessa de que Iahweh “fará dele uma grande
nação [...] e nele serão benditas todas as famílias da terra” (12.1-3). Em 17.1-10
Iahweh cumpre a sua promessa fazendo uma aliança entre Ele e Abraão. Essa aliança
é firmada com a circuncisão de Abraão, como mandamento de Iahweh: “E
circuncidareis a carne do vosso prepúcio, e será por sinal de aliança entre Mim e vós”
(17.11). Como vimos anteriormente, no substrato religioso, a importância da
circuncisão foi, e ainda é, um mandamento de grande importância para o judaísmo no
qual só é reconhecido como verdadeiro descendente de Abraão aquele que está
circuncidado no corpo e no coração.40
A aliança-promessa está feita, mas Abraão questiona Iahweh de como isso
ocorrerá, afinal Sara é estéril: “E disse Abraão: Meu Senhor Iahweh, que me darás?
Continuo sem filho...” Abraão disse: “Eis que não me deste descendência e um dos
servos de minha casa será meu herdeiro.” (15.2-3). A resposta de Iahweh é a de que
aquele não será o seu herdeiro, mas alguém saído do sangue de Abraão (15.4). Desse
modo, a promessa é repassada a Sara, sua esposa (17.21).
Para o cumprimento dessa promessa Sara precisava gerar filhos a Abraão, mas
sua esterilidade faz com que ela entregue sua serva, Agar, para salvar a sua condição
de mulher estéril. Em sua condição de mulher serviçal e geradora, sem escolha para
tal, Agar tem a sua inserção na história e “gera por circunstâncias serviçais”41 com o
nascimento de Ismael (16.15). Ela dará o primeiro filho a Abraão. Mas a promessa é
40 Roberto Luiz Guttmann. Torá, a lei de Moisés. 2001, p. 39. 41 Elvira Moisés da Silva. Teologia, memória e poder das mulheres na tenda: uma leitura crítica à
estruturação das teologias bíblicas a partir de Gênesis 29-30. Tese de Doutorado: Universidade Metodista de Ensino Superior, 2002, p.27.
42
para o filho que brotará do ventre de Sara para Abraão: ele será o herdeiro da
promessa.
O papel de Sara não era apenas o de fazer cumprir, por meio da maternidade a
promessa feita a Abraão, mas o de fazer cumprir o seu papel diante de uma sociedade
na qua l o “valor da mulher era justificado pela sua existência como filha pelo futuro
papel de gerar filhos para seu marido”42. Sara recebe a promessa de Iahweh de gerar a
Isaac (17.19) e assim ocorreu (22.2).
A promessa e a aliança, de Iahweh para com Abraão, continuarão na sua
descendência: “E estabelecerei a minha aliança entre mim e ti e a tua descendência
depois de ti em suas gerações, por aliança perpétua, para te ser a ti por Iahweh, e à tua
descendência depois de ti.” (17.7). Iahweh fala a Abraão da continuidade de sua
aliança com Isaac e sua descendência: “E disse Iahweh: Na verdade, Sara, tua mulher,
te dará um filho, e chamarás o seu nome Isaac, e com ele estabelecerei a minha
aliança, por aliança perpétua para a sua descendência depois dele” (17.19).
Iahweh estabelece uma bênção para a descendência de Ismael: “E quanto a
Ismael, também te tenho ouvido; eis aqui o tenho abençoado, e fá- lo-ei frutificar, e fá-
lo-ei multiplicar grandemente; doze príncipes gerarás, e dele farei uma grande nação”
(17.20), mas a sua aliança será para com Isaac: “A minha aliança, porém,
estabelecerei com Isaac, o qual Sara dará à luz neste tempo determinado, no ano
seguinte” (17.21).
42 Alice L. Laffey. Introdução ao Antigo Testamento: Perspectiva feminista. São Paulo: Paulinas, 2000,
p.261. (coleção A Bíblia – Uma leitura de Gênero)
43
Com o nascimento de Isaac cessa, nos capítulos posteriores do Gênesis, a
citação do nome de Ismael. A partir da narrativa do banquete que Abraão dá no dia em
que Isaac é desmamado, Sara ordena a seu marido que expulse Agar e seu filho Isaac
e Abraão o faz com pesar. A partir desse ponto Ismael passa a ser citado apenas como
“o menino”, “o moço” e o “filho de Agar”, retornando ao complexo literário, como
“filho de Abraão”, no capítulo 25.12-18, após a morte do pai. A promessa de Iahweh
de abençoar a descendência de Ismael encontra-se em 25.16: “Estes são os filhos de
Ismael e estes são seus nomes, em suas vilas e em seus palácios; doze príncipes
segundo as suas nações”.
A genealogia presente em 25.19 “eis a história de Isaac, filho de Abraão. Abraão
gerou Isaac”, é prova de que estamos diante de um novo bloco literário. Esse tipo de
abertura é comum dentro dos textos do Antigo Testamento para introduzir uma nova
perícope ou um novo problema43. Nesse caso, 25.19-34, introduz a linhagem de Isaac
e sua descendência.
Após o nascimento de Isaac a alegria de Abraão se converte em tristeza. São
duas as razões: Sara exige a saída de Ismael, o que é doloroso para um pai expulsar
um filho de casa (21.11). A segunda é que Abraão sabia que Ismael optara por valores
e condutas morais diferentes e até contrárias às suas44.
No capítulo 22, uma nova prova marca a vida de Abraão e Isaac. Iahweh pede a
Abraão que lhe entregue o seu único filho, Isaac (22.1-2). A narrativa não aborda o
sentimento de Abraão, mas que ele não hesitou em cumprir a ordem, pois a fidelidade
43 Elvira Moisés da Silva,. Teologia, memória e poder das mulhers na tenda: uma leitura crítica à
estruturação das teologias bíblicas a partir de Gênesis 29-30. Tese de Doutorado da Universidade Metodista de Ensino Superior, 2002, p.30.
44 Roberto Luiz Guttmann. Torá, a lei de Moisés. São Paulo: Editora Sêfer, 2001
44
dele a Iahweh estava à prova. Vimos, anteriormente, no substrato religioso, que havia
o sacrifício de crianças, mas que nas famílias clânicas não ocorria esse tipo de
sacrifício aos deuses. Ao contrário, a criança era a continuidade, a sobrevivência do
clã, a continuidade de sua genealogia.
A Torá chama a atenção para esse fato na história entre Abraão e Isaac como
sendo a mudança radical de Abraão como um desligamento definitivo e radical do seu
passado, rompendo com a maneira de pensar e de viver do seu ambiente, e coloca os
fundamentos para uma vida completamente diferente. O texto na Torá continua
dizendo que o amor paterno e a autoconservação são, sem dúvida alguma, atributos
inatos do homem e se a religiosidade não fosse um bem natural seu, ele nunca
sacrificaria o que é natural a favor de algo artificial.45
1.4.2 Segundo bloco: Isaac e Rebeca
Dos três ancestrais de Israel aquele cuja história ocupa o menor espaço na Torá é
Isaac e no pouco espaço relata-se uma miscelânea de outros acontecimentos, mas nada
mais detalhado sobre a vida de Isaac.
Não há muitos relatos dos acontecimentos da vida de Isaac. Logo após o seu
nascimento o narrador apresenta alguns fatos ocorridos como: a saída de Agar e
Ismael expulsos por Sara (21.10); a aliança entre Abimeleque e Abraão (21.32); o
jardim de árvores frutíferas que Abraão plantou no local do juramento e da aliança
com Abimeleque (21.33). A próxima narrativa é a da oferta de elevação, o sacrifício
de Isaac (22.1-2) que deverá ser feito por seu pai Abraão. Esta passagem é um
símbolo inspirado pelas manifestações religiosas primitivas.
45 Roberto Luiz Guttmann. Torá, a lei de Moisés. 2001, p.55.
45
O que sucede após esse ato de sacrifício é a intervenção do anjo de Iahweh para
o não-sacrifício do filho da promessa. Pela obediência e não questionamento de
Abraão vem o reforço da promessa: “abençoar-te-ei e multiplicarei tua semente, como
as estrelas dos céus” (22.17). Após essa bênção o narrador descreve a crescente
procriação na família-clânica de Abraão.
Após o capítulo 22 a história de Isaac é retomada no capítulo 24, quando Abraão
convoca o seu fiel servo a encontrar uma esposa para Isaac. Ele o envia a Aram-
Naharáim (Mesopotâmia) à cidade de Nachor, para ali encontrá- la. Abraão mantinha
relações cordiais com os povos que o rodeavam, mas não a ponto de estabelecer com
eles ligações matrimoniais. Ele sabia que casamentos mistos abriam portas para a
assimilação de novos costumes, crenças e culturas. Isso era um sério problema comum
entre os povos antigos, evitar casamentos mistos, pois suas formas distintas de ser
dificultam uma harmonização.
Decerto, não é apenas a questão de linhagem que o fator importante que deveria
ser encontrado na futura esposa, mas, também, grandes qualidades morais como:
bondade, afeição, caridade, hospitalidade e a nobreza da família. Esse pensamento
ainda permanece entre os judaitas. O importante, agora, para Abraão, já que teve
apenas “um filho” (pois o outro lhe foi tirado por ordem de Sara), sendo o que lhe
restara o verdadeiro filho da promessa, é crer que a descendência prometida por
Iahweh virá por intermédio de Isaac e de sua futura esposa.
O servo de Abraão encontra Rebeca, filha de Betuel, irmã de Labão (24.22-23),
e Isaac a toma como esposa (25.20). E Rebeca, como Sara, era estéril também, Em
25.21, Isaac “intercede” a Iahweh por Rebeca para que ela possa lhe dar filhos. O
46
verbo empregado para a “oração” é ytr, “interceder” que, segundo Jarschel, é bastante
utilizado no relato das pragas em Êxodo 8-10.46
A intercessão de Isaac é atendida: “Iahweh atende e Rebeca, sua mulher,
concebeu” (25.21). A promessa-aliança que Iahweh faz a Isaac se cumprem na
continuidade da descendência. Para surpresa há, no ventre de Rebeca, duas nações
(25.23) marcadas, antecipadamente, por uma “divisão” e pelo “fortalecimento de uma
sobre a outra” (25.23).
“E houve fome na terra, além da fome” (26.1). Como nos tempos de seu pai
Abraão, a fome sobreveio. Isaac ia em direção ao Egito, mas Deus o impede e ele fica
na Filistéia. E foi Isaac a Guerar, a Abimeleque 47, rei dos Filisteus, para pedir auxílio.
Iahweh lhe pede que não desça ao Egito e dessa forma confirmaria o juramento que
fez a Abraão seu pai (26.3). Isaac é acolhido por Abimeleque e neste ponto do
capítulo 26 encontramos uma narrativa que aborda um mesmo acontecimento,
ocorrido, com o seu pai, sua mãe e Abimeleque.
Não sabemos se Abraão contou esse fato para Isaac, mas é interessante ver que
um mesmo acontecimento se repete de pai para filho. O mesmo temor de Abraão de
ser morto ao declarar, Sara como esposa, diante de Abimeleque, por ser uma mulher
“formosa à vista”, ocorre com Isaac quando este é questionado por Abimeleque acerca
de Rebeca. Em vista da formosura de Rebeca Isaac age igualmente ao seu pai no
passado, declarando que ela é sua irmã.
46 Haidi Jarchel. Gênesis 25-36: Cotidiano transfigurado. 1994. p15. 47 Abimeleque era o nome que se dava a todos os reis dos Filisteus, assim como se chamavam faraós
todos os reis do Egito.
47
O temor de Abimeleque, pelo que poderia acontecer a ele e ao reino, é evidente
em ambas as situações caso outro homem tivesse se deitado com as esposas. A
questão dentro desse relato é a de que o narrador, de forma sutil, narra a covardia de
ambos quanto ao temor de serem mortos caso as declarasse como esposas. Vemos que
o mesmo temor pairava sobre os dois: Abraão e Isaac. Vale aqui ressaltar que o temor
de Abimeleque era quanto à culpa que recairia sobre eles como povo. A narrativa não
demonstra preocupação ou cuidado quanto ao que poderia ocorrer às mulheres,
vítimas de uma mentira que as expos a situações vexatórias e de perigo, tanto na
história com Abraão ou na história com Isaac.
1.4.3 Terceiro bloco: Jacó e Raquel
A narrativa dos fatos do nascimento de Jacó e Esaú é descrita nos mínimos
detalhes, como se o narrador tivesse acompanhado o fato bem de perto, ou mesmo
participado do nascimento das crianças48: “quando chegou o tempo de dar à luz, eis
que ela trazia gêmeos. Saiu o primeiro: era ruivo e peludo como um manto de pêlos;
foi chamado Esaú. Em seguida saiu seu irmão e sua mão segurava o calcanhar de
Esaú; foi chamado de Jacó” (25.24-26). Seria esta a preservação da memória de
mulheres que ajudaram no momento do parto, ou mesmo da parteira? Para relatar tão
detalhadamente seria necessário estar bem perto ou participando do acontecimento.
Talvez essa seja uma das perdas, como já citamos anteriormente, de substratos
históricos que relatariam como e quem participava do parto na tradição clânica. Ou,
quem sabe, não fosse importante para o narrador evidenciar ou expor os detalhes dessa
ocorrência.
48 Haidi Jarchel. Gênesis 25-36: Cotidiano transfigurado. 1994. p.32.
48
A narrativa revela que a disputa já ocorria no útero, quando Jacó sai segurando o
calcanhar de Esaú. Essa disputa continua no âmbito familiar, teológico e social. Esaú
tem a preferência de seu pai e Jacó de sua mãe. “Esaú tornou-se um hábil caçador
enquanto Jacó era um homem tranqüilo, morando sob tendas” (25.27). Jacó era
ardiloso. A promessa de Iahweh de primogenitura já estava incorporada nele desde o
ventre. Ele sabia que a caça exigia esforço físico e, assim, prepara o alimento que fará
um Esaú, cansado e faminto, trocar a sua primogenitura pelo guisado que ele
preparou. Se não era uma artimanha da parte de Jacó, por que não foi Rebeca que
preparou o alimento?
Jacó não só toma a primogenitura de Esaú, mas a bênção também, que lhe foi
dada por seu pai Isaac, por meio do alimento. Em várias categorias a refeição surge
em todos os mitos como parte ritual de casamentos, sacrifícios fúnebres ou
propiciatórios, nos banquetes ou refeição comum. Nesse caso a fenomenologia nos
lança a um campo de investigação em relação aos rituais e simbologias que há no fator
alimento. A refeição é muito mais que uma necessidade fisiológica de sobrevivência,
mas é um momento social, uma realidade simbólica, é um campo religioso49. E, como
campo religioso é importante ressaltar a importância simbólica que a bênção, tanto
quanto a maldição, têm sobre a vida daquele que a recebe.
Rebeca assume o risco de ser amaldiçoada em favor da bênção de Isaac para
Jacó. A trama urdida por Rebeca coloca-a em posição de destaque e autoridade na
situação. Ela é a organizadora do que ocorre na narrativa do roubo da bênção de Esaú,
por Jacó (27.6-30), ao ouvir que Isaac pede a Esaú que lhe prepare uma caça para ele
49 Paulo Mendes Pinto. “O banquete no ciclo de Baal: imagem, onipresença e funcionalidade simbólica e
religiosa” in: Religião e Cultura . São Paulo: Editora PUC e Paulinas, 2005, 216p. p.32.
49
se alimentar. Fica, mais uma vez, clara a predileção de Rebeca por Jacó: “caia sobre
mim tua maldição, meu filho!” (27.13).
O interessante é que as duas perdas ocorrem por um prato de comida: o guisado
para Esaú e a caça para Isaac. A intrincada narrativa de 27.38, em que Esaú pergunta
ao seu pai se não lhe sobrou uma única bênção e chora é, certamente, estarrecedora.
Nota-se que se Esaú não valorizava a primogenitura, valorizava a bênção! Mas, será
que Esaú não sabia que a bênção era dada ao primogênito? Isaac morreu sem saber
que Esaú a havia trocado por um prato de comida. De qualquer forma, Jacó a teria de
direito pela promessa.
Seguidamente vemos que Esaú se enfurece e jura Jacó de morte: “E guardou
Esaú rancor de Jacó pela bênção com que o bendisse seu pai, e disse Esaú em seu
coração: chegarão os dias de luto de meu pai, e matarei Jaco, meu irmão” (27.41). As
palavras de Esaú são denunciadas a Rebeca, e ela, mais uma vez, intervém a favor de
Jacó e o envia à casa de seu irmão Labão, por medo de perder os dois filhos. Esse eixo
conflituoso da história será solucionado em perfeita paz no encontro que ocorrerá,
muitos anos depois, entre os irmãos. Essa passagem será narrada em Gênesis 33.4.
