Paul Ricoeur: o cogito a jusante das palavras
Mauro Gomes Aranha de Lima
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Str icto Sensu em Filosofia daFaculdade de São Bento do Mosteiro de SãoBento de São Paulo, como requisito parcial paraa obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Área de Concentração: Filosofia
Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva
São Paulo2010
FACULDADE DE SÃO BENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
RESUMO
A presente dissertação pretende situar Paul Ricoeur como um filósofo
contemporâneo tributário das filosofias da representação desde Descartes até
Husserl e particularmente da Fenomenologia. Ante as aporias dessa última e sua
culminação idealista em Husserl, move-se Ricoeur por uma epistemologia
fenomenológica permeável aos aportes da Hermenêutica, visando à consecução
de uma ontologia e ética originais. Mediante o estudo da metáfora enquanto
recurso cognitivo ampliado de acesso ao real, em que a alteridade do significado
e do sentido, na linguagem, aponta para a alteridade imanente da referência,
desvelam-se possibilidades interpretativas fecundas sobre o ser e sobre o agir
humanos, agora referidos a uma identidade em contínuo movimento, una, mas
sempre outra de si mesma.
ABSTRACT
The present dissertation intends to place Paul Ricoeur as a contemporary
tributary philosopher of the philosophies of representation from Descartes to
Husserl and particularly of Phenomenology. Before the aporias of
Phenomenology and his idealistic culmination in Husserl, Ricoeur moves
through a phenomenological epistemology permeable to the contributions of
Hermeneutics, seeking to achieve original ontology and ethics. By means of
the study of metaphor while cognitive resources are enlarged to access the
Real, in which the alterity of the meaning and sense, in the language, points to
the immanent alterity of reference, fertile interpretative possibilities are revealed
about the being and about the acting humans, now referred to as an identity in
continuous movement, joined, but always other than herself.
AGRADECIMENTOS
Professores Maria Elisa de Oliveira, Maria Carolina dos Santos, Silvia Faustino,
Edélcio Gonçalves, Ivo Ibri, Luciano Codato, Mauricio Marsola, Djalma
Medeiros e Luiz Roberto Monzani: palavras são sementes.
Ciça: mais que as palavras, o entredito.
Mario, Virgínia, Natália, Eduardo e Beatriz: não tenho palavras.
A experiência estética compromete sempre um espectador, um
ouvinte, um leitor, também ele numa relação de singularidade
com a singularidade da obra; mas, ao mesmo tempo, é um
primeiro acto de uma comunicação da obra a outros, e
virtualmente a todos. A obra é como um rastilho de fogo saindo
de si mesmo, atingindo-me e atingindo, além de mim, a
universalidade dos homens.
Ir até o fim da exigência de singularidade é dar a maior
oportunidade à maior universalidade: eis o paradoxo que é
preciso provavelmente defender.
Paul Ricoeur, em A crítica e a convicção
É de fato assim, meu caro Fedro. Mas, em minha opinião, muito
mais bela se torna a ocupação nestas matérias, quando alguém,
no uso da arte dialéctica, toma uma alma apta e nela planta e
semeia discursos com entendimento – discursos capazes de vir
em socorro de si mesmos e de quem os plantou, não improdutivos
mas possuidores de gérmen, de que mais discursos nascem em
outros temperamentos e podem tornar para sempre essa semente
imortal, e assim conceder ao seu detentor o mais alto grau de
felicidade que um ser humano pode ter.
Platão, em Fedro, 276e
I INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 7
1. Prolegômenos .......................................................................................................... 72. O tema..................................................................................................................... 93. O método ...............................................................................................................10
II AS APORIAS DO COGITO ..................................................................................13
1. O Cogito inaugural: Descartes .................................................................................132. O Cogito em Kant ..................................................................................................163. O Cogito Husserliano .............................................................................................22
3. a. Suas possibilidades ...........................................................................................223. b. Suas aporias .....................................................................................................333. c. A Fenomenologia não é uma ontologia ............................................................37
4. Breve recuo no tempo: o idealismo alemão ..............................................................42
III PAUL RICOEURDas aporias do Cogito à proposição de uma Fenomenologia hermenêutica .....................52
1. A crítica ao idealismo husserliano ............................................................................522. A Fenomenologia ampliada pelo recurso à Hermenêutica. E de como uma vez ampliada
ela pode aspirar a ser uma Ontologia, sem deixar de ser Epistemologia reflexiva. ......572. a. Heidegger: a analítica da existência como fundamento da hermenêutica ricoeuriana
do eu sou. Ou, o sujeito ontológico em prejuízo da epistemologia. ...................572. b. Duas disciplinas hermenêuticas, antes de Heidegger. Ou, o sujeito epistemológico sob
suspeita e a epistemologia sem sujeito. ...............................................................622. b. 1. A Psicanálise ......................................................................................622. b. 2. O Estruturalismo ................................................................................65
2. c. Existência, Fenomenologia e hermenêutica: aproximações, para a construção dométodo ricoueriano. .......................................................................................662. c. 1. A tarefa que Ricoeur empreenderá parte de duas zonas fronteiriças: a daa.Analítica heideggeriana e a Fenomenologia; e a da b. Fenomenologia com aHermenêutica (enquanto teoria da compreensão, assim como inicialmente explicitadapor Dilthey, para objetos históricos, e acrescida com os aportes posteriores da Linguísticae da Semântica). ..............................................................................................68
3. Dois problemas para a filosofia ocidental: o outro e o tempo. E de como Ricoeur os tornarecurso e marca distintiva de sua própria filosofia. ......................................................75
ÍNDICE
IV UMA TEORIA FILOSÓFICA DA METÁFORAA metáfora viva. A função referencial das metáforas. E de como as palavras, mediante asmetáforas vivas, alargam as possibilidades do Cogito em sua tarefa ontológica. ................81
V A ESTRUTURA, A PALAVRA, O ACONTECIMENTOApercepção e experiência. Repouso e ação. O si-mesmo como um outro. ......................90
1. A diferença e o sentido ............................................................................................902. Articulação com Aristóteles (potência e ato) ..............................................................94
Identidade na alteridade e alteridade na identidade. ..................................................94Quem diz? ..............................................................................................................96
VI A FILOSOFIA DE RICOEURHermenêutica crítico-fenomenológica para um projeto ontológico e ético. ..................97
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 100
7
1. PROLEGÔMENOS
Em uma experiência de silêncio e reflexão, imediatamente antes ou depois
do pensamento, mal se formam as palavras para que disséssemos um ou outro
sentimento. E se quedamos, ainda mais longínquos da expressão pouco a pouco a
emudecer-se, do ente que ainda se mostra, mas já nas fronteiras invisíveis do não-
eu, encontramos a angústia. A montante do antes, ou a jusante do depois, a angús-
tia porque, para Heidegger, já não mais estamos refugiados “no seio dos entes”, e
em que “somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar
suspenso onde nada há que apoiar-se”. A angústia, o nada. Porque “a angústia
manifesta o nada” e porque “ a angústia nos corta a palavra” 1.
Para adiante da dimensão espaço-tempo, assombra-nos o que seja a possibi-
lidade não dizível do pensar. Mas um pensar sem palavras, Metafísica. O pensar
que, no limite mesmo de sua ordem analítica, esvai-se num princípio, ou axioma,
nuclear e irredutível; e, nos limites de sua ordem sintética, na sombra espessa e
inefável de seus confins; o pensar espera por palavras, por palavras e juízos que
possam generosamente se nos dar, palavras-lanças, que empunhadas para lá e cá
no espaço fundo possam ao menos esboçar um sibilo inconformado a ferir o mais
inapelável dos silêncios.
INTRODUÇÃO
1 Cf. Heidegger. O que é metafísica. In Os pensadores, Abril Cultural, p.237-8
I
8
A Filosofia ocidental desde a Grécia ocupou-se primeiro em fundamentar
extensa e reflexivamente o campo do pensado/dito possível, em fundamentos, no
entanto, nem sempre dizíveis senão por um léxico carregado de alegorias e metá-
foras, como a verdade bem redonda em Parmênides e o Fogo, acendendo-se em medidas
e apagando-se em medidas, em Heráclito.
Em Parmênides, se pensar e ser são o mesmo, temos a referência segura de que
todo o pensável indica um estatuto ontológico que lhe corresponde . Inversa-
mente, mas verdadeiro, o que se dispõe a ser captável pelo pensamento, tem o
estatuto de ser. De tal forma que a Filosofia possa se responsabilizar por aquilo
que. pensa e diz. Responsabilizar-se num sentido em que o contra-argumento
que se lhe opõe acerca de qualquer questão não possa ter por fundamento algo
desprovido da mesma responsabilidade, a de que em se dizendo o ser, tal dito se
presuma como real , ainda que o seja nas fronteiras últimas da inteligibilidade, até
os limites irredutíveis do conceito ou da palavra.
Equivale-se a dizer: para se criticar os feitos da Metafísica ocidental até Kant
, há que se ter disposição e compromisso para com um postulado de verdade ao
menos ancorado no critério da adequatio rei e intellectus, nos princípios da identida-
de, da não contradição e da razão suficiente e compromisso para com uma
epistemologia que possa sempre remeter seus argumentos/fundamentos/palavras/
conceitos ao léxico e ao corpo conceitual filosóficos da tradição.
Assim se propõe a fazer o autor que inspira e justifica a presente monografia:
Paul Ricoeur.
E, se, como Heidegger, entendemos o campo do pensado/dito/fundamen-
tado da filosofia ocidental como aquele que se divide entre o pré-moderno, que
provém desde Parmênides e aporta em Descartes, e o da Filosofia Moderna, que
se estende desde Descartes até os prolongamentos contemporâneos do Cogito
cartesiano, serão estes prolongamentos que, na filosofia continental, ainda se es-
tenderão claros até Husserl, passando antes por Kant, e acabarão por ter esmaecidas
9
e apagadas suas marcas e vestígios a partir de Nietzsche. Será, então, nesse último
intervalo, entre Descartes e Nietzsche que vige a filosofia da representação,
em que Paul Ricoeur fundamenta seu pensamento. Entendendo-se por Cogito, a
unidade epistêmica universal operadora da realidade formal e objetiva da coisa
Mundo, a incluir o Homem, e que funda e fundamenta propriamente a Filosofia
moderna desde o século XVII até Nietzsche.
É daí que nosso autor partirá. Fará uma crítica (construtiva) ao Cogito e suas
aporias, seguindo o eixo Descartes/Kant/Husserl, e recusando Nietzsche (o des-
truidor do Cogito por excelência), assim como os prolongamentos franceses deste
último, como Foucault, Derrida e Deleuze, e os demais outros mestres fundado-
res ou operadores da Diferença e da Desconstrução, justamente porque concebe
uma realidade objetiva da verdade e porque pensa que os recursos a serem utiliza-
dos para a busca da verdade e para a crítica legítima da Filosofia ocidental devem
ser os mesmos recursos, ou deles derivados, que os utilizados por ela . De forma
humilde, exaustiva e honesta.
2. O TEMA
Trata-se da necessidade/possibilidade de expandir os limites do Cogito para
além de sua espessura oferecida pelo pensamento/linguagem que pensa/diz a coi-
sa nele representada, sem perder-lhe os fios de ligação, a se ancorarem no Cogito e
dados pela tradição filosófica ocidental, expansão sustentada, para que se construa,
com fundamento, um tal pensar/dizer, qual ponte pênsil a jusante mesmo dos
conceitos/palavras que o inauguram (o Cogito), de tal forma que as palavras mes-
mas e o que elas podem significar sejam estes fios a susterem a ponte/pensamento
que, ainda Cogito (sujeito lógico de conhecimento), é Cogito ampliado e feito um
outro, um outro/mesmo, mediante o poder referencial expansivo das metáforas
(deslocamento ou transporte de significados), que se dirija para o arriscado campo
do irredutível e do inefável, realidades à espera de se revelarem e de serem ditas.
10
Em assim sendo, sendo possível, uma expansão epistêmico-ontológica, mediante
uma Estética, a cimentar a ponte firme e construída entre o homem falível, o da
imóvel opacidade que pensa o pensamento sem tempo e movimento, ao homem
capaz, o do discurso agora semovente (mas ainda filosófico) que se lança e se
imprime em atos de atestação, desde a sua origem e o seu destino, e como ação se
dá em um desvelar-se da ocultação prévia do mundo e da ocultação de um ho-
mem/poiesis, que, potencialmente pode fazer-se a si próprio, um si-mesmo como
outro, resultado fecundo e concreto de uma Ética da imaginação .
3. O MÉTODO
O método é filosófico, embora se nutra da Arte (com destaque, a Literatura)
e de algumas das Ciências (como a Lingüística), como se verá adiante. Resulta em
três livros de sua obra completa, Metáfora Viva (1975), Tempo e Narrativa (1983/
5), e o Si-mesmo como um Outro (1990). Antes dessas obras, Ricoeur abordou
a falibilidade do Homem na sua condição própria e ambígua do agir e sofrer,
falibilidade (o “involuntário”) dada pela sua finitude e vulnerabilidade ao mal e
que assim se apresenta como desproporção entre uma vontade finita (o voluntário
no Homem) e uma involuntaridade infinita, dada pela finitude e pela culpa, des-
proporção esta que é tematizada por uma ontologia e fenomenologia capaz de dar
conta das “fraquezas de um ser exposto ao mal e capaz de fazer o mal”2.
Foi no decorrer dos 15 anos que integram “Metáfora Viva” e O “Si-mesmo
como um Outro”, passando por “Tempo e Narrativa” que o autor construiu o
núcleo de seu pensamento mais sistemático e fecundo, os conceitos e respectivo
léxico filosófico que sustentará e fundamentará sua obra como um todo.
É nestes 15 anos que Ricoeur funda, fundamenta e pratica uma Fenomenologia
hermenêutica. Fenomenologia, porque se admite como uma filosofia da
2 Ricoeur, P. Autobiografia intelectual, in Da metafísica à moral, p.68
11
representação e se desenvolve no campo reflexivo da subjetividade reformado e
alargado por Husserl. Hermenêutica porque acolhe e explora as contribuições da
Hermenêutica: tal como a exegese interdisciplinar dos textos literários narrativos,
desde as narrativas bíblicas às contemporâneas como em Proust, e que se pretende
tributária da Lingüística enquanto Semiótica, a partir de Saussure, e da Lingüística
enquanto Semântica, a partir de Benveniste; e tal como vista por Heidegger e
Gadamer, numa perpectiva mais propriamente filosófica.
Ele mesmo, Ricoeur, diz inserir a Hermenêutica na Fenomenologia. Motiva-
do pela meditação ética sobre a presença do mal na vontade dos homens, e o mal
que progride mediante a dissimulação e a resistência dos homens em reconhecê-lo,
apercebeu-se de que haveria que se inserir maior transparência na opacidade solipsista
do Cogito. Permite, em seu método filosófico, a abertura dos limites cerrados do
campo fenomenológico como instituído pelo Husserl das Idées e das Meditações
cartesianas, uma abertura que, na prática de uma hermenêutica crítica e ancorada aos
fundamentos do Cogito, se dá como abertura ao Lebenswelt, ao mundo da vida, “na
prioridade da intencionalidade ad extra no que respeita à reflexão ad intra” 3.
Naquele tempo, a Filosofia francesa estava em meio a duas tendências pre-
dominantes: a do existencialismo, para Ricoeur tributário de uma leitura mal
orientada de Heidegger, e em que fora dos limites do ser haveria o nada, ou seja,
o ente como um sujeito sem transcendência; e a das ramificações do estruturalis-
mo de Lévi-Strauss, organização sistemática das estruturas invariáveis da língua e
dos mitos ocidentais, qual seja, um “transcendentalismo sem sujeito”4.
