UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROINSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL
ENCAMINHAMENTOS DE USURIOS AO AMBULATRIO DE PSIQUIATRIA ELABORADOS POR MDICOS DE FAMLIA: ANLISE EM QUATRO
MUNICPIOS DO LESTE DE MINAS GERAIS
Felipe de Medeiros Tavares
Dissertao apresentada como requisito parcialpara obteno do grau de Mestre em SadeColetiva, Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva rea de concentrao em Poltica, Planejamento e Administrao em Sade, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Orientador: Prof. Dr. Kenneth Rochel de Camargo Jnior
Rio de Janeiro-RJ
2008
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C A T A L O G A O N A F O N T E U E R J / R E D E S I R I U S / C B C
T231 Tavares, Felipe de Medeiros.Encaminhamentos de usurios ao ambulatrio de psiquiatria, elaborados por mdicos de
famlia: anlise em quatro municpios do leste de Minas Gerais / Felipe de Medeiros Tavares. 2008.
131f. Orientador: Kenneth Rochel de Camargo Jnior.
Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. 1. Programa Sade da Famlia (Brasil) Teses. 2. Sade mental Teses. 3. Cuidados mdicos ambulatoriais Teses. 4. Protocolos mdicos Teses. I.Camargo Jnior, Kenneth Rochel de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Ttulo.
CDU 613.86_______________________________________________________________________________
2
Folha de Aprovao
Aluno: Felipe de Medeiros Tavares
Ttulo da Dissertao: ENCAMINHAMENTO DE USURIOS AO AMBULATRIO DE
PSIQUIATRIA ELABORADOS POR MDICOS DE FAMLIA: ANLISE EM QUATRO
MUNICPIOS DO LESTE DE MINAS GERAIS
Aprovada em 28 de Abril de 2008.
___________________________________Orientador: Prof. Dr. Kenneth Rochel de Camargo JniorInstituto de Medicina Social
___________________________________Prof. Dr. Carlos Eduardo Freire Estellita-LinsFundao Oswaldo Cruz
__________________________________Prof. Dra. Maria Ins NogueiraInstituto de Medicina Social
___________________________________Prof. Dr. Roseni PinheiroInstituto de Medicina Social
3
O remdio mais usado em medicina o prprio mdico, que, como qualquer
medicamento, deve ser conhecido na sua posologia, modo de usar e nos seus
efeitos colaterais.
Michael Balint
4
Ao meu pai, Mrio Tavares, pelo exemplo de vida dedicada coletividade.
minha amada Rachel Lisboa, pelo companheirismo, incentivo e tolerncia.
5
Agradecimentos
Ao estimado professor e amigo Jlio de Mello Filho, entusiasta da
Psicossomtica, que muito me incentiva e estimula para a prtica de uma medicina
mais humana. Agradeo por ter acreditado nos meus sonhos.
Ao professor Kenneth Rochel Camargo Jnior, mestre querido e admirado por
muitos, por ter me acatado como seu orientando. Como nos afirma Deleuze: no
momento em que atingimos a idade adulta, nossos mestres so aqueles que nos
tocam com uma novidade radical, aqueles que sabem inventar uma tcnica artstica
ou literria e encontrar as maneiras de pensar que correspondem nossa
modernidade, quer dizer, tanto s nossas dificuldades como a nossos entusiasmos
difusos.
professora Roseni Pinheiro, pelos excelentes momentos que nos
proporcionou nos ricos debates estabelecidos em suas aulas. Voc me mostrou que
possvel ser muito mais que um bio mdico !
professora Maria Ins, pelas valiosas contribuies.
Aos colegas do IMS, pelas preciosas dicas e pela rica convivncia que vocs
me proporcionaram.
A todos os meus professores, da alfabetizao ps-graduao, que por toda
a minha vida sempre foram muito dedicados.
Maristela, Janana e Beatriz, grandes irms, que sempre investiram parte
das suas energias na minha formao, acreditando que um dia o irmozinho
chegaria l...
famlia Lisboa Silva, que me acolheu em todos os sentidos em Minas e na
vida.
Ao Dr. Henrique, ao Luis Arthur e Rosngela , pelas primorosas
observaes na reviso do texto.
Aos colegas de profisso que contriburam com sua participao nas
entrevistas.
Aos nossos pacientes, pela confiana.
Aos gestores de sade dos municpios em que desenvolvemos o estudo,
pelas portunidades que tm proporcionado no processo de ampliao dos servios
de sade mental.
6
diretoria do CISMIRECAR, representada pelo Sr. Jos Ronaldo, que est
empenhado na reformulao das polticas de sade do Leste Mineiro nos ltimos
anos, e que permitiu o desenvolvimento do estudo na regio. Agradeo pelas
oportunidades e pela confiana.
7
SUMRIORESUMOABSTRACTLISTA DE ABREVIATURAS E SIGLASTABELASTabela 1 Tempo de formao dos mdicos entrevistados -----------------------------------------82Tabela 2 Encaminhamentos de Caratinga ------------------------------------------------------------104Tabela 3 Distribuio de encaminhamentos dos mdicos do PSF psiquiatria, por municpio, no perodo de Julho de 2006 a Julho de 2007-------------------------------------106Tabela 4 Dados sobre os encaminhamentos nos municpios de Entre Folhas, Inhapim e So Sebastio do Anta ---------------------------------------------------------------------106Tabela 5 Nmero de mdicos de famlia identificados nos encaminhamentos----107Apresentao 1 Introduo ---------------------------------------------------------------------------------------------------152 - Polticas de Sade Mental no Brasil-----------------------------------------------------------------183 Formao Mdica e a Prtica no Programa Sade da Famlia --------------------------- 333.1 Consideraes sobre a Estratgia Sade da Famlia -----------------------------------------33
3.2 Biomedicina e a Estratgia Sade da Famlia ---------------------------------------------------35
4. Atendimento em Psiquiatria --------------------------------------------------------------------------444.1 Os Protocolos de atendimento em Sade Mental-----------------------------------------------48
5 O Encaminhamento ao Psiquiatra------------------------------------------------------------------- 556 Descrio do Campo------------------------------------------------------------------------------------ 636.1- O Programa Sade da Famlia nos municpios estudados-------------------------------------63
6.2- Servios de Sade Mental no Leste de Minas Gerais------------------------------------------- 67
7 Trajetria Metodolgica------------------------------------------------------------------------------- -727.1 Local da pesquisa----------------------------------------------------------------------------------------72
7.2 Entrevista com mdicos do PSF---------------------------------------------------------------------73
7.3 Anlise dos encaminhamentos-----------------------------------------------------------------------75
8 Apresentao e Discusso dos Resultados-----------------------------------------------------798.1 Entrevistas-------------------------------------------------------------------------------------------------79
8.2 - Anlise dos encaminhamentos------------------------------------------------------------------------93
9 - Concluso -------------------------------------------------------------------------------------------------108Bibliogrfia------------------------------------------------------------------------------------------------------115ANEXO I Mapa Rodovirio do Leste de Minas Gerais.--------------------------------------------126
ANEXO II Instrumento de referncia e contra-referncia de Caratinga-MG-----------------127
ANEXOS III e IV Instrumento de referncia e contra-referncia de Inhapim-MG---128 e 129
ANEXO V Termo de consentimento livre e esclarecido ------------------------------------------130
ANEXO VI Termo de aprovao do Comit de tica em Pesquisa (CEP) ------------------131
8
RESUMOAs polticas de sade mental e sade da famlia so consideradas estratgias
de reorganizao da prtica assistencial em sade. Ambas ainda se encontram em
fase de implantao, e pretendem se opor ao modelo tradicional de sade que se
baseia no atendimento individualizado e praticado majoritariamente por mdicos.
O ambulatrio de psiquiatria foi recrutado como um dos primeiros dispositivos
das polticas de sade mental substitutivos internao psiquitrica. A interlocuo
entre os membros das equipes de sade da famlia e sade mental tem sido
estimulada pelo Ministrio da Sade, por intermdio das equipes matriciais, Centros
de Ateno Psicossocial e Ncleos de Apoio Sade da Famlia.
Nesse mbito, este estudo procura analisar como os mdicos de famlia de
quatro cidades do Leste mineiro vm agindo com relao ao atendimento de
usurios com transtornos mentais, e para isso procedemos anlise dos
encaminhamentos que estes mdicos realizavam para o ambulatrio de psiquiatria.
Fizemos, tambm, entrevistas semi-estruturadas com os mdicos de famlia que
atendem nos municpios estudados.
Conclumos que a dificuldade dos mdicos em lidar com aspectos subjetivos
do adoecimento constitui-se num desafio a ser contornado para que as suas prticas
se ampliem para alm dos limites da racionalidade biomdica, de modo que o PSF
se estruture como uma poltica revolucionria de sade. O vnculo frgil desses
profissionais no permitiu que criassem laos comunitrios.
Os protocolos de atendimento em sade mental no eram conhecidos pelos
mdicos de famlia participantes do estudo. Da mesma forma, a falta de
padronizao dos instrumentos de referncia e contra-referncia dificultou a
comunicao entre os profissionais.
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Palavras-chave: sade mental; sade da famlia; servios ambulatoriais de sade; protocolos clnicos.
ABSTRACT
The mental health and family health politics are both considered a great skill
for the reorganization of the health assistance practcies. These practicies are still on
inplantation and intend to overcome the tradicional health model wich is based on the
individual clinical practice of physicians.
The psychiatry ambulatory was recruted as one of the first mechanisms from
the mental health politics to substitute the psychiatry hospitals. The comunication
between the membership of family and mental health staff has been encouraged by
the Health State Department Ministry. In this way, this study analyses how family
physicians from the contryside of Minas Gerais are acting about the people who have
mental disorders. For this, we analised the guidings from those physicians to the psy-
chiatry ambulatory and also interviewed them (with non-structured interviews).
We concluded that is a challenge to overcome the practice of physicians, that
saw difficulties on working with subjectives aspects of ilness.
Also, the clinical guidelines on mental disorder are not well-known by the
physicians interviwed. Fragile and transitory link between those physicians and the
community was also observed. Non-padronization of reference versus against-refer-
ence instruments made the comunication between the professionals difficult.
