Santos, Suzy; Silveira, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. IN: RAMOS, Murilo C.; SANTOS, Suzy. Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. p. 49-82.
CAPÍTULO 2 SERVIÇO PÚBLICO E INTERESSE PÚBLICO NAS COMUNICAÇÕES
Suzy dos Santos
Érico da Silveira
O Papel do Estado na prestação dos serviços de comunicações
Ao se olhar para o conjunto de leis e instituições que regulamentam as comunicações,
se tem a impressão de uma estrutura complexa, repleta de normas específicas, causando
confusão pelo volume de regras, leis e funções das instituições envolvidas. Junta-se a essa
estrutura truncada as mudanças tecnológicas, implicando novos regulamentos, redefinindo
necessidades públicas, reinventando serviços, misturando os meios de comunicação no que
se cunhou como ‘convergência’ e confundindo ainda mais uma reflexão já complicada.
Isto se já não bastassem as diferentes interpretações de diversos países, cada qual
com uma visão da função que as comunicações devem desempenhar na sociedade,
aumentando ainda mais a discussão, desdobrando-se em estudos comparados que
multiplicam as alternativas de modelos de gestão para o setor. A saída para se estudar este
campo, que se transforma ao sabor da política, do mercado e das inovações tecnológicas,
não poderia ser outra senão um estudo dos princípios que definem o papel das
comunicações na sociedade, a natureza do serviço prestado pelas instituições de
comunicação, e o caminho escolhido parte da forma de participação do Estado, protagonista
natural no processo de estudos de políticas.
A discussão conceitual acerca da natureza dos serviços de comunicações não é de
modo algum uma exclusividade do momento atual. Ela está presente em cada inovação que
o setor sofreu, sofre e sofrerá. Por exemplo, na primeira regulamentação do rádio ou no
surgimento da televisão, discussões levantavam os temas de segurança, soberania
nacional, liberdade de expressão. Em toda inovação do setor, o questionamento da natureza
do serviço se faz presente, instrumentando o embate de forças econômicas e políticas,
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culminando num contexto normativo reformulado.
Como propôs Thomas Kuhn (1998), até a consolidação de um paradigma, em
qualquer campo de estudo, há um embate de idéias, mas também de forças sociais,
políticas e econômicas que culminam na prevalência de uma corrente. Se isto se mostra
verdadeiro para uma ciência natural, mais se pode esperar das ciências humanas,
principalmente em um campo intimamente ligado à política e ao poder. É justo, pois, que
argumentos levantados anteriormente à consolidação de modelos e por hora adormecidos,
possam ser resgatados a fim de esclarecer seus fundamentos. Assim se justifica este debate
hoje, quando todas as mudanças sofridas pelas comunicações no seu processo de
digitalização trazem de volta as mesmas discussões da época da Marconi Company e as
primeiras regulamentações do rádio, na década de 20.
Tanto o rádio quanto, posteriormente, a televisão, tiveram papel fundamental não
apenas na criação de uma indústria totalmente nova, a Indústria Cultural1, como também na
divulgação da convicção de que era indissolúvel o casamento entre eficiência tecnológica e
os valores morais de justiça, igualdade e bem público (Mosco, 1996 : 34). No entanto, este
casamento, por ser ‘arranjado’, não reflete a felicidade ‘até que a morte os separe’:
Sempre que o acesso aos recursos de comunicações e informação requeridos para a cidadania plena depende do poder aquisitivo (como expresso diretamente pelo pagamento do consumidor ou indiretamente pela desigual distribuição dos recursos publicitários à produção), são geradas desigualdades substanciais que solapam a nominal universalidade da cidadania [tradução livre dos autores] (Golding; Murdock, 1997b : 1042 [tradução livre dos autores]).
Os serviços de comunicações, no que se refere ao provimento de conteúdo
(radiodifusão) e o tráfego de informações (telefonia/transmissão de dados), cresceram e
foram regulados sob lógicas e instâncias normativas distintas (Garnham, 1996; Richeri,
1 É importante ressaltar que, antes do rádio e da televisão, também o cinema, a indústria fonográfica e a indústria editorial gráfica (comics, fotonovelas, revistas femininas etc.) já ensaiavam a formação desta Indústria Cultural. A relevância do rádio e da televisão neste processo dá-se pelo intenso processo de mercantilização e estandardização destes meios. Sobre estes processos ver Horkheimer; Adorno (1985); Garnham (1990); Miège (1989); Flichy (1996). 2 A referência da primeira publicação do texto é: MURDOCK, Graham; GOLDING, Peter. Information poverty and political inequality: citizenship in the Age of Privatized Communications. Journal of Communication. n. 39, v. 3, 1989, p. 180-195. Utilizamos aqui a versão apresentada no segundo volume da coletânea The Political Economy of Media, editada, em 1997, pelos mesmos autores. p. 100-115.
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1995). As diferentes naturezas dos serviços fizeram com que a telefonia fosse regulada
prioritariamente em relação à distribuição/transporte de informações e a radiodifusão em
relação ao conteúdo.
Os serviços de telefonia e transmissão de dados se consagraram historicamente
como monopólio estatal, exceto nos EUA, e sua estrutura regulatória foi desenvolvida em
relação à estrutura física, com base em três princípios genéricos:
acesso universal (common carriage);
interconexão; e,
controle de preços (tarifas não discriminatórias).
Encarado como questão estratégica nas políticas de desenvolvimento do século XX, o
controle destes serviços era regido especialmente por um enfoque geopolítico e de
segurança do Estado. O conteúdo das transmissões era considerado uma transação privada
e jamais foi controlado, salvo em períodos de guerra ou convulsão social.
Na radiodifusão, tanto a distribuição quanto o conteúdo eram controlados pelos
Estados fosse nos modelos público/estatal ou comercial. Esta regulação incluía critérios
culturais e econômicos, além dos políticos, estando baseada em princípios diversos das
telecomunicações e mais próximos à lógica aplicada anteriormente à imprensa. Como
sustenta Othon Jambeiro:
Histórica e universalmente, os sistemas regulatórios desenvolvidos para governar a indústria da TV têm derivado diretamente dos instrumentos legais e aparatos burocráticos que os estados-nações criaram para tratar com a Imprensa. Na medida em que novas tecnologias deram origem a novos meios de comunicação de massa - o cinema, depois o rádio, em seguida a TV - aqueles instrumentos e aparatos foram consequentemente adaptados, muitas vezes para permitir que se pudesse continuar a policiar e controlar a mídia. Os sistemas regulatórios evoluíram em seguida para evitar danos morais, regular a relação trabalhista entre empregados e proprietários dos meios, prevenir excessiva concentração de poder, licenciar freqüências de rádio e TV, e - particularmente nas democracias liberais da Europa ocidental e nos Estados Unidos - garantir formas de competição econômica suficiente para frustrar o estabelecimento de monopólios (1997 : 148).
Apesar das distinções no mercado e na natureza da regulação, estes serviços
usualmente estão incluídos dentro de um setor único, genericamente chamado de
comunicações, no qual o Estado assume as funções de proprietário, promotor ou regulador.