Ricoeur, escolhe um terceiro caminho. O da Fenomenologia hermenêutica.
Diríamos inicialmente que intermediário entre os dois existentes. Porque, de um
lado, e até diferentemente do próprio Heidegger, não abre mão de uma ancoragem
3 ibidem, p.704 ibidem, p.74
12
à consciência cautelosa e reflexiva e que, já por si se dispõe a suspender o juízo
(epoché) para permeabilizar-se à negatividade e à presença, como uma abertura
para a atestação ontológica de realidades impensadas, mas que supostamente se
deixariam pensar; Sim, deixar-se-iam pensar senão em face da liberdade criadora
do homem, este que pode fazer uso especulativo e heurístico da plasticidade viva
do pensamento e linguagem de que dispõe, ainda que mercê das limitantes estru-
turas atemporais da mente e da Cultura humanas.
Desde a narrativa bíblica do Pecado Original, a história mimetiza a origem,
e todo o imaginário mítico ocidental assim opera e expressa os temas dissimulados
(inconscientes, para Freud) de uma ininteligível e culpada consciência do mal. Há
que se compreender nisso, a existência de um significado literal das narrativas (os
mitos) a emergirem na Cultura como forma simbólica, e, quando atualizadas (nos
ritos), como procedimentos compensatórios ou ab-reativos do que até então ope-
rava como angustiada culpa na sombra indevassável, mas viva, do não dito.
Armado pela metodologia de fenomenólogo fiel a Husserl, mas aberto às
contribuições do bergsonismo, de tal forma a conciliar o movente e o pensamen-
to, Ricoeur, mediante as contribuições acessórias ou instrumentais das Ciências
humanas e da Literatura ocidentais, a incluir-se algumas contribuições da filosofia
analítica anglo-saxã, alarga as possibilidades, a um só tempo criativas e rigorosas,
do pensamento enquanto propedêutica do real, assim como a amplitude referencial
da realidade. Em outras palavras, oferece um pensamento entreaberto e capaz de
pensar o até então impensado, tendo ainda, e fielmente, por estatuto os critérios
estritos da Filosofia até então.
13
1. O COGITO INAUGURAL: DESCARTES
Ricoeur se insere na tradição das filosofias do sujeito. Conquanto sua intenção
filosófica não poderá subestimar o Cogito, tampouco haverá de superestimá-lo. O
Cogito, essa que é a consciência filosófica (universal) dada pelo pensamento autônomo
e reflexivo. Construído e inaugurado por Descartes, nasce da estratégia metodológica
de tudo duvidar e emerge como certeza, a certeza da fundação segura de conheci-
mentos (claros e distintos) cuja origem já não depende apenas de explicitações de-
monstrativas. O primeiro deste conhecimento, o do “eu existo”, é conhecimento
intuitivo, ainda que emirja da cogitação reflexiva de que, ao se duvidar faz-se certo
que se pensa, e ao se pensar faz-se certo que se é. Do “eu sou”, fundacionista, por
suposto tão seguro quanto certo, há de se desdobrar, por lógica dedutiva, toda a cadeia
ideativa face ao mundo que nos cerca, em certeza e segurança derivados.
No entanto, na terceira de suas Meditações metafísicas, Descartes percebe ne-
cessário ancorar, de forma mais segura, o estatuto deste primeiro juízo fundador:
“...Considerarei mais exatamente se talvez não se encontrem absolutamente em
mim outros conhecimentos que não tenha ainda percebido (...) o que é requerido
para me tornar certo de alguma coisa?”. A busca da coisa certa e verdadeira,
finalidade de qualquer Ciência, não permitiria qualquer dúvida acerca de seus
mais legítimos fundamentos, antes mesmo de entrar em operação. E uma suposta
dúvida remanescente é a desse Cogito fundado, potente máquina pensante, ser
AS APORIAS DO COGITOII
14
mera fábrica de pensamentos privativos, ainda que claros e distintos, e aparente-
mente certos e seguros, mas, contudo, não o espelho do real, pois que é o real e
universal que se quer desvelar, o funcionamento da máquina do mundo; que o
que se pensa dentro de si represente o que existe fora, e que o fora seja tudo
quanto não apenas eu. Este eu não será uma determinação histórica e contingen-
te, existência singular: o que dele se pretende é o puro e fidedigno operador das
imagens do mundo em neutro e universal entendimento organizador.
Essa ancoragem epistemologizante (não-psicológica) do sujeito cartesiano
só poderá ser garantida pela prova da existência e natureza de Deus. Entre a
segunda meditação, em que o Cogito emerge como intuição e início da ordem
(analítica) cognoscitiva, ou de descoberta, de tudo quanto existe, até a sexta me-
ditação, em que a realidade das coisas externas é demonstrada, há que se validar a
legitimidade universal deste sujeito atemporal que pensará os fundamentos invari-
áveis e universais do mundo contingente e empírico. Para isso, Descartes trespassa
a ordo cognoscendi em benefício de uma outra ordem (a ordo essendi), uma ordem
(sintética) que se inicia com a intelecção da existência de Deus e que, depois
demonstrada, substanciará e garantirá que a ordo cognoscendi tenha correspondência
com a realidade que lhe é externa. Ou seja, a razão primeira da validade do Cogito
é o ser de Deus: a ordem ontológica precedendo a ordem epistemológica.
Alguns críticos de Descartes (Mersenne e Arnauld) então objetaram: mas se
a existência mesma de Deus é apreendida pela intelecção clara e distinta, não será
então o pensamento que pensa Deus o primeiro fundamento seguro (posto que
claro e distinto) da existência de Deus? Ou seja, aqui a ordem epistemológica
antecederia a ordem ontológica. Ora, esta a querela do denominado círculo cartesiano
que, para Ricoeur, é a fusão entre a idéia do eu e a idéia de Deus, resultando
numa ordem das razões que se apresenta não como cadeia linear, mas como fivela,
em que ponto de chegada e ponto de partida coincidem, a oferecer, em todo o
desenvolvimento posterior da História da Filosofia, a seguinte alternativa:
15
Ou bem o Cogito tem valor de fundamento, mas é uma verdade estéril à
qual não pode ser dada uma sequência sem ruptura da ordem das razões
[pela ordo essendi]; ou é a idéia do perfeito que o funda [o Cogito] dentro de
sua condição de ser finito, é a primeira verdade [o ego sum] perde a auréola
de primeiro fundamento. 5
A partir daí, segundo Ricoeur, essa alternativa veio a tornar-se dilema:
de um lado, Malebranche e mais ainda Spinoza (...) viram no Cogito uma
verdade abstrata, truncada, despojada de todo o prestígio. Spinoza é a esse
respeito o mais coerente: para a Ética, só o discurso da substância infinita tem
valor de fundamento; o Cogito não somente regressa à segunda ordem como
perde sua formulação na primeira pessoa (...) 6
(...) Por outro lado, para toda a corrente do idealismo, através de Kant,
Fichte e Husserl (pelo menos o das Meditações cartesianas), a única leitura
coerente do Cogito é aquela pela qual a certeza alegada da existência de Deus
é marcada pelo mesmo cunho de subjetividade que a certeza de minha pró-
pria existência. 7
Embora que, nessa primazia oferecida ao Cogito, “para evitar cair num idealismo
subjetivista, o eu penso deve despojar-se de toda a ressonância psicológica e principal-
mente de toda a ressonância autobiográfica.” 8. E, assim sendo, ao se ganhar rigor
epistemológico e universalidade do saber, não o será impunemente para o Cogito, “mas
ao preço da perda de sua relação com a pessoa da qual se fala, com o eu-tu da interlocução,
com a identidade de uma pessoa histórica, com o si da responsabilidade” 9.
Eu diria mesmo, ao preço da perda da possibilidade da inserção interativa de
alteridade e do tempo nas reflexões operadas pelo Cogito, mais e mais a tornar-se
impermeável à integração da percepção e dos juízos aos movimentos e oposições
5 Ricoeur, P. Soi même comme um autre, p. 216 ibidem, p.21.7 ibidem, p. 21.8 ibidem, p.21-2. Ou seja, o horizonte idealista vai culminar na redução transcendental, e, com isso, na
exaltação crescente do Cogito enquanto subjetividade filosófica depurada de qualquer existência singu-lar, método rigoroso, “transcendência sem sujeito”, como vimos, anteriormente, a propósito do mesmoprejuízo, então no método estruturalista.
9 ibidem, p. 22.
16
da realidade viva, ainda que se mantivesse nele, enquanto Cogito, o estatuto
ontológico mesmo da identidade, ainda que num paradoxo (insolúvel?) de um eu
que muda sem mudar.
2. O COGITO EM KANT
O eu em Kant tem dois sentidos: o eu empírico e o eu transcendental. O eu
empírico, como sujeito psicológico da experiência, e o eu transcendental como abs-
tração e termo final do esvaziamento de todos os predicados do eu empírico, e,
portanto, do esvaziamento de qualquer relação do eu com os objetos, inclusive da
possibilidade de apreender-se ele próprio como objeto. Do que se conclui ser o eu
transcendental meramente um postulado.
Em Kant, se a intuição é “a representação que pode ser dada antes de qual-
quer pensamento”10, o eu transcendental é a apercepção pura ou transcendental que
referencia as intuições como minhas intuições, é fonte dos conceitos a priori do
entendimento e é a condição de possibilidade para que intuições e conceitos
sejam, mediante a tábua (universal) das categorias, unificados em juízos. A apercepção
transcendental é, assim, substrato da faculdade de julgar, esta que, na produção dos
juízos teóricos, práticos e estéticos, é o termo médio entre o entendimento e a
razão. De onde se conclui que o eu transcendental é a possibilidade humana gené-
rica e presumida da totalidade do pensar.
Vazio de conteúdo e de referência predicativa, no entanto, o eu transcendental
é, em Kant, o equivalente diferençado do Cogito cartesiano. Cogito, porque referido,
em outras passagens da Crítica da Razão Pura como o eu penso; diferençado, porém,
porque sua inteligibilidade aponta, mais do que o faz o Cogito cartesiano, para a sua
própria impalpabilidade e inefabilidade. E se, como em Descartes, é universalizado,
feito o fundamento de todo pensamento, em Kant, o eu penso, fundamento também
10 Kant. A Crítica da Razão Pura, B132, p.131.
17
de todo conhecimento, está isento de qualquer resíduo psicologizante empírico, ou
hipostasiado, e, portanto, é transcendentalizado a tal ponto que, mesmo o pensá-lo
ou o dizê-lo como “eu penso”, já é, em si, uma quase contradição.
Ocorre que, aquém de uma doutrina transcendental da alma (do eu penso),
se a psicologia empírica, é claro, nada nos poderia dizer acerca de um conheci-
mento seguro, também uma psicologia racional, restará em Kant insuficiente como
substrato epistemológico, pois a tese de uma alma racional não resiste à própria
fundamentação lógica. É o que vemos nos quatro paralogismos que afetam a sua
postulação, conforme demonstrados por Kant: o de sua substancialidade, o de sua
simplicidade identitária, o de sua unidade no tempo (i.é, o da personalidade) e o de
sua possibilidade (idealidade) relacional com objetos (todos estes presentes, en-
quanto traços, e não superados na res cogitans cartesiana).
Mas, agora vejamos, como Kant pretende superá-los:
Para que os paralogismos da Psicologia racional não inviabilizem a possibili-
dade de se perguntar pela justificação do conhecimento filosófico, o eu penso,
fundamento transcendental do pensamento, há de ser uma idéia dialética da psi-
cologia racional (um ideal da razão pura), e somente apreensível por analogia, ou
como “uma substância na idéia, mas não na realidade”11;
É exatamente isso o que nos prova, a segunda antinomia da razão pura, na figura
de um paralogismo, o que vale dizer mais exatamente que a noção de eu e de seus
predicados é apenas a noção ou intuição do sentido interno, a congregar a multiplicidade
de elementos exteriores divisíveis ao infinito. Vale dizer: que o eu, que o ser é uma
posição, como dirá Heidegger acerca do eu em Kant, ou que o eu é uma ficção.
Outrossim, a simples afirmação da verdade do eu penso como uma unidade e
identidade concretas desdobrar-se-ía em conclusões não necessariamente verda-
deiras, mas que, se verdadeiras, promoveriam o desmoronamento de todo o edifício
11 ibidem, A 351, p.333
18
kantiano, pelo deslizamento mesmo da fundação em que ele se assenta, a saber, o
da transcendentalidade do eu penso, fora da existência do eu empírico.
Transcendentalidade aqui vista como conhecimento seguro e estável: incólume
ao tempo, ao movimento, à mudança.
Dados assim, estes desdobramentos do Cogito kantiano para fundamentá-lo
como operador rigoroso do conhecimento, qual o corolário afinal dessa postulação
kantiana do eu como idéia transcendental?
Será, no limite, o recurso à formalização, a propor uma necessária e radical
objetivação da subjetividade:
Não podemos dar-lhe [ao ser pensante] outro fundamento que não seja a
representação eu, representação simples e, por si só, totalmente vazia de
conteúdo, da qual nem sequer se pode dizer que seja um conceito, é que é
apenas uma mera consciência que acompanha todos os conceitos. Por este
“eu”, ou “ele”, ou “aquilo”(a coisa) que pensa, nada mais se representa além
de um sujeito transcendental dos pensamentos = X, que apenas se conhece
pelos pensamentos, que são seus predicados e do qual não podemos ter,
isoladamente, o menor conceito.12
Só deste modo, mais radical do que em Descartes, a epistemologia estaria
salva, ainda que às expensas da eliminação do eu que, e só ele afinal, pode se
responsabilizar pelo conhecimento produzido e a ser comunicado a outrem.
Ainda assim, o recurso extremo à formalização não impedirá a filosofia
kantiana, tal como Descartes, embora num outro sentido, de cair em circularidade
entre o conhecimento produzido e o fundamento do conhecimento. Diferente-
mente de Descartes, no entanto, reconhece-o:
Movemo-nos aqui, portanto, num círculo perpétuo, visto que sempre necessi-
tamos, previamente, da representação do eu para formular sobre ele qual-
quer juízo; inconveniente que lhe é inseparável, pois que a consciência, em
si mesma, não é tanto uma representação que distingue determinado objeto
12 ibidem, B 404, p.330
19
em particular, mas uma forma de representação em geral, na medida em que
deva chamar-se conhecimento, pois que só dela posso dizer que penso algu-
ma coisa por seu intermédio.13
Resta, assim, não solucionada, uma outra vivência aporética do
(des)entendimento humano.
Se em Descartes, Deus e pensamentos claros e distintos são fundamentos
um do outro, isso posto, desprestigiam-se isoladamente como fundamento; em
Kant, o transcendental, fundamento seguro do pensamento, e o pensamento
mesmo, como a produção empírica de suas condições transcendentais de possi-
bilidade, também se fundamentam um ao outro, o que, de alguma forma, faz–
nos questionar o quanto a base epistemológica kantiana é mais segura que a de
Descartes. “Deus” não nos parece mais obscuro que “transcendental”, ambos
postos como condição a priori da experiência possível. E a proceder tal impres-
são, o ceticismo humeano volta a assombrar-nos. Restando ainda não legitima-
do o fundamento primeiro de todo o pensar que se quer fundante de toda a
Ciência digna desse nome.
Quanto mais se nos lembrarmos que a Ciência, sendo pensamento da uni-
versalidade e reprodutibilidade do modelo postulado, de forma a legitimá-lo como
justo representamen da realidade objetiva, terá de ser Ciência da imutabilidade do
objeto. Como acolher na abrangência mesma deste saber imutável, ainda mais a
totalidade da vida que, em sendo vida, haverá de incluir tempo e movimento nos
domínios do objeto, ainda mais a desafiar este saber que ainda assim se quererá
dizer ciência do ser enquanto ser, saber das causas e princípios, saber classicamen-
te dito filosófico?