Key-words: mental health; family health; clinical protocols; ambulatory care.
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Lista de Abreviaturas e Siglas
ABRASCO Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva
ABP Associao Brasileira de Psiquiatria
AP Ambulatrio de Psiquiatria
APAC Autorizao para procedimento de alta complexidade
Bireme Biblioteca Virtual em Sade
CA Clnica Ampliada
CAPS Centro de Ateno Psicossocial
CAPS Ad Centro de Ateno Psicossocial - lcool e Drogras
CEP Comit de tica em Pesquisa
CERSAM Centro de Referncia em Sade Mental
CID-10 Classificao Internacional de Doenas 10 verso (1993)
CIS MIRECAR Consrcio Intermunicipal de Sade da Micro-Regio de Caratinga
CMS Conselho Municipal de Sade
CONSADE Consrcio Intermunicipal de Sade da Micro-Regio do Vale do Rio
Doce
DECS Descritores em Cincias da Sade
EC Espaos de Convivncia
EP Emergncias Psiquitricas
ESF Equipe de Sade da Famlia
GT Grupos Teraputicos
HDA Histria da Doena Atual
HD Hiptese Diagnstica
IMS Instituto de Medicina Social
INSS Instituto Nacional de Seguridade Social
MS Ministrio da Sade
OC Oficinas Comunitrias
OMS Organizao Mundial de Sade
OT Oficinas Teraputicas
PSF Programa Sade da Famlia
PMC Prefeitura Municipal de Caratinga
RAISM - Rede de Ateno Integral Sade Mental de Sobral
11
RP Reforma Psiquitrica
SAMU Servio de Atendimento Mdico de Urgncia
SES Secretaria Estadual de Sade
SMS Secretaria Municipal de Sade
SRT Servios Residenciais Teraputicos
TMC Transtornos Mentais Comuns
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UNEC Centro Universitrio de Caratinga
12
Apresentao
O meu interesse por este tema iniciou-se durante a graduao, quando fazia
estgios em servios de Psicologia Mdica e Psiquiatria, em diferentes contextos.
Surgiu ento o interesse pelos aspectos psquicos do adoecimento humano. quela
poca, observei que muitos casos atendidos pelo Psiquiatra se deviam a problemas
do cotidiano, transformados em problemas mdicos. Tal experincia fez com que
eu me dedicasse ao estudos destes aspectos do adoecimento, e encontrei
embasamento terico para tal no campo da Medicina Psicossomtica. Realizando
estgios em ambulatrios de psiquiatria e em instituies manicomiais, observei o
modus operandi da integrao das propostas de Sade Mental na Ateno Bsica.
Em Janeiro de 2006 iniciei atendimento nos ambulatrios de psiquiatria em
sete municpios do Leste de Minas Gerais (Caratinga, Inhapim, Entre Folhas,
Vargem Alegre, So Sebastio do Anta, Ubaporanga, Imb de Minas). Observei que
a procura por atendimento psiquitrico bastante elevada nestes municpios, de
modo que em todos eles, com exceo de Caratinga, sou o nico mdico que presta
atendimento em psiquiatria.
Assim, inserido neste contexto, em conversas informais com os colegas, notei
que a rotatividade entre mdicos do Programa Sade da Famlia dos respectivos
municpios elevada, por distintos motivos apontados por eles - alegavam o fato de
os municpios serem distantes dos grandes centros, ou aguardavam uma vaga na
Residncia Mdica enquanto faziam um caixa como mdicos de famlia.
Nota-se que, em distintos contextos, existem dificuldades no estabelecimento
do vnculo (considerado um dos pilares da estruturao das equipes de sade da
famlia), sendo este muitas vezes inexistente. A noo de vnculo tornou-se
13
deturpada, questo relevante principalmente quando se observa que existe uma
lacuna conceitual na formao mdica, qual seja, a limitao do modelo biomdico
em lidar com a demanda de sofrimentos psquicos, cujas consequncias so
negativas ao usurio e tambm ao sistema de sade.
Inserido no contexto de atendimento em que tenho de lidar com os
encaminhamentos oriundos dos mdicos de famlia, considerei importante o estudo
das questes contidas no processo de referenciamento de um usurio ao
ambulatrio de psiquiatria, dada a elevada quantidade destes encaminhamentos.
Como esta pesquisa foi realizada no cotidiano de instituies, espera-se que
a mesma possa ser til para a identificao dos parmetros utilizados pelo mdico
de famlia quando este elabora um encaminhamento ao ambulatrio de psiquiatria.
14
Introduo
A Sade Mental constitui um campo em constante desenvolvimento no mbito
do Sistema nico de Sade. A dcada de 90 ficou marcada pela criao dos
servios substitutivos hospitalizao psiquitrica, visando o incremento da
resolutividade em sade mental. Destarte, criaram-se redes de cuidados compostas
pelos ambulatrios de sade mental (psiquiatria; psicologia), os centros de ateno
psicossocial (CAPS), os servios residenciais teraputicos (SRT), as oficinas
comunitrias/ teraputicas (OF e OT), os grupos psicoteraputicos (GP), espaos de
convivncia (EC), emergncias psiquitricas (EP), leitos psiquitricos em hospitais
gerais, dentre outras atividades de base comunitria visando-se a (re)integrao
psicossocial do usurio. (Amarante, 2001; Brasil, 2004).
Segundo estimativas do Ministrio da Sade (MS) referentes demanda por
servios de Sade Mental, 3% da populao necessita de cuidados contnuos, por
possuir transtornos mentais severos e persistentes, 9% da populao requer
cuidados eventuais, estes ltimos por possurem transtornos menos graves
(totalizando aproximadamente 20 milhes de habitantes somente no Brasil).
Estudo realizado nos EUA na dcada de 80 (ECA-Epidemiologic Catchment
Area) revelou que 40 a 60% dos casos de sade mental so atendidos por mdicos
generalistas, aspecto corroborado por trabalhos posteriores. Pesquisas brasileiras
apontam que 38 a 56% dos pacientes atendidos em ambulatrios de clnicos gerais
so portadores de transtornos mentais (Mari, 1987; Villano, 1995).
Nos ambulatrios, a prevalncia de transtornos mentais chega a 60%, e as
pesquisas indicam que os mdicos generalistas subestimam a presena de
transtornos mentais em seus pacientes (Blat, 2006). Mari (ibidem) observou que
15
numa amostra de clnicos gerais, 22 a 79% deles no foram capazes de identificar a
presena de distrbios psiquitricos entre seus pacientes. A prevalncia de
transtornos mentais na populao geral atinge de 30 a 60% nos ambulatrios gerais,
sendo que as consequncias de tal subestimao pelos clnicos incluem persistncia
do sofrimento do usurio, elevao dos custos e complicao de enfermidades
clnicas (Blat, op cit, 2006).
Cerca de 30% dos pacientes vistos por um mdico sofrem de depresso, de
modo que 60% procuram tratamento inicialmente com um clnico geral. Consiste
num desafio especial para o mdico clnico trabalhar com doena somtica e
transtornos psicolgicos simultaneamente. A depresso, em muitos casos,
mascarada e os pacientes apresentam apenas queixas somticas. (grifos nossos.
OMS, 2000).
Das situaes demandadas aos ambulatrios de ateno primria1, as mais
frequentes so os Transtornos Mentais Comuns (TMC), tais como quadros
depressivos e quadros de ansiedade menos graves, relacionados a fatores sociais e
econmicos desfavorveis (Fortes, 2004). O aparecimento cada vez mais freqente
de situaes de sofrimento psquico nas unidades de ateno primria correlaciona-
se com baixa escolaridade, dificuldades scio-econmicas, conflitos familiares,
subemprego e desemprego.
De acordo com Joubert (2006), em apresentao proferida no 8 Congresso
Brasileiro de Sade Coletiva:
1 Neste texto, os termos ateno primria e ateno bsica sero tomados como sinnimos, cujo significado : assistncia sanitria essencial baseada em mtodos e tecnologias prticas, cientificamente fundados e socialmente aceitveis, postos ao alcance de todos os indivduos e famlias da comunidade mediante a sua plena participao e a um custo que a comunidade e o pas possam suportar, em todas e cada etapa do seu desenvolvimento, com um esprito de auto-responsabilidade e autodeterminao. (consulta ao Descritores em Cincias da Sade, da biblioteca virtual em sade BVS disponvel em: http://decs.bvs.br/cgi-bin/wxis1660.exe/decsserver/).
16
apesar da tendncia em patologizar ou medicalizar, a maioria dos
problemas mentais sofridos pelas populaes (por exemplo,
ansiedade, depresso, violncia, abuso de drogas, estresse ps-
traumtico) no so necessariamente provenientes de doenas
orgnicas.
Segundo o MS, 56% das equipes de sade da famlia referiram realizar
alguma ao de sade mental, sendo as ESFs consideradas importantes recursos
principalmente pela proximidade com a comunidade.
Para Silva Filho (1985), o ambulatrio de psiquiatria apareceu como um
dispositivo articulador dos novos contedos de ensino com as novas regras de
cuidados com os doentes mentais.
o ambulatrio deve ser visto como um dispositivo: um conjunto
terico-prtico inserido na estrutura assistencial, tendo no contexto
histrico e social do Brasil efeitos diretos e indiretos, procurando
estabelecer os seus critrios de funcionamento, as condies de sua
difuso e sua importncia na constituio de uma nova identidade
profissional para os psiquiatras. (Silva Filho, op cit, p. 305).
Assim, j no se concebe cotidianamente uma prtica em sade mental
isolada de outras disciplinas e saberes, tampouco centrada na psiquiatria. Observa-
se, na literatura, escassez de trabalhos acerca do processo de encaminhamento no
mbito do Programa Sade da Famlia, de modo que o presente estudo torna-se
relevante neste contexto.
17
2 - Polticas de Sade Mental no Brasil
Os indivduos portadores de transtornos mentais foram, durante determinadas
pocas, considerados uma ameaa para a sociedade, sendo excludos por meio da
internao em instituies manicomiais, as quais possuam o papel de manter a
ordem social. No sculo XV, eles eram chicoteados em pblico, expulsos das
cidades, proibidos de entrar nas igrejas. O asilo, naquele tempo, consistia num
espao moral da excluso (Foucault, 2005).