Vimos que, por parte de Rebeca, Jacó é enviado a casa de seu tio Labão para
fugir de Esaú. Mas, após esse triste acontecimento, Jacó é enviado, também, por seu
pai para a casa de seu avô materno para buscar uma mulher (28.1-6). Isaac, além de
ratificar as bênçãos proferidas anteriormente, ele confirma as bênçãos de Abraão sobre
50
Jacó, tornando-o seu sucessor espiritual e o terceiro elo da mesma corrente que
formará Israel (28.4)50.
A saída de Jacó, para outras terras, terá um novo enfoque nessa narrativa
histórica. Ele encontrará Raquel e iniciará uma nova rede de intrigas e conflitos entre
Jacó e Labão; Raquel e Lea. O assunto principal do bloco 29-31 é de trabalho,
casamentos (Lea e Raquel), conflitos e descendência.
Entre os capítulos 29-31 a rede de intrigas não é mais entre Jacó e Esaú, os
personagens são outros e a história também. No capítulo 29, Jacó irá conhecer Raquel
por quem irá se apaixonar e fechar um contrato de trabalho com Labão para com ela
se casar. Os conflitos iniciam com o trabalho de Jacó, para obter Raquel como esposa
e lhe é dado Lea, a filha mais velha, no lugar de Raquel, por seu pai Labão. A
alegação é a de ser costume entre eles que assim se faça: entregar, primeiramente, a
filha mais velha em casamento.
Jacó faz novo contrato de trabalho com Labão em troca de Raquel. Jarschel
relata que “em todos esses conflitos faz-se evidente o poder que estrutura a cultura
pastoril-patriarcal e, paralelamente aparecem os elementos que negam o ordenamento
dessa forma de vida, uma espécie de contra-cultura”51. A narração dos fatos que
envolvem Jacó, Labão, Lea e Raquel tecem uma trama que muitas vezes parece não
ter fim. A cada investida de Jacó para obter sua liberdade de não-escravo, com novos
contratos de trabalho, faz com que Labão insira novas regras para que isso ocorra. Em
todas elas firma-se um novo contrato. Essa novela de Jacó termina em 31.17-18.
50 Roberto Luiz Guttmann. Torá, a lei de Moisés. 2001, p.55. 51 Haidi Jarchel. Gênesis 25-36: Cotidiano transfigurado. 1994. p.32
51
Os conflitos também se estendem às duas irmãs na disputa pelo amor de Jacó.
Como a tradição para as mulheres é a de gerar filhos, Raquel fica em desvantagem em
relação à Lea. Enquanto Lea gera filhos, “Raquel se mantém estéril e se desgosta com
a vida. Na tradição antiga a finalidade maior do ser humano é a de gerar filhos.
Cumprir somente o seu papel de mulher é uma função secundária”52
A questão teológica é evidente nessa parte da trama. A cada filho dado a Lea
esta se reporta a Deus como o responsável pela dádiva. Dessa maneira cresce o
questionamento de Raquel, para com Jacó, sobre as benevolências de Deus não
estarem sobre ela . Seu questionamento para com Jacó de continuar sendo uma mulher
estéril, traz a ira de Jacó, pois ele diz não estar no lugar de Iahweh que lhe negou o
fruto do ventre (30.1).
Mas essa nova introdução teológica, Jacó como escolhido de Iahweh para gerar
nações, faz com que Raquel apele para as mandrágoras quando ela as vê na mão de
Ruben. Para ela esta seria, talvez, uma solução para sua esterilidade. Até esse
momento ela havia dado um filho para Jacó através de sua serva Bilá. Mas do seu
ventre ainda não havia nenhum fruto. De qualquer maneira as mandrágoras não
solucionaram o seu problema.
“E lembrou-se Deus de Raquel” (30.22). A narrativa não esclarece quanto tempo
depois da passagem das mandrágoras Raquel, finalmente, tem aberta a sua madre
(30.22), e dá a luz a José. O narrador deixa claro que ela engravida por vontade Divina
e não pelas mandrágoras conhecidas pelo seu poder afrodisíaco e que age contra a
esterilidade. Raquel volta a ter sua madre aberta, novamente, dando à luz a Benjamim
52 Roberto Luiz Guttmann. Torá, a lei de Moisés. 2001, p.55
52
(35.18), vindo a falecer ali, por problemas de parto. A tradição é mais uma vez
demonstrada nas palavras da parteira à Jacó: “Não temas, pois também este é um filho
para ti” (35.17). A vida se esvaiu de Raquel, mas o importante, como vimos
anteriormente, era a procriação e não o ser mulher: este era um fator secundário.
O reencontro de Jacó com seu pai, e a morte de Isaac, são relatados no capítulo
35: “E veio Jacó a Isaac seu pai, a Mamré, Kiriat Arbá, esta é Hebron, onde ali
moraram Abraão e Isaac. E foram os dias de Isaac cento e oitenta anos. E exalou a
alma Isaac, e morreu, e foi reunido ao seu povo, velho e pleno de dias, e sepultaram-
no Esaú e Jacó, seus filhos” (35.27-29).
Israel, que é identificado com Jacó em Gênesis 32.29 e 35.10, deve ser
considerado patriarca, mas separadamente. O capítulo 36 inteiro está quase dedicado à
genealogia de Esaú. Com o tempo o rancor entre os irmãos, principalmente o de Esaú,
se dissipou e voltaram a uma boa convivência após o reencontro.
A genealogia histórica da composição do povo de Israel é o tema do Gênesis 12-
50, mas o bloco analisado foi o de Gênesis 25-36, cerne da nossa pesquisa, tendo
como conteúdo relatos sobre a esfera familiar e genealógica da história dos ancestrais
do povo de Israel. A aliança-promessa é a fonte propulsora para as migrações, a
constituição de casamentos e a procriação. Nela pudemos constatar que Aliança não é
feita apenas com Abraão.
Ela é uma aliança afiançada que deverá se cumprir por intermédio da obediência
e cumprimento dos mandamentos ordenados por Iahweh permanecendo desde Abraão
até Isaac e Jacó. A narrativa em 26.3, nos mostra claramente num diálogo entre
Iahweh e Isaac: “Peregrina nesta terra e estarei contigo, e abençoar-te-ei; a ti e à tua
53
semente darei todas estas terras, e confirmarei o juramento que jurei a Abraão, teu
pai.”. E ela será uma aliança perene.
2. Tradições
As narrativas do bloco 25-36 do Gênesis tecem uma teia histórica dos passos de
alguns personagens que foram escolhidos por Iahweh para se tornarem os “patriarcas”,
os ancestrais do povo de Israel. Tais narrativas nos levam desde os espaços sociais e
históricos ocupados aos espaços de conflitos e tradição familial-clânica, cujo espaço
religioso revela a fé em Iahweh e a aliança-promessa, iniciada em Abraão estendendo-
se aos seus descendentes que formariam a genealogia da tradicional “história da
formação do povo de Israel”. A tradição contém detalhes específicos acerca de
Abraão, Isaac e Jacó.53
Esses ancestrais de Israel, mais conhecidos como “os patriarcas” eram
seminômades que, como Abraão, “saem da sua terra e da sua parentela” em direção
aos caminhos já traçados por Iahweh para que a história se complete.
Segundo Donner,
A herança nômade é tão forte na tradição de Israel que a
rejeição de toda e qualquer pré-história nômade de Israel não
tem nenhuma probabilidade histórica a seu favor. Para ele
Israel sempre soube, e sustentou que seus pais eram nômades e
não sedentários.54
As questões referentes ao nomadismo e ao sedentarismo são abordadas por
Donner da seguinte maneira:
53 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p. 37. 54 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. p. 148.
54
[...] precisamos nos acostumar a ver o fenômeno do
nomadismo de modo muito mais diferenciado do que até agora
habitualmente acontecia. O conceito “nômades” é de certo
modo um teto sob o qual se reúnem grupos de diversos tipos e
origens. Comum a todos é a não-sedentariedade consistindo
sua tomada da terra em se tornar sedentários, não mais viver
em tendas, mas em casas, e fundar localidades. Nisto consiste
a essência desse processo, não na passagem da criação de gado
para a agricultura, pois tanto agricultores sedentários, quanto
nômades praticam agricultura e criação de gado. No máximo
se poderá admitir que no processo de sedentarização ocorre
certa preponderância da agricultura sobre a criação de gado.55
Assim, para conhecermos um pouco melhor a história acerca dos ancestrais de
Israel, não basta nos fixarmos em sua genealogia, casamentos, intrigas, mortes,
bênçãos, alianças, mas nos espaços sociais em que estes eventos ocorrem e o lugar da
teologia em seu espaço vivencial. Dessa forma trabalharemos, a seguir, um pouco
mais sobre a relação de cada um/a desses/as personagens nesses espaços e seus
enredos complexos, ricos em tradições diversificadas e estruturados em genealogias.
2.1 Espaços histórico-sociais
Entre as dádivas concedidas por Iahweh, a terra está em primeiro lugar e tem um
importante papel nas tradições que cercam os acontecimentos da vida dos ancestrais
de Israel.56 Os espaços sociais em que esses acontecimentos ocorrem, são de terras,
geralmente longínquas, nas quais os nossos personagens são enviados por Iahweh,
levando seus pertences, famílias, escravos e escravas, gado e animais de pequeno
porte. Essas travessias se davam por regiões deserticas e de estepes
55 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos., p. 149. 56 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. 2006, p.230.
55
2.2 Associação de Iahweh com seu povo
A presença de Iahweh, sobretudo na tradição dos “patriarcas”, está intimamente
ligada à família e preocupa-se com os assuntos familiares: é Deus que lhes dá filhos,
que lhes ajuda a encontrar uma esposa, etc. Esse mesmo Deus é identificado como
tendo laços familiares quando lhe é denominado ser o “Deus do meu pai Abraão,
Isaac, Jacob...”
Nessas tradições se reflete uma religiosidade familiar, muito típica da época dos
patriarcas. É bem verdade que em épocas posteriores, a relação entre Deus e o seu
povo, assume cada vez mais um lugar central na fé de Israel; contudo, a religiosidade
familiar não deixa de existir. Ao contrário, afirma que a fé no Deus de Israel, e a fé no
Deus criador do Universo, se exprime também na relação com o próximo e com a
família. Não nos surpreende, por isso mesmo, que dois dos dez mandamentos
encontrados em Êxodo 20.12,14 dizem respeito à vida familiar: “Respeita o teu pai e a
tua mãe, para que vivas muitos anos na terra, que o Senhor, teu Deus, te vai dar. (v.
12); Não cometas adultério. (v. 14).
Outros aspectos da realidade familiar podem inclusive servir para entender
melhor a relação entre Deus e Israel. O profeta Oseías, por exemplo, compara Israel a
uma esposa infiel (Oseías 2.1,23) e Deus à mãe que ensina o seu filho Israel a andar
(Oseias 11.1,12.)
De fato, Deus não está distante, mas tão próximo da família que não o
surpreenda ser identificado através de laços familiares: o “Deus do meu pai Abraão,
Isaac, Jacob...” Reflete-se nestas tradições uma religiosidade familiar, muito típica da
época dos patriarcas.
56
2.3 Casamentos
Questões concernentes a casamentos, no Antigo Testamento, são encontradas
nas narrativas históricas, principalmente na dos tempos dos patriarcas. Esses textos
refletem a vida familiar de nômades, na época do estado, vividos sob uma cultura
sedentária e agrícola. A família típica do Antigo Testamento está carregada de temas
não admissíveis para a sociedade atual como a “poligamia”, por exemplo, exercida
nos tempos “patriarcais”.
A poligamia não era uma constante na sociedade, mas foi exercida e retratada na
vida de Abraão e Jacó, sendo que Isaac teve somente filhos e um relacionamento com
Rebeca. A poligamia era respaldada por ser de origem legal na sociedade clânica, a
qual pertenciam. As leis quanto ao casamento estavam ligadas à descendência como
nos casos de Sara e Raquel que, enquanto estéreis, deram suas servas para gerarem em
seu lugar. Não sabemos interpretar o porquê isso não ocorreu com Isaac, mas devemos
ressaltar que ele ora a Iahweh para que Receba conceba, e Iahweh ouve e responde ao
clamor de Isaac!
Filhos como Ismael, do relacionamento de Abraão com Agar, serva de Sara,
bem como os de Jacó com as servas de Lea e Raquel, seriam considerados ilegítimos
na sociedade atual, mas não o eram dentro da sociedade clânica. Eles eram filhos
legítimos, pois pela sociedade clânica tinham sua descendência legitimada. Outro fator
que nos mostra a normalidade dessa questão é a de que Lea dava regularmente filhos a
Jacó, mas também deitou suas servas com Jacó. Talvez porque enquanto Raquel era
estéril, não concebia filhos a Jacó, mas tinha o seu amor, Lea era a pura fertilidade
num relacionamento estéril, sem amor. A descendência é o “elevador” social dentro de
57
uma sociedade em geral, mas na clânica esse fator é maior por ser a descendência o
fator primordial.
Outro detalhe acerca dos casamentos numa sociedade clânica é o de ser somente
permitido o casamento entre primos/as e o de tio-sobrinha. O casamento com
estrangeiras era inadmissível para a sociedade clânica. A preferência era que se
efetuassem casamentos com parentes consangüíneos; assim, preservava-se a
integridade do patrimônio, entre outros, por intermédio do casamento endogâmico.
Um exemplo de casamentos exogâmicos, ou seja, com estrangeiros, é o casamento de
Esaú com duas mulheres hititas.
As alianças com nações vizinhas também determinavam o poderio e o número
de casamentos entre um rei ou outro personagem bíblico, seja com estrangeiras ou
não-estrangeiras; entre suas esposas e suas servas. De qualquer forma um homem
poderia viver com várias mulheres. Não surpreende que esta situação resulte muitas
vezes em ciúmes e rivalidade, como vimos anteriormente, especialmente entre as
esposas que têm filhos e as que são estéreis, como Sara e Agar, Raquel e Lea.
A esposa é, normalmente, escolhida pelo pai do jovem: “Eis que Rebeca está
diante da tua face; toma-a, e vai-te; seja a mulher do filho de teu senhor, como tem
dito o Senhor” (24:51), mas a aceitação dos cônjuges é necessária. Vários textos, no
entanto, revelam casamentos advindos de amor e paixão, como na história de Jacob e
Raquel, David e Betsabé ou na história do Cântico dos Cânticos.
Outro detalhe, acerca dos casamentos, era o dos acordos pré-nupciais. Era
costume o homem pagar um dote à família da mulher. O valor desse dote refletia a sua
58
importância social. Este pagamento poderia ser substituído por trabalho (como no caso
de Jacó, que trabalhou durante catorze anos, para Labão, por Raquel).
3 Conclusão
Neste capítulo pudemos conhecer um pouco mais acerca do complexo literário
que trata dos ancestrais do povo de Israel, pertencentes ao bloco do Gênesis 25-36,
composto por histórias, de um povo de vida nômade, e suas tradições familial-clânica.
Tais histórias são compostas das memórias de um povo viajante, pertencente a
uma sociedade clânica, que procura preservar seus costumes, e dar continuidade à sua
descendência, por meio de uma aliança-promessa, feita a Abraão, de que seriam
“formadores de nações”.
Israel sempre soube, e sustentara, que seus pais eram nômades e não
sedentários.57 A essência desse povo nômade, geralmente pastores, criadores de gado,
de rebanho de pequeno porte e pequenos agricultores se destaca pelo processo de
transumância. “Comum a todos é a não-sedentariedade, consistindo sua tomada da
terra em se tornar sedentários, não mais viver em tendas, mas em casas, e fundar
localidades”58. O nomadismo, ao qual pertenciam os ancestrais de Israel, produziu
certas formas de sociedades, comportamentos e peculiaridades religiosas.
Abordaremos, aqui, as origens de Israel, sua pré-história e sua história primitiva,
as genealogias, as histórias pré-tribais, não de forma detalhada, mas destacando e
analisando passagens que irão nos auxiliar a compor a nossa pesquisa. No próximo
capítulo faremos a análise exegética da unidade 30.14-16.
57 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. p.149. 58 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. p.149.