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Ainda segundo Jambeiro,
Ele é Estado Proprietário, no que se refere, por exemplo, à bibliotecas, centros de documentação, ao espectro eletromagnético e às emissoras de rádio e TV que explora diretamente. É também Estado Promotor, porque traça as estratégias públicas para o desenvolvimento do setor, faz inversões de infra-estrutura, e concede incentivos e subvenções. E, finalmente, é Estado Regulador, na sua função de fixar regras claras de instalação e operação, que eliminem as incertezas e desequilíbrios" (Jambeiro, 2000 : 23).
Alguns autores, como Alejandro Piscitelli (1995), consideram que o interesse central
do Estado na radiodifusão está embutido na natureza educacional/cultural dos serviços. O
período que este autor classifica como paleotelevisão, tomando emprestada aquela
elaborada por Umberto Eco, está baseado num contexto de comunicação pedagógica no
qual os ouvintes de rádio e telespectadores de televisão cumprem o papel de alunos. O
objetivo destes meios seria a transmissão de conhecimentos dirigidos.
Esta capacidade ‘doutrinária’ da radiodifusão seria responsável pelo interesse em
torná-la disponível às massas e também pelo forte controle do setor. Próximo desta linha de
raciocínio está o livro Elogio do Grande Público, de Dominique Wolton (1996). O autor traça
um paralelo entre o uso massivo do rádio nos governos nazistas e fascistas para explicar as
características nacionalistas, o modelo de Serviço Público com controle/propriedade estatal
e o domínio de uma função de democratização cultural na radiodifusão.
Dessa forma, a radiodifusão, na primeira metade deste século, servia como uma
espécie de curinga no baralho da acumulação fordista. No campo político, favorecia a
difusão da ideologia capitalista, a mobilização e a formação de opinião pública buscando
manter um consenso social. Já no campo econômico, estes serviços alavancavam a
acumulação capitalista ajudando a criar um mercado para os equipamentos de recepção e
funcionando como poderosos instrumentos de marketing para os bens de consumo de
massas (Garnham, 1991, p.68). A regulamentação, portanto, está condicionada a promover
uma infra-estrutura unificada que venha a atingir três objetivos básicos:
assegurar a demanda de aparelhos de rádio e televisão;
ajudar a criar audiências massivas essenciais ao marketing fordista; e,
proporcionar um meio para a mobilização política das massas e para a formação da opinião pública.
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O acesso direto ao ambiente doméstico permitia, assim, a solução do que Garnham
considera uma das potenciais contradições do fordismo: o estabelecimento das relações
fordistas de produção e o boom do consumo doméstico e familiar, constituíam uma
tendência de esvaziamento das formas tradicionais de organização e mobilização social e
política.
Para o autor, esse modelo estava fundamentado num equilíbrio entre três processos
associativos:
uma aliança entre o Estado e o consumidor nacional da indústria eletro-eletrônica, suposta através do desenvolvimento das infra-estruturas da radiodifusão e da recepção;
uma aliança entre o Estado e o setor coletivo de assinantes (indústrias fordistas), suposta através da mobilização de fontes de financiamento da programação; e,
a articulação e mobilização da legitimidade política da indústria de televisão que dependia do Estado para obter acesso ao espectro eletromagnético (p. 69).
Visando estes interesses, o chamado Estado Fordista, adotou as posições de
proprietário, promotor ou regulador para garantir a existência de um mercado e um
desenvolvimento estável no setor. Sob outro ponto de vista, a própria natureza da
radiodifusão aponta para quatro razões centrais para o estreito controle estatal (François,
1990: 551-553):
a propriedade pública das ondas radioelétricas;
a reduzida quantidade de freqüências;
o argumento das “diferenças midiáticas”, baseado na idéia de que o conteúdo do rádio e da televisão são intrusivos na esfera doméstica;
o conceito fiduciário, no qual se pressupõe que a licença é uma espécie de “empréstimo em confiança” do espaço público.
Newman, McKnight e Solomon (1998:26-28)3 definiram um quadro (figura 1) que
pretende a discussão dos princípios norteadores de qualquer modelo de regulação de
3 A classificação desenvolvida no livro é uma gradação que pretende compreender todas as possibilidades de participação do estado e do mercado em qualquer modelo de comunicação.
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telecomunicações (e que obviamente pode ser aproveitado para classificar a radiodifusão)
quanto ao papel do Estado e do setor privado, classificando-os em quatro modelos
tradicionais. (O quinto modelo do quadro é mais uma proposta que um modelo que exista
em algum país ou outro contexto).
Figura 1: Cinco tradições regulatórias
Paradigma Funções Públicas Funções PrivadasPropriedade Pública (Public ownership)
Propriedade e operação do sistema monopólico
Fabricar equipamentos
Acesso Universal (Common carriage)
Forte controle na regulação de entrada, saída, tarifas e operação
Propriedade e operação do sistema monopólico
Infraestrutura de comunicações aberta (Open Communication Infrastructure)
Regulação focada na manutenção da competição e na alocação do espectro
Propriedade e operação do sistema competitivo
Fiduciário Público (Public trustee)
Leve controle na regulação, regulação inicial da entrada
Propriedade e operação do sitema quasi-competitivo
Livre Mercado (Laissez-faire) Regulação mínima do mercado Propriedade e operação; nível de competição não determinado
Propriedade Pública (Public ownership) seria o modelo Estatal, onde o papel do
Estado abrange a propriedade e a gestão de um monopólio do setor. Este modelo
representa a grande maioria dos sistemas de telecomunicações ou comunicações do
mundo, pelo menos até meados da década de 90. O papel do setor privado, neste modelo
está apenas na manufatura, de aparelhos televisores ou telefônicos, por exemplo.
Outro modelo, definido pelos autores, é conhecido como Acesso Universal (Common Carriage) e tem a característica de uma regulamentação completa das atividades
de comunicação pelo Estado em regime de monopólio. Difere do modelo anterior, porque
cabe, neste, ao setor privado a propriedade do sistema de comunicação. Este sistema é um
monopólio que o Estado arbitra a natureza do serviço, suas tarifas, garante o acesso
universal e define e fiscaliza as empresas que participarão do monopólio na garantia do
cumprimento do Serviço Público designado pelo Estado. Estes modelos monopolistas são
sustentados pela noção de monopólio natural, que defende que a natureza do serviço de
comunicação, pelo alto custo de construção e manutenção da infra-estrutura da rede e a
necessidade de interoperabilidade não justificam a construção de um sistema concorrente,
por ser mais oneroso para a sociedade. Central a este modelo é a questão da garantia de
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acesso universal. Este sistema predominou os países europeus, que hoje avançam sua
transição a um modelo concorrencial.
Fiduciário Público (Public Trustee) é o modelo derivado da radiodifusão americana.
O papel do Estado está na definição do fiducitário, concedendo licenças em confiança e
definindo alguns aspectos do serviço. O setor privado é o proprietário e o gestor das
comunicações em um sistema de competição limitada. O conceito que sustenta essa
limitação reside na escassez de espectro para radiodifusão, exigindo a presença do Estado
na organização, concedendo licenças, selecionando os Trustees dentro do número limitado
de concessões que o Estado pode oferecer. O Public Trustee é a entidade física e/ou
jurídica, dependendo do país, que recebe sua porção do espectro em confiança do Estado
com o compromisso de cumprir algumas determinações em defesa do Interesse Público.
Esta definição é essencial para este estudo.