No atendimento manicomial, o sujeito considerado louco era excludo do
convvio social para que pudesse ser observado sem as interferncias do meio
externo. Destarte, o manicmio emerge como local de controle e disciplina, por
exercer uma funo normalizadora, conforme nos mostra Foucault (2005).
Posteriormente, no sculo XVIII, ganha o status de local de cura. Para Amarante
(1995), o asilo consistia num espao de excluso, sonegao e mortificao das
subjetividades.
Durante dois sculos o modelo asilar predominou, sendo o Hospital
Psiquitrico elemento central no funcionamento das polticas de sade mental, de
modo que houve, inclusive, significativa expanso do nmero de leitos psiquitricos
no sculo XX. O modelo se esgotou principalmente aps a 2 Guerra Mundial,
quando percebeu-se que este era inadequado como dispositivo de interveno
tcnica, ao mesmo tempo em que a psiquiatria, sozinha, j no comportava os
aspectos ligados loucura. Somente nos anos setenta do sculo XX que
emergiram novos atores no campo da sade mental, que passam a defender uma
18
poltica de sade mental centrada no usurio, cujo cuidado prestado pelos servios
substitutivos deveria levar em considerao o acolhimento, o vnculo e a
integralidade, e o usurio passa a ser visto como um indivduo com direito ao
exerccio da cidadania. O processo ocorreu em diversos pases e chegou ao Brasil
nos anos setenta por incluncia dos ideais do psiquiatra italiano Franco Basaglia
(Arajo, 2006).
As iniciativas de modificao das prticas institucionais psiquitricas no Brasil
ficaram conhecidas como Reforma Psiquitrica, surgindo numa conjuntura poltica
de redemocratizao. Para Amarante (2001), a reforma seria:
processo histrico de reformulao crtica e prtica, que tem como
objetivos e estratgias o questionamento e elaborao de propostas
de transformao do modelo clssico e do paradigma da psiquiatria
(...). [Possui como um dos seus princpios], uma crtica conjuntural
ao subsistema nacional de sade mental, mas tambm e
principalmente uma crtica estrutural ao saber e s instituies
psiquitricas clssicas, dentro de toda a movimentao poltico-social
que caracteriza a conjuntura da redemocratizao. (Amarante, op
cit, p. 87).
Para este mesmo autor, a Reforma tambm pode ser compreendida como um
processo social complexo de transformao estrutural da viso da sociedade sobre
a loucura (Amarante, 2005).
Esta reformulao do modelo de atendimento em sade mental possui como
marco inicial a deflagrao de denncias contra irregularidades na assistncia
prestada nas instituies manicomiais do Rio de Janeiro, em meados dos anos
setenta. Surge, em 1978, o Movimento de Trabalhadores de Sade Mental (MTSM),
19
que reivindica melhores condies salariais e formao de recursos humanos na
rea de sade mental, critica o autoritarismo das instituies bem como o modelo
mdico centrado nas teraputicas biolgicas, e, ainda, reivindica melhorias nas
condies de atendimento prestado (Amarante, 2001).
Outros setores at ento distantes do ideal reformista aderem ao movimento,
dentre eles a Associao Brasileira de Psiquiatria (ABP), prevalecendo o repdio ao
uso da instituio psiquitrica como instrumento de represso.1
Em 1987, no congresso de Trabalhadores de Sade Mental de Bauru SP,
lanado o lema Por uma Sociedade sem Manicmios, quando cria-se o dia
nacional de luta antimanicomial (18 de Maio). A partir deste episdio, ocorre uma
ampliao neste movimento, com nfase no aspecto social, e no somente tcnico
(Amarante, 1995).
Outro marco no movimento de Reforma do modelo foi a Declarao de
Caracas, que exortou os governos regionais a adotarem modificaes na prestao
do cuidado em sade mental:
A Declarao de Caracas foi assinada em 1990, e os dois grandes
objetivos que seus signatrios se comprometeram a promover a
superao do modelo do hospital psiquitrico e a luta contra todos os
abusos e a excluso de que so vtimas as pessoas com problemas
de sade mental - foram adotados como as grandes metas
mobilizadoras de todos os movimentos de reforma de sade mental
ocorridos na Amrica Latina e Caribe, a partir de 1990. (Brasil,
2005).
1 Para um aprofundamento dessa discusso, vide Amarante, 2001.
20
As equipes de atendimento, outrora centralizadas no mdico psiquiatra,
passam a agregar novos atores: psiclogos, assistentes sociais, pedagogos,
oficineiros, recreadores, enfermeiros, favorecendo assim que outros aspectos
ligados aos transtornos mentais, que no somente o orgnico possam ser
abordados.
Surgem os servios substitutivos, no contexto da desinstitucionalizao2,
com intensa criao de redes de cuidados regionalizadas e territorializadas, tais
como ambulatrios de psiquiatria e psicologia, Centros de Ateno Psicossocial
(CAPS), Servios Residenciais Teraputicos (SRT), Oficinas Comunitrias (OC),
Leitos Psiquitricos nos Hospitais Gerais, Centros de Convivncia, Clubes de Lazer.3
O processo de desinstitucionalizao dos pacientes asilados e cronificados consiste
justamente na criao e potencializao desses servios substitutivos.
Em 2001, a OMS recomendava as seguintes aes no mbito da sade
mental:
a)- proporcionar tratamento na ateno primria;
b)- garantir acesso aos medicamentos psicotrpicos
essenciais;
c)- garantir a ateno na comunidade (evitando internaes
nos hospitais psiquitricos);
d)- educao em sade;
e)- envolvimento das comunidades, famlias e usurios nas
decises polticas, programas e servios;
2 Este termo agrega o significado de desospitalizar e desconstruir o ultrapassado modelo. Para Amarante (1995), desinstitucionalizao significa tratar o sujeito em sua existncia e em relao com suas condies concretas de vida. Isto significa no administrar-lhe apenas frmacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a excluso em espaos de violncia e mortificao para tornar-se criao de possibilidades concretas de sociabilidade e subjetividade. (...) A desinstitucionalizao um processo tico, de reconhecimento de uma prtica que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. (p. 494).3 Para um aprofundamento sobre o funcionamento de cada um desses dispositivos, acessar: www.saude.gov.br/saudemental.
21
http://www.saude.gov.br/saude
f)- estabelecimento de polticas, programas e legislao
nacionais;
g)- formao de recursos humanos;
h)- monitorizar a sade mental na comunidade (informao,
indicadores de sade mental);
i)- apoiar a pesquisa na rea de sade mental
(OMS, 2001)
Nos anos 90, com a implantao dos PSFs, a Sade Mental (SM) passa a se
integrar com a Ateno Bsica, uma vez que grande parte dos problemas em sade
mental pode ser resolvido neste nvel de assistncia, por meio do matriciamento4
(Nunes, 2007). Os CAPS so os dispositivos estratgicos para a organizao da
rede de ateno em SM, necessrios nos municpios com mais de 20 mil habitantes.
Naqueles com populao inferior, imperiosa se faz a existncia de uma equipe de
apoio matricial em SM. O Ministrio da Sade preconiza que a assistncia na rede
bsica deva ser realizada atravs do apoio matricial s equipes da ateno bsica.
O apoio matricial da sade mental s equipes de AB constitui-se num arranjo que
visa dar suporte tcnico, onde a equipe de SM compartilha situaes de atendimento
com a equipe de AB responsvel por determinado territrio. Cria-se assim uma co-
responsabilizao pelos casos, que se materializa atravs de atendimentos
4 A definio de matriciamento do Programa Paidia, elaborado por Gasto Wagner Campos, em Campinas, merece ser reproduzida: Entendemos por matriciamento a construo de momentos relacionais onde se estabelece troca de saberes entre os profissionais, de diferentes servios de ateno, envolvidos no cuidado dos usurios. Tem por objetivo garantir que as equipes das UBS e UR vinculem-se aos pacientes e responsabilizem-se pelas aes desencadeadas no processo de assistncia, garantindo a integralidade da ateno em todo o sistema de sade. Esta proposta de matriciamento exige uma reformulao do modelo assistencial vigente nos ambulatrios de especialidades, o qual est focalizado no atendimento individual ou em atividades de grupo e na prpria especialidade, e no no sujeito como um todo. necessrio garantir espaos nas agendas dos especialistas, onde eles matriciaro as equipes das UBSs, proporcionando capacitao em servio, atravs da discusso de casos e de consultas conjuntas ou, atravs da organizao de mutires e de seminrios. (disponvel em: http://www.campinas.sp.gov.br/saude/especialidades/matriciamento.pdf )
22
http://www.campinas.sp.gov.br/saude/especialidades/matriciamento.pdf
conjuntos, intervenes comunitrias e junto s famlias, bem como discusses
conjuntas sobre determinados casos.
a responsabilizao compartilhada dos casos exclui a lgica do
encaminhamento, pois visa aumentar a capacidade resolutiva de
problemas de sade pela equipe local. (Brasil, 2003, p.4)
Em Janeiro de 2008, o Ministrio da Sade deu incio aos Ncleos de Apoio
Sade da Famlia (NASFs), cujo objetivo ampliar a abrangncia e o escopo das
aes da ateno bsica bem como sua resolubilidade, apoiando a insero da
estratgia de Sade da Famlia na rede de servios e o processo de territorializao
e regionalizao a partir da ateno bsica. (Brasil, 2008). A sade mental passou a
ser relevante na abordagem das equipes dos NASFs.
Em nosso trabalho, descreveremos a relao do ambulatrio de psiquiatria
com a rede de cuidados da ateno bsica (PSF). Segundo Oliveira et al. (2006), os
servios ambulatoriais realizam atendimento de referncia ambulatorial
especializada, com consultas, medicao e acompanhamento de Equipe
Especializada em Sade Mental: psiquiatra, psiclogo, assistente social,
enfermagem e terapeuta ocupacional. O MS reconhece que, embora no disponha
de dados estatsticos, os sofrimentos psquicos menos graves so objeto de trabalho
dos ambulatrios e da ateno bsica (transtornos psicossomticos, dependncia de
benzodiazepnicos, ansiedade, depresso).