CAPÍTULO 2
ANÁLISE EXEGÉTICA DO GÊNESIS 30.14-16
Gênesis, em hebraico bereshit (“no princípio”), é um dos livros mais
significativos do Antigo Testamento. Ele abre a Torah (Pentateuco), que é a base para
toda a reflexão vétero-testamentária, e divide-se em duas partes: na primeira,
focalizam-se as origens do universo e da humanidade (cap. 1-11). Na segunda, as
narrativas populares, sobre as raízes da história ancestral do povo de Israel, e sua
genealogia (cap. 12-50). Gênesis oferece uma visão particular do começo da história
de Israel, que é mais propriamente a história de uma família 59.
O bloco 12-35 é o documento literário que conservou as tradições dos ancestrais
de Israel. A nossa unidade de estudo, 30.14-16, se encontra nesse bloco das tradições,
que narra as histórias dessas famílias ao longo de três gerações. Nelas encontramos
chefes de grupos familiares, nômades, que peregrinavam, de lugar a lugar, em busca
de alimento e água para si e para os seus rebanhos. Outros fatores, que ilustram o
quadro dessa intrigante história da linhagem ancestral do povo de Israel, referem-se a
59 Bíblia de Estudo Almeida revista e atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. 1999, p.9.
60
trabalho, acordos, trapaças, casamentos e nascimentos. É a história do amor de Jacó
por Raquel que, para desposá- la, faz um acordo de trabalhar sete anos para Labão, seu
futuro sogro, e por ele é trapaceado, recebendo Lea em seu lugar. Dessa situação
nasce a rivalidade e a intriga entre as duas irmãs que por Jacó são desposadas. Esse
episódio gera uma constante tensão entre Lea e Raquel: Lea dá filhos a Jacó na
esperança de obter o amor dele; já, para Raquel, que tem o amor de Jacó, o importante
é dar- lhe filhos, já que ela tem o amor dele.
A unidade 30.14-16 discorre sobre a discussão ocorrida, entre Raquel e Lea,
acerca das mandrágoras encontradas por Ruben. Raquel deseja obtê- las como
remédio, ou magia, para sua esterilidade. A mandrágora é uma planta cercada de mitos
e de propriedades afrodisíacas e de fertilidade. O interesse gera uma discussão e uma
negociação entre as duas irmãs: as mandrágoras de Ruben [Lea] para Raquel, em troca
de uma noite de Lea com Jacó. A rivalidade entre as irmãs, e a negociação, ocorre por:
amor, filhos e poder. Essa é a síntese central da disputa entre elas.
A análise desse texto nos conduzirá a uma compreensão dos mitos que cercam
as mandrágoras e seu poder medicinal. Sua utilização incide como “prática religiosa
cananéia de magia, adotada pelos israelitas”60. Tais práticas religiosas eram,
primariamente, formadas pela vegetação e cultos de fertilidade cananeus, cuja base era
bastante mágica. Assim, embora a tradição tenha freqüentemente mascarado o caráter
sincrético de sua religiosidade, a vida diária dos israelitas estava repleta de um grande
número de práticas de magia.
Essa unidade não se restringe apenas a analisar as mandrágoras como meio de
fertilidade, frente à esterilidade de Raquel, mas traçar a gênese religiosa e mítica das
60 Georg Fohrer. História da Religião de Israel. São Paulo: Editora Paulus, 2006, p.202.
61
crenças existentes sobre ela no decorrer desta pesquisa. Essa análise não só nos
revelará a complexidade histórica e significado social, dessa unidade, como também
as implicações e conteúdos, de um período em que tais símbolos e mitos estavam
entrelaçados na religiosidade e na cultura e não eram considerados idolatria.
1 Tradução literal
Apresentaremos, aqui, uma tradução literal de cada versículo, a fim de
estudarmos cada detalhe que a unidade 30.14-16 irá nos oferecer.
1.1 Tradução
14 E foi (aconteceu) Ruben, nos dias da colheita do trigo, achou mandrágoras no
campo. E trouxe-as para Lea, sua mãe. E disse Raquel para Lea: Dá-me as
mandrágoras de teu filho.
15 E disse Lea: é pouco tomar meu homem? E pegar também as mandrágoras de meu
filho? E disse Raquel: por isso durma contigo esta noite, pelas mandrágoras do teu
filho.
16 E veio Jacó à tarde do campo, e saiu Lea ao seu encontro e disse a ele: porque
paguei salário, [eu] te contratei por mandrágoras de meu filho e deitou-se com ela
aquela noite.
1.2 A forma
A nossa unidade 30.14-16 encontra-se no bloco 25-36 do Gênesis. Dentro desse
bloco adentraremos o complexo literário 29.31–30.24 que contém a genealogia do
62
nascimento dos doze filhos de Jacó, a nomeação e o significado de seus nomes. A
composição do bloco 25-36 é constituída por textos de “forma genealógica”, pois nele
encontramos relatório s desde o nascimento de Isaac, ao de Esaú e Jacó, seguido das
histórias de seus casamentos e nascimento de seus filhos, composição própria da
genealogia. O contexto histórico desse bloco pertence à sociedade clânica que garantia
o direito à propriedade, e a linhagem, por intermédio da genealogia.
A prosa é o gênero no qual está inserido o bloco dos relatos de passagens
especiais como a história do povo ancestral de Israel (dos patriarcas) e seus quadros
familiares e genealógicos. Mas, a nossa unidade, 30.14-16, é uma peça dentro desse
bloco e deverá ser analisada separadamente61.
No bloco 25-36 encontramos algumas interpolações narrativas e dentre elas está
a nossa unidade que contém a abertura de um novo episódio: o acordo das irmãs Lea e
Raquel em torno das mandrágoras. Este episódio, do capítulo 30, marca claramente a
rivalidade, entre as duas irmãs-esposas, por causa de Jacó. O motivo da forma
narrativa desse bloco separado, dentro do bloco 29-30, é que ele sai da fase de
declarações de nascimentos para a de disputa, claramente percebida no diálogo entre
Raquel e Lea.
O que faz com que o nosso texto incida como forma narrativa é que ele se
constitui do que poderíamos chamar de “diálogo”, mas o que encontramos, realmente,
é uma narrativa de rivalidade, uma disputa, uma discussão que gera um acordo entre
Raquel e Lea sendo Jacó o prêmio, o elemento da negociação pelas mandrágoras.
61 Claus Westermann. Genesis 12-36: A commentary. Minneápolis: Augsburg Publishing House, 1985,
P.471.
63
Podemos, então, dizer que temos afinal um texto em que a mulher não é o elemento de
transação e negociação.
Outro fator metodológico e determinante para classificarmos essa unidade como
“narrativa” deve-se ao modo de comunicação e interação entre as personagens. Um
texto narrativo deve seguir a ordem das ações, sendo que os acontecimentos e as ações
devem suceder-se na ordem em que aconteceram. Ao analisarmos por esse método
vemos claramente essa seqüência em nossa unidade: à chegada de Ruben, com as
mandrágoras, segue-se a ação de negociação de Raquel com Lea para obtenção das
mandrágoras (v.14), o acordo e o cumprimento do acordo (v.15-16).
Desse ponto em diante inicia-se a nossa análise exegética na qual procuramos
manter a tradução o mais literal possível, tornando a mesma, confiável para a nossa
análise.
1.2.1 A unidade 30.14-16
A intenção da narrativa em nossa unidade é a de levantar a questão da rivalidade
entre as mulheres: um tema que sempre existiu e sempre vai existir na sociedade
humana – mesmo em formas modificadas de vida e de casamento. Seu propósito é
mostrar que o conflito no período patriarcal, entre as mulheres, foi considerado no
mesmo nível significativo que ent re os homens.
Considerando que os homens contendiam, basicamente, sobre um espaço e
meios de subsistência, as mulheres entraram em confronto sobre sua posição e status
na comunidade. Essa discussão se mantém na esfera simples da família onde o
reconhecimento pelo marido e o nascimento de filhos eram fatores decisivos para elas
64
a sociedade local. Percebemos, ainda, que esse conflito deve-se ao valor sócio-cultural
estabelecido na época para que as mulheres mantivessem seu status comunitário: o da
maternidade.
A unidade pesquisada contém três versos desconectados dos versículos
anteriores e posteriores. Trabalharemos o complexo literário 29.31–30.24, de maneira
que possamos melhor compreender e analisar o contexto da trama e da rivalidade
entre Lea e Raquel. Essa rivalidade nasce do descumprimento do acordo de Labão, pai
das personagens, com Jacó, fazendo com que ele despose Lea, acordo esse de sete
anos de trabalho de Jacó para desposar Raquel.
Nos vs. 14-16, Raquel e Lea conversam pela primeira vez em todo o conjunto
redacional num diálogo rápido, no qual percebemos o sentimento de rivalidade e
indignação de Lea para com a questão Raquel e Jacó, como podemos ver no v. 15. O
diálogo é de negociação, tendo Jacó como um dos “objetos” de troca. Nesse tenso
episódio, o diálogo entre Lea e Raquel, acerca das mandrágoras (maçãs do amor)62,
que Ruben, filho de Lea, encontra, transforma-as em “maçã da discórdia”. O conflito
termina com um compromisso que beneficiaria ambas as mulheres. O redator descreve
bem o tenso diálogo e a negociação entre as irmãs como veremos a seguir.
1.2.2 Diálogo
As frases que compõem o diálogo estão descritas abaixo e tem seu ponto
conclusivo na última frase.
62 A mandrágora, cujo nome em hebraico é formado pela raiz de amor (duda’im), tem frutos (não
comestíveis), como os de uma pequena maçã. Isso a faz conhecida como “maçã do amor”. Sua raiz é da forma de um corpo humano e suas folhas e floração, como se fossem o cabelo. É tida como planta com poderes mágicos e afrodisíacos, promotora da fertilidade.
65
14 E disse Raquel a Lea:
“dá a mim as mandrágoras de teu filho”
15 E disse:
“também por pouco tomaste o meu homem
e tomas em especial as mandrágoras de meu filho”
E disse Raquel:
“por isso durma contigo esta noite pelas mandrágoras de teu filho”
16 E chegou Jacó do campo na tarde e saiu Lea a chamar-lhe
e disse:
“comigo chega-te eis que pagar, paguei-te por mandrágoras de meu filho”
e dormiu com ela aquela noite.
Os vs. 14-16 mostram o tenso diálogo e a forma narrativa na qual ele é
construído. Do lado esquerdo temos a fala do narrador expressada por “E disse”; do
lado direito temos a fala, a discussão de Raquel e Lea. Essa discussão irá gerar a troca
das mandrágoras por Jacó, os “objetos” centrais da discussão.
1.2.3 A construção do diálogo
As frases são fundamentais na construção do diálogo. Elas são portas que se
abrem para a captação do contexto e do diálogo nela estabelecidos. Na seqüência
trabalharemos para uma melhor compreensão do discurso e sua finalidade.
1.2.3.1 E foi (aconteceu) Rúben, nos dias da colheita do trigo63, achou mandrágoras64 no campo65. E trouxe-as para Lea, sua mãe. E disse Raquel a Lea: Dá66 a mim por favor as mandrágoras67 de teu68 filho. (v.14)
63 hitim – substantivo feminino plural absoluto: plantas, grãos, trigo. 64 duda`im – substantivo masculino plural: mandrágoras. É formado pela raiz de amor (duda’im) 65 basadeh – preposição em contraída com artigo + subst. masc. sg. campo: no campo 66 teni – verbo dar, qal imperativo feminino singular: dá.
66
Esse episódio ocorre “nos dias da colheita do trigo”. A primeira frase que
constrói esse diálogo inicia-se com “E aconteceu” onde o narrador insere os fatos e as
informações, enquadrando tempo e espaço na narrativa.
A colheita era ponto de referência no calendário 69. Na Palestina é semeado o
trigo em novembro ou dezembro, e recolhido em maio ou junho, segundo o clima e a
localidade. O campo é o local de trabalho e de produção do grupo demonstrando que
esses peregrinos partilhavam de uma economia agrícola. O trigo era o alimento
fundamental na Palestina: grão que se transforma em pão. Era um produto de alto
valor e importância para a economia local, pois além dele produzir o alimento era
utilizado na comercialização e como oferta aos deuses. Em Neemias 5.2-3 temos uma
clara noção de sua importância: “Gostaríamos de ter trigo para comer e viver! Outros
diziam: nossos campos, nossas vinhas e nossas casas, dâmo-los em hipoteca para
termos trigo durante a época da fo me”.
No capítulo anterior abordamos a questão do alimento como sendo mais que
refeição, mais que uma necessidade fisiológica de sobrevivência, mas ele tem valor
simbólico e mítico. Encontramos várias narrativas bíblicas sobre alimento. Ele
pertence ao cotidiano, seja num momento social, numa realidade simbólica ou no
campo religioso. A morte pela fome, para um povo, pode significar seu fim. Ao
67 miduda`ey – preposição de (indica origem, motivo) + subst. masc. plural construto: “mandrágoras
de”. 68 Benech – Substantivo masculino singular: filho, contraído com sufixo pronominal de 3ª. pessoa
feminino singular: tua: teu filho, teu descendente. 69 Elvira Moisés da Silva. Teologia, memória e poder das mulheres na tenda: Uma leitura crítica à
estruturação das teologias bíblicas a partir de Gênesis 29-30. Tese de Doutorado da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2002, p.59.
67
mesmo tempo elimina uma religião juntamente com seus deuses e seus
antepassados.70
Ruben “encontra mandrágoras no campo”. Ele é o primogênito de Lea e Jacó e,
como tal, ocupa uma importante posição dentro da genealogia clânica. Esse quadro
denota que os filhos acompanhavam desde tenra idade, o pai, para o trabalho no
campo sendo preparados para a situação política, social e econômica do clã. Claus
Westermann diz que Ruben teria a idade aproximada de seis anos quando encontra as
mandrágoras71. Percebemos que o redator descreve que Ruben “encontra”
mandrágoras e as leva a sua mãe. Isso constrói a idéia de que ele tinha conhecimento
da importância delas, fosse por ele trabalhar no campo ou pelas tradições.
A mandrágora é uma planta que, além de conter propriedades medicinais,
também detém poderes mágicos, cercada por uma gama mitos. O termo
“mandrágora”, ?????? (dûdä´îm), em hebraico, deriva da mesma raiz de “amor”, o
que reforça a idéia de fertilidade e o seu elemento afrodisíaco. Era muito utilizada em
feitiçarias, na medicina e como poderoso afrodisíaco e conceptivo. De sua raiz, em
forma de corpo humano, assim como suas folhas, fazia-se chá e uma infusão, para ser
bebida ou banhada. Não podemos esquecer que cabia, geralmente, às mulheres o
conhecimento e a prática quanto às plantas e ervas medicinais.72 Algumas dessas
plantas estavam embebidas no poder dos mitos, como é o caso das mandrágoras. Não
podemos esquecer que Lea deveria utilizar suas propriedades medicinais e
afrodisíacas e Ruben tinha conhecimento disso.
70 Hans-Jürgen Greschat. “Religião e Comida” in: Religião e Cultura . São Paulo: Editora PUC e Paulinas, 2005, 216p. p.10
71 Claus Westermann. Genesis 12-36: A commentary. Minneápolis: Augsburg Publishing House, 1985, p.475.
72 Gil Martins Felipe. No rastro de Afrodite: Plantas afrodisíacas e culinárias. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p. 231.
68
A discussão, aqui, está encabeçada nas mandrágoras. A frase “Dá-me
mandrágoras de teu filho”, dita por Raquel é enfatizada pelo verbo “teni” [dar], no qal
imperativo “dar”, “colocar”, “dispor”. É um verbo de ação que “move alguma coisa”
ou faz com que “chegue algo a alguém”. Por ser verbo imperativo acentua o caráter de
mando, de imposição, que exprime uma ordem a alguém, nesse caso seria o de Raquel
para Lea. Essa “ordem” é amenizada pela partícula “na”, de interjeição e de ênclise de
urgência: por favor.
Nos vs. 14 e 15 temos uma construção igual de frases havendo mudanças apenas
dos pronomes possessivos: “mandrágoras de teu filho” e “mandrágoras de meu filho”.
De qualquer maneira a favorecida aqui é Lea, pois foi Ruben, seu filho que encontrou
e tem a pertença das mandrágoras. Raquel quer as mandrágoras e Lea quer o marido.
A negociação favoreceria cada uma das irmãs a conceber filhos. Essa era a intenção
de Raquel. Só que a beneficiada continuou sendo Lea, pois Raquel não atingiu o seu
objetivo com as mandrágoras. Da mesma maneira que Iahweh se apieda de Lea por
não ser a escolhida de Jacó e lhe dá filhos, será ele o mesmo condutor da geração que
virá de Raquel. Iahweh será aquele que abrirá a madre de Raquel.