Livre Mercado (Laissez-Faire) é a denominação dada pelos autores ao regime de
competição livre onde o Estado pouco interfere, com regulamentação mínima sobre o
negócio, deixando que a livre competição garanta a qualidade do serviço. Os defensores
deste ponto de vista argumentam que liberdade de expressão é garantida pela exclusão
quase completa do Estado no processo constituinte do sistema de comunicações.
O modelo apresentado pelos autores denominado Infraestrutura de comunicações aberta (Open Communication Infrastructure), definido pela ação do Estado na manutenção
da competição e na alocação de espectro e o papel do setor privado estaria na propriedade
e na gestão em regime competitivo, não é um modelo tradicional de comunicação, mas sim
uma proposta dentro do modelo competitivo de caráter liberal, bem de acordo com a visão
dos autores. Como este modelo é apenas uma idealização dos autores, uma proposta, não
nos serve para o estudo dos princípios dos modelos de comunicação existentes.
Embora sejam de extrema valia em termos didáticos, estes esquemas carecem de um
olhar mais amplo acerca da organização das sociedades capitalistas avançadas. Tomando
conceitos disponíveis na teoria política e sociológica, Vincent Mosco (1988 : 108-113)
desenha um quadro explicativo, fortemente baseado em Niklas Luhmann e Daniel Bell4,
4 LUHMANN, Niklas. The Differentiation of Society. New York: Columbia University Press, 1982; e BELL,
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acerca dos mecanismos de forças sociais em conflito e das operações que transformam
estes mecanismos em formas de governança (figura 2).
Inicialmente, apresenta quatro modos de processamento das necessidades sociais:
a) representação ou poder político;
b) mercado ou poder monetário/cambial;
c) controle social ou poder derivado da sociabilidade, valores culturais, normas etc; e,
d) especialização ou poder baseado no conhecimento científico ou na detenção da
informação.
Estes modos de processamento desenvolvem outras quatro formas fundamentais de
governança que, em certa medida, contextualizam o quadro de Newman, McKnight e
Solomon, anteriormente abordado. São elas: Regulação, Competição Privada, Quadros de
especialistas e Corporatismo.
Figura 2: Formas de governança para processar demandas sociais em sociedades capitalistas desenvolvidas
RE PR ESEN TA Ç ÃO(A m p la In c o rp o ra ç ã o )
Regulação Corporatismo
Competição Quadros de Especialistas
M ERC A D O(I n d ire t o )
C O N TRO LE SO C IA L(D ire to )
PER ÍC IA L(In c o rp o ra ç ã o re st r it a )
A forma de governança Regulação está vinculada a uma estrutura de mercado
Daniel. The Cultural Contraditions of Capitalism. New York: Basic Books, 1976, apud Mosco, 1988: 108-113.
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privado. Mosco exemplifica esta forma a partir da Federal Communications Commission
estado-unidense que é responsável por representar o Interesse Público, levando em conta
as necessidades daqueles que seriam naturalmente excluídos, ou teriam pouca voz, numa
estrutura puramente mercadológica. Contudo, o FCC existe para garantir o bom
funcionamento do mercado privado nas comunicações.
Já a Competição Privada é a forma mais amplamente discutida no ambiente que se
refere ao tópico “comunicações”. Ela se refere ao ambiente no qual as opções tecnológicas,
administrativas e de investimento são as mais apropriadas para se decidir o que produzir e
como estruturar a distribuição de recursos. Mosco chama atenção para o fato de que,
diferente do que se pode depreender numa leitura generalista, mercado não é um
mecanismo auto-criador e auto-sustentável. Ao contrário, a questão chave da sua estrutura
é justamente: quem cria e sustenta os mercados e para benefício de quem.
Os Quadros de Especialistas configuram uma forma de governança baseada em
princípios técnicos. Grupos de especialistas ou consultores de competência socialmente
reconhecida que representariam uma ferramenta de ampliação do controle social. A forma
Corporatismo se refere a formas de governança que dão status de autoridade a indivíduos
que representam componentes específicos na jogo de forças em questão. Por exemplo,
representações sindicais, dos consumidores, dos diferentes negócios que compõem o setor.
Naturalmente, por esta contextualização, Mosco está preocupado em retomar o papel
central do Estado (e do ambiente político) num cenário no qual os discursos teóricos, em
certos momentos, parecem rebaixar à categoria de coadjuvante. Nas palavras do autor:
Uma premissa fundamental da discussão é a de que o capitalismo desenvolvido não tem nenhuma forma de atender às demandas sociais que exclua a intervenção estatal. Pode-se estabelecer graus de intervenção estatal para cada modo, de baixo para um papel facilitador a alto para uma capacidade diretiva. Mas o Estado está envolvido em cada forma, incluindo o mercado (1988 : 111-112 [tradução livre dos autores]).
Na conclusão do artigo o autor resgata esta idéia em detrimento do papel central do
ambiente econômico nas análises do setor:
Este artigo configura um modesto esforço [...] para sugerir formas de acentuar o político na economia política das telecomunicações [...] Concretamente, ofereci modos de expandir a discussão dos assuntos de políticas para além do pensamento dicotômico – regular ou não
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regular – e modos de ver o jogo político em torno da formação de políticas que faça justiça ao papel central das telecomunicações na vida social contemporânea (1988 : 122 [tradução livre dos autores]).
A utilização destas classificações esclarece as possibilidades das ações do Estado
praticadas pelos modelos de comunicação existentes e a contrapartida privada. Chamam
atenção que a definição do papel que o Estado desempenha na gestão do modelo
estabelece a natureza dos serviços de comunicações que uma sociedade se propõe, ou que
a ela se impõe.
A partir da classificação do papel do Estado, opta-se por simplificar os modelos em
duas linhas básicas. Assim reduzidos, os modelos se classificam entre os que têm um
serviço prestado pelo Estado, direta ou indiretamente, e os que têm o serviço prestado pela
iniciativa privada. Procurando exemplos, chegamos à dualidade entre os modelos americano
e europeu. No caso do europeu, devido a sua grande variedade, que vai do empreendimento
estatal ao Serviço Público prestado indiretamente por entidade privada, escolhemos aquele
que se destaca entre eles, pelo menos por tradição: o modelo britânico.
O Modelo americano e o Interesse Público
O modelo americano tem suas raízes no livre mercado. Mesmo que os primeiros
regulamentos e suas consequentes regulações colocassem que o espectro radiofônico era
uma espécie de bem público, e mesmo sendo necessárias licenças dadas pelo governo
federal para as radiodifusoras funcionarem, a radiodifusão americana era um
empreendimento privado. Este é o grande ponto de contraste entre os Estados Unidos e a
Europa, onde a radiodifusão foi tratada como bem público escasso e que deve ter a garantia
de universalidade de acesso garantida pelo Estado (Hoynes, 1994).
A idéia principal que sustenta o modelo americano para a radiodifusão nasce na
Primeira Emenda (First Amendment), na liberdade de expressão. Nenhuma lei seria feita
impedindo a liberdade de expressão. Porém, no caso da radiodifusão, a aplicação do
princípio não poderia ser feita da mesma maneira que foi aplicada à imprensa escrita. Havia
o entrave tecnológico: a escassez do espectro radiofônico somente permitia a existência
conjunta e harmônica de um limitado número de emissoras.