De fato, no que se atém mais propriamente às Ciências da natureza, Kant
elevou a razão pura a um grau extremo de dignidade e de condição precípua para
o entendimento da experiência sensível, de forma a ocupar posição intermediária
13 ibidem, B 404, p.330
20
e integradora na celeuma filosófica, desde a Grécia, entre a primazia da noesis ou a
primazia da aisthesis. Mas, nem por isso, deixou de se dar conta das insuficiências
do entendimento e da razão que, como vimos até agora, encontram-se desde o
esforço do pensamento em pensar a si próprio, pensamento, Cogito, raiz e funda-
mento do pensar, e objeto mesmo de pensamento da subjetividade, inevitavel-
mente cindida a sujeito e objeto no trabalho efetivamente imóvel, posto que
circular, do meta-pensar. Ainda mais se se tratar da pergunta pela possibilidade de
uma Metafísica em geral, em que também, por tácito e lógico, não se poderá ter
a contribuição da experiência sensível.
Insinuar-se-á, a partir daqui, a pergunta que, ao cabo, Kant faz a si próprio:
é possível pensar a Metafísica, se esta, nas figuras da imortalidade da alma, da
liberdade e de Deus não encontra resposta possível nos domínios intrínsecos da
razão humana?
De outra forma, o que fazer, então?: se não é possível a justificação racional
das idéias psicológicas, cosmológicas e teológicas, e, se o tentarmos, recairemos
nas antinomias da razão pura, em que “tanto proposição como contraposição
podem ser estabelecidas por provas igualmente evidentes, claras e irrefutáveis” 14.
Ora, como idéia constitutiva, mediante conceitos, no entendimento, não é
possível provar-se nem a imortalidade da alma, nem a liberdade absoluta, nem a
existência de Deus, porque aqui e na Metafísica como um todo, o conhecimento
não alcança mesmo a inteligibilidade do incondicionado senão como condiciona-
do, conforme passo a passo demonstrado por Kant em toda a Dialética Transcendental
da Crítica da razão Pura.
O que se pode é fazer Metafísica como idéia reguladora, isto é, postular o
incondicionado, enquanto idéia da razão, ou ideal da razão pura, realidade, não como
existência, mas como “princípio da unidade sistemática do uso do entendimento” 15.
14 Kant. Prolegômenos, §52, p.16215 ibidem, § 55, p.169
21
De tal forma que, por mero artifício, podemos ampliar a abrangência de
nosso conhecimento para além dos limites de toda a experiência possível e “por
conseguinte, de modo transcendente, sendo que a razão só serve para levar a
experiência nela mesma tão próximo quanto possível da inteireza, isto é, não
limitar com nada seu progresso” 16.
Kant, iluminista, não se deixa render aos argumentos céticos de Hume, e,
nos Prolegômenos reafirma a soberania e autonomia da razão, afirmando que “bar-
reiras” não são o mesmo que “limites”. Então, da experiência, na existência, o
apreensível, mediante intuições e conceitos permite-nos adentrar o campo abissal
da realidade não sensível, mediante os recursos simbólicos da analogia, nos “limi-
tes” mesmo da razão pura:
pois em todos os limites há algo de positivo (por exemplo, a superfície é o
limite do espaço corpóreo, no entanto, também ela é um espaço, que é o
limite da superfície, o ponto o limite da linha, mas sempre um lugar no
espaço), ao passo que as barreiras só contém negações 17
Mediante essa distinção, Kant avança:
Na linguagem escolástica se diz que a existência é complementum da possibili-
dade. Mas a existência acrescenta-se só no meu pensamento, não na coisa. A
verdadeira proposição que esclarece o conceito de existência é a seguinte:
existentia est positio absoluta(a existência é a posição absoluta). Esta não pode
constituir algum complemento ou predicado da coisa, mas a posição da coisa
com todos os seus predicados. A existência não é uma realidade particular, em-
bora tudo o que existe deva ter realidade. 18
Aquém da existência, a realidade antecede o fenômeno e, para se apreendê-
la (como ens imaginarium) há que se avançar com “o pensar sem intuição” até os
confins da totalidade, o ens realissimum: a coisa em si mesma.
16 ibidem, § 55, p.169-7017 ibidem, § 57, p.172-318 Kant. Realidade e existência - Lições de metafísica, p. 62
22
Kant, diz cometer um antropocentrismo simbólico, mas refuta que cometa
um antropocentrismo dogmático. Este diria respeito necessariamente ao mundo e
se manifestaria como juízo determinante; aquele, o que ele pratica, diz respeito à
linguagem, e se manifesta como juízo reflexionante.
E assim, mediante o recurso à analogia, o Cogito kantiano opera sua arriscada
tentativa dialética da razão pura, de que nasce o filho predileto desta: a Metafísica.
Arriscada e insegura, em face do frágil liame (as analogias da experiência) que une
o entendimento e as ousadias da razão, termina por gerar a Metafísica, a Metafísica
como a quer Kant: “cuja procriação [veja-se, também uma analogia] como qual-
quer outra no mundo não deve ser atribuída a mero acaso, mas a um germe
primitivo [outra analogia], organizado sabiamente para grandes fins”19.
Após Galileu e Descartes, fundadores da Idade Moderna, em que se viram
rejeitadas as explicações teleológicas aristotélicas para o entendimento da nature-
za, Kant reabilita o Estagirita e a Teleologia retorna à investigação filosófica, como
hábil recurso da razão no interesse da postulação pelos fins últimos seja da Natu-
reza, seja da ação humana.
3. O COGITO HUSSERLIANO
3. a. Suas possibilidades
Husserl retoma a importância de Descartes que, historicamente fez, medi-
ante a “époché scetique radicale”, a primeira crítica do conhecimento objetivo, aí
incluindo, como suspeito, até mesmo o conhecimento dado pelas evidências
apodíticas analíticas reinvidicadas pela matemática. Em Descartes, mesmo a
apoditicidade, a evidência irrecusável do eu existo, é co-natural ao próprio
19 Kant. Prolegômenos, § 57, p.172
23
pensamento ele mesmo. Ora, se todo pensamento está posto sob dúvida, porque
este pensamento posto, o de que existo, não poderia também estar fadado à falsi-
dade? Husserl, diga-se mais estritamente o Husserl claramente idealista (a partir de
A idéia da Fenomenologia, de 1907) critica em Descartes que se o ego puro é
fundacional de toda a Ciência e Filosofia, ele não poderá sujeitar-se às contigências
tais quais a de um ego psicológico, tal como o extraído da epoché cartesiana, esta-
ção final de uma cadeia de certezas postas entre parêntesis a constitui-lo como um
resíduo do mundo, sob a pena de ser ele próprio também colocado sob dúvida. O
ego puro, proposto por Husserl, seria então um ego paradoxal, posto que fora do
ego psicológico, anunciando-se como
Alguma coisa de grande e mesmo de imensa anunciava-se aqui, alguma coisa
que malgrado todos os equívocos e todos os vícios definitivamente se cons-
tituiriam no “ponto de Arquimedes”de toda filosofia autêntica20
A forma cartesiana então de raciocinar, ao partir da subjetividade, só po-
deria validar-se como conhecimento legítimo e seguro, mediante o recurso à
verdade da coisa, à verdade divina como fundamento do Cogito 21, e pelo recurso
ao dualismo ontológico corpo-espírito, de forma a salvaguardar a
inquestionabilidade do conhecimento, só possível se não advindo de um espíri-
to derivado de contingências fáticas tal como um resíduo do mundo. Assim como,
a crítica kantiana da razão utiliza, sob forma modificada, porém similar, o arti-
fício do apriorismo dos juízos sintéticos matemáticos, anteriores à experiência,
para fundar o seu terreno absoluto do conhecimento.
20 Husserl. La crise des sciences européenes et la phénoménologie transcendantale, p.93-4. A partir da traduçãofrancesa, do alemão, por Gérard Granel.
21 Essa, para Ricoeur, a grande fragilidade do Cogito, posto que “a imperfeição ligada à dúvida só éconhecida à luz da idéia de perfeição” (em O si mesmo como um outro, p.20). Ocorre que essa perfeiçãose fez, na 2ª meditação, justamente inquestionável sob a luz da clareza e distinção, dando-se assim, na 3ªmeditação, a conversão de uma cadeia linear analítica, iniciada na certeza do Cogito, em uma inflexãopara trás, em fivela, mediante o recurso à verdade divina, real fundamento da verdade do Cogito. Essa, aequivalência ricoeuriana para o círculo cartesiano. (em idem, p.21).
24
O eu transcendental kantiano está, como vimos anteriormente, somente
acessível como postulado. Se não fosse assim, se estivesse acessível a nossas intui-
ções e conceitos, não o chamaríamos transcendental, posto que emergido das
possibilidades e efetividade empíricas da consciência.
De forma análoga, como a Fenomenologia se ancorará no conceito de re-
dução transcendental, ou seja, na redução do eu empírico de toda sua historicidade
e mundaneidade a um Cogito reduzido, transcendental, purificado ao máximo de
toda psicologização para que seja pura recepção do real? Como pode a
Fenomenologia postular tal Cogito, como fundacional do saber originário de toda
Filosofia segura e digna de se por como discurso do ser, se para isso, para sua
própria fundação, terá de valer-se de pensamentos e palavras carregados de
mundaneidade, do mundo enquanto fenômeno?
Diferentemente do kantismo, a Fenomenologia inicialmente não postula
uma transcendentalidade como saber originário a priori e imanente do mundo na
consciência (ou logos) que o pensa, anterior ao mundo: trata-se, em Husserl, de
conceber a correlação consciência-mundo como fosse um Cogito inconsútil, de
forma a que a consciência só é consciência enquanto consciência do mundo, consciên-
cia inexistente se não houvesse o mundo fora dela mesma, e o mundo, sem ela,
inefável, como a coisa em si kantiana, intangível, posto que o mundo só se dá, ou
se coloca, enquanto mundo para a consciência.
Ocorre, todavia, para que a consciência do mundo tenha unidade e estabi-
lidade necessárias ao discurso científico, para uma ontologia regional, não poderá
sujeitar-se à multiplicidade e transitoriedade das coisas do mundo, não poderá ser
mera consciência empírica do mundo: Haveria, num primeiro momento, que se
extrair do mundo a tese/posição (setzung) geral da atitude natural, a tese do mundo
(a de que o mundo é como aquele que está sempre aí em sua efetividade), suspender
(epoché) a tese geral do mundo 22 e deslocar-se para o que Ricoeur nomeia como
22 cf. Husserl,E. Idées diretrices pour une phenomenologie,§30, p.95
25
“receptividade pura”23 , resultado da subtração de tudo quanto pré-concebido,
abertura plena e ingênua para a presença do mundo, a ser expresso por uma
Fenomenologia mais propriamente descritiva 24.
A consciência, na Fenomenologia, tende a deslocar-se para fora de si, fusão
originária e imanente da espessura consciência(pura)/mundo, subjetividade cons-
tituinte e inseparável do mundo, a resguarda sua condição transcendental não
porque a priori , mas porque momento inaugural do eu epistêmico, consciência
não cindida do mundo, ao mesmo tempo em que não é empírica, posto que o
mundo não a antecede, e sim, com ela coincide como que num átimo de tempo,
menor ainda que o instante, no limite infinitesimal do instante, quase que um
ponto virtual, inexistente, sem duração temporal
A ação intencional, ato de razão, tenderá a se constituir como a correlação
noético-noemática, em que a dualidade eu-mundo deverá, como pressuposto e
atitude, estar superada. Não há predomínio ou anterioridade seja do pensamento,
seja do objeto que é visado pelo pensamento.
Essa abertura plena e desinteressada diante do mundo seria, ela mesma, a
extensão ou o desenvolvimento do conceito de intencionalidade, conforme propo-
sição de Brentano:
O que caracteriza todo fenômeno psíquico é o que os escolásticos da Idade
Média chamavam de inexistência intencional (ou ainda, mental) de um ob-
jeto e o que nós mesmos poderíamos chamar – utilizando expressões que
não excluem uma certa equivocidade – de a relação a um conteúdo, a dire-
ção para um objeto (sem a necessidade de entender com isso uma realidade
[Realität] ou objetividade [Gegenständlichkeit] imanente).. Todo fenômeno
psíquico contém em si alguma de objeto (Objekt). Na representação é alguma
coisa que é representada, no julgamento é alguma coisa que é admitida ou
23 Ricoeur, P. in Husserl. E. Idées.... note 53, p.9524 Como a que Ponge faz, no seu projeto poético de “O partido das coisas”.
26
rejeitada, no amor alguma coisa é amada, no ódio alguma coisa é odiada, no
desejo alguma coisa é desejada, e assim por diante.25
O conceito de intencionalidade em Brentano, derivada dos escolásticos,
quer significar que todo conhecimento se é conhecimento de alguma coisa, só
será legitimado se o ego operador do ato intencional seja ele mesmo e paradoxal-
mente congênito à coisa, esteja despossuído de si mesmo, seja como consciência
reflexiva de si, seja como despossuído de suas determinações psicológicas, ou
mesmo transcendentais, pois que se volta, anulado dele mesmo, absolutamente
pleno à coisa mesma a ser apreendida.
Sartre, com maestria, assim ilustra o conceito de intencionalidade e seus
desdobramentos, acerca do conhecimento de uma árvore, à beira da estrada:
De um só golpe a consciência está purificada, está clara como uma ventania,
não há mais nada nela a não ser um movimento para fugir de si, um deslizar
para fora de si; se, por impossível, vocês entrassem “dentro” de uma consci-
ência seriam tomados por um turbilhão e repelidos para fora, para perto da
árvore, em plena poeira, pois a consciência não tem “interior”; ela não é
nada senão o exterior de si mesma, e é essa fuga absoluta, essa recusa de ser
substância, que a constitui como consciência.26
Todavia, a proposição de uma fusão espaço-temporal do sujeito percipiente
e do objeto percebido não é suficiente para resolver a aporia do “círculo cartesiano”
e nem a do “círculo perpétuo” kantiano. Como indica Bernard Williams 27 o
próprio Descartes, para responder à argüição de que Deus não pode ser causa
eficiente de si mesmo, posto que a causa é sempre antes do efeito, cogita da
simultaneidade entre Deus e a causa de Deus, ao que mais tarde Hume se contra-
põe, quando discorre da necessidade da contigüidade e sucessão entre causa e
efeito para cogitarmos de qualquer possibilidade causal de um sobre o outro.
25 Brentano. Psychologie de point de vue empirique. Livre II, chapitre premier, §5, p.101-2. A partir da tradu-ção francesa, do alemão, por Maurice de Gandillac
26 Sartre. Situações I, p.5627 Williams. Descartes - the Project of pure enquiry,..p.144.
27
Assim se manifesta Hume: “Porque se uma causa fosse contemporânea a seu
efeito, e esse efeito a seu efeito, e assim por diante, é claro que não haveria algo
como sucessão, e os objetos seriam todos coexistentes” 28.
A intencionalidade em Husserl, até 1907, portanto, se não é resolutiva das
aporias postas pela constituição cartesiana e kantiana do Cogito, faz com que a
operação cognitiva do eu recupere a primazia do objeto, dando –lhe, a este,
dignidade, e nele estatuindo um valor em si mesmo, mas sem deixar de co-validar
o ego como produtor da objetividade do pensamento, pois, no esvaziamento
limite da tese geral do mundo, o ego tende a purificar-se em ego fenomenológico 29,
unidade sintética dos vividos, como no ceticismo metodológico de Descartes,
mas sem o solipsismo do ego cartesiano e a logicidade vazia do ego transcendental
kantiano, tal como pretendia Husserl, dado que se a consciência se purifica do
mundo e de si mesma, como existências contingentes, resta que ela, ainda assim,
seria consciência do mundo, e não consciência sem consciência (como em Kant)
ou consciência sem mundo (como em Descartes).
