SUBVERSA
VANDER VIEIRA | YURI CLARO
DAVID COUTINHO | SABRINA DALBELO
GLAUBER COSTA | EDSON AMARO
AULUS MANDAGARÁ MARTINS | SAT AM
MAURÍCIO GOLDANI LIMA | MIGUEL LEAL
Vol. 4 | n.º 08 | maio de 2016 ISSN 2359-5817
Ilustração | MUTES
2
WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 4 | n.º 08
© originalmente publicado em 02 de maio de 2016 sob o título de
Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações
MUTES| BLOG | [email protected]
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados
como autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos
textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem
com a realidade.
3
AULUS MANDAGARÁ MARTINS | [O SUICÍDIO DOS AMANTES]|6
DAVID COUTINHO | ARRANHA-CÉU | 8
EDSON AMARO | MADAME SATÃ | 10
GLAUBER COSTA | O MONSTRO FAMINTO | 12
MAURICIO GOLDANI LIMA | UMA BARATA POR DIA | 15
| O EXAME | 20 MIGUEL LEAL
| TRANSCEDÊNCIA | 25 SAT AM
SABRINA DALBELO | FIM DE MIM| 27
VANDER VIEIRA | DESCAMINHO | 29
YURI CLARO | ABRAÇO | 32
SOBRE MUTES: "São danças de uma mão que desenha de
forma despreocupada" | 34
SUBVERSA
4
EDITORIAL
A literatura é uma defesa contra as ofensas da vida.
Cesare Pavese, “Il Mestiere di Vivere”
Um procura algo que lhe favoreça as ideias, outro procura algo que as
destrua.
Georges Braque
Gostar de literatura não é uma decisão simples. Implica se
entregar à possibilidade de se perder em várias direções. Implica
habituar-se à ideia de ter quebra-cabeças na mente, que volta e meia
podem entrar em conflito, questionar a maneira com que os olhos veem
o mundo, as pessoas, a arte e a si próprio.
Gostar de literatura também não é uma decisão temporária. Uma
vez atravessada a linha (ou, como disse Drummond, uma vez “trazida a
chave”), este eterno remontar de peças estará sempre lá, esperando
por novos códigos de montagem, porque gostar de literatura também é
descobrir continuamente novas formas de se comunicar e de ser
comunicado das coisas. Gostar de literatura é, sobretudo, criar um
código próprio de entender e expressar a relação com a realidade,
encontrar uma forma autêntica de viver.
Este número está fragmentado, tanto pela série de textos que
falam de corpos despedaçados, fragmentos de sonhos e esperanças
cortadas, como as imagens do artista plástico português Mutes.
Reconhecido pelo trabalho de desconstrução e decomposição dos
elementos da obra, o artista dialoga com a comunicação do
inconsciente, fragmentária das impressões e emoções que dão sentido
ao existir. Tão perplexas como a arte que aqui se apresenta, nós,
editoras, perguntamos:
Quantos cacos poderão juntar essas páginas?
Desejamos a todos uma boa leitura.
As editoras
5
Em breve, Subversa versão impressa #2
6
AULUS MANDAGARÁ MARTINS | Pelotas, RS.
o suicídio dos amantes
cada vez que, na cama
entrelaçados numa estranha morte
mergulham num mar de espasmos
[O SUICIDIO DOS AMANTES]
“O rapaz que oferecia couves à rapariga que tocava viola”, tela de Mutes
7
depois, nada mais
além de dois corpos
devolvidos à vida
na praia branca dos lençóis
AULUS MANDAGARÁ MARTINS é professor de literatura na Universidade
Federal de Pelotas. Blog: https://aulusmandagaramartins.wordpress.com
8
DAVID COUTINHO | Rio de Janeiro, RJ.
Observava através das janelas o movimento da vida do lado de
fora. A gravata apertava seu pescoço, sua fé afrouxava a imaginação.