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No início, a explosão do número de rádios gerou um caos no ar. Até meados de 1923,
existiam 500 estações nos Estados Unidos, atingindo dois milhões de pessoas. Em 1924, o
número cresceu para 1105 rádios, dividindo as mesmas 89 freqüências disponíveis. O
cenário americano assustava os ingleses. Opiniões rechaçando o modelo americano eram
comuns, como a do pioneiro do rádio inglês, R. N. Vyvyan, horrorizado com a falta de
regulação, a interferência entre os sinais de rádio e a utilização massiva para fins
publicitários. Como narra Pool:
Uma atitude característica foi expressa por um dos pioneiros do rádio britânico, R. N. Vyvyan: ‘[Nos Estados Unidos] jornais e grandes lojas de varejo rapidamente viram que a radiodifusão oferecia uma maravilhosa oportunidade para anunciar suas mercadorias [...] não havia regulações que proibisse isso [...] Não importava se uma estação estava interferindo na outra [...] já que havia um boom na radiodifusão, e todos iriam entrar no espectro. Em meados de 1923 havia mais de 500 estações de rádio na América e uma audiência estimada em dois milhões. Em 1924 o número era 1105, e os 89 comprimentos de onda disponíveis tinham que ser divididos por elas; obviamente caos no espectro foi o resultado’ (1983 : 110 [tradução livre dos autores]).
Se na Inglaterra o horror ao caos do modelo americano, a interferência de amadores
nos serviços (que eram desenvolvidos pelo serviço postal britânico) e o caráter da utilização
do espectro para fins de segurança, nortearam a escolha do modelo, nos Estados Unidos, a
preocupação com a liberdade de expressão, juntamente com a explosão do negócio
publicitário levaram o modelo para a direção oposta.
Debates acerca da censura do novo meio eram comuns e a preocupação com o
controle do Estado sobre a comunicação era central. Claro que também se falava na
censura privada, aquela operada pelos próprios radiodifusores, mas esta era minimizada por
seus defensores com dois argumentos: a multiplicidade de fontes e a opinião pública, ambas
contribuiam como controle democrático. David Sarnoff, em nome da RCA, produtora de
aparelhos de rádio, representava esse ponto de vista que minimizava o efeito do controle da
comunicação pelos radiodifusores em relação à censura do governo e da regulação.
David Sarnoff se opunha à idéia de que o radio estava se tornando um meio central de opinião ao qual ‘deveriam se aplicar os mesmos princípios aplicados à liberdade de imprensa’. Ele enfatizou o perigo da censura governamental e minimizou o do controle dos radiodifusores. Com mais de
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quinhentas estações de rádio para uma audiência diária estimada em dez milhões, não havia o perigo de qualquer um monopolizar o que seriam ‘os vastos alcances do ar’. O ‘perigo real, ele argumentou, estava na censura, na sobre-regulação, opinião pública deve ser o teste do que é radiodifusão (Pool, 1983 : 120 [tradução livre dos autores]).
Porém, o ponto de vista da liberdade de expressão ainda encontrava o obstáculo da
escassez do espectro. Como distinguir aqueles que seriam livres para utilizar o ar e aqueles
que não seriam contemplados com as licenças? O dilema da liberdade de expressão e da
escassez do espectro convencia até mesmo os mais liberais da urgência de alguma forma
de regulação como uma necessidade tecnológica (Pool, 1983 : 122). Algum mecanismo
precisava ser instaurado para que a concessão de licenças não ficasse livremente nas mãos
do Estado, com decisão subjetivada de cada governante.
A determinação do Radio Act of 1927 proibindo a censura por parte da Federal Radio
Commission (a instituição que concedia as licenças, transformada em FCC em 1934)
apareceu apenas com a observação de que o próprio poder de conceder licenças era, por si,
um mecanismo de censura. É neste ponto do debate que surge o controvertido conceito do
Interesse Público (Public Interest). O conceito surge como forma de reduzir a possibilidade
de censura da comissão (e do governo, por conseqüência) e traduzir, em uma norma, o
mecanismo de seleção de licenciados (Trustees). “A Columbia Law Review estabeleceu (...)
a questão: ‘Os padrões de Conveniência Pública e Necessidade parece dispor de
mecanismos suficientes para garantir a liberdade do ar” (Pool, 1983 : 123 [tradução livre dos
autores]).
Restava (e ainda resta) a dificuldade de se interpretar o Interesse Público com
propriedade. Apesar do conceito nunca ter sido claramente definido, alguns parâmetros
foram se consolidando, tanto no discurso como na prática dos atores no modelo americano.
Em 1928, a FRC publicava um documento de sete páginas no qual se definia o
conceito de Interesse Público.
Este documento, segundo a FRC, surgiu a partir da indicação do Radio Act, de 1927,
de que a agência deveria organizar o mercado com a finalidade de garantir a igualdade no
serviço de radiodifusão, tanto na transmissão quanto na recepção, partindo dos conceitos de
Santos, Suzy; Silveira, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. IN: RAMOS, Murilo C.; SANTOS, Suzy. Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. p. 49-82.
interesse, conveniência ou necessidade pública. Após listar alguns critérios prioritários
(qualidade técnica, distribuição justa dos diferentes tipos de serviço prestado, evitar
duplicidade de programas e tipos de programação, evitar excesso de publicidade, dentre
outros), a FRC concluía:
Como o número de canais é limitado e o número de pessoas querendo oferecer radiodifusão é muito maior do que o que pode ser acomodado, a comissão deve determinar dentre os candidatos anteriores quais vão, se licenciados, melhor servir ao público. Em alguma medida, talvez, todos oferecem mais ou menos serviços. Porém, aqueles que oferecem menos devem ser sacrificados em função daqueles que oferecem mais. A ênfase deve estar primeiramente no interesse, na conveniência e na necessidade do público ouvinte, e não no interesse, na conveniência ou na necessidade do radiodifusor ou do anunciante [tradução livre dos autores] (Golding; Murdock, 1997b: 2935).
Outro documento, publicado em 1929, aponta que o Interesse Público requer ampla
exposição e competição de idéias opostas na radiodifusão:
[...]Na seção 18 do Radio Act de 1927, é exigido da estação radiodifusora que disponha oportunidades iguais de uso da estação para todos os candidatos a um cargo público caso ela tenha permitido a algum deles o uso da estação. Deve ser notado, porém, que na mesma seção está garantido que “nenhuma obrigação é aqui imposta a nenhum concessionário para que permita o uso da sua estação a qualquer candidato”. Isto não é incompatível com, mas ao contrário apóia, o ponto de vista da comissão. Novamente a ênfase deve estar no público ouvinte, não no emissor da mensagem. Não seria justo, efetivamente não seria um bom serviço ao público permitir uma apresentação unilateral dos pontos políticos de uma campanha [...] a comissão crê que o princípio não se aplica apenas aos candidatos políticos mas a todas as discussões de assuntos de importância para o público [tradução livre dos autores] (Golding; Murdock, 1997b : 296-2976).