Como vimos antes, as teses de algo extrínseco à consciência ou anterior a
ela mesma, como condições de validade para o conhecimento, restaram demoli-
das por Hume.
Com o modelo convencional de tempo, não restam superadas as aporias
dadas pela proposição do círculo cartesiano e pela do círculo perpétuo, salvo se
pensássemos o tempo como algo não constituído por sucessão.
28 Hume, Tratado da natureza humana, Livro I, parte III, seção II, §7, p.10429 Veja-se a seguinte passagem de HUSSERL, Logical investigations, Investigation V, §4, p.541, a respeito da
constituição do “ego fenomenológico”, ou reduzido: “Se retirarmos o ego-corpo do ego empírico, elimitarmos o ego puramente mental a seu conteúdo fenomenológico [experienciado], este último sereduz a uma unidade de consciência, a um complexo real da experiência, que nós (i.é. cada um para seupróprio ego) encontramos em parte evidentemente presente, em parte postulado em boas bases. O egofenomenologicamente reduzido é portanto nada peculiar, flutuando por sobre muitas experiências [desi mesmo]: ele é simplesmente idêntico ao conjunto de suas unidades [experienciadas] intercomunicantes.(a partir da tradução inglesa, do alemão, por J. N. Findlay)
28
O projeto fundacional, desde a postulação cartesiana da possibilidade de um
conhecimento científico absoluto, mediante o Cogito, ainda não encontra em
Husserl, pelo menos até aqui, a superação definitiva das filosofias empiristas de
Locke, Berkeley e mormente Hume. Cada a um a seu modo, demolem a postulação
de uma razão soberana a formular e a espelhar o real tal como nela, e só nela, o
real seria fielmente apreendido e formalizado, tornado conhecimento seguro e
objetivo, pois que fundado na consciência, base para toda construção científica
subseqüente.
O objetivismo dogmático do empirismo moderno, ainda que lastreado numa
estrutura matematizante do real, estará, no entanto, submetido e superado em Kant,
mediante a argumentação deste último da possibilidade dos juízos sintéticos a priori,
embora, como vimos acima, não consta que essa argumentação esteja completamente
impermeável a contraposições empiristas, na medida em que, ainda que não esteja
mais lastreada numa Metafísica enraizada na figura de um Deus, ainda é uma Metafísica,
e como Metafísica estará necessariamente no campo das postulações e não no campo
da experiência, à espera de uma razão pura, isenta de determinações externas a si
própria, e ao mesmo tempo, puramente receptiva à multiplicidade e singularidade
próprias ou contingentes das coisas como elas são, receptiva às coisas mesmas.
Husserl não havia então resolvido ainda o problema de conciliar o rigor
científico, o problema de uma ontologia regional que possa conciliar unidade e
estabilidade do conhecimento, com as condições fáticas do objeto: a multiplicidade
e a mudança, no tempo.
Para isso também, como vimos há pouco, haveria que se pensar o tempo de
uma outra forma que não o tempo da sucessão e da mudança.
Será esse o caminho de Husserl, para superar a aporia que se vislumbrou acima,
quando permanecemos na postura imobilista da Fenomenologia das sínteses passivas
ou descritivas, da Fenomenologia estática, posto que vinculada à percepção ou à soma
fragmentária das percepções e dos modos de doação a elas correspondentes?
29
Para que a superemos seria necessário que o tempo, ao invés de fragmentar
o conjunto dos sentidos dos atos intencionais, tivesse a propriedade contrária,
unificando-os, para se preservar a possibilidade de um saber epistemologicamente
fundado de forma segura e invariada e para garantir a validade de todo conheci-
mento dito científico.
Antes, cotejaremos em Husserl e seus comentadores intencionalidade e tempo,
ou de como a intencionalidade, em seu estatuto ideal de coexistência eqüipotente
entre rigor e abertura epistemológicos, poderá fundar-se em meio à sucessão do
tempo e permanecer infensa a esta. Como a intencionalidade poderá justificar a
Fenomenologia como Ciência positiva, em seu fundamento primeiro, e como
Ciência negativa em sua neutralidade pura de abertura à presença, de forma a que
a atitude fenomenológica seja o substrato puro e seguro para a validação e cons-
trução de uma nova Ciência.
Negligenciada nas Investigações Lógicas a temporalidade como tema na obra
de Husserl, entra em cena a partir de 1905, com As lições sobre a consciência do
tempo, um ciclo de palestras em Göttingen, e, integrará passagens das Idéias diretri-
zes para uma Fenomenologia, de 1913 e das Meditações cartesianas, publicadas em
1931. Ora, para Benoist, a temporalidade será não apenas uma modalidade parti-
cular da intencionalidade, mas constituirá a estrutura mesmo da intencionalidade,
tal como forma originária e irredutível, como “uma primeira camada da
intencionalidade”30.
A partir daí, a intencionalidade seria, por seu turno, constitutiva mesmo do
tempo, de tal forma, que ela seja pura intencionalidade, isto é, seja intencionalidade
não do objeto, mas intencionalidade que amplia o espaço da consciência e se
coloca como “puramente imanente”31. E se, pode parecer um tanto quanto obs-
cura a idéia de uma intencionalidade sem objeto, de qualquer forma, o tempo
30 Benoist, J. La conscience du temps - Autour de Leçons.............,p.0831 Idem, Ibidem, p.08
30
constitutivo, originário e interno, como “totalidade única e onienglobante”32
seria aqui ele mesmo um campo propício para a pesquisa da intencionalidade e,
por extensão, para a pesquisa de toda a filosofia que se quer fenomenológica.
Estamos já, portanto, a adentrar um campo que ultrapassa o campo apenas
da percepção. Trata-se da Fenomenologia genética ou a das sínteses ativas que
emerge a partir das vivências da consciência dos atos intencionais. E como tal,
integra a si o tempo como temporalidade, como tempo vivido, e que, por seu
lado, constitui-se como totalidade e unidade da consciência, noesis a tornar-se
forma, estrutura de horizonte integrador (como síntese identitária, monádica) para
onde convergem os múltiplos modos de doação de horizontes passados, futuros e
simultâneos 33. Ressalte-se, aqui, que a idéia de totalidade engloba a identidade e a
interioridade da consciência, tal como no sentido kantiano, como síntese definidora
da identidade e como abertura para um horizonte ilimitado, de tal forma que pode-
mos referir-se à temporalidade, ao fim e ao cabo, como índice de liberdade 34.
Salanskis alude ao vivido ou vivência (Erlebnis) como “fluxo dos vividos”35,
com a ação intencional específica (conhecimento como conhecimento de, desejo
como desejo de, lembrança como lembrança de, e assim em diante) como “aquilo
de que se tece a nossa consciência enquanto nela escoa uma vida”. Numa
intencionalidade longitudinal, que se dá pelo encisalhamento recíproco de reten-
ções e protensões do tempo na consciência/identidade, e numa intencionalidade
transversa, “aquela que habita a consciência impressional, graças à qual nos vividos
anuncia-se algo de estranho.” 36. Eis a constituição do tempo/intencionalidade que
é tempo de um presente espesso, síntese totalizante de durações imanentes, coesão
imanente, tempo da ciência, não o tempo do mundo ou o tempo das coisas 37.
32 Salanskis, J.M. Husserl, p.3633 cf. Ricoeur. A l’école de la Phénoménologie, p.205-1234 cf. ibidem35 Salanskis, Husserl, p.21. Equivalente ao que Fink se refere como a “multiplicidade fluente de vividos da
consciência” FINK, De la phénoménologie, p.34. A partir da tradução francesa, do alemão, por Didier Franck.36 ibidem, p.4037 cf.ibidem, p.29-41
31
Ocorre na consciência/fluxo dos vividos a síntese do objeto imanente
(transcendência ideal) como horizonte de sentido dado pela reunião ou síntese de
horizontes no continuum do rio heraclitiano da temporalidade e ele, objeto imanente
da consciência, em sua identidade38, qualificando-se como transcendência ideal,
objetiva-se, valida-se como objeto/síntese também passível de imersão no tempo,
no continuum do rio, e como tal se dá como uma potencialidade de novos senti-
dos, ou modos de doação, projetados em horizontes futuros de intencionalidades 39
(tais como o desejo que deseja alguma coisa, a expectativa que espera, a imagina-
ção que imagina....), e sempre perpassados e integrados pela consciência (renovável)
da unidade, unidade da síntese 40 dos múltiplos modos de aparição; portanto,
unidade a um só tempo coesa e móvel, identitária e plástica, do ser/fenômeno na
consciência reduzida, qual seja no Cogito,o ego fenomenológico, doador cumulativo
e infinito de sentidos.
Como vimos, o tempo e a temporalidade integram, são o mesmo que a
substância da estrutura intencional, substanciam a ação intencional passado/pre-
sente/futuro num continuum em que seus limites divisórios já não vigem, o objeto
mesmo (transcendente, em suas possibilidades ônticas), ora discreto ora a esvair-
se, amálgama dado pelo fluxo de infinitas e potenciais configurações a um só
tempo discretas e móveis mediante as múltiplas relações possíveis de retenções e
protensões, feito duração inconsútil e imanente sempre escoando, qual estrutura
caleidoscópica cogito/cogitatum, matriz epistêmica plástica e auto-constitutiva, sín-
tese organizadora de multiplicidades.
Seria assim mesmo, como o descrito acima, o Cogito husserliano? (o ego
fenomenológico é o mesmo que o ego transcendental?). Se o fosse, quem sabe resol-
vêssemos um dia o problema cosmológico da origem do mundo, da causa sui, e,
38 Em Husserl a identidade é “mesmidade [que] reside sempre na consciência e é intuída pela síntese” EmHusserl, As Conferências de Paris, p.26
39 cf. Husserl. Conferências de Paris, p.25-3140 cf. idem. Meditaciones cartesianas. p.58
32
no limite mesmo do pensável, o problema platônico da contradição interna da
unidade/multiplicidade dos entes.
Alguns aspectos devem ser ressaltados e problematizados, a seguir.
A fenomenologia husserliana, na esteira de Fichte, é uma reação ao problema
da coisa em si kantiana. Todavia, que condições de possibilidades terá a Fenomenologia
como uma Ontologia? Sabe-se que inicialmente o seu interesse se restringe ao nível
ôntico, à constituição em nível científico (não-metafísico) da objetivação dos entes,
constituição calcada e erigida ainda por um sujeito que pensa, mas um ego diverso
do ego cogito cartesiano, porque um ego instruído pela intencionalidade e depurado
pela redução fenomenológica. O ego fenomenológico, produto dessa atividade reflexi-
va, a redução, mas ainda assim um ego fático, mesmo após a abstração progressiva
dada pela submissão metódica de si e do mundo para si, em doações de sentido de
infinito alcance e infinitos modos, em que sentido o produto da redução, não resul-
taria, tal qual num espelho em face de outro espelho, em produções multiplicadas e
infinitas de si mesmo, recaindo assim num intransponível solipsismo, num esforço
equivocado de uma psicologia ego-centrada e ainda muito aquém de qualquer
conhecimento dito objetivo de si próprio e dos entes do mundo?
Isso faria da Fenomenologia um mero simulacro de todas as filosofias da
representação, das filosofias da época da imagem do mundo, espelhos voltados uns
para os outros, auto-referenciados, cegos para a realidade, quanto mais para qual-
quer aspiração de abertura para a negatividade e a presença.
O Cogito husserliano é um idealismo aparentemente paradoxal, pois que ao
se pretender vigilantemente descentrado de si e quanto mais se abre, desinteressa-
do e ingênuo, para o objeto, mais este só lhe é apreensível e dizível enquanto
objeto na consciência. Tem o mérito, no entanto, de esta consciência ser um
continuum, um ego cogito cogitatum, qual um rio, fluxo dos vividos, a se dar no
tempo, como síntese da análise intencional, a possibilidade de uma identidade a
um só tempo estável e plástica de si e dos outros objetos de conhecimento.
33
Tem contra si supostas aporias que o inviabilizam como uma Ontologia,
como veremos a seguir.
3. b. Suas aporias
O princípio basilar da fenomenologia husserliana (o princípio dos princípios)41
já apresenta um problema que é explicitado por Salanskis
Toda intuição doadora originária é uma fonte de legitimação do conheci-
mento, tudo que nos é oferecido originariamente na “intuição” (por assim
dizer, em sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado tal
como ele se dá, mas também apenas nos limites dentro dos quais ele se dá
O problema é que tal fonte de direito inquestionável, um corpo de intui-
ções originárias doadoras de sentido, e que contribue para suscitar todo o edifício
fenomenológico, poderá ser “constitutivamente regionalista, levado a dividir o ser
em tantas camadas quantos sejam os tipos de doação”42.
As intuições originárias dadas por evidência apodítica (inquestionáveis), as-
sociam-se em conhecimentos mediados sob regras dadas também apoditicamente,
a fundamentar, em última análise, o fluxo dos vividos, lugar por excelência da
prática fenomenológica, de tal forma que a filosofia husserliana
seria um empreendimento dogmático de ordenação de todas as verdades de
todas as ciências a partir de um feixe de evidências não partilháveis,
falaciosamente postas fora do alcance de qualquer crítica, aquela que o prin-
cípio dos princípios entregaria43
É certo, para Salanskis, que a crítica da evidência em Husserl seja minimizada
pela aparição reflexiva não pontual da evidência, pois que esta é resultado mediatizado
pela totalidade das várias doações de sentido em continuum no fluxo dos vividos e
também minimizada pelo fato de Husserl apontar a fenomenologia menos como
sistema de verdade e mais como sistema de possibilidades. Todavia, o primeiro aspecto,
41 Husserl. Idéias para uma fenomenologia ......§24, p.6942 Salanskis. Husserl, p.51.43 ibidem, p. 52
34
que procura diluir o erro ou a eventual contingência de um perfil isolado e, não
integrado, do objeto, oferecido pela e na consciência, é o método da variação eidética, o
arranjo intencional que é como a essência, o eidos, a idealidade que agrega
cada modo intencional particular efetuando a doação de um objeto do tipo
considerado (...) uma espécie de modelo que transcende cada um de seus
exemplos, mas onde todavia eles se reconhecem 44
Este primeiro aspecto do recurso fenomenológico, em diluir os meros esboços
isolados de cada ação intencional em uma totalidade constitutiva, essência ou idealidade
do objeto, totalidade do objeto que, esta sim, será dotada de validade e que designará
a cientificidade do conhecimento, melhor organiza a proposição de Berkeley, a de
que tudo quanto é só o é enquanto percebido, mas terá todavia sempre contra si a
acusação de um idealismo radical, ainda que refinado, posto que como perceber e
dizer o mundo de lugar algum, fora de qualquer particular experiência de mundo?
Ainda que a consciência perceptiva tenda mais e mais a despersonalizar-se em direção
a um horizonte reflexivo de pureza, o ego puro, não seria este, no ato mesmo de sua
aparição, um continente sem conteúdo, algo que seria inconcebível para Husserl, já na
condição mesma inicial de toda Fenomenologia, a intencionalidade, qual seja: a de
que todo conhecimento é conhecimento de alguma coisa, aí implicado não haver
conhecimento senão para uma consciência? Dessa forma, parecem-me restar auto-
contraditórios os confins da redução, em que, ao menos, traços residuais de consciên-
cia sempre estarão ali a conspurcar o ego dito puro ou transcendental.