As aes de sade mental, conforme o MS, devem obedecer o modelo de
redes de cuidado, com base no territrio e integrando-se a outras polticas de sade
que convirjam para o estabelecimento de vnculos e acolhimento.
So princpios da articulao entre SM e AB:
- noo de territrio;
- organizao da ateno sade mental em rede;
23
- intersetorialidade;
- reabilitao psicossocial;
- multiprofissionalidade/interdisciplinaridade;
- desinstitucionalizao;
- promoo da cidadania dos usurios;
- construo da autonomia possvel de usurios e familiares.
(Brasil, 2003, p. 4)
Estimula-se, assim, a prtica da interdisciplinaridade e a ampliao da clnica,
onde dimenses outras, que no somente a biolgica, possam ser incorporadas s
prticas dos sujeitos.
(...) urge estimular ativamente, nas polticas de expanso, formulao
e avaliao da ateno bsica, diretrizes que incluam a dimenso
subjetiva dos usurios e os problemas mais graves de sade
mental.
(Brasil, op cit, p. 3)
No caso dos municpios onde no houver CAPS, a equipe matricial dever ser
composta pelos seguintes membros (MS, 2003, op cit ,p. 5):
Mdico psiquiatra ou mdico generalista com capacitao em sade
mental;
Dois tcnicos de nvel superior (psiclogo, enfermeiro, assistente
social, terapeuta ocupacional, etc.);
Auxiliares de enfermagem;
Nos municpios com menos de 20 mil habitantes, a equipe matricial
poder ser mais simples, composta por um mdico generalista com
capacitao em sade mental e um tcnico de sade mental de nvel
superior.
24
So responsabilidades compartilhadas entre as equipes de sade mental
e ateno bsica, consoante o MS:
a. Desenvolver aes conjuntas, priorizando: casos de transtornos
mentais severos e persistentes, uso abusivo de lcool e outras
drogas, pacientes egressos de internaes psiquitricas, pacientes
atendidos nos CAPS, tentativas de suicdio, vtimas de violncia
domstica intradomiciliar;
b. Discutir casos identificados pelas equipes da ateno bsica que
necessitem de uma ampliao da clnica em relao s questes
subjetivas;
c. Criar estratgias comuns para abordagem de problemas
vinculados violncia, abuso de lcool e outras drogas, s
estratgias de reduo de danos, etc. nos grupos de risco e nas
populaes em geral;
d. Evitar prticas que levem psiquiatrizao e medicalizao de
situaes individuais e sociais, comuns vida cotidiana;
e. Fomentar aes que visem difuso de uma cultura de
assistncia no manicomial, diminuindo o preconceito e a
segregao com a loucura;
f. Desenvolver aes de mobilizao de recursos comunitrios,
buscando construir espaos de reabilitao psicossocial na
comunidade, como oficinas comunitrias, destacando a relevncia da
articulao intersetorial (conselhos tutelares, associaes de bairro,
grupos de auto-ajuda, etc);
25
g. Priorizar abordagens coletivas e de grupos como estratgias para
ateno em sade mental, que podem ser desenvolvidas nas
unidades de sade, bem como na comunidade;
h. Adotar a estratgia de reduo de danos nos grupos de maior
vulnerabilidade, no manejo das situaes envolvendo consumo de
lcool e outras drogas. Avaliar a possibilidade de integrao dos
agentes redutores de dano a essa equipe de apoio matricial;
i. Trabalhar o vnculo com as famlias, tomando-a parceira no
tratamento e buscar constituir redes de apoio e integrao.
(Brasil, 2003, p. 5).
Em 2006, o 8 Congresso Brasileiro de Sade Coletiva, realizado no Rio de
Janeiro, foi palco de intensos debates no mbito da sade mental. Dentre eles,
destaque para aspectos referentes ao funcionamento das redes em sade mental
(Pitta, 2006; Tfoli, 2006), as quais so compostas pelos CAPS, nas suas vrias
modalidades, bem como os demais dispositivos de desinstitucionalizao e as
escolas, ONGs e PSFs. O desafio garantir acesso ao cuidado, estendendo-o
Ateno Bsica e inclusive aos servios de atendimento mdico de urgncia
(SAMU). Em 2006 o pas j contava com 1123 CAPS, 426 residncias teraputicas,
mais de 2000 beneficirios do Programa de Volta para Casa. quela poca, ainda
dispnhamos de 40.000 leitos psiquitricos.
A legitimao referente Reforma em Sade Mental teve importante avano a
partir da promulgao da Lei 10216 em 20015. Ademais, vm crescendo os repasses
financeiros para os projetos de assistncia extra-hospitalar em sade mental.
Enquanto os gastos com internaes psiquitricas em 1997 atingiam 93% do
montante de recursos destinados Sade Mental, em 2005 os recursos diminuram 5 Esta Lei trata da proteo e direitos das pessoas protadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial. Prope-se a extino progressiva do modelo psiquitrico clssico, com a substituio deste por outras modalidades de cuidado.
26
para 54%, conquanto os gastos extra-hospitalares atingiram naquele ano 45% do
total de recursos (Pitta 2006)6.
Para Amarante (2005), a reforma consiste numa crise de modelo
epistemolgico no mbito da crise paradigmtica de todas as cincias. O autor
preconiza que as dimenses da reforma psiquitrica enquanto processo social
complexo estariam assim subdivididas: dimenso terico-conceitual, dimenso
tcnico-assistencial, dimenso jurdico-poltica e dimenso scio-cultural, e as suas
premissas podem ser resumidas no quadro a seguir:
Dimenses da reforma psiquitrica consoante Amarante (2006)dimenso terico-conceitual -Crise paradigmtica da cincia
moderna
* a cincia como produtora de Verdade
*o mito da neutralidade dos saberes ditos
cientficos
*o papel do tcnico - aquele que executa
as cincias, operadores do saber prticodimenso tcnico-assistencial A construo / inveno de novos
servios, estratgias e dispositivos
A transformao do papel e da
funo dos tcnicos, dos usurios,
familiares e comunidadesdimenso jurdico-poltica Cdigos civil, penal e sanitrio
Conceito de periculosidade
inimputabilidade
Irresponsabilidade civil
Custdia e tutela6 Apresenteo disponvel em: http://www.saudecoletiva2006.com.br/portugues/painel2208.php
27
http://www.saudecoletiva2006.com.br/portugues/painel2208.php
Sofrimento psquico e trabalho
Educao
Direitos sociais e humanos
Cidadania dimenso scio-cultural Um novo lugar social para a
loucura que no seja sinnimo de
erro, irresponsabilidade,
incapacidade, insensatez,
desatino, defeito
Incluso, solidariedade e cidadania(Amarante, 2006)
Um dos princpios da Reforma organizar o tratamento em rede assistencial
nos trs nveis de ateno, dentre os quais o ambulatrio de psiquiatria foi recrutado
como um dos dispositivos substitutivos ao manicmio. Nesse mbito, os CAPS
firmam-se como os articuladores dos servios comunitrios de sade mental, onde o
PSF torna-se a base da referncia e contra-referncia. (Vieira, 2006).
Preconiza-se que a integralidade deva pautar as aes em sade na
contemporaneidade, uma vez que ela expressa um atributo das boas prticas em
sade. A integralidade, para Pinheiro e Mattos (2001, 2005), deve ser compreendida
no seu sentido mais amplo, de modo que as prticas em sade se dem no mbito
da subjetividade. A prtica da integralidade no campo da sade mental materializa-
se na negao do isolamento, na humanizao das prticas e integrao dos
servios, visando assistncia integral do usurio. Vnculo e acolhimento so
fundamentais para a materializao dessas prticas. (Arajo, 2006).
28
No municpio de Sobral-CE, existe uma Rede de Ateno Integral Sade
Mental de Sobral RAISM, bastante exitosa, sendo composta por um CAPS II, um
CAPS Ad, SRT, Ambulatrio macro-regional de psiquiatria e USFs. O servio de
sade mental de Sobral constitui um modelo para diversos municpios brasileiros.
(Tfoli, 2006).
Nesta rede, os medicamentos psiquitricos so distribudos nas prprias UBS,
sendo que as situaes sob responsabilidade compartilhada pelas ESF so:
transtornos mentais comuns; sofrimento psicossocial; transtornos mentais severos
estabilizados; relao profissional-paciente. (Tfoli, op cit).
O RAISM produziu importantes avanos no mbito da Ateno
Compartilhada na Ateno Bsica:
Maior efetividade
Maiores mudanas clnicas
Instrumento de educao permanente
Aproximao entre psiquiatras e mdicos de famlia
(Tfoli, 2006)
As parcerias de integralidade em Sade Mental no territrio de Sobral incluem
os alcolicos annimos, grupos de terapia comunitria, grupos de atividade fsica e
massoterapia.
O autor identificou dificuldades com relao formao de recursos humanos
para o trabalho de integralidade em Sade Mental, quais sejam, psiquiatras e
psiclogos excessivamente voltados para a doena mental e para o trabalho em
hospital ou ambulatrio e falta de psiquiatras. Ressalta a inexistncia de uma poltica
29
nacional de sade mental na ateno bsica apesar das experincias isoladas bem-
sucedidas.
Amarante (2006) coloca como desafios atuais da Reforma Psiquitrica no
somente a ampliao do nmero de CAPS, como tambm de todos os novos
dispositivos e recursos, alm da ampliao da clnica em oposio a uma ampliao
restritamente medicalizadora. Deve-se garantir, outrossim, que todos os recursos
financeiros outrora destinados s internaes sejam dirigidos para os servios
substitutivos. O autor defende que os processos (na RP) devem ser construdos
sempre com a participao de diferentes atores (usurios, familiares e comunidade).
Durante o Congresso de Sade Coletiva de 2006, um grupo de participantes
do movimento reuniu-se em defesa da RP, em virtude das reaes provocadas por
declaraes de membros da Associao Brasileira de Psiquiatria (ABP) com duras
crticas ao processo de reestruturao da assistncia psiquitrica vigente.