5 A referência original deste texto é FEDERAL Radio Commission. Interpretation of the Public Interest: ‘statement made by the commission on august 23, 1928, relative to Public Interest, Convenience, or Necessity. [s.l.]: 2 FRC Ann. Rep. 166, 1928. In: KAHN, Frank J. (ed.). Documents of American Broadcasting. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, cap. 10, 3. ed.. p. 49-55. Utilizamos aqui a versão apresentada no segundo volume da coletânea The Political Economy of Media, editada por Peter Golding e Graham Murdock, p. 287-293.6 A referência original deste texto é Federal Radio Commission. The Great Lakes Statement: in the matter of the application of Great Lakes Broadcasting Co. FRC Docket n. 4900, 3 FRC Ann. Rep., 1929. In: KAHN, Frank J. (ed.). Documents of American Broadcasting. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, cap. 10, 3. ed.. p. 56-62. Utilizamos aqui a versão apresentada no segundo volume da coletânea The Political Economy of Media, editada por Peter Golding e Graham Murdock, p. 294-300.
Santos, Suzy; Silveira, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. IN: RAMOS, Murilo C.; SANTOS, Suzy. Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. p. 49-82.
O ponto primeiro e importante é a preservação da liberdade de expressão, mantendo
o governo fora do controle do conteúdo, como já foi colocado aqui. A liberdade de expressão
é uma preocupação que busca evitar o monopólio da comunicação como mecanismo de
poder. Seja monopólio do Estado ou monopólio do mercado.
A isso é que o Secretário Hoover estava se referindo em 1924, quando ele sustentou sob as políticas Americanas que, ‘as atividades do rádio são amplamente livres. Nós iremos mantê-las livres – livres de monopólio, livres em programação e livres no discurso’. Em 1926, o congressista Ervin Davis, citando Hoover, acrescentou: ‘não podemos permitir que nenhuma pessoa ou grupo se coloque em uma posição na qual podem cesurar o material que deve ser transmitido ao público’” (Pool, 1983:136 [tradução livre dos autores]).
A Multiplicidade de vozes e consequentemente de conteúdo é a chave encontrada
para se fugir ao monopólio e garantir o fundamento expresso na Primeira Emenda. A saída
encontrada foi a pulverização do poder, com a dissolução de possíveis monopólios partindo
de uma característica marcante da sociedade americana, seu espírito comunitário. O modelo
seria orientado a conceder o acesso ao espectro de forma descentralizada, o que se
convencionou chamar de localismo. A concessão de licenças locais pulverizou o poder e
garantiu, até certo ponto, a multitude de vozes desejada (embora a concentração de
propriedade tenha gradualmente pervertido o modelo original).
O modelo americano do Interesse Público tem seus críticos. Patrícia Aufderheide
(1998) pergunta: “qual é o público que a regulação americana representa e a que interesses
se refere? Se assume, a partir dos primórdios da comunicação e as regulações anti-
monopolistas, que o Interesse Público é a saúde econômica da sociedade capitalista
associada com a paz social e prosperidade [...] Porém, o público vem cada vez mais sendo
considerado uma aglomeração de consumidores ou de pontenciais consumidores
(Aufderheide,1998 : 5). O conceito de público deve abranger preocupações sociais e
culturais, questões de acesso universal, visões negligenciadas pelo modelo de
financiamento publicitário.
Há também muitas políticas de comunicação que atingem as antigas preocupações da economia tradicional, seja num nível macro ou micro, e que alcançam as considerações do bem-estar social. Reguladores governamentais atuam como aliados e às vezes protetores do fraco e vulnerável em sociedade [...] estas políticas asseguram a todos igualdade de
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acesso às tecnologias de comunicação, sem importar o que há em suas carteiras ou bolsos. (Aufderheide,1998 : 5 [tradução livre dos autores]).
Um modelo baseado no financiamento da publicidade, com canais licenciados pelo
governo em número limitado - o Interesse Público nem se coloca como Common carriage,
nem como Laissez-faire, inventando uma categoria própria que chamamos de Public
Trustee, anteriormente. Um modelo que valoriza a liberdade em relação ao Estado e está a
ele atado pela concessão de licenças. Um modelo que valoriza a liberdade de expressão em
relação ao setor privado, mas está a ele ligado pelo sistema de financiamento.
Em um dos primeiros textos críticos sobre o modelo de comunicação de massa norte-
americano, em 1973, Herbert I. Schiller mostrou que alguns destes conceitos da regulação
aplicada nos EUA até então, poderiam ser percebidos como dispositivos de manipulação
social. O autor discute cinco mitos centrais:
o mito da individualidade e escolha pessoal, que tem a função de barrar a organização social coletiva através da visão de que os interesses individuais superam os interesses coletivos;
o mito da neutralidade do estado como intermediário entre sociedade e mercado, que pressupõe a crença de que os governos em geral e as suas partes constituintes (os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) são exclusivamente íntegros e apartidários;
o mito da imutável natureza humana, que neutraliza questões políticas e econômicas a partir de imagens totalitárias sobre a natureza humana. Por exemplo, quando a programação televisiva mostra excessos de sensacionalismo, o faz porque é isso que o público quer ver. Desta forma, a empresa se exime de qualquer responsabilidade sobre toda influência social que possa ter;
o mito da ausência de conflito social, que difunde uma imagem unificada e pacífica do ‘american way of life’; e,
o mito da pluralidade da mídia, baseado nos números de radiodifusores ou programas sem destinar importância às características de similaridade entre eles (Golding; Murdock, 1997a : 412-4267).
7 A referência original deste texto é SCHILLER, Herbert I. Manipulation and the Packaged Consciouness. In: The mind managers. Boston : Beacon Press, cap. 1, 1973. p. 8-31, 192-193. Utilizamos aqui a versão apresentada no primeiro volume da coletânea The Political Economy of Media, editada por Peter Golding e Graham Murdock (412-437).
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A suposta perversão do conceito de Interesse Público tem sido apontada por diversos
autores quando se referem à estreita vinculação dos interesses privados industriais ao
processo de governança das comunicações nos EUA. Conforme aponta Horwitz:
A mais frequentemente citada razão para a perversão do interesse público é a sobre-identificação da agência regulatória com a indústria que ela regula. Realmente, esta é a análise mais comum da regulação da radiodifusão pelo FCC. Há várias explicações para este fenômeno, mas a maioria é de modelos de ‘influência’. Eles postulam que as indústrias reguladas exercitam (imprópria) influência nas agências reguladoras (1989 : 27 [tradução livre dos autores]).
Horwitz parece concordar com Schiller em relação ao fato de que se há um “desvio de
conduta” na defesa do Interesse Público ele não está personalizado na FCC ou nos modos
de processamento das disputas sociais, retomando Mosco (1988), mas é parte da
contradição que o conceito carrega desde o berço liberal no qual foi produzido.
O modelo britânico e o Serviço Público
A lógica do modelo Britânico atribui maior responsabilidade ao Estado na prestação
do serviço, aproximando seu sistema de comunicação ao Serviço Público. O conceito de
Serviço Público é importante na observação do modelo britânico, que optou por um modelo
misto, mais próximo à categoria de Common Carriage, ao criar uma autoridade
independente para a radiodifusão: a British Broadcasting Corporation.
A BBC, que representa originalmente o modelo inglês, obedece à lógica do serviço de
utilidade pública. O serviço de comunicação é um serviço a que todos os ingleses têm direito
de acesso e o modo que este serviço é garantido à sociedade se dá pelo Estado, que o
define, tanto na forma de organização da rede, como na forma de financiamento, ficando, ao
setor privado a prestação do serviço, sob encomenda e orçamento originados no mesmo
Estado. O modelo inglês buscou uma instituição independente para garantir a isenção em
relação ao Estado, para garantir o princípio da liberdade de expressão.