Só mesmo o segundo recurso, o que acolhe o movimento constante do evi-
denciado e a abertura da consciência para novas evidências insuspeitadas, pode,
contudo, estender para mais longe esses limites da metodologia fenomenológica
husserliana, a saber, não a abertura sem riscos, somente plena e exitosa mediante a
apoditicidade da evidência como meio e como fim, mas a abertura criativa da ima-
ginação, como aposta do conhecimento no imprevisível, no desejo desinteressado
44 ibidem, p.54
35
por mais saber, na escuridão sem referências ao tato, no até então impensado, e que,
se impensável, será um abismo escuro e infinito, mas, se apreensível, será a sustenta-
ção subitamente oferecida de nova clarezas e distinções antes insuspeitas.
Contudo, se ainda estaríamos perfeitamente seguros quanto ao nível da evi-
dência de distinção, confirmada por uma Lógica formal que a antecede e a reconfirma
ulteriormente, já quanto ao nível da evidência de clareza ou claridade, estaríamos a
depender de sua legitimação racional última, a saber, o preenchimento (erfüllung),
que, segundo Husserl 45 é a confrontação contínua entre as múltiplas doações de
sentido e respectivos polos fácticos e materiais do objeto intencionado como
doações originárias à consciência; a extrair-se dessa confrontação o eidos do objeto
intencionado e que, a seguir, haverá de ser ainda mediado pelo ego supostamente
transcendental, que aspira sim a uma lógica transcendental, mas que só tem real
acesso privilegiado aos dois estratos da Lógica formal, a saber, segundo Salanskis:
a explicitação das gramáticas que governam a formação dos juízos, dada pela
postulação da origem da linguagem natural e da linguagem formal como prescri-
ção morfológica a priori da consciência [como o será em Chomsky]; e pela confir-
mação do sentido essencial legitimado por uma “lógica da conseqüência”, cuja
tarefa, no limite, seria a validação formal dos juízos de verdade, mediante o cálcu-
lo proposicional, que é “a maneira pela qual a verdade de uma proposição com-
plexa se deduz da verdade de suas proposições constituintes”46.
Fica-nos então claro que, afora a validade dos juízos de verdade dar-se pelo
cálculo proposicional, o preenchimento é condição de possibilidade e de clarificação
mais e mais dos juízos de verdade de forma a que inevitavelmente termos, exter-
nos ao ego supostamente puro, de operar a remissão dos juízos à experiência.
Frise-se que a experiência terá um pólo egológico, reflexivo, transcendental
(puro) no horizonte dos meus atos intencionais. Tal operação levar-me-á à
45 Husserl. Idéias para, .p.303-1846 ibidem, p.93-101
36
constituição total da coisa, no limite das variações eidéticas relativas a ela, como
imanência reel da coisa (então, na consciência), a apontá-la como transcendência
ideal (fora da consciência). E que o outro pólo da experiência remanesce sempre
em seu lugar de origem, anterior à percepção vivida, ou apercepção. Percepção
sensível, antes da apercepção, é a porta de entrada da coisa em si, ou da coisa bruta,
como diz Merleau-Ponty, mas coisa bruta que tão logo se me adentra os umbrais
da percepção deixa de sê-la, desfeita de sua facticidade inefável anterior. Entenda-
se por facticidade “a oposição à logicidade supratemporal, a facticidade é tempo-
ral, portanto contingente, concreta, única, irrepetível” 47. O eu sou antes da for-
mulação eu sou, a coisa antes da constituição da coisa em minha consciência, um
haver sem forma, um Il y a sem forma, posição absoluta, “doação se dando ela
mesma”48 antes de qualquer doação predicativa de sentido. De tal forma que o
sensível enquanto tal ele mesmo é “a forma universal do ser bruto” 49, silenciosa,
informe, negatividade; profundidade infraobjetiva “(l’il y a) do mundo [que, so-
mente ela] pode-se dar ela mesma ao coração do sensível” 50. Sendo assim, ao
falarmos da facticidade, do ser bruto, da anterioridade de tudo quanto ôntico,
estaremos a falar de uma presença sem corpo, de uma diferença ontológica que
em face do Ser há de beirar o inefável, o Il y a, o irredutível, diferentemente
nomeado conforme o autor considerado: a abundância ou generosidade (mais tarde
em Heidegger 51), um silêncio sussurrante (mais tarde, em Levinas)52.
Resta-nos saber se esta indeterminação, se a postulação sobre esta opacidade
do ser, encontra-se contemplada ou tematizada na Fenomenologia husserliana,
ou, ainda: é a Fenomenologia uma ontologia?
47 Maldiney. L’irréductible, p.2748 ibidem, p.2849 Merleau-Ponty apud Barbaras. Introduction à la philosophie de Husserl, p.10050 Barbaras.Introduction....., p.9951 Heidegger apud Levinas. Ética e infinito, p.3352 Levinas. Ética e infinito, p.33.
37
3. c. A Fenomenologia não é uma ontologia
Ora, a Fenomenologia é filosofia da consciência pura ou transcendental e
dos modos como essa consciência constitui e opera as doações de sentido a tudo
quanto vige no pólo objetal da intencionalidade. É um epistemologia. Para além
disso, nos perguntamos: que resposta ela poderia dar para a questão do transcen-
dente, ou seja, para a questão de tudo quanto transcende a consciência como real
existente? Seria ela, nesse sentido, também uma ontologia?
Em Husserl, o conceito e o uso da intencionalidade faz com que ele refine,
mais do que se afaste, do idealismo radical como o de Berkeley, e que ele refute o
empirismo atomista como o de Locke; assim como supera Hume, na medida em
que pelo método das variações eidéticas (redução eidética) consegue delimitar a
identidade e unidade do noema, correlato à coisa existente que lhe corresponda, e
posto que é o resultado final, ainda que uma idealidade, da convergência de infi-
nitas doações de sentido aos perfis múltiplos anteriores do objeto intencionado,
estes (os perfis de objeto) que para Hume seriam apenas múltiplas e isoladas im-
pressões e idéias não convergentes e não unificáveis entre si, e portanto, de forma
a constituirem apenas identidades pontuais do objeto.
Mas, se a Fenomenologia tem sucesso quanto a essas contraposições 53, isso
ainda não é uma Ontologia, é meramente uma ontologia regional, uma ciência
dos entes (ciência de realidades fáticas), ainda que tenha inegável valor heurístico.
Já, se evocarmos o desafio colocado à Filosofia da “coisa em si’ kantiana,
ainda que o projeto fenomenológico seja um aprofundamento e aperfeiçoamento
do projeto crítico, não resta claro que Husserl tenha avançado quanto à tangibilidade
da coisa em si.
53 “A constituição fenomenológica de um objeto significa o seguinte: consideração da universalidade doego sob o ponto de vista da identidade deste objeto, a saber, na indagação da totalidade sistemática dasvivências reais e possíveis da consciência que, enquanto referíveis a ele, estão esboçadas no meu ego esignificam para o meu ego uma regra firme de sínteses possíveis” em Husserl. Conferências de Paris, p.34
38
Esta é a posição que prevalece entre os diversos comentadores de Husserl.
O “zu den Sachen selbst”, o retorno aos objetos, ou às coisas mesmas, husserliano não é
um elogio ou remissão empirista aos dados sensíveis não formalizados pela cons-
ciência, é apenas uma forma de redignificar o objeto, porém ainda enquanto
objeto na consciência, mediante a rigorosa operação do pensamento em unificá-
lo e identificá-lo em sua essência de tal forma a tornar possível uma ciência filosó-
fica comprometida com a verdade, contra uma ciência que meramente reproduz
representações apressadas e impróprias do objeto em estudo, ainda que estas pro-
duzam resultados efetivos do ponto de vista pragmático ou funcional; é uma
remissão à ciência filosófica, à razão teórica, ante a precariedade fundacional da
Técnica, a que mais tarde Horkeimer viria a denominá-la razão instrumental.
A fenomenologia é uma filosofia primeira epistemológica, matriz e referên-
cia para fundamentar todas as Ciências ditas empíricas e, neste sentido é uma
extensão do projeto fundacionista cartesiano e kantiano da dotação de condições
mínimas de validade para o conhecimento dito científico.
Mas, se pensarmos a Fenomenologia como uma Ontologia ela terá eviden-
tes limites. Pois, se o projeto fenomenológico prescreve a consciência absoluta ou
transcendental como o cenário mais confiável das operações do pensamento, e a
consciência absoluta no dizer de Husserl é como um “resíduo da aniquilação do
mundo”54 como poderá ela validar-se não apenas como correlato do mundo, mas
como coincidindo com o mundo? Como poderá o ego transcendental estar dentro
do ego fenomonológico?
É a posição do próprio Husserl, a perpassar as Idéias diretrizes para uma
Fenomenologia:
Mas como fica o eu puro? Será que, pela redução fenomenológica, também
o eu fenomenológico que encontra coisas se converteu num nada
transcendental? Façamos a redução ao fluxo da consciência pura. Na reflexão,
54 Husserl. Idées.........,§49, p.160
39
toda cogitatio efetuada assume a forma explícita cogito. Será que ele perde essa
forma, quando praticamos a redução transcendental?
Desde logo, tudo quanto pode estar claro é o seguinte: depois que executa-
mos essa redução, não encontramos o eu puro em parte alguma do fluxo dos
diversos vividos que resta como resíduo transcendental, nem como um vivi-
do entre outros vividos, nem como parte própria de um vivido, nem surgin-
do e desaparecendo com o vivido de que ele seria parte.55
É também a posição de Sartre:
O campo transcendental purificado de toda estrutura egológica recupera sua
limpidez primeira. Em um sentido é um nada porque todos os objetos físi-
cos, psico-físicos, todas as verdades, todos os valores estão fora dele, e porque
o meu Eu deixa ele mesmo de dele fazer parte 56
É a posição muito bem fundamentada por Carlos Alberto Ribeiro de Moura57,
ainda mais porque efetuada no interior mesmo dos conceitos e linguagem
fenomenológica husserliana. Aponta ele que a Fenomenologia se faz por e a partir
de atos categoriais ou sintéticos, pois toda doação de sentido, noemática, em
sendo ato do entendimento, é categorial e sintético, e sintaticamente estruturado.
Difere neste sentido do ato sensível, pois que todo o sensível se constitui, em
última análise, num ato simples de percepção, não sintético e não sintático.
Ora, se em Lógica formal e transcendental, de 1909, Husserl retoma a temática
do preenchimento e da clarificação dos juízos, numa tarefa designada como lógica da
verdade, ou ainda, de adequação do juízo à realidade, então, há que se proceder
mediante o “princípio da redutibilidade”, a saber: o categorial de nível superior
deve remeter a um categorial de nível inferior, o que, no limite, remeterá “a
juízos cujos núcleos não contenham em si mais nenhuma formação sintática,
remetendo diretamente à experiência” 58.
55 Husserl. Idéias para uma Fenomenologia pura, §57, p.13256 Sartre. La transcendance de l’ego, p.7457 Moura. Husserl nos limites da fenomenologia in Racionalidade e crise. p.133-5758 ibidem, p.138
40
Indiferentes quanto a coerência ou validade interna de uma mathesis universalis
fenomenológica , mas fundamentais para uma lógica da verdade, estes “objetos
substratos últimos”, são núcleos informados pela experiência, e, em última análi-
se, pela percepção, “são os indivíduos aos quais toda verdade finalmente se refe-
re”59. Então, saímos da “evidência de distinção” para a “evidência de claridade’,
da evidência apodítica das doações últimas de sentido para a “evidência das coisas
correspondentes a esses sentidos”. Nesse imperativo do preenchimento e da cla-
rificação, anseia-se por um “primeiro em si”, ou “um reenvio genético das evi-
dências predicativas à evidência não predicativa”60. O juízo mais original que se
funda na experiência, inevitavelmente implicará numa segunda remissão: a remis-
são da experiência à subjetividade, ainda que esta se pretenda pura, a remissão a
uma nova intencionalidade constitutiva reforçadora do ato perceptivo em sua
pertinência própria e em sua relação coerente com outros objetos intencionais
que se lhe referem. Assim somos levados a pensar num lugar intermediário para
esse “primeiro em si”: “Além da sensibilidade e aquém do entendimento - tal é o
lugar deste elemento “categorial” presente na esfera antepredicativa. Ele delimita
exatamente a região necessária à mediação entre o entendimento e a sensibilidade,
sem ser exatamente localizável em nenhum deles”61.
Somos, assim, novamente lançados às fronteiras da facticidade. Mas como
apreendê-la em sua existência antepredicativa, se para identificá-la, nomeá-la, tê-
la-emos organizado antes na estrutura tácita e involuntária do pensamento? Para a
subjetividade transcendental – condição de possibilidade da objetidade – e que
estaria estruturada a priori por uma gramática lógica imanente, a natureza (o extra-
mental) já estaria articulado e unificado em gêneros e espécies e suas respectivas
sub-regiões, categorizados, em uma comunidade ou unidade que nada ou pouco
59 ibidem, p.13860 ibidem, p.13961 ibidem, p.147
41
pode ter a ver com a sua realidade material, última, individual, irrepetível...então
a facticidade, em última análise, a Ontologia não estaria no campo da
fenomenologia, ou de qualquer filosofia de conotação crítica, mas no campo da
Metafísica. Posto isso, a fenomenologia e Husserl não tratam de investigar a “ori-
gem do ser”, mas a “origem do conhecimento do ser”. E nesse sentido, Moura
finaliza que “são os neokantianos que – seguidos aqui de perto por alguns intér-
pretes de Husserl – confundem a condição de possibilidade da objetidade com a
condição do ser em geral e, desde então, confundem constituição com criação62.
Em um outro texto, Moura63 nos indica os fundamentos de uma outra
limitação da Fenomenologia como ontologia, quando esta teve de se voltar para a
vida perceptiva em face de sua exigência de verdade. O primado da percepção,
coroado em Merleau-Ponty, leva-nos a querer exaurir todas as possibilidades que
nos permitissem tocar a existência antepredicativa, porém, para Husserl o que
temos é apenas um “horizonte’ de perfis apenas visados, que ele, Husserl, decre-
tava serem infinitos e a doação mais adequada seria apenas uma “idéia situada no
infinito” 64. Tudo porque essa idéia de horizonte e infinito estará dada pelo fluxo
dos vividos, pela série irredutível em suas partes, polifônica e uníssona em uma
série infinita de impressões, retenções e protensões, dadas pela experiência íntima
do tempo. “Inseridos no tempo, os vividos de nossa consciência constituem um
‘fluxo permanente’, no qual não existe nenhum rosto estável pronto para nossa
descrição”65 o que claramente coincide com Kant, para quem a coisa em si,
remanescerá para sempre oculta: [se o tempo é a] “forma de nossa intuição inter-
na, ele só nos dá a conhecer a mudança das determinações, mas nunca o objeto
determinável”66. Quando, mais do que as condições para a verdade, se pretende a
62 ibidem, p.15363 Moura. A invenção da crise in Racionalidade e Crise. p.185-20564 ibidem, p.19865 ibidem, p.20166 Kant apud Moura. A invenção da crise... p.201-02
42
verdade, restará ferido o princípio dos princípios, pois ao acolher a apoditicidade
como evidência, que só se dá no interior da consciência, estará implicado ipso
facto o reconhecimento de que não há como termos acesso [confiável] ao “origi-
nário ou a uma “presença” plena 67. “Husserl não renunciará ao intuicionismo.
Mas a razão não poderá mais ser comensurável à contemplação de um espetáculo
terminado” O desafio lançado à filosofia ocidental, o de propor e fundamentar
uma ontologia segura estará lançado. Ricoeur aceitou esse desafio. Mas, para
explicitarmos o como e a partir do que ele o fez, necessitamos, para seu melhor
entendimento, um breve recuo ao idealismo alemão.