Há somente dois textos bíblicos que citam as mandrágoras: Gênesis 30.14-15
(nossa unidade) e no livro do Cântico dos Cânticos (7.14).
1.2.3.2 E disse Lea: é pouco tomar meu73 homem? E para tomar74 também75 as mandrágoras de meu76 filho? E disse Raquel: por isso durma77 contigo esta noite, em lugar das mandrágoras do teu filho (v.15).
73 `et- `ishi – partícula que antecede objeto direto ( sem tradução) + substantivo masculino singular:
homem + sufixo pronominal da 1ª. pessoa: meu homem. 74 ve-laqahat – verbo pegar, tomar, no infinitivo antecedido por vav. 75 gam – conjunção: também. 76 beni – substantivo masculino singular + sufixo pronominal da 1ª. pessoa: meu filho. 77 yishkav – verbo deitar-se, coabitar no qal, 3ª. Pessoa do masculino singular do imperfeito: e dormiu.
69
A rivalidade surge a partir do capítulo 29.16 percorrendo os demais versículos
desembocando no capítulo 29.30 e 30.15:
“Jacó uniu-se também a Raquel,
e amou Raquel mais do que a Lea;
ele serviu ainda em casa de Labão durante outros sete anos”
As duas primeiras frases fundamentam a rivalidade entre as irmãs: elas
enfatizam a preferência de Jacó por Raquel aceitando trabalhar mais sete anos por ela.
O redator deixa claro o quadro dessa rivalidade definido nas disputas que se iniciam
por duas razões: o amor de Jacó e a maternidade.
O esquema acima nos dá o entendimento do por que Lea é enfática em sua
resposta e rejeita o pedido de Raquel com amargura em sua fala: “É pouco que você
tenha tomado o meu marido? E tomas também as mandrágoras de meu filho?” Aqui o
substantivo mandrágoras é acompanhado da conjunção aditiva gam (também, em
especial). No jogo de palavras desse diálogo enquanto Raquel utilizou o termo “dar”,
Lea se utiliza duplamente do termo “tomar” denotando que Raquel “tomou” dela o
marido (pelo coração, pelo amor) e agora quer “tomar- lhe” as mandrágoras. Talvez as
mandrágoras fossem para Lea a fonte que traria Jacó para si. Raquel pleiteia as
mandrágoras de sua irmã , talvez por ela achar que foram as mandrágoras que
favoreceram Lea a conceber e da mesma forma que as mandrágoras favoreceram Lea,
ela tem o direito de ser favorecida também. Para ela as mandrágoras são a esperança,
o caminho para a maternidade.
A negociação nesses casamentos não acaba. Labão negociou suas filhas com
Jacó: sete anos de trabalho pelo casamento com Raquel e, ao dar Lea em lugar de
70
Raquel ele ganha mais sete anos de trabalho de Jacó. De uma forma mais sutil Raquel
e Lea negociam as mandrágoras em troca de uma noite de Jacó com Lea. Raquel faz
uma proposta justa que Lea aceita: ela dá seu marido para dormir com Lea uma noite
(obviamente, ele passava mais tempo com Raquel do que com Lea) em troca das
mandrágoras. Raquel entrega Jacó e Lea entrega as mandrágoras.
1.2.3.3 E veio Jacó à tarde do campo78, e saiu Lea ao seu encontro e disse a ele:, eis que pagar79, [eu] te aluguei80 por mandrágoras de meu filho e deitou-se com ela aquela noite (v.16).
Nesse v. 16 Jacob vem “do campo”, isso designa o estilo de vida de seu grupo.
Lea vai ao seu encontro, no final da tarde, e lhe diz que ele foi o objeto de um acordo.
Jacó desempenha aqui um papel bastante lamentável: ele surge apenas como objeto de
troca, de mercadoria. Aqui o redator o ausenta do diálogo: Jacó vem do campo, do seu
trabalho. Enquanto isso o redator relata o acordo feito entre Lea e Raquel acerca das
mandrágoras e de Jacó. As mandrágoras foram o “salário”, “o pagamento” de Lea por
uma noite com Jacó.
Lea diz a Jacó: “eis que paguei [eu] te aluguei por mandrágoras do meu filho”.
“Pagar” termo designado para um contrato feito acerca de algum tipo de trabalho.
Neste caso Lea “paga” para “dormir” com Jacó. Fica aqui a base da controvérsia entre
as irmãs, que sendo Lea a primeira esposa tem que pagar para poder “dormir” com o
seu esposo. Optamos, aqui, pelo termo “alugar”, pois poderíamos ter optado pelo
termo “contratar”, pois ambas são expressões que impõe uma limitação de tempo81.
78 min-ha-sadeh – preposição de (origem) + artigo + subst. masc. sg. campo: do campo. 79 sachor – verbo qal no infinitivo absoluto: pagar salário. 80 Shacharticha – verbo qal perfeito na 1ª. Pessoa do singular no tempo completo + sufixo pronominal
na 2ª. Pessoa do masculino singular: te aluguei. 81 Claus Westermann. Genesis 12-36: A commentary. Minneápolis: Augsburg Publishing House, 1985,
p.476.
71
De qualquer maneira, ambos são resultados de um acordo, de um contrato
1.3 Lugar, datação e autoria
A nossa unidade 30.14-16 está inserida na história de Jacó que ocorre,
preponderantemente, na Palestina Central e na Transjordânia, diferente a localidade de
seus antecessores Abraão e Isaque.82 Ela tem como lugar central a terra de Padã-Aram,
local onde residia Labão e para o qual Jacó é enviado, não somente para fugir da ira de
Esaú, pelo roubo da primogenitura e da bênção (esta última principalmente), mas para
encontrar uma esposa.
A Palestina é a parte do corredor siropalestinense, entre os territórios de aluvião
fluvial do Egito e da Mesopotâmia: a parte central do chamado Crescente Fértil com
terras de cultura a nordeste, norte e noroeste do deserto sírio-arábico83. Ela obtém sua
fertilidade não da água de grandes rios, mas da chuva ocasionada pela evaporação do
Mar Mediterrâneo condensada nas serras. Há somente duas estações anuais: o inverno
chuvoso (outubro/novembro e abril/maio) e o verão, completamente sem chuvas.
Estas narrativas que, possivelmente, foram produzidas e editadas no reino do
norte (Israel), e fechadas antes que este terminasse o ano 722 a.C. Tinham como
função perpetuar a memória de experiências humanas que, em certos momentos da
vida e da história, tentaram explicar as intrigas político-sociais de homens, mulheres,
grupos ou famílias desses povos.
Quanto à questão de autoria, nossa unidade está incluída nas tradições que se
encarregaram de transmitir a mensagem preservada pelo povo, proclamando-a e
82 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos, São Leopoldo: Sinodal, 2000, p.85. 83 Herbert Donner. História de Israel e dos povos vizinhos. 2000, p.51.
72
aplicando-a às circunstâncias próprias de cada momento. Acreditamos ser um texto
que provém das memórias de tradições mais antigas, relatos de poder e vivência de
mulheres de uma sociedade oral84. Talvez as pessoas que participaram desse episódio
possam ter contribuído para a fase redacional.
O diálogo ocorre no espaço doméstico, lugar onde as mulheres desempenham e
detêm uma posição de poder e autoridade para exercer determinadas práticas. Esse
exercício de poder está relacionado com as necessidades imediatas do cotidiano ou de
alguma questão pendente como é o caso de Raquel e Lea quanto à questão de amor e
filhos.
Nossa unidade encontra-se no bloco 29-30, entre os textos da história
“patriarcal”, dos ancestrais de Israel, no qual há um reconhecimento e um lugar mais
significativo para as mulheres. Aqui a mulher encontra-se numa sociedade na qual ela
detém certo espaço ao ponto de ser a voz da narrativa. Esse espaço de domínio é algo
marcante em todo o Gênesis principalmente no bloco 25-36 ao qual pertence a nossa
unidade de estudo. Nele encontramos mulheres elaborando, em seu espaço familial-
clânico, questões como intrigas e demanda de destinos (Sara/Agar), domínio e poder
sobre seus maridos, filhos e primogenituras (Rebeca/Isaac/Jacó/Esaú), disputas e
acordos (Raquel e Lea).
Dentro do bloco 29-30 consideramos como peças narrativas as unidades 29.31
como o início de uma narrativa que recomeça no verso 30b e assim segue em 29.15-
30. Um contexto narrativo mais amplo é continuado em um episódio novo. A
interposição no v. 31 prepara a unidade 30.1-6; 31-32 e 30.1-6 formando um bloco
84 Elvira Moisés da Silva. Teologia, memória e poder das mulheres na tenda: Uma leitura crítica à
estruturação das teologias bíblicas a partir de Gênesis 29-30. 2002, p.59
73
narrativo independente. A narrativa progride na nossa unidade 30.14-16 abrindo um
novo episódio : o da rivalidade entre Lea e Raquel. O conflito encontrado nos versos
14-15 leva a um compromisso. Mas a narrativa antiga encontra-se alterada nos versos
17-18 pelo redator, como no verso 22-24 que conclui, ou digamos, fecha a narrativa.
1.4 Conteúdo
Os personagens do Gênesis 12-36, habitualmente chamados “patriarcas”, eram
chefes de grupos familiares nômades que iam de um lugar a outro em busca de comida
e água para os seus rebanhos. Não haviam chegado, ainda, à fase cultural do
sedentarismo e dos trabalhos agrícolas. Os seus assentamentos eram, em geral,
eventuais, demorando-se até que o seu gado consumisse os pastos ou chegasse uma
nova estação que os levava a mudanças. A história dos ancestrais de Israel abstrai-se
de uma atmosfera preponderantemente pacífica. Nela encontramos um panorama da
vida instável de migrantes que caminham com suas famílias e seus rebanhos,
habitando em suas tendas, plantando, criando o seu gado e vivendo da pecuária e da
agricultura, alimentando-se de pão, leite e carne. Ocasionalmente saíam para a caça
(Gn 25.27; 27.3ss.), conforme relata Donner85.
Em todo o bloco do Gênesis 25-36 encontramos um complexo das tradições
historiográficas das origens pré-tribais do povo de Israel. Nele encontramos a história
de Isaac e Rebeca, seguido da história de Jacó/Esaú e Raquel/Lea. O bloco se inicia no
capítulo 25.19 e se conclui no capítulo 36 onde se inicia uma nova novela, a de José,
filho de Raquel e Jacó. Esse bloco é composto de perícopes, de origem familial-
clânica, contendo questões comuns, bem como diferenças nos seus enfoques e
85 Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, volume 1.2000, p.87.
74
conflitos. Para Schwantes “entre blocos e perícopes há uma relação direta. Um não
existe sem o outro. Os blocos existem como junção de perícopes e estas constituem
blocos”86. Elas encontram-se amalgamadas.
Amalgamada, também, está a vida e a história desses personagens detentores da
aliança-promessa de Iahweh. A tradição histórica desses ancestrais nômades está
repleta de migrações em busca de sobrevivência, de casamentos ou fugindo da ameaça
de outros grupos. Encontramos nesse cenário a migração de Esaú para o sul, onde
termina residindo, em Edom-Seir, e a de Jacó para o Norte.
Estabeleceremos o nosso cenário no Norte, lugar ao qual pertence a nossa
unidade (30.14-16), numa atmosfera de Jacó com suas esposas, Lea e Raquel, que
disputam o amor e a maternidade numa sociedade na qual imperava a importância da
fertilidade e filhos. É nesse contexto que se desenvolve a necessidade de uma, até
então estéril Raquel, negociar uma noite de Jacó com Lea em troca das mandrágoras.
Todo o bloco do Gênesis 12-36 é composto de genealogias. A de Jacó teve como
protagonistas principais Lea, Raquel (esposas), Bilha e Zelfa (concubinas), que
geraram doze filhos e uma filha, que formariam as doze tribos de Israel.
A primogenitura se dá na preservação dos costumes tribais: só o casamento
endogâmico (casamento com membros de sua própria classe ou tribo, com a finalidade
de conservar sua nobreza ou sua raça) preserva a linhagem da tribo. Esse era o
casamento clanicamente apropriado. Jacó deve agir diferentemente de seu irmão Esaú,
que se “misturou” com as cananitas, para conservar a linhagem nessa novela complexa
e garantir a preservação da identidade familiar. Para isso Jacó é enviado à casa de
86 Milton Schwantes. Teologia Bíblica. São Leopoldo, s.d. mimeografado, p.17.
75
Labão, irmão de sua mãe, em Padã-Aram, na Mesopotâmia, para ali buscar uma
mulher, no meio de sua parentela, e cumprir a tradição (28.1-5).
O casamento exogâmico (entre estrangeiros), com o de Esaú, não era bem visto.
A razão dessa preservação refere-se à aversão, por parte dos israelitas, aos cultos e
culturas de outras regiões, em especial, as cananéias, consideradas não só profanas,
mas imbuídas de perversões sexuais. Esaú não seguiu a tradição e se casou com
mulheres cananitas (26.34-35).
Até este momento da história notamos que a tradição mantinha para os
ancestrais de Israel uma única esposa: Sara para Abraão e Rebeca para Isaque. Cada
uma delas cedia suas servas para seu esposo, como costume da época, para
procriarem. Mas, ao chegarmos à história de Jacó, notamos que ele não tem apenas
uma esposa, mas duas. Ele se apaixona por Raquel (Gn 29.11), e se compromete com
Labão a trabalhar sete anos para torná- la sua esposa. O casamento é consumado e, na
manhã seguinte, ao descobrir que Léa estava no lugar de Raquel, decepcionado, Jacó
queixa-se a Labão.
Labão justifica a sua ação alegando que “não se poder dar a jovem antes da
primogênita”. Elvira Moisés da Silva enfatiza em sua Tese que “Labão com essa
resposta eximiu-se de qualquer resposta que comprometa a sua posição social”87. No
processo narrativo não encontramos um diálogo entre Labão, com Lea ou Raquel,
acerca das intenções de Labão ficando subentendido que as filhas são sua propriedade
e, como tal, disponíveis para a ação e negociação de seu proprietário.
87 Elvira Moisés da Silva. Teologia, memória e poder das mulheres na tenda: Uma leitura crítica à
estruturação das teologias bíblicas a partir de Gênesis 29-30. Tese de Doutorado da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2002, p.59.
76
A artimanha de Labão rende mais sete anos de jornada de trabalho a Jacó, isto é,
se este quiser casar-se com Raquel. Labão o consola, dizendo: “Completa essa semana
nupcial com Léa e lhe darei também a outra mais nova, em troca de mais sete anos de
trabalho” (29.26). Jacó aceita e desposa Raquel, na semana seguinte, trabalhando para
Labão mais sete anos. Jacó fica furioso com esse acontecimento e, por amar Raquel,
passa a maior parte do seu tempo se dedicando a ela. Somente pouco antes de morrer,
reconhece o valor de Léa, sendo que Raquel já estava morta.
A razão, aqui, não é a de compreender, ou ao menos tentar compreender, a razão
dessa rivalidade, pois não sabemos se ela existiu devido ao contexto criado por Labão.
Mas a narrativa dessa rivalidade se costura, também, a partir da insistência de Jacó em
desposar Raquel por seu amor a ela. Esse amor provoca o descaso dele por Lea. A
partir dessa realidade entrelaçou-se a base histórica dessa rivalidade que desemboca
em mais uma disputa: a maternidade. Enquanto Raquel tem o amor de Jacó, mas não
lhe dá filhos, Lea acredita ganhar o amor de Jacó dando- lhe filhos.
“Dá-me filhos ou morrerei” (30.1). Nessa narrativa Raquel é enfática em sua
fala para Jacó. Nessa frase subentende-se o que Raquel pensa: “de que vale ser a
preferida do coração de Jacó, mas não consigo lhe dar filhos?” Infelizmente Raquel vê
a decadência desse quadro, em seu casamento, com continuidade da sua esterilidade:
ela tinha o amor de Jacó e sua irmã os filhos!
As estrutura normativa sócio-cultural e religiosa determinava que uma mulher
era valorizada quando gerava filhos. Não somente a sociedade, mas o homem
privilegiava a mulher que o abençoava com filhos! Na sociedade elas teriam seu
77
status. No casamento a valorização e a continuidade dele. Na religião a descendênc ia
perpetuaria o culto fúnebre, como veremos no capítulo três dessa pesquisa.