Sentia que mesmo numa cadeira giratória, se fechasse os olhos, poderia
girar pelo mundo. O sol já se preparava para dormir, uma vista
maravilhosa, senão fossem os prédios em volta. De terno amarrotado, só
queria descalçar os pés e se jogar na cama macia. Por hora,
continuava observando toda profusão de pensamentos dentro de si. Ali
pôde notar coisas grandiosas, de maneira que não seria possível
ARRANHA-CÉU
“O burguês no 25 DES`Abril de 2015”, tela de Mutes
9
mensurar. Descobriu um verdadeiro mundo por trás dos seus próprios
olhos. Nunca tinha se visto tão de perto, era assustadora a precisão dos
traços. Sentiu vontade de respirar o mormaço da chuva quente que
antes limpou as janelas. Prensado pelo paletó que não lhe dava
descanso, somente inquietação, seu corpo se consumia enquanto
tirava as roupas e saltava em pares os degraus para cobertura; era mais
rápido subir, estava nas alturas, num arranha céu. Decidiu que arranhar
o céu não seria apenas uma regalia dos prédios de concreto. Todo
limite e falha por trás das janelas irrompiam naquele lugar. Correu sem a
preocupação que lhe seguia tombar, e da beira saltou para imensidão
azul: sem gravata, paletó ou janelas. Vislumbrou o sol enquanto pairava
no ar. Finalmente arranhou o céu, com suas unhas bem cortadas e
polidas. Em tanto tempo de existência, pensou consigo, aquele imenso
azul jamais recebeu melhor carinho.
DAVID BARRETO COUTINHO é professor e pesquisador por ofício, escritor por
prazer. É formado em História e possui mestrado em História Política, tendo
assim alguns artigos publicados em revistas especializadas nesse meio.
Atualmente, dedica-se a pesquisas na área de Ciência da Informação e a
divulgação de seus textos literários. | [email protected]
10
EDSON AMARO| São Gonçalo, RJ.
MADAME SATÃ
“(DES) Cubismo Contornismo n.º 29”, Tela de Mutes
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Para o bloco carnavalesco “Planta na Mente”
Vi Madame Satã no carnaval
Dançando sem camisa. Que deleite
O umbigo apetitoso, cor de azeite
De dendê esse corpo escultural!
Lábios rubros, bigode fino, qual
Folião que seus beijos não aceite?
Qual cavalo em que um santo bem se ajeite
Girava e se torcia em espiral.
Sambou da Lapa à Praça Tiradentes,
A pele encharcando de suor,
A saia abanando as coxas quentes...
As cinzas dessa Quarta já desfeitas
Das lembranças me restas a melhor,
Travesti que meu bloco bem deleitas...
(11/2/2015)
EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública
estadual do Rio de Janeiro. Publicou pela editora Buriti sua tradução do
romance “Valperga”, de Mary Shelley | [email protected]
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GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.
Naquele tempo, ouvia-se muito falar sobre um monstro que
perambulava nos arredores do vilarejo. Os aldeões, todas as noites,
faziam uma fogueira na parte central da vila, como uma promessa aos
deuses, em troca de proteção. Porém, seja pela consciência dos sábios,
O MONSTRO FAMINTO
“Já cheiram mal há muito”, tela de Mutes
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seja pela natureza de toda imaginação sobrenatural, todos tinham em
mente que, a misericórdia dos deuses é pouca e, por isso, um dia
aquele monstro iria invadir tudo e destruir a todos, indubitavelmente.
Apesar disso, o dia a dia na vila era controlado. Tarefas eram bem
divididas e disciplinadamente cumpridas. Homens e mulheres juntavam-
se nas colheitas, na caça e nas atividades domésticas. E no final das
tardes, todos levavam metade de toda a produção, pública ou
particular, para ser oferecida aos deuses, na fogueira.
A vida ali era uma tentativa coletivamente sóbria de adiar a
morte. No entanto, dentro dos lares, tinha certa tensão. À noite, em
algumas cabanas, havia sempre alguma discussão na divisão da
comida, que sobrava sempre pouca, do trabalho coletivo. Em outras,
via-se demonstrações melancólicas de sacrifícios e de generosidade
em prol dos mais jovens. Mas ainda assim, a fome se fazia sempre
presente.
De umas noites para cá, uma das cabanas estava mais
tumultuada do que as outras. Isso porque havia nascido um choroso
bebê. E a sua chegada dava naquela gente um misto de alegria e
apreensão, visível pelas sombras que a grande fogueira fazia daquelas
pessoas à noite. Em uma dessas noites habituais, uma daquelas sombras
se destacou do aglomerado que se fazia na casa da nova criança. Era
a mãe.