4. BREVE RECUO NO TEMPO: O IDEALISMO ALEMÃO
Esse recuo se faz necessário, na medida em que para Ricoeur, a fenomenologia
husserliana, assim como outras filosofias reflexivas contemporâneas, reinterpreta
Descartes através de Kant e Fichte 68.
Antes de Husserl, num período que se estende da década de 80 do século
XVIII e que se prolonga até a metade do século XIX. Seu ponto de partida é a
recepção inicial à filosofia kantiana, mais propriamente a recepção à Crítica da
Razão Pura (CRP), publicada em sua 2ª versão em 1787, e ainda mais especifica-
mente ao problema formulado por Kant da coisa em si (“ding an sich”), o que está
além do que a intuição humana pode dar conta de representar, resíduo inacessível
ao conhecimento 69, mas cuja existência pode ser concebida na medida em que tal
hipótese não se mostre contraditória, e que será fato desde que a intuição sensível
não seja o único e exclusivo modo de intuição.
A partir dos gregos, em que se medita sobre o conhecimento como a
interação, ora mais, ora menos equitativa entre o sensível (aisthesis) e o inteligível
67 Moura. A invençao da crise..., p.203.68 Cf. Ricoeur, O conflito das interpretações, p.23269 Thouard. Kant, p.88
43
(noesis), alguns autores (como Descartes e Espinosa) inclinam-se para o polo
intelectivo das intuições; outros, para o seu pólo sensível, tal como Locke; outros,
no entanto, como Leibniz (verdades de fato e verdades de razão) e Kant, estão mais
afinados com o equilíbrio aristotélico (De anima III) relativo a essa questão. Na
Estética Transcendental, Kant afirma que a intuição que se relaciona de imediato
com os objetos é a intuição sensível ou empírica, que o conteúdo indeterminado
dessa intuição empírica é o fenômeno, dando o nome de matéria ao que no fenôme-
no corresponde à sensação. Num outro polo, tão necessário quanto o anterior, a
ordenação da diversidade nativa do fenômeno é a forma do fenômeno, e essa
ordenação que se exerce a priori no espírito, antes da sensibilidade e da experiên-
cia, será a forma pura das intuições sensíveis, espaço (exterioridade) e tempo
(interioridade), fundamento e condição de possibilidade para a intuição sensível.
É o que se depreende também da Dedução Transcendental em que as catego-
rias do pensamento constituem os objetos da experiência mediante conceitos, isto
é, que o pensamento organiza nossas intuições sensíveis, de tal maneira que estas
(já possibilitada pelas formas puras do espaço e tempo) ao nos oferecerem a
multiplicidade fáctica do mundo, se organizem numa outra dimensão do pensa-
mento, em que, mediante as categorias, essa multiplicidade sensível se unifica em
objetos e relação entre objetos.
Vimos acima que Husserl, ou não tem a preocupação de problematizar a
questão da coisa em si (o que nos parece mais provável), ou sua filosofia não teria
a qualificação adequada para responder a essa questão. Sua Filosofia adentrou e
dignificou, por sua profundidade, as questões propriamente epistemológicas,
aquelas em torno mais da possibilidade do conhecimento do que propriamente
de seu conteúdo.
Não foi esse o caminho escolhido pelos idealistas alemães, antes de Husserl.
Longe de serem anti-kantianos, a preocupação de muitos foi a de tematizar, em
doutrinas especulativas, metafísicas, de forma totalizante e sistemática, o que Kant
44
apontara, mas nem mesmo tematizara, a saber: o fundamento ontológico, a razão
(grund) de todo o conhecimento. Para Hartmann, o idealismo alemão foi a “rea-
ção histórica da sistemática construtiva contra a crítica destrutiva [o criticismo
kantiano]” 70. De Reinhold a Schopenhauer, passando por Fichte, Schelling, e
Hegel, e de Schelling, derivando-se para os poetas pré-românticos alemães
(Schlegel, Novalis e Holderlin), a preocupação da época era a resposta por um
anseio especulativo, por uma ontologia que em certas fases de alguns destes
autores e suas obras pode ter tangenciado o irracionalismo, a Religião, ou a
não-Filosofia.
A Elementarphilosophie, de Reinhold, concorda com Kant quando reconhe-
ce tanto a sensibilidade como a intelecção como formas de representação, e pensa
que a unidade do sistema deve ser buscada no seio mesmo dessa representação. E,
para ele, a fundação mesmo da legitimidade dessa representação, o seu caráter
irredutível, é o princípio de consciência, que de uma maneira ou de outra norteará a
importância que todo o idealismo alemão dará para a questão do Eu, buscando
exauri-la no que toca ao sujeito transcendente que pensa o objeto. O fato represen-
tativo é apenas o meio do conhecimento, não o conhecimento ele mesmo e, pelo
princípio de consciência, a consciência é o núcleo fundante de todo o conhecimento,
consciência possibilitada pelos qualificativos de espontaneidade e receptividade.
Será esta lição inicial, que terá em Fichte um desenvolvimento e alcance muito
mais abrangente e fecundo. 71 e 72, estendendo-se, de uma questão epistemológica,
para uma tematização ontológica especulativa que explicita as relações intrísecas
de fundamento do ser e existência.
70 Hartmann. A filosofia do idealismo alemão, p.1171 cf. Market in Gil (coord.) Recepção da Crítica da Razão Pura, p. 157-67 e cf.Hartmann. A filosofia do
idealismo alemão, p.15-2372 Matéria, em Reinhold, corresponde ao objeto material da Escolástica medieval, e objeto, corresponderia
ao objeto formal, conforme definido pela última.
45
Se por um lado, Reinhold foi amplamente superado por Fichte, vejamos,
no entanto, com que rara felicidade ele discorre, metaforicamente, sobre a dife-
rença entre matéria (parte sensível da representação) e objeto (o que fundamenta a
representação enquanto consciência) 72:
Quem quiser ter uma imagem intuitiva da diferença entre matéria e objeto
de uma representação, pense numa árvore a uma distância que torne impos-
sível divisar qual a sua espécie, formato e tamanho, assim como as suas qua-
lidades mais próximas. Aproxime-se, então, pouco a pouco da árvore: nessa
mesma proporção, a sua representação irá adquirindo mais e mais matéria. A
matéria da sua representação ir-se-á modificando, aumentando, enquanto que
o objeto em si permanecerá sempre o mesmo73.
Tomando essa citação como base, podemos aproximadamente compreen-
der, por que caminho Fichte e Schelling desenvolveram no limite da excelência
suas respectivas filosofias: Fichte entendia o objeto [objeto formal] como condi-
ção de possibilidade do objeto material e como fundamento último do sujeito que
formaliza a matéria enquanto objeto, encontra o Eu Absoluto, incondicionado na
sua forma e no seu conteúdo, posto por si mesmo e para si mesmo, como estado de
ação (tathandlung) antes do que estado de coisa (tatsache).
Schelling em sua filosofia especulativa da Natureza, encontra uma Filosofia
da Identidade, “em que todo o conhecimento do absoluto mais não é do que o
assentimento dado à sua presença em nós, assentimento que não procede da
subjetividade, mas sim do seu aniquilamento”74.
Portanto, seja em Fichte ou em Schelling, desloca-se, a partir de então na
Filosofia, o fundamento da unidade sintética da apercepção de Kant de sua base lógi-
co-epistemológica para uma região mais permeável à manifestação do ser. O que
nos permite dizer que, em grande parte, o idealismo alemão é uma ontologia.
Ocorre, no entanto, que em Schelling essa Ontologia pressupõe na coisa em si
73 Reinhold. Excertos de Briefe........, p.18374 Morujão, na “Introdução” a Schelling,“Idéias para uma filosofia da natureza, p.19
46
kantiana a existência objetiva de realidades não apreensíveis pela consciência, e
em Fichte, a única coisa em si que se pode validar como existência objetiva é o em
si da consciência, o Eu absoluto, ação pura da consciência, este o fundamento do
conhecimento de onde partirá a validação de tudo quanto é o para si da consciên-
cia, inclusive a existência de si própria, agora apreendida reflexivamente e posta
para si mesma, desde que, agora pensamento, viu-se como resultado do Eu abso-
luto, ação pura antes de qualquer possível conhecimento.
Essa intuição fichteana de uma ação indeterminada que antecede o ser reflexi-
vo, por um lado, repete a fundamentação do Cogito num Absoluto, tal como o
fizera Descartes, na terceira meditação, quando atravessa a ordo cognoscendi com a
ordo essendi, capitaneada pela prova da existência de Deus; por outro, dessa fenda
aberta no seio mesmo do próprio Cogito, como uma negatividade ou o Absoluto,
propiciará o surgimento de fontes fecundas a nutrir e substanciar, senão um projeto
fundacionista mais seguro, um projeto mais receptivo tanto para a exterioridade,
como para a melhor apreensão do eu, dado a si mesmo também pela ultrapassagem
de si apenas como um eu só pensante, mas também como agente, como o será em
Ricoeur, cujo conceito de atestação, em O si-mesmo como um outro, ancora-se não
apenas mediante a consciência reflexiva, mas, sim, mediante os vários atos intenci-
onais do eu, tais como os do locutor, os do agente, os do eu enquanto personagem
da narração, e os do enquanto sujeito da imputação moral. Evidentemente que em
Ricoeur, a ação do eu não será uma ação pura como a que vimos em Fichte, mas
uma ação consciente e dotada de uma multiplicidade maior de objetos intenciona-
dos, ação mais além e determinada do que a ação pura indeterminada fichteana
(princípio da identidade) e mais além do que a mera consciência de um eu e um
não-eu que se lhe opõe (princípio da contradição). Trata-se, em Ricoeur, de
opor frente a um Cogito solipsista, por natureza, ou frente a um Cogito fendido,
desfeito pela tentativa mesmo de superação do limite de si próprio, e frente à
identidade mesma do eu como mesmidade, opor uma identidade como ipseidade,
47
e uma Ontologia e uma Ética comprometidas com e tributárias do movimento,
do tempo, da história, da alteridade, mediante a pluralidade semântica dos signos
da cultura, não sem se manter referenciado a uma reflexividade necessária e
formalizadora da materialidade possível do mundo, mas um Cogito ampliado, dali
em diante um Cogito como multifacetada fonte doadora de sentidos, Cogito
hermenêutico, um próprio à escuta de um outro. Diferentemente, se há também,
no idealismo alemão, um movimento subjacente ao processo universal de tudo
quanto existe, este movimento cessará quando da Identidade original reencontra-
da, ou seja, o Absoluto. O termo final do movimento é repouso dado pelo en-
contro do Absoluto. Já em Ricoeur não haverá o Absoluto e como tal não haverá
termo final do movimento. Vale dizer, ainda, que para ele o Absoluto é movi-
mento. O Absoluto é o outro de si-mesmo; horizonte que se pretende sugerir
entrevisto ao final da presente dissertação.
Se a ação pura em Fichte antecede o pensamento reflexivo, este ainda é o
fundamento do que se lhe opõe, a saber, o objeto do pensamento; e diferencia-se
de Kant na medida em que reduz a coisa em si (inapreensível) não ao que vige no
entorno da consciência, mas no interior dela mesma, consciência, na medida em
que ela consciência põe para si mesma o objeto e como ela se origina no seio
mesmo da ação pura, fundamento do pensar, o objeto é a subjetividade. Fica
então afastada qualquer preocupação filosófica com uma coisa em si extrínseca ao
sujeito que pensa.
Essa não foi a solução encontrada por Schelling para dirimir a aporia do
Cogito, aporia figurada em Kant nas antinomias da razão pura. Diferentemente de
Fichte, Schelling postula a existência objetiva de um absoluto (a Natureza) que
transcende a subjetividade, porém, de uma forma quase invertida à de Fichte, em
que a subjetividade, no limite de seu aniquilamento, é ela mesma a própria
Natureza, de tal forma que o fundamento ou a fundação última do conhecimen-
to dá-se pela identidade entre pensamento e ser.
48
Já Kant postulava, na Crítica da Razão Pura, em sua doutrina da imaginação,
que a intuição (sensibilidade) e o conceito (entendimento), respectivamente polo
passivo e polo ativo do conhecimento, podem integrar-se num elemento unificador
“que permita configurar um produto – a saber, o objeto – em que se manifeste e,
por isso mesmo, se suprima a dualidade entre ambos”, esse elemento unificador é
dado pelas idéias da razão. Só as idéias da razão permitem a integração e, mais
do que isso, a superação dos limites da sensibilidade e do entendimento, mas não
como idéias constitutivas da realidade pois que essa não é apreensível por ambos,
mas apenas como reguladoras e legisladoras, no uso mais propriamente livre e
autônomo da razão, não se garantindo assim qualquer estatuto ontológico subjacente
às realidades postuladas. Schelling vai além; mais do que essa afinidade prevista
por Kant entre espírito e mundo, ambos, espírito e mundo, são o mesmo em sua
origem mais remota, e essa origem é ela mesma o fundamento do conhecimento,
dado, assim, por uma ontologia sem qualquer dualidade constitutiva, como bem
nos mostra Hartmann:
o primário não vem a ser os produtos inorgânicos da natureza, mas precisa-
mente a organização dos mesmos (...) o organismo não é uma propriedade
ou um modo de existência das coisas particulares; inversamente, estas são
outras tantas delimitações ou formas de intuição do organismo universal 75
A fundamentação do monismo de Schelling, adverte-nos Morujão76, não
recorre à metafísica dogmática, tal como em Espinosa (neste, pensamento e ex-
tensão são tributários de uma origem comum e incompreensível, Deus; já em
Schelling, não é necessário recorrer a algo que transcenda o espírito para fundá-lo
em sua inteligibilidade, pois é o espírito mesmo que contém a totalidade de suas
determinações e ele, espírito, é em si mesmo indiferenciação absoluta e genética
entre conhecimento e sujeito do conhecimento, de tal forma que em Schelling as
75 Hartmann. A filosofia ..... p.13976 Morujão. Introdução in Schelling, Idéias p/ uma Filosofia da Natureza, p.7-22
49
condições epistemológicas mais abrangentes são dadas por uma ontologia e ética
identificadas, fundidas e reveladas pela via estética da contemplação, em que nós
mesmos nos tranformamos naquilo que vemos 77.
Essa lição de Schelling, qual um panpsiquismo ou sinequismo, Husserl não
a desenvolveu para a construção de sua Fenomenologia; segundo Morujão, em
Husserl “a visada intencional enforma uma hylé não intencional” 78. Ainda que,
como vimos, Husserl, introduzirá a dimensão da temporalidade para alargar a
capacidade cognitiva do Cogito, este alargamento, ou espessamento, não amplia o
Cogito a ponto de lançá-lo para fora de si mesmo, de tal forma que o fora estará,
em Husserl, sempre nos limites instransponíveis da imanência, isto é, dentro da
consciência, indisponível como puro fora. De outra maneira, em Husserl, só a
consciência revela a transcendência. Em Schelling, é o aniquilamento mesmo da
consciência que revela a transcendência 79.
77 Não será muito diferente em Ricoeur, esta aproximação de sujeito do conhecimento e do objeto doconhecimento, em que a linguagem, as palavras, mediante o recurso às metáforas, coincidirão com asrealidades significadas, de tal forma que a cada um sentido dado corresponda uma referência dotada deestatuto ontológico. Permitindo-nos já antever que a epistemologia ricoeuriana é, no limite, umaontologia.