A radiodifusão foi considerada pela Inglaterra como uma extensão dos serviços
postais, tanto que Gluglielmo Marconi foi introduzido aos ingleses através do presidente do
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British Post Office da época, Sir William Preece (Pool, 1983 : 109). Amadores e empresas
experimentavam o novo meio de comunicação, trocando informações, músicas e
desenvolvendo o que viria a ser o rádio como hoje o conhecemos, dentre essas
experiências, empresas como a Marconi Company.
O serviço postal, juntamente com as forças armadas britânicas, acompanhavam o
processo com a preocupação do controle e organização do Estado. Em 1920, quando uma
transmissão de um programa de entretenimento interferiu nas comunicações de rádio de um
avião que se perdeu no canal da Mancha, regulamentações restritivas foram impostas.
Questões de segurança nacional, impunham uma organização do setor. As transmissões
amadoras foram reduzidas a duas horas por dia, depois apenas a licenciados com
comprovado interesse científico. Vários radiodifusores foram impedidos de transmitir. No
começo, música não era permitido. Mas a pressão por uma utilização do serviço que a
população inglesa pudesse usufruir foi o que levou a criação da BBC. Reivindicava-se o
direito do povo britânico de saber o que acontece em seu ar, fazendo referência clara às
ondas de rádio. “O regulamento foi amplamente violado por amadores, que repetidamente
defendiam que todo inglês é apto a ouvir o que está sendo transmitido no seu espectro”
(Pool, 1983 : 110 [tradução livre dos autores]).
O cenário caótico e comercialista dos Estados Unidos, como já vimos, também
contribuiu para que a Inglaterra rejeitasse o modelo privado e financiado por anúncios, seja
pela desordem, seja pela desqualificação do conteúdo veiculado. Aqui chegamos no
segundo argumento acerca da natureza do serviço pretendido pela Inglaterra. O primeiro,
questão de segurança e ordem, vinculados ao papel de soberania, segurança e autoridade
do Estado. O segundo, que a recente experiência americana no sistema de financiamento
por publicidade não cumpria os interesses do serviço na divulgação cultural e no papel
educativo. Nas origens desse modelo está o vínculo direto da televisão e do rádio com a
cultura, praticamente consagrados como um direito de todo inglês.
Em toda a Europa, as comunicações foram colocadas como fomentadoras, ou pelo
menos como extensões das atividades culturais e educativas. Assim foi criada a British
Broadcasting Company, um monopólio, financiado por imposto recolhido no comércio dos
aparelhos de rádio e mais tarde de televisão, controlado pelo estado e com a execução do
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serviço designada à iniciativa privada, num grupo de empresas que foram denominadas, à
época, de Big Six.
A BBC executaria o serviço, com relativa independência do governo, sem se
preocupar com o financiamento, que seria garantido pelo Estado, através do fundo
reservado da taxação da venda de aparelhos radiofônicos. As obrigações da BBC eram de
promover a pluralidade cultural, com programas educativos, prestando um serviço entendido
como de direito a todo o povo inglês. Mais tarde, a BBC foi transformada em corporação
pública, em 1927, com a carta real que oficializa o contrato de prestação do serviço.
O sistema inglês de televisão é dos mais complexos que se tem conhecimento,
operando com uma estrutura mista de canais públicos e privados. Inicialmente, o modelo
adotado foi o público; a BBC iniciou suas transmissões regulares no ano de 1936. Quatro
anos depois, o serviço interrompia suas operações com o começo da Segunda Guerra
Mundial. Na década de trinta, a programação da BBC era composta de eventos públicos,
peças de teatro, ópera e cartoons infantis. Em 1939, o desenho Mickey Mouse estava sendo
exibido no exato momento em que as transmissões televisivas foram interrompidas, por
questões de segurança. Após quase sete anos fora do ar, em 8 de junho de 1946, este
mesmo desenho marcou a volta das transmissões regulares da BBC reaberta para cobrir a
Parada da Vitória (BBC History, 2000).
Seis anos após o final da Guerra, o Partido Conservador assumiu o poder e optou por
estabelecer um canal comercial para concorrer com a BBC. A decisão pelo estabelecimento
de um segundo canal de televisão não significava que o Estado estava retirando poderes da
BBC. Pelo contrário, o Partido Conservador via com bons olhos projetos como o de
alfabetização de adultos, e estes estavam em total conformidade com a lógica do Estado de
Bem-Estar Social que, neste período pós-guerra, estava se tornando hegemônico
mundialmente.
Assim, também não é por acaso que o fim do período de exclusividade na operação
de televisão da BBC coincide com o início da audiência massificada do veículo. Se em 1939
o público televisivo não passava de alguns milhares, em menos de uma década, após o
retorno das operações, este público estava multiplicado e os costumes culturais começaram
a mudar no Reino Unido. Um evento que marcou o início destas mudanças foi a coroação da
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rainha Elizabeth II, em 1953. Pela primeira vez na história, as portas da abadia de
Westminster foram abertas para a transmissão ao vivo assistida por 20 milhões de súditos
(BBC history : 2000).
Paralelamente, o relatório de análise da imprensa entre os anos de 1947 e 1949,
apresentado ao Parlamento pela autoridade Real, através da Royal Commission on the
Press, trazia as indicações das funções sociais que deveriam ser aplicadas aos veículos de
comunicação. Segundo o resumo elaborado por Peter Golding e Graham Murdock, a
Comissão Real define que:
362. A forma democrática de sociedade demanda dos seus membros uma participação ativa e inteligente nos interesses de sua comunidade, seja local ou nacional. Assume-se que eles estão informados bem o suficiente sobre as questões do dia para ter a capacidade de formar os maiores julgamentos requeridos para uma eleição, e manter entre as eleições a vigilância necessária naqueles cujos governantes são criados e não seus mestres. Cada vez mais, [a forma democrática] exige uma participação alerta e informada não apenas nos processos puramente políticos mas também nos esforços da comunidade para ajustar sua vida social e econômica às circunstâncias crescentemente complexas (Golding; Murdock, 1997a : 1548 [tradução livre dos autores]).
O artigo seguinte, n. 363, indica a responsabilidade da imprensa em atender estas
necessidades e inclui o rádio, ainda que secundariamente, no mesmo estatuto. Na década
seguinte, a televisão passou a integrar este processo regulatório. A partir do Television Act,
em 1954, o sistema dual foi implantado para garantir a competição entre canais de
naturezas distintas, pública e privada. Em 1954, com a aprovação do Independent
Broadcasting Act e a inserção de um canal de televisão comercial, inicia-se o período de
duopólio, que duraria trinta e cinco anos. O Reino Unido adaptava-se aos novos tempos, aos
poucos e à sua maneira. Em 22 de setembro de 1955 nascia a ITV (Independent Television),
o primeiro canal concorrente da BBC; em 1957, a Rainha transmitia pela primeira vez sua
mensagem de Natal e, neste mesmo ano, o chamado Toddlers' Truce, que impunha uma
hora de interrupção nas transmissões entre as 18 e 19 horas para que os pais levassem as
crianças para a cama, foi extinto.