Por essa razão vemos que Raquel ao ver as mandrágoras que Ruben traz e o mito
que cerca a planta, inicia a negociação com Lea. Afinal, as mandrágoras não eram
facilmente encontradas (também abordaremos esse assunto no próximo capítulo), daí a
importância de negociá- las por “algo” tão importante: Jacó. Esse é o ponto crucial da
nossa unidade de estudo: o mito de que as mandrágoras beneficiam a maternidade
promovendo cura e procriação gera nova esperança em Raquel.
Quanto à questão de gênero temos uma relação de poder significativa das
mulheres. Elas são protagonistas em alguns capítulos e deixam suas marcas traçando o
enredo e o rumo na história dos personagens “patriarcais”. Elas são responsáveis por
tramas entre seus esposos e suas concubinas; seus filhos e o pai; trapaças e amarrações
de poder. São capítulos em que a tensão não diminui por ser trama de mulheres, mas
revelam a astúcia e a inteligência de como tecem a história.
A rivalidade entre Lea e Raquel serve para explicar os nomes próprios dos 12
filhos de Jacó. Os nomes devem ser entendidos, sem exceção, como nomes pessoais e
não tribais88. Todos eles estão ligados aos fatos ocorridos por essa disputa em família,
ou seja, entre as irmãs. Os significados dos nomes, do grupo formador das 12 tribos,
tem como relação à ação de Deus quanto aos fatos ocorridos relativos às situações
quando do seu nascimento.
88 Claus Westermann. Genesis 12-36: A commentary. Minneápolis: Augsburg Publishing House, 1985,
p.476
78
Finalizando este capítulo complementamos o estudo enfatizando que a trajetória
de Jacó é marcada por três episódios importantes que tecem a sua teia histórica: a
primogenitura (25.36), seu casamento com Lea (29.23) e Raquel (29.28) e as varas
(30.37-39). Esse é o pano de fundo dos principais acontecimentos do nascimento das
doze tribos e o enriquecimento de Jacó por intermédio da intervenção que as varas
exerceram para a procriação do gado, dando- lhe a tão sonhada liberdade para sair da
casa de Labão, com sua família, e seguir o seu caminho.
2 Conclusão
A exegese permite uma aproximação mais abrangente da história cultural e
religiosa de um povo. Isso nos conduziu a uma análise mais profunda que nos
possibilitou compreender o contexto histórico, social, político e religioso da
comunidade em que a unidade está inserida.
Essa unidade contém memórias de experiências humanas que, em certos
momentos da vida e da história tentaram explicar as intrigas político-sociais regidas
por um sistema religioso que domina a vida de homens, mulheres, grupos ou famílias.
A rivalidade entre Lia e Raquel. percorre todo o bloco 29-30 em vários atos. A
narrativa dessa rivalidade se costura a partir das relações matrimoniais desembocando
na necessidade de gerar a descendência de Jacó. As duas realidades constituem a base
histórica da narrativa, principalmente na unidade 30.14 que relata a negociação de
Raquel e Lea, em troca das mandrágoras por Jacó.
Raquel e Lea fazem parte de um sistema social que lhes dá o direito ao
casamento poligâmico. Mas esse mesmo sistema social, advindo da religião, não
79
inclui a esterilidade. Se em qualquer sociedade a relação poligâmica é conflituosa, e
banhada de rivalidade, em nossa unidade ela é forjada em outra rivalidade: a de Lea
ter o ventre fértil e Raquel um ventre estéril.
Não podemos deixar à margem que Lea sente-se rejeitada no amor de Jacó e é
recompensada na maternidade. Essa cadeia de acontecimentos tece a negociação das
irmãs-esposas. Se por um lado Lea tem o ventre fértil, Raquel tem o amor de Jacó e
nessa certeza negocia tranquilamente que Jacó se deite com Lea em troca das
mandrágoras. Por outro lado enquanto Raquel tem a preferência de Jacó, Lea tem a de
Iahweh.
O olhar de Iahweh vê que Lea não é amada e toma partido proporcionando no
encontro dela com Jacó, na troca pelas mandrágoras, mais uma gravidez. Resta para
Raquel apenas o retorno de Jacó para o seu leito. As mandrágoras não solucionaram a
sua esterilidade. Raquel sente-se marginalizada por Iahweh e sente inveja de sua irmã
inserindo sua serva Bila para dar filhos em seu lugar. Vemos que elas disputam o
mesmo espaço humano do amor e do respeito. A intervenção de Iahweh dá uma
paridade à situação, mas não resolve a rivalidade, pois ao abrir a madre de Raquel sua
vida se completa: ela passa a ter o status social, o respeito como esposa fértil e querida
pelo seu amado Jacó. Era o que faltava para complementar a vida conjugal,
matrimonial e social de Raquel. E Lea?
As mulheres manipulam e dominam o sagrado no controle de suas necessidades.
Por isso as experiências religiosas e místicas por elas vividas tiram-nas do contexto de
serem simples objeto de sexualidade para protagonistas do campo religioso utilizando-
se de suas crenças para atingirem o seu objetivo.
80
Exegeticamente o texto abriu espaço para o próximo capítulo em que
abordaremos sobre as mandrágoras e seus poderes, sejam eles mitológicos ou
farmacológicos. A sua inserção na história bíblica carece de uma pesquisa que
identifique o seu espaço como plantas que dominam o campo religioso e como
produtos medicinais que solucionam os problemas biológicos.
CAPÍTULO 3
SÍMBOLOS, MITOS E RELIGIÃO:
A RELIGIOSIDADE NO ANTIGO ISRAEL
Nos capítulos anteriores, fazendo uma breve revisão, tecemos o início da
história de um Israel como um conglomerado de povos seminômades, sem uma
religiosidade única, sem categorias como templo, pureza e etnia para servir como
diferencial. A análise do contexto histórico-social, do surgimento dessa nação, nos
mostrou que essas tribos existentes, anteriormente a dos filhos de Jacó, dependiam de
uma estrutura familiar normativa, conhecida como familial-clânica. Vimos que a
tecedura do quadro histórico-social iniciou-se na aliança-promessa firmada por
Iahweh com Abraão e continuada em sua genealogia por uma trama de intrigas e
disputas no espaço familial-clânico, principalmente na questão da maternidade, fato
que levou a nossa personagem Raquel a uma negociação com Lea para obter as
mandrágoras.
Nesse contexto de busca de maternidade e de centralidade uterina para compor a
genealogia da aliança-promessa é que centralizamos este capítulo na busca de Raquel
82
pela cura de sua esterilidade na mitológica e lendária mandrágora, conhecida por seus
poderes afrodisíacos, e por sua potencialidade contra a esterilidade, em seu desejo de
ter e dar filhos a Jacó, como sua irmã Lea até aquele momento bem o fez!
Nesse capítulo trabalharemos o tema da nossa pesquisa: as mandrágoras. O pano
de fundo é o diálogo negociante de Raquel e Lea quanto às mandrágoras encontradas
por Ruben. Essa negociação, entre as duas irmãs-esposas de Jacó, fortalece o mito de
que desde a Antiguidade as mandrágoras eram conhecidas pelo seu poder afrodisíaco
e de fertilidade. Sua importância é evidenciada no diálogo quando Raquel oferece uma
noite para Lea, com Jacó, em troca das mandrágoras, que na época não eram
consideradas idolatria.
Evidenciaremos, aqui, que a base religiosa dos primórdios era composta de
símbolos, amuletos e plantas que continham propriedades e substâncias que eram
utilizadas para fins medicinais, cultuais e farmacológicos. Dentre essas plantas
algumas eram mais destacadas: quanto mais propriedades e finalidades continham,
maior quantidade de mitos e lendas as cercavam. Esse é o caso da Mandrágora,
cercada de mitos devido ao formato de sua raiz bífida, parece-se com figura de um
corpo humano, com braços e pernas. Além de ser uma planta cercada de mitos ela
contém propriedades farmacológicas que atuam como afrodisíaco entre outros.
A crença na sua eficácia como planta afrodisíaca vai muito de encontro à forma
de sua raiz. Foi muito utilizada até a Idade Média em filtros de amor e em soníferos.
No Antigo Testamento além do relato da sua utilização por Raquel, encontramo-la em
Cantares, onde se relata a propriedade de seu perfume e frutos.
83
É importante salientar que na Antiguidade os sistemas religiosos não detinham
uma religiosidade única ou monogâmica, mas sua religiosidade e fé eram expressas e
vivenciadas em seus mitos. Sendo assim, abordaremos aqui a natureza dentro das
concepções e práticas religiosas míticas da nossa unidade (30.14-16), expressa na
mitológica mandrágora e seus poderes afrodisíacos e especiais. Sua importância e
utilização levam-na a ser citada na Bíblia em dois de seus livros: Gênesis (30.14) e
Cantares (7.13).
Primeiramente abordaremos o mito e suas características para que o/a leitor/a
compreenda o mito como um mecanismo propulsor e revelador da religiosidade no
tempo dos primórdios e nas culturas primitivas. Depois falaremos sobre a religião e
seu significado e conteúdo mítico-religioso da época. Seguiremos no próximo
momento com as mandrágoras abordando questões como: o que a torna tão
importante? Suas propriedades e substâncias são afrodisíacas e realmente potentes ao
ponto de curar a esterilidade como a de Raquel?
Esse estudo irá nos ajudar a esclarecer a trama que nos levará, de certo modo,
não somente a conhecer um pouco mais sobre a herança e identidade coletiva da
ancestralidade desse povo, mas, também a compreendermos a relevância das
mandrágoras e seu papel farmacológico e religioso em nossa unidade.
1 Mito
A palavra grega mythos, da qual deriva a palavra portuguesa “mito”, significava
originalmente “palavra”, “fábula” ou “história”. Foi a partir do trabalho do escritor
grego Heródoto no século IV a.C., em sua história da guerra entre os gregos e os
persas que o conceito de fato histórico se tornou estabelecida no antigo pensamento
84
grego. Em oposição ao logos (palavra da verdade), mythos passou a significar
“fábula”. “Dessa época em diante reconheceu-se que logos sempre tem um autor
identificável, o qual nas tradições judaica, cristã e islâmica pode ser o próprio Deus;
ao passo que mythos chega até nós anonimamente, de alguma fonte remota e de um
tempo indeterminado”.89
Os mitos estão presentes em todas as culturas, como relatos ou narrativas das
origens. Apesar de ser um conceito não definido de maneira precisa, por seus
estudiosos, ele constitui uma realidade antropológica não limitada apenas a uma
explicação sobre as origens do homem e do mundo, mas ele traduz, entende e
interpreta, em símbolos, ricos de significados, a sua existência como um povo, ou
civilização e a do cosmos.
Esses símbolos foram incorporados e transmitidos, de maneira peculiar, em cada
sociedade, e sua interpretação nos chega em forma de relatos ou narrativas. São
histórias sobre o nascimento dos deuses (teogonias), a criação do mundo
(cosmogonias) e o destino do homem após a morte (escatologia). Esses são
representados por valores e símbolos que orientam e direcionam, de forma mítica, as
sociedades arcaicas sob dois pontos fundamentais: compreender a essência dos
fenômenos religiosos e decifrar e apresentar o seu contexto histórico.
Narrativas míticas ou histórias folclóricas “viajam” facilmente de um grupo de
povos para outro. À medida que os mitos são contados e recontados podem ter o seu
processo histórico alterado, podendo esse processo ocorrer até mesmo dentro do
próprio grupo. Muitas vezes é impossível descobrir o local de origem de uma história
89 Roy Willis (Coordenador). Mitologias: Deuses, heróis e xamãs nas tradições e lendas de todo o
mundo. Tradução de Thais Costa e Luiz Roberto M. Gonçalves, São Paulo: Publifolha, 2007, p.10.
85
ou objeto mítico amplamente propagado como é o caso das mandrágoras. As lendas
ou mitos que a cercam correram mundo: Inglaterra, Grécia, Egito, França e foi
amplamente propagada e utilizada na Idade Média.
O fato de que fábulas arcaicas podem aparentemente se relacionar de forma
direta com o modo como a sociedade está organizada no presente, não significa que os
mitos não possam conter uma variedade de outros significados, talvez igualmente ou
mais importantes90.
Se o mito foi conceituado, durante séculos, como fábula, lenda, ficção e
invenção, hoje, nos dicionários atuais essa fala tornou-se secundária, pois a ele deu-se
a merecida importância , descrita em sua atual definição: “relato fantástico de tradição
oral, protagonizado por seres que encarnam, sob forma simbólica, as forças da
natureza e os aspectos gerais da condição humana [...]”91.
Portanto, vemos que o mito, hoje, é um relato dos acontecimentos ocorridos nos
tempos primordiais, e não, somente, uma forma comum de expressão lendária ou
mítica, mas algo que reflete nos seus símbolos e imagens a maneira de expressar e
refletir uma realidade verdadeira da experiência humana.
Na última metade do século XX, segundo Roy Willis, nenhum acadêmico fez
mais pelo entendimento profundo do mito do que o antropólogo francês Claude Lévi-
Strauss. Na análise de Levi-Strauss, um mito tanto suscita questões como as responde.
Em sua análise de mais de 800 mitos ele mostrou que questões colocadas pelos mitos
são absorvidas por outros mitos em um processo de entendimento que
90 Roy Willis (Coordenador). Mitologias: Deuses, heróis e xamãs nas tradições e lendas de todo o
mundo. p.13. 91 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 2.0, Editora Objetiva Ltda, 2007.
86
incessantemente atravessa e reatravessa limites geográficos e tribais92. Vejamos a
definição que é dada ao mito segundo outros estudiosos:
Para Leonardo Boff,
(....) O mito, porém, será vivido e vestido como material
representativo de cada época. De tempos em tempos,
morreram os mitos. Mas a realidade que os fez nascer está
sempre aí a desafiar os homens, buscando irromper na
consciência do espírito. Por isso, nascem de novo outros
mitos, que por sua vez serão outras tantas tentativas de
apreender o inapreenssível, de formular o informuláve l, e
deixar falar o que é de per si, indizível93.
Segundo Mircea Eliade,
o mito é uma realidade cultural extremamente complexa,
que pode ser abordada e interpretada em perspectivas
múltiplas e complementares....o mito conta uma história
sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no
tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos...o mito
conta graças aos feitos dos seres sobrenaturais, uma
realidade que passou a existir, quer seja uma realidade
tetal, o Cosmos, quer apenas um fragmento, uma ilha,
uma espécie vegetal, um comportamento humano, é
sempre portanto uma narração de uma criação, descreve-
se como uma coisa foi produzida, como começou a
existir.94
92 Roy Willis (Coordenador). Mitologias: Deuses, heróis e xamãs nas tradições e lendas de todo o
mundo. p.13. 93 Leonardo Boof. O Evangelho do Cristo Cosmico: a realidade de um mito, o mito de uma realidade.
Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 1971, 121p. P. 62-63. 94 Mircea Eliade. Aspectos do Mito. Portugal: Edições 70, 2000, 176p. P.12-13.
87
Em contrapartida Joseph Campbell argumenta que “a riqueza dos mitos não está
em elucidar ou revelar algum tipo de significado para a vida, mas o de ser um registro
simbólico da própria experiência de estar vivo. O mito capta a vida no seu eterno
fluir”.95
Outro entendimento do mito amplamente adotado, hoje, pelos estudiosos do
Antigo Testamento, parece ter um potencial mais promissor. John F. Priest em seu
artigo “Mito e Sonho na Escritura Hebraica”96 aborda essa concepção. Segundo ele
esse entendimento surge inicialmente das investigações sobre a natureza do mito e do
ritual no antigo Oriente Próximo, pois, ainda que os detalhes variem de cultura para
cultura, o propósito e a função do mito, ali, eram relativamente uniformes. Eles
visavam sustentar a vida humana e as instituições em um mundo que o homem não
controlava nem compreendia totalmente. Ele afirma que os mitos se referiam a “certos
problemas práticos e urgentes da vida diária”, como as atividades ordinárias de caça,
pesca, agricultura, paternidade e casamento — tudo de valor que se aglutinava na
continuidade da unidade social — davam a impressão de envolver forças além do
controle, que precisariam ser confrontadas e controladas para a preservação dos
homens. Essas necessidades recorrentes são comuns a todos os homens, e o mito, com
seu ritual associado, buscava atender a essas necessidades.
