Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura Área de concentração: Literatura Comparada
Lina Arao
A TRAJETÓRIA DA UTOPIA EM JORGE ICAZA E MANUEL SCORZA
Rio de Janeiro 2006
Arao, Lina. A trajetória da utopia em Jorge Icaza e Manuel Scorza / Lina Arao. Rio de Janeiro, 2006. 114 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2006. Orientador: Eduardo de Faria Coutinho 1. Indigenismo. 2. Neo-Indigenismo. 3. Utopia – Teses. I. Coutinho, Eduardo de Faria (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.
A trajetória da utopia em Jorge Icaza e Manuel Scorza
Por Lina Arao
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Literatura Comparada), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Orientador: Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho.
Universidade Federal do Rio de Janeiro 2o. semestre de 2006
FOLHA DE APROVAÇÃO
Lina Arao
A TRAJETÓRIA DA UTOPIA EM JORGE ICAZA E MANUEL SCORZA Rio de Janeiro, _____ de _______________ de 2006. _________________________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho (Orientador) _________________________________________________________________________ Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves _________________________________________________________________________ Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva _________________________________________________________________________ Professora Doutora Eleonora Ziller Camenietzki (Suplente) _________________________________________________________________________ Professora Doutora Vera Lucia Teixeira Kauss (Suplente)
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Professor Eduardo Coutinho, pela orientação incansável, paciente e minuciosa. À Professora Cláudia Luna, pelas aulas sobre literatura hispano-americana e pelo indispensável e atencioso auxílio.
Ao Professor Luis Alberto Alves, pelas aulas instigantes sobre crítica literária brasileira.
À minha família: meus pais, Seiiti e Luiza, e minha irmã, Mieka, pelo apoio incondicional.
Aos amigos, pelo incentivo de sempre.
RESUMO ARAO, Lina. A trajetória da utopia em Jorge Icaza e Manuel Scorza. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. A América Latina caracteriza-se, entre outras peculiaridades, por uma grande diversidade cultural, que se expressa freqüentemente por uma relação desigual de poder entre seus diferentes grupos culturais. As tensões geradas pelo choque de interesses de cada um desses grupos e pelas contradições entre a vida cotidiana dessa população e o seu desejo de uma sociedade mais igualitária criam condições favoráveis para o surgimento de um pensamento utópico. Nesta dissertação, procuraremos mostrar, através de uma perspectiva comparatista, como a questão da utopia é tratada em três romances da região andina que têm como eixo a figura do indígena – Huasipungo, do equatoriano Jorge Icaza, Redoble por Rancas e La tumba del relámpago, os dois últimos do peruano Manuel Scorza. Para esse fim, traçaremos a trajetória do pensamento utópico nas três obras e examinaremos as relações entre esta questão e a gradativa tomada de consciência do indígena a respeito da exploração a que sempre esteve sujeito e de seu papel na sociedade. No romance de Icaza, apesar da simpatia devotada à figura do indígena, este é visto como incapaz de refletir ou agir, o que o impossibilita de desenvolver um pensamento utópico. Já em Redoble por Rancas, começa a surgir um processo de conscientização política, dando origem a uma espécie de “potencial revolucionário”, a uma reflexão sobre formas de se transcender a realidade, e em La tumba del relámpago desenvolve-se, finalmente, uma utopia, sob a forma de um impulso na direção de uma revolução socialista.
ABSTRACT ARAO, Lina. A trajetória da utopia em Jorge Icaza e Manuel Scorza. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
Latin America is characterized, among other peculiarities, by a great cultural diversity, which is often expressed by an asymmetrical power relationship between different cultural groups. The tensions resulting from these groups’ clash of interests and from the contradictions between people’s daily lives and their desire for a more equalitarian society create favorable conditions for the emergence of utopian thought. In this thesis, we will examine, by means of a comparative approach, how the issue of utopia is treated in three novels from the Andean region that deal with indigenous people – Jorge Icaza’s Huasipungo (Equador) and Manuel Scorza’s Redoble por Rancas and La tumba del relámpago (Peru). We will trace the trajectory of utopian thought in these works and will show how this issue is intimately connected with the Indian’s growing consciousness of their exploitation and of their role in society. In Icaza’s novel, in spite of the author’s sympathy towards the figure of the Indian, the latter is seen as unable to think or act, and this makes him incapable of developing an utopian thought. In Scorza’s Redoble por Rancas, a process of political consciousness awakening is started, giving thus birth to a kind of “revolutionary potentiality”, and in his La tumba del relámpago, a real utopia is developed under the form of an impulse towards a socialist revolution.
Alta eres América “Alta eres, América, pero qué triste. Yo estuve en las praderas, viví con piedras y espinas, dormí con desdichados, sudé bajo la nieve, me vendieron en tristísimos mercados. ¡En tu árbol sólo he visto madurar gemidos! Bella eres, América, pero qué amarga, qué noche, qué sangre para nosotros. Hay en mi corazón muchas lluvias, largas nieblas, patio amargo; la pura verdad, en estas tierras, uno a veces es tan triste que con sólo mirar envenena las aguas. Alta eres, bella eres, pero yo te digo: no pueden ser bellos los ríos si la vida es un río que no pasa; jamás serán tiernas las tardes mientras el hombre tenga que enterrar su sombra para que no huya agarrándose la cabeza. […]”
Manuel Scorza
SUMÁRIO Introdução 8
1. Sobre utopia 13
1.1. O conceito de “utopia” 13
1.2. A utopia na América Latina 25
2. A visão sobre o indígena na literatura andina 34
2.1. Indigenismo andino 35
2.2. Neo-Indigenismo andino 44
3. Huasipungo: desespero ou utopia? 50
4. Redoble por Rancas: o surgimento de uma utopia 64
5. La tumba del relámpago: doutrina e utopia 85
Conclusão 105
Bibliografia 108
8
INTRODUÇÃO
A América Latina é um território de contrastes, abrigando uma vasta quantidade de
culturas que nem sempre convivem pacificamente. Suas diferenças freqüentemente se
estendem para um âmbito sociopolítico e econômico, materializando-se em relações desiguais
de poder e hierarquizações originadas ainda no período de conquista e mantidas no século
XXI.
Esse choque de culturas iniciou-se com a invasão dos europeus na América: o olhar
destes sobre os nativos com quem entraram em contato foi, conforme afirmou Tzvetan
Todorov, ou o da semelhança, que implicava a projeção de seus próprios valores aos
habitantes dessa terra “recém-encontrada”, ou o da diferença, que levava à sua inferiorização1.
A partir de ambas as perspectivas os europeus legitimavam os seus esforços para submeter à
força os povos da América. Por conseguinte, compreendidos os povos e suas culturas como
inferiores, estava justificada também a sua posição de serviçais e subalternos na sociedade,
desencadeando uma relação assimétrica em que os poucos “europeus” constituem um grupo
mais poderoso política e economicamente (e por isso também social e culturalmente) e os
outros povos que compõem o continente latino-americano formam uma maioria
marginalizada.
As tensões geradas por esse mecanismo e pelas contradições entre a realidade
desfavorável dos destituídos do poder (“o que é o mundo”) e a idealidade (“como deveria ser
o mundo”) propiciam, de acordo com o teórico chileno Fernando Aínsa, o desenvolvimento
do pensamento utópico na América Latina. Aliás, a utopia relacionada ao continente latino-
americano já data de sua conquista: os próprios europeus viam nesse território paradisíaco, tão
diferente do Velho Mundo, a possibilidade de construção de um lugar melhor para se viver, de
uma nova sociedade em um imenso espaço supostamente sem passado ou história, um Novo
1 Cf. TODOROV, T. (1999) p.50.
9
Mundo “em que se plantando tudo dá”. Essa idéia do continente com um futuro sempre por
fazer foi internalizada pelos próprios latino-americanos e se fez presente nas principais fases
da história do continente como um todo, conforme assinalou Aínsa: nas independências, na
estruturação das nações e nas revoluções e rebeliões do século XX (como a Revolução
Cubana e as revoltas de cunho socialista-comunista)2.
Esta dissertação tem como um dos objetivos analisar a questão da utopia nos seguintes
romances: Huasipungo (1934), do equatoriano Jorge Icaza, e Redoble por Rancas (1970) e
La tumba del relámpago (1979), do peruano Manuel Scorza. Os três livros apresentam uma
temática em comum: a denúncia da realidade de opróbrios vivida pelos índios e mestiços
falantes de quíchua da região da serra andina. No caso específico desse local, os conflitos
culturais e socioeconômicos envolvem os “brancos”, ou os representantes da cultura européia
e ocupantes dos patamares mais elevados da pirâmide social, e os “índios”, em sua maior
parte camponeses, pastores ou mineradores. A coexistência dessas diferentes matrizes
culturais origina conflitos de toda espécie e também favorece o surgimento do desejo utópico,
compreendido como vontade de um determinado grupo social – os índios – de transformar a
realidade marcada por um sistema socioeconômico ainda semifeudal ou pré-capitalista.
Este estudo tenciona também, através da análise comparativa dos romances
selecionados, mostrar que se vislumbra uma espécie de trajetória do pensamento utópico
presente de forma implícita ou explícita em nosso corpus literário. A utopia a que nos
referimos – considerada aqui em seu “potencial revolucionário” ou como um projeto mais
concreto, refletido e consciente, diferentemente do modo como é usualmente abordada (um
sonho abstrato e impossível de se realizar) – está relacionada à capacidade de os personagens
indígenas dos romances (ou os referentes destes) refletirem e tomarem consciência do seu
papel e posição ocupada na sociedade, bem como dos problemas causados pelo sistema
2 Cf. AÍNSA, F. (1998) p. 12.
10
econômico vigente no Peru e no Equador e pelo imperialismo norte-americano (fato
denunciado nas três obras). Levando em conta esse conceito de utopia, tentamos descrever a
sua trajetória ao longo dos livros: de uma “não-utopia” pensada e criada pelos índios em
Huasipungo até a tentativa de uma revolução ou pelo menos de ampliação do movimento
camponês em La tumba del relámpago, passando por momentos de uma utopia racionalizada,
mas ainda pouco planejada em Redoble por Rancas. Esse percurso do pensamento utópico
(lembrando que nos detemos na utopia dos referentes dos romances e não à dos autores e
narradores que claramente se mostram simpáticos à causa indígena) também relaciona-se ao
modo pelo qual os indígenas são vistos, ou melhor, a visão sobre os índios parece estar ligada
ao surgimento e desenvolvimento da utopia como um desejo possível de ser realizado se
planejado e projetado. Assim, enquanto os indígenas são considerados meros objetos, seres
incapazes de pensar, de agir e de terem consciência de sua história, não podem ser dotados de
pensamento utópico (como veremos em Huasipungo). Na medida em que ganham voz e
percebem a exploração que sofrem, tomam o impulso necessário para a busca do ideal,
fazendo surgir a utopia.
A fim de melhor elucidar essa hipótese e de conferir maior organização, dividiremos
este trabalho em duas grandes partes: os dois primeiros capítulos serão mais teóricos e
abordarão os conceitos utilizados na dissertação e os três subseqüentes serão de análise e
comparação dos textos literários. Dessa forma, percorreremos o seguinte itinerário:
No capítulo 1, “Sobre utopia”, procuraremos, para empreender uma fundamentação
teórica do tema, apresentar teóricos que consideram a utopia não apenas como uma imagem
ou desejos abstratos, mas como possibilidade concreta e racionalizável de mudança, uma vez
que lidaremos com obras literárias que buscam denunciar a exploração dos índios e apresentar
tentativas mais organizadas de rebelião e revolução. Sendo assim, discorreremos sobre
11
algumas observações de Karl Mannheim, Ernst Bloch e do já mencionado Fernando Aínsa,
que especifica as discussões acerca da utopia na América Latina.
No segundo capítulo, “A visão sobre o indígena na América Latina”, faremos algumas
considerações sobre o “Indigenismo” e o “Neo-Indigenismo”, movimentos ou tendências
literárias que tomam os indígenas como tema central, representando-os narrativamente. Este
item da pesquisa nos auxiliará a situar os romances selecionados dentro dos seus contextos
literários: Huasipungo é considerado pela maioria dos críticos literários um romance exemplar
do Indigenismo e os dois livros de Scorza são relacionados por Tomás Escajadillo ao Neo-
Indigenismo. Tanto o Indigenismo quanto o Neo-Indigenismo focalizam sua atenção na
denúncia da realidade indígena; não podem, no entanto, ser confundidos com literatura
indígena, visto que esta se refere à produção literária e cultural feita pelos índios, com seus
próprios recursos, enquanto que aqueles são produtos de uma outra perspectiva – a do
intelectual que, a partir de seu contexto, escreve sobre os índios. Dessa forma, narrativas
indigenistas e neo-indigenistas são consideradas literaturas heterogêneas por Antonio Cornejo
Polar, uma vez que manifestam em sua condição de produção (autores e receptores dos
romances fazem parte de um mundo diverso ao dos referentes) e na sua própria estruturação
narrativa as mesmas contradições e contrastes das sociedades que as produziram. Não
tencionamos, neste capítulo, rotular as obras literárias em determinadas categorias (mesmo
porque não agradava ao próprio Scorza o termo “Indigenismo” por julgá-lo preconceituoso e
redutor, embora depois, poucos anos antes de sua morte, tenha afirmado, em entrevista
concedida ao crítico Ricardo González Vigil: “ninguém pode pretender estudar o romance
indigenista sem meus livros”3), mas tão somente contextualizá-las dentro do cenário literário ,
apontando sua importância e estreita relação com a realidade que as concebeu.
3 Apud. ESCAJADILLO, T. (1994) pp.111-112. “[…] nadie puede pretender estudiar la novela indigenista sin mis libros”.
12
No capítulo 3, “Huasipungo: utopia ou desespero?”, analisaremos essa obra de Jorge
Icaza, buscando mostrar suas peculiaridades, a perspectiva sob a qual são vistos os indígenas
e de que modo isto se reflete no surgimento da utopia.
A partir do capítulo 4, “Redoble por Rancas: o surgimento de uma utopia”,
iniciaremos o estudo das obras de Manuel Scorza, as quais, apesar de se centralizarem no
Peru, podem ser muito bem cotejadas com Huasipungo por tratarem de uma mesma área ou
grupo cultural – os falantes de quíchua dos Andes. É importante salientar que Redoble por
Rancas é o primeiro romance dos cinco que compõem o ciclo intitulado La guerra silenciosa,
cujos outros componentes são: Historia de Garabombo, el invisible; El jinete insomne;
Cantar de Agapito Robles, e La tumba del relámpago. Somente selecionamos a primeira e a
última obra do ciclo para compor nosso corpus literário porque são as mais significativas para
a nossa proposta de pesquisa: todos os cinco romances possuem características próprias e
importantes, entretanto, Redoble por Rancas abre La guerra silenciosa e apresenta, como
veremos posteriormente, duas sub-histórias ou subenredos que tanto o aproximam de uma
tradição anterior, representada nesta dissertação por Huasipungo, quanto o inserem nas
inovações trazidas por Scorza ao tema indígena e ao seu tratamento nas narrativas. Já La
tumba del relámpago, analisada no capítulo 5, “La tumba del relámpago: doutrina e utopia”, é
a obra que mais se distingue das anteriores, abordando com maior clareza a tensão entre a
“tradição” ou o “arcaísmo” das formas de luta camponesas, relatadas nos demais romances do
ciclo, e a “modernização” e ampliação do movimento por meio da inserção do socialismo.
Antes de finalizarmos as considerações iniciais, é necessário ainda salientar que a questão da
modernização é assunto complexo e amplamente discutido. Em razão disso, delimitaremos
nossas discussões acerca do tema ao contexto da obra de Scorza, utilizando sobretudo as
reflexões de José Carlos Mariátegui e Cornejo Polar.
13
1. SOBRE UTOPIA 1.1. O conceito de “utopia” Antes de analisarmos especificamente as obras de Jorge Icaza e Manuel Scorza,
consideramos de essencial importância tecer algumas considerações sobre a questão da
utopia, expondo os conceitos mais interessantes à nossa dissertação.
O termo “utopia” foi cunhado por Thomas Morus a partir do substantivo grego topos,
significando “lugar”, e de dois prefixos – eu, que denota uma qualidade positiva e ou, que
significa um “não-lugar”, lugar não existente. Utopia, livro publicado em 1516, relata o
encontro entre Pierre Gilles, o próprio Morus e o viajante Rafael Hitlodeu e a conversa em
que este último narra tudo o que presenciou na ilha de Utopia, descoberta em uma de suas
viagens – os costumes, a forma de governo e a estrutura social dos utopianos.
Segundo Hitlodeu, a Utopia era composta por 54 cidades idênticas, cuja capital era
Amaurotum – nome que significa “cidade nas nuvens”, “castelo no ar” –, banhada pelo rio
Anydrus, ou seja, “rio sem água”. Seus habitantes, sem exceção, trabalhavam igualmente seis
horas por dia, não ostentavam luxo, desconheciam a divisão em classes sociais (embora
existissem escravos) e a propriedade privada; tudo (até mesmo as refeições) era feito
comunitariamente. Tinham liberdade de culto religioso e seguiam um rígido código de
conduta moral: não havia bares e bordéis, além de se proibir e punir o adultério.
Todas essas características compunham um ideal de governo e de organização social
imaginado por Thomas Morus, que, através do artifício da narrativa ficcional, pôde criticar a
Inglaterra de seu tempo, sem, contudo, sofrer intensa perseguição ou represálias. De acordo
com Miguel Abensour, em seu ensaio sobre a Utopia de Morus, “a Utopia apresenta-se como
14
a máscara com que se cobre um novo pensamento capaz de abalar a ortodoxia e atingir as
crenças e as instituições sobre as quais repousa a sociedade civil de seu tempo”4.
As críticas à Inglaterra de Henrique VIII são evidentes: o fato de todos trabalharem em
Utopia alude ao ócio vivido pelos nobres, eclesiásticos, e mulheres, entre outros, na sociedade
inglesa, o que acabava sobrecarregando o pequeno número de trabalhadores, cuja jornada de
serviço chegava a ser de até dezesseis horas; também o absolutismo e o autoritarismo de
Henrique VIII foram atacados por Morus, que colocou em sua ilha ideal a escolha do
governante através de eleições indiretas e a permissão da liberdade religiosa (ao reverso da
imposição de Henrique VIII para a adoção do anglicanismo).
Ao mesmo tempo em que Morus fazia essa crítica contundente às instituições políticas
e sociais de sua época, resgatando a questão do melhor regime das tradições “democráticas”
platônicas, também imprimiu um certo sentido de impossibilidade da realização de tais idéias,
ao menos levando em conta o cenário do período em que ele vivia, haja vista a onomástica
selecionada – como vimos anteriormente, “Utopia”, “Amaurotum” e “Anydrus” remetem à
irrealidade, ao sonho.
Devido ao êxito que Utopia teve na Europa, o termo que dá título à obra passa a ser
utilizado e compreendido. Segundo Jean Servier, em seu livro sobre a utopia, o termo
“designa todo projeto irrealizável e deu origem a dois adjetivos, ‘utópico’ que sublinha o
caráter impossível de um desejo, de uma intenção, e ‘utopista’ que qualifica os inspiradores
de sonhos”5. A “utopia”, em um uso menos geral, também caracteriza modelos abstratos e
imaginários de Estados mais justos e igualitários, como nas utopias sociais dos filósofos
4 ABENSOUR, M. (1990) p. 88. 5 SERVIER, J. (1995) p. 7 “[...] ‘utopía’ [...] designa todo proyecto irrealizable y dio origen a dos adjetivos, ‘utópico’ que subraya el carácter imposible de un deseo, de una intención, y ‘utopista’ que califica a los inspiradores de sueños.”
15
utópicos (Fourier, Saint-Simon, por exemplo).6 É com essa nuance de Estado ou desejos
imaginários e impossíveis que o termo “utopia” foi usado até os séculos XVIII e XIX.
Essa concepção de utopia só ganha novos significados com o trabalho do sociólogo
alemão Karl Mannheim, que escreveu Ideologia e Utopia, em 1929, livro clássico sobre o
tema e crucial para os estudos posteriores, como os de Ernst Bloch e Fernando Aínsa, entre
outros.
Nessa obra, Mannheim faz uma comparação entre ideologia e utopia. Segundo ele,
ambas são orientações que transcendem a realidade, e o que as distingue são suas relações
com a ordem existente. A primeira abrange idéias que permanecem presas à ordem em que
foram concebidas, ou seja, não há tendência a modificar a realidade existente, ao passo que a
utopia tende a transformar parcial ou totalmente a ordem existente: relaciona-se a um estado
de espírito em conflito com a situação real na qual está inscrita, caminhando na direção da
reação, do rompimento com aquela para dar lugar a uma realidade mais condizente com as
das concepções dos espíritos utópicos. A diferença entre utopia e ideologia, portanto, é uma
espécie de “potencial revolucionário” prevalecente na primeira.
As mentalidades ideológicas podem se apresentar sob diversas formas, conforme o
nível de consciência do indivíduo que as concebe com relação à incompatibilidade das suas
idéias com a realidade existente. Indicaremos três dessas formas: no primeiro tipo de
mentalidade ideológica, não há consciência de que as idéias são apartadas da realidade; no
segundo tipo, que Mannheim denomina de “mentalidade hipócrita”7, existe a possibilidade de
se desvelarem as contradições entre as idéias e a realidade, mas, em razão de alguns interesses
“vitais e emocionais”8, elas não são explicitadas, mas antes, encobertas; e, no terceiro tipo, já
se tem plena compreensão da incongruência entre idéias e realidade, e, neste caso, a ideologia
é utilizada, conscientemente, como meio de enganar outrem.
6 Cf. MÜNSTER, A. (1993) p. 23. 7 MANNHEIM, K. (1986) p. 219. 8 Ibidem, p. 219.
16
No que se refere às utopias, Mannheim atribui-lhes um sentido mais relativo, uma vez
que leva em consideração o grupo social idealizador das utopias e aquele representante da
ordem social em curso em determinada época e espaço. Assim, na perspectiva dos
representantes de uma dada realidade, que têm um conceito mais estreito de utopia (a de
propósitos impossíveis de serem concretizados), algumas idéias podem parecer
completamente irrealizáveis, todavia, estas não o são sob o ponto de vista de outros grupos
sociais. A distinção entre ideologia e utopia também se relativiza, já que algumas idéias são
rotuladas, muitas vezes intencionalmente, como ideológicas ou apenas utópicas no sentido
mais estreito do termo pelo grupo dominante, apesar de se mostrarem viáveis para as parcelas
da população não satisfeitas com a realidade existente.
Mannheim, devido à sua noção de utopia histórica e socialmente determinada, concebe
uma relação dialética entre a utopia e a ordem em curso, ou seja:
Cada época permite surgir (em grupos sociais diversamente localizados) as idéias e valores em que se acham contidas as tendências não realizadas que representam as necessidades de tal época. Estes elementos intelectuais se transformam, então, no material explosivo dos limites da ordem existente.9
Quando a ordem existente é rompida pelas utopias, forma-se um novo quadro, que,
posteriormente, pode vir a ser suplantado por outras utopias. Dessa forma, Mannheim enfatiza
menos um conceito abstrato de utopia do que as suas transformações históricas e sociais.
É preciso ressaltar, contudo, que, apesar de as fronteiras entre utopias e ideologias
serem bastante tênues, pode haver uma mescla de elementos utópicos e ideológicos contidos
nos movimentos10, se levarmos em conta o fator “grupo social”. De acordo com Mannheim, o
melhor critério de distinção entre ideologia e utopia é a “realização”, isto é: são consideradas
utópicas as idéias que puderam ser realizadas, ou que foram de algum modo viáveis na
9 MANNHEIM, K. (1986) p. 223. 10 A utopia da burguesia ascendente no período pós-feudal era a da “liberdade”. Esta era uma utopia na medida em que se realizou em parte, como no sentido de certa liberdade de pensamento, por exemplo. Contudo, houve também elementos ideológicos no que se refere aos itens não realizados efetivamente, como a idéia de liberdade atrelada à de igualdade. Cf. MANNHEIM, K. (1986) p. 227.
17
construção de uma ordem social diferente. Já as que se mostraram completamente
irrealizáveis são ideológicas.
Consoante as teorias de Mannheim, que relacionam as utopias aos estratos sociais e à
situação histórico-social na qual estavam inscritos, podemos ainda destacar um importante
conceito: o de “mentalidade utópica”.
A mentalidade utópica refere-se a um momento em que o elemento utópico permeia a
mentalidade dominante de uma época sob todos os aspectos, “quando as formas de
experiência, de ação e de visão estejam organizadas em concordância com este elemento
utópico”11. A mentalidade utópica não se limita às idéias utópicas, mas se estende a toda uma
maneira de pensar e agir – o elemento utópico, de certo modo, “dita” as perspectivas pelas
quais se analisa a situação em que vive um grupo social de determinado tempo.
Mannheim identifica quatro tipos de mentalidade utópica, apontando suas
transformações e motivações ao longo da história. São eles: o quiliasma anabatista; a idéia
liberal-humanitária; a idéia conservadora, e a utopia socialista-comunista.
O quiliasma dos anabatistas
De acordo com Mannheim, o quiliasma dos anabatistas pode ser reconhecido como o
“primeiro passo em direção aos movimentos revolucionários modernos”12. Com Thomas
Münzer e os anabatistas, idéias (ligadas à religião) anteriormente relacionadas ao mundo
extraterreno inclinaram-se para a realidade terrena, atraindo as classes mais oprimidas da
sociedade.
Foi nesse estágio, pós-medieval, que essas classes mais baixas originaram a
mentalidade utópica, revelando, ao mesmo tempo, uma gradativa consciência de sua
importância política e social, seu poder e seu papel no desenvolvimento da sociedade como
11 MANNHEIM, K. (1986) p. 232. 12 Ibidem, p. 235.
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um todo. Em razão disso, suas “tensões” também foram se tornando mais concretas e mais
urgentes, o que os impeliu à ação.
É preciso ressaltar que, segundo Mannheim, não foram as “idéias” que incitaram os
homens às ações revolucionárias, como a Guerra Camponesa liderada por Münzer, mas “as
energias extático-orgiásticas”13, já que a “experiência do místico é puramente espiritual”14. A
concepção de tempo, na mentalidade quiliástica, está muito ligada ao presente imediato, não
se preocupa com a construção do futuro e nem com o acontecimento passado – o essencial é o
evento imediato, o “aqui e agora”. Dessa maneira, “o quiliasma encara a revolução como um
valor em sim mesmo, não como um meio inevitável de se atingir um fim racionalmente
estabelecido, mas como o único princípio criador do presente imediato”15.
Embora nessa forma de mentalidade ainda não existisse uma forte racionalização, no
sentido de programação e planejamento (forte conexão com o presente e a concepção de
revolução como um fim em si mesma), ela apresenta um conteúdo utópico na medida em que
busca a realização dos desejos e sonhos transcendentes à realidade na qual está inscrita,
demonstrando já uma consciência sociopolítica nascente.