8 A referência original deste texto é HMSO for exerpts. Royal Commission on the Press 1947-1949. Cmnd. 7700. Utilizamos aqui a versão apresentada no primeiro volume da coletânea The Political Economy of Media, editada por Peter Golding e Graham Murdock (p. 154-164).
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Aliado aos preceitos de forte controle da mídia no capitalismo fordista, o precoce
aparecimento da televisão comercial na Inglaterra, se comparado com os demais países da
Europa Ocidental, fez com que o controle sobre o sistema televisivo fosse muito rígido. As
empresas produtoras de programas eram escolhidas pela autoridade de controle, e seus
contratos não seriam renovados se fosse verificado um resultado negativo dos programas
contratados. Outra disposição adicional requeria que uma 'proporção adequada' dos
programas fossem de origem britânica, o que impedia o predomínio da programação
americana. Não se podia incluir nos programas nada que fosse lesivo ao bom gosto e à
decência ou suscetível de fomentar ou incitar ao delito ou conduzir à desordem ou ofender a
sensibilidade do público. Alguns anos depois, a BBC manifestou a aceitação voluntária de
tais princípios de boa conduta.
A regulamentação inglesa, com o passar do tempo, organizou-se de acordo com as
tecnologias de distribuição de conteúdo. Segundo Forgan e Tambini (2000), as regras foram,
aos poucos, sendo elaboradas para atender às expectativas dos consumidores de acordo
com suas diferentes finalidades. Até pouco tempo coexistiam diferentes regras de conteúdo
para as televisões, o rádio e a indústria cinematográfica compostas por instrumentos legais
diversos que incluem exigências estatutárias diretas, poderes compulsórios dados a um
regulador, exigências das franquias ou licenças e códigos de conduta regulamentares ou
arbitrários.
De acordo com os autores, o neoliberalismo e a larga ampliação do volume das
produções televisivas foram responsáveis por um deslocamento no sistema de
regulamentação britânico. Com as normas tradicionalmente estabelecidas para a
radiodifusão - especialmente a televisão aberta - o governo exercia um controle prévio do
conteúdo a ser exibido. Com a expansão tecnológica do setor, cada vez mais, firmou-se um
sistema de controle governamental pós-transmissão, baseado nas reclamações dos
telespectadores, e, paralelamente, foram surgindo instâncias de auto-regulamentação do
setor, baseadas na competitividade do mercado (Forgan e Tambini, 2000 : 03).
Podemos dividir os serviços de televisão, em funcionamento na Inglaterra, em três
categorias genéricas: 1) a televisão aberta, subdivida em cinco canais públicos, privados e
mistos; 2) a televisão por assinatura (cabo e satélite); e, 3) as televisões por Internet. A partir
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deste cenário intenso, formou-se um complexo sistema de regulamentação composto por
órgãos reguladores e códigos de conduta cujas funções se perderam na fragmentação ou na
sobreposição como pode ser observado no quadro a seguir.
Figura 3: Órgãos Reguladores em relação ao conteúdo televisivo até 2003
Santos, Suzy; Silveira, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. IN: RAMOS, Murilo C.; SANTOS, Suzy. Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. p. 49-82.
Órgão Principais funções em relação ao conteúdo TVBBC Board of Governors Conselho de gestão da BBC, responsável pelo
cumprimento das exigências para o Serviço Público, pela garantia da independência em relação ao governo, pelas políticas e estratégias de ação, por monitorar a performance dos canais e das reclamações de telespectadores, e, por garantir a transparências destes processos.Auto-regulamentadora.Elabora relatórios periódicos das reclamações.Elabora códigos de conduta editorial para produtores independentes e para a BBC Internacional.
British Board of Film Classification (BBFC)
Agência independente, não governamental, criada pela indústria cinematográfica, em 1912.Classifica filmes, vídeos, jogos interativos e todo o material de divulgação referente a estes produtos.
Broadcasting Standards Commission (BSC)
Agência independente, financiada pelo governo e pelas empresas de comunicação, cujo objetivo é fiscalizar o cumprimento dos Broadcasting Acts.Monitora e tem poder de negociação com os canais para as reclamações dos consumidores de televisão pública e privada, aberta e por assinatura tanto em relação à programação quanto à publicidade.Elabora relatórios anuais para os outros órgãos reguladores.Elabora códigos de conduta.Responsável pelas pesquisas oficiais sobre recepção televisiva.Não tem poder de sanção.
Independent Television Commission (ITC)
Agência governamental que regula e controla as licenças de todos os serviços de televisão privados, abertos ou por assinatura, nacionais ou internacionais recebidos no Reino Unido.Elabora códigos de conduta (ITC Programme Codes) sobre a programação, publicidade e patrocínios veiculados na televisão comercial.Tem poder de sanção, desde advertências até a cassação das licenças.
Office of Fair Trading (OFT) Agência independente para a regulação e proteção ao bom funcionamento do mercado.Atua como uma entidade de proteção ao consumidor para compras feitas por telefone, Internet, televisão digital etc.
Office of Telecommunications (OFTEL) Agência independente da indústria das telecomunicações. Monitora todas as licenças de telecomunicações e a qualidade técnica de distribuição de serviços como video-on-demand, cabodifusão, satélites, etc.
Radiocommunications Agency Agência executiva do Departamento de Comércio e Indústria. Formula as políticas públicas para o espectro eletromagnético.
Santos, Suzy; Silveira, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. IN: RAMOS, Murilo C.; SANTOS, Suzy. Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. p. 49-82.
Welsh Fourth Channel Authority Conselho de gestão dos canais públicos do País de Gales, responsável pelo cumprimento das exigências para o Serviço Público, pela garantia da independência em relação ao governo, pelas políticas e estratégias de ação, por monitorar a performance dos canais e das reclamações de telespectadores, e, por garantir a transparências destes processos.Auto-regulamentadora.Elabora relatórios periódicos das reclamações, guias de conduta editorial para produtores independentes.
Em dezembro de 2000, o governo inglês publicou um documento com as propostas
para a unificação da regulação do setor de comunicações em uma única agência intitulado
The Communications White Paper - A new future for communications. Este documento
propunha a criação de uma agência independente, a Office of Communications, que
agruparia as funções da BSC, do OFTEL, da ITC, da Radio Authority e da
Radiocommunications Agency.
Depois de quatro anos de preparação, a Office of Communications começou a operar
em 2003 agregando cinco organismos anteriormente consolidados. São eles: 1) a BSC,
Broadcasting Standards Commission; 2) a ITC, Independent Television Commission; 3) o
OFTEL, Office of Telecomunications; 4) a Radiocommunications Agency; e, por fim, 5) a
Radio Authority.
Também o conceito de Serviço Público foi se degradando no ambiente britânico.
Segundo Graham Murdock, nas sociedades capitalistas modernas, o papel das
comunicações está em conectar o sistema produtivo, baseado na propriedade privada, ao
sistema político que pressupõe uma cidadania cuja participação social efetiva depende, em
partes, do acesso à maior gama possível de informação (Golding; Murdock, 1997a : 3119). O
problema estaria em equacionar como um sistema de comunicações dominado pela
propriedade privada poderia garantir a diversidade de informação requerida para uma
cidadania efetiva.
9 A referência da primeira publicação do texto é: MURDOCK, Graham. Redrawing the Map of the Communication Industries : concentration and ownership in the Era of Privatization. In: FERGUSON, Marjorie (Ed.). Public Communication. The new imperatives: future directions for media research. Londres: Sage, 1990, cap. 1. p. 1-15. Utilizamos aqui a versão apresentada no primeiro volume da coletânea The Political Economy of Media, editada, em 1997, por Peter Golding e pelo próprio Graham Murdock (p. 308-323).
Santos, Suzy; Silveira, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. IN: RAMOS, Murilo C.; SANTOS, Suzy. Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. p. 49-82.
Contudo, a interconexão definida por Murdock permite apenas um retrato panorâmico
do conceito de Interesse Público que justificou hegemonicamente o controle prévio dos
conteúdos pelo Estado na regulação tradicional das comunicações10. Naturalmente, sabe-se
que as diversas formas de aplicação de conceitos no capitalismo são passíveis de
questionamentos, como apontam John Keane (Golding; Murdock, 1997b : 621-66711) e
James Curran (Golding; Murdock, 1997b : 64-9912). Pode-se dizer que o sistema britânico foi
o modelo que melhor garantiu o status de Serviço Público com múltiplos instrumentos de
proteção aos interesses dos consumidores.
Considerações Finais
Cabe agora voltarmos à essência do conceito de Serviço Público, presente na noção
de universalidade do modelo britânico. O que significa dizer que um serviço é público? O
primeiro ponto que surge é o conceito de relevância à coletividade, mas que ainda é pouco
para diferenciá-lo da definição de Interesse Público. Não há um Serviço Público por
natureza. Segundo Grotti:
A qualificação de uma dada atividade como Serviço Público remete ao plano da escolha política, que pode estar fixada na Constituição do país, na lei, na jurisprudência e nos costumes vigentes em um dado momento. Deflui-se, portanto, que não há um Serviço Público por natureza (GROTTI, 2003 : 45).
Existem, porém, razões que levam o Estado a conduzir determinado serviço para a
área pública. Dentre elas: “retirar da especulação privada setores delicados; realizar a justiça
social; suprir carência da iniciativa privada; favorecer o progresso técnico, ordenar o
aproveitamento de recursos finitos (como os hidroelétricos); controlar a utilização de
10 Othon Jambeiro enumera sete funções que historicamente justificaram a intervenção estatal no processo regulatório: a) assegurar a liberdade de informação; b) proteger a propriedade intelectual; c) regular o intercâmbio de serviços; d) regular as comunicações de massa; e) regular as telecomunicações; f) regular a indústria e os serviços de informação; e, g) garantir o acesso público às informações que sejam essenciais ao exercício da cidadania (2000 : 22-23). 11 A referência original deste texto é KEANE, John. Public Service Media? In: The media and democracy. Cambridge: Polity Press, 1991, p. 116-162. Utilizamos aqui a versão apresentada no segundo volume da coletânea The Political Economy of Media, editada por Peter Golding e Graham Murdock.12 A referência original deste texto é CURRAN, James. Capitalism and Control of the Press, 1800-1975. In: CURRAN, James; GUREVITCH, Michael; WOLLACOTT, Janet (eds.). Mass communication and society. [s.l.]: Edward Arnold/Open University Press, 1977, cap. 8, p. 195-230. Utilizamos aqui a versão apresentada no segundo volume da coletânea The Political Economy of Media, editada por Peter Golding e Graham Murdock.
Santos, Suzy; Silveira, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. IN: RAMOS, Murilo C.; SANTOS, Suzy. Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. p. 49-82.
materiais perigosos (como potenciais nucleares); favorecer o rápido desenvolvimento
nacional; manter a unidade do país e assim por diante” (GROTTI, 2003 : 45).
É verdade que nem todas estas razões se aproximam dos serviços de comunicações,
mas alguns pontos são bastante afins, como é o caso do aproveitamento de recursos finitos
(que pode se aplicar à questão do espectro) e do favorecimento do progresso técnico, muito
importante para um setor que tem como seu suporte a tecnologia. Manter a unidade nacional
também passa pelos serviços de comunicações e ainda a questão da justiça social que está
diretamente ligada ao conceito de universalização. As comunicações, portanto, contêm em
suas características princípios que podem levar um Estado a colocá-laa no rol dos serviços
públicos.
Mas ser conceituado como Serviço Público, não exclui a possibilidade da existência
privada na prestação de um serviço. Existindo assim a classificação de Serviço Público
privativo e não-privativo do Estado (GROTTI, 2003 : 47). Se um serviço não é, por natureza,
público, ainda assim ele tem, em sua natureza alguns princípios, como os elencados por
Grotti.
Dependência governamental (…), igualdade dos particulares perante todos os serviços públicos, a continuidade de seu funcionamento e a adaptação ou modificação em todo momento de sua organização; além da regularidade, generalidade, obrigatoriedade, generalidade, obrigatoriedade de prestação, neutralidade, cortesia, gratuidade, legalidade, isonomia, eficiência, transferência, segurança, qualidade,modicidade nas tarifas, pontualidade, responsabilidade, conforto (2003 : 48).
Conceitos que diferem um pouco de abordagem a abordagem, mas que mantém um
conjunto de propriedades semelhantes às listadas acima. O Serviço Público não privativo do
Estado seria aquele que poderia ser cumprido pela iniciativa privada, sob autorização,
permissão ou concessão, conceituação jurídica que não é necessário aqui delimitar. Basta,
ao nosso estudo, a compreensão que o Serviço Público compreende uma série de
características, como as elencadas acima e pode ser explorado de maneiras flexíveis, entre
o Estado e a iniciativa privada, conforme vimos.
A natureza dos serviços de comunicações, verificada nos modelos consagrados
(americano e europeu), está assim classificada e dividida em duas categorias, tanto em seus
princípios, como no breve relato da maneira como foram estabelecidos os modelos
Santos, Suzy; Silveira, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. IN: RAMOS, Murilo C.; SANTOS, Suzy. Políticas de Comunicação: buscas teóricas e práticas. São Paulo: Paulus, 2007. p. 49-82.
historicamente. A compreensão do que significa dizer Interesse Público ou Serviço Público,
então, implica toda a discussão de modelos destacada neste estudo.
A partir desta comparação, que metodologicamente centraliza o ponto de vista no
papel do Estado, espera-se que ao se utilizar os termos Serviço Público ou Interesse Público
para as Comunicações, não haja sinonímia possível. Se a escolha terminológica é por
Interesse Público, fica claro que são as condições, omissas ou expressas, para a cessão do
espectro à exploração de negócio privado. Ao se usar o termo Serviço Público, claramente
se refere à obrigatoriedade do Estado em garantir um direito aos cidadãos que representa,
seja direta ou indiretamente.
A melhor compreensão desses conceitos adventícios e de seus limites, podem balizar
uma futura análise das políticas de comunicação no Brasil com relação ao que seja o modo
de prestação dos serviços de radiodifusão aberta. É mister examinar a configuração legal no
nosso ambiente para esclarecer a natureza conceitual do sistema brasileiro. Nossa hipótese
inicial, para um próximo trabalho, é a de que o que existe no Brasil é uma espécie de “meio
do caminho” entre o conceito clássico de Serviço Público – tal como originário na
regulamentação britânica – e o conceito mais elástico de interesse, necessidade e
conveniência pública originário da regulamentação dos Estados Unidos.
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