Chorosa e aflita, ela saíra de perto das bocas cheias de ameaças
em sua casa. E caminhara em direção à fogueira, que já ardia a todo
vapor.
Deitou o menino raquítico no chão e sentou-se, tristonha. Foi
quando viu uma movimentação por trás da fogueira. Alguns aldeões
estavam jogando madeira no fogo. Porém, aguçando a visão, a mulher
conseguiu ver sob a luz trêmula do fogo, outros carregando os recursos
destinados às oferendas para longe da fogueira. Desesperou-se. Correu,
berrando, a denunciar o desvio de recursos, a fim de solucionar a fome
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do filho, que acabara deixando ali no chão, no impulso de ter, enfim,
encontrado a impossível saída. Sem nem mesmo pensar que isso
implicaria no questionamento ao sistema de crença de toda a sua
terra.
Os gritos da mulher alarmaram o povoado. Todos saíram com
armas na mão, e alguns até gritaram, jurando terem visto o monstro
invadindo a vila. Toda a confusão despertada suprimia a voz da mulher,
que se confundia com a amálgama de gente para todo lado. Até que
um tiro unificou a visão de todo mundo. Era na direção da mata.
Outro tiro, no mesmo lugar, despertou um urro grotesco. Muitos,
então se ajoelharam, suplicando aos deuses piedade. Fez assim
também a mulher, apavorada e sentindo-se absolutamente culpada
pelo despertar do carrasco de todos. Quem não ajoelhou fugiu para
sempre ou foi na direção do berro monstruoso. Alguns desses últimos,
exaltados, apontavam, aflitos, marcas de garras enormes nas árvores e
acabaram ajoelhando-se também. Apenas um homem e uma mulher
sobraram de pé, anunciando terem visto a cara do demônio, e gelaram
paralisados de pavor.
Todos, então, escutaram os berros da fera, cada vez mais altos e
agoniantes, em seu anúncio definitivo do fim daquele povoado. Até
que cessou. Fez-se um silêncio medonho. Após alguns minutos de
angústia resignada, aos poucos, as pessoas começaram a se levantar,
perscrutando se havia ainda vida neles próprios e no lugar, quando
viram o monstro caído, todo ensanguentado e despedaçado no chão,
e por cima dele a criança recém-nascida, devorando-o, com
ferocidade faminta, pedaço a pedaço, a saciar a sua fome.
GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”,
ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou o conto
“Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte do primeiro volume
impresso. Escreve no blog glauber-manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage
do Facebook chamada Manuscritos. | [email protected]
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MAURICIO GOLDANI LIMA | Cachoeirinha, RS.
Um leão por dia
não é um desafio realista
Primeiro porque nunca vi um leão
Segundo:
todas as pessoas que conheço e que viram um leão
o viram em uma jaula de zoológico
doente e mal alimentado
(ninguém tem grana pra um safari na África)
Então, mesmo que fosse um desafio realista
matá-lo não seria difícil
Nos safaris envelhecem e morrem sem nossa ajuda
então pra que interferir?
UMA BARATA POR DIA
“Manifestações Subversivas”, tela de Mutes
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Aqui, para matá-los a negligência
e indiferença nossa
de cada dia
basta
Com baratas o caso é diferente
a negligência as atrai
surgem quando menos se espera
quando estamos distraídos
cuidando de nossas vidas
São rápidas, ariscas
voam, fogem, se escondem, voltam
Claro,
baratas não inspiram tanto medo quanto leões
- embora alguns possam discordar –
e matá-las não é um grande ato de coragem
- idem –
mas
sim
são as pequenas coisas
que podem levar um homem gradativamente à insanidade
como matar baratas todos os dias
ou manter a casa limpa
para que elas não venham
Enquanto escrevia
uma barata surgiu pelo lado do colchão
tomei um susto
e derrubei o copo de vidro que segurava
estilhaçou-se no chão
A dificuldade depois
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foi matar o ágil inseto sem cortar meus pés descalços nos cacos de
vidro
Outro dia
quando fui ao banheiro
vi que havia esquecido um copo sujo na pia
- onde lavo a louça por falta de uma pia no quarto/sala/cozinha –
nele jazia uma barata morta
afogada
Despejei a água no vaso
e puxei a descarga
Ela não afundou
Naquela semana
a casa ficou fedendo
e desconfiei que havia sido por causa da barata
embora possa estar errado