Idéia liberal-humanitária
Em oposição à mentalidade quiliástica, não era o êxtase ou a energia espiritual que
moviam as atividades na utopia do humanitarismo liberal, mas as “idéias”. Estas, segundo
Mannheim, fermentaram as ações do período imediatamente anterior e posterior à Revolução
Francesa.
A idéia humanitária moderna encontra na burguesia e na classe intelectual seus
principais entusiastas e estende-se do âmbito político ao cultural, passando pelo filosófico,
13 MANNHEIM, K. (1986) p. 237. 14 Ibidem, p. 239. 15 Ibid, p. 241.
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ampliando seu campo de atuação e provocando uma série de modificações na realidade da
época, como a ruptura com a visão de mundo clerical teológica16.
A percepção do tempo aqui também apresenta uma mudança se compararmos com a
da mentalidade utópica quiliástica: o tempo histórico é visto como um progresso, como uma
evolução linear. Essa idéia de progresso contínuo e unilinear originou-se do ideal burguês de
“razão”, que se tornou uma espécie de objetivo a ser alcançado – acreditava-se que a
realidade, ainda em estado de imperfeição, caminhava gradativamente ou “progredia” em
direção ao mais racional, a um estado mais próximo da perfeição. A partir desse ponto de
vista, a revolução era um estágio, um passo de transição em busca da perfeição, da razão;
qualquer estágio inserido nessa progressão gradual era um degrau nesse processo e constituía
uma fração de um quadro histórico do período.
Em decorrência dessa idéia de progresso, as esperanças e desejos da mentalidade
utópica liberal-humanitária encontravam-se no apogeu da evolução histórica e, nesse sentido,
nenhum evento poderia ocorrer subitamente (como se pensava na mentalidade quiliástica),
mas seria sempre parte do desenvolvimento histórico, de um constante processo de “vir a ser”;
o passado e o presente eram menos importantes do que o futuro, que se construía, entretanto, a
partir daqueles. Essa perspectiva revelava também o descontentamento dos grupos médios da
sociedade (a burguesia) com o poder dos estratos dominantes (a nobreza), justificado pela
herança erigida no passado.
Em oposição à mentalidade quiliástica, a idéia liberal-humanitária, portanto, enfatizou
o racional e o ideal de progresso, além de basear-se firmemente na cultura intelectual. Suas
idéias transcendentes à realidade como existia na época e o questionamento do poder
dominante foram combatidos pela mentalidade conservadora, sobre a qual discorreremos a
seguir.
16 Cf. MANNHEIM, K. (1986) p. 245.
20
Idéia conservadora
A mentalidade conservadora não reconhece problemas na realidade sobre a qual
impera e, portanto, não pode ser provida de utopia. Sob o ponto de vista desse tipo de
mentalidade, sua realidade – seu poder – está em plena consonância com a ordenação do
mundo e não precisa ser modificada, não havendo necessidade também, inicialmente, por
parte dos conservadores, de grandes teorizações ou da ênfase nas “idéias”, como acontecia na
mentalidade liberal-humanitária.
A mentalidade conservadora somente se agita e se questiona quando sofre os ataques
dos estratos opositores com suas idéias e desejos transcendentes e contrários à situação
cômoda e harmônica para os conservadores. Dessa maneira, a mentalidade conservadora age
mais como uma contra-utopia, diferentemente das outras formas de mentalidade.
Confrontando-se com a mentalidade liberal, os conservadores passam a taxar a idéia
daquela como abstrata, feita apenas de imagens, enquanto que o conceito conservador de
“idéia” seria mais concreto, inseparável da realidade viva do momento. Devido a esse
conceito de idéia e à sua posição sociopolítica, os conservadores, muito mais do que na utopia
liberal ou na quiliástica, apegam-se à realidade, que a seu ver representa valores positivos.
A noção e a valoração do tempo na mentalidade conservadora também se contrapõem
às do liberalismo e do quiliasma. No liberalismo, o futuro era o momento principal, o zênite
da progressão histórica; no quiliasma, não existia essa noção de continuidade temporal e
histórica; já no conservadorismo, ao passado era dada a maior importância, uma vez que
legitimava o seu sentido de determinação da realidade, carregada de um “valor positivo e
nominal”17, e edificada aos poucos a partir daquele. O conservador considera o presente
“simplesmente como o último ponto atingido pelo passado”18.
17 MANNHEIM, K. (1986) p. 259. 18 MANNHEIM, K. (1982) p. 128.
21
Como pudemos verificar, embora Mannheim tenha considerado a mentalidade
conservadora uma forma de mentalidade utópica, não podemos caracterizá-la como uma
utopia em si. Na realidade, talvez fosse mais pertinente pensá-la como uma contra-utopia,
uma vez que não existe incongruência e insatisfação dos conservadores com a ordem
existente; há antes o desejo de fazê-la perdurar, lutando contra os ataques dos estratos
ascendentes, opositores – o desejo da mentalidade conservadora é a de manter a realidade.
Utopia socialista-comunista
Segundo Mannheim, a utopia socialista, por ser de origem mais tardia, apresenta uma
mescla de várias formas de utopia já surgidas19: semelhante ao liberalismo, ela crê nas
realizações dos desejos transcendentes num futuro, todavia, aposta em um momento claro em
que elas acontecerão – após a queda do capitalismo -; e assim como no liberalismo, também
se contrapõe ao conservadorismo do “aqui e agora” perfeito.
A mentalidade socialista, contudo, considera as “idéias” do liberalismo muito
abstratas, como sonhos e desejos por demais imaginários. Para a utopia socialista, é essencial
analisar as possibilidades e as “condições reais (neste caso econômicas e sociais) sob as quais
a realização de desejos possa tornar-se de alguma forma operante”20. O futuro continua sendo
o tempo e o espaço da consecução das idéias transcendentes, mas, contrariamente à idéia
liberal, a utopia socialista examina as circunstâncias para certificar-se da execução dos seus
planos, conferindo uma concretude maior às suas idéias. Por meio desse mecanismo, a “idéia
está sendo constantemente corrigida e tornada mais concreta à medida que o presente se
adianta para o futuro”21. Tanto o passado quanto o presente e sua gama de condições sociais e
econômicas interferem no futuro e na possibilidade de realização dos projetos.
A mentalidade quiliástica, que ressurgiu nos movimentos anárquicos, também foi
combatida pelo socialismo, que tinha uma rígida organização, suplantando o modo de agir
19 MANNHEIM, K. (1986) p. 263. 20 Ibidem, p. 264. 21 Ibid, p. 270.
22
pouco coordenado dos anarquistas. A atitude revolucionária não se atém mais aos impulsos
casuais, despreocupados com o momento em que aflorarão; ao contrário, analisa e projeta um
ponto favorável para o ataque.
De acordo com Mannheim, as mentalidades utópicas sofreram um processo de
mudança no qual as utopias caminhavam para uma “aproximação maior ao processo
histórico”22. No quiliasma, havia um alheamento ao seu “estar no mundo”; nem o passado e
nem o futuro eram importantes (o essencial era o momento exato em que algum evento
aconteceria subitamente), e a revolução não tinha um fim maior além de si mesma; no
liberalismo, existia a noção de progresso das idéias e do mundo, o que levou a uma
valorização do futuro como o estágio da perfeição; todavia, as idéias ainda eram pouco
concretas se comparadas às do socialismo, que priorizou a análise das condições de uma
determinada situação para tentar antecipar a possibilidade de êxito dos seus projetos. Já
algumas idéias do conservadorismo, conforme Mannheim, eram seguidas por todas as classes
que tinham realizadas suas utopias, isto é, mesmo os liberais e os socialistas, quando tomaram
as rédeas do poder, adotaram, ao menos em parte, alguns valores conservadores, cedendo
espaço ao aparecimento, talvez, de novas utopias.
Para Mannheim, assim, o processo de surgimento e “morte” das utopias vinculava-se
diretamente aos interesses das classes sociais: forma-se, como já foi citada, uma relação
dialética entre a utopia e o processo histórico. Nesse sentido, só podemos tratar de utopia
explicitando a posição dos grupos sociais envolvidos e a capacidade deles de “pôr em prática”
os seus pensamentos e desejos, o que distancia esta visão teórica daquelas preponderantes até
os séculos XVIII e XIX.
Outro importante filósofo estudioso da utopia é o também alemão Ernst Bloch, cujas
teorias apresentam alguns pontos em comum com as de Mannheim, sendo que o primeiro
22 MANNHEIM, K. (1986) p. 272.
23
escreveu o seu célebre livro, O princípio esperança, em 1959, trinta anos após o lançamento
de Ideologia e Utopia. Ambos rechaçam a utilização do termo “utopia” meramente como
fantasia ou um espaço ideal inexistente, imaginação incapaz de ação efetiva, desprovida de
intenção ou energia, para uma transformação em busca da satisfação de desejos e vontades.
Bloch lança uma série de elementos novos em sua teoria sobre utopia que, para ele, “é,
em primeiro lugar, um topos da atividade humana orientada para um futuro, um topos da
consciência antecipadora e a força ativa dos sonhos diurnos.”23
Os “sonhos diurnos” ou “sonhos acordados”, opostos aos sonhos noturnos da
psicanálise de Freud, não se relacionam com um passado acabado, com o retorno de uma
ancestralidade perdida, mas estão comprometidos com o futuro, com “imagens de desejo”,
com a imaginação que planeja formas de diminuir os problemas e as carências do presente. É
a partir desses sonhos acordados que vão se constituindo as utopias.24 Os sonhos acordados
apresentam uma série de características, como:
• O sonho acordado não oprime: o “eu” pode controlar suas idéias, iniciando-as e
finalizando-as quando desejar. Ao passo que, no sonho noturno, o “eu” não tem
controle sobre seu inconsciente, não podendo também prever o conteúdo desse sonho,
o sonho diurno tem seus componentes e imagens construídos pelo “eu”.
• No sonho noturno, o “eu” opera como censor, camuflando as imagens do seu desejo,
exercendo uma censura moral, mesmo que com algumas defasagens. Já no sonho
diurno, o “eu” não censura os anseios, não é cerceado por um “ego moral”25 e mostra-
se mesmo inflexível frente aos empecilhos com que possa deparar-se.
• O sonho desperto não é necessariamente individual; ele tem “amplitude humana”26.
Quando o “eu” amplia o horizonte de desejos de um espaço micro para um macro e
23 MUNSTER, A. (1993) p. 25. 24 Cf. FURTER, P. (1974) p. 83. 25 BLOCH, E. (2005) p. 92. 26 Ibidem, p. 93.
24
ultrapassa a introspecção, o seu sonho diurno aponta para uma melhoria geral. Os
anseios por um mundo melhor podem surgir de um “eu” que exteriorizou seus
pensamentos e que entrou em consonância com outros “eus”.
• O sonho diurno está sempre orientado para a realização, para a concretização. Os
desejos são seu ponto de partida, mas, em oposição aos dos sonhos noturnos, buscam a
realização. O sonho desperto “projeta as suas imagens em coisas futuras, de forma
alguma a esmo, mas passível de ser direcionado, por mais intempestiva que seja a
imaginação, podendo ser intermediado pelo objetivamente possível”27. Os conteúdos
do sonho acordado não necessitam de interpretação, como os dos sonhos noturnos,
mas revelam a busca pela concretização em um futuro, podendo, para isso, ser
refletidos e planejados, como possibilidades concretas.
Ainda relacionado aos sonhos diurnos, Bloch lança mais um elemento: o “ainda-não-
consciente”. Diferentemente do inconsciente tão estudado por Freud, o “ainda-não-
consciente” não se relaciona com o reprimido ou com o obliterado, mas refere-se ao novo, a
algo futuro, sendo por isso comparável aos sonhos despertos. Ambos trabalham para a
produção do novo, do nascente e, conforme Bloch, eles são indispensáveis para a concepção
de todas as “situações produtivas inéditas” - é o “sonhar para frente”.
Para que surja uma função utópica propriamente dita, porém, é necessário que o
“ainda-não-consciente” comece a tomar consciência de si como ação, como ato em
“emergência” e “ciente” de seu próprio conteúdo. Essa concretização ou a exteriorização
crucial para a geração da função utópica, o alimento para a fundamentação e consecução dos
sonhos diurnos, só se produz, consoante Arno Münster, após um estímulo ou “impulso”, que
pode ser tanto do âmbito psicológico quanto do somático: o novum, o “sinal despertador da
consciência”28, ou a fome, ou seja, a carência, a falta.
27 BLOCH, E. (2005) p. 100. 28 MÜNSTER, A. (1993) p. 29.
25
Segundo Pierre Furter, estudioso da obra de Bloch, a fome, em termos somáticos, leva
o homem ao acordar de consciência, porquanto desperta a sua condição de carência, de falta e,
ao mesmo tempo, também a possibilidade de satisfazer essa carência (busca de alimento para
satisfazer a fome fisiológica, além da falta ontológica). Além disso, a consciência da fome
conduz a uma comunicação, interação entre os homens: podem-se formar grupos para facilitar
a procura de alimentos, para possibilitar a sua troca, entre outras coisas. Em suma, a fome
acaba por obrigar os indivíduos a tentarem solucionar seus problemas, havendo sempre a
opção de fazê-lo em comunidade.
O problema da fome, então, desencadeia-se pelo “impulso”, que segundo Münster
“procura demonstrar a existência de um ‘ainda-não-consciente’”29. É um impulso que vai
catalisar o desejo, o qual, por sua vez, caminhará para um possível cumprimento do que é
desejado (pela carência sentida com a fome). Todo esse processo constrói a consciência
utópica e, por conseguinte, a “produtividade criadora”.
Essas teorias de Bloch servirão muito ao nosso trabalho, na medida em que nos dão
instrumentação para compreender, em certos aspectos, como o contexto latino-americano foi e
é fértil para o “sonhar-para-frente”, para o “sonho diurno” impulsionado pela fome, carência.
Fernando Aínsa, teórico melhor abordado no próximo item, é muito afeito a essa proposição,
empregando a concepção blochiana de utopia em sua obra.
1.2. A utopia na América Latina
Neste item, discorreremos sobre a utopia especificamente na América Latina e, por
isso, utilizaremos as reflexões do chileno Fernando Aínsa, um dos grandes estudiosos do
assunto inserido no contexto latino-americano.
29 MÜNSTER, A. (1993) p.31.
26
Consoante Aínsa, a América Latina sempre foi marcada pela tensão utópica, que se
apresenta como a discrepância entre o “ser” da sua realidade e o que “deveria ser” ideal. Essa
tensão acompanhou e fez parte de todo o processo histórico da América Latina desde a
chegada dos europeus. Aínsa chama a atenção para um fato peculiar – a reduzida produção do
gênero utópico em língua espanhola, face a uma maior profusão de utopias escritas em
francês, inglês, italiano e alemão – o que pode ser explicado, segundo o autor, pela logo
inicial dialética (a partir do confronto entre os dois universos opostos – Europa e Américas)
entre as teorias européias para a construção de um mundo melhor e a práxis, ou seja, a
aplicação dessas teorias, praticadas e vivenciadas por espanhóis e portugueses em terras
americanas, diferentemente das simples teorizações utópicas abstratas que ganharam espaço
na Europa da época dos “descobrimentos”.
Foi sendo construída, desde a sua gênese, no imaginário europeu, uma imagem de
América extremamente imaginativa e utópica. A terra paradisíaca e cheia de riquezas naturais
passou a abrigar os mais variados projetos utópicos, que vão desde a busca pelo “El Dorado”,
pela fonte da juventude, até as missões jesuíticas e as posteriores utopias dos próprios latino-
americanos, que internalizaram a crença em uma América “continente do futuro”, da
esperança, do “em se plantando tudo dá” – idealizações de “nossa América” que muitas vezes
foram sepultadas em decepções.
Essas características exclusivas à edificação da imagem da América foram forjadas a
partir da confluência de dois fatores que permitiram tal construção: espaço e tempo30. A
América, conforme sugere a própria alcunha recebida de seus “descobridores” – Novo Mundo
–, tornou-se território propício “à objetivação da utopia”31, sendo considerada uma “tábula
rasa” em que os europeus poderiam testar projetos de organização política e social frustrados
na Europa.
30 Cf. AÍNSA, F. (1990) p.21 31 AÍNSA, F. (1990) p.23
27
Como “Novo Mundo”, a América não tinha um passado histórico. No grande
confronto entre culturas díspares, o conquistador via, muitas vezes, o “outro”, o indígena, a
partir da diferença, o que implica a inferiorização do diferente32, cuja história não é
considerada. Essa “inexistência” de passado e de história, conjugada à idéia de que havia
ainda um tempo (um futuro) por fazer, e de que a América era um espaço ainda não explorado
– que se mostrava, à primeira vista, rico e fértil – proporcionaram os ingredientes necessários
para que a América se tornasse o terreno ideal para a experimentação prática dos projetos
utópicos europeus. A idéia de América, terra das utopias, construída pela Europa, foi
internalizada, mais tarde, inclusive pelos latino-americanos e acompanhou todo o seu
processo histórico, sobretudo em cinco momentos de grande tensão utópica listados por
Fernando Aínsa: “no encontro e descobrimento; na conquista e colonização; na
Independência; na consolidação dos estados nacionais, e na época contemporânea”33.
No encontro e descobrimento
A idéia de América foi edificada, à época do “descobrimento”, em 1492, a partir de
mitos clássicos e medievais que apresentavam fortes “pulsões utópicas” – lendas sobre
lugares perfeitos e de natureza abundante. A marcha rumo ao desconhecido da civilização
ocidental sempre caminhou para o Oeste, onde, em algum rincão, encontravam-se os locais
legendários: Campos Elíseos, Ilhas Bem-Aventuradas, entre outros variados jardins e ilhas
afortunadas sempre empurradas em direção ao Oeste, à medida que as explorações e as
viagens iam desvendando as terras ignoradas pelos europeus.
Conforme Aínsa, “a busca pelo utópico é geográfica”34 e aliou interesses econômicos
e comerciais com expansão religiosa e a crença e busca pelas citadas regiões lendárias, num
movimento que culminou com o “descobrimento” das Américas por Colombo. O contato (e o
32 Cf. TODOROV, T. (1999) p.50 33 AÍNSA, F. (1990) p.24 34 Ibidem, p.25
28
confronto) de Colombo com as ilhas paradisíacas e seus habitantes pareceram apenas
confirmar o que ele esperava encontrar, alimentando com um fato “concreto” seu imaginário
clássico-medieval: nesse período, a fantasia não se desfez com o confronto com a realidade,
como nos mostram os relatos e crônicas européias sobre as novas terras, sempre repletas de
monstros e seres saídos dos bestiários medievais e das histórias da Antigüidade.
Essas crônicas difundiram-se na Europa e tiveram importante influência no surgimento
do gênero utópico (Utopia, de Thomas Morus, é um exemplo), que foi se desenvolvendo
concomitantemente à conquista e colonização da América, num processo dialético de teoria e
prática, como já dissemos no início deste item: enquanto a América vivia um intenso
momento de exploração, recebendo expedições de reconhecimento e conquista, a Europa
parecia experimentar uma sensação de potencial concretização de ideais de espaço e
sociedades melhores; daí o surgimento do gênero utópico. Não se conseguia dissociar, nesse
momento, o mito ou a sua transposição para as terras americanas da tentativa palpável de
construção de uma utopia35.
Assim, como um espaço remoto e a ser explorado pelos europeus, a América teve seu
“nascimento” permeado pelas crenças e tensões utópicas européias que marcaram seu
processo histórico e, por conseguinte, a construção de sua identidade.
Na conquista e colonização
A simples transposição do imaginário europeu às terras americanas teve de render-se à
realidade que se apresentou: a imagem do paraíso terrestre, de riquezas naturais abundantes,
foi sendo esfacelada pela violência da conquista, e formou-se uma incongruência entre o que
“deveria ser” e a realidade.
35 Cf. AÍNSA, F. (1990) p.27
29
Diante dessa situação, o europeu procurou intervir e restabelecer a ordem através da
aplicação de projetos utópicos na América, buscando erigir um “paraíso” neste mundo, e por
suas próprias mãos o “homem descobre e assume sua capacidade demiúrgica graças ao
descobrimento da América”36. As utopias sociais cristãs dos missionários espanhóis (como
Motolinía, Bernardino de Sahagún e Frei Bartolomé de las Casas) exemplificam essa nova
atitude.
Questionando a violência e a cobiça espanholas bem como a sociedade européia em
geral deturpada, os missionários espanhóis de ordens mendicantes (em sua maioria grandes
etnólogos, conhecedores dos costumes e línguas indígenas) começaram a idealizar e a tentar
experimentar concretamente projetos de sociedades “indocristãs” nas colônias, onde
evangelizariam os índios ao mesmo tempo em que resgatariam o modo e a organização de
vida do Cristianismo primitivo – vida simples, homens honestos e trabalhadores.
No caso dessas utopias, os indígenas são vistos segundo a perspectiva da alteridade
ratificada pelas pesquisas dos padres evangelizadores. Estes consideravam os habitantes
autóctones “bons selvagens”, dóceis, simples e inocentes, as “tabulas rasas” ideais para a
aplicação dos preceitos cristãos, e, portanto, para a consecução de sua utopia – sociedades de
“estado natural”, contrapostas às européias, caracterizadas por um modo de vida corrompido
pela ambição e pela cobiça e, portanto, já muito apartado dos ideais cristãos.
Percebe-se, nesse período, de acordo com Aínsa, a intrínseca relação entre teoria e
prática, em que uma influencia a outra: um exemplo é a Utopia, de Morus, que, como já
dissemos, buscou inspiração na “descoberta do Novo Mundo”. Alguns aspectos dessa obra,
por sua vez, foram retomados por Vasco de Quiroga em seus “Hospitais-pueblo”37, que
começaram a ser implantados em 1532, sobreviveram por quase trinta anos e primavam pela
igualdade, solidariedade e simplicidade. Poderíamos citar também outros casos, como o de
36 AÍNSA, F. (1998) p.16. “[...] el hombre descubre y asume su capacidad demiúrgica gracias al descubrimiento de América.” 37 Ibidem, p.156
30
Bartolomé de las Casas e o das missões e reduções no Paraguai, na Argentina e no sul do
Brasil, mas o essencial e comum a todas as utopias sociais cristãs é a possibilidade que os
missionários encontraram de aplicar concretamente suas idéias utópicas em um espaço real
com pessoas reais, organizando-o da forma como “deveria ser” e não como era na realidade
espanhola.
Na independência
Com o sufocamento das utopias cristãs sociais, que se tornaram um empecilho aos
interesses econômicos da Coroa Espanhola, houve um abrandamento do pensamento utópico:
a surpresa e a esperança que o desconhecimento sobre o “Novo Mundo” trouxe para os
europeus perderam-se com a realidade imposta em grande parte por estes mesmos e o Império
Espanhol passou a controlar severamente a exploração das colônias através da administração
centralizada e da Inquisição, o que sufocava a criação de projetos para um futuro melhor.
Conforme Aínsa, o Iluminismo trouxe novamente à tona os pensamentos utópicos.
Houve tanto uma espécie de retomada do ideal do “estado natural” caracterizado pela teoria
de Rousseau sobre o “contrato social”, que relembra o mito do “bom selvagem americano”,
quanto a inspiração oriunda dos textos provenientes da Revolução Francesa e da
Independência dos Estados Unidos. A América começava a se desligar das utopias que se
construíam como contraposição à Europa e a buscar uma utopia própria, embora ainda
utilizasse como modelos os pensamentos teóricos europeus. Projetavam-se as “utopias para
si”, não mais as utopias dos “outros”.
Os ideais utópicos de igualdade e liberdade para todos afirmaram-se com todo o vigor
nos períodos da revolução e das independências (1810-1825), em que a incongruência entre
realidade e idealidade (o desejo de um futuro pós-revolucionário melhor) foi a tônica,
propiciando o surgimento da imaginação utópica efervescente, que clamava por mudanças. Os
31
sonhos diurnos blochianos repletos de desejos, planos e capacidade de reflexão para construir
o futuro receberam o impulso necessário para transformarem-se em ação efetiva e figuras
emblemáticas como Simón Bolívar detinham tanto os desejos utópicos quanto a capacidade
de ação revolucionária a favor da América liberta e unida.
Mas, o momento imediatamente posterior a esse – a edificação das novas nações
latino-americanas – também acolheu projetos utópicos, como veremos a seguir.
Na consolidação dos estados nacionais
Pouco depois das independências e da onda de esperança que as acompanhou, a
América Hispânica novamente depara-se com uma realidade não condizente com os sonhos
utópicos – golpes de estado instauram ditaduras; surgem conflitos entre países vizinhos por
disputa de territórios; interesses políticos individuais sobrepujam as necessidades do povo
(presença marcante dos caudilhos), e intervenções diretas da Inglaterra e dos Estados Unidos
destroem por completo o sonho da unidade e da igualdade. O próprio Bolívar, em seus
últimos dias, mergulhou na distopia ao presenciar o caos instaurado em sua América.
Todavia, Aínsa ressalta que, entre 1865 e 1914, a América volta a ser a “terra
prometida” devido à chegada dos imigrantes: “a função utópica nesse período é mais espacial
e geográfica do que ideológica”38. O espaço americano é idealizado e abrem-se novos
caminhos a serem explorados para atrair os estrangeiros, que ajudariam a compor os estados
nascentes. Assim, a terra onde “em se plantando tudo dá” retoma as nuances de sua antiga
imagem da época dos “descobrimentos”.
É interessante notar também que, como sempre ocorre, a tensão utópica é alimentada
pela situação de miséria, opressão e despotismo que se instalou na América, na medida em
38 AÍNSA, F. (1990) p.35
32
que se confronta diretamente essa realidade com os desejos de transformá-la. A partir dessa
condição surgem idéias utópicas de repúblicas democráticas mais igualitárias.
Na época contemporânea
É no século XX, quando eclodem na América Latina diversas revoluções e programas
para a organização de uma sociedade mais justa, que se consolidam as exigências de uma
utopia verdadeiramente latino-americana, uma utopia “para si”, deixando de lado as utopias
construídas pelos europeus para a América. É nesse estágio que os latino-americanos
reivindicam as utopias para a sua própria melhoria, marcando, ao mesmo tempo, o
amadurecimento de um pensamento mais autônomo, mais voltado aos seus próprios contexto
e peculiaridades.
Nos anos de 1960, por exemplo, no Brasil, o discurso utópico apresentou-se nos
projetos da Igreja Católica, como a Teologia da Libertação, que ganhou espaço
principalmente no Nordeste, em defesa dos oprimidos, esmagados pela pobreza e pela
exploração socioeconômica exercida pelos grandes latifundiários.