Este mesmo evento produziu o Manifesto em Defesa da Poltica de Sade
Mental e do Processo de Reforma Psiquitrica do Brasil.7 Diz o manifesto:
A reforma psiquitrica vem convertendo servios antes centrados
exclusivamente no hospital psiquitrico, para uma ateno em sade
mental com as seguintes caractersticas:
- servios coerentes com os avanos internacionais prescritos na
Organizao Mundial da Sade e na Carta da ONU de 1991
(Proteo das Pessoas Portadoras de Transtorno Mental e
Desenvolvimento da Assistncia Sade Mental);
- servios coerentes com a legislao do SUS, de uma ateno
integral sade, de acesso universal, de base territorial, com
equidade, integralidade, participao e controle social, princpios cuja
7 Disponvel em http://www.abrasco.org.br/grupos/arquivos/20071226134149.pdf.
30
http://www.abrasco.org.br/grupos/arquivos/20071226134149.pdf
origem est na forte mobilizao dos segmentos sociais ligados
sade e que foram aprovados na Constituio Federal de 1988;
- servios abertos na comunidade e integrados ateno bsica em
sade, que hoje atende cerca de 100 milhes de habitantes no pas;
- novas modalidades de formao e exerccio profissional em sade
mental abarcando as contribuies das diferentes disciplinas, com a
democratizao do trabalho nas equipes multiprofissionais, visando
dar conta da complexidade e das vrias dimenses do sofrimento
psquico, do desenvolvimento da subjetividade e da qualidade de
vida, num movimento de autonomia e emancipao.
O documento ressalta os inmeros avanos que se consolidaram desde os
anos setenta, quando 97% dos recursos destinavam-se s internaes psiquitricas,
sendo que, atualmente, 50% vo para as atividades substitutivas. O manifesto atribui
os ataques das entidades classistas a uma tentativa de retrocesso no SUS. No
encerramento do Congresso, elaborou-se uma moo de apoio Reforma
Psiquitrica.8
A relao entre Sade Mental e Ateno Bsica configura-se por meio de um
modelo de base comunitria, no territrio prximo s pessoas, isto , o lugar onde os
indivduos vivem, trabalham, se relacionam. Neste modelo, devem ser buscados os
recursos oriundos da prpria comunidade, quando ento a maior parte da demanda
em sade mental passa a ser abordada no mbito do PSF. Vieira (2006) aposta na
integrao entre as estratgias (PSF e SM):
ambos se complementam e caminham num mesmo sentido
conceitual e operacional: autonomia e participao. (...) definem o
processo sade-doena de forma integral e apresentam novas
8 Disponvel em: http://www.abrasco.org.br/grupos/arquivos/20061020114151.pdf.
31
formas de cuidado, que visam a melhoria da qualidade de vida das
pessoas a partir de um processo participativo. (Vieira, 2006, p. 20).
No pretendemos, aqui, esgotar toda a discusso que envolve os avanos
conquistados pela Reforma Psiquitrica. Uma abordagem mais detalhada de outros
aspectos da RP ultrapassa os objetivos deste trabalho; para anlises aprofundadas,
ver Amarante (2001, 2005, 2006).
Passemos agora ao debate sobre a Estratgia Sade da Famlia.
3 - Formao Mdica e a Prtica no Programa Sade da Famlia
3.1- Consideraes sobre a Estratgia Sade da Famlia
32
A Estratgia Sade da Famlia bem como a Sade Mental, so ambos programas
que pretendem romper com o establishment do modelo biomdico, consistindo em
estratgias de reorientao do modelo assistencial tradicional. O Programa Sade
da Famlia consiste num modelo de reorientao da ateno bsica que visa a
promoo, a preveno e a assistncia sade, elegendo a famlia e o seu espao
social como ncleo bsico de abordagem do atendimento sade, rompendo
portanto com o paradigma anterior, centrado no atendimento mdico individual
(Favoreto, 2002; Guglielmi, 2006; Silva e Souza, 2001).
O PSF teve incio em 1994, a partir do Programa de Agentes Comunitrios de
Sade (PACS), que j existia desde 1991 com bons resultados no tocante reduo
da mortalidade infantil no estado do Cear. O Programa Mdicos de Famlia, de
Niteri-RJ1, tambm inspirou o PSF.
O MS preconiza que cada ESF seja constituda por, no mnimo, 1 mdico, 1
enfermeiro, 2 auxiliares/tcnicos de enfermagem e 4 agentes comunitrios de sade
(ACS). Conforme a realidade local, outros profissionais podem ser incorporados
equipe, que fica responsvel pelo atendimento de uma clientela adscrita, que varia
entre 2450 a 4500 pessoas.
Na definio do MS,
1 Inspirado no modelo de Cuba, o programa prope: uma mudana do modelo de ateno vigente e proporcionar assistncia integral sade da populao, com nfase nas atividades de preveno e de promoo. O meio adotado para atingir tais objetivos foi a utilizao de mdicos generalistas e o investimento na capacitao e na educao continuada desses profissionais, que devem ser capazes de resolver cerca de 70% dos problemas de sade de sua rea de abrangncia. Alm disso, a equipe de sade tambm deve atuar no plano coletivo, com um olhar integral sobre o indivduo, sua famlia, a comunidade e as questes ambientais, sociais e econmicas que influenciam o estado de sade da populao da rea de cobertura, tais como educao, abastecimento de gua, esgotamento sanitrio, coleta de lixo, processo de urbanizao etc (Terra, 1988, p. 4). As equipes deste programa no dispunham do agente comunitrio, sendo compostas pelo mdico, enfermeiros, auxiliares e supervisores clnicos nas reas de pediatria, clnica, tocoginecologia, cirurgia, sade mental, epidemiologia, enfermagem e servio social (Silva e Souza, 2001; Terra, 1998).
33
A Sade da Famlia entendida como uma estratgia de
reorientao do modelo assistencial, operacionalizada mediante a
implantao de equipes multiprofissionais em unidades bsicas de
sade. Estas equipes so responsveis pelo acompanhamento de
um nmero definido de famlias, localizadas em uma rea geogrfica
delimitada. As equipes atuam com aes de promoo da sade,
preveno, recuperao, reabilitao de doenas e agravos mais
freqentes, e na manuteno da sade desta comunidade. A
responsabilidade pelo acompanhamento das famlias coloca para as
equipes de sade da famlia a necessidade de ultrapassar os limites
classicamente definidos para a ateno bsica no Brasil,
especialmente no contexto do SUS.2
A Unidade Bsica de Sade (UBS) constitui-se na porta de entrada do sistema
local de sade, estando vinculada a servios que dem suporte e garantam a
referncia e contra-referncia. Atualmente, existem cerca de 26000 equipes de
sade da famlia no pas, contudo nem todas funcionam conforme o previsto. A
proposta do PSF, visto que se constitui num modelo assistencial baseado na
preveno de doenas e na promoo da sade, dar mais racionalidade e
eficincia ao SUS, ao resolver 85% dos problemas de sade da comunidade,
desafogando os hospitais.3
Os profissionais recebem remunerao diferenciada, ainda que os vnculos
empregatcios sejam frgeis, fazendo com que a permanncia do profissional seja
curta, principalmente do mdico. Este fato causa prejuzo no estabelecimento do
vnculo com a populao (Silva e Souza, 2001; Silveira, 2004).
32 ver referncias bibliogrficas (Brasil, 2004 [?]; 2003; s.d ).3 http://www.saude.gov.br
34
O programa pretende modificar o contedo das prticas mdicas no sentido da
humanizao, incorporando-se componentes sociolgicos, antropolgicos,
epidemiolgicos e psicolgicos. O confronto aparece na medida em que o PSF tem
como referncia a sade, enquanto a medicina referencia a doena. A proposta do
PSF no basear-se somente na demanda espontnea, com nfase na medicina
curativa, nos atendimentos individuais e tampouco no saber centrado no mdico.
Isso requer ento a formao de recursos humanos diferenciados, capazes de
abordar o sofrimento humano num contexto amplo, que englobe aspectos outros que
no somente o biolgico (Favoreto, 2002; Silva e Souza, 2001).
Oportuna se faz, neste ensejo, uma discusso acerca da racionalidade mdica
dominante em nosso meio - a biomedicina, luz das concepes de Camargo Jr. e
do grupo de pesquisas Racionalidades Mdicas do IMS-UERJ.
3.2 Biomedicina e a Estratgia Sade da Famlia
Os debates sobre a incorporao dos aspectos subjetivos do adoecimento na
prtica mdica ganham espao na Sade Coletiva, uma vez que o modelo
biomdico predominante mostra-se insuficiente para a atuao do mdico de famlia.
A Estratgia Sade da Famlia pressupe (ao menos idealmente) que o mdico faa
um atendimento integral ao paciente, incorporando aspectos psquicos e sociais do
adoecimento, no permanecendo limitado ao organicismo.
A Biomedicina (Medicina Ocidental Contempornea), surgiu no momento em que
a medicina se tornou antomo-clnica, no sculo XVIII, com a incorporao da
anatomia patolgica ao arsenal tcnico-cientfico da medicina. A atuao mdica
passou, a partir de ento, a se focalizar principalmente no corpo, isto , nas leses e
35
nas doenas, onde estas ltimas deixaram de ser vistas como um fenmeno vital
passando condio de expresso de leses celulares. Tal concepo de doena
passou a ser a categoria central do saber e da prtica mdica, ento a lgica da
interveno mdica passou a ser evitar, retardar a progresso ou minimizar o dano
causado pelas doenas.4 Nesta racionalidade, a medicina recorre cientificidade
para conferir legitimidade s suas aes (Camargo Jr., 2005).
So problemas identificados em relao ao modelo biomdico, segundo
Camargo Jr (2007): a insatisfao de usurios e dos prprios mdicos, os custos
elevados com tratamentos e exames (alm do uso excessivo destes), formao
inadequada de recursos humanos, competio entre os profissionais da rea e
desvalorizao dos aspectos subjetivos do adoecimento humano. Nesse mbito, a
no-valorizao da subjetividade choca-se com um dos princpios do PSF, conforme
j discutido.5
(...) entendemos que a subjetividade do adoecimento, isto , a
complexidade e a singularidade do sofrimento humano, e mais ainda,
a sua dimenso fenomenolgica, experiencial, nunca chegou a ser
objeto das cincias biomdicas (...). (Camargo Jr, 2006, p. 1095).