78 Morujão, ibidem, p.1979 À sua maneira, Ricoeur utilizará o recurso à alteridade para superação do Cogito solipsista, aqui não
como em Schelling, em que o eu se aniquila, mas ampliando a reflexividade do eu mediante a escuta dooutro, fazendo da fenomenologia uma fenomenologia hermenêutica, na medida em que a hermenêuticavem representar a abertura para os múltiplos sentidos do objeto do conhecimento dados pela Cultura,e, em última instância, o mesmo que a abertura para a diversidade e a alteridade.Além disso, o que nos aponta Ricoeur, é que a fecundidade das palavras e das metáforas (o outro daspalavras) fazem a consciência, na operação do conhecimento, transcender a “intencionalidade sem obje-to” esta que seria mera estrutura gramatical imanente da consciência pensante a prefigurar o objeto; ametáfora viria surpreender e vulnerabilizar o Cogito, até então posto em sua circularidade solipsista,disponibilizando-o para captar a referência pura das coisas em si mesmas, de forma a se justificar a postulaçãoricoeuriana de verdade metafórica. A metáfora, mediante sua impertinência semântica, tão mais apodíticaquanto mais impertinente, permitir-nos-ia o salto para o fora da linguagem, como a tanger a transcendênciado objeto, esta que é a objetividade ou mesmo a exterioridade pura do objeto.
50
Pois bem, na Doutrina da Ciência, em Fichte o fundamento da certeza da
verdade se assenta no princípio da identidade, a do Eu Absoluto. Ora, quando o Eu
absoluto, mediante a ação, põe-se a si mesmo e parte dele se destaca do todo, então,
no seu conteúdo, instaura-se o princípio da não-contradição, a saber: o não-A de A é
diferente de A. Disso resultam o eu espaço-temporal e o que lhe está fora, condicio-
nados ao Eu absoluto, o que nos obrigaria pressupor um não-Eu dentro do Eu. Ora,
essa evidente contradição é tarefa que requer uma superação, pois a infinitude do Eu-
Absoluto, posto que infinita, excluirá, obrigatória e formalmente a sua co-existência
com alguma coisa senão ela mesma. A superação (lösung) ante a tarefa (aufgabe) posta
estará condicionada pela razão prática, por um decreto absoluto da razão: a única
resposta possível é a de que, mediante um imperativo categórico, incondicionado, se
determine que “oposto ao Eu-absoluto, o não-eu é pura e simplesmente nada; oposto
ao eu limitável, ele é uma grandeza negativa”, ou seja toda a realidade está na consci-
ência, una e incondicionada, toda a realidade está no conceito 80.
E, com isso, Fichte remete o “Eu penso” para o “Eu sou”, em que ser, aqui,
não poderá significar o existir. É dado apenas como necessidade lógica da razão e,
para isso, intuído como ação pura.
Schelling, de sua parte, procurou objetivar este “Eu”, em aniquilamento pro-
gressivo, a torná-lo ele mesmo o objeto (Natureza), e no objeto deixar de existir.
Em ambos, se, todavia, este “Eu” (ação pura ou natureza) é originário e
fundante, e, neste sentido, postula-se como decifração da coisa em si kantiana e
como fundamento de todo conhecimento, nem por isso, assim como em Husserl,
o Ego cogito, poderá coincidir-se a um só tempo como transcendental, purificado
do mundo, e sujeito de conhecimento, pois que para conhecer o mundo e
80 cf. Market. Johann Gottlieb Fichte in Gil, F. Recepção da Crítica da Razão Pura, p. 291-306 e Fichte.A doutrina da Ciência de 1794. p. 52-4
51
conhecer-se a si mesmo (reconhecer-se) é necessário (ex)istir; o que, então, viria
a nos oferecer um outro problema, o mesmo problema que no Teeteto, de
Platão,resultou em aporia: se a existência do ser e das coisas, tal como Heráclito
intuiu, implica em deslocamento (phora) e mudança (alloiôsis), como dizê-los se-
não, como queria Protágoras, na precariedade do instante e a na precariedade do
homem, medida de tudo quanto se lhe oferece ao seu conhecer.
Porque o Cogito, até aqui, de Descartes até Husserl, esboçou superar aporias, é
ainda um Cogito em repouso e esperar-se-ia que em algum momento a história da
filosofia pudesse enfrentar a questão: de como é possível dizer o mundo, se o mun-
do mesmo, no movimento do tempo, não é mais o mesmo após a palavra dita 81.
81 Bergson aceitará esse enfrentamento em O pensamento e o movente, coletânea de ensaios escritos de1903 a 1923, assim como Heidegger, em O Ser e o tempo, de 1927. Já Ricoeur aceita esse desafio, coma publicação de Tempo e narrativa entre 1983 e 1985, em que a partir do cruzamento entre o conceito dedistentio animi, do livro XI das Confissões de Agostinho e a teoria do muthos trágico, da Poética deAristóteles, elege a narrativa histórica e literária como o gênero privilegiado em que a dimensãotemporal da ação reconfigura o configurado, seja na refiguração do acontecimento ou mesmo na daidentidade, podendo servir à Filosofia como instrumento valioso para a construção de uma ontologiafundamental. O recurso à temporalidade da obra filosófica de Ricoeur não será tematizado eproblematizado na presente dissertação.
52
1. A CRÍTICA AO IDEALISMO HUSSERLIANO
Em sua Autobiografia intelectual, Ricoeur se diz inserido na tradição da filoso-
fia reflexiva, mais especificamente na tradição fenomenológica. Assim é que, em
1950 faz publicar a tradução francesa do original alemão das Idées directrices pour
une phénoménologie de Husserl, acompanhada de uma Introduction par le traducteur
À época, nomes influentes e em voga na filosofia francesa tinham obras com
feição de uma ontologia francamente realista ou existencialista, como as de Scheler,
Henri Bergson, Gabriel Marcel, Jaspers, Mounier, e mesmo Heidegger, que
condicionavam o pensamento filosófico da época para uma recepção não idealista
da filosofia husserliana, a de um caráter objetivante do conceito de intencionalidade
(mais voltada para o objeto), conforme a tradição escolástica e brentaniana, de tal
forma que o Husserl idealista e ultracartesiano das Idées e das Meditações cartesianas
restou enfraquecido, e com ele o estrito ancoramento fundacional no Cogito e a
reinvidicação de uma apoditicidade dada na imanência da consciência pura. É o
que se vê nas considerações de Sartre acerca da intencionalidade:
Husserl não cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas na consci-
ência(...) Mas Husserl não é de modo algum realista(...) A consciência e o
mundo são dados de uma só vez: por essência exterior à consciência, o
mundo é, por essência, relativo a ela. É que Husserl vê na consciência um
fato irredutível, que nenhuma imagem física pode exprimir. A não ser,
talvez, a imagem rápida e obscura da explosão. Conhecer é “explodir em
PAUL RICOEURDas aporias do Cogito à proposição
de uma Fenomenologia hermenêutica
III
53
direção a” (...) em direção ao que não é si mesmo, para perto da árvore e
no entanto fora dela, pois ela me escapa e me rechaça e não posso me
perder nela assim como ela não pode se diluir em mim: fora dela, fora de
mim(...) pois a consciência não tem “interior”; ela não é dada senão o
exterior de si mesma, e é essa fuga absoluta, essa recusa de ser substância ,
que a constitui como substância. 82
Tais considerações de Sartre apontam para o Husserl da Krisis, obra que
estabelece a unidade fundamental entre a consciência e o “mundo da vida”
(lebenswelt), capaz de requisitar para si a tentativa afinal da superação do solipsismo
e das aporias do Cogito até então, de tal forma que o neocartesianismo de Husserl,
de fato um ultracartesianismo nas Idées e nas Meditações cartesianas se submeteria, a
partir de Krisis a ser mesmo quase um anticartesianismo.
Se, na primeira das Meditações cartesianas, Husserl alinha-se com Descartes
quanto a uma evidência de verdade ancorada na apoditicidade anterior do Cogito,
acusa-o, contudo, de um escolasticismo oculto e um viés metodológico dado pela
ciência matemática da natureza, em que a partir da intuição do ego cogito, bastaria
para a construção do conhecimento seguro uma série seqüencial de deduções
acerca do mundo mediante “inferências bem dirigidas, seguindo os princípios
inatos do ego”83.
Ora, tais inferências, para Husserl, mostram-se tão mais questionáveis quan-
to mais Descartes converte o ego em substantia cogitans, “em humana e separada
mens sive animus, e em ponto de partida de conclusões regidas pelo princípio da
causalidade”. E são justamente a estes prejuízos, de um ego cogito psicologizado e
operador de uma matriz reducionista para a leitura do mundo, que Husserl se
opõe, propondo-se a fundar um terreno epistemológico inabalável a contingênci-
as e presunções, de maneira a reduzir de fato a consciência a uma transcendência
muito mais próxima de um formalismo lógico e necessário para a inteligibilidade,
82 Sartre. Uma idéia fundamental......in SARTRE. Situações I. p.55-683 Husserl. Meditaciones cartesianas. p.34
54
univocidade e universalidade do objeto intencionado (imanente à consciência) a
ser traduzido, pois, por uma fenomenologia que se quer realmente uma “ciência
rigorosa”. Uma ciência rigorosa a tal ponto que uma ciência sem mundo.
Todavia, uma fenomenologia que, mais tarde, se proporá na Krisis a erigir-se
a partir da indistinção sujeito/objeto e da indissolubilidade dessa indistinção poderia
ser de fato questionada quanto à sua coerência interna, ou apenas ensejar-nos a
proposição de que a fenomenologia husserliana é, sim, uma epistemologia rigorosa
e que na Krisis quis apenas posicionar-se e requerer para si também a possibilidade
de compreender e dizer o mundo, reinvidicando-se o estatuto de uma ontologia.
Socorre-me a seguinte imagem: o carpinteiro, com chave de fenda e parafu-
so, se propõe a fixar uma porta no batente. Batente, que é o suporte de onde se
vislumbrará o fora, a realidade, todas as vezes em que a porta se abrir.Toma então
a ferragem, dobradiça, que será a liga necessária a articular a porta com o batente.
Tomando a dobradiça como referência, em seu eixo longitudinal, dela se projeta
uma banda já firmemente fixada ao contorno lateral e interior da porta.
A outra banda há que se fixá-la ao batente. Com a chave de fenda, o carpin-
teiro, faz girar o parafuso ante a madeira que se lhe opõe, e o parafuso, cujo corpo
vai aos poucos penetrando e preenchendo o exato e justo diâmetro do orifício
dessa banda da ferragem que, agora sobreposta com firmeza, contigua e longitudi-
nalmente ao batente, a que se quer por fim fixá-la, e com ela a dobradiça, e com
esta a porta, a permitir que esta, a porta, a um só tempo, tenha fixidez ao seu
ponto de articulação e movimentação em torno ao seu próprio eixo.
Pouco a pouco, e mais ainda, com um misto de força e precaução, faz a
ponta aguda do parafuso adentrar a madeira firme que o recebe, mas sempre a ele
se obstando, de modo a recebê-lo sem folga. Há de ter, o carpinteiro, força e
precaução, pois que a um só tempo há que realizar com força o movimento
horário ante o batente denso, porém ainda penetrável, e há que ter uma vigilante
e fina sensibilidade para saber até onde o ponto exato de profundidade a que
55
adentrará, de tal forma que sinta ou, antes, até pressinta o instante exato de parar.
Aquele instante em que não mais se pode ir além, e nem mesmo aquém, median-
te o justo e preenchido diâmetro do orifício da ferragem. Apercebe-se de que o
parafuso é o ente possível que encontrara na caixa de ferramentas, não é o ideal: o
diâmetro em perímetro metálico de sua cabeça tem o mesmo diâmetro do orifício
da banda de ferragem a articular-se ao batente. Qualquer profundidade a mais do
que a justa permitida, inscrustará o parafuso inteiro no cerne mesmo da madeira,
e abrandará a firme articulação e a firme sustentação da porta que, ante ao interno
preserva-o em seu resguardo isento, e ante ao externo desvela-o ao conhecimen-
to. Há que se saber o exato limite entre a consciência e o mundo.
Se se girar de menos o parafuso, a banda da dobradiça junto ao batente não
estará inteiramente firme, e nem mesmo a o interior e a fronteira entre consciên-
cia e mundo. O mais que se girá-lo, o orifício se expandirá madeira a dentro, a tal
ponto que daí pra frente o carpinteiro sentirá o parafuso girar em falso, com toda
resistência a ele, parafuso, dissolvida. A madeira, enquanto objeto que resiste aos
instrumentos e às operações da consciência, já não será pura o suficiente, para nos
transmitir firmeza no movimento da porta que se abre para o mundo. Estaremos,
é certo, abertos ao espetáculo do mundo, mas a madeira, a dobradiça e a porta,
compósita interface entre consciência e o mundo, não nos darão a nós, especta-
dores, a firmeza e validade necessárias ao conhecimento seguro, que é o ponto
exatamente intermediário em que a consciência não é nem só conhecimento sem
objeto, nem o objeto, exterioridade inatingível pelo conhecimento.
Será este ponto de equilíbrio, entre o pensamento/consciência rigoroso,
firme, lógico e operante e o seu mundo/objeto do pensamento, que tornaria
possível uma intencionalidade que fosse a intermediação equilibrada e imparcial
entre consciência e mundo, nem só uma consciência sem mundo, nem só um
mundo sem consciência, mas que exatamente configurasse um significado, agora
acabamos de ver, necessariamente ambíguo de intencionalidade, que quanto mais
56
ambíguo fosse, mais ambíguo tornaria o critério mesmo da evidência, e mais
firmes nos certificaríamos da verdade como correspondência ambígua (a meio
caminho) entre consciência e mundo, até que então, após, não importa a que
tempo após de ambigüidade, sentir-nos íamos por fim tomados, apoditicamente
tomados, por um raio de certeza inquestionável, súbita luz a desvelar a coisa na
quase absoluta neutralidade da consciência (quase pura).
Se o conhecimento, visto como conhecimento de, resta equilibradamente
distribuído entre o ato de conhecer e o que se conhece, então, valeria dizer, no
limite mesmo de uma experiência verdadeiramente paradoxal, que quanto maior
a ambigüidade e a indiferenciação posicional entre sujeito e objeto, na operação
da intencionalidade, maior a inquestionabilidade do conhecimento.
Merleau-Ponty parece ter conseguido algo próximo dessa ambigüidade, em
sua filosofia votada ao primado da percepção. É o que vemos, por exemplo, numa
das passagens de O olho e o espírito.
O enigma reside nisto: meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível(...)
Este primeiro paradoxo não cessará de produzir outros. Visível e móvel,
meu corpo está no número das coisas, e é uma delas; é captado na contextura
do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas já que vê e se move, ela
mantém as coisas em círculo à volta de si; elas são um anexo ou um prolon-
gamento dele mesmo, estão incrustadas na sua carne, fazem parte de sua
definição plena, e o mundo é feito do estofo do próprio corpo. Estes deslo-
camentos, estas antinomias são maneiras diversas de dizer que a visão é toma-
da ou se faz do meio das coisas, de lá onde um visível se põe a ver, torna-se
visível por si e pela visão de todas as coisas, de lá onde, qual a água-mãe no
cristal, onde a indivisão do senciente e do sentido persiste.84
Em Ricoeur:
É da crítica de uma acepção por demais idealista do Cogito, vista na introdu-
ção da tradução francesa das Idées por Ricoeur, e da ambigüidade identitária que
84 Merleau-Ponty. O olho e o espírito. in Os pensadores, vol. XLI, p.278-9
57
se estabelece entre a consciência que conhece e o objeto que se dá a conhecer,
como a aqui vista em Merleau-Ponty, é que Ricoeur partirá para a construção
de seu método fenomenológico, construção que veremos a seguir nos itens III.2
e III.3, a saber, respectivamente: a relação biunívoca entre fenomenologia e
hermenêutica e a relação biunívoca entre repouso e ação, potencia e ato, entre a
consciência e objeto. E é com essa postulação epistemológica que Ricoeur agre-
gará ao Cogito de Merleau-Ponty (menos solipsista que o husserliano, mas ainda
puntiforme e estático), uma maior abertura e extensão, mediante a hermenêutica,
e maior plasticidade e modulação, consentâneas ao movimento do mundo e a
uma filosofia da ação, para uma consciência que se deixa plasmar em ipseidade,
permanência do mesmo no cerne movediço de sua própria mudança.