É nessa definição que encontramos o nosso símbolo, as mandrágoras, como
parte desses valores sociais da vida diária, em três pontos: na agricultura, na
composição e utilização farmacológica e na sexualidade. Essa compreensão de que o
mito expressa o mundo e a realidade humana, em cuja essência encontra-se,
95 Joseph Campbell. O Poder do Mito. 21ª. Ed. São Paulo: Editora Palas Athena, 2003, 250p. 96 John F. Priest. Mito e sonho na escritura hebraica. In: Joseph Camplbell (organizador). Mitos, Sonhos
e Religião: nas artes, filosofia e na vida cotidiana. Tradução de Angela Lobo de Andrade e Bali Lobo de Andrade, Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 51
88
efetivamente, uma representação coletiva, seja pela representatividade do social, do
sagrado ou por intermédio dos símbolos que ela detém, veio até nós pelos relatos de
várias gerações.
Os elementos sobrenaturais, pertencentes ao mito, seja por forma animal,
vegetal, um monte, uma pedra ou um fragmento, existem ou co-existem, como objeto
sagrado, determinante de algo que “se não era começa a ser” como explicação do
mundo ou da história.
Se o mito pertence ou não ao conteúdo do consciente coletivo, como determinou
Jung, sabemos ao certo que nele esses conteúdos remontam a uma tradição cuja idade
é impossível determinar. O mito pertence a um mundo do passado primitivo, cujas
exigências espirituais são semelhantes às que se observam entre as culturas primitivas
ainda existentes. Ele pode conter significados e conotações diferentes, de acordo com
cada indivíduo e seu passado histórico.
Em síntese os mitos são uma linguagem imagística dos primórdios seja por meio
de um hábito, de costumes ou de uma gesta. Ele possui características socioculturais,
pessoais, antropológicas ou genéticas registradas na influência de seus símbolos,
sendo representado e expressado, de forma individual, nas diferentes culturas.
A Mandrágora expressa certa influência na antiguidade e tem o seu lugar como
símbolo mitológico pela forma de sua raiz em forma humana . Isso a fortaleceu como
mito nas diferentes culturas e povos da antiguidade. Suas propriedades e utilização
medicamentosa lhe atribuíram fama e a sua utilização por séculos afora, lhe
garantiram influências sócio-culturais e religiosas.
89
1.1 Mandrágoras: mito ou lenda?
Embora o mito e a lenda estejam relacionados a acontecimentos de um passado
distante e fabuloso, ligados acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais encontradas
em culturas com antigas tradições literárias como China, Japão, Índia, Mesopotâmia,
Egito, Grécia e Roma, ambas tratam: uma de contar, a outra de explicar. Seu caráter
fabuloso, folclórico e sensacionalista, com uma mistura de fatos reais com
imaginários, dá- lhes o encantamento. Muitas delas foram traduzidas e incorporadas às
culturas. Dentre elas podemos destacar “As lendas do Rei Arthur e dos Cavaleiros da
Távola Redonda” e “Robin Hood”.
Os mitos, por sua vez, como já estudamos, constituem uma realidade
antropológica não limitada apenas a uma explicação sobre as origens do homem e do
mundo, mas ele traduz, entende e interpreta, em símbolos, ricos de significados, a sua
existência como um povo, ou civilização e a do cosmos. Todos estes componentes são
misturados a fatos reais, características humanas e pessoas que realmente existiram.
Alguns acontecimentos históricos podem se tornar mitos, desde que as pessoas de
determinada cultura agreguem uma simbologia que tornem o fato relevante para as
suas vidas.
A essência e a construção do mito jamais se perdem. Embora se modifique e
desenvolva incessantemente, o mito de alguma forma jamais perde contato com suas
raízes na experiência e nas interconexões entre todos os aspectos da vida, sejam elas
visíveis ou invisíveis, terrestres ou celestiais, humanas ou animais, vegetais e
minerais. Assim, o mito registra e transmite o significado que lhe é próprio e lhe coroa
de um senso profundo.
90
Independente de sua posição na história o mito continua a exercer atração e ter
um solo fértil entre os povos. Todas as culturas possuem seus mitos. Alguns assuntos,
como a criação do mundo são bases para vários mitos diferentes aos povos. Existe em
diversas culturas um conjunto de associações simbólicas em elementos da natureza e
suas funcionalidades. O reino vegetal também inspirou mitos por ter suas raízes no
mundo subterrâneo e suas hastes ou galhos elevando-se para o céu. Assim temos a
mandrágora cercada por ambos: mitos e lendas.
Na área das lendas diz-se que a planta gritava ao ser arrancada da terra e seus
gritos ensurdeciam os homens que a colhiam, daí se empregarem cães para arrancar a
mandrágora. Por causa desses gritos ela é chamada na lenda inglesa de homem-
plantado por sua raiz tuberosa e bífida lembrar a figura de um ser humano 97.
Figura 1: Mandrágora: pintura do séc. XVII que retrata a lenda
97 Gil Martins Felipe. No rastro de Afrodite: Plantas afrodisíacas e culinárias. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004, p. 230.
91
Figura 2: Medicina Antiqua: Libri Quattuor Medicinae, 13th Century.
Codex Vindobonensis 93. Facsimile. (Washington University, Becker Library)
Desde a antiguidade acreditava-se que o poder da raiz das plantas,
principalmente a da mandrágora, era proveniente do poder divino. O aspecto de sua
raiz antropomórfica, que se assemelha a um corpo humano, juntamente com um som
parecido com um grito ao ser arrancada da terra, fazia com que as pessoas gerassem a
crença de que sua constituição era da mesma terra com que Deus modelara o corpo de
Adão.
92
Diz outra lenda que é difícil obter a mandrágora, pois ela se esconde das mãos e
dos olhos da pessoa que tenta apanhá- la. Para que ela seja apanhada é preciso regá- la
com urina de mulher que está menstruando. Mesmo assim ela não pode ser
simplesmente arrancada. É preciso cavar o solo ao redor da planta e amarrar com uma
corda a planta a um cachorro e deixar o local imediatamente. O cachorro tentando se
libertar acaba por arrancar a raiz, mas morre imediatamente em lugar do seu dono 98.
Temos, assim, lendas de diferentes culturas com traços de uma mesma história.
O mito da mandrágora de ser uma planta afrodisíaca, parte do formato de sua
raiz e da composição de suas substâncias existentes, principalmente nela. Amuletos de
mandrágoras eram usados nas casas para dar sorte e para curar esterilidade. Era
conhecida dos caldeus e hebreus que usavam suas propriedades toxicas para fins
criminosos.99 Os antigos hebreus acreditavam que o suco das raízes e dos frutos tinha
o poder de provocar excitação sexual e facilitar a concepção.
As categorias – mito, conto popular e lenda – segundo os estudiosos se
sobrepõem e se fundem. Embora o nosso estudo sobre a mandrágora se concentre em
abordar a sua existência dentro da religiosidade de Raquel e Lea não podemos nos
furtar de que ela tomou outros espaços dentro de cada cultura e religiosidade como
planta mitológica, mas suas lendas correm o mundo e, talvez, à nossa época, por ser
pouco conhecida, seja tida como conto popular.
Portanto, se a mandrágora entrou na história de Raquel e Lea como lenda ou
como mito em nossa unidade histórica no Gênesis, ou mesmo em Cantares, o ponto
98 Gil Martins Felipe. No rastro de Afrodite: Plantas afrodisíacas e culinárias. p. 230. 99 Gil Martins Felipe. No rastro de Afrodite: Plantas afrodisíacas e culinárias. p. 230.
93
comum existente entre elas é que ela foi citada pelo seu poder afrodisíaco e
estimulante:
Gênesis 30.14: “Foi Rúben nos dias da ceifa do trigo, e achou
mandrágoras no campo, e trouxe-as a Lia, sua mãe. Então,
disse Raquel a Lia: Dá-me das mandrágoras de teu filho.”
Cântico dos Cânticos 7. 13: “As mandrágoras dão cheiro, e às
nossas portas há toda sorte de excelentes frutos, novos e
velhos; ó amado meu eu os guardarei para ti.”
Na antiguidade a educação e a religião eram corroboradas pela mitologia. O
mito cresce e toma espaço fundamentando ou explicando, por vezes, a vida, o
sobrenatural e o espiritual. Dessa maneira gerações beberam da fonte mítica, como é o
caso de Raquel, Lea que a repassa a seu filho Ruben que, conforme consta em nossa
unidade de estudo, detinha conhecimento dos mitos e dos poderes que cercavam as
mandrágoras e as trouxe para sua mãe Léa. Talvez Lea fizesse uso constante das suas
propriedades e o momento era oportuno para obtê- las já que Jacó estava passando
todo o seu tempo com Raquel. O que nos leva a essa conclusão é a fala de Lea ao
contestar com Raquel, quando esta lhe pede as mandrágoras, dizendo: “Ainda é pouco
que me tomes o marido, queres agora tomar as mandrágoras de meu filho?” (30.15)
Assim, temos na família de Raquel e Lea o conhecimento das propriedades da
mandrágora deixando-nos perceber que o mito que a cercava era conhecido das irmãs-
esposas de Jacó. Num tempo em que a religião era familial e individual, e que o
monoteísmo era ainda inexistente, temos uma riqueza de valores que compreendiam e
tornava a religião uma cosmogonia100.
100 A palavra cosmogonia vem do grego ??sµ?????a; ??sµ?? “universo” e ????a “nascimento”. É o
termo que abrange todas as teorias das origens do universo, sendo elas religiosas, científicas e
94
2. Religião
A religião do latim religio, cognato do termo “religare” (ação de ligar, apertar,
atar que se refere a laços que unam o homem à divindade), é como um conjunto de
relações teóricas e práticas estabelecidas entre os homens e um poder superior, à qual
se rende culto, seja individual ou coletivo, por seu caráter divino e sagrado. Assim
“religião constitui um corpo organizado de crenças que ultrapassam a realidade da
ordem natural e que tem por objeto o sagrado ou sobrenatural, sobre o qual elabora
sentimentos, pensamentos e ações”101. Podemos assim dizer que a religião é a plena
ligação do ser humano ao divino ou às divindades.
O dicionário Houaiss classifica o termo religião da seguinte maneira: “culto
prestado a uma divindade; crença na existência de um ente supremo como causa, fim
ou lei universal a manifestação desse tipo de crença por meio de doutrinas e rituais
próprios”102. Portanto, a religião liga a humanidade a divindades ou ao divino, sendo o
caminho que esta utiliza para chegar ao sagrado.
Sendo um corpo organizado de crenças, embora variem muito os conceitos sobre
seu conteúdo e natureza da sua experiência, esta abrange desde as religiões dos povos
ditos primitivos uma característica comum: o reconhecimento do sagrado (definição
do filósofo e teólogo alemão Rudolf Otto) e a dependência do homem de poderes
supramundanos (definição do teólogo alemão Friedrich Schleiermarcher).103
mitológicas. Ela abrange a formação do mundo através dos mitos, antes de surgirem os primeiros filósofos para questionarem a origem do homem.
101 Coleção Pensamentos e Textos de Sabedoria. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001, 144p. p.10. 102 Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa . Versão 2.0, Editora Objetiva Ltda, 2007. 103 Coleção Pensamentos e Textos de Sabedoria. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001, 144p. p.10.
95
A idéia da existência de ser ou seres superiores que criaram e controlam o
cosmos e a vida humana estabelece de certa forma, uma submissão dos humanos a
esses poderes, e estes devem lhe prestar tributos e lhe serem subservientes, como
forma de submissão à essa(s) divindade(s).
Mircea Eliade, historiador das religiões, denominou a essa manifestação do
sagrado de “hierofania”, ou seja, algo sagrado que é mostrado ao homem, seja essa
manifestação por uma pedra, árvore ou pela encarnação de Deus em Jesus Cristo,
trata-se sempre de uma hierofania, de um ato misterioso que revela algo
completamente diferente da realidade do mundo natural, profano. 104
O conjunto mitológico sobre os mitos de um ou mais deuses, sobre a criação do
mundo e a criação do homem formam o conjunto de pensamentos de uma coletividade
religiosa. Eles tornam a religião uma instituição reguladora para a convivência com o
sagrado e as divindades. Essas regras surgem sob a forma de cerimônias ritualísticas
refletindo a tradição e os costumes. As cerimônias religiosas também são conhecidas
como ritos e seguem um padrão de ações e determinadas regras ao qual denominamos
de ritual.
A cada mito corresponde um rito. O culto com suas cerimônias rituais tornam-se
distintos e classificam a forma religiosa demonstrada por meio de suas tradições e
costumes. Os rituais determinam na religião a forma de culto e encarregam-se do
gesto, da ação, da prática e do fazer o símbolo se revestir de magia e transcender o
sagrado.
104 Coleção Pensamentos e Textos de Sabedoria. 2001, p.11.
96
Os rituais encaminham o ser humano ao passado, às origens. Esse retorno às
origens, por intermédio do rito, leva o indivíduo a readquirir as forças que jorraram de
suas raízes, repetindo o que os deuses fizeram nas origens. Segundo Eliade o mito é
expresso pelo rito reatualizando as coisas, seja por meio de um objeto, animal ou
planta, readquirindo sobre elas um poder mágico, seja litúrgico ou ritualístico fazendo
reviver uma realidade primeva, contida no mito.
Nas antigas civilizações o mito exalta, codifica e exprime a crença oferecendo
regras práticas para a orientação do indivíduo. Assim o mito expressa uma
religiosidade fazendo com que o indivíduo a manifeste de forma ritualística.
Embebida na fonte do sobrenatural e da transcendência de suas origens o ser humano
se liga ao divino ou mostra-se dependente de forças invisíveis, tidas como
sobrenaturais, utilizando algumas vezes objetos naturais.
Para Eliade a História das Religiões é constituída por um número considerável
de manifestações do sagrado (hierofanias). Para ele, o homem das sociedades arcaicas,
diferente do homem moderno, tem uma tendência a viver o máximo possível no
sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Para estes o Cosmos, na sua
totalidade, pode tornar-se uma hierofania.
A hierofania, aparecimento ou manifestação reveladora do sagrado, torna coisas
integrantes, do nosso mundo natural, em sagradas. A partir da mais elementar
hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado numa pedra ou numa árvore –
como encontramos em várias narrativas bíblicas, e até a hierofania suprema, que é,
para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de
continuidade segundo Eliade.
97
Para o indivíduo moderno é difícil aceitar certas manifestações do sagrado
quando estas são manifestadas em árvores ou pedras, por exemplo. Elas não são
adoradas como árvore ou pedra, mas porque são hierofanias, porque “revelam”,
segundo Eliade, algo que não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado. Os indivíduos
das sociedades arcaicas viviam o máximo possível no sagrado, ou muito perto dos
objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para os “primitivos”, como
para o indivíduo das sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em
última análise, à realidade por excelência.
Seguindo esse parâmetro vemos que há no conjunto de narrativas bíblicas
hierofanias manifestas no simbólico, tanto na religiosidade que havia como na que
estava surgindo por meio de Iahweh, uma única divindade. Em nossa unidade a
mandrágora se revela como o símbolo que detém poderes e este passa a ser negociado
pelas irmãs que detinham o conhecimento da importância em sua tradição mítico-
religiosa como planta propulsora de fertilidade, conhecido por seu mito de “planta do
amor e da fertilidade”. A aura mística que reveste essa planta mostra que o mito que a
cerca já era do conhecimento de Ruben, uma simples criança, que detinha
conhecimento de sua serventia por intermédio sua mãe, Lea.
2.1 Mito e religião
Aristóteles tem a seguinte expressão sobre o mito. Diz o filósofo: “também o
amante do mito é de algum modo filósofico.” Eliade, aborda em seu livro “O Sagrado
e o Profano”105, que embora seja um historiador das religiões, propõe-se a não
escrever somente sob a perspecitiva da ciência que cultiva, defendendo que “o homem
105 Mircea Eliade. O sagrado e o profano. Tradução Rogério Fernander, São Paulo: Martins Fontes,
1999.
98
das sociedades tradicionais é, por assim dizer, um homo religiosus, mas seu
comportamento enquadra-se no comportamento geral do homem e, por conseguinte,
interessa à antropologia filosófica, à fenomenologia, à psicologia”106.
Eliade defende que a percepção do tempo como homogêneo, linear, e ir repetível
é uma forma moderna de não-religião da humanidade. O homem arcaico, ou a
humanidade religiosa (homo religiosus), em comparação, percebe o tempo como
heterogênio, isto é, divide-o em tempo profano (linear), e tempo sagrado (ciclico e re-
atualizável). Por meio de mitos e rituais que permitem o acesso a este tempo sagrado,
a humanidade religiosa proteje-se contra o 'terror da historia' (uma condição de
impotência diante dos dados historicos registrados no tempo, uma forma de existência
aflitiva).