Favoreto (2002), analisando a prtica mdica no PSF, ressalta que o modelo
biomdico no auto-suficiente para dar respostas que venham ao encontro de
uma viso mais totalizante do adoecer humano e do cuidado em sade (p. 85).
Para Silva e Souza (2001), os indivduos procuram o mdico delegando ao mesmo o
poder de traduzir o sofrimento, que interpretado por ele em termos antomo-4 Como exemplificao do poderio do discurso das doenas, a prria acepo de sade mental, de acordo com a OMS faz referncia ausncia de doena: o estado de bem-estar no qual o indivduo percebe as prprias habilidades, pode lidar com os estresses normais da vida, capaz de trabalhar produtivamente e est apto a contribuir com sua comunidade. mais do que ausncia de doena mental (consulta ao DECS; grifos nossos).5 Revelando-se iatrognico, uma vez que a prtica mdica envolve elevado grau de subjetividade, e aqui o mdico encontra grandes dificuldades quando no consegue traduzir o sofrimento em algo amparado pelo conhecimento cientfico.
36
fisiolgicos. A biomedicina, assim, ofusca boa parte das dimenses da subjetividade
que aparecem a cada encontro entre o mdico e o usurio: aspectos relacionados
ao prprio adoecimento bem como as reaes do indivduo quanto teraputica e
situaes de vida. (Schraiber, 1993).
Assim, a biomedicina traduz-se num sistema em que a nfase recai sobre a
doena e no sobre o doente, h uma centralizao do atendimento, que ocorre no
ambiente hospitalar, e a poltica curativista.
No rol de tcnicas teraputicas desta racionalidade, inclui-se a medicamentosa, a
cirrgica, a fsica e a diettica, sendo as duas primeiras mais valorizadas pelos
mdicos pelo fato de serem de domnio exclusivo da categoria (Camargo Jr., 2005).6
As razes pelas quais esse modelo ainda se sustenta, se devem, entre outras
coisas, pelo poder do complexo mdico-industrial em determinar os rumos da prtica
mdica, representado principalmente pela indstria farmacutica, a qual financia as
principais pesquisas cientficas em nosso meio (Luz, 2004).
As instituies de ensino mdico do pas encontram-se pautadas pelo modelo
biomdico, com a formao mdica se estruturando a partir do estudo antomo-
patolgico, esquadrinhando o indivduo doente em partes e supervalorizando o
objetivismo em detrimento da subjetividade, conforme pode-se verificar nos estudos
sobre o saber mdico na contemporaneidade. Um dos conflitos da medicina reside
justamente nas teorias generalizantes que se contrapem prtica pautada na
individualidade.
O mdico recm-formado, ao iniciar sua prtica, v-se diante de um grande
desafio que abordar o sofrimento do usurio na sua integridade, pois teve um
ensino baseado na objetividade da apresentao dos sinais e sintomas. Sente-se
6 Assim como so mais valorizados os exames complementares caros e complexos, em detrimento da semiologia. Aqui reside um outro paradoxo desta racionalidade, j que o eixo semiolgico, menos legitimado socialmente, o que predomina na prtica cotidiana do mdico (Camargo Jr, 2005).
37
confuso e, consequentemente irritado, quando no consegue enquadrar uma
queixa principal conforme aprendera na Semiologia (Guedes, 2007). Camargo Jr.
(1990) verificou que os manuais de medicina falam na necessidade de ver o
paciente como um todo, porm isto nunca colocado em prtica. Observou, no
estudo das prticas mdicas no ambulatrio de Medicina Integral, que os mdicos
no davam oportunidade para que os pacientes falassem sobre situaes de
sofrimento psquico.
(...) quando os pacientes tentavam abordar assuntos outros que no
suas doenas, os mdicos, seja l por que razo for, impediram que
o desabafo se desenvolvesse. (Camargo Jr, 1990, p. 104).
Assim, este mesmo autor (2003, 2007) defende um modelo no qual a
subjetividade possa ser abordada, e, para tanto, o campo da Sade Coletiva dispe
de inmeras maneiras novas de se pensar o adoecimento, tais como a proposta da
Clnica Ampliada (Campos, 2007), a integralidade e a produo do cuidado visando
a transformao do modelo tecnoassistencial (Pinheiro, 2005). Ao mesmo tempo, as
prticas alternativas se propagam rapidamente no meio mdico, justamente porque
abordam o indivduo como um todo, alm de algumas delas constiturem-se em
prticas cuja linguagem de mais fcil acesso8.
Para a produo do cuidado em sade e uma abordagem integral do indivduo
doente, Favoreto (2002) sugere:
so necessrias reflexes e atitudes que incorporem outros saberes
e novos atores que transcendem o saber antomo-clnico e
epidemiolgico como os das cincias sociais, da pedagogia, da
psicologia e da psicossomtica para uma compreenso mais crtica 8 Esta uma das razes pelas quais os curandeiros ou tratadores fazem tanto sucesso entre a populao rural na regio em que realizamos o estudo de campo.
38
e ampliada da dinmica social, cultural e poltica, evidenciada no
cotidiano das comunidades. Tambm necessrio, o
desenvolvimento continuado e contextualizado de novas posturas e
habilidades tcnicas mais coerentes com a noo de cuidado em
sade, capaz de produzir maior autonomia e bem-estar s pessoas
que procuram os servios de sade.
(Favoreto, 2002, p. 110-11).
Dentre as propostas de transformao da racionalidade mdica ocidental,
muito se discute sobre o modelo biopsicossocial, que agrega trs domnios tericos
que supostamente traduzem o homem como um todo (biolgico, psicolgico e
social). Para Camargo Jr (2005), contudo, tal discurso mostra-se controverso, na
medida em que na prtica permanece subordinado ao discurso biolgico:
a pretensa totalidade usualmente expressa condensando-se todos
os termos em um s, como se a mera justaposio de discursos
pudesse, por si s, abolir a fragmentao inerente ao prprio modelo
de desenvolvimento disciplinar caracterstico da modernidade.
Agregue-se a isso o fato de que os termos psico e social no
passam de referncias genricas, subordinadas ao primado do
discurso biolgico. (Camargo Jr., op cit, p. 185)
Poucos profissionais que trabalham nas ESF do pas formaram-se com uma
viso ampliada acerca do processo de adoecimento.9 A maior parte das Faculdades
de Medicina orienta o ensino para uma prtica privada e para a formao de futuros
especialistas. Isso pode ser verificado pelo reduzido nmero de mdicos
9 Da o elevado nvel de estresse (burn-out) observado nas equipes.
39
generalistas que lecionam nas escolas mdicas: no ciclo clnico, as disciplinas
costumam ser ministradas por especialistas.10
Ciente da necessidade de reformular o ensino mdico e o de outros profissionais
de sade, com vistas a capacitar o aluno para o trabalho na ateno bsica, o
Governo Federal lanou, em 2005, o programa Pr-Sade (Programa Nacional de
Reorientao da Formao Profissional em Sade), cujos objetivos so11:
Objetivo Geral: Incentivar transformaes do processo de formao,
gerao de conhecimentos e prestao de servios populao,
para abordagem integral do processo de sade doena, tendo como
eixo central a insero dos estudantes na rede pblica de servios de
sade.
Objetivos Especficos:
I - reorientar o processo de formao em medicina, enfermagem e
odontologia de modo a oferecer sociedade profissionais habilitados
para responder s necessidades da populao brasileira e
operacionalizao do SUS;
II - estabelecer mecanismos de cooperao entre os gestores do
SUS e as escolas de medicina, enfermagem e odontologia, visando
tanto melhoria da qualidade e resolubilidade da ateno prestada
ao cidado quanto integrao da rede pblica de servios de sade
formao dos profissionais de sade na graduao e na educao
permanente;10 A graduao em medicina ainda , na maior parte das instituies de ensino do pas, dirigida para a formao de profissionais sem preocuparem-se com a realidade social e sanitria local. O curso mdico desenvolvido dentro das salas de aula e laboratrios, e, ao final, num hospital universitrio ou conveniado para a realizao do internato.11 vide referncias (Brasil, 2005).
40
III - incorporar no processo de formao da medicina,
enfermagem e odontologia a abordagem integral do processo sade-
doena e da promoo de sade;
IV - ampliar a durao da prtica educacional na rede pblica de
servios bsicos de sade.
(Brasil, 2005).
Esse processo encontra-se interligado com a proposta de assistncia em
Sade Mental na ateno primria, na medida em que um de seus eixos a
produo de conhecimentos segundo as necessidades do SUS. Pretende
diversificar os cenrios de prticas para que o aluno seja um gerador de reflexo e
no de imitao, nas palavras de Chazan (2007).
No eixo cenrios de prticas, destacamos o tem maior nfase no nvel
bsico com possibilidade de referncia e contra-referncia, bem como o item que
trata da insero precoce do aluno interagindo com a comunidade. O Pr-Sade
pretende, assim, despertar um esprito crtico com anlise da prtica clnica.12
No contexto da incorporao de novos saberes prtica outrora restrita
biomedicina, surge tambm a Clnica Ampliada (CA), que consiste numa proposta de
uma nova clnica, que permita lidar melhor com a singularidade do sujeito doente,
sem abrir mo da categoria doena. Para Souza Campos (1997, 2005, 2007a,
2007b), a concepo epistemolgica e organizacional da CA baseia-se na
construo do trabalho clnico segundo um neo-artesanato, isto , a ampliao do
objeto de trabalho da clnica. Agregaria-se ento, alm das doenas, os problemas
de sade, enfim, as situaes que ampliam o risco ou a vulnerabilidade das
12 Em Caratinga existe uma Faculdade de Medicina, que formou sua primeira turma em fins de 2007. Naquele curso os alunos recm-ingressados tm a oportunidade de conhecer o funcionamento do PSF no mesmo municpio. Na instituio, lecionamos a disciplina Trabalho de Campo, onde os alunos participam ativamente das atividades comunitrias.