2. A FENOMENOLOGIA AMPLIADA PELO RECURSO À
HERMENÊUTICA. E DE COMO UMA VEZ AMPLIADA ELA PODE ASPIRAR
A SER UMA ONTOLOGIA, SEM DEIXAR DE SER EPISTEMOLOGIA
REFLEXIVA.
2. a. Heidegger: a analítica da existência como fundamento da
hermenêutica ricoeuriana do eu sou. Ou, o sujeito ontológico em
prejuízo da epistemologia.
Partamos do entendimento do que Ricoeur denomina como seu método, a
“hermenêutica do eu sou”, uma hermenêutica propositiva do “eu sou” que substi-
tuirá ou ampliará o Cogito cartesiano e husserliano.
A hermenêutica do eu sou propõe-se a uma tarefa ontológica, a uma pergunta
pelo ser, mas não o fará nem mediante apenas a investigação puramente reflexiva
e solipsista do sujeito, nem, conforme a via curta heideggeriana, de uma Ontologia
que se desvela por uma quase simultaneidade do eu penso com o eu sou e sem a
58
mediação rigorosa das filosofias reflexivas, mas, o fará submetendo a pergunta
pelo ser à via longa interpretativa dos signos da Cultura, postos eminentemente
na linguagem e, portanto, implícitos à constituição do sujeito, implícitos à sua
forma de ver e de dizer o mundo e a si mesmo. Com isso, pretende ampliar as
filosofias reflexivas tradicionais (de Descartes a Hussserl) que até então se propu-
nham ao conhecimento intuitivo e imediato.
Esse método proposto por Ricoeur, é tributário da Analítica da existência
de Heidegger, o questionamento contínuo do ente (o ser-aí, ou Dasein) face a
busca deste, no tempo, pelo e em direção ao ser. Trata-se, então, em Heidegger
e em Ricoeur, da questão do ser, de uma questão esquecida pela filosofia da
representação e que se faz necessário resgatar 85. Eis, a proposição mesma de uma
Ontologia, que em Husserl foi anunciada, porém não desenvolvida.
Há que primeiro se destruir no Cogito cartesiano sua propriedade de certeza,
eminentemente a certeza de si próprio. A partir daí,
descobrimos a possibilidade de uma nova filosofia do ego, no sentido em que
o ego autêntico é constituído pela própria questão. Por ego autêntico não se
deve entender qualquer subjetividade epistemológica, mas aquele mesmo
que questiona. Este ego já não é o centro, visto que a questão do ser e a
significação do ser são o centro esquecido que deve ser restaurado pela filo-
sofia. Assim, na posição do ego, é preciso considerar ao mesmo tempo o
esquecimento da questão como questão, mas também o nascimento do ego
como questionante 86
O esquecimento da questão como a questão a ser investigada permitirá ao
ego interrogar-se a si mesmo pelo seu ser, resultando no nascimento mesmo do
ego como sujeito, quando ele próprio pode inquirir-se a si mesmo pelo seu sen-
tido de ser, diferentemente do que é realizado na Filosofia até então, posto que
em Descartes o problema último “não era eu penso mas eu sou, como aliás o atesta
85 Cf. Ricoeur. Heidegger e a questão do sujeito in Ricoeur. O conflito das interpretações, p.219-3086 ibidem, p.221
59
a sequência das proposições que, da existência do ego, procede a existência de
Deus e para a existência do mundo” 87.
Ora, em Descartes, haveria uma identificação entre o subjectum como funda-
mento do conhecimento e o subjectum como eu (je), como sujeito, a representar em
si, como proposição, a imagem do mundo, de tal forma que não seria possível haver
uma verdade atemporal, na medida não só da mutabilidade do eu (do je) no tempo,
como da mutabilidade do mundo, então aprisionado na consciência como a ima-
gem fixa de um quadro de molduras rígidas e ainda mais uma imagem matematizada
posto que oferecida para responder-se, em Descartes, às perguntas da Ciência.
Em Descartes, a captação imediata de que, ao duvidar, eu existo me dá a
certeza apenas de que estou desperto e essa captação intuitiva é propriamente,
como acusou Malebranche , um sentimento e não uma idéia, ou um juízo, vale
dizer, que “essa apercepção não é conhecimento de si mesmo” 88. Ou mais, que
a intuição não é reflexão.
Em Kant, se a tarefa crítica é eo ipso um exercício reflexivo, todavia ver-se-
á que toda a Psicologia racional estará dissociada também do conhecimento
empírico de si, até mesmo porque a preocupação é exclusivamente epistemológica.
Para Ricoeur, só em Fichte recobra-se o ato de existir, “a posição de si ante
a espessura de suas obras”; e, mais que isso, deve-se recobrar algo que se perdeu
antes da existência, como fundamento mesmo da verdade, a saber, o Eu absoluto.
Assim, a reflexão em Fichte, já não é uma certeza, e sim uma tarefa (Aufgabe), a
saber, “a de igualar minha experiência concreta à posição: eu sou”89.
Abre-se o caminho, então, para Heidegger infletir a filosofia reflexiva para
fora de si própria, para que ela se viabilizasse como ontologia. De outra forma,
em Heidegger, haveria uma circularidade do questionador e da coisa questionada
87 ibidem, p.22288 Ricoeur, Freud: uma interpretación de la cultura, p.42.89 ibidem, p.43
60
(o próprio questionador), resultando que o plano ôntico (da existência), móvel e
transiente, torna precários sujeito e objeto de uma analítica que se pergunta pelo
plano ontológico (da essência). Passaríamos então a acolher o procedimento
interpretativo como muito mais adequado para um sujeito que ainda e constante-
mente se interroga agora ele próprio como objeto (um objeto sempre em proces-
so, se se pergunta pelo ser enquanto ente) e não mais o procedimento intuitivo,
este imediato e mais próprio para os objetos já consolidados, aqueles em que se
supõe anulada a diferença ontológica entre ente e ser , e que por certo não são os
objetos vivos dotados de consciência, quando o sujeito pensa a si próprio, ou
mesmo os objetos inanimados pensados por uma consciência viva, ela própria em
constante transformação. E seria só mesmo a partir da abertura da consciência
para o outro e para o outro de si, alteridades também multiplicadas pelo inevitável
conflito de interpretações, é que poderia desocultar-se o ser esquecido pelas filo-
sofias da representação.
Antes e durante o conhecimento (em processo), como vimos, há que se
perguntar por si mesmo “É por isso que a retomada do Cogito apenas é possível
através de um movimento regressivo partindo do fenômeno de ‘o ser no mundo’
e voltado para a questão do quem desse ser-no-mundo” 90.
Ricoeur ressalta que o quem do ser-aí “não é um dado, não é alguma coisa
sobre o que nos possamos apoiar, mas alguma coisa sobre o que é preciso inquirir.
Não é uma posição – uma pro-posição” 91. E que essa permanente inquirição será
propiciada justamente pelo prolongamento hermenêutico que Heidegger, assim
como ele próprio, Ricoeur, propõem para a Fenomenologia.
Em Heidegger, esse prolongamento se dá por uma Analítica do Dasein me-
diante a qual a questão quem do “ser-aí” desemboca na do poder-ser-si-próprio como
um todo. A recapitulação da existência face à morte é a resposta à questão do
90 Ricoeur, O conflito das interpretações, p.22691 idem, ibidem, p.226
61
quem do ser-aí. Então a hermenêutica do eu sou culmina numa hermenêutica da
totalização finita face à morte 92.
Ricoeur também nos indica que a filosofia do último Heidegger tem conti-
nuidade com a Analítica do Dasein do primeiro Heidegger, e que vem iluminar e
ressaltar a palavra como o Da do Da-sein: “A irrupção da linguagem não é outra
coisa senão a irrupção do ser-aí, visto que a irrupção do ser-aí significa que na
linguagem o ser é trazido à palavra” 93 . E, se é da resposta ao ser que o Dasein se
torna autêntico, é na palavra que se dá tal resposta, e é pelo responder ao ser que
o Dasein preserva toda a sua força, e toda a sua força está na força da palavra. A
palavra para Heidegger não é apenas, portanto, delimitação, limitação do Dasein.
Mediante a Urdichtung dos poetas, a hermenêutica do eu sou estará mais permeável e
fecunda para a referência retrospectiva e antecipante do ser ao homem.
Será a partir dessa proposta heideggeriana, tanto do primeiro quanto do
último Heidegger que Ricoeur desdobrará sua própria hermenêutica do eu sou, mas,
diferentemente de Heidegger, de uma forma mais consoante à tradição da filo-
sofia ocidental, aquela que progride na sequência cautelosa da ordem das razões,
e, em meio ao movediço terreno dos signos da cultura, coteja-os com a vida de
consciência que os decifra, mas consciência sempre ancorada, reflexivamente, a si
própria, como interpretação sempre renovada do quem desse sujeito que pensa e
que pensando a si próprio estará também pensando o mundo, em meio ao qual se
lança e se deixa enredar.
92 idem, ibidem, p.22793 idem, ibidem, p. 229
62
2. b. Duas disciplinas hermenêuticas, antes de Heidegger. Ou, o
sujeito epistemológico sob suspeita e a epistemologia sem sujeito.
Mas o que entende Ricoeur por hermenêutica em geral? “toda discipli-
na que procede por interpretação” dando à interpretação “um sentido forte: o
discernimento de um sentido escondido num sentido aparente” 94.
Ricoeur nos apresenta, assim, duas outras “hermenêuticas”, anteriores a
Heidegger, como contestações à filosofia reflexiva: a Psicanálise e o Estruturalis-
mo lingüístico. A primeira, traria, como sentido escondido, a remissão a um “in-
consciente pulsional”, face ao “realismo do Id”; o segundo, a remissão a um
“inconsciente categorial”, face ao “realismo das estruturas da língua” 95.
Foram bem vindas, é certo, mas não superaram o que as filosofias da tradi-
ção reflexiva tendem a carregar consigo: ou tenderiam a ser sofísticas ou empiristas,
quando predominantemente ancoradas no plano contingente e psicológico da
experiência subjetiva, ou têm por fundamento um “dogmatismo da idéia, alega-
ção de uma verdade sem sujeito”96.
2. b. 1. A Psicanálise
Como se situar a Psicanálise na tradição hermenêutica? Para Ricoeur,
Nietzsche, Freud e Marx fundaram a escola hermenêutica da suspeita. Antes
deles, a tradição hermenêutica , como descrito por ele na Simbólica do mal, cum-
pria um papel salvacionista, em que os signos mediavam uma proclamação (em
grego: kerigma) apostólica. Se na hermenêutica da proclamação o signo é a medi-
ação impactante, revelação positiva do sagrado à consciência dos homens de fé,
“cumprimento do objetivo do sagrado por uma espécie de analogia entis que nos
penetraria o ser em face de uma intenção assimiladora”, a hermenêutica da suspeita
94 Ricoeur. A questão do sujeito: o desafio da semiologia in Ricoeur. O conflito.........,p.258.95 ibidem, p.25696 ibidem, p.232
63
seria a revelação “da verdade como mentira”, a nos apontar a consciência “em seu
conjunto como consciência ‘falsa’” 97.
Posto isso, a que visa a Psicanálise? A partir de textos oníricos e textos
sintomáticos privados, propõe-se a uma egologia, ou no dizer de Freud, a uma
Metapsicologia, em que o que se mostra é um eu sob suspeita. O eu que se
manifesta não é o eu que se possa legitimar como o verdadeiro eu, posto que tais
manifestações serão a mediação simbólica para o acesso a um eu latente, este sim
o verdadeiro eu. Mediante a interpretação do plano expressivo do homem, a
Psicanálise é inicialmente um ato de recuo ante a apoditicidade do eu penso; colo-
cado este eu em suspensão (epoché), promove-se a incursão por uma via longa de
pesquisa e apropriação dos significados dos conteúdos mentais e de suas relações
de força dadas pela dinâmica dos conflitos intrapsíquicos.
A Psicanálise, será então, no mérito, uma “semântica do desejo” 98; ou
mesmo uma antropologia filosófica, pois que do eu penso se é remitido para o eu
sou, em uma decifração das estruturas existenciais do homem universal reveladas
mediante a linguagem e o pensamento do homem singular
A visão de homem para a Psicanálise restringe-se, e essa é uma das críticas
que Ricoeur lhe faz, ao resultado de uma arqueologia do sujeito sob a égide de
uma energética, ou melhor, uma hidráulica dos desejos e suas repressões, e do que
resulta, enquanto sintomas, desse embate intrapsíquico. O fato de a Psicanálise
freudiana mais tardia ter contemplado, em seu exercício exegético do homem, as
produções culturais da civilização, não alteraria essa limitação pois que elas aca-
bam por ser reduzidas à “semântica do desejo”, na mesma medida em que o
sonho (e os sintomas) seriam a mitologia privada do indivíduo e o mito (e outras
produções culturais) seria o sonho desperto das civilizações99. Reforça então
97 Ricoeur. Freud: una interpretación de la cultura, p.32-3398 ibidem, p.0999 ibidem, p.09
64
Ricoeur que falta à Psicanálise maior pertença à ordem dos signos, não só a que
legitima a comunicabilidade da experiência analítica, mas a que legitima o seu
caráter homogêneo com “a totalidade da experiência humana que a filosofia tenta
refletir e compreender”. Ou seja, a Psicanálise seria uma disciplina particular de
decifração dos signos não necessariamente transponível para ou superponível à
totalidade da experiência simbólica humana.
Outra limitação se dá é que o inconsciente, a que sempre se remete a inter-
pretação psicanalítica, é tão obscuro quanto a consciência, na mesma medida em
que a consciência é por ela vista como não sendo aquela que pensamos que é 100.
Uma última limitação é apontada por Ricoeur 101, dada por uma medita-
ção de escopo mais filosófico, qual seja a de que se a Psicanálise é, de forma
homóloga ao hegelianismo, uma dialética entre arqueologia e teleologia da cons-
ciência, e se essa arqueologia é bem tematizada por Freud, a teleologia já não o
é, diferentemente do que se dá em Hegel que exaustivamente tematiza a ambas.
Assim, a Psicanálise, no próprio nome, uma análise, não se caracterizaria por ser
uma síntese, i.é., não disporia explicitamente os elementos do espírito ou da
consciência, dados analiticamente, em uma direção sintética ou a um telos
integrador como o faz Hegel na Fenomenologia do espírito. E se em Hegel tam-
bém “o problema da satisfação (Befriedgung) é a mola afectiva da passagem da
consciência à consciência-de-si”, diferentemente neste do que em Freud
tematiza-se mais claramente“uma dialética teleológica do espírito enraizado na
vida do desejo” 102. Daí que, para Ricoeur, a tarefa de uma antropologia filosó-
fica depois de Freud exige que se satisfaça ao mesmo tempo a economia freudiana
do desejo e a teleologia hegeliana do espírito.
100 cf. Pellauer, Compreender Ricoeur, p.70-79101 Ricoeur, Freud: una interpretación...p. 402-31102 Ricoeur, O conflito das interpretações, p.240
65
2. b. 2. O Estruturalismo
Uma outra “hermenêutica”, mais propriamente também uma semiologia,
veio a ser o Estruturalismo linguístico.
Semiologia, porque uma disciplina que eminentemente se propôs a estudar
os