O mito está relacionado com questões de linguagem e também da vida social do
homem, uma vez que a narração dos mitos é própria de uma comunidade e de uma
tradição comum. Isso não significa que a religião, tampouco o mito, conte uma
história falsa, mas que ambos descrevem uma realidade que transcende o senso
comum e a razão humana e que, portanto, não cabe em meros conceitos analíticos.
Não importa do ponto de vista do estudo da mitologia e da religião que Deus não
tenha criado o ser humano a partir do barro ou outras fontes históricas descritas pela
mitologia, pois Religião e mito diferem, não quanto à verdade ou falsidade daquilo
que narram, mas quanto ao tipo de mensagem que transmitem.
Seja rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de certos
rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os heróis fizeram “nas
106 Mircea Eliade. O sagrado e o profano.1999, p. 20.
99
origens”, porque conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. E o
rito pelo qual se exprime (o mito) reatualiza àquilo que é ritualizado.
Essa reatualização ritualística dos mitos eternizou e elevou algumas fontes de
origem mítica para algumas religiões mantendo-as como parte dela ou como fonte e
instrumento ritualístico por intermédio da utilização ou cultuação a objetos
considerados com poderes sobrenaturais. Para o homem religioso, das sociedades
primitivas, os mitos constituíam sua “história sagrada”, ele não deve esquecê- los:
reatualizando os mitos, o homem religioso aproximava-se de seus deuses e participava
da santidade.
A religião dos primórdios mantém um sistema de crenças e de práticas cultuais e
culturais que estabelece relação especial entre um indivíduo, ou um grupo de
indivíduos e um animal, ou um vegetal, algum objeto material, um fenômeno natural e
a eles rendiam algum tipo de culto, respeito e ligação transcendental. Há, também, o
politeísmo, que para alguns é uma forma primitiva de religião107.
A religião dos tempos primevos não obedecia necessariamente a dois requisitos:
“além de não dar, à adoração dos homens, um só Deus, os seus deuses não aceitavam
indistintamente a adoração de todos e quaisquer homens”108. Assim, a religião, por
vezes, era puramente familiar: cada um dos seus deuses não podia ser adorado por
mais de uma família. Nesse espaço, a religião não se manifestava nos templos, mas
em casa: “cada família possuía os seus deuses, cada deus protegia uma só casa e uma
só família”.
107 Coleção Pensamentos e Textos de Sabedoria. 2001, p.13. 108 Fustel de Coulages, A Cidade Antiga. Tradução Jean Melville, São Paulo: Editora Martin Claret,
432pg, 2002, pg. 36.
100
Essa particularidade é descrita no Gênesis 31.19 quando da saída de Jacó com
sua família da casa de Labão e Raquel rouba o “terafim” (deuses do lar ou doméstico)
de seu pai. A importância desse ato gera a ida de Labão ao encontro deles para
recuperar o terafim, afinal ele é o guardião dessa família, de suas terras e nelas
derrama a sua benevolência abençoando-a para uma boa produção e uma boa colheita.
São os terafins que guardam a casa dos “maus espíritos” e guia na outra vida os
mortos daquela família.
O universo “evolui”. À medida que o homem passa a organizar sua existência
numa base racional a religião primitiva dá espaço para novas expressões religiosas:
politeístas, panteístas, deístas e monoteístas. Passa da religião dos antepassados, da
religiosidade individual e familial, para uma religiosidade universal. O monoteísmo
desagrega, ou ao menos tenta desarraigar-se do primitivo animismo, mas toda religião
pressupõe alguma crença básica, seja ela relacionada com a sobrevivência depois da
morte ou com o mundo sobrenatural que a mantém segura no mundo natural.
Essas crenças podem ser de tipo mitológico – relatos simbólicos sobre a origem
dos deuses, do mundo ou do próprio povo; ou dogmática – conceitos transmitidos por
revelação da divindade, que dá origem à religião revelada e que são recolhidos nas
escrituras sagradas em termos simbólicos, mas também conceituais109.
A religião e o mito se mantém interligados, seja por intermédio do sobrenatural,
da hierofania, de símbolos ou dos ritos. Mitos, cerimônias, ritos e superstições foram
preservados em escritos. Estes foram repassados por gerações e deram continuidade às
cerimônias religiosas, moldaram a concepção e mantiveram a sua continuidade de sua
crença em determinadas culturas. A crença nos poderes que circundam céus e terra
109 Coleção Pensamentos e Textos de Sabedoria. 2001, p.13.
101
elevou o ser humano ao reconhecimento e temor dos poderes da natureza, ventos,
chuvas, tormentas e tempestades. Os mistérios da vida e da morte levam-no a se ligar
e respeitar cada vez mais ao sobrenatural para sua sobrevivência no mundo natural.
Dessa forma a religião se mantém ligada ao mito, às hierofanias, como garantia de
sobrevivência seja na vida ou pós-morte.
2.1 Mito, religião e sociedade
Como forma de comunicação humana, o mito está relacionado com questões de
linguagem e também com a vida social do homem, uma vez que a narração dos mitos
é própria de uma comunidade e de uma tradição comum.
Essas informações, provenientes de tempos antigos, têm a ver com os temas que
sempre deram sustentação à vida humana, construíram civilizações e formaram
religiões através dos séculos. Eles relatam os profundos problemas interiores, com os
profundos mistérios e limiares da nossa travessia pela vida.
A diversidade de fenômenos religiosos, com o qual nos deparamos hoje, nos
coloca diante de vários questionamentos, e dificuldades, para a análise desses
fenômenos. Ela exige conhecimento e busca de seus fundamentos com o passado.
Hoje, cientistas sociais, debatem se o pluralismo de crenças e ritos desgasta a religião,
ou destroem a fé nos deuses, semeando ceticismo e dúvida.
Os primórdios através dos mitos, da superstição e da magia foram a matriz do
homo religiosus. Com o tempo, os relatos míticos passaram a fazer parte das crenças e
religiões, influenciando, ainda hoje, o modo como os povos vivem e compreendem o
mundo, a vida, a procriação e a morte.
102
Em geral, as sociedades antigas dispunham de uma quantidade significativa de
mitos que, em diferentes graus, influenciavam a realidade cultural dos povos e de uma
sociedade. Esses mitos, segundo Eliade, narravam uma criação, descrevendo como
algo foi produzido ou quando começou a existir. Esse mistério associa-se ao do
nascimento, da procriação, da continuidade e preservação da família (essencial na
maioria das culturas).
Durante décadas, Joseph Campbell pesquisou os motivos comuns de inúmeras
lendas e religiões de sociedades antigas e modernas, incluindo gregos, romanos,
egípcios, asiáticos e nórdicos. Campbell apontou a existência de dois atributos: em
primeiro lugar, o mito envolve uma questão existencial sobre a morte, o nascimento
ou criação do mundo; em segundo lugar, o mito contém enigmas suscitados por
contradições insuperáveis: criação e destruição, vida e morte, deuses e homens 110.
Uma característica importante dos mitos é que, além de ser um relato simbólico
ligado à dimensão do pensamento humano, que transcende a esfera da vida cotidiana
na busca de uma explicação sobre o significado da vida, são as diferenças entre eles.
Cada povo constrói seus mitos a partir de sua visão de mundo. Um povo agrícola, por
exemplo, terá suas divindades ligadas às forças da natureza e às etapas do processo
produtivo. Esta mitologia procura estabelecer uma ligação entre o homem e o mundo natural,
reforçando o conceito interativo, onde o homem é visto como parte desse mundo, ao qual
deve respeito e um certo grau de submissão para garantir a própria sobrevivência.
Há certos fundamentos religiosos preservados que regem um povo, uma
comunidade ou uma sociedade. Em nossa unidade de pesquisa vemos que a
comunidade era formada por famílias clânicas. A religião não se manifestava nos
110 Joseph Campbell. O poder do mito. São Paulo: Editora Palas Athenas 2003, p.
103
templos, mas em casa: “cada família possuía os seus deuses, cada deus protegia uma
só casa e uma só família”. Cada família possuía os seus deuses, conhecidos como
deuses domésticos ou terafins (Gn 31.19).
A religião determinava os comportamentos sociais e familiares. Uma delas dizia
que a família não deveria extinguir-se111. Nela eram prescritas as leis para o
casamento, a esterilidade, a viuvez (com ou sem filhos), os filhos (do concubinato, os
legítimos e os primogênitos), o direito de propriedade, o direito ao culto, etc.112 O
papel do pai era o de pontífice, do primeiro junto ao lar, executor dos atos
religiosos113. Às mulheres, um dos fatores que determinavam o seu espaço junto à
sociedade e à vida social era medido pela quantidade de filhos.
Aqui chegamos num ponto crucial da nossa unidade em que o mito, a religião e
a sociedade se encontram num mesmo caminho: a história de Raquel e as
mandrágoras. Nossa unidade está concentrada na rivalidade das irmãs na questão de
maternidade, que leva Raquel a negociar as mandrágo ras de Ruben pelo poder que
elas detêm para que fosse dado um fim à esterilidade de Raquel.
Esse é o fator que leva Raquel a questionar Jacó da atitude de Iahweh para com
ela, o de manter a sua madre fechada. Raquel diz: “Dá-me filhos senão eu morrerei”
(30.1). Segundo a Torá, o sofrimento de uma mulher estéril é o de como se ela não
existisse dentro de uma sociedade.114 A esterilidade de Raquel a leva a negociar com
Lea, em troca das mandrágoras de Rúben, uma noite com Jacó. Raquel, de
111 Fustel de Coulages. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.56. 112 Fustel de Coulages. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.92. 113 Fustel de Coulages. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.93. 114 Roberto Luiz Guttmann. Torá, a lei de Moisés. São Paulo: Editora Sêfer, 2001, p. 83 (nota de rodapé)
104
temperamento hábil e raciocínio rápido, investe tempo e fé numa planta: a mandrágora
para ser curada de sua esterilidade.
Hoje, a medicina e a ciência evoluíram quanto a esse problema que abrange
certa quantia de mulheres. Ainda nos é valido, nos tempos atuais, a utilização da
medicina natural, advinda do conhecimento e utilização das plantas e de sua aplicação
para cada tipo de caso. Em nossa pesquisa vemos que Raquel busca a cura para sua
esterilidade na mandrágora, mas não a obtém.
Podemos ligar a mandrágora ao mito e poder que ela exerce, como veremos a
seguir, mas não à um fa tor religioso, pois havia deuses da fertilidade como a deusa
Inana (deusa da Suméria e da Babilônia) e Anahita (deusa persa). Raquel questionou
Jacó sobre o porquê de não ter sua madre aberta pelo Deus de Jacó. Em seu desespero
vemos uma mulher que lamenta sua condição: tem o amor de Jacó, mas não consegue
lhe dar filhos. Aquém, temos sua irmã Lea que é também esposa de Jacó e lhe agracia
com filhos.
A sociedade da época é cruel para com as esposas estéreis. As leis agraciam o
homem contemplado com a esterilidade de sua esposa – ele pode rejeitá- la –, afinal a
religião doméstica era fundamentada e transmitida de varão em varão. Só a
descendência em linha masculina estabelecia a ligação religiosa. Esta passava de pai
para filho para dar continuidade ao culto.
O grande interesse da vida humana está em continuar a descendência para com
esta continuar o culto. Cada família possui uma religião e seus deuses valioso
repositório pelo qual deve olhar. A maior desgraça seria a interrupção de sua
105
linhagem115. Coulages menciona que o celibato deveria ser considerado como
impiedade grave e desgraça: impiedade porque o solteiro põe em risco a felicidade de
sua família quanto à linhagem. A família cairia em desgraça caso ele se mantivesse
solteiro porque sem filhos ele não receberia nenhum culto depois de sua morte. Seria
para si e para os seus antepassados uma espécie de maldição.
Gerar um filho não era o bastante. Nascia-se para dar continuidade à linhagem e
à religião. Uma vez que o casamento era apenas para perpetuar a família, no caso de
esterilidade da mulher ele poderia ser anulado. Esse era feito no culto doméstico116. A
religião comandava os direitos de cada indivíduo e de cada família particularmente.
Em caso de esterilidade masculina sua esposa era obrigada a entregar-se a um irmão
ou parente para substituí- lo. Quanto poder existia nessa religião.
Segundo Coulages, o mito reinava sobre as almas. As crenças relativas aos
mortos, assim como o culto que lhes era devido constituíram para a família antiga a
maior parte das regras religiosas. O mito era o de que o homem era tido como um ser
feliz e divino, desde que cumprida à condição de os vivos lhe oferecerem sempre a
refeição fúnebre. Se isso não ocorresse ele sairia dessa condição para infeliz e passaria
à categoria de demônio e desgraçado. Por isso cada pai esperava pela sua
descendência.
Esse culto fúnebre era passado de varão para varão. A filha não poderia cumprir
o dever de continuar os sacrifícios fúnebres, pois casando ofereceria os sacrifícios só
aos antepassados de seu marido. A religião lhe proibe de herdar de seu pai.
115 Fustel de Coulages. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.54. 116 Fustel de Coulages. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2003, p.55.
106
Dessa forma, temos Raquel em uma situação delicada. Seu deus é agora o de seu
marido. À esse deus ela deve prestar culto. Segundo a religião a esterilidade pode
fazer com que seu casamento seja anulado, mas isso não ocorre porque Jacó a ama, e
Raquel, por sua vez, não desiste de tentar a maternidade. Sua busca e tentativa pela
mandrágora, suas lamúrias diante do Deus de Jacó, faz com que ela alcance o seu
objetivo: “E lembrou-se Iahweh de Raque l e escutou-a117, e abriu a sua madre”.
(30.22)
Afinal, não foi a mandrágora a detentora de sua gravidez, mas Iahweh. Será que
a mandrágora detém realmente esses poderes ou substâncias para atuar contra a
esterilidade? Esse é o nosso próximo ponto a ser estudado.
3 Mandrágora
O termo “mandrágora”, ?????? (dûdä´îm), em hebraico, deriva da mesma raiz de
“amor” o que reforça a crença de que era uma planta conhecida pelos seus poderes
férteis e afrodisíacos, reforçada pelo formato de sua raiz. Conhecida, também, como
“Maçã do amor”, devido ao formato de seus frutos. Esta é a razão que faz com que em
algumas partes do Oriente Médio, esta planta ainda seja considerada como afrodisíaco
capaz de excitar o amor e aumentar a fertilidade humana.
117 Grifo da autora da pesquisa.
107
Figura 3: Raiz de uma mandrágora
Figura 4: Frutos da mandrágora
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/a/a4/Mandragore_officinale_fruits.jpg/220
px-Mandragore_officinale_fruits.jpg
108
Figura 5: Flores da mandrágora
Planta da família das solanáceas, a Mandragora officinarum é nativa do
Mediterrâneo. É uma planta perene, com raízes tuberosas espessadas que podem
chegar a sessenta centímetros de comprimento. Suas flores vão da coloração entre o
violeta e o amarelo-esverdeado. Os frutos redondos são inicialmente verdes e depois
amarelos. A raiz, freqüentemente bífida, possui contornos de uma forma humana —
mais especificamente, as de uma mulher — e, sendo grossa e carnuda, assemelha-se a
um par de pernas. Sua ocorrência se dá no Vale do Jordão e nas planícies de Moabe,
em Gileade e na Galiléia118. Os antigos germanos veneravam ídolos fabricados com a
raiz de mandrágora. Aqueles que os possuía em sua casa, acreditavam-se felizes, pois
elas velavam por ela e por seus moradores, guardando-os de todo mal. Diziam que
118 Angelo C. Pinto. Alcalóides: da morte de Sócrates aos inibidores de acetilcolinesterase. Trabalho
apresentado no Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro, p.17.
109
estes prediziam o futuro, emitindo certos sons ou vozes. O possuidor de uma
mandrágora, além disso, obtinha bens e riquezas, através de sua influência119.
O Glossário Teosófico fornece uma interpretação metafísica politicamente
correta onde “em linguagem cabalística”, “dudaim” corresponde à união do “manas
superior e inferior” ou da “Alma e do Espírito”, duas coisas “unidas em amor e
amizade (dodim)”.120
3.1 Farmacopéia da Mandrágora: verdades e mitos
As mais antigas fontes escritas médico-farmacêuticas são provenientes das
civilizações da Mesopotâmia e Egito. Na Mesopotâmia são constituídas por tabuinhas
de argila gravadas com um estilete em escrita cuneiforme. No Egito as fontes escritas
são principalmente papiros. O papiro mais importante para a história da Farmácia é o
de Ebers de 1550 a.C. Tem mais de vinte metros de comprimento e inclui referências
a mais de sete mil substâncias medicinais incluídas em mais de oitocentas fórmulas121.