Outra fonte, ainda mais significativa, de utopias foi a das teorias socialistas marxistas
que nortearam verdadeiras revoluções, como a de Cuba, e que, durante muito tempo, foram
importantes componentes de inúmeras rebeliões e revoltas em toda a América Latina (uma
delas foi retratada em La tumba del relámpago, de Manuel Scorza). Todos esses processos
revolucionários renovaram a esperança e também a crença de uma América Latina como
“continente do futuro” (recuperando novamente sua imagem da época dos “descobrimentos”),
o local que acolhe sonhos de uma vida melhor e projetos revolucionários que malogravam na
Europa Ocidental.
Fernando Aínsa, retomando muitos pontos da teoria blochiana, como a de pulsão ou
impulso, para dissertar sobre a questão utópica especificamente na América Latina, oferece-
33
nos condições para melhor compreender a tensão utópica que acompanhou de perto todo o seu
processo histórico (além do desenvolvimento de um pensamento mais autônomo por parte dos
próprios latino-americanos que ladeou o percurso da utopia – desde sua condição de utopia
dos outros até a de utopia de América) e as rebeliões e revoltas que sempre o permearam,
como as dos camponeses indígenas retratadas por Jorge Icaza e Manuel Scorza, nossos
objetos de estudo.
34
2. A VISÃO SOBRE O INDÍGENA NA LITERATURA ANDINA
Se considerarmos uma concepção monolítica de identidade, baseada na fictícia
herança Hispânica (branca e européia), propalada pelas camadas dominantes das sociedades
hispano-americanas, o indígena, marginalizado na maior parte das vezes, desempenha, na
América Hispânica, o papel da alteridade, do “outro” (embora seja, quantitativamente, a
maioria étnica em muitas nações hispano-americanas). Por outro lado, ao se inverterem os
papéis, o europeu e seu descendente tornam-se o “outro”, o que cria uma nova oposição e
mantém a dicotomia em que o hispano-americano se posiciona e se enxerga ainda em relação
ao “dominador”. A questão, no entanto, é mais complexa se pensarmos que não existem
apenas dois lados envolvidos: há em jogo uma gama imensa de valores, etnias, influências
culturais, interesses políticos e econômicos, e, a partir de cada uma dessas variáveis, pode ser
tecido um novo e diferente discurso.
Assim, o indígena (andino, falante de quíchua, o tema escolhido para o nosso estudo)
foi retratado, na literatura, de formas variadas, de acordo com o interesse e com a intenção de
cada autor – este, por sua vez, contextualizado em determinada época e espaço. Veremos mais
tarde que, conforme o modo como os indígenas são representados nos romances, há o
surgimento ou não do pensamento utópico, que depende, como esclarecemos no capítulo
anterior, da capacidade de “sonhar para a frente” ou da existência de um “potencial
revolucionário” consciente do desejo de mudança face à realidade desfavorável.
Nos itens a seguir, focalizaremos algumas dessas tendências de representação
narrativa dos indígenas, sobretudo os denominados “Indigenismo” e “Neo-Indigenismo”
andinos.
35
2.1. Indigenismo andino
As narrativas indigenistas, em geral, tiveram espaço em diversos países, como Peru,
Bolívia e Equador, na primeira metade do século XX, sendo “herdeiras”, consoante a maioria
dos críticos e estudiosos do tema, dos romances chamados “indianistas”, em voga
principalmente na segunda metade do século XIX.
Tanto os romances indianistas quanto os indigenistas têm o índio como tema,
representando-os, no entanto, de maneira diferente: no primeiro, este aparece como elemento
exótico, visto, segundo Cláudia Luna, como um “um ser abstrato, que perde sua categoria
social e humana para converter-se em objeto do passado, ou em mera realidade étnica”.39 Os
romances indianistas apresentam ainda, conforme Cornejo Polar, “ideologia oligárquica, com
componentes racistas”40, trazendo, assim, uma crítica ética em relação a um sistema
exploratório cruel, mas não social, já que existe ainda uma estreita proximidade com a
mentalidade patriarcalista, que se compadece do indígena, mas nem sempre questiona
plenamente os grandes proprietários de terra e a posição de inferioridade ocupada por aqueles.
Aliadas a essas características gerais, os diversos romances indianistas podem
apresentar diferentes formas de lidar com o tema, propondo respostas e soluções para a
presença e o destino das populações indígenas na construção das nações hispano-americanas.
Assim, romances como Cumandá, do equatoriano Juan León Mera, publicado em 1879,
oferecem uma visão dual sobre os indígenas, que podem ser “bons selvagens” se tocados
pelos ensinamentos da religião católica, cuja aprendizagem confere boa índole e costumes
civilizados – já que, como “tábulas rasas”, poderiam absorver os conhecimentos necessários
para abandonar, em parte, a barbárie ou permanecer nela quando não evangelizados. A
proposta de León Mera era a de conferir um sistema teocrático à República do Equador,
39 LUNA, C. (1994) p.113. 40 CORNEJO POLAR, A. (1994) p.727.
36
lamentando a expulsão dos jesuítas do território equatoriano, cuja missão civilizatória ficara
ainda inconclusa. A ausência dos jesuítas abria caminho para a cruel exploração dos indígenas
por parte de muitos brancos.
Embora León Mera faça esse tipo de questionamento, fica evidente (em Cumandá e
em outros romances indianistas, como Tabaré, por exemplo) a necessária e indiscutível
posição subalterna dos índios, pois, mesmo os cristianizados devem ser submissos aos
brancos. León Mera cria a imagem de uma sociedade nacional que pode condenar a violência
excessiva dos latifundiários, porém, como bem observou o célebre crítico literário peruano
Antonio Cornejo Polar, “funciona sob uma ordem vertical que tem como razão justificadora a
religião”41. O índio de Cumandá, em realidade, não protagoniza nem mesmo o romance
(tônica de outras narrativas indianistas, que mostram com clareza a impossibilidade da
existência de um indígena autônomo e integrado de forma igualitária nas sociedades latino-
americanas em formação). Segundo Doris Sommer, especialista em literatura latino-
americana, “não é absolutamente sobre eles [os índios de Cumandá, Tabaré e Enriquillo],
mas sobre brancos que escrevem [Juan León Mera, Juan Zorrilla de San Martín e Manuel de
Jesús Galván], sobre uma tela de fundo pagã”42. Os indígenas não ocupam e nem podem
ocupar posição de destaque nas sociedades nascentes, como enfatizam os escritores do
Indianismo: a imagem mais positiva dos índios por eles construída é a de bons criados, cuja
cristianização garante ao menos um caminho para a civilização.
O Indigenismo lançou uma série de mudanças em relação ao Indianismo que não se
referem apenas à literatura, como advertiu o sociólogo peruano José Carlos Mariátegui, cujas
reflexões sobre os indígenas são ainda hoje extremamente relevantes: “O problema indígena
tão presente na política, na economia e na sociologia não pode estar ausente da literatura e da
41 CORNEJO POLAR, A. (1994) p.129. “[...] funciona bajo un orden vertical que tiene como razón justificatoria la religión [...].” 42 SOMMER, D. (2004) p.300
37
arte”43. O Indigenismo literário, portanto, floresceu juntamente com as reflexões acerca da
situação dos índios nas sociedades hispano-americanas (sobretudo as andinas e, em especial,
as do Peru, Equador e Bolívia), questionando a organização socioeconômica que os oprime.
Vale ressaltar que nos ocuparemos, nesta dissertação, apenas do Indigenismo literário,
discorrendo sobre suas peculiaridades e características.
Cornejo Polar propõe três perspectivas de abordagem do Indigenismo andino que nos
auxiliarão na compreensão do movimento literário, tanto em relação à sua inserção nas
contradições inerentes ao seu modo de produção quanto em relação às discussões em voga no
período em que se manifestou. São elas: sua condição evidente de literatura heterogênea, sua
ligação com o regionalismo, e sua concomitante busca pela modernização.
Primeiramente, é importante salientar que o Indigenismo (assim como o Indianismo e
o Neo-Indigenismo) é um movimento ou tendência literária produzida no entrecruzamento de
duas (ou mais) culturas conflitantes e não pode ser confundido com literatura indígena, como
afirmou Mariátegui:
A literatura indigenista não pode dar-nos uma versão rigorosamente verdadeira do índio. Tem que idealizá-lo e estilizá-lo. Tampouco pode dar-nos sua própria anima. É, assim, uma literatura de mestiços. Por isso se chama indigenista e não indígena. Uma literatura indígena [...] virá em seu tempo. Quando os próprios índios puderem produzi-la.44
A literatura indigenista, então, é produto do ponto de vista do “mestiço” – que não tem
em Mariátegui o sentido obrigatoriamente étnico, mas de mestiçagem cultural também – que
escreve sobre o indígena a partir do seu contexto sociocultural. E essa condição não prejudica
sua obra, embora muitos a criticassem, exigindo uma visão mais “autêntica” do índio.
43 MARIÁTEGUI, J.C. (1973) p.328. “El problema indígena tan presente en la política, la economía y la sociología no puede estar ausente de la literatura y del arte.” 44 Ibidem, p.335. “La literatura indigenista no puede darnos una versión rigurosamente verista del indio. Tiene que idealizarlo y estilizarlo. Tampoco puede darnos su propia ánima. És todavia una literatura de mestizos. Por eso se llama indigenista y no indígena. Una literatura indígena [...] vendrá a su tiempo. Cuando los propios indios estén en grado de producirla.”
38
A distância que separa o receptor e o autor dos romances indigenistas do seu referente
– os índios – não se limita, todavia, apenas à cultura, mas abarca também formações e
estruturas sociais e econômicas totalmente diversas e beligerantes, mantenedoras de um
conflito tão antigo e profundo quanto a chegada dos espanhóis ao Novo Mundo. Em razão
desses motivos, consideramos de essencial importância a categoria de heterogeneidade,
cunhada por Antonio Cornejo Polar para caracterizar a literatura indigenista. Como
heterogênea, a literatura indigenista compreende uma instância produtora – composta,
geralmente, por intelectuais escrevendo em espanhol, imbuídos de uma certa ideologia
(positivismo, marxismo, entre outras) –, a qual procura dar conta e “interpretar” um outro
universo, o indígena, cujas peculiaridades são: a predominância da oralidade sobre a escrita, o
quíchua, uma racionalidade estranha à do “europeu”, e uma realidade social muito diversa da
do produtor do romance indigenista.
Ainda conforme Cornejo Polar, a produção indigenista é de tal modo heterogênea que
isso a torna comparável às crônicas da conquista, se a inscrevermos em um “tempo mais
longo” da América, para além das fronteiras de seu próprio momento histórico (modernização
capitalista dos países andinos sob o comando dos Estados Unidos). Algumas características
dos romances indigenistas podem, então, ser melhor compreendidas se eles forem cotejados
com as crônicas: “norma estilística quase sempre explicativa (às vezes em excesso) e também
sempre comparativa (o outro é ininteligível se não for referido ao próprio), até, em outro
nível, à índole da história narrada que repetidamente é a história de uma interferência”.45
Quanto à última característica, é importante salientar que não há romance indigenista
sem que exista uma interferência, ou seja, o mundo indígena somente pode se converter em
narração, matéria romanceável, a partir do momento em que é interpretado (ou agredido) de
fora, marcando uma drástica separação entre um “antes” e um “depois”. Esse fato também
45CORNEJO POLAR, A. (2000) p.196
39
evidencia que o indígena é visto por uma perspectiva “estrangeira” e seu universo é
“traduzido” pelo narrador para o leitor, quase sempre de forma pretensamente realista e
autêntica, o que, no entanto, não diminui a validade e o interesse sobre as obras indigenistas,
visto que uma visão “de dentro” desse mundo somente é possível na literatura indígena, como
Mariátegui já prevenira.
Outro dado de sumo interesse sobre o Indigenismo é a sua relação e “filiação” com os
movimentos regionalistas. Estes surgiram como uma espécie de resposta à modernidade e aos
movimentos de Vanguarda introduzidos na América Latina nas primeiras décadas do século
XX, principalmente durante e após a Primeira Guerra Mundial, preocupados em antenar-se
com as novidades européias, de certo modo internacionalizando-se.
Não houve sempre um antagonismo claro entre vanguardismo e regionalismo, já que,
consoante Ángel Rama, primeiramente o impacto modernizador gerou um “retornar
defensivo, submergindo na proteção da cultura materna”. E ainda conforme o autor, “em um
segundo momento, na medida em que a volta não soluciona nenhum problema, [são feitos] o
exame crítico de seus valores, a seleção de alguns de seus componentes [...]”46, seguidos,
então da incorporação de novidades, que são processadas de maneira a capacitar a formulação
de “respostas inventivas, recorrendo a seus componentes próprios”47. Apesar desse
sincretismo transculturador, houve, segundo Cornejo Polar, uma bifurcação da literatura
latino-americana nessa época: o regionalismo prezava pelos projetos sociais, propondo uma
crença no uso da literatura como um instrumento singular para a compreensão, a interpretação
e a transformação da realidade (elementos distintivos do Indigenismo), ao passo que as
vanguardas voltavam-se para a inserção no “novo espírito de uma época vertiginosamente
mutante”.48
46 RAMA, A. (2001) p.256. 47 Ibidem, p.258. 48 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.199.
40
No tocante ao Indigenismo especificamente, verificamos que ele se distingue em
muitos aspectos do Indianismo, repelindo a ideologia oligárquica neste presente e rendendo-se
artisticamente ao realismo. Ademais, o Indigenismo contrapõe-se claramente ao tom
romântico predominante em grande parte das narrativas indianistas (tramas repletas de
aventura e mistério, o amor idealizado, a mulher pura e bela, as paisagens igualmente
idealizadas e exóticas são alguns exemplos do veio romântico do indianismo). De acordo com
Cornejo Polar, esse veio anti-oligárquico relaciona-se a um projeto de nacionalidade andina,
que se opunha ao ideal hispanizante das oligarquias e defende uma imagem mais mestiço-
indígena das nações hispano-americanas. Tal posição do Indigenismo, entretanto, mostrou-se
paradoxal em vários momentos e em vários romances, uma vez que se conservava uma série
de resquícios positivistas, que acabavam por condenar o indígena ainda a uma situação
subalterna, transformando-o em objeto de sua própria história, quando se reivindicava uma
imagem desse mesmo índio como a identidade das nações andinas.
É interessante destacar que, embora o Indigenismo apresente problemas e
contradições, ele obteve êxito ao transpor o âmbito do romance, do texto, para alcançar a
esfera social e prática, isto é, as denúncias dos abusos contra os indígenas auxiliaram no
projeto e na consecução de programas sociais.49
Quanto à relação entre o Indigenismo e a modernização, é freqüente encará-la em suas
controvérsias: não é tarefa simples aliar os dois elementos, tradição e modernização, já que
esta se mostra, por vezes, necessária para a própria sobrevivência das comunidades frente ao
avanço do poder capitalista, além da evidente indispensabilidade de se modernizar o sistema
econômico andino ainda semifeudal (essas questões são tratadas em maior ou menor grau em
Huasipungo; em Redoble por Rancas e n’A guerra silenciosa em geral).
49 Cf. CORNEJO POLAR, A. (2000) p. 202
41
De acordo com Cornejo Polar, quem melhor soube sintetizar Indigenismo e
modernização foi Mariátegui, para quem tradição e modernidade não representavam conceitos
e nem características fixas e inalteráveis, e o Indigenismo conciliava-se com o socialismo.
Com referência à tradição, Mariátegui criticava seu caráter colonial e limenho (posição
dos tradicionalistas peruanos), que limitava a nação peruana aos seus elementos oriundos da
cultura espanhola, e reivindicava uma tradição incaica, de um passado tido como “pré-
histórico” pelos conservadores e pela camada dominante. Esse resgate do passado incaico era
também requerido pelos revolucionários (entre os quais estava Mariátegui) e não implicava o
rechaço de outras influências, mas uma ampliação do que se considerava “tradição”, que não
pode ser entendida como algo estático e imutável, mas, ao contrário, como algo que está em
construção e faz parte da história, tendo, portanto, elementos heterogêneos e antagônicos.
Dessa maneira, a tradição não entra em conflito com o revolucionário, uma vez que este luta
pelas mudanças na sociedade, assim como a tradição não se encontra nunca imobilizada no
tempo50.
Se o revolucionário não conflita com a tradição, Mariátegui também não dissocia
Indigenismo (ligado à tradição e ao regionalismo) de Socialismo. Para ele, o incanato era uma
espécie de “comunismo primitivo”, cujos ecos permaneceram, de forma retrabalhada, nas
comunidades indígenas existentes no Peru. Ainda que a primeira idéia seja atualmente
refutada (embora não fosse à época do sociólogo peruano), Mariátegui conseguiu, como
afirma Cornejo Polar, resolver “a disjuntiva entre tradição e mudança [...] e trabalhar o
problema indígena em relação ao que parecia ser um tema à parte e mesmo contraditório: a
modernidade”51. Além disso, é certo que o Socialismo, como representante e defensor da
classe dos trabalhadores, não poderia se distanciar da causa dos indígenas – que, no Peru,
constituíam quatro quintos da massa trabalhadora. Assim, conforme escreveu Mariátegui,
50 Cf. MARIÁTEGUI, J.C. (2005) pp.112-117. 51 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.207.
42
“nosso socialismo, pois, não seria peruano – sequer seria socialismo – se não se solidarizasse,
primeiramente com as reivindicações indígenas. [...] Essa atitude não é postiça [...]. É apenas
socialista.”52
Deste modo, Mariátegui alia lucidamente Socialismo e Indigenismo, adaptando o
Socialismo (que em sua origem, obviamente não havia sido refletido tendo por base o
contexto andino) ao Peru e às suas peculiares condições econômicas e sociopolíticas.
Consoante Cornejo Polar, Mariátegui compôs uma modernidade andina, em que esse
Socialismo peruano poderia modernizar o Peru ainda envolto no “gamonalismo” – inerente ao
feudalismo implantado durante o período colonial, que persistiu ao longo da República e que
não foi extinto pela burguesia peruana –, transformando, dessa forma, a sociedade peruana e
valorizando o papel dos indígenas na construção dela.
Quanto à literatura especificamente, Mariátegui prezava o que se denominava
“Indigenismo Vanguardista”, no qual também não reconhecia contradições, porquanto o tema
indígena poderia conviver e mesclar-se aos componentes oriundos da Vanguarda. Tomás
Escajadillo, importante estudioso da literatura peruana, adverte que esse Indigenismo
Vanguardista desenvolveu-se mais na poesia e obteve grande espaço na revista Amauta,
dirigida por Mariátegui, ao passo que, na prosa indigenista, houve muito pouca adesão aos
elementos vanguardistas.
Cabe, após a contextualização do Indigenismo e de algumas observações acerca de sua
condição de literatura heterogênea, ater-nos às características intrinsecamente literárias (mais
“formais”) dos romances indigenistas, valendo-nos da obra de Escajadillo, que as desenvolveu
claramente.
Alguns autores como Concha Meléndez e Seymour Menton distinguem Indianismo de
Indigenismo pelo fato de o último apresentar o “protesto social” ou reivindicação social53 e o
52 MARIÁTEGUI, J.C. (2005) p.110 53 Cf. MENTON, S. (1978) p.232
43
primeiro mostrar um índio e uma paisagem exóticos. Sendo assim, para Menton, Aves sin
nido (1889), de Clorinda Matto de Turner, seria o primeiro romance indigenista peruano,
escrito ainda no século XIX, visto que a autora contesta os abusos cometidos por religiosos e
comerciantes contra os indígenas. Também baseado nessa premissa, Menton reúne desde
Alcides Arguedas (Raza de bronce) até Manuel Scorza (La guerra silenciosa) em um mesmo
grupo.
Escajadillo, entretanto, discorda dessa qualificação e amplia o rol de elementos
próprios do Indigenismo: somente o protesto contra a exploração dos índios não é suficiente
para identificar o romance como indigenista. É preciso também que este tenha se afastado de
componentes relacionados ao Indianismo, como a idealização romântica dos indígenas e das
paisagens que os envolvem (Aves sin nido, segundo Escajadillo, é ainda indianista, ou melhor,
de transição do Indianismo ao Indigenismo, visto que, além de se desenvolver dentro de uma
trama romântica, apresenta um índio bastante irreal, apesar de já acolher a reivindicação
social. Cumandá, como vimos anteriormente, está repleto de índios mal delineados e
estereotipados). O terceiro componente de um romance indigenista é uma certa proximidade
(talvez uma maior “familiaridade”) com o mundo recriado – o do indígena. O próprio
Escajadillo adverte sobre a abstração deste último conceito54, que, entretanto, pode ser
basicamente explicitado quando o romance retrata “índios de carne e osso”55, ou seja, índios
mais bem caracterizados, menos romanticamente idealizados. Escajadillo exemplifica esse
caso com os Cuentos andinos, de Enrique López Albújar, mas poderíamos também incluir os
indígenas de Huasipungo, cuja caracterização foge da abstração encontrada em Cumandá, por
exemplo, em que os índios são somente pano de fundo. No romance de Jorge Icaza, eles são
os personagens principais e são retratados em sua miséria e exploração, como bem ilustra
54 Quando nos remetemos à questão da heterogeneidade da literatura indigenista, desenvolvida por Cornejo Polar, verificamos que a proposta de Escajadillo deve ser utilizada com cautela: a aproximação do narrador ao universo indígena é relativa em qualquer romance indigenista, dadas as profundas diferenças entre a instância produtora e receptora da obra e o seu referente. 55 ESCAJADILLO, T. (1994) p.44. “Indios de carne y hueso”.
44
Antonio Sacoto: “O índio de Icaza é aquele que nasce [...] sob o calor de um fogão, em meio
ao huasipungo, e vive submerso em uma semi-inconsciência de miséria e abandono [...].”56
Esses índios, exageradamente animalizados (explanaremos melhor sobre esse ponto no
capítulo seguinte), são de “carne e osso”, não têm “alma de branco” e não estão esmaecidos
por um autor que não os quer ver.
A proximidade ao mundo andino tem suas gradações, conforme Escajadillo, e, por
conseguinte, o olhar de López Albújar sobre os índios parece menos penetrante e acurado se
comparado ao de Ciro Alegría; da mesma forma, o mundo indígena aparece muito superficial
e unilateralmente retratado em Icaza se cotejado com o de um José María Arguedas, só para
citar o exemplo mais extremo, uma vez que este é considerado pelos críticos como o autor que
melhor soube adentrar na “alma” do índio, mesclando a língua espanhola ao quíchua e
buscando se aproximar à cosmovisão indígena. Escajadillo vai além e afirma que Arguedas
foi quem fundiu, mais eficientemente, o “eu” do narrador ao “eles” do referente, enquanto que
na maior parte das narrativas indigenistas há um narrador onisciente e observador apartado do
objeto narrado.
2.2. Neo-Indigenismo andino
O Indigenismo perde sua força nos anos 40 do século XX, e já nos anos 50, começam
a surgir romances filiados a ele, mas com a introdução de novos elementos e perspectivas.
Tomás Escajadillo criou o termo Neo-Indigenismo para abarcar esses novos romances, de
modo que se demonstrasse a conservação e a renovação de componentes do Indigenismo,
destacando o que aproxima e o que distancia os dois movimentos (esse movimento de
transformação pode ser vislumbrado em um mesmo autor – José María Arguedas –, cujas
56 SACOTO, A. (1991) p.256. “El índio de Icaza es aquel que nace [...] al calor de un fogón, en medio del huasipungo, y vive hundido en una semi-inconsciencia de miseria y abandono [...].”
45
obras iniciais, como Agua e Yawar Fiesta são tidas como indigenistas, ao passo que os
romances posteriores são considerados neo-indigenistas, como Los ríos profundos e El zorro
de arriba y el zorro de abajo).
De acordo com a tese de Escajadillo, o Neo-Indigenismo se caracteriza por:
I) Emprego do real maravilhoso como instrumento artístico capaz de revelar o sentido
mítico do mundo inerente ao homem andino, sem isolá-lo da realidade, conferindo, assim,
maior compreensão desse universo indígena.
No Indigenismo, nem sempre há alguma representação do mágico – como em
Huasipungo, no qual não existe espaço para o maravilhoso dentro de uma realidade tão dura e
embrutecedora. Nos romances indigenistas que oferecem episódios do âmbito do mágico,
segundo Escajadillo, há sempre uma ruptura delimitadora do “real mágico” e do “real-real”57,
não se mostrando a coexistência eqüitativa das duas concepções de mundo (real maravilhoso).
Nesse caso, o autor da narrativa pode, de certa forma, condenar o que julga ser meras
“superstições”, ou simplesmente não se manifestar favorável ou desfavorável a elas: ambas as
atitudes marcam a cisão entre os âmbitos do mágico e do real, ao mesmo tempo em que
reforçam o distanciamento da instância produtora e da receptora (autor e leitores) do romance
em relação aos seus referentes (os indígenas).
No Neo-Indigenismo, o acontecimento “mágico” convive com o “real”, ou melhor, o
realismo maravilhoso, conforme a estudiosa Irlemar Chiampi, “desaloja qualquer efeito
emotivo de calafrio, medo ou terror sobre o elemento insólito. O insólito, em óptica racional,
deixa de ser o ‘outro lado’, o desconhecido, para incorporar-se ao real: a maravilha é(está)
(n)a realidade.”58 Dessa forma, o componente “maravilhoso” do estrato indígena mescla-se,
sem inferiorizar-se, à “realidade” do estrato branco. E esse mecanismo pode se apresentar nos
romances neo-indigenistas através do próprio narrador onisciente ou da perspectiva de algum
57 ESCAJADILLO, T. (1994) p.55. 58 CHIAMPI, I. (1980) p.59
46
personagem. As obras de Manuel Scorza podem nos ofertar numerosos exemplos desta
questão: a invisibilidade de um personagem, a presença de um outro que é capaz de conversar
com os cavalos, sonhos premonitórios, e mortos que dialogam, entre outros.
II) Recrudescimento do lirismo na narrativa, o que permite falarmos em uma “prosa
poemática”, associada à presença de um narrador em primeira pessoa, incomum nos romances
indigenistas.
É preciso ressaltar que no Neo-Indigenismo há uma intensificação do lirismo e que
este não estava ausente em todos os romances indigenistas. Escajadillo constrói dois grupos
de narrativas indigenistas: o de obras nas quais prevalece o tom denunciatório em detrimento
do cunho poético, como Tungsteno, de César Vallejo, e Huasipungo, juntamente com outros
romances indigenistas equatorianos; e o de obras nas quais predomina o lirismo, como as de
Ciro Alegría. Os romances “poemáticos” são considerados por Escajadillo como de maior
valor se cotejados às obras do primeiro grupo, devido ao desequilíbrio destas: a ausência do
poético e a exacerbação do denunciatório ou do realismo podem, talvez, brutalizar em excesso
a figura do indígena (esse aspecto será melhor analisado no próximo capítulo), que acaba por
perder sua consciência e seu poder de reflexão.