Ela só afundou depois que a enrolei em papel higiênico
Teve também a vez
que eu estava sentado no vaso
cagando
só de cueca e meias
quando uma barata surgiu serpenteando por entre meus pés
Não entendi se ela queria fugir
me atacar
ou se só estava confusa, perdida
Fiquei na dúvida
sacolejando meus pés para lá e para cá
numa espécie de samba que se faz cagando e sentado
ora desviando
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ora tentando acertá-la
até que ela fugiu pelo vão da porta
Matei-a apenas após
no corredor que dá para a rua
mas pode muito bem ter sido uma outra barata qualquer
Numa outra ocasião
estava cozinhando
e uma barata caiu dentro da panela de arroz
A dificuldade
além de tirá-la de lá e tentar matá-la
foi decidir se jogava o arroz todo fora
ou se tentava cuidadosamente selecionar
os grãos de arroz intocados pelo sujo animal
Sim
são as pequenas batalhas
As batalhas sujas
que não são contadas
As baratas sujas
que surgem nos sujos cantos
por entre os vãos das paredes
Hoje eu dormia
quando na escuridão
você surgiu
rastejando com suas minúsculas patinhas
sobre meu rosto
Acordei de sobressalto
e ainda meio desacordado
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joguei meu chinelo tentando acertar
Errei
Você fugiu
acho que tão assustada
quanto eu
e se escondeu em alguma fenda da parede do meu quarto vazio
MAURICIO GOLDANI LIMA esqueceu o lirismo no chão do quarto. Baratas
levaram para o ninho no esgosto. Para alguns escrever é uma espécie de
parto. Para ele é uma espécie de aborto. |
20
MIGUEL LEAL| Loulé, Portugal
O EXAME
“Coluna Central de um (des) governo corrupto”, tela de Mutes
21
Obrigado Maurix!
António L. tremia as pernas enquanto esperava diante do gabinete do
juiz dos serviços de vigilância do cidadão. As algemas, que sufocavam
qualquer movimento seu, chocalhavam com a mesma frequência dos
seus tremores. Este nervoso miúdinho que costumava invadir qualquer
prisioneiro devia ser algo a que o guarda que o vigiava já se habituara,
tanto que bateu com o bastão na palma da mão e apontou-o para L..
- Não te iludas. - disse ele.
O prisioneiro levantou a cabeça, cruzando o olhar com o do vigilante.
- O que há para iludir-me? - perguntou L..
- A tua memória. - disse o guarda, e depois perguntou: - Nunca leste o
livro do senhor juiz?
- Não sabia que tinha escrito um livro. - respondeu L.
- É mais um manual de direito, mas escreveu. Nunca o li, pelo que te vou
contar apenas o que me disseram. - informou o guarda. - Está no livro
do senhor juiz escrito assim: "Aparece-me um homem a quem, por
ordem superior, fora indulgenciado. Contudo, é sabido que a
indulgência não significa libertação. O prisioneiro tem que ser
interrogado por um juiz da vigilância do cidadão, onde o primeiro, por
intermédio da consulta do diário que descreve cada acontecimento
da sua vida, deve encontrar e estar ciente do episódio primeiro que o
levou a cometer o crime."
L. interrompeu o guarda prisional:
- Quem é que escreve esse diário?
- São os serviços de vigilância do cidadão. A cada pessoa está
atribuída um vigilante que regista tudo o que faz num diário. Por
exemplo, o seu tem o título de "Diário do Cidadão António L.". - disse o
guarda. Depois, prossegue a contar a história do manual do juiz. - O
senhor juiz continua lá escrevendo assim: "Portanto, tenho o homem
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sentado do outro lado da secretária, à minha frente, procurando no seu
diário o tal episódio. Folheia aquelas páginas dactilografadas, algumas
delas amareladas, e, a certa altura, aponta para um parágrafo e
procura-me o olhar em busca de confirmação. Abano a cabeça e
explico-lhe que é possível que não tenha sido esse episódio a
desencadear o crime. "Mas foi aqui que disparei a pistola", diz ele. Peço
então que procure o episódio anterior, aquele que causou o disparo da
pistola. Folheia o livro durante mais alguns minutos, e aponta para uma
frase. Sei qual é o episódio, e pergunto-lhe, "Tem a certeza?". "Foi aqui
que me apaixonei por ela", diz ele. Insisto, "Mas, tem a certeza?". Ele
responde-me, "Certeza, certeza, não tenho...". "Sem a sua certeza nada
posso fazer", digo-lhe. Acendo um cigarro e fico observando o homem
enquanto folheia o seu diário por mais uma hora. Está calor e as gotas
de suor escorregam-lhe pela testa até empaparem as sobrancelhas.