O uso de plantas para envenenar adversários, condenados à morte e amantes é
mais antigo do que se imagina. Ao longo da história encontramos o uso de alcalóides
para matar e enfeitiçar. As plantas tanto serviam para aproximar como para afastar os
amantes.
119 Helena Petrovna Blavatsky, Glossário Teosófico. 5ª. Edição, Rio de Janeiro: Editora Ground, 1995,
778p. 120 Helena Petrovna Blavatsky, Glossário Teosófico. 5ª. Edição, Rio de Janeiro: Editora Ground, 1995,
778p 121 Ângelo C. Pinto. Alcalóides: da morte de Sócrates aos inibidores de acetilcolinesterase. Trabalho
apresentado no Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro, p.17
110
A fama da Mandrágora cresceu na Idade Média. Maquiavel122 escreve uma peça
teatral “A Mandrágora”, aproveitando-se da fama e do mito que a cercava. Ele conta a
história do jovem florentino Calímaco, que por conta de uma aposta, conhece e passa
a desejar furiosamente uma mulher casada que não consegue ter filhos com seu
marido. Para conquistá- la, com ajuda de um jovem embusteiro, de um frei sem
escrúpulos e da mãe da recatada esposa, ele finge ser médico e receita um tratamento a
base de mandrágora.
Gil Felippe, PhD em Botânica, relata que na Grécia, a mandrágora, era
conhecida como planta de Circe por ser eficaz como poção do amor. Também na
Grécia acreditava-se que era um afrodisíaco, consumida não só por homens comuns,
mas também pelos sátiros. No Egito antigo era um símbolo de amor e potente
afrodisíaco; faziam com ela um vinho que era muito popular123. Se mito ou verdade
ele relata que o período mais favorável para colher a mandrágora é durante a lua cheia,
entre a Páscoa e o dia de Ascensão.
Conhecida há milhares de anos, foi muito utilizada na Antigüidade e na Idade
Média, em manipulações, quer na medicina, quer na feitiçaria, nas religiões
campesinas e entre os escravos. São- lhe atribuídas as seguintes propriedades
medicinais: afrodisíaca, alucinógena, analgésica e narcótica.
Ela é estimulante, principalmente por sua raiz devido à presença de muitos
alcalóides124, entre eles a atropina125. “Por conter hiosciamina126 foi usada como
122 Nicolau Maquiavel escreve “A Mandrágora” uma peça de teatro, em 1503 e publica-a, pela primeira
vez, em 1524. 123 Gil Martins Felipe. No rastro de Afrodite: Plantas afrodisíacas e culinárias. p. 230 124 Alcalóides são compostos nitrogenados, em geral, heterocíclicos, de caráter básico, que são
normalmente produzidos por vegetais e têm ação enérgica sobre os animais - em pequenas quantidades podem servir como medicamentos, e em doses maiores são tóxicos. Eles correspondem aos principais terapêuticos naturais com ação: anestésica, analgésica, psico-estimulantes, neuro-
111
anestésico até 1846, quando passaram a usar o éter. Dioscórides, cirurgião a serviço
de Nero, a utilizava durante suas cirurgias”127 O efeito afrodisíaco é o resultado da
ação desses alcalóides. Conheceremos um pouco mais sobre suas propriedades
farmacológicas que deram vazão ao mito que as cerca.
O que faz uma planta ser considerada afrodisíaca? Segundo Gil Felippe o efeito
afrodisíaco é o resultado da ação desses alcalóides. Plantas afrodisíacas são
encontradas entre as gimnospermas, as monocotiledôneas e as dicotiledôneas nos mais
diversos cantos do nosso planeta. Ele aponta a existência de mais de quatrocentas
espécies de plantas afrodisíacas, mas de acordo com a ciência quantas na verdade
podem ser aceitas como tendo um papel na libido? Para uns, afrodisíaco é a substância
que acorda a libido e para outros a que age diretamente na genitália. Qual seria
realmente a sua ação?
Segundo Gil Felippe, a verdade é que a Atropa beladona, Hyoscyamus niger e
muitas outras solanáceas como a Mandragora officinarum contém alcalóides, são
venenosas e contém um potente sedativo e analgésico. Em quantidades suficientes,
induzem a um estado de torpor e obliteração, propriedades essas que eram usadas em
cirurgias antigas. A Mandragora officinarum se tornou uma preparação homeopática
oficial em 1877 e hoje raramente é usada para qualquer outro propósito. Ela não deve
depressores, etc. Os alcalóides distribuem-se por toda a planta, mas tendem a se acumular em certas regiões, em particular nos tecidos externos, no tegumento das sementes e nas cascas dos caules e raízes. Em cada planta existe sempre uma mistura própria de vários alcalóides com estrutura química semelhante, e geralmente observa-se predomínio de um deles (alcalóide principal).
125 A atropina é um alcalóide, Atua bloqueando o efeito do nódulo sinoatrial, o que aumenta a condução através do nódulo atrioventricular e conseqüentemente o batimento cardíaco. A atropina quase não produz efeitos detectáveis no SNC nas doses usadas na prática clínica. Em doses terapêuticas (0,5 a 1,0 mg), a atropina causa apenas excitação vagal suave em conseqüência da estimulação da medula e centros cerebrais superiores. Com doses tóxicas da atropina a excitação central torna-se mais acentuada, produzindo agitação, irritabilidade, desorientação, alucinações ou delírio.
126 Composto da família dos alcalóides atua diretamente no nervo parassimpático dificultando o seu funcionamento. É extraído de plantas que pertencem à classe das Solanáceas.
127 Gil Martins Felipe. No rastro de Afrodite: Plantas afrodisíacas e culinárias. p. 230.
112
ser confundida com Podophyllum peltatum (Mandrágora americana), uma erva
medicinal usual, chamada simplesmente de mandrágora.
As partes utilizadas são as raízes. Sua propriedades são sedativas, analgésicas e
efeitos purgativos e eméticos. Na antiguidade era utilizada internamente para aliviar a
dor, como afrodisíaco e no tratamento de desordens nervosas. Externamente era
utilizada para úlceras. Doses altas da Mandrágora podem provocar intoxicação,
alucinações, e em casos mais extremos até a morte, por isso devem ser manipuladas
somente por médicos qualificados. Atualmente, ela ainda é usada em doses seguras na
fabricação de remédios homeopáticos.
3.2 Raquel e as Mandrágoras
A unidade estudada (30.14-16) encerra-se com a aquisição das mandrágoras por
Raquel, mas nos furta maior conhecimento de como ela foi manipulada e preparada
para os fins desejados por Raquel: a fertilidade a qual tanto buscava.
Afinal de que serviriam as mandrágoras a Raquel sem o seu marido por perto?
De que maneira ela as utilizou? Guardou as mandrágoras para uma outra ocasião ou as
usou em algum ritual? Esses e outros questionamentos ficarão sem respostas devido
serem textos antigos e sem maiores explicações ou definições por parte do narrador.
De qualquer forma a dificuldade em se encontrar mandrágoras é evidente. A
Botânica dá como certo que não é uma planta comum, que cresce em várias regiões e
fácil de ser encontrada. Essa é, talvez, a principal razão de Raquel negociar com Lea.
Seu ventre deverá ser um espaço ocupado e não vazio como até o momento tem sido.
113
Para isso vale o apelo às divindades ou à magia que se pregava sobre as propriedades
que ela continha para que Raquel cresse que por intermédio delas ela engravidaria.
Não é nosso desejo chegar a uma conclusão, ou esclarecer fatos, mas construir
uma ponte que nos leve não somente a uma religião não monoteísta, que a torna pura
por inclusão, e não por exclusão ou dominância, respeitando seu conteúdo histórico-
religioso carregado de símbolos, lendas e mitos. Dessa forma abriremos caminhos
para novas pesquisas e espaço para novos conhecimentos e eventuais reflexões dessa
narrativa histórica.
Raquel não obteve o resultado tão esperado com as mandrágoras. Ela não a
tornou fértil e não lhe deu o filho tão esperado. Mas a narrativa diz: “E lembrou-se
Deus de Raquel, e Deus a ouviu, e abriu a sua madre” (30:22). Iahweh ouve o clamor
e coroa Raquel com dois filhos: José e Benjamim.
Acreditamos que como o termo em hebraico a define essa planta está ligada ao
amor, como citado em Cantares, por ser: perfumada, e seu próprio nome sugerir
romance. Receber mandrágoras seria, e com certeza o é, mais impressionante que
receber buquês de flores, que apesar de muito bonitas, podem ser encontradas com
facilidade, ao contrário das mandrágoras.
Quanto às suas propriedades medicinais, foi utilizada entre os romanos e outros
povos como anestésico em cirurgias e outros fins medicinais, como já citamos
anteriormente. Quanto aos seus poderes afrodisíacos e de aumento da fertilidade
humana, não encontramos nada científico que comprove a cura para a esterilidade,
mas suas propriedades farmacológicas despertam a libido. Mas, fica claro no estudo
da narrativa bíblica estudada (30.14-16), em Gênesis, que não foi por intermédio da
114
utilização das mandrágoras que ela obteve a cura para a sua esterilidade. Fica, então,
aberta a questão de que ela seja uma planta da fertilidade.
CONCLUSÃO
Nosso estudo teve como primeiros passos o complexo historiográfico dos
antecessores de Israel, comumente conhecidos como “patriarcas”. São histórias
compostas de personagens de origem nômade, que se estabeleceram em terras
estranhas, trabalhando pela sobrevivência diária, revelando a estrutura e o modo de
vida familial-clãnica, tipo de sociedade que lhes garantia a continuidade de seu povo,
bens e religiosidade.
O nosso ponto de partida iniciou com Abraão e Sara, seguido de Isaac e Rebeca
e, logo depois, com Jacó e Raquel. Nessas narrativas bíblicas encontramos registros de
ideologias sistêmicas que exigiam que a mulher fosse submissa, mansa, humilde,
passiva, boa dona de casa, mãe e esposa carinhosa.
No bloco analisado percebemos que essa estrutura ideológica não corresponde à
prática, sendo que, vários elementos contrariam essa lógica. Neles encontramos Sara
dominando o espaço e expulsando sua serva, juntamente com o filho de Abraão, por
ciúmes; Rebeca que se apresenta como ajudadora e mulher prestativa no poço, para o
servo de Abraão, quando se casa com Isaac, mostra-se forte, dominadora, conspirando
116
a favor do filho Jacó ganhando o espaço almejado; Raquel, embora a narrativa
apresente-a como rival de Lea, sua irmã e outra esposa, dialogam e entram num
acordo, acerca das mandrágoras, cujo pagamento, ou “objeto de troca”, é nada mais,
nada menos que Jacó, o esposo.
O bloco 12-50 está recheado de disputas e conflitos entre as mulheres. As razões
se entrelaçam entre: fertilidade e esterilidade, disputa sexual e de poder, preconceitos,
conceitos de feio e belo, de amor e desprezo, de domínio e dominância. Vimos que
nesse espaço, constituído por homens, a dominação e as narrativas são de mulheres
que ocupam um espaço evolutivo nas narrativas, sendo que estas ausentam, cada vez
mais, o espaço e narrativa masculina. Raquel e Lea protagonizam, por um bom espaço
,de tempo a história.
Tais narrativas retratam os tempos primórdios e são compostas por povos cujo
mundo é o do pastoreio de gado, de pequeno e médio porte, e a agricultura. Nossa
unidade 30.14-16 retrata, especificamente, o mundo agrícola porque nele encont ramos
Jacó trabalhando no campo e Ruben traz as mandrágoras de lá. O verso 14 descreve o
tipo de colheita, que é a de trigo, demonstrando que Labão possuía terras. Ele também
era possuidor de gado de pequeno porte (30.28) que era cuidado por Jacó.
Mas para que essa história chegasse ao cumprimento da aliança-promessa, de
Iahweh com Abraão, encontramos na porta de entrada, as protagonistas Sara, Rebeca e
Raquel para compor esse desfecho. Por se tratar de uma promessa que vai de encontro
à descendência de milhares e milhares, encontramos nas narrativas nada mais do a
esterilidade das escolhidas, para gerar esses povos. É sobre essa esterilidade que a
nossa pesquisa foi desenvolvida: sob as virtudes de fertilidade das mandrágoras. Elas
117
foram encontradas por Ruben em meio à colheita do trigo. Por ser uma planta que não
se encontra facilmente, e que se desenvolve em terrenos propícios para o seu
desenvolvimento, como lugares úmidos, é que a protagonista da nossa unidade,
Raquel, irá compor o discurso e a negociação com Lea para obtê- las.
A realidade histórico-social e teológica nos leva a ver as mulheres lutando por
seus espaços no campo religioso e cultural cujo grupo, que preservava as tradições
religiosas e dos antepassados, era chefiado por homens. Os conceitos de pertença do
sistema social em que Raquel e Lea vivem, expõe as mulheres ao domínio e a
negociação de seus corpos. Essas mulheres são filhas e esposas e a ordem social,
vigente, autoriza e endossa essa negociação.128
Para alcançar seus objetivos e transformar esses espaços e cultura que as trata
como mercadorias negociáveis, elas passam de dominadas a dominante, na esfera
doméstica e social. Essa realidade é clara em nossa unidade: há um revés e inverte as
circunstâncias, isto é, a mulher passa a negociar o corpo do marido como o fez
Raquel.
As situações de dominação, trapaças e escravismo são claras no contexto
histórico-narrativo. Na história de Jacó e Labão, por exemplo, vemos que o contrato
de trabalho, para desposar Raquel, se duplicou, e Labão lucra com os catorze anos que
Jacó ali trabalhou e, quando do vencimento do contrato, não queria deixá- lo ir com a
família que adquiriu.
128 Haidi Jarschel. “Para que a memória histórica de resistência seja guardada... (Gênesis 38), in: Revista
de Interpretação Bíblica Latino-American no. 32, Petrópolis: Editora Vozes, p.41.
118
O fato das mulheres serem protagonistas da unidade estudada, bem como em
todo o bloco, prova que a conservação de seus discursos foi de extrema importância,
fato que a história não pôde apagar. Assim o poder das mulheres é notório e em suas
angústias são ouvidas por Iahweh: “Ele está perto... Ele ouve... Ele vê... Ele atende ao
clamor”.
As categorias – mito, conto popular e lenda – segundo os estudiosos se
sobrepõem e se fundem. Embora o nosso estudo sobre a mandrágora se concentre em
abordar a sua existência dentro da religiosidade de Raquel e Lea não podemos nos
furtar de que ela tomou outros espaços dentro de cada cultura e religiosidade como
planta mitológica. Suas lendas correm o mundo e, talvez, à nossa época como conto
popular.
Conforme vimos durante a nossa pesquisa o mito reinava sobre as almas. As
crenças relativas aos mortos, assim como o culto que lhes era devido constituíram para
a família antiga a maior parte das regras religiosas. O mito era o de que o homem era
tido como um ser feliz e divino, desde que cumprida a condição dos vivos de lhe
oferecerem sempre a refeição fúnebre. Se isso não ocorresse ele sairia dessa condição
de feliz, para infeliz, e passaria à categoria de demônio e desgraçado. Por isso cada pai
esperava pela sua descendência.
Conforme nossa análise, constatamos que o nome dos filhos gerados a Jacó, que
compõe as doze tribos são formados por substantivos e verbos pronunciados por Lea e
Raquel descrevendo suas necessidades e angústias nascidas da rivalidade e tentativa
de dominância por espaço e reconhecimento social, e pelo amor e reconhecimento de
Jacó.
119
A verdadeira fala desse texto é mostrar a gênese da vida e do poder que as
mulheres adquiriram em suas estruturas sociais e religiosas, extremamente opressoras,
na qualidade de mulheres que iniciam uma nova história e nela se revelam, fortes em
sua luta contra a esterilidade. São mulheres que se rebelaram contra um sistema e que
em sua maneira mística de ser e crer reforçaram uma teologia de vida onde as
tentativas e valorização do sagrado e do misticismo vai além da fé. Elas não
esmoreceram diante do quadro e das questões negativas, mas permitiram que sua fé
fosse vivenciada no sobrenatural e nas questões que permitiam ir além do
empoderamento cruel e opressor que a religião exercia sobre a vida dessas mulheres.
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FIGURA 3 Raiz da mandrágora - http://www.carcasse.com/revista/gato_preto/mandragora/mandragora.jpg
123
FIGURA 4 Frutos da mandrágora
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/a/a4/Mandragore_officinale_fruits.jpg/220px-Mandragore_officinale_fruits.jpg
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