41
pessoas. Para o autor, a ampliao fundamental consiste na considerao dos
sujeitos, o que ele denominou clnica do sujeito. Ademais, prope a ampliao da
autonomia do usurio, no sentido da sua capacidade em lidar com sua prpria
rede/sistema de dependncias. A CA tambm prope-se a lidar com as pessoas na
sua dimenso social e subjetiva, incorporando elementos da histria de vida de cada
sujeito, identificando fatores de risco e de proteo, valorizando o poder teraputico
da escuta e da palavra, o poder de educao em sade e do apoio psicossocial. A
proposta que a clnica possa incorporar conhecimentos de distintas reas:
para que essa reforma seja possvel na prtica, a clnica necessitar
de recorrer a conhecimentos j existentes em outras reas, sobre o
funcionamento do sujeito quando considerado para alm de sua
dimenso orgnica ou biolgica. A prtica clnica necessita de uma
nova semiologia e de uma nova teraputica: parte desses
conhecimentos pode ser buscada na sade coletiva, na pedagogia,
psicologia, antropologia, cincias sociais e polticas e, at mesmo,
em noes de Gesto e de Planejamento. (Campos, 2007a, p. 853)
Para a efetiva constituio da CA, a estruturao do vnculo profissional de sade
versus paciente imperioso, de modo que devem ser adotados todos os dispositivos
para facilitar esta interao.
O autor identificou os seguintes empecilhos para a estruturao da Clnica
Ampliada (2007a):
- excesso de demanda;
- profissionais com mltiplos empregos;
- insero dos profissionais nos hopsitais e nos ambulatrios de um modo que a
ateno ao mesmo paciente no compartilhada pela mesma equipe durante todo o
processo teraputico;
42
- aumento do nmero de especialidades em sade, fragmentando o processo
teraputico e com isso elevando o nmero de profissionais que intervm num
mesmo caso.
A necessidade de incorporao de uma certa capacidade de lidar com a
subjetividade e de conhecimentos de psicologia na clnica mdica no nova. O
prprio Balint j falava da importncia de se utilizar a psicologia na clnica, e
posteriormente este conceito foi trabalhado pelo movimento da psicossomtica
(Mello Filho, 2001).
4 - Atendimento em Psiquiatria
Os ambulatrios surgiram como um primeiro dispositivo substitutivo
internao nos manicmios, por volta da dcada de 70. Embora no exista uma
padronizao quanto ao funcionamento dos ambulatrios no mbito da Reforma
Psiquitrica, o que se observa no cotidiano das instituies, que o ambulatrio
43
contribui satisfatoriamente para o tratamento e desestigmatizao da doena mental
no ambiente comunitrio.
A existncia de um ambulatrio de psiquiatria no mesmo espao fsico
destinado s demais especialidades1, permite que o indivduo portador de transtorno
mental seja visto, frequente um ambiente heterogneo, circule entre outros usurios.
Ademais, a presena do psiquiatra no mesmo ambiente dos demais
profissionais de sade, contribui para a implantao da interconsulta, favorecendo
assim uma aproximao com os demais trabalhadores dos servios de sade, pois
muitos ainda vem este profissional com certo receio ou mesmo indiferena (Mello
Filho, 2001).
No ambulatrio de SM, imperiosa se faz a presena do psiclogo, o qual lida
com psicoterapias individuais ou grupais, e do assistente social. Ressaltamos que as
caractersticas do atendimento prestadas por estes profissionais no sero objeto de
discusso em nosso estudo.
O atendimento psiquitrico pode, por outro lado, contribuir para reforar a
medicalizao na medida em que se constituir na nica alternativa disponvel num
determinado local para a abordagem dos conflitos psquicos. O paciente cai
novamente na rede de medicalizao quando lhe so prescritos psicofrmacos
como nica alternativa de tratamento.2 Ainda assim, a demanda por aumento do
nmero de consultas algo marcante na regio em que desenvolvemos a pesquisa,
sendo a fila de espera uma conseqncia da represso da demanda.
Cruz Filho (1983) identifica um processo de psiquiatrizao crescente a partir
do momento em que os distrbios e conflitos passam a ser objeto de ao da
psiquiatria quando o foco muda do confinamento para a penetrao nos espaos
1 Referimo-nos aos Postos de Sade tradicionais.2 Aqui, aspectos institucionais podem contribuir para esta situao, em virtude, por exemplo, da falta de tempo disponvel para uma psicoterapia.
44
comunitrios. A expanso dos servios de ambulatorio psiquitrico contribui para o
aumento do consumo de psicofrmacos, instrumentos mais utilizados no arsenal
teraputico da psiquiatria. Ocorre, portanto, acmulo de capital na indstria
farmacutica. (Cruz Filho, 1983, p.18; p. 85).
Outras crticas atuao do psiquiatra observadas na literatura so: reforo
ciso mente-corpo; baixa resolutividade do tratamento psiquitrico; dificuldade de
acesso; falta de vagas; uso de medicamentos em demasia pelo psiquiatra; falta de
comunicao sobre os casos que lhe so encaminhados. H ainda descrena com
relao aos tratamentos psiquitricos; crenas de que o encaminhamento ao
psiquiatra causar problemas na relao mdico-paciente e com os familiares
(Botega, 1989).
O ambulatrio, para alguns tericos da reforma psiquitrica, j no mais se
constitui no nico elemento norteador das polticas de assistncia em sade mental,
nos dizeres dos reformistas que elaboraram a linha-guia de sade mental de Minas
Gerais:
(...) os ambulatrios de sade mental j no so servios
preconizados pela Reforma Psiquitrica. Isso no retira a importncia
do atendimento ambulatorial, ou seja, do atendimento dirio, semanal
ou mensal dos portadores de Sade Mental (sic) que no requerem
uma assistncia tipo permanncia-dia ou noite. O que se modifica a
lgica desse atendimento, assim como o espao de sua realizao:
deve fazer-se preferencialmente na unidade bsica de sade, seja
pela equipe do PSF, nos casos mais simples, seja pela equipe de
Sade Mental, nos casos mais complexos. (MG, 2006, p.65).
Todavia, este mesmo documento refora as potencialidades do ambulatrios
nos pequenos municpios;
Por outro lado, geralmente em municpios menores, costuma haver
ambulatrios de Sade Mental que podem funcionar ou mesmo j
45
funcionam de uma outra maneira. So (ou podem tornar-se!) servios
geis e acolhedores, que constituem uma referncia importante para
a populao. Nestes casos, alm dos atendimentos individuais,
costumam realizar oficinas, grupos e outras atividades com os
usurios; acolhem casos mais graves, muitas vezes evitando a
internao; atuam em equipe; tm uma relao mais viva e prxima
com a cidade (...) em suma, dentro das limitaes de sua estrutura
fsica e recursos humanos, funcionam mais como um CAPS e/ou
Centro de Convivncia do que como um ambulatrio, no sentido
estrito da palavra.
(MG, op cit, p. 65)
O profissional de sade mental (psiquiatra, psiclogo), ao receber um
paciente encaminhado pelo clnico, avalia a relao mdico-paciente, vez que isso
faz parte da sua abordagem, desencadeando muitas vezes insegurana, hostilidade,
desconfiana e temor do mdico assistente de ser considerado incompetente por
no estar resolvendo casos emocionais (Botega, 2006).
O MS orienta que os municpios com populao inferior a 20 mil habitantes
elaborem uma rede de cuidados em Sade Mental a partir da ateno bsica, pois
no se justifica a implantao de servios de Sade Mental complexos nesses
municpios, tais como Centros de Ateno Psicossocial. Assim, a equipe de sade
mental torna-se responsvel pelos servios de superviso e capacitao das
equipes de Sade da Famlia de maneira permanente.
Os usurios dos servios de Sade Mental agora esto mais prximos da
comunidade, o que exige, dentre outros aspectos, uma reconfigurao das posturas
clnica, tica e cultural dos profissionais de sade, dos gestores, bem como da
prpria comunidade.
46
4.1 - Os protocolos de atendimento em sade mental
Os protocolos de atendimento na ateno bsica vm ganhando destaque
entre os profissionais que atuam na rea. So elaborados por uma equipe
multidisciplinar e visam maior eficincia da atuao profissional.
47
J so amplamente utilizados pelas sociedades mdicas visando
homogeinizao da prtica profissional, ao mesmo tempo em que constituem-se em
valiosos mtodos de aprefeioamento e educao continuada.
Contudo, os protocolos3 mdicos baseiam-se nas evidncias disponveis
conforme a estrutura do mtodo cientfico/ medicina baseada em evidncias,
cabendo ao profissional uma certa plasticidade na sua aplicao com base na sua
prtica profissional. J os documentos desenvolvidos no mbito da sade pblica, se
estruturam de acordo com a viso dos diferentes atores envolvidos no processo,
sendo destinados, da mesma forma, a todos os profissionais envolvidos no cuidado,
inclusive o mdico.
No estado de Minas Gerais, a SES elaborou diversos protocolos dirigidos aos
distintos nveis de complexidade, sendo os seguintes protocolos (ou linhas-guia)
disponveis aos profissionais de sade: Ateno Sa de do Adulto ; Hansenase ;
Ateno Sa de do Adulto ; Hipertenso e Diabetes ; Ateno Sa de do
Adulto; HIV / AIDS; Ateno Sa de do Adulto - Tuberculose ; Ateno em
Sa de Bucal ; Ateno Sa de do Adolescente ; Ateno Sa de do Idoso ;
Ateno em Sa de Mental ; Ateno Sa de da Criana ; Ateno ao Pr-Natal,
Parto e Puerprio; Protocolo de Assistncia Hospitalar ao Neonatal ; Protocolo de
Febres Hemorrgicas; Protocolo Assistencial aos Portadores de Diabetes Mellitus
Tipo 1 e Gestacional.4
Periodicamente, os profissionais recebem treinamentos nos municpios-plo,
acerca destes protocolos. Entretanto, no perodo em que a pesquisa foi realizada,
no houve nenhum encontro regional que discutiu especificamente a Linha-guia de
sade mental.