Pouco falta para que estas também pinguem suor para o papel.
«Eis que me aponta para outro episódio, mas antes que eu lhe pergunte
se tem a certeza, refere outro episódio anterior ao que acabara de
referir, e depois outro ainda mais anterior, e por aí adiante até atingir
uma conclusão. "Por isso, está a dizer-me que matou-a porque nasceu,
ou, reformulando, que foi o episódio do seu nascimento que provocou a
morte da mulher?, pergunto. "Foi isso mesmo que disse", responde o
prisioneiro. "Está certo disso?". "Sem dúvida.". "Portanto, só para que não
restem dúvidas, se você não tivesse nascido a mulher não teria morrido.
Confirma?". "Confirmo". "Pois bem, pode ir embora. Logo saberá a
minha decisão", digo-lhe enquanto apertamos as mãos. Nota-se o alívio
do homem através de um expiro seu.
«O guarda entra dentro do gabinete para o levar, por fim. Então, fecho
o seu diário e volto a guardá-lo na estante. Se o prisioneiro afirma que o
motivo do crime, e, por consequência, da prisão, foi ter nascido, então
23
não posso assinar a sua liberdade. Riscar o seu nascimento do diário
seria apagar todo o registo enquanto cidadão, e como se o matasse.
Ora, nenhum cidadão deve permanecer no anonimato."
António L. continuava a olhar o guarda, e perguntou-lhe:
- Mas não é a função do senhor juiz eliminar do diário o episódio da
nossa vida que favoreceu o crime, e, como tal, libertar-nos?
O guarda soltou uma gargalhada, e disse:
- Pareces-me um tipo às direitas, e é por isso que te conto isto. Não estás
a perceber. O problema é que o senhor juiz influenciou a decisão do
prisioneiro. Repara que o prisioneiro não se consegue decidir porque
aquilo que lê no diário não coincide com as memórias que guarda.
- Diz que o diário está errado?
- Não. Nós é que podemos falsear as nossas próprias memórias com o
decorrer do tempo.
- Então é por isso que o homem não tem a certeza de nenhum dos seus
episódios, a não ser ter nascido?
- Exacto. - diz o guarda. - Não está sequer certo de que se de facto
matou a amante.
- Ou seja, nem sabe por que está preso. - concluiu L.
- Ora, era aí onde queria tu chegasses. Se a culpa é de ter nascido, logo
não tem consciência do verdadeiro motivo para estar preso. Ora,
libertar um homem que não sabe por que razão cometeu um homicídio
é tão grave quanto perigoso.
No momento em que António L. e o guarda prisional terminam o
diálogo, a maçaneta gira e a porta abre-se. Sai um outro prisioneiro
acompanhado de outro guarda que o leva corredor afora.
- Seguinte! - grita o diretor dos serviços de vigilância do cidadão,
escondido no fundo do escuro do gabinete, sentado atrás da
secretária.
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O guarda prisional ajuda L. a levantar, pisca-lhe o olho, e entram no
gabinente. Entretanto, a porta fecha-se para entregar a mais um
prisioneiro o exame de acesso à liberdade.
MIGUEL VIEGAS LEAL tem 20 anos, é de Loulé, Algarve, mas actualmente
estuda na Universidade da Beira Interior, Covilhã. Começou a escrever aos 14
anos, logo que compreendeu que através da escrita podia acessar mundos
que de outra forma seriam impossíveis de visitar. Tem contos publicados em
vários sítios na internet, além de livros infantis em fase de edição nos EUA, em
português e inglês. Obteve uma menção honrosa no II Concurso Literário
Francisco Guerreiro, na vertente de prosa, com o conto "a menina que queria
desafinar". Espera aprender a escrever cada vez melhor e que possa fazê-lo
por muitos anos vindouros. | [email protected]
25
SAT AM | Curitiba, PR.
Nessa carcaça vazia os vermes fizeram morada,
Naquilo que um dia foi um alguém.