O lirismo, no Neo-Indigenismo, fez-se presente, de acordo com Escajadillo, em José
María Arguedas, Vargas Vicuña e em alguns textos de Carlos Eduardo Zavaleta. Em Manuel
Scorza também encontramos largo uso do lirismo sob a forma de metáforas e personificações
freqüentemente relacionadas a elementos da natureza, além de surpreendentes imagens
sinestésicas. Os romances de seu ciclo, La guerra silenciosa, não são narrados integralmente
em primeira pessoa; há capítulos narrados em terceira pessoa com narrador onisciente, o que
não obscurece o lirismo das narrativas.
47
III) Maior amplitude do “problema do índio”, que deixa de ser discutido em seu
microcosmo – o indígena camponês ou mineiro nas cordilheiras andinas –, e passa a ser
encarado como uma questão de caráter nacional.
Essa ampliação ocorreu, conforme Escajadillo, em razão das mudanças do próprio
referente do Indigenismo – da “’realidade social’ em torno do índio, do ‘problema do
indígena’”59. Essas transformações podem ser exemplificadas pelo aumento da quantidade de
“índios urbanos” e pela percepção da relação direta entre a exploração do índio e a dos
trabalhadores pobres do terceiro mundo, estando o problema do índio incluído na galeria dos
explorados dentro de um sistema geral e nacional (os dois últimos elementos não
surpreendem, uma vez que Mariátegui, nos anos de 1920 e 30, já havia atentado para isso).
Em decorrência de essa transformação da narrativa indigenista ocorrer em função das
mudanças do seu objeto, do seu referente, Escajadillo discute também os rumos do
Indigenismo – se há um cancelamento dele ou uma modificação (Neo-Indigenismo).
Tomando por base alguns textos de Ciro Alegría e de Arguedas, ele conclui que o caráter
denunciatório e o aspecto da luta podem desaparecer à medida que a situação social do
indígena mude, mas isso não prejudicaria o Indigenismo enquanto narrativa sobre o índio, já
que este apresenta um outro aspecto: o da valorização e desvelamento das “’qualidades
humanas do mundo indígena que existiram sempre e existiram heroicamente através de
séculos de opressão’”60. A ampliação do tratamento do indígena, então, surge no Neo-
Indigenismo como uma espécie de prosseguimento das questões em pauta no Indigenismo (a
exploração perdura, ainda que de formas diversas: o abandono, a pobreza, e, sobretudo, o
apreço e a valorização da cultura indígena).
59 ESCAJADILLO, T. (1994) p.64. “[…] la ‘realidad social’ en torno al indio, al ‘problema indio’.” 60 Ibidem, p.69. “[...] calidades humanas del mundo indígena que han existido siempre y han existido heroicamente a través de siglos de opresión”.
48
Em Manuel Scorza, encontramos a ampliação do problema do índio com maior nitidez
no último romance do ciclo – La tumba del relámpago –, em que se procuram incluir as
reivindicações indígenas na lista dos problemas do Peru como um todo, e não mais encará-las
como uma questão restrita à região andina.
IV) “Ampliação, complexidade e aperfeiçoamento do arsenal técnico da narrativa,
mediante um processo de experimentação que supera as conquistas alcançadas neste aspecto
por parte do Indigenismo.61”
Essa transformação pôde ser verificada, conforme Escajadillo, em Arguedas com Los
ríos profundos, de 1958, em Vargas Vicuña, em Zavaleta e em Scorza. Em contrapartida,
Escajadillo adverte que pode haver, em algumas obras desses autores neo-indigenistas, um
cancelamento do Indigenismo, ao invés do seu desenvolvimento em direção ao Neo-
Indigenismo. Esse seria o caso de Todas las sangres, de Arguedas, por discutir não o
problema do índio em si, mas o de todo o país, bem como o de Manuel Scorza, que, em
romances como Redoble por Rancas, utilizaria a maior complexidade das técnicas e das
estruturas narrativas e o tom irônico e corrosivo para trabalhar “à margem do movimento ou
ciclo indigenista”62.
Independentemente da intenção de Scorza, é certo que ele trouxe novos elementos à
narrativa sobre o indígena, abandonando, em seus romances, a linearidade e o tom solene
comuns aos romances indigenistas. Ao mesmo tempo, estes não se afastam dos problemas
enfrentados pelos índios em suas comunidades, o que, talvez, os insira ainda nesse “ciclo
indigenista”, não considerado como um rótulo imobilizador, mas como uma mostra de que o
61 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.106 62 ESCAJADILLO, T. (1994) p.92. “[...] al margen del movimiento o ciclo indigenista [...]”.
49
problema indígena não havia ainda sido resolvido, e que os massacres perduravam e
sucediam-se como as “estações do ano”63.
É interessante notar ainda que a heterogeneidade, marca essencial do Indigenismo e
das próprias sociedades andinas, permanece no Neo-Indigenismo, embora um pouco menos
profunda, devido ao fluxo migratório campo-cidade-campo e/ou pela difusão de costumes e
idéias citadinas na área rural, serrana. O “problema” principal recebido da tradição anterior
conservou-se (as respostas, é claro, diferiram em grande parte); era preciso falar sobre o
universo indígena a partir de uma condição social e cultural diferente (os autores, os
produtores continuavam sendo intelectuais, mesmo que mestiços) e empregando um código
diverso (o espanhol escrito em antagonismo com o quíchua oral).
As respostas dadas pelos neo-indigenistas aos impasses criados pela heterogeneidade
indissolúvel do mundo andino estavam relacionadas aos efeitos modernizadores, com o
emprego de “técnicas do relato joyciano e pós-joyciano”,64 e a recriação da língua para
aproximar “a língua do narrador-escritor e a dos personagens”65. Verificaremos essas
transformações ao analisarmos comparativamente Huasipungo, de Icaza, e Redoble por
Rancas e La tumba del relámpago, de Scorza, nos próximos capítulos.
63 Termo utilizado por Manuel Scorza. 64 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.107 65 RAMA, A. (2001) p.267
50
3. HUASIPUNGO: DESESPERO OU UTOPIA?
Huasipungo foi escrito em 1934 pelo equatoriano Jorge Icaza. Nesse período, os ecos
do pensamento socialista e comunista já haviam sido ouvidos no Equador, assim como em
outros países da América Latina. O Equador vivia então um momento político convulso, com
golpes de Estado (um em 1925, que afastou do poder uma oligarquia bancária, e outro em
1944, cujo interesse era implantar e consolidar uma efetiva democracia baseada no voto
popular livre) e com o surgimento do Socialismo equatoriano, que começava a agir e expor
suas idéias (em maio de 1926, foi fundado o Partido Comunista do Equador). No âmbito
político, a esquerda socialista foi relativamente forte e aproximou-se das classes mais baixas,
sobretudo dos índios, e fez-se, de acordo com Angel Rojas, “porta-voz de suas reivindicações
agrárias”66, além de “defendê-los da absorção gamonalista [termo cujo equivalente é
“coronelista”]”67 e de auxiliá-los na organização contra a exploração dos grandes
latifundiários.
Os intelectuais e escritores dessa época receberam as influências do Socialismo e,
sendo grande parte deles politizada, envolveram-se muitas vezes diretamente nos movimentos
partidários. Dessa maneira, a literatura equatoriana passou a incluir as camadas inferiores da
população e seus problemas como tema de variados romances e contos. Os indígenas
ocuparam posição de destaque nesse rol e seu mundo – que abrangia a rapinagem e a
crueldade dos latifundiários, bem como o sistema semifeudal ou pré-capitalista ainda regente
na serra andina – foi grandemente retratado por Jorge Icaza. Em geral, as obras literárias desse
período (e Huasipungo não é diferente) caracterizam-se, segundo Rojas, pela denúncia e pelo
protesto, marcando uma diferença expressiva com relação aos textos literários anteriores, cujo
foco dificilmente se detinha nas classes mais baixas. Tomando os índios como caso exemplar
66 ROJAS, A. (1948) p.148. “[...] vocero de sus reivindicaciones agrarias […]”. 67 Ibidem, p.148. “[…] defenderle de la absorción gamonalista […]”.
51
desse processo, observamos que eles, quando personagens de obras literárias, eram
caracterizados sob uma perspectiva exótica e idealizada (no Indianismo, como vimos no
capítulo anterior), não como seres de “carne e osso”. Nessa medida, a difusão e a aceitação do
socialismo pelos escritores equatorianos, como Icaza, nas primeiras décadas do século XX,
podem ter influenciado diretamente na passagem do Indianismo ao Indigenismo no Equador –
haja vista as diferenças entre romances como Cumandá e Huasipungo.
Assim, Huasipungo, considerado um romance modelar do Indigenismo pela maioria
dos críticos (como Bella Jozef e Cornejo Polar), é escrito com o claro propósito da denúncia
da exploração sofrida pelos índios – que neste caso são os falantes de quíchua da serra andina
equatoriana. O título da obra explicita um dos alvos da crítica icaziana: o huasipungo – a
parcela de terra cedida aos indígenas pelo latifundiário em troca do cultivo de toda a
propriedade – é parte fundamental do sistema socioeconômico das “haciendas”, vigente na
serra. De acordo com Klaas Woortmann, estas funcionavam como um sistema senhorial com
ou sem senhor presente, isto é, o fazendeiro poderia residir na capital do país ou no próprio
latifúndio, tendo, neste último caso, a tendência a tornar-se um gamonal.
O gamonalismo encerra, segundo Woortmann, um poder não somente econômico, mas
também político, visto que o fazendeiro tinha estreitas relações com a polícia e as autoridades
políticas; desse modo, obtinha respaldo para as crueldades cometidas contra seus
“funcionários” indígenas. Formava-se, por conseguinte, um regime de servidão na medida em
que os índios trabalhavam quase todo o tempo disponível na terra do senhor, restando-lhes
poucos dias para o cultivo de seu huasipungo, quase sempre de exíguas dimensões, localizado
em terrenos inférteis e de difícil acesso. Além do labor na terra, havia os serviços domésticos
na casa do fazendeiro, o pastoreio e o transporte de animais e mercadorias para mercados e
feiras. No entanto, os fatores que demonstravam de forma mais nítida o regime de servidão
eram o endividamento dos índios em relação ao patrão e as “transações imobiliárias, [nas
52
quais] normalmente eram contabilizados os índios que viviam nas ‘haciendas’, chamados
‘índios del patrón’, contabilização essa que entrava na formação do preço da ‘hacienda’ –
inclusive, em um caso, em avaliação oficial”68.
Huasipungo retratou muito bem esse mecanismo socioeconômico e político das
haciendas e huasipungos que marginalizava os indígenas, transformando-os em moedas de
troca, bens inerentes à terra, equivalentes aos animais, árvores e plantações – e, portanto,
negociáveis e rentáveis. Icaza escreveu seu romance tematizando esses índios e essa
sociedade que os oprimia, obra em que, de acordo com Cornejo Polar, notamos “a poética do
relato [...] que é a do realismo social”69, acrescido de matizes naturalistas materializados pela
crueza das descrições.
O discurso de Huasipungo é repleto de interjeições, gritos, murmúrios e palavras
isoladas proferidas em quíchua, construindo, consoante Agustín Cueva, um estilo não-
oligárquico, de modo a estabelecer uma oposição radical ao discurso literário pomposo da
oligarquia70. Esse “não-estilo”, que pretende representar ficcionalmente, conforme Cornejo
Polar, “a língua dos estratos médios e populares como uma nova norma da língua nacional”71,
distanciada do formal e do castiço, indica a crença na transparência da linguagem para
representar a realidade, como se houvesse uma perfeita continuidade entre as palavras e as
coisas. Flora Süssekind encontra mecanismo semelhante ao analisar diversas obras
naturalistas e neonaturalistas, de Aluísio Azevedo até José Lins do Rego e o Jorge Amado do
ciclo do cacau: “Da linguagem espera-se que restabeleça simetrias, que crie analogias
perfeitas, que desfaça rupturas e diferenças, que se apague e funcione como mera
68 WOORTMANN, K. (1973) p.16. 69 CORNEJO POLAR, A. (1994) p.157. “[…] la poética del relato propia de Icaza, que es la del realismo social […]”. 70 Apud. CORNEJO POLAR, A. (1994) p.170. 71 Ibidem, p.170. “[…] la lengua de los estratos medios y populares como nueva norma de la lengua nacional […]”.
53
transparência”72. A proposta desses autores é, portanto, a de narrar com o máximo de
fidelidade possível uma determinada situação socioeconômica; eles pretendem desse modo
camuflar suas intervenções, que se perfazem, através das suas perspectivas dos fatos, bem
como do trabalho com a linguagem e com a construção do texto, sobre o assunto tratado.
Süssekind ainda ressalta, citando um trecho da nota introdutória de Jorge Amado a
Cacau (“Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de
honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia”73), que esses
romances naturalistas e neonaturalistas “apontam para um significado que se situa fora deles,
num contexto extraliterário”74. Jorge Icaza fez uma declaração análoga à de Jorge Amado
quando disse que o valor de seu romance é “ter exposto, de forma franca e sincera, o
problema social de nosso campesino diante da América Latina”75. Embora não seja intenção
de nossa dissertação comparar os dois romances, fica evidente a similitude de intenções dos
dois autores: ambos tencionam, como analisou Süssekind, “desviar” a atenção dos leitores do
texto para a realidade supostamente apresentada sem intervenções. O objetivo do texto não é o
de ser lido apenas como um trabalho artístico, mas como um instrumento para se chegar ao
real descrito, provavelmente desconhecido pelo leitor. Conforme Cornejo Polar, a crença
nessa transparência da linguagem indica tanto um meio de refletir o mundo referido quanto
serve para que o autor se mostre como vivenciador e conhecedor desse mundo retratado. Ele
tem autoridade para contar porque tem ciência sobre o referente, agindo, por conseguinte,
como uma espécie de mediador entre os dois mundos – o de seu romance e os dos leitores,
que é também o seu próprio mundo.
Em Huasipungo, é notável como essa postura do narrador materializa-se no uso do
glossário e nos numerosos apostos e adendos explicativos e descritivos – o narrador, como
72SÜSSEKIND, F. (1984) p.34 73 Ibidem, pp.36-37 74 Ibid, p.37 75 Apud. JOZEF, B. (1971) p.253. “Haber planteado, de manera franca y sincera, el problema social de nuestro campesino ante América Latina”.
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conhecedor do referente e de seu universo, tem autoridade para “traduzi-los” para o leitor,
como vimos no capítulo 2. Vejamos, como exemplos, as seguintes passagens do romance: “Al
notar la presencia del hombre [mayordomo de Alfonso Pereira] – para ellas [indias] cruel,
altanero e intrigante – hundieron con fingido afán sus rústicas herramientas.”76 E: “La orden
del hombre – trueno de Taita Dios para el miedo infantil – abrió una pausa de espanto entre
los muchachos.”77 Há, nos trechos selecionados, pequenas observações descritivas, colocadas
como adendo em meio à narração, em que o emprego da focalização heterodiegética e interna
não só almeja demonstrar o profundo conhecimento do narrador sobre o mundo indígena,
como também seu saber sobre a mentalidade e pensamentos dos índios.
No entanto, embora o narrador se coloque na posição daquele que ocupa o espaço “de
dentro”, ele ainda conta a história dos índios a partir de um ponto de vista externo,
“estrangeiro”: os indígenas parecem não ter uma história própria ou um passado narrável em
si.
A narrativa linear de Huasipungo salienta bem a interferência do latifundiário
(representante do mundo ocidental, europeu) no universo indígena: a matéria narrável,
romanceável só pode se iniciar quando Dom Alfonso Pereira, que morava na capital, Quito, é
obrigado a mudar-se para a antiga fazenda de seu pai, em razão da desonra causada pela
gravidez da filha solteira e por dívidas, que só seriam quitadas se ele conseguisse construir
estradas no terreno de sua propriedade (utilizando mão-de-obra indígena e com a destituição
dos huasipungos) que abririam caminho para a instalação de uma empresa petrolífera norte-
americana. Com o retorno do senhor à sua propriedade, torna-se o gamonal por excelência,
marcando a intensificação da exploração sobre os índios. É também por meio dessa estratégia
76 ICAZA, J. (1979) p. 34. “Ao notar a presença do homem – para elas cruel, altaneiro e intrigante – afundaram com falso afã suas rústicas ferramentas.” (ICAZA, 1978, p. 41) Grifos nossos. 77 Ibidem, p.36. Grifos nossos. “A ordem do homem – trovão de Taita Deus para o medo infantil – provocou uma pausa de espanto entre os meninos.” (ICAZA, 1978, p. 43)
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que o narrador pôde contrapor seus personagens: de um lado, os opressores; de outro, os
oprimidos.
Em geral, Huasipungo pauta-se sobre personagens planos ou desenhados, conforme a
conceituação de E.M. Forster. Cada personagem é definido por um traço dominante que o
caracteriza por toda a obra – é linear e não apresenta modificações psicológicas e nem
comportamentais, não proporcionando, portanto, grandes surpresas ao leitor. Vítor Manuel de
Aguiar e Silva afirma que os personagens desenhados são quase sempre personagens-tipo, não
evoluem e não possuem desenvolvimento das peculiaridades internas que o individualizariam.
Em contraposição aos personagens planos há os redondos ou modelados, mais complexos;
estes são apresentados em seus diversos aspectos e combinam, conforme escreveram René
Wellek e Austin Warren, “concepções e relações; são mostrados em diferentes contextos – na
vida pública, na vida íntima, no estrangeiro”78. Apesar de menos ricos psicologicamente e
desprovidos das complexidades inerentes à índole humana, os personagens planos, segundo
Forster, têm uma grande vantagem, que é a de “serem reconhecidos com facilidade sempre
que aparecem: reconhecidos pelo olho emocional do leitor”79. Por serem dotados de
características marcantes e imutáveis na obra, tudo aquilo que lhes falta em riqueza de
detalhes contribui para a sua fácil e imediata identificação; por este motivo, permanecem por
mais tempo na memória dos leitores.
Em Huasipungo, os personagens carecem de traços particulares, sendo uma espécie de
reunião de características distintivas (muitas vezes estereótipos) de cada elemento constituinte
da sociedade rural da serra andina. De um lado há a “trindade embrutecedora” dos índios – os
grandes latifundiários, peça principal da engrenagem, representados por Dom Alfonso
Pereira; os representantes do Estado, cujo personagem no romance é o tenente político Jacinto
Quintana, um mestiço explorador dos índios e cúmplice de Alfonso; e os membros do clero
78 Apud. FORSTER, E.M. (1974) p.55 79 FORSTER, E.M. (1974) p.55
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que, como o cura de Huasipungo, usavam a fé e o temor dos indígenas para arrancar-lhes
dinheiro e serviços. Do lado oposto estão os índios, cujo representante maior é o índio Andrés
Chiliquinga, um dos poucos personagens indígenas nomeados no romance. Segundo Angel
Rojas, “seu herói [de Huasipungo] é o homem-massa, o símbolo de uma classe social”80, ou
seja, Chiliquinga simboliza seu povo, não é um personagem singular, pois sua finalidade é
funcionar como um meio de mostrar todos os sofrimentos pelos quais os indígenas poderiam
passar. As desventuras de Andrés são claramente as mesmas que atingem todos os seus.
Embora Icaza tivesse sido muito criticado por não ter investido na construção aprofundada de
caracteres81, notamos que ele utilizou personagens planos para melhor estabelecer uma
contraposição entre estes, enfatizando suas diferenças e suas relações de poder – opressores e
oprimidos –, e conseguindo alcançar plenamente o objetivo de denunciar, questionar e alertar
os leitores sobre a existência tardia de um semifeudalismo em que os indígenas eram postos
no mesmo nível dos animais que se vendem junto com as fazendas.
Essa diferenciação abismal entre os personagens índios e os seus “senhores” já fica
evidente a partir das primeiras páginas do romance, onde os primeiros surgem como
desamparados, e os últimos como cruéis exploradores; por outro lado, isso marca também um
distanciamento do narrador em relação aos seus referentes, como percebemos através das
descrições demasiadamente cruas dos indígenas, sua impotência diante da realidade que os
assombrava e a insalubridade em que viviam, que os animalizava ao extremo. Como bem
escreveu Fernando Alegría,
Tal procedimento [o de sacudir o leitor com imagens diretas, romper sua apatia a golpes e comovê-los até o desespero] é uma faca de dois gumes: a exageração de suas descrições
80 ROJAS, A. (1948) p.200. “Su héroe es el hombre-masa, el símbolo de una clase social.” 81 Antonio Sacoto (1991), em seu artigo “Jorge Icaza: el indigenismo ecuatoriano”, lista algumas críticas negativas referentes à obra de Icaza.
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repugna, da piedade passa-se ao desconcerto e ao desgosto; perde-se de vista a razão de sua rebeldia.82
Os personagens de Huasipungo deixam a marca indelével de suas posições e suas
funções no mecanismo socioeconômico das haciendas equatorianas, mas a denúncia desse
sistema é feita por Icaza com um afinco que se torna vez por outra excessivo: a revelação dos
problemas, da realidade dos indígenas, acaba recaindo no reforço dos estereótipos, da sua
imagem como o “pueblo enfermo”, expressão utilizada por Alcides Arguedas em relação aos
referentes de sua obra homônima. É importante notar que muitas descrições e comentários
negativos sobre os índios são feitos pelo próprio narrador, não podendo ser atribuídos aos
personagens opressores da obra. Quando aquele, que se propôs narrar a realidade, compara
índios com bestas (“aunque jadeaban como bestias”83) ou “questiona” a sua capacidade de
pensar ou mesmo de falar, já que suas falas limitam-se a gritos, interjeições e balbucios, ao
estilo de Graciliano Ramos em Vidas Secas (“- El mal, caraju... Agarrada [Cunshi] del mal de
taita diabu coloradu..., pensó Andrés – si pensamiento podía llamarse el grito de sus
entrañas”84), ele promove uma extrema intensificação da denúncia, ressaltando,
veementemente, a imagem negativa que na época se tinha do seu referente.
Assim, a profunda contraposição entre o fazendeiro e os indígenas aparece nitidamente
em Huasipungo, como podemos perceber nos seguintes excertos:
Dicen que la mueca de los que mueren en el páramo es una mueca de risa [...]. En esa época el único que tuvo narices prácticas fue el Presidente García Moreno. Supo aprovechar la energía de los delincuentes y de los indios en la construcción de la carretera a Riobamba. Todo a fuerza de fuete... [...] El fuete progresista. Hombre inmaculado, hombre grande.85
82 ALEGRÍA, F. (1967) p.51. “Tal procedimiento encierra un arma de dos filos: la exageración de sus descripciones repugna, de la piedad se pasa al desconcierto y al disgusto; se pierde de vista la razón de su rebeldía.” 83 ICAZA, J. (1979) p.123. “[...] ainda arquejando como bestas [...]”. (ICAZA, 1978, p.143) 84 Ibidem, p.157. “O mal, caralhu... Agarrada [Cunshi] do mal de taita diabu vermelhu... pensou Andrés – se é que se podia chamar de pensamento o grito de suas entranhas”. (ICAZA, 1978, p.181) 85 Ibid, p.17. “Dizem que a expressão dos que morrem no páramo é uma expressão de riso. [...] Nessa época o único que sabia onde tinha o nariz era o Presidente García Moreno. Soube aproveitar a energia dos delinqüentes e dos índios na construção da estrada para Riobamba. Tudo à força do relho... [...] O relho progressista. Homem imaculado, homem grande.” (ICAZA, 1978, pp. 20-21)
58
E:
En la mente de los indios – los que cuidaban los caballos, los que cargaban el equipaje, los que iban agobiados por el peso de los patrones – en cambio, sólo se hilvanaban y deshilvanaban ansias de necesidades inmediatas: que no se acabe el maíz tostado o la mashca del cucayo […].86
No primeiro trecho, Dom Alfonso Pereira refletia enquanto era carregado no “lombo”
de Chiliquinga (cada membro da família tomou para si um índio como “montaria”) pelos
lamaçais dos pântanos que precediam a fazenda. Neste momento ele ocupava-se de questões
políticas, espelhando-se no exemplo (espelhamento que leva até à explícita comparação) do
presidente García Moreno para a sua futura empresa – a construção de uma estrada em sua
propriedade com mão-de-obra indígena. Já os índios, como observamos na segunda
passagem, preocupavam-se somente com as “necessidades imediatas”, com os problemas
primários – especificamente seu sustento e sua alimentação. Ao mesmo tempo em que se faz
uma severa crítica da relação entre patrão e indígena, recai-se numa tão profunda
desumanização deste último, que ele se torna incapaz de conduzir conscientemente sua vida
individual e social. O narrador parece, assim, salientar a imagem que se reproduzia dos índios
– a de raça inferior, que não consegue se articular ou raciocinar sobre qualquer tipo de assunto
mais “complexo” –, chocando o leitor, através da exacerbação do envilecimento da condição
indígena, chamando sua atenção para o problema.
São inúmeras as passagens ilustrativas do contraste entre a caracterização de índios e
brancos, como vimos acima, visto que o enredo de Huasipungo é bastante simples, podendo
ser resumido como uma história da degradação dos primeiros sob seus vários aspectos e seus
diferentes algozes. O excerto destacado a seguir é bastante significativo:
Éstos, los que se entierran aquí, en las primeras filas, como están más cerca del altar mayor, más cerca de las oraciones, y desde luego más cerca de Nuestro Señor Sacramento – [...] –, son los que van más pronto al cielo, son los que generalmente se salvan. [...] ¡De aquí al cielo no
86 ICAZA, J. (1979) p.19. “Na mente dos índios – os que cuidavam dos cavalos, os que carregavam a bagagem, os que iam curvados pelo peso dos patrões – em troca, só alinhavam-se e desalinhavam-se ânsias de necessidades imediatas: que não se acabe o maíz [milho] tostado ou a mashca [farinha de cevada] do cucayo [comestíveis que se levam nas viagens] [...]”. (ICAZA, 1978, p.23)
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hay más que un pasito! [...] – insistió el sotanudo señalando al indio alelado las cruces de la primera fila de tumbas. [...] Luego, arrimándose plácidamente al tronco de un ciprés, continuó ponderando las excelencias de su mercadería con habilidad de verdulera.87
Nesse trecho, o cura, que não é nomeado no romance, exerce suas habilidades comerciais e
tenta vender seu melhor produto - o túmulo mais perto do altar e também o mais caro, onde
estavam enterrados os membros mais ilustres da sociedade local -, edificando uma hierarquia
de sepulturas: um pouco mais afastadas do altar, as tumbas mais simples abrigavam mestiços
e índios que demorariam mais tempo para chegar aos céus, permanecendo no purgatório; os
túmulos ainda mais distantes eram destinados aos pobres em vida fadados ao inferno. O padre
de Huasipungo utilizava o seu poder sobre a fé e a ingenuidade dos índios para fazer perdurar
a mesma pirâmide social existente na vida terrena, o que o aproxima muito do papel
desempenhado pelos religiosos da Igreja Católica na Idade Média e o distingue grandemente
tanto da figura clerical predominante em romances de períodos anteriores, como Cumandá,
indianista e romântico, cuja proposta era a da redenção dos povos indígenas pela fé católica
difundida pelos benevolentes e caridosos missionários, quanto da de obras como as de Scorza,
em que a participação dos religiosos está marcada pelas idéias da Teologia da Libertação.
Já os trechos seguintes ilustram a reificação dos indígenas pelo tratamento dado pelos
latifundiários e a internalização desse olhar pelos primeiros, o que os levava a verem-se,
dominados pelo conformismo, como meros instrumentos de trabalho (é necessário lembrar
que a focalização em Huasipungo é heterodiegética, interna e onisciente, portanto esse
processo de internalização da visão preconceituosa dos patrões é uma observação do
narrador): “A él en realidad no le interesaban [a Alfonso Pereira] tanto los indios como tales.
87 ICAZA, J. (1979) p. 164. “Estes, os que se enterram aqui nas primeiras filas, como estão mais perto do altar mor, mais perto das orações e, naturalmente, mais perto de Nosso Senhor Sacramentado – [...] – são os que vão mais depressa ao céu, são os que geralmente se salvam [...]. Daqui ao céu não há mais que um passinho! [...] – insistiu o padre, assinalando ao índio atônito as cruzes da primeira fileira de tumbas [...]. Logo encostando-se placidamente no tronco de um cipreste, continuou ponderando as excelências de sua mercadoria, com habilidade de verdureiro.” (ICAZA, 1978, pp. 189-190)
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[...] Diez o veinte longos, en realidad, no era mucho en su haber de muebles, enseres,
semovientes… Para eso había pagado harta plata por los runas.”88 E:
Tampoco los indios podían darse ese lujo. Ellos sabían – sangre de su taimada resignación – que el patrón, el señor cura, el teniente político mandaban en su destino, y que al final todo el trabajo y todo el sacrificio quedaría en sus manos.89
A resignação e a imutabilidade perduram por quase todo o romance e somente se
desestabilizam quando a estrada em construção precisa avançar sobre o terreno ocupado pelos
huasipungos, marcando o ponto limite, no qual a exploração se torna insuportável. Essa
interferência origina a revolta, uma vez que os índios nunca haviam cogitado a possibilidade
de se desligarem dos huasipungos. De acordo com Victor Gabriel Garces, mesmo o pequeno
pedaço de terra cedido ao indígena pobre, desprovido de qualquer recurso para se sustentar,
acabava sendo melhor do que não possuir nada, de modo que ele chegava a ponto de encarar o
huasipungo como uma terra própria, onde podia plantar e criar animais para a subsistência.
Além disso, nesse sistema de haciendas, era um costume tradicional não se desapropriarem as
terras emprestadas aos índios e socorrê-los quando algum desastre natural atingia seus
terrenos (como a enchente que devastou parte dos huasipungos no romance); no entanto, nada
disso foi feito por Dom Alfonso, gamonal mais cruel e mais ávido por lucros que seu pai,
antigo senhor da fazenda.
Diante da perda das terras, Andrés Chiliquinga reúne seus iguais, chamando-os com
um corno, colhendo “a los pobres naturales comu a manada de ganadu”90, em um ato mais
motivado pelo desespero do que pela esperança ou pela vontade de luta. A revolta foi quase
exclusivamente um ato de reação inconsciente: não havia, na verdade, uma crença relacionada
à construção de um futuro menos injusto. Andrés não conseguia compreender bem por que
88 ICAZA, J. (1979), p.107. “Na realidade não lhe interessava [a Dom Alfonso Pereira] tanto os índios como tais. [...] Dez ou vinte longos, na realidade, não era muito em seu haver de imóveis, utensílios e bens semoventes. Para isso pagara pelos runas farto dinheiro.” (ICAZA, 1978, p.124) 89Ibidem, p.89. “Tampouco os índios podiam dar-se a esse luxo [do cansaço e do aborrecimento]. Eles sabiam – sangue de sua astuta resignação – que o patrão, o senhor cura, o tenente político mandavam em seu destino e que, afinal, todo o trabalho e o sacrifício ficariam em suas mãos.” (ICAZA, 1978, p.104) 90 Ibid, p.183. “[...] os pobres naturais comu a manada de gadu [...].” (ICAZA, 1978, p.211)
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havia convocado os seus para uma reunião, e não se vislumbrava qualquer indício de
planejamento para a invasão do latifúndio, como podemos observar na passagem referente às
dúvidas de Andrés no citado momento:
¿Para qué había llamado a todos los suyos con la urgencia inconsciente de la sangre? ¿Qué debía decirles? ¿Quién le aconsejó en realidad aquello? ¿Fue sólo un capricho criminal de su sangre de runa mal amansado, atrevido? ¡No! Alguien o algo le hizo recordar en ese instante que él obró así guiado por el profundo apego al pedazo de tierra y al techo de su huasipungo, impulsado por el buen coraje contra la injusticia, instintivamente.91
A injustiça, na perspectiva dos índios, era somente a tomada dos huasipungos e não
todo o sistema e todos os outros eventos tão explicitamente demonstrados no romance, o que
reforça a idéia de que a comunidade indígena estava totalmente alheia à sua posição na
sociedade. Ela é apresentada de forma tão reificada e desumanizada, que parece estar perdida,
destruída pela exploração e pela submissão resignada, ignorante dos seus direitos e presa a
uma inércia resultante da internalização do olhar que o patrão, o branco, lhe impôs – o da
inferioridade do índio em relação ao branco, da hierarquia étnica que se estende à
sociopolítica e econômica.
Retomando os conceitos de utopia abordados no primeiro capítulo, relembramos que
esta não prescinde de um “potencial revolucionário”, ou seja, refere-se a um estado de
conflito com a situação real, o que leva a uma tentativa de buscar rompê-la para dar espaço às
idéias e valores considerados melhores por um determinado grupo social. Ernst Bloch enfatiza
ainda mais a questão da construção da utopia como um projeto e afirma que ela é uma força
ativa orientada para o futuro, alimentada pela reflexão e pela consciência da realidade com
suas carências e injustiças. A utopia pressupõe, por conseguinte, uma noção do que ocorre na
realidade e da posição do indivíduo dentro de uma sociedade, o que de fato não é perceptível
91 ICAZA, J. (1979) p.184. “Para que havia chamado a todos os seus com a urgência inconsciente do sangue? Que devia dizer-lhes? Quem na realidade lhe aconselhou aquilo? Foi só um capricho criminoso de seu sangue de runa mal-amansado, atrevido? Não! Alguém ou algo o fez recordar nesse instante que ele assim obrou guiado pelo profundo apego ao pedaço de terra e ao teto de seu huasipungo, impulsionado pela boa coragem contra a injustiça, instintivamente.” (ICAZA, 1978, p.212)
62
nos personagens indígenas de Huasipungo. Sendo assim, falarmos em utopia seria, talvez,
excessivo: não parece haver nem a força ativa, nem o desejo consciente de mudança que
caracterizam o pensamento utópico. A comunidade indígena surge no romance como
resignada e alheia aos seus direitos, reduzida a uma existência oprimida pela exploração que a
torna incapaz de construir a imagem de uma realidade melhor. A reação liderada por
Chiliquinga foi instintiva e referente apenas à desapropriação dos huasipungos, o que
corrobora a inexistência da utopia dos índios na obra de Icaza.
É interessante observar ainda que, de acordo com Cornejo Polar, há uma contradição
final em Huasipungo (e em outros romances indigenistas, como os de Alcides Arguedas):
talvez por princípio ético ou pela convicção política do narrador, que se propôs denunciar a
exploração dos índios, a história não poderia terminar como acabava na realidade, com o
massacre dos indígenas e o agravamento da sua condição. A “solução” encontrada é a
mudança drástica de código: do realismo passa-se a “uma sorte de idealismo alegórico que se
instala ao final do romance para pressagiar simbolicamente [...] a rebelião triunfal dos
índios”92. Basta recordar o parágrafo final de Huasipungo. Transcrevemos aqui os últimos
parágrafos do romance:
Al amanecer, entre las chozas deshechas, entre los escombros, entre las cenizas, entre los cadáveres tibios aún, surgieron, como en los sueños, sementeras de brazos flacos como espigas de cebada que al dejarse acariciar por los vientos helados de los páramos de América, murmuraron con voz ululante de taladro: – ¡Ñucanchic huasipungo! [Nuestro huasipungo].93
Nesse trecho final, a linguagem realista, e até naturalista em alguns momentos do
romance, é suplantada por um certo lirismo destoante, com imagens que remetem ao porvir e
92 CORNEJO POLAR, A. (1992) p.195. "[...]Una suerte de idealismo alegórico que se instala en el tramo final de la novela para presagiar simbólicamente [...] la rebelión triunfal de los indios." 93 ICAZA, J. (1979) p. 193. “Ao amanhecer, entre as choças desfeitas, entre os escombros, entre as cinzas, entre os cadáveres ainda mornos, surgiram, como nos sonhos, sementeiras de braços finos como espigas de cevada que ao deixarem-se acariciar pelos ventos gelados dos páramos da América, murmuraram em voz ululante de trado. / - Ñucanchic huasipungo! [Nosso huasipungo]”. (ICAZA, 1978, pp.221-222)
63
à esperança após a repressão da rebelião e o massacre dos índios revoltosos. Aí percebemos o
desejo utópico da vitória dos índios sobre a realidade vivida, não só os do Equador, como de
toda a América, já que nessa passagem o narrador parece estender seu sonho a todo o
continente, o qual, todavia, não nasce por iniciativa e reflexão destes, mas da voz do narrador.
Desse modo, reforça-se a idéia de que a visão sobre os indígenas em Huasipungo não lhes
permite ainda uma consciência plena de sua própria vida e história, condições essenciais para
o surgimento da utopia dos índios e não só para os índios (a utopia como planejamento e
reflexão não parte deles, surge, porém, do autor, que a lança para um tempo futuro distante, da
ordem do fantástico, quase como uma utopia nos moldes de Morus – do âmbito do impossível
ou improvável).
Embora muito se tenha criticado o hiperbolismo icaziano e embora, conforme
escreveu Jorge Enrique Adoum, o seu realismo social acabe por escamotear a alma do índio,
reduzido a um elemento inanimado, fixo na paisagem94, não se pode deixar de levar em conta
que Icaza atingiu sua meta – a de apontar os problemas e divulgá-los, já que normalmente os
órgãos de comunicação e o governo costumam silenciá-los e mitigá-los sistematicamente –,
ainda mais se considerarmos que Huasipungo foi o romance mais traduzido e difundido do
autor, chegando a trazer inovações à literatura equatoriana, como a desmitificação da imagem
do índio romântico e idealizado de outras épocas. Também foi mérito de Icaza ter incluído na
problemática econômica e política do Equador e, sobretudo dentro do sistema semifeudal da
serra, a questão do capital e dos interesses estrangeiros na região – a empresa petrolífera
norte-americana, que submetia às suas condições o governo e as classes superiores
equatorianas.
94 Cf. ADOUM, J. E. (1972) p.206
64
4. REDOBLE POR RANCAS: O SURGIMENTO DE UMA UTOPIA
Manuel Scorza nasceu em Lima, em 1928, mas passou parte de sua infância em
Huancavelica, já que seus pais eram oriundos das serras peruanas. Desde muito cedo esteve
engajado nas causas sociais (foi mandado ao exílio por mais de uma vez), tendo sido filiado
ao APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana). Fundado no México, em 1924, por
Victor Raúl Haya de la Torre, o APRA apresentava em seu princípio um postulado bastante
condizente com a realidade latino-americana muito diferente da russa ou européia (o que fez
Haya de la Torre entrar em conflito com a Terceira Internacional). No início, alguns dos seus
objetivos principais eram, segundo Carlos Rangel, lutar contra o imperialismo norte-
americano e buscar uma “unidade da América Latina”95, além de apoiar a causa dos
camponeses indígenas. Todavia, a política pró-indigenista do APRA limitou-se apenas às
idéias e, mais ainda, caminhou para a social democracia, tecendo até alianças com o
presidente Manuel Prado, que se elegeu com a ajuda do partido em 1956: de acordo com Juan
González Soto, “a oligarquia subiu ao poder aliada desta vez com o APRA”96. As mudanças
na trajetória política do partido fizeram com que Scorza dele se desligasse e ingressasse, na
década de 1960, no Movimento Comunal do Peru, através do qual tomou contato maior com
as lutas dos mineiros e dos comuneiros dos Andes centrais (Cerro de Pasco, comunidades de
Yanacocha, Yanahuanca, entre outras). A participação nos protestos e o testemunho dos
abusos cometidos pelos latifundiários e pela mineradora norte-americana Cerro de Pasco
Corporation contra os comuneiros deram-lhe ensejo para escrever sobre esses acontecimentos,
denunciando os problemas e dando espaço para os invisíveis e mudos da história peruana. Foi
daí que nasceu A Guerra silenciosa, o ciclo de cinco romances publicados entre 1970 e 1979:
95 RANGEL, C. (1981) p.118 96 GONZALEZ SOTO, J. (1998) p.263. “[…] la oligarquía se alzaba con el poder aliada esta vez con el A.P.R.A.”
65
Redoble por Rancas; Garabombo, el invisible; El jinete insomne; Cantar de Agapito Robles e
La tumba del relámpago.
Essas obras narram, portanto, a história de sucessivos movimentos de camponeses,
mineiros e pastores de ovelhas – em sua maioria índios, falantes de quíchua, nos Andes
centrais peruanos – contra as ações arbitrárias da companhia mineradora Cerro de Pasco
Corporation e dos latifundiários, donos de imensas propriedades agrárias, das leis e dos
governantes das províncias. É importante sublinhar que esses levantes de indígenas
camponeses realmente ocorreram no Peru nas décadas de 1950 e 1960 (muitas outras revoltas
aconteceram anteriormente a esse período, mas Scorza retratou as que ele pôde ver mais de
perto) e resultam dos variados problemas da organização econômica peruana, que era baseada
na mineração, sustentada pelo capital estrangeiro, e na produção agrícola, ainda nos moldes
do sistema semifeudal, sobretudo nas serras andinas, que estava nas mãos dos grandes
fazendeiros.
O problema dos indígenas recai na questão da terra, relacionada ao “gamonalismo”
que, conforme Valcárcel, citado por Mariátegui:
[...] Não designa somente uma categoria social e econômica: a dos latifundiários ou grandes proprietários agrários. Designa todo um fenômeno. O gamonalismo não está representado só pelos gamonais propriamente ditos. Compreende uma grande hierarquia de funcionários, intermediários, agentes, etc.97
A condição dos índios retratada na obra de Scorza assemelha-se muito à de Huasipungo, visto
que, embora se trate de países diferentes – Peru e Equador –, pertencem a uma mesma área
cultural (mestiços e descendentes de índios falantes de quíchua) e a uma mesma organização
socioeconômica. Um ponto que os distingue é que em Redoble por Rancas focalizam-se
principalmente os índios de comunidade, os comuneiros, e não os de “hacienda”, como os de
97 Cf. MARIÁTEGUI, J. C. (1958) p. 33. “El término ‘gamonalismo’ no designa sólo una categoría social y económica: la de los latifundistas o grandes propietarios agrarios. Designa todo un fenómeno. El gamonalismo no está representado sólo por los gamonales propiamente dichos. Comprende una larga jerarquía de funcionarios, intermediarios, agentes, parásitos, etc.”
66
Huasipungo (apesar de haver um capítulo de Redoble por Rancas, um episódio independente,
em que aparecem os índios que trabalhavam como servos na fazenda de Dom Migdonio de la
Torre). Retomando Woortmann, podemos afirmar que a comunidade constitui um “grupo
social de índios e mestiços composto de um ou mais ayllus98 que possuem uma extensão de
terra em comum”99. Não obstante vivessem em comunidades, esses índios ainda estavam
vinculados às “haciendas”, uma vez que muitos comuneiros eram também colonos do
fazendeiro e contraíam dívidas, precisando prestar serviços gratuitos a ele. Além disso, outra
prática freqüente era a expansão dos latifúndios sobre as terras das comunidades: como o
gamonal, conforme bem afirmou Valcárcel, encontrava respaldo legal e político, ele agia
indiscriminadamente, invadindo terras alheias e incorporando-as às suas propriedades. Deste
modo, quando os indígenas não viviam como “servos” de um determinado latifundiário,
tinham suas terras tomadas por ele, que cometia toda sorte de crimes e não era punido,
porquanto tinha uma vasta hierarquia de cúmplices. Essas condições são o ponto principal dos
romances de Scorza e do nosso estudo sobre a obra.
Redoble por Rancas apresenta dois subenredos ou duas “sub-histórias”, de acordo com
a concepção de Friedhelm Schmidt: uma conta a luta da comunidade de Rancas contra a Cerro
de Pasco Corporation, que tomara a maior parte das terras usadas para o pastoreio; e outra
refere-se à revolta de Héctor Chacón e seus companheiros da comunidade de Yanacocha
contra o Dr. Francisco Montenegro, juiz de primeira instância e também proprietário de um
grande latifúndio. As duas sub-histórias aparecem perfeitamente alternadas em capítulos no
romance – elas sucedem-se umas às outras –, com exceção de um único capítulo, que narra a
malfadada tentativa dos índios de uma fazenda, liderados por Espíritu Félix, de fundar um
sindicato. Esse capítulo não tem relação intrínseca com o restante da obra, mas mostra a
98 Os ayllus, segundo Woortmann, funcionavam como um “sistema de distribuição anual de terras às várias famílias constituintes e de separação de certas terras coletivamente utilizadas [...]. Ademais, todos deviam obrigações à comunidade em geral.” WOORTMANN, K. (1973) p.2. 99 WOORTMANN, K. (1973) p.23.
67
“curiosa” forma com que Dom Migdonio de la Torre, o gamonal, acaba com a idéia da
irmandade de seus funcionários: ele envenena todos os índios envolvidos, alegando depois
que a causa da morte foi um infarto coletivo, e não é punido, já que se trata de índios de
“hacienda” e principalmente porque Migdonio é amigo do Juiz Montenegro. Além disso,
podemos considerar esse episódio como uma espécie de síntese do processo da trama “índios
versus latifundiários”, pois Espíritu Félix passa do estado de ignorância inicial ao de
consciência após seu aprendizado no quartel onde serviu: lá ele descobre que “existía algo así
como una escritura de derechos, la Constitución, que incluía hasta rancheros de cerdos y
jayanes. Y supo más: esa misteriosa escritura afirmaba que grandes y chicos eran iguales.”100
O conhecimento sobre as leis o fez perceber que a exploração sofrida não era legítima e nem
natural, acendendo a luz de seus desejos e pensamentos utópicos que, como um “sonhar para
frente”, impeliu-o a uma tentativa de organização dos índios, logo, porém, massacrada pelo
poder instituído do latifundiário e do juiz.
A primeira sub-história mencionada está centrada na comunidade de Rancas, que se
descobre, em um dia, sem aviso prévio, adornada por uma Cerca que logo a enreda em um
exíguo espaço, subtraindo-lhe os pastos de suas ovelhas. A imagem criada por Scorza para
representar essa invasão é bastante interessante:
Nueve cerros, cincuenta pastizales, cinco lagunas, catorce puquios, once cuevas, tres ríos tan caudalosos que no se hielan ni en invierno, cinco pueblos, cinco camposantos engulló el Cerco en quince días. […] Los viajeros, forzados a pernoctar en Rancas, murmuraban que el Cerco no era obra de humanos, que brotaba al mismo tiempo, en docenas de caseríos, que pronto el Cerco entraría en los pueblos y hasta en las habitaciones.101
100 SCORZA, M. (2002) p.237. “[...] existia uma coisa assim como um escrito dos direitos, a Constituição, que incluía até porqueiros e bobocas. E soube mais: esse misterioso escrito afirmava que grandes e pequenos eram iguais.” (SCORZA, 1975, p.99) 101 Ibidem, p. 216. “Nove cerros, cinqüenta pastos, cinco lagoas, catorze mananciais, onze cavernas, três rios tão caudalosos que nem no inverno se congelam, cinco povoados, cinco cemitérios engoliu a Cerca em quinze dias. [...] Os viajantes, forçados a pernoitar em Rancas, murmuravam que a Cerca não era coisa de gente, que brotava ao mesmo tempo em dúzias de arranchamentos, que logo a Cerca entraria nos povoados e até nas casas.” (SCORZA, 1975, p.79)
68
A Cerca pertencia à Cerro de Pasco Corp. e surge, no romance, personificada,
tomando proporções de ser vivo (ao longo de grande parte da obra, ela recebe atribuições de
um ser animado: “Así nació el cabrón, un día lluvioso, a las siete de la mañana. A las seis de
la tarde tenía una edad de cinco kilómetros. Pernoctó en el puquial Trinidad. Al día siguiente
corrió hasta Piscapuquio: allí celebró sus diez kilómetros.”102), sendo significativo o fato de
ser grafada com letra maiúscula, como um verdadeiro personagem. A Cerca, viva e voraz,
contrasta com a imobilidade dos comuneiros, que inicialmente desconhecem a origem e a
causa da perda de terras, seu único meio de sobrevivência.
No princípio, os índios riram do cercamento de um pequeno monte sem pastos ou
água, mas começaram a se apavorar quando viram que a Cerca aumentava a cada dia. Sua
total ignorância fazia-os pensar que ela era obra de Deus castigando os pecadores, cercando os
pastos, impedindo suas passagens e matando de fome as ovelhas:
– ¡Castigo de Dios, castigo de Dios! – bramaba don Teodoro Santiago [para convencer los indios] marcando con cruces las casas de los adúlteros y los calumniadores. – ¡Ustedes tienen la culpa! ¡Por sus lenguas podridas y sus deseos sucios, Diosito escupe sobre Rancas!103
E enquanto estes rezavam ou procuravam água benta para salvar seus rebanhos, a Cerca
enclausurava mais as terras e afugentava os animais silvestres. Somente Pis-pis, um
comerciante que viajava pelas cidades com suas mercadorias, sabia a verdadeira origem da
Cerca e alertou aos ranquenhos: a Companhia Cerro de Pasco era a responsável pelo
encarceramento de Rancas e muitas outras comunidades. Os indígenas, contudo, ainda
permaneceram resignados, “sólo sabían llorar”104, como afirma o narrador do romance, até
102 SCORZA, M. (2002) p.207. “Assim nasceu essa cadela, num dia chuvoso, às sete da manhã. Às seis da tarde tinha uma idade de cinco quilômetros. Pernoitou na fonte Trinidad. No dia seguinte correu até Piscapuquio: ali celebrou os seus dez quilômetros.” (SCORZA, 1975, p.69) 103 Ibidem, p.232. “Castigo de Deus, castigo de Deus! – bramia Dom Teodoro Santiago [para convencer os índios] assinalando com cruzes as casas dos adúlteros e dos caluniadores. / - Vocês têm a culpa! Por suas línguas podres [...], Deusinho está cuspindo em cima de Rancas!” (SCORZA, 1975, p.93) 104 Ibid, p.253. “[…]só sabiam chorar [...]”. (SCORZA, 1975, p.117)
69
que se deu o discurso de Padre Chasán, muito respeitado pela comunidade, que reiterou a
informação dada por Pis-pis:
– El Cerco no es obra de Dios, hijitos. Es obra de los americanos. No basta rezar. Hay que pelear. La cara de Rivera se azuló. – ¿Cómo se puede luchar con <<La Compañía>>, padrecito? De los policías, de los jueces, de los fusiles, de todo son dueños. – Con la ayuda de Dios todo se puede.105
A figura do padre é determinante para o desvendar da verdadeira situação e para o
incentivo à reação. Muito diferente do religioso de Huasipungo (em que a igreja católica era
um dos pilares da trilogia embrutecedora dos índios), o padre Chasán parece incluir-se nos
seguidores da Teologia da Libertação, que surgiu e se desenvolveu na América Latina nos
anos de 1960 e cujos grandes nomes são os do peruano Gustavo Merino Gutiérrez e do
brasileiro Leonardo Boff. Nesse caso, a função do padre é de apoiar e estar ao lado dos pobres
e necessitados, não como a única salvação destes ou a luz que os guia à “civilização” (como
em Cumandá), mas como um companheiro de lutas e reivindicações. Conforme Boff, o
“teólogo da libertação optou por ver a sociedade a partir dos pobres, analisar os processos no
interesse dos pobres e agir na libertação junto com os pobres”106. Dessa maneira, ele procura
compreender todo o sistema socioeconômico e político que gera a pobreza, agindo a favor e
com os oprimidos. Além disso, a Teologia da Libertação preocupa-se em ressaltar o fato de
que o próprio povo é sujeito de sua libertação e de que nem a Igreja ou qualquer outra
instância devem substituí-lo nesse papel.107
O padre Chasán, em Redoble por Rancas, atuou na conscientização da comunidade e
chegou a, mais tarde, auxiliá-la, cedendo o espaço da igreja para a organização de um plano
105 SCORZA, M. (2002) p.253. “- A Cerca não é obra de Deus, meus filhos. É obra dos americanos. É preciso lutar. / A cara de Rivera azulejou. / - Como é que se pode lutar contra a Companhia, padrezinho? Ela é dona dos polícias, dos juízes, dos fuzis, de tudo. / - Com a ajuda de Deus, tudo se pode.” (SCORZA, 1975, p.117) 106 BOFF, L. (1980) p.187 107 Cf. BOFF, L. (1980) p.114
70
de expulsão da Cerro de Pasco Corporation. É interessante notar que ele não representa os
comuneiros durante as reclamações às autoridades, nem é um personagem ativo no romance,
porém sua função é determinante na medida em que abre os olhos dos indígenas quanto ao
verdadeiro explorador, incitando-os a uma reação maior do que as idas ao confessionário ou
as rezas.
O aparecimento da Cerca e a intervenção de Chasán desencadeiam um processo
gradual de conscientização. De acordo com Mabel Moraña, a Cerca:
Transforma a relação natural homem/meio, acentua o caráter já viciado dessa relação e a dota de um significado diferente, quebra a possibilidade de identificação com o meio de inserção material nele e alimenta uma nova concepção daquela ordem, acentua as contradições e propicia a busca de uma conscientização crescente que se adequasse com fórmulas novas à nova realidade.108
Assim, os indígenas caminham de uma identificação simples, mais próxima à sua
realidade anterior – a Cerca é vista como um elemento vivo, já que eles desconhecem as suas
origens e ela avança indiscriminadamente sobre as terras da comunidade – até a percepção da
necessidade de reclamar seus direitos junto às autoridades, na tentativa de reverter a situação;
ou seja, avançam em direção a uma consciência maior das causas dos problemas (embora a
introdução da mineradora não seja compreendida em sua amplitude total – a do imperialismo
norte-americano no Peru, que submete os políticos e os gamonais) consciência esta que
reconfigura a sua realidade, forçando-os a aprender e a utilizar modos diferentes de reação às
adversidades. A partir dos episódios da Cerca e do sermão esclarecedor do padre, os índios
criam uma série de maneiras para tentar resolver o problema: de idas à prefeitura (onde mal
são recebidos) e consultas a advogados (que se aproveitam da sua falta de conhecimento sobre
as leis para explorá-los) até os ataques à Cerca e aos seus guardas.
108 MORAÑA, M. (1983) p.182. “El Cerco cambia la relación natural hombre/medio, acentúa el carácter ya viciado de esa relación y la dota de un significado diferente, quiebra la posibilidad de identificación con el medio de inserción material en él y alimenta una nueva concepción de aquel orden, acentúa las contradicciones y propicia la búsqueda de una concientización creciente que se adecúe con fórmulas nuevas a la nueva realidad.”
71
Retomando o conceito de Cornejo Polar de “interferência” nos romances indigenistas,
podemos dizer que o aparecimento da Cerca marca essa ruptura entre um “antes” e um
“depois”, é a agressão externa que modifica o ambiente e a vida dos personagens envolvidos.
A partir da interferência é que se inicia a matéria romanceável da obra: a sub-história relativa
aos comuneiros de Rancas começa com a instalação da Cerca e a grande fuga dos animais que
intuem a gravidade do problema. Há um “antes” não narrado no romance, que, todavia, era
melhor ou mais suportável do que o “depois”, quando se perdem os pastos para a mineradora
e morrem os rebanhos, que eram a sustentação dos comuneiros.
Com a tomada de consciência exigida pela situação adversa – o momento de
interferência –, auxiliada pelas palavras do padre Chasán, começa a nascer o pensamento
utópico, cujo processo de formação segue o encaminhamento desse esclarecimento, como
vimos no capítulo 1109 de nosso trabalho. Os “sonhos diurnos” conceituados por Bloch, que
contêm as “imagens de desejo, de nostalgia, imagens de angústia”110, tornam-se ativos,
orientados para a ação, quando se produz algum sinal que desperte a consciência. A fome ou a
carência também impulsionam os homens em direção à superação dos problemas, das
insatisfações, tornando os sonhos diurnos, antes latentes, em atividades mais concretas. Desse
modo, o pensamento utópico somente pode surgir com a tomada de consciência, que coincide,
nesta sub-história, com a interferência e a posterior “lição” de Chasán.
Embora a comunidade intuísse a necessidade de uma revolução, a forma de ação
utilizada primeiramente pelos indígenas não foi organizada e articulada, constituindo-se em
sucessivos ataques à Cerca e conseqüentes embates contra a patrulha da Cerro de Pasco
Corporation. O movimento, assim, mostrou-se completamente ineficaz frente ao desigual
poderio “bélico” da patrulha e dos comuneiros. Somente um personagem continuou
persistindo, o velho Fortunato, que teimosamente enfrentava os guardas todas as noites, feria-
109 Cf. infra, pp. 21-24. 110 MÜNSTER, A. (1993) p.29
72
se quase fatalmente, mas se recuperava e retornava ao combate solitário. Insistiu tanto que
Egoavil, chefe dos patrulheiros, começou a sonhar com o velho, vendo-o no lugar de Jesus
Cristo na cruz (como um mártir lutando pelas causas coletivas). Fortunato simboliza a falta de
projeto, a tentativa cega de transcender a realidade que caracterizava a própria rebelião da
comunidade contra um inimigo ainda abstrato e distante – uma companhia norte-americana,
representante do capital estrangeiro no Peru, personificada pela Cerca. Ademais, representa
também a persistência, característica distintiva dos índios dessa comunidade: Fortunato, após
sobreviver às pelejas com Egoavil, sem dar ouvido aos argumentos deste, que tentava
devolvê-lo à passividade, mostrando a desigualdade de poderes entre uma grande empresa e
um simples comuneiro –“Usted solo no puede nada, don Fortunato. <<La Cerro>> es
poderosísima. Todos los pueblos se han echado. Usted es el único que insiste.”111–,
estimulava sempre seus companheiros à reação, para a tentativa de resolução dos problemas
(são o desejo e o pensamento utópicos): “– Aquí ya no se puede retroceder. Retroceder es
tocar el cielo con el culo. Hombres o mujeres, no sé lo que son, pero tenemos que pelear.”112
Dos ataques à Cerca, os indígenas partem para as reclamações na prefeitura, onde não
são ouvidos, e para a consulta ao juiz, que cobraria honorários altíssimos para constatar a
existência da Cerca. Finalmente, encontram o alcaide Genaro Ledesma, personagem
fundamental no último romance do ciclo, La tumba del relámpago, que resolve auxiliá-los
denunciando a Cerro de Pasco Corporation e o juiz corrupto em uma rádio local. O resultado
de tal empresa foi um processo do juiz contra Ledesma e a disseminação de uma grande
epidemia: nenhuma autoridade conseguia enxergar a presença da Cerca, apesar de terem as
faculdades visuais normais para qualquer outro objeto. Scorza ironiza, com muito humor, o
111 SCORZA, M. (2002) pp. 257-258. “O senhor não pode nada, Dom Fortunato. A Cerro é poderosíssima. Todos os povoados se entregaram. O senhor é o único que insiste.” (SCORZA, 1975, p.121) 112 Ibidem, p.281. “Agora já não se pode mais recuar. Recuar é bater no céu com o cu. Homens e mulheres, não sei o que são, mas temos que brigar.” (SCORZA, 1975, p.145)
73
fato de que o capital estrangeiro subjuga o Peru às suas vontades – políticos, juízes e
fazendeiros apóiam e dependem dele; por conseguinte, os índios são ainda mais explorados.
Como os meios legais não funcionam, os comuneiros voltam a atacar, recorrendo
novamente à luta armada. Entretanto, a revolta é inútil, uma vez que a disparidade de forças
entre ranquenhos e a Guarda de Assalto é enorme: os primeiros com pedras, paus e fundas, os
últimos com fuzis e metralhadoras. Embora houvesse um forte pensamento e desejo utópicos,
a rebelião foi pouco refletida, não planejada e nem organizada, culminando no massacre dos
indígenas.
É interessante notar como esse subenredo ou sub-história de Redoble por Rancas
aproxima-se, sob certos aspectos, de romances indigenistas como Huasipungo. Em ambos há
um momento de interferência, como já verificamos: o mundo indígena é agredido de fora.
Curiosamente, nas duas obras a agressora é uma multinacional norte-americana, que interfere
indiretamente em Huasipungo, pois ela é intermediada pelo latifundiário Dom Alfonso
Pereira, e diretamente em Redoble por Rancas. Icaza e Scorza apontam e questionam, então,
um fenômeno geral da América Latina: o avanço do imperialismo norte-americano, que
acabou obrigando os países latino-americanos à especialização e à monocultura (petróleo,
minérios, por exemplo), conforme já afirmara Mariátegui em 1928. Os indígenas continuam
sendo explorados, constituindo um vasto contingente de mão-de-obra barata. Essa
interferência produz um choque profundo nas comunidades indígenas: nas “haciendas” de
Huasipungo, os índios sofrem um grande recrudescimento dos abusos e dos trabalhos
forçados e insalubres; em Redoble por Rancas, os comuneiros, ignorantes da origem da
Cerca, assistem resignados ao cercamento das terras comunitárias. O tom de coletividade
prevalecente também é um elemento que aproxima este subenredo ao romance de Icaza:
Fortunato e Chiliquinga são os índios mais individualizados das duas obras, sendo que o
primeiro é melhor construído se levarmos em conta os pormenores de seu caráter descrito na
74
trama (a persistência, a coragem, seu poder de liderança), mas ambos representam as suas
comunidades como um todo.113
É importante salientar também um dado extraliterário: Manuel Scorza escreve em nota
antes do início do romance que ele é “más que un novelista, [...] es um testigo”114 dos
acontecimentos que narrará. Em outra nota, o escritor insere a notícia de um jornal peruano no
qual estão expressos os lucros obtidos pela Cerro de Pasco Corporation. Do mesmo modo que
Icaza, Scorza, escritor, por meio dessas notas, identifica-se com o narrador dos romances e
procura dar veracidade ao seu relato, ressaltando seu conhecimento sobre o que vai narrar e
posicionando-se como o guia que mostrará ao leitor o mundo por este desconhecido. Esses
paratextos (conforme denominação de Dunia Gras) apontam, por conseguinte, para uma
realidade extraliterária, nos moldes dos romances indigenistas como Huasipungo, e o “leitor
se vê induzido a pensar que o que vai ler em seguida não é mais que a narração objetiva de
feitos que se apresentam como puro reflexo da realidade”115. Apesar disso, o que veremos não
é um romance totalmente realista, abrigando, ao contrário, uma série de peculiaridades que o
apartam dessa forma de criação literária. O que fica explícito com o uso das notas é que
Scorza, o autor/narrador, está numa posição na qual se permite discorrer, com propriedade,
sobre uma história testemunhada e romanceá-la de modo a dar uma dimensão maior aos
eventos, oferecendo aos leitores a visão dos oprimidos, dos vencidos da história.
Há também muitas diferenças entre esta sub-história de Redoble por Rancas e o que
ocorre em Huasipungo. Uma distinção fundamental está no fato de que no livro de Scorza há
uma posterior tomada de consciência: os comuneiros não permanecem em um estado de
ignorância, tendo esperança de vencer o inimigo; eles possuem desejos e pensamentos
113 Angel Rojas, como dissemos no capítulo 3 da dissertação, afirmou que Andrés Chiliquinga é o símbolo de sua classe. Friedhelm Schmidt escreveu que Fortunato é um “personagem coletivo” (1991, p.237). 114 SCORZA, M. (2002) p.149. “[…]mais do que um romancista, [...] é uma testemunha.” (SCORZA, 1975, p.13) 115 GRAS, D. Apud. SCORZA, M. (2002) p. 69. “[...] el lector se ve inducido a pensar que lo que va a leer seguidamente no es más que la narración objetiva de unos hechos que se presentan como puro reflejo de la realidad.”
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utópicos, já que o conhecimento sobre o problema enfrentado e sobre os seus direitos naquele
caso permite que eles possam minimamente organizar-se e buscar algum modo, mesmo que
desarticulado, de modificar a situação, suprindo suas carências. Por outro lado, em
Huasipungo, a utopia não chega a existir, uma vez que os indígenas reagem automaticamente
à perda dos seus pedaços de terra. Até o fim do romance os personagens parecem não
perceber os verdadeiros problemas: a indignação corresponde à expropriação dos
huasipungos, atitude impensável naquela relação servil e “tradicional” entre o senhor do
latifúndio e os índios que a ele “pertenciam”, e não à exploração que sofriam e aos trabalhos
pesados sem remuneração. Se há utopia, é a do narrador onisciente em terceira pessoa, que
não pode concordar com essa realidade equatoriana.
Outra dessemelhança entre os romances116 está na construção do texto, nos seus
diversos recursos literários. Em Redoble por Rancas, Scorza abandona o realismo seco e duro,
pincelado com passagens naturalistas, caro a Icaza, e também o tom sério e solene que
caracterizava os romances indigenistas ortodoxos (e mesmo as grandes obras de José María
Arguedas). Scorza abusa da ironia e do humor, das metáforas e das prosopopéias, o que lhe
valeu muitas críticas à época da publicação de suas obras, sobretudo da primeira: conforme
Escajadillo, para os primeiros críticos, “o indigenismo de Scorza não estava de acordo com a
tradição indigenista (era ora ‘frívolo’ ou ‘traía uma história’)”117. Logo depois, os críticos
silenciaram quanto à obra scorziana, ficando esta por longo tempo sem pesquisas sérias no
Peru (internacionalmente, os romances obtiveram grande êxito desde os seus lançamentos).
Obviamente, A guerra silenciosa não se enquadra no Indigenismo tradicional, como
primeiramente perceberam os críticos – o que, em absoluto, não deve ser considerado um
“defeito” –, mas relaciona-se com duas vertentes: a tradição indigenista (da qual herda a
116 Neste caso, o que será abordado não se limita apenas ao subenredo referente à comunidade de Rancas em sua peleja contra a Cerro de Pasco Corporation, mas também se estende à sub-história que narra a luta de Héctor Chacón e os comuneiros de Yanacocha contra o juiz Montenegro. 117 ESCAJADILLO, T. (1994) pp.114-115. “[…] el indigenismo de Scorza no ‘cuadraba’ con la tradición indigenista (era ora ‘frívolo’ o ‘traicionaba una historia’) […]”.
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motivação social, a denúncia e o posicionamento do autor como testemunha e conhecedor dos
acontecimentos e dos referentes dos romances) e a nova narrativa do boom da literatura
hispano-americana dos anos de 1960.
Desse modo, Redoble por Rancas não tem um enredo linear como Huasipungo.
Apresenta analepses e prolepses; muitas vezes nos são apresentados acontecimentos somente
explicados posteriormente na trama. Há também uma multiplicidade de narradores. A
focalização heterodiegética onisciente predomina, porém aparece, em menor quantidade, a
homodiegética, em que tomam a palavra os protagonistas: Fortunato na primeira sub-história
e Héctor Chacón na segunda, como veremos mais tarde (e neste tipo de focalização, o
narrador parece dar espaço aos referentes, cedendo-lhe a voz para eles mesmos poderem
contar suas histórias, teoricamente sem intermediários). Todavia, a maior diferenciação dos
romances de Scorza em relação aos da tradição indigenista talvez resida na importância da
“fantasia” ou do “onírico” ou do “realismo maravilhoso”. Os termos utilizáveis são diversos e
a questão é bastante controversa.
Mabel Moraña emprega o termo “fantasia” sem, contudo, explicitar a razão para tal
escolha, mas ressalta a função ideológica que esta categoria exerce no conjunto dos romances
de Scorza. Para a ensaísta, o discurso novelesco scorziano vai além da crônica, do texto
testemunhal baseado em fatos reais, como observamos anteriormente no caso dos paratextos
empregados pelo autor, já que recria a realidade, no plano da ficção, por meio da incorporação
de elementos imaginários, fantásticos, e oníricos, o que fez muitos críticos analisarem o ciclo
como uma épica. O próprio Scorza também acreditava nessa possibilidade: em entrevista a
José Julio Perlado, ele relata que todos os seus livros pretendem ser “cantares de gesta,
cantares épicos”118. O gênero épico, então, fica parecendo uma imposição do referente, cujo
118 PERLADO, José Julio. Manuel Scorza: “sobre la irrealidad total, he puesto la realidad absoluta”. Entrevista inédita (1979). In: Espéculo – Revista de Estudios Literarios. Ano III, no. 7. Madrid: Facultad de Ciencias de La Información, Universidad Complutense de Madrid, nov.97 – fev.98. [http://www.ucm.es/OTROS/especulo/numero7/scorza.htm].
77
cotidiano estaria sempre povoado pela existência do mito e do fantástico. Isso, no entanto, é
rechaçado por Moraña, que não atribui ao referente a “obrigatoriedade” da utilização de
elementos oníricos ou fantásticos, mas a uma visão subjetiva e ideológica do autor – é a sua
forma particular de interpretar a história dos índios:
[...] Mais do que resgatar uma ‘vivência’ e metaforizar um sentimento popular, o que a saga metaforiza é uma peculiar concepção da história peruana, uma determinada visão – subjetiva, ideológica – com respeito à qual os elementos fantásticos, oníricos, etc., jogam com elementos ilustrativos, re-presentações de uma tesis discernível dos demais elementos que constituem a ficção.119
Para Moraña, tanto os traços míticos que envolvem muitos personagens dos romances,
como Chacón, Garabombo ou Añada (de La tumba del relámpago), quanto a fantasia inserida
no discurso como uma maneira de enxergar a realidade ou a forma como esta se manifesta,
atribuídos ao povo indígena, são mostrados através de uma linguagem poética em função
expressiva e contrastam com o discurso político, mais explícito em La tumba del relámpago,
que aparece em função basicamente referencial. A função ideológica manifesta-se, conforme
Moraña, porque o segundo discurso resulta dominante no sentido de ser posto como uma
visão mais esclarecida, mais refletida e, por conseguinte, “superior” dos eventos120.
Cornejo Polar também afirma que Scorza “assume vigorosamente a racionalidade
mítica, e boa parte de seus relatos só pode entender-se a partir dessa opção [...]”121; entretanto,
acredita que o narrador, sabedor dos mitos que fazem parte da vida dos personagens
indígenas, além de não mostrar nenhum ceticismo em relação a estes, ainda os aceita com
simpatia ao longo de todos os quatro romances do ciclo, com exceção da última obra, na qual
percebe que essa racionalidade mítica não é suficiente para vencer a Cerro de Pasco
119 MORAÑA, M. (1983) p.180. “[…] más que rescatar una ‘vivencia’ y metaforizar un sentimiento popular, lo que la saga metaforiza es una peculiar concepción de la historia peruana, una determinada visión – subjetiva, ideológica – con respecto a la cual los elementos fantásticos, oníricos, etc., juegan como elementos ilustrativos, re-presentaciones de una tesis discernible de los demás elementos que constituyen la ficción.” 120 Cf. MORAÑA, M. (1983) p.191 121 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.112
78
Corporation, como veremos no capítulo subseqüente. Cornejo Polar ainda observa que os
mitos e crenças que aparecem nos romances não são conteúdos míticos verdadeiramente
existentes na cultura quíchua (exceto o mito de Inkarri, que ganha espaço em La tumba del
relámpago), mas são:
Construções livres elaboradas pelo narrador, a partir da dinâmica geral desse tipo de racionalidade, o que implica o fato de que seu intento básico não é o de testemunhar as plasmações históricas dessa mítica, mas o de internalizar sua estrutura mental e fazê-la discorrer inventivamente por novos canais.122
O crítico peruano emprega o termo “realismo mágico” ou “realismo maravilhoso” para
designar os elementos míticos da obra de Scorza. Esse recurso contrapõe-se ao realismo social
também presente nos romances e constitui, segundo ele, uma modernização do relato, ou seja,
uma aproximação dos romances de Scorza aos da nova narrativa, uma vez que não se
relaciona diretamente com os mitos quíchuas. O conceito de realismo maravilhoso parece
bastante pertinente ao texto scorziano, não obstante muitos críticos tenham utilizado o
vocábulo “fantástico”como Mabel Moraña e Suely Reis Pinheiro (esta em sua análise ao
segundo romance do ciclo, História de Garabombo, o invisível)123, visto que os
acontecimentos maravilhosos – a existência de um personagem, o Ladrão-de-Cavalos, que
herdou do pai a capacidade de conversar com os eqüinos, a presença de um outro personagem,
Abígeo, que tem sonhos premonitórios, e o diálogo além-túmulo entre os assassinados no
massacre de Rancas que fecha o romance, entre outros episódios, somente para citar os de
Redoble por Rancas – não contrastam com os da realidade. De acordo com Irlemar Chiampi,
122 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.113. 123 Scorza, em entrevista a José Julio Perlado, refuta o “mágico” e prefere o termo “onírico”. Ele diz que, ao escrever, trata de “sonhar a história, de vê-la, de se submergir em busca das grandes profundidades oníricas”. O autor não faz menção ao “maravilhoso”, que, todavia, parece ser válido para a sua obra, já que, segundo Irlemar Chiampi, esse termo “tem servido para designar a forma primordial do imaginário de obras [...] como as canções de gesta [...]” (CHIAMPI, 1980, p.49). Sendo estas, como já verificamos, influências declaradas pelo próprio escritor, o termo “maravilhoso” parece ser bastante pertinente.
79
o realismo maravilhoso contesta a disjunção dos elementos contraditórios ou a irredutibilidade da oposição entre o real e o irreal. A vacilação, expressada pela modalização (‘me parece que...’) – e largamente praticada pelo narrador ou personagem fantástico –, não se inclui entre os seus traços discursivos. Os personagens do realismo maravilhoso não se desconcertam jamais diante do sobrenatural, nem modalizam a natureza do acontecimento insólito. 124
Assim, em Redoble por Rancas, não existe dúvida ou incerteza quanto à habilidade do
Ladrão-de-Cavalos de falar com seus animais e nem à de Abígeo de ver o futuro nos sonhos,
tanto que este é procurado e pago para descobrir os adúlteros da cidade. O último capítulo do
romance também é bastante interessante neste sentido, uma vez que se inicia com a chegada
da Guarda de Assalto em Rancas, que vai com a missão de expulsar à força os comuneiros das
terras da Cerro de Pasco Corporation, e termina com uma conversa entre defuntos, os que
foram mortos a tiros e golpes pela Guarda. Dom Alfonso Rivera, o procurador da
comunidade, conta a Fortunato, através de um pequeno buraco cavado sob a terra entre os
túmulos, o que sucedeu depois de sua morte, já que este foi o primeiro a morrer. Depois, Dona
Tufina, outra ranquenha, é quem narra os acontecimentos após a morte de Rivera. E num
diálogo sem fim, os comuneiros refletem sobre o ocorrido e até sobre o massacre de outras
comunidades, dando continuidade ao processo de conscientização política que se iniciara com
o sermão do padre Chasán. Nesse episódio, Scorza utiliza o recurso do realismo maravilhoso
para também tentar conceder voz aos excluídos. Não se limitando à história oficial, que
dificilmente registra essas rebeliões, o narrador conta uma nova história, narrada por seus
protagonistas, mesmo que já depois de mortos.
Mesmo que o realismo maravilhoso, sempre relacionado à racionalidade mítica
indígena, seja colocado em separado do discurso político referencial no plano do discurso
narrativo, sobretudo no último romance d’A guerra silenciosa, não podemos negar que os
eventos sobrenaturais sejam acolhidos no enredo entre os personagens e passados ao leitor
como algo natural ou trivial. Dessa forma, como ressalta Cornejo Polar, Scorza distancia-se
da tradição indigenista ortodoxa com o emprego do realismo maravilhoso, ao mesmo tempo
124 CHIAMPI, I. (1980) p.61
80
em que reforça as tensões e contradições próprias da literatura heterogênea como a sua (que
podemos chamar, como observamos no capítulo 2, de neo-indigenista) e a indigenista
ortodoxa: o escritor procura uma aproximação do seu referente, colocando-se como
testemunha dos levantes camponeses e representando a sua racionalidade mítica, mas também
acaba se distanciando dele tanto ao empregar o realismo maravilhoso, que já é uma
modernização do relato, quanto ao posicionar a visão política dos fatos como superior à visão
“maravilhosa” atribuída aos índios (haja vista o caso da Cerca, que impõe a conscientização
através de terceiros, que tiram as vendas dos olhos dos comuneiros). Scorza não pode, apesar
de parecer ser esta a sua intenção, dar uma versão verista dos levantes e nem do mundo de seu
referente125, porquanto não é índio, mas um intelectual mestiço étnica e culturalmente. A
riqueza da sua obra, entretanto, consiste exatamente nas contradições que emanam do desejo
de fazer seus referentes falarem ao mesmo tempo em que ele mesmo, escritor, reconstitui,
segundo sua imaginação, o mundo do seu referente. Esse intrincado mecanismo faz seus
livros simultaneamente muito próximos e apartados da tradição indigenista, trazendo a esta
inovações que muitas vezes intensificam as tensões nela já contidas.
Com relação ao outro subenredo do romance, ou seja, a insurgência contra o juiz
Francisco Montenegro, congregador de duas das mais temíveis classes embrutecedoras dos
índios – os latifundiários e a Justiça, representante do Estado –, há outra questão a ser
abordada: o fato de a luta ter sido iniciada por um único personagem, Héctor Chacón, cujo
epíteto é Nictálope (aquele que enxerga no escuro), e motivada por um ódio de infância (seu
pai havia sofrido uma punição arbitrária e cruel de Montenegro). Embora a iniciativa tenha
surgido de um só indivíduo, é importante salientar que serviu também aos interesses de outros
membros da sua comunidade, uma vez que todo o povoado era sempre atingido pela
125 Manuel Scorza parece desejar apresentar uma versão dos fatos sob a perspectiva dos índios, dos vencidos da história, como podemos verificar neste trecho da entrevista concedida a Mabel Moraña: “Mis libros son contados siempre desde la boca de los oprimidos, desde los ojos y la piel de los flagelados.” (MORAÑA, 1983, p.172).
81
exploração e humilhação do juiz. No povoado, dizia-se que ele “dos cárceles tiene [...]: una en
su hacienda y otra en la provincia.”126
É bastante elucidativo o sonho (noturno) de Chacón ao sair da prisão, como resultado
de um desentendimento com Montenegro. Chacón conseguiu reunir homens, que cavalgaram
por muitos meses até chegar à fazenda de Montenegro, invadindo-a, e perseguiram seu
proprietário a fim de julgá-lo, condená-lo e expulsá-lo da província. A partir desse sonho,
Héctor começa a solidificar a idéia de assassinar Montenegro, procurando reunir homens para
isso. Assim, podemos dizer que em certa medida o sonho noturno transformou-se em diurno,
condição essencial para a formação do pensamento utópico. O impulso que orientou esse
sonho diurno à atividade foi o histórico de arbitrariedades e ultrajes sofridos pelo Nictálope
desde a infância e, por extensão, por toda a comunidade, narrados em analepses ao longo do
romance. Os objetivos de Chacón, concomitantemente, coincidem com a vontade e as
necessidades da comunidade, possibilitando a reunião de fatores precisos para uma tentativa
mais concreta de mudança, para a consolidação da utopia de libertação.
Durante o processo de arregimentação de braços para a luta contra os latifundiários,
inclusive Montenegro, percebemos o ápice de esperança, o pensamento utópico:
– Héctor tiene razón – dijo Pis-pis –. Mentira decimos que somos libres. Somos esclavos. La única forma de salir adelante es matando.
[...]
– Estas injusticias las debemos afrontar con sangre – dijo el Flaco, entusiasmado–. Esto debe ser como una revolución.127
Héctor e alguns homens da comunidade de Yanacocha – Abígeo, Ladrão-de-Cavalos,
Pis-pis – planejam antecipadamente a morte do juiz, que, por meio de uma denúncia, toma
126 SCORZA, M. (2002) p. 332. “[...] tem duas cadeias: uma na sua fazenda e outra na província.” (SCORZA, 1975, p.194) 127 Ibidem, p.333. “- Héctor está com a razão – disse Pis-pis. / - É mentira dizer que somos livres. Somos escravos. A única forma de ir adiante é matando. / [...] /- Temos que enfrentar estas injustiças com sangue – disse o Magro, entusiasmado. /- Isto deve ser uma revolução.” (SCORZA, 1975, p.194)
82
conhecimento da sua morte programada e foge. Depois, Chacón é novamente delatado e acaba
sendo preso.
Fica claro, então, o desejo de fazer ruir com a ordem vigente de abusos e injustiças,
mas não existe um planejamento, um projeto que os guie para além da empreitada, ou seja,
não poderíamos falar ainda em revolução. Há em curso uma confabulação, uma revolta sem
perspectivas muito reais: invadem-se fazendas, e esperam-se as reprimendas, que certamente
viriam com violência máxima.
Neste subenredo do romance, percebemos que não há propriamente uma interferência;
a consciência da exploração sofrida por centenas de anos está presente, sobretudo, em
Chacón. De acordo com Rodríguez Ortiz, todas as seqüências correspondentes a Héctor são
narradas de forma não-cronológica128: a técnica narrativa, assim como a forma de tratar o
tema dos indígenas contra os latifundiários, distanciam-se bastante de romances indigenistas
como Huasipungo. Além disso, parece não ser necessária uma interferência para se narrar a
história dos índios comuneiros e nem para a construção de um pensamento utópico; estes têm
passado e “matéria” suficiente para serem romanceados e consciência de sua posição ocupada
na sociedade andina para construírem seus projetos utópicos. Ademais, nesta sub-história, há
um tom menos coletivo. É claro que Chacón age com seus companheiros e precisa deles para
conseguir executar seus planos (e é desejo de todos acabar com a exploração), mas ele é
apresentado como o grande líder, o mentor de tudo e o agitador de quem nasce a utopia e que
saberá conseguir, como escreveu Escajadillo, “que os comuneiros recuperem sua ‘raiva’ e
empreendam uma e outra vez o caminho da rebelião armada”129. Em Redoble por Rancas,
Héctor é o grande cabeça (como Garabombo, em Garabombo, el invisible; Raymundo
Herrera, em El jinete insomne, e Agapito Robles, em Cantar de Agapito Robles) e não sofre
128 Apud. SCHMIDT, F. (1991) p.237. 129 ESCAJADILLO, T. (1978) p.186. “[…] que los comuneros recuperen su ‘rabia’ y emprendan una y otra vez el camino de la rebelión armada.”
83
um processo de conscientização política tão explícita quanto no caso dos comuneiros de
Rancas, pois desde cedo não se resignava frente às injúrias que Montenegro lhe impunha:
“Fue la primera vez – tenía nueve años – que la mano de Héctor Chacón, el Nictálope, sintió
sed de la garganta del doctor Montenegro.”130 Embora, na prisão, tivesse obtido maiores
esclarecimentos sobre as leis, Chacón sempre teve acesa a chama da justiça para a sua
comunidade e, portanto, do pensamento utópico.
A sub-história de Chacón distingue-se, dessa forma, da de Fortunato e dos ranquenhos,
mantendo, portanto, um distanciamento maior com relação aos romances indigenistas
ortodoxos. É interessante notar que Scorza parece construir um ciclo no qual Redoble por
Rancas apresenta um subenredo “intermediário” entre as obras da tradição anterior, como
Huasipungo, e as neo-indigenistas, que “modernizam” aquela vertente literária. O subenredo
de Rancas é narrado de forma mais linear: seus personagens agem como um grupo, num
coletivo em que Fortunato se destaca, mas ele os representa como uma espécie de metonímia
da comunidade e do movimento, e a interferência é essencial para a conscientização de classe,
que vem necessariamente “de fora”. Já a sub-história de Chacón e da comunidade de
Yanacocha não é narrada de maneira linear e, sobretudo, o que é determinante é a politização
de Héctor. Embora o centro do problema seja a relação dos comuneiros com os gamonais, o
que não implica a ampliação da problemática a níveis nacionais – como poderia ocorrer no
caso da outra sub-história, já que se trata da intromissão da mineradora norte-americana –,
este subenredo parece já mostrar o índio de uma perspectiva mais “ativa”, como consciente de
sua classe e da ilegalidade das ações dos latifundiários. A utopia, que depende da capacidade
de reflexão e de projeção de planos e idéias, aparece desde o princípio em Chacón, ao passo
que, em Fortunato e nos comuneiros de Rancas, ela começa a surgir apenas posteriormente,
quando finalmente compreendem a origem da Cerca. O processo ao qual nos referimos – a
130 SCORZA, M. (2002) p.204. “Foi a primeira vez – tinha nove anos – que a mão de Héctor Chacón, o Nictálope, sentiu sede da garganta do Montenegro.” (SCORZA, 1975, p.65)
84
caminhada de uma tradição indigenista a uma “modernização” do movimento, além da
trajetória da utopia e da perspectiva pela qual se vê o indígena – culminará em La tumba del
relámpago, objeto de nosso próximo capítulo.
85
5. LA TUMBA DEL RELÁMPAGO: DOUTRINA E UTOPIA La tumba del relámpago é o último romance d’A guerra silenciosa e apresenta
algumas peculiaridades em relação aos quatro anteriores, diferenciando-se bastante destes.
Como o próprio autor denominou “ciclo de obras”, há uma espécie de trajetória de
pensamento, de organização utópica, de processo (da representação do mítico ao
conhecimento da história), que se desenvolve a partir das experiências narradas nas obras
precedentes ou que procura um fecho. O ciclo também sugere a idéia de uma repetição, como
nas estações do ano: o processo de reivindicação, rebelião, morte e ressurgimento da utopia
reitera-se em cada um dos livros que o compõem.
Em La tumba del relámpago, a desesperança causada pelos massacres contados nos
romances anteriores é substituída por uma boa dose de energia utópica com a introdução de
um elemento “estrangeiro”, Genaro Ledesma, personagem que já havia aparecido em Redoble
por Rancas, mas que exerce função determinante neste último livro da série. Aqui
percebemos uma mudança significativa: ao passo que os líderes e protagonistas dos quatro
primeiros livros d’A guerra silenciosa eram sempre personagens oriundos das comunidades e
integrantes do mundo indígena (Héctor Chacón, Fortunato, Garabombo, Raymundo Herrera e
Agapito Robles), Ledesma vem de fora; é um personagem “urbano”, representante da
intelectualidade simpatizante das causas campesinas.
Ledesma chegou a Cerro de Pasco para lecionar História em uma escola pública e
deparou-se com a precariedade da vida de seus alunos, a maioria deles mineiros da Cerro de
Pasco Corporation, naturais das comunidades camponesas. Com o tempo, acabou ganhando a
confiança destes ao denunciar, numa rádio local que cedera um espaço de sua programação
para o colégio, os problemas causados pelas más condições de trabalho nas minas da Cerro de
Pasco e pela demissão em massa dos trabalhadores em razão da queda dos preços dos
minerais no mercado internacional. Despedidos, os mineiros eram obrigados a retornar à sua
86
comunidade natal, agravando a questão da falta de terras – exatamente o mesmo problema que
já os tinha motivado a deixá-las.
A importância de Genaro Ledesma crescia à medida que se envolvia com os
camponeses e mineiros, observando as dificuldades da região, e ele acabou por transformar-se
em um dos representantes dos comuneiros, os quais chegaram a custear os seus estudos de
advocacia com a intenção de terem um aliado leal apto a defender as suas causas
juridicamente. Todavia, enquanto Ledesma concluía seus estudos, os problemas agravavam-se
com a ampliação de uma hidrelétrica construída pela Cerro de Pasco Corporation, que fez
submergir muitas terras produtivas das comunidades. Esse fato funciona no enredo como um
elemento catalisador dos ânimos: não é propriamente uma “interferência” – a agressão externa
que evidencia um “antes” e um “depois”, como a de Huasipungo ou da sub-história da
comunidade de Rancas versus a Cerro de Pasco Corporation –, uma vez que não representa a
motivação que leva à revolta ou à tomada de consciência da exploração. Em La tumba del
relámpago, os personagens já se mostram “maduros”: tendo vivido as experiências narradas
nos romances precedentes, eles não mais temiam massacres, pois tinham a necessidade, o
desejo utópico de transformar a realidade. A expansão da represa da hidrelétrica é um
acelerador do processo de reivindicação, que se estende das causas legais, quase nunca
favorecedoras dos índios, ao uso da força, a luta armada.
No momento em que os comuneiros, por iniciativa própria, decidem partir para uma
rebelião (invasão de fazendas), Ledesma é chamado para, além de advogado, tornar-se
dirigente do movimento. Enquanto representante externo à classe dos camponeses, na posição
de intelectual, Ledesma traz à baila uma nova forma de organização: com ele, pela primeira
vez, procura-se inserir um programa de apoio – o socialismo – à sublevação campesina. Essa
nova organização é também um novo impulso para o desejo utópico; novamente há esperança
e projeção de um plano para a transformação da realidade. No romance, o socialismo exerce a
87
função de “modernizar” a luta camponesa – “la doctrina socialista es la única que puede dar
un sentido moderno, constructivo, a la causa indígena”131 – e toma por referência o sucesso da
revolução cubana. A tensão entre a “tradição” e a “modernização” surge, em La tumba del
relámpago, relacionada ao contexto das sublevações nos Andes centrais. Obviamente, a
discussão que envolve esse assunto é extensa e exige um longo e cuidadoso trabalho,
rendendo, certamente, uma outra dissertação; nosso propósito, neste estudo, é apenas o de
delimitar essa questão a alguns aspectos concernentes ao nosso corpus literário. Como bem
observou Henri Lefebvre, precisamos sempre nos perguntar: “Que era ou parecia moderno em
tal ou tal data [...]?” Assim, tendo em vista esse conselho, concentraremos esse
questionamento nas rebeliões camponesas indígenas e na inserção do socialismo, levando em
conta o pensamento de Mariátegui, referido explicitamente pelo narrador, que chega a citar
trechos de seus mais célebres ensaios na última obra d’A guerra silenciosa.
De acordo com Hugo Cancino, o conceito de “tradição” é comumente abordado de
forma equivocada em trabalhos sobre “modernidade”. Sendo tratado como antípoda deste
conceito, é, portanto, definido como “imobilismo, ignorância, preconceito, superstição,
reprodução dos sistemas de valores, das línguas, mentalidades e atitudes de passado
remoto”132. Em contrapartida, a modernidade seria o “signo do começo da História, entendida
esta como um processo orientado pela razão instrumental”133. Na América Latina, segundo
este autor, a modernização foi imposta “de cima”, pela elite que desejava criar uma imagem
de nação livre da “barbárie” representada pela tradição dos povos indígenas. Por conseguinte,
o processo modernizador não poderia ser levado a cabo de forma homogênea, atingindo todos
os níveis dos Estados latino-americanos. Para Néstor García Canclini, no continente latino-
131 SCORZA, M. (1985) p.129. “A doutrina socialista é a única que pode dar um sentido moderno, construtivo, à causa indígena.” (SCORZA, 1986, p.126) 132 CANCINO, H. (2002) p.13. “[…] inmovilismo, ignorancia, prejuicio, superstición, reproducción de los sistemas de valores, de las lenguas, mentalidades y actitudes de pasado remoto.” 133 Ibidem, p. 13. “[...] el signo del comienzo de la Historia, entendida ésta como un proceso orientado por la razón instrumental.”
88
americano, a “modernização operou poucas vezes mediante a substituição do tradicional e do
antigo”134; houve um processo parcial de urbanização e industrialização em muitas partes do
continente, porém mantinham-se “estruturas econômicas e hábitos políticos pré-modernos”135.
Uma conseqüência dessa convivência beligerante de variadas temporalidades históricas em
um mesmo momento são os conflitos que reforçam a imagem negativa da tradição, ou melhor,
a identificação da tradição necessariamente com o “atraso”, sua percepção como um
empecilho ao “progresso” (nessa perspectiva, por exemplo, a tradição indígena significaria em
todas as hipóteses a impossibilidade da “modernização” e do “desenvolvimento”, o que seria
uma posição um tanto equivocada).
Essa questão é bastante controversa e ainda não pode ser considerada encerrada;
podemos verificá-la na opinião de autores contemporâneos como Mario Vargas Llosa, cuja
crítica a José María Arguedas tem como alvo o “arcaísmo” de seus romances, que valorizam e
desejam conservar a cultura indígena com seus costumes e seus modos de ver o mundo. Ao
analisar Os rios profundos, de Arguedas, Vargas Llosa caracteriza a vivência entre os índios,
rememorada pelo protagonista Ernesto, como uma “realidade caduca”136. Ademais,
caracteriza como superstições – que seriam um “legado de sua metade espiritual índia”137 – as
diferentes formas sob as quais o personagem vê a natureza, por ele percebida como dotada de
poder e vivacidade, distinguindo-se assim da visão “ocidental” dos fenômenos da natureza.
Agindo e pensando dessa maneira, Ernesto estaria, para Vargas Llosa, renegando “a razão
como vínculo com a realidade, e [preferindo] intuições e devoções mágicas”138. Fica, pois,
claro que, para Vargas Llosa, a visão de mundo dos indígenas é irracional (porque não
científica). Pensando através de dicotomias como tradição/modernidade e
irracionalidade/racionalidade, dotando sempre a primeira parte de termos negativos, julgando-
134 GARCÍA CANCLINI, N. (2006) p.74. 135 Ibidem, p.74. 136 VARGAS LLOSA, M. (1996) p. 181. “[...] realidad caduca [...]”. 137 Ibidem, p. 185. “[...] legado de su mitad espiritual índia [...]”. 138 Ibid, p. 185. “[...] la razón como vínculo con la realidad y a preferirle intuiciones y devociones mágicas.”
89
a um entrave para a sociedade e apostando na necessária dissociação entre elas, Vargas Llosa
crê apenas em uma racionalidade – única e não plural –, aquela que levaria, nesse tipo de
pensamento, à “modernização” e ao “progresso”. De acordo com Pablo Cristoffanini, a
“racionalidade, o espírito crítico, a cultura democrática, a mudança, o desenvolvimento [...], o
progresso são associados por Vargas Llosa com o Ocidente. É o mito da modernidade e o
progresso.”139 Essa posição adotada por Vargas Llosa de não-valorização ou de uma visão
negativa da tradição – que no caso do Peru é, sobretudo, a indígena – foi, conforme Hugo
Cancino, compartilhada pelo marxismo ortodoxo na América Latina140.
Em oposição a esse pensamento, há as idéias de José Carlos Mariátegui, um dos
poucos estudiosos que refletiu sobre o marxismo no contexto específico da América
Hispânica, principalmente no Peru. Ele não rechaçava a tradição (a incaica seria a mais antiga
do Peru). Pelo contrário, opunha o “tradicionalismo” – “atitude política ou sentimental que
deságua invariavelmente em mero conservantismo”141 – à “tradição”, compreendendo esta
não como algo estanque, mas como continuidade histórica, resultado de sucessivas
transformações, sendo composta por elementos heterogêneos e até contraditórios. Além disso,
para Mariátegui, “não existe um conflito real entre o revolucionário e a tradição”142: no
contexto peruano, muito diverso do da Europa do século XIX, o socialismo é que deveria
encarregar-se da modernização da sociedade, uma vez que, de acordo com Michael Löwy,
A burguesia local seria incapaz de desempenhar um papel democrático-revolucionário consciente ou de libertar o continente do jugo dos latifundiários e dos monopólios imperialistas. O que está, pois, na ordem do dia do Peru e na indo-américa, é uma revolução social global que combina as tarefas nacionais, democráticas, agrárias e socialistas, articulando-as em um único processo revolucionário no combate anti-capitalista. 143
139 CRISTOFFANINI, P. (2002) p.134. “[...] la racionalidad, el espíritu crítico, la cultura democrática, el cambio, el desarrollo, la tolerancia, el individuo soberano, el progreso, la verdad, son asociados por Vargas Llosa con Occidente. Es el mito de la modernidad y el progreso.” 140 Cf. CANCINO, H. (2002) p.16. Para mais informações, ver também PORTANTIERO, J. C. O marxismo latino-americano. In: HOBSBAWN, E. (et alii) História do marxismo. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 141 MARIÁTEGUI, J.C. (2005) p.113. 142 Ibidem, p.114. 143 LÖWY, M. (1999) p. 15.
90
Mariátegui atentava para o fato de que no Peru e em praticamente toda a América
Hispânica, a burguesia não teve força suficiente – ou não quis ter – para erradicar a
feudalidade, como ocorreu em várias partes da Europa, cabendo, então, ao socialismo esse
papel. É importante ressaltar ainda que Mariátegui nunca dissociou o Indigenismo
(identificado por muitos com a tradição no sentido mais negativo, como com Vargas Llosa) e
o Socialismo (revolução). Conforme já citamos anteriormente, a revolução, segundo os
moldes mariateguianos, reivindicava a tradição incaica na medida em que ele (e a maioria dos
estudiosos de sua época144) acreditava em uma espécie de “comunismo primitivo”, ou seja,
achava que o império inca tivera certas práticas supostamente “comunistas”. Ademais, o fato
de as comunidades indígenas existentes à sua época conservarem, de acordo com Adolfo
Sánchez Vásquez, “hábitos de cooperação e solidariedade [...], cuja importância para o
socialismo [Mariátegui] sublinha”145, corroborava com a sua vertente do socialismo peruano.
Essa idéia de o incanato ser um tipo de comunismo foi, mais tarde, considerada errônea e
ultrapassada; isso, no entanto, não diminui em nada a importância e a pertinência das teorias
mariateguianas, visto que ele, mantendo a sua lucidez quanto à realidade peruana, atentava
para a presença indígena majoritária na composição social e principalmente na formação da
classe trabalhadora. Na construção do pensamento mariateguiano146, o socialismo, enquanto
ideologia que postula a defesa dos direitos dos trabalhadores, não poderia excluir os
indígenas. Para ele, no Peru, a classe camponesa indígena era indispensável para o socialismo
e para a revolução, razão pela qual propunha um movimento operário-camponês, não
144 Cf. CORNEJO POLAR, A. (1994) p.188. 145 SÁNCHEZ VÁSQUEZ, A. (1999) p. 53. 146 O socialismo proposto por Mariátegui é extremamente original por vários motivos. O principal deles é a importância que ele dá ao papel do indígena na máquina social e nas suas teorias plenamente inseridas nas particularidades do seu país natal. Conforme Bernardo Ricupero, “No caso de Mariátegui, é principalmente a compreensão de que a questão indígena é o problema central do Peru que o torna capaz de elaborar um marxismo de acordo com as condições de seu país. Em bases marxistas, Mariátegui não vê a questão indígena como simplesmente étnica, mas também como econômica, já que está diretamente vinculada à questão fundiária peruana.” (RICUPERO, 1999, p.70)
91
relegando – dadas as evidentes diferenças entre o contexto peruano e o europeu
(sobrevivência tardia do sistema semifeudal na organização socioeconômica e política, por
exemplo) – à classe operária toda a liderança. Para Mariátegui, pode-se unir essas duas
camadas da sociedade assim como ele as uniu, em suas teorias, à tradição e à revolução ou
modernidade, sem que nenhuma das partes fosse considerada superior à outra.
Em La tumba del relámpago, o socialismo surge como o organizador do movimento
camponês, o que distingue este romance dos anteriores do ciclo: enquanto que nesta última
obra impõe-se uma maior união entre as várias comunidades de Cerro de Pasco, nas primeiras
havia uma profusão de rebeliões isoladas. Com uma rebelião geral, a repressão por parte da
Guarda de Assalto seria dificultada:
– Las recuperaciones [de tierras] deben producirse al mismo tiempo y en todos los puntos posibles del Departamento. Si es así, la tropa tendrá fatalmente que dividirse. [...] Pero si esa tropa tiene que enfrentar al mismo tiempo, a cincuenta o sesenta comunidades distantes entre sí, entonces les será imposible operar. ¿Por qué pensar solamente en Pasco? En el Departamento de Junín, en el resto del Perú, ¿no hay injusticias?147
A ação não fica restrita a um pequeno espaço e pretende transpor o departamento de Cerro,
alcançando proporções possivelmente nacionais e envolvendo também os partidos comunistas
de Lima. Entretanto, esse projeto de ampliação da luta encontra o grande empecilho da
importação acrítica de teorias: o Partido Comunista de Lima não oferece o auxílio pedido por
Ledesma – armas e quadros para uma verdadeira rebelião socialista – com a justificativa de
que “la clase campesina, que ha dado tantos ejemplos de heroísmo, carece de una verdadera
conciencia revolucionaria para llegar hasta el final. La vanguardia de la revolución es el
147 SCORZA, M. (1985) p. 99. “- As recuperações [de terras] devem se produzir ao mesmo tempo em todos os pontos possíveis do Departamento. Se for assim, a tropa fatalmente terá de se dividir.[...] Mas se a tropa tem que enfrentar ao mesmo tempo cinqüenta ou sessenta comunidades distantes entre si, então será impossível operar. Por que pensar somente em Pasco? No Departamento de Junín, no resto do Peru, não existem injustiças?” (SCORZA, 1986, p.99)
92
proletariado.”148. A postura dos comunistas ortodoxos é bastante criticada em La tumba del
relámpago, uma vez que eles pareciam “[leer] un manual de marxismo, la teoría y táctica de
los bolcheviques preparándose a asaltar el Palacio de Invierno.”149. Não conseguiam, por
conseguinte, compreender que, como Mariátegui já havia ressaltado décadas antes, os índios
camponeses é que constituíam a grande massa de trabalhadores em um país em que a
industrialização era ainda incipiente. Ledesma só pôde lamentar a imitação pura e simples de
um socialismo criado e refletido para um outro contexto: “la rabia, el coraje, son de aquí, y las
ideas son de allá. ¡Nosotros sólo ponemos la desesperación!”150.
Essas passagens nos remetem às idéias de Roberto Schwarz, que analisa no caso
brasileiro uma situação semelhante: ele fala sobre as “idéias fora do lugar”, sobre a sensação
de que as idéias estão “fora de centro, em relação ao seu uso europeu”,151 porque são
antagônicas à realidade a que se referem. Havia, por exemplo, no Segundo Reinado, um
conjunto ideológico constituído por idéias liberais vindas da Europa convivendo com o
escravismo e com a prática do “favor”, que era a forma de inserção do homem livre – nem
escravo e nem senhor – na sociedade brasileira. Se a burguesia na Europa procurava
consolidar seus poderes contra o Antigo Regime pregando a “autonomia da pessoa, a
universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva”152, no Brasil, com a
instituição do favor, havia justamente o oposto – a dependência da pessoa a algum poderoso, a
desigualdade de tratamentos, etc. Analogamente, enquanto os comunistas ortodoxos de La
tumba del relámpago pregavam que a liderança de uma revolução socialista-comunista
deveria ser dos operários, os camponeses indígenas tentavam organizar um movimento para
148 SCORZA, M. (1985) p.234. “[...] a classe camponesa, que deu tantos exemplos de heroísmo, carece de uma verdadeira consciência revolucionária para chegar até o final. A vanguarda da revolução é o proletariado.” (SCORZA, 1986, p.219) 149 Ibidem, p.234. “[...] ler um manual de marxismo, a teoria e a tática dos bolcheviques se preparando para atacar o Palácio de Inverno.” (SCORZA, 1986, p.219) 150 Ibid, p.235. “[...] a raiva e a coragem são daqui, as idéias são de lá. Nós somente entramos com o desespero.” (SCORZA, 1986, p.220) 151 SCHWARZ, R. (2000) p.30. 152 Ibidem, p.17.
93
derrubar a exploração exercida, de um lado, pelos latifundiários, representantes dos resquícios
de relação de servidão sobreviventes em plenos meados do século XX, e, de outro, pelo
imperialismo (não de forma consciente e consistente no romance) simbolizado pela Cerro de
Pasco Corporation.
Tomaram-se de empréstimo as teorias socialistas de maneira acrítica para aplicá-las
diretamente ao cenário peruano. Lembramos então novamente de Schwarz que, em seu ensaio
“Nacional por subtração”, afirma que “brasileiros e latino-americanos fazemos
constantemente a experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que
levamos”153. Prosseguindo no ensaio, Schwarz explica que o “sentimento aflitivo da
civilização imitada não é produzido pela imitação, presente em qualquer caso, mas pela
estrutura social do país, que confere à cultura uma posição insustentável, contraditória em seu
autoconceito”154.
No caso peruano, verificamos situação semelhante. Tanto na época colonial quanto na
República, os índios viveram oprimidos pela servidão em fazendas ou em minas. Vieram a
independência e a entrada do capital estrangeiro (o imperialismo norte-americano); porém, o
trabalho permaneceu em grande parte baseado nesse antigo sistema – na serra andina, por
exemplo. Assim, como no Brasil analisado por Schwarz, não é simplesmente a “adesão” a
idéias e teorias estrangeiras que causa a sensação do postiço, mas a própria maneira como a
sociedade se estruturou historicamente. É por conhecerem essa estrutura distinta em relação
aos países europeus que Mariátegui e o personagem Genaro Ledesma (leitor do primeiro)
procuravam ver as teorias marxistas de outra maneira, de modo que fizesse sentido lê-las e
pensá-las para o Peru e para as suas peculiaridades. O primeiro, como já observamos, tinha
uma visão muito particular do Marxismo e do Socialismo, sendo por isso muito criticado por
seus contemporâneos; o segundo, vivendo entre as comunidades indígenas, presenciava a sua
153 SCHWARZ, R. (1989) p.29. 154 Ibidem, p.46.
94
raiva, o desejo de mudança e a tentativa de organização essencialmente socialista do
movimento. Ele entendia que as teorias lidas e apreendidas não se referiam à realidade que
via: “- [...] En el Perú, hoy, la vanguardia revolucionaria no es la clase obrera sino la clase
campesina. Pero, ¿quién lo admite?”.155 Ledesma percebia que todo o potencial utópico de
transformação, relacionado à capacidade de projeção de um desejo de forma consciente e
refletida, parte da classe camponesa, que há séculos tentava desvencilhar-se do subjugo e da
exploração.
A inserção de personagens como Ledesma e até o próprio Manuel Scorza – que
aparece em papel secundário como integrante do Movimento Comunal do Peru e relator dos
levantes indígenas e seu massacre para os jornais da capital –, portadores das idéias
socialistas, representam, de certa forma, o “moderno”156, uma vez que eles oferecem um
sentido de organização, planejamento e alargamento do movimento camponês. Por outro lado,
essa modernização parece sucumbir, dentre outros fatores, perante ela mesma; a fragmentação
dos partidos de esquerda, além de sua busca do “moderno” por meio da adoção de teorias
criadas para um contexto diverso ao do Peru dificultam a ebulição de uma sublevação de
caráter socialista. As teorias não condizem com a realidade; por conseguinte, a
“modernização” fica pela metade e não se consegue romper com a ordem socioeconômica e
política em curso.
A questão da “tradição” aparece em La tumba del relámpago como a racionalidade
mítica dos indígenas, representada, conforme Cornejo Polar157, pelos ponchos tecidos pela
anciã cega, Añada, que mostravam mesclados o passado, o presente e o futuro. A velha
155 SCORZA, M. (1985) p. 224. “- [...] No Peru, hoje, a vanguarda revolucionária não é a classe operária, mas a classe camponesa. Mas quem admite isso?” (SCORZA, 1986, p.208) 156 Essa visão do socialismo ou comunismo como modernizadores dos movimentos indígenas não é exclusiva de Mariátegui ou Scorza, mas também de autores como Eric Hobsbawn, que em um texto sobre a rebelião dos índios camponeses de La Convención, região de Cuzco, onde havia um sistema de latifúndios bastante parecido com o dos Andes centrais, atribui ao comunismo algumas características dos revoltosos – conhecimento do castelhano, superação do analfabetismo por vários deles, entre outros fatores: “Grande parte dessa modernização pode ser decorrência, naturalmente, da influência da organização comunista” (HOBSBAWN, 1978, p.188). 157 Cf. CORNEJO POLAR, A. (2000) p.111.
95
comprometera-se, a princípio, a tecer a história do povoado de Yanacocha; todavia, ao invés
disso, teceu o futuro, prevendo revoltas e massacres. Faz-se, na verdade, uma mistura de
tempos e interpretações: para a velha, ela tinha desenhado o passado das comunidades; porém,
ao analisar os ponchos, Remigio Villena, um dos líderes do movimento camponês, viu o
futuro, pensando que a anciã tivesse se enganado, que ela “sin saberlo, había recordado lo que
todavía no había sucedido”158. Nos ponchos, viam-se os massacres que aconteceram depois da
confecção dos tecidos, além de imagens não decifráveis e do mito de Inkarri (o único de
origem verdadeiramente quíchua mostrado por Scorza; os outros são criações artísticas do
autor que representam a racionalidade mítica dos índios), que conta a história do deus criador
inca decapitado pelo rei espanhol. Seu corpo desmembrado ficaria sob a terra até que, quando
novamente se juntasse à cabeça, Inkarri retornaria ao mundo e toda a opressão iniciada com a
conquista espanhola teria fim (o mito resgata uma utopia marcadamente messiânica que,
todavia, não caracteriza a essência desse movimento narrado em La tumba del relámpago).
É interessante notar que há aí implícita uma grande discussão do que pode ser
considerado história. Segundo Le Goff:
[...] Há pelo menos duas histórias [...]: a da memória coletiva e a dos historiadores. A primeira é essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas constitui o vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado. [...] A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros. Mas estará o historiador imunizado contra uma doença senão do passado, pelo menos do presente e, talvez, uma imagem inconsciente de um futuro sonhado?159
Os ponchos de Añada podem representar a memória coletiva, na qual o mito é de extrema
importância. De acordo com Mircea Eliade,
A memória popular [ou coletiva] retém dificilmente acontecimentos ‘individuais’ e figuras ‘autênticas’. Funciona por meio de estruturas diferentes [...]. O personagem histórico é
158 SCORZA, M. (1985) p. 10. “[…]sem saber, recordou o que ainda não acontecera.” (SCORZA, 1986, p.10) 159 LE GOFF, J. (1996) p. 29.
96
assimilado ao modelo mítico (herói, etc), enquanto que o acontecimento se inclui na categoria das ações míticas.160
A memória coletiva, por conseguinte, não identifica os rostos e as feições “reais” do
acontecimento e dos seus envolvidos, e nem se preocupa em fazê-lo; por esse motivo, os
desenhos nos ponchos estavam sujeitos à interpretação do “leitor”. Além disso,
freqüentemente representavam o futuro a posteriori161, quando este já havia acontecido; isto
é, depois de uma revolta consumada, por exemplo, ficava mais fácil descobrir os comuneiros
que participaram dela retratados no tecido. Instaura-se, por conseguinte, uma “confusão” de
tempos, dado que o nosso tempo cronológico, nessa racionalidade, é inoperante: o presente é
passado e também futuro; há uma indistinção entre eles, remetendo-nos aos ciclos, ao “eterno
retorno”. A concepção cíclica do mundo, da história e do tempo, segundo Eliade, está ligada à
observação da natureza – as fases da lua, as estações do ano162 –, revelando a necessidade de
existência de um processo que inclui nascimento de uma humanidade, crescimento,
degeneração e desaparecimento, seguido por um novo processo que faz ressurgir e regenerar
essa mesma humanidade. Por meio dessa concepção cíclica, o tempo e as coisas nunca são
irreversíveis; do mesmo modo, também as situações nunca são totalmente novas, já que,
retomando Eliade, os mitos são “os modelos exemplares” de todos os atos do homem e
“garantem-lhe que tudo aquilo que se faz, ou projeta fazer, foi já feito nos primórdios [...]”163.
Apresentando-se freqüentemente através dos mitos, a memória coletiva percebe os
acontecimentos como sendo, portanto, também cíclicos e destinados a repetir-se de tempos
em tempos; por isso é anacrônica. No romance, ela pode sustentar uma história dos vencidos
160 ELIADE, M. (2001) p.31. “[…] la memoria popular retiene difícilmente acontecimientos ‘individuales’ y figuras ‘auténticas’. Funciona por medio de estructuras diferentes […]. El personaje histórico es asimilado a su modelo mítico (héroe, etc.), mientras que el acontecimiento se incluye en la categoría de las acciones míticas […]”. 161 Conforme Tzvetan Todorov, os presságios de destruição do Império Asteca pelos espanhóis também foram feitos a posteriori e eles são muito semelhantes em vários povos do continente americano. Os incas também tinham as profecias de que os espanhóis ou estrangeiros viriam e seriam vitoriosos. Poderíamos relacionar, então, esses presságios aos ponchos. 162 ELIADE, M. (2001) p.55. 163 ELIADE, M. (1986) p. 107.
97
silenciados pela historiografia oficial, supostamente fiel aos fatos ocorridos, e pela imprensa,
que dificilmente divulgava as revoltas camponesas indígenas que estouravam há mais de
quatrocentos anos no Peru seguindo o mesmo processo dos mitos: insatisfação com a situação
em que viviam, organização do movimento, luta e massacre.
Levando em conta essa natureza cíclica do tempo e dos acontecimentos e, por
conseguinte, o tom profético dos ponchos, o malogro das sublevações era quase inevitável, o
que de fato levaria ao conformismo e à passividade da espera pelo destino já traçado. Isso
entra em conflito com o desejo utópico verificado nos personagens campesinos de La tumba
del relámpago e no próprio Ledesma, já que, nas palavras de Teixeira Coelho, “A imagem
utópica luta pela materialização de um desejo que estivera antes, talvez e no máximo, ao nível
do inconsciente; a profecia extravasa os limites do desejado pelo homem para ir remexer
naquela zona de passividade e conformismo que é o destino”164.
Entretanto, um evento crucial da trama ultrapassa a resignação e a profecia (inclusive a
racionalidade mítica) e opta pela construção da história dos homens. Durante a invasão de um
dos latifúndios, alguns comuneiros encontram uma grande torre reconhecida por Remigio
Villena, um dos dirigentes do grupo, por ter sido retratada em um dos tecidos de Añada. Ao
entrar na torre, Remigio depara-se com todos os ponchos que a velha tecera e, portanto, com o
futuro das comunidades. Vencendo a curiosidade, porém, ele decide queimar a torre e o seu
conteúdo, optando por escrever seu próprio futuro:
¡Intuyó que había llegado al futuro, y lo rechazó! Porque no quería ya acatar ninguna ley emitida en las sombras por la mano de una delirante sombra ciega, sino ordenarse él mismo y obedecerse él mismo, asumir su propio futuro.
– ¡Por eso mismo los [ponchos] quemé! Porque no quiero el porvenir del pasado sino el porvenir del porvenir. El que yo escoja con mi dolor y mi error.165
164 COELHO, T. (1985) p. 10. 165 SCORZA, M. (1985) pp.200-202. “Intuiu que tinha chegado o futuro e o expulsou! Porque não queria acatar nenhuma lei emitida nas sombras pela mão de uma delirante sombra cega, mas ordenar ele mesmo e obedecer ele mesmo, assumir o próprio futuro. / - Por isso mesmo os [ponchos] queimei! Porque não quero o futuro do passado, mas sim o futuro do futuro. O que eu escolher com a minha dor e o meu erro.” (SCORZA, 1986, pp.187-188)
98
Talvez possamos relancear, nesse trecho do romance, a passagem de uma
racionalidade mítica para uma conscientização histórica e política. Como o próprio Scorza-
autor afirmou em entrevista a Manuel Osorio, os cinco livros da Guerra silenciosa mostram
“uma passagem da sociedade mítica para a sociedade atual”166. Dessa forma, verificamos que
o ato de rechaçar o futuro escrito, a profecia mítica e o tempo cíclico representa a transposição
para a consciência do poder fazer, da utopia como projeto concreto, como um “potencial
revolucionário”, e não como um desejo impossível de realizar-se, uma utopia milenarista e
passiva – os personagens indígenas organizam-se, formam suas tropas, reúnem diversas
comunidades, têm uma esperança muito viva, como podemos verificar na seguinte passagem:
“[Remigio Villena] Viajó directamente a Tusi, con la intención de cumplir, costara lo que
costara, su promesa: recuperar las tierras robadas por la hacienda Jarria. ¿Se podrá en tres
meses? ¡Se puede, doctor!”167.
Por outro lado, a questão da “tradição” consolida-se no romance com um traço
negativo para o sucesso das rebeliões. Genaro Ledesma e os dirigentes de muitas
comunidades conseguem organizar um grande levante, em que todas elas invadiriam ao
mesmo tempo diferentes latifúndios localizados em diversas partes do departamento,
dificultando a repressão. Entretanto, um comuneiro de Yarusyacán sonha com a Santa Maca,
padroeira da província não oficializada pela igreja católica, a qual sugeria que a comunidade
seria vitoriosa na retomada das terras se a ação ocorresse imediatamente – no caso, um mês
antes da data combinada. Os dirigentes de Yarusyacán, devotos da santa, acreditam no sonho
e aprovam a antecipação da invasão das fazendas, rompendo com a estratégia planejada e
regredindo ao estágio de revolta isolada, uma vez que muitas comunidades desistem da
sublevação com a mudança do prazo estipulado. O desmantelamento da organização do
166 Apud. OSORIO, M. (1984) p.59. “[…] el pasaje de la sociedad mítica a la sociedad actual.” 167 SCORZA, M. (1985) p.101. “[Remígio Villena] Viajou diretamente para Tusi, com a intenção de cumprir, custasse o que custasse, a sua promessa: recuperar as terras roubadas pela fazenda Jarria. Será possível em três meses? Será, doutor!” (SCORZA, 1986, p.101)
99
movimento geral leva, juntamente com a falta de apoio do Partido Comunista de Lima, ao
fracasso da tentativa de revolução. Sucede-se um novo massacre.
Antes de darmos prosseguimento ao capítulo, é importante nos determos na figura da
Santa Maca. A trajetória do personagem ao longo do ciclo é curiosa: Maca Albornoz aparece
pela primeira vez em História de Garabombo, o invisível, no qual se narra a sua infância. Fora
criada pela família, composta por bandoleiros, como homem e sabia cavalgar e atirar muito
bem, mantendo, contudo, extraordinária beleza. Há duas versões para a sua transformação em
mulher: em uma, ela é capturada por alguns comuneiros, que, como castigo por roubar gado,
mandam-na carregar metade de uma vaca pela rua principal do vilarejo. A vergonha da
punição a faz pensar que não seria mais aceita por seu pai e seus irmãos, razão pela qual
resolve tornar-se prostituta. A segunda versão, que aparece em Cantar de Agapito Robles,
conta que ela é presa, e, na cadeia, os ladrões com quem dividia a cela descobrem que ela é
mulher e abusam dela. Roberto Albornoz, seu irmão, cinco dias depois, mata os criminosos
para vingar a honra manchada de Maca, mas esta decide se tornar prostituta, deixando
apaixonados todos os homens que a conheciam. Em La tumba del relámpago, Maca volta a
ser Maco e retorna à vida de bandoleiro ao lado de sua família. Seu final é surpreendente:
Maco/Maca deseja muito seu próprio irmão e o engana para ter com ele uma noite de amor.
No dia seguinte, Roberto, sem saber o que acontecera, começa a pegar fogo. Maco/Maca
abraça-o e ambos morrem queimados. O corpo de Maca, porém, mantém-se intacto, fazendo
as comunidades passarem a acreditar na sua santidade, venerando-a e associando-a à Virgem
Maria – já que o pintor das igrejas, que se apaixonara por Maca quando ela era prostituta,
havia desenhado a Virgem com as feições de sua amada (episódio narrado em Cantar de
Agapito Robles).
A função dessa personagem na trama de La tumba del relámpago é difícil de ser
analisada. Os capítulos que a ela se referem são os únicos do romance narrados em primeira
100
pessoa: em alguns, quem conta a história desse personagem ambíguo é Doroteo Silvestre, um
comerciante que se apaixona por Maco vestido de mulher (como Riobaldo que, por muito
tempo, não conhece o verdadeiro sexo de Diadorim) e morre para protegê-lo; em outros, é
uma mulher que a conheceu como Maco. Há também cinco capítulos, em focalização
homodiegética, em que o padre Chasán, personagem presente em Redoble por Rancas, ouve
as confissões de fiéis que contam os milagres feitos pela Maca já morta e convertida em santa;
ele não se conforma com a devoção pela santa criada pelos comuneiros e não aceita pela
igreja. Esses capítulos são escritos sem pontuação, de modo a representar a aflição e
incompreensão de Chasán perante o culto de Maca.
Jorge Yviricu, em seu ensaio acerca da metamorfose dos personagens Menino
Remigio (de História de Garabombo) e Maca, atribui a esta as características de deuses
pagãos: a beleza incrível e a origem incerta a aproximam de Afrodite, a ambigüidade sexual
faz com que ela se assemelhe a Antínoo e Dionísio, e as incontáveis façanhas, tanto como
bandoleiro quanto como prostituta, a tornam sobre-humana168. Yviricu também a compara
com Tlazoltecotl, deusa asteca do “excremento, do amor sexual e da confissão”169 que,
segundo ele, sintetiza muito das características dos três deuses supracitados. A fase prostituta
de Maca teria sido seu ritual iniciático. De fato, poderíamos, talvez, relacionar Maca a uma
deusa da fertilidade, detentora da beleza e dos atributos sexuais, visto que alguns de seus
milagres estavam ligados a esse tema: salvação de crianças moribundas e fertilidade e fartura
nas colheitas da comunidade de Mosca, provável pátria de Maca, durante uma forte seca que
assolou todas as cidades vizinhas. A sua origem mortal, humana, e as várias versões para as
suas transmutações nos remetem à assimilação pela memória coletiva do personagem “real”,
“histórico”, como um modelo mítico, não-individualizado historicamente, mas essencial em
seu papel de mito para a sociedade. Finalmente, a sua morte violenta e dramática, queimando
168 Cf. YVIRICU, J. (1991) p.253. 169 YVIRICU, J. (1991) p. 254. “[...] diosa azteca del excremento, el amor sexual y la confesión.”
101
sob as chamas, serve para purificá-la, anulando todos os seus pecados da vida humana e
terrena. Sua morte não significa a destruição, o fim, mas apenas um novo começo, o
ressurgimento ao qual só poderia chegar com um ritual de purgação.
Embora Santa Maca fosse a santa de devoção de muitos comuneiros, ela é a causa
indireta do fracasso do seu movimento. Yviricu justifica esse fato afirmando que “suas
transformações são o produto de sua própria vontade individual; a consciência de classe e sua
manifestação político-social ficam anuladas por sua beleza primeiro e depois por sua
progressiva sacralização, sintomas de um individualismo irreduzível”170. Assim como ela não
representa o coletivo, ao contrário da maior parte dos personagens d’A guerra silenciosa,
também não poderia contribuir para a comunidade. Podemos, contudo, analisar de outro
modo: La tumba del relámpago é o romance em que Scorza quer mostrar uma nova forma de
organização do movimento camponês, modernizando-o através das idéias socialistas,
ressaltando a importância da trajetória que vai da racionalidade mítica à história atual, à
concepção “ocidental” de tempo e história. Em contraposição a esse encaminhamento está a
metamorfose de Maca, que, de personagem se torna mito, estando, por conseguinte, associada
à tradição ou ao que assim se considera no romance. Quando o mito se coloca em primeiro
plano, antes da organização e do planejamento, volta-se à estaca zero, já que uma ação não-
premeditada, à revelia do que haviam combinado, acaba se distanciando da utopia tal como é
conceituada por Bloch ou Mannheim. O pensamento utópico, em sua dimensão de
“produtividade criadora”, de “consciência antecipadora”, constituído por elementos
intelectuais não satisfeitos com a realidade, é rompido para dar lugar ao inesperado e ao
espontâneo; a tão difícil reunião das comunidades (muitas delas tinham desavenças entre si
que tiveram de ser pacientemente desfeitas em numerosas reuniões de líderes das
170 YVIRICU, J. (1991) p.257. “Sus avatares son el producto de su propia voluntad individual; la conciencia de clase y su manifestación político-social quedan anuladas por su belleza primero y después por su progresiva sacralización, síntomas todos de un individualismo irreducible.”
102
comunidades) para uma única e grande rebelião é, ao fim, destruída pela crença em um sonho
com uma santa.
Como bem apontou Cornejo Polar171, Manuel Scorza deixa explícito em La tumba del
relámpago, muito mais do que nos outros romances, a incapacidade do mito de mobilizar o
movimento, levando-o ao sucesso; dessa maneira ele optaria, conforme Mabel Moraña, por
uma determinada posição ideológica. Para ela, Scorza tem a sua própria visão acerca dos
movimentos camponeses – o repetitivo final de seus romances (o massacre) atesta que os
indígenas estão condenados à fatalidade, ao malogro. Ademais, parece haver, segundo a
ensaísta, a necessidade da existência de um líder intelectual, como Ledesma, para dar uma
direção à revolta. De acordo com Moraña, esse líder é uma espécie de “intérprete privilegiado
da história, que se autoconcebe como parte natural da vanguarda política, posição legitimada
por sua identificação moral com o conflito e por sua superioridade cultural”172. No entanto,
essa questão da liderança ou da representação, que é em si bastante discutida e complexa, não
surge de forma clara e decisiva no romance, haja vista o seguinte diálogo entre Genaro
Ledesma e Scorza-personagem:
– Los campesinos necesitan una dirección política. El campesinado puede alcanzar victorias iniciales. Pero ¿luego? El Ejército Peruano no es una ensalada de mercenarios como era el Ejército de Batista. – ¿Hasta cuándo tendremos la pretensión de enseñarle lo que no sabemos a los sobrevivientes de una cultura que ha atravesado cuatrocientos cincuenta años de genocidio? Para sobrevivir en esas condiciones se requería genio. [...]173
É inegável que Scorza defende a “modernização” do movimento camponês e duvida
da eficiência da racionalidade mítica para a mobilização de uma revolução, ou para
171 Cf. CORNEJO POLAR, A. (2000) p. 111. 172 MORAÑA, M. (1983) p.188. “[...] intérprete privilegiado de la historia, que se autoconcibe como parte natural de la vanguardia política, posición legitimada por su identificación moral con el conflicto y por su superioridad cultural.” 173 SCORZA, M. (1985) p. 238. “- Os camponeses precisam de uma direção política. O campesinato pode alcançar vitórias iniciais. Mas e depois? O Exército Peruano não é uma salada de mercenários como era o Exército de Batista. / - Até quando teremos a pretensão de ensinar o que não sabemos aos sobreviventes de uma cultura que atravessou quatrocentos e cinqüenta anos de genocídio? Para sobreviver nessas condições foi necessário gênio. [...]” (SCORZA, 1986, p.223)
103
ultrapassar a condição de mera resistência frente aos opressores, o que fica claro em La tumba
del relámpago; todavia, essa constatação não se dá sem conflito. Cornejo Polar chama atenção
para isso quando salienta que o narrador do romance não oculta a admiração que tem por essa
racionalidade, além de “reconhecer que, através dos atributos dessa racionalidade, se forja a
identidade do povo quíchua e se rechaça o desígnio aculturador do imperialismo e da
burguesia nacional”174 (se há mais de quatrocentos anos os índios sobrevivem e lutam sem
serem dizimados é porque conseguiram proteger-se de alguma forma, e a cultura é um fato
determinante para isso). O caráter cíclico do desenlace de todos os romances ocorre, em parte,
devido à posição ideológica do autor, como escreveu Moraña, mas também porque, até o
momento em que foram narradas por Scorza, as revoluções camponesas foram, em realidade,
reprimidas duramente sem que os indígenas conseguissem o que reivindicavam. A questão da
liderança política também não aparece definitivamente colocada, uma vez que, embora
Ledesma seja o dirigente intelectual, ele mesmo questiona a necessidade do seu papel; ou
melhor, há uma problematização do assunto, que não é categoricamente defendido em
nenhuma de suas posições.
Todo o ciclo A guerra silenciosa e, sobretudo, La tumba del relámpago, reflete a
condição heterogênea da literatura scorziana: o mundo do autor e do receptor das obras difere
daquele do referente; o narrador não pode realmente falar por estes sem que imprima muito da
sua própria visão de mundo. As tensões tão evidentes nos romances de Scorza derivam dessa
condição heterogênea da produção literária e da própria organização socioeconômica e
política da região andina peruana. Assim, se o narrador de La tumba del relámpago questiona
o poder do mito para desencadear uma revolução no mundo atual, ele também critica
duramente a própria “modernização”, no sentido de que esta peca por não conseguir se
174 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.111.
104
adaptar ao contexto peruano: o socialismo é importante para o movimento campesino desde
que seja concebido especificamente para a sua realidade.
O ciclo fecha-se com mais um massacre, com a prisão de Ledesma e de outros
dirigentes e com a morte de uma utopia – “La esperanza duró menos que este relámpago,
ceniza ya de la oscuridad”175 –, embora esta tenha sido mais discutida, pensada como
potencial revolucionário e como um futuro a ser produzido, ao contrário do que ocorria nos
romances precedentes d’A guerra silenciosa. Mas seria a morte definitiva da utopia? Todas as
contradições evidentes no Peru hodierno, e tão bem retratadas nos romances de Scorza,
apontam para a tensão permanente entre idealidade e realidade, que, como Aínsa escreveu, é o
motor que estimula o nascimento de novas utopias na América Latina.
175 SCORZA, M. (1985) p. 267. “A esperança durou menos que esse relâmpago, já cinza na escuridão.” (SCORZA, 1986, p.252)
105
CONCLUSÃO
Nesta dissertação, procuramos analisar o processo de desenvolvimento da utopia e do
pensamento utópico nos romances Huasipungo, de Jorge Icaza, e Redoble por Rancas e La
tumba del relámpago, ambos de Manuel Scorza, tentando contextualizá-los social, política e
economicamente, atentando para a posição do produtor e dos referentes das obras, o que as
caracteriza como essencialmente heterogêneas.
Verificamos, no Indigenismo, um tratamento ainda “estereotipado” dos indígenas.
Esse movimento, que teve lugar em diversos países andinos na primeira metade do século
XX, distinguiu-se daquele que o precedeu, o Indianismo, por alguns elementos: os romances
indigenistas trataram de se afastar da idealização romântica dos seus referentes, característica
das obras indianistas; além disso, o Indigenismo busca uma aproximação maior relativamente
ao mundo literariamente recriado, no qual se tenciona despojar o índio dos elementos
provenientes de uma visão demasiadamente idealizada, algo que, para os escritores
indigenistas, caracterizava as narrativas indianistas. Por fim, havendo se desenvolvido junto
com as reflexões sobre a condição dos índios nas sociedades hispano-americanas, o
Indigenismo adotou uma posição crítica a respeito da exploração sofrida por esses no seio da
organização socioeconômica na qual estavam inseridos.
Desse modo, o veio anti-oligárquico ferve em Huasipungo, as denúncias não poupam
latifundiários e eclesiásticos, a exploração e a condição dos índios é muito destacada e
reiterada, e esse aspecto, tão importante também no âmbito extraliterário, mostra-se
extremamente exacerbado (a opressão pesa demais e os índios desumanizam-se ao ponto de
não poderem falar ou pensar por si). Sem a consciência de sua própria exploração, os índios
não podem projetar uma utopia, uma vez que esta surge exatamente da noção que se tem das
106
condições em que eles são impelidos a enfrentar, como demonstramos no capítulo 3,
“Huasipungo: desespero ou utopia?”.
Em meados do século XX, começam a surgir romances vinculados ao Indigenismo,
trazendo, no entanto, novos elementos e perspectivas, constituindo assim o que se tornou
conhecido como Neo-Indigenismo. Dentre essas inovações, podemos destacar o emprego do
real maravilhoso, que tencionou prover uma maior compreensão do sentido mítico da visão de
mundo própria do homem andino; a introdução de novos recursos formais que, por exemplo,
deram origem a uma intensificação do lirismo na narrativa; e, finalmente, a ampliação do
“problema do índio”, que passou a ser visto a partir de uma perspectiva nacional.
São relacionados ao Neo-Indigenismo os romances de Manuel Scorza, nos quais
percebemos o contato direto com a tradição indigenista de Icaza e a conservação de
“problemas” primordiais (a heterogeneidade permanece); entretanto, observamos uma
mudança na maneira de perceber os indígenas e na forma como são tratados nas narrativas. Os
índios não são mais meros objetos, seres tão oprimidos que se esquecem de sua condição
humana, mas indivíduos conscientes e atuantes. Por conseguinte, podemos entrever o
pensamento e o desejo utópicos: em Redoble por Rancas, apesar de ainda não possuírem a
organização e o planejamento necessários para evitar o malogro de seus movimentos, eles
refletem, imaginam e agem em prol de melhorias. Já em La tumba del relámpago, o
socialismo entra como “modernizador” do movimento indígena, explicitando a tensão entre
esse novo elemento e a tradição representada pela racionalidade mítica dos quíchuas. O
contraste e o impasse entre esses dois pólos são sustentados ao longo do romance e
permanecem insolúveis, uma vez que há críticas tanto ao socialismo empregado acriticamente
como doutrina cega (os intelectuais, como o próprio Scorza ou Ledesma, seriam
indispensáveis para controlar e orientar os índios?) quanto à dificuldade de organização de
uma rebelião geral e mais ampla (de uma revolução) por parte dos indígenas.
107
No final de cada um dos três romances, ocorre uma chacina, mas a utopia indígena
persiste, como desejo do narrador apenas em Huasipungo e como desejo do narrador e dos
personagens indígenas em Redoble por Rancas e La tumba del relámpago. E esta obra,
embora termine em massacre, não esgota as possibilidades do surgimento de uma nova utopia,
como ocorreu em todas as demais obras d’A guerra silenciosa, já que as contradições entre
realidade e idealidade no Equador e no Peru conservam-se, bem como a convivência
beligerante das múltiplas culturas e visões de mundo.
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