3 Sinonmia: consensos, guidelines, linhas-guia.4 MG, 2006a.
48
http://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Protocolo Assistencial do Portador de Dabetes Mellitus Tipo 1 e Gestacional.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Protocolo Assistencial do Portador de Dabetes Mellitus Tipo 1 e Gestacional.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Protocolo_febreshemorragicas.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Protocolo_febreshemorragicas.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/assistencia_hospitalar_neonato.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Atencao ao Pre-Natal, Parto e Puerperio.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Atencao ao Pre-Natal, Parto e Puerperio.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/Atencao a Saude da Crianca.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeMental.ziphttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeIdoso.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeAdolescente.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeBucal.ziphttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaSaudeBucal.ziphttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaTuberculose.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaHIVAIDS.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaHIVAIDS.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaHiperdia.pdfhttp://www.saude.mg.gov.br/publicacoes/linha-guia/linhas-guia/LinhaGuiaHanseniase.pdf
Como se trata de um Estado com vasta cobertura territorial, possuindo o
maior contingente nacional de municpios (so 853 no total) e significativas
desigualdades regionais, a gesto em sade no Estado est distribuda entre as
Gerncias Regionais de Sade (GRS), sendo 28 as existentes no incio de 2008.
Compete s GRS:
I - implementar as polticas estaduais de sade em mbito
regional;
II - assessorar a organizao dos servios de sade nas regies;
III - coordenar, monitorar e avaliar as atividades e aes de sade em mbito
regional;
IV - promover articulaes interinstitucionais;
V - executar outras atividades e aes de competncia estadual no mbito
regional;
VI - implantar, monitorar e avaliar as aes de mobilizao social na regio.
VII - exercer outras atividades correlatas.
(MG, 2006b)
Tais GRS possuem uma zona de abrangncia, de modo que a GRS de Coronel
Fabriciano, a qual pertencem todos os municpios em que o estudo foi desenvolvido,
abrange no total 33 municpios5.
Existe, ademais, um protocolo regional de atendimento dirigido aos profissionais
da ateno bsica que trata sobre o modo de lidar com usurios portadores de
transtornos mentais. Na regio, encontramos somente um modelo de Protocolo
sobre atendimento em sade mental no PSF, denominado Consade Mental, 5 At meados de 2006, as cidades pertenciam GRS de Governador Valadares. A opo pela
migrao para Cel. Fabriciano se deu em virtude da sobrecarga daquela GRS.
49
sendo este organizado pelo Consrcio Intermunicipal de Sade do Vale do Ao
(CONSAUDE, [2003 ?]). Portanto, no um documento que se aplica aos
municpios abrangidos pelo CISMIRECAR, objetos da pesquisa.
Este protocolo foi elaborado com base nas diretrizes de atendimento em
sade mental do municpio de Sobral, no Cear (Tfoli, 2005), e contempla os
seguintes aspectos:
- forma de lidar com o cliente portador de transtorno mental;
- medicamentos mais usados em psiquiatria;
- reconhecimento de um sujeito com transtorno mental;
- local de atendimento dos casos menos graves;
- casos que devem ser encaminhados ao servio de sade mental;
- funcionamento do Consade Mental.
Descreveremos a seguir as situaes consideradas como sendo menos
graves, que devem ser atendidos pela equipe do PSF conforme este manual (pg.6):
Casos a serem resolvidos pela ESF, conforme o manual Consade Mental:- queixas fsicas sem explicao mdica (enxaquecas, queimao na cabea,
tonturas)- problemas emocionais ligados a situaes do dia-a-dia- problemas de relacionamento familiar- perda de contato social- abuso ou dependncia leve a moderada de bebidas alcolicas- ansiedade e depresso leves e moderadas (taquicardia, falta de ar, sensao de
desmaio, suores frios)- quadros psicticos estabilizados
O manual do Consade Mental tambm orienta sobre os casos que
podem ser encaminhados para determinados grupos:
Encaminhamentos- consultas de acolhimento pela equipe do PSF: conversas teraputicas
50
- grupos de caminhada- grupos de AA na comunidade ou unidade de sade- grupos de queixas difusas ou de dependentes de benzodiazepnicos- grupos comunitrios (ex: idosos ou adolescentes)- centros culturais na comunidade- terapias comunitrias
Finalmente, o manual destaca as condies que requerem atendimento
psiquitrico de urgncia.
Este documento no foi efetivamente trabalhado entre as equipes de sade
dos municpios consorciados, conforme relato dos prprios coordenadores daquela
instituio. Destarte, um documento de grande relevncia no mbito das
transformaes na assistncia a que se prope reformular, pouca aplicabilidade
prtica possui em virtude da sua no abordagem junto aos profissionais das
respectivas ESF dos municpios.
Em nossa pesquisa, encontramos um modelo de protocolo desenvolvido pela
equipe do Ncleo de Estudos em Sade Mental da Universidade Federal do Mato
Grosso (NESM-UFMT), cujo documento denominado Sade Mental na Sade da
Famlia, que trata das diretrizes de atendimento para situaes de sofrimento
mental no mbito do PSF. O documento prope, dentre outros assuntos, que cada
membro da equipe do PSF possui uma responsabilidade e atribuio com relao ao
usurio portador de transtorno mental. Destacam-se tambm os formulrios de
busca ativa e acompanhamento dos casos de Sade Mental pela equipe do PSF
elaborados pelos autores do documento.
Os autores (Vieira, et al, 2006) propem os seguintes princpios gerais para
a abordagem de portadores de transtornos mentais no PSF:
- apoiar a famlia para que a mesma tenha condies de lidar de
modo saudvel com o indivduo com sofrimento mental;
51
- trabalho em equipe, com relao ao reconhecimento do usurio
bem como planejamento da assistncia;
(Viera, op cit, p. 23)
Prope-se as seguintes aes aos membros da ESF: ouvir, acolher, incluir,
comunicar-se claramente e respeitosamente, propor realizao de atividades em
grupo na comunidade, estimular o autocuidado, informar.
Este manual sugere que a deciso de se prescrever um medicamento seja
discutida com o mdico psiquiatra dos servios de referncia.
Finalmente, o manual descreve quais so as atribuies de cada membro da
ESF. Com relao ao objeto do presente estudo, qual seja, o mdico de famlia, o
manual orienta que o mdico deve:6
- orientar, prescrever e acompanhar o uso de medicao
psicotrpica, quando necessrio
- discutir com o mdico especialista (psiquiatra) do servio de
referncia em sade mental, o disgnstico e a indicao de
medicamento psicotrpico;
- acolher as pessoas, individualmente e na famlia;
- fazer diagnstico sindrmico dos indivduos com transtornos
mentais;
- em situaes de violncia, assistir e proceder aos
encaminhamentos para outros nveis de ateno no setor sade e
outros setores sociais competentes;
- avaliao das situaes de conflito familiar, tomar decises e
encaminhamentos em questes que envolvem o sofrimento mental;
- desenvolver atividades individuais e grupais de ateno/educao
em sade que permitam expressar sentimentos e desenvolver
autonomia (trabalho com grupos de usurios);
- incentivar a criao/ continuidade de grupos comunitrios de auto-
ajuda (familiares e de pessoas com transtornos mentais, AA, Ala-
non);
6 Para maiores informaes, vide Vieira et al, 2006, p. 48-52.
52
- promover e incentivar a organizao e a participao de usurios e
familiares em grupos e associaes de defesa dos direitos das
pessoas com transtornos mentais;
- participar de grupos e de movimentos sociais de expresso cultural
relacionados sade mental. (Vieira et al, 2006, p. 50-52).
Em Campinas-SP, a equipe de Sade desenvolveu um Protocolo de Sade
Mental caracterizado por reforar um trabalho em equipe integrada e articulada. So
diretrizes do protocolo, na perspectiva do apoio matricial:
1. reunies semanais com as equipes do Paidia-PSF (apoio para discusso de casos) e
regulador de fluxo dos pacientes encaminhados pelos Agentes de Sade Coletiva ou
equipes do Paidia/PSF.
2. projetos de atividades comunitrias que favoream a incluso social e/ou promoo de
sade (hortas comunitrias, cuidadores ecolgicos, caminhadas, alfabetizao, centros de
convivncias, atelier de artes plsticas, teatro, msica, passeios, frentes de trabalhos
cooperativados, etc);
3. acompanhamento dos usurios em residncias teraputicas, abrigos infantis e de idosos;
4. disponibilidade para atividades itinerantes/equipe volante em diferentes unidades ou
CAPS ou Oficinas;
5. reunies mensais com usurios e familiares, para promoo de espaos associados.
(Adaptado da Prefeitura Municipal de Campinas, 2001)
O grande desafio que a lista de espera ou outras formas de represso da
demanda se transforme e consiga ocupar os espaos coletivos de convivncia.
A OMS desenvolveu em 2000 um manual dirigido aos clnicos gerais que
aborda a preveno e manejo de casos de tentativa de suicdio. Existe, ainda um
manual para profissionais da ateno primria7.
7 No sero objeto de anlise neste estudo.
53
5 - O encaminhamento ao Psiquiatra
Os estudos acerca do processo de encaminhamento de usurios atendidos
por clnicos gerais ao psiquiatra, so na maior parte desenvolvidos em Hospitais
Gerais (Magdaleno Jr, Botega, 1991). Nos hospitais, estruturaram-se servios de
Interconsulta Psiquitrica ou Psiquiatria de Ligao, quando o psiquiatra atua
respondendo a pareceres demandados por colegas de outras especialidades. Muitas
vezes o psiquiatra requisitado para lidar com a ansiedade e angstia dos internos,
residentes ou colegas.
Nem todos os pacientes encaminhados ao ambulatrio de psiquiatria
comparecem consulta, pois uma srie de aspectos esto envolvidos no processo
de encaminhamento, tais como resistncia por parte do paciente a consultar-se com
um mdicos de loucos e mesmo preconceito oriundo dos prprios mdicos
encaminhadores (Botega e Cassorla, 1991; Botega, 2006; Kerr-Corra, 1985).
Aspectos relacionados ao mdico encaminhador influenciam na quantidade
de encaminhamentos feitos por ele, tais como tipo de formao mdica, senso de
autonomia, grau de certeza e interesse por aspectos psicolgicos da prtica mdica
(Botega 2006; Kerr-Corra, 1985).
54
Diversos so os fatores que influenciam a deciso do mdico clnico para o
encaminhamento ao mdico psiquiatra, tais como condies sociodemogrficas e
clnicas do usurio (por exemplo,
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