Essas gotas frias de colossal magnitude se chocam contra o
solo,
E o estrondo que se ouve é ensurdecedor,
Assim como um dia minha voz no escuro,
Chocou-se contra o vácuo produzido pelo limbo do
esquecimento.
TRANSCENDÊNCIA
“(DES) Cubismo Contornismo n.º 26”, Tela de Mutes
26
Ninguém me notou, andando entre sombras perdidas de um
cosmos vazio.
A matéria negra exalada de minha boca criou novas mortas
estrelas,
E o caos que pôde ser visto em cores translucidas; verde,
amarelo,
A fosforescência assombrosa que leva ao delírio do “o que
existe lá?”.
E agora esse exuberante timbre que rasga meus tímpanos.
Você não sabe sobre os horrores que me visitam em sonhos
de loucura,
Não imagina as abominações que me foram apresentadas,
Sequer pode imaginar aquilo que da escuridão ronda meus
dias,
E me leva a esquecer...
Onde aquele pássaro fora pousar?
Ele ainda vive, ou apenas continua vagando entre planetas
antigos?
Circundando-os em velocidade sônica,
Deixando para trás seu rastro de penas vermelhas caídas
sobre constelações.
SAT AM é estudante de Letras-Japonês da Universidade Federal do
Paraná. Desde que se entende por gente, escreve poesia/músicas
como válvula de escape. Seus textos sempre estão carregados dos seus
pensamentos: Ódio, raiva, terror, luxúria, são temáticas recorrentes nos
meus trabalhos. | [email protected]
27
SABRINA DALBELO | Bento Gonçalves, RS.
Num berçário de crianças mortas
Almas reféns repousam em luto
Aturdidas atrás das portas
“Pelo meu relógio são horas de pintar”, tela de Mutes
FIM DE MIM
28
Desfiguradas dançam em vultos
Má sorte, ódio, decisões tortas
Não se sabe ao certo qual o tributo
O grande vazio que a vida comporta
Embarreirada no absoluto
Brinquedos coloridos intocados
Lembram a festa que não será
Anunciam ausência de convidados
Beijos frios, abraços não trocados
Cobram uma vida que só passará
Do ventre seco de frutos desejados
SABRINA NUNES DALBELO é gaúcha, graduada em Direito, servidora pública do
Ministério Público Federal e escritora de tudo um pouco. Participa de vários
grupos literários e mantém as páginas do Facebook “Se Tem Nome Existe”,
onde publica contos, poesias e algumas poucas crônicas; e “Pensamento Sem
Moldura”, com aforismos e pensamentos. Já participou de algumas antologias
poéticas pelas Editoras: Poesias Escolhidas (Belo Horizonte), Grupo Pastelaria
Studios (Lisboa – Portugal) e LiteraCidade (Macapá), mas ainda não publicou
seu livro solo. Utiliza-se das dualidades e dos paradoxos para contar as coisas
da vida. Escreve sobre tudo um pouco, e a qualquer momento, e tem como
característica não revisar seu texto, que comumente é postado online, na hora
em que é criado. | [email protected]
29
VANDER VIEIRA | Vitória, ES.
DESCAMINHO
“Não à pedofilia”, tela de Mutes
30
A Luiz Antônio do Nascimento
São indigestas estas veredas:
pedras e facas cegas,
doses de pouco amor.
Se bifurcam pra lá e pra cá
e acolá não se bifurcam:
pedras e facas cegas,
meias palavras, conversa fiada.
Meias palavras,
densas ausências e pesadas
fraturas – passos e mais passos,
os mesmos rumores
e estilhaços:
pedras e facas cegas,
farpas na carne do dedo.
Sai ferido o sangue,
o coração sai em pedaços,
os membros inferiores, pâncreas
e fígado, todo um corpo
maltrapilho, quase sucumbindo:
pedras e facas cegas,
todo um corpo maltrapilho.
Sem riso pelas águas jogadas
escada a baixo,
as águas que não são de rio ou de mar,
31
as águas que já foram minhas águas
e não mais retornarão:
em meio aos escombros do corpo
e da casa,
pregos, cães dilacerados,
em meio aos escombros do corpo
e da casa.
Eu não colherei os frutos maduros
dos teus lábios
tampouco sentirei o teu pulmão
novamente colado ao meu:
por que diabos esperar a primavera
quando já não há mais dia?
VANDER VIEIRA é poeta, mineiro do interior e tem 26 anos.É filho do Luiz e
da Eunice e tio da Maitê. Mestrando em Filosofia pela Universidade
Federal do Espírito Santo - UFES, vive em Vitória/ES desde 2009. Publicou
há poucos meses seu primeiro livro, "Descaminho", pela editora Multifoco
(http://editoramultifoco.com.br/loja/product/descaminho/) e também já
foi publicado pelas revistas Subversa, Samizdat, Diversos Afins e
Mallarmargens. | [email protected]
32
YURI CLARO | Santo Antônio da Platina, PR.
Não permitem as forças que possuo
nos meus braços
te abraçar até que
se despedace
em tantos vocês
numa profusão
de sangue e vísceras
pelo chão,
ABRAÇO
“O homem que praticava descompressão manual na tela”, tela de Mutes
33
meu amor.
mas, se num arroubo desses
que pode por vezes acontecer
a fragilidade da nossa humanidade
me acometesse desumana, tal força
então apertaria cada pedaço
como se dele fosse nascer uma nova você
à moda das caravelas que vivem
em recônditos abissais
no profundo do mar
Cuidaria então
de cada fragmento
para que não apodrecessem
deixaria no gelo, leria-te histórias
e nos pedaços do seu crânio, pentearia
os tufos irregulares cacheados despontando
dormiria entre fragmentos entalhados
dos teus ossos, em fraturas expostas
e beijaria teus coágulos, de dias, manchando as paredes
da nossa sala.
Então, quando me cansasse
e haveria de cansar
abraçaria de volta todos os pedaços
num amontoado
com força, sobrenatural
até ser você de novo.
YURI CLARO é estudante das letras na Universidade Estadual do Norte de
Algum Lugar, passa a maioria do seu tempo a sentar-se em diferentes lugares
e sofrer por esse mundo de hoje. Sua idade não importa, mas se importasse,
teria 19. | [email protected]
34
BLOG | PORTFOLIO | [email protected]
MUTES (França, Margny Les Compiegne, 1976) passou a
viver em Portugal em 1986. Frequentou a escola até ao 12º
ano, onde depois decidiu dedicar-se ao rock and roll. Pintor
autodidata, iniciou a sua carreira nas artes em 2000. Fez
algumas incursões pelo mundo da música e do teatro, foi
baixista da Banda Primitive Noise, e DadaBeat, entre 1995 e
2005. Trabalhou no coletivo de teatro experimental A Traça.
Expõe com regularidade desde 2004 em Portugal e no
Estrangeiro, em exposições individuais ou coletivas. Está
representado em diversas coleções nacionais e estrangeiras
nos 5 continentes. É amante do Cubismo, trabalha a corrente
pictórica (DES) Cubismo Contornismo e as suas inúmeras
Sobre MUTES: "São danças de uma mão que
desenha de forma despreocupada"
35
figuras mutantes e imaginárias numa explosão de cores e
danças de estranhos movimentos. Organiza e projecta várias
exposições, foi fundador e curador dos colectivos de pintura,
M4K1, Um Coletivo no Individual, H.e.x.a e M.O.C.A.
Frequentou alguns ateliês onde aprendeu técnicas do
contornismo, acabando por fundir com a sua forma de fazer
Cubismo. Mutes pinta o estado de espírito, aquilo que o
rodeia, por vezes o momento, a crítica social ou religiosa,
tudo aquilo que lhe serve como força interior para projectar
na tela.
“As influências na minha fase inicial foram sem dúvidas a
escola do grande Jackson Pollock. Com o passar dos anos
desenvolvi o meu próprio traço e a minha forma de pintar. Na
minha colecção designada (Des) Cubismo Contornismo,
busco a desestruturação da obra em todos os seus
elementos. Decompondo a obra através de figuras mutantes
imaginárias, registo os elementos em planos sucessivos numa
visão total da figura, contornando-a nas suas dimensões, sob
estranhas e variadas formas com o predomínio de linhas
curvas e rectas, numa estruturação das figuras e dos objectos
desajustados. São danças de uma mão que desenha de
forma despreocupada, usando o (DES) Cubismo como forma
de se afirmar”.
Mutes
36
PARCEIROS:
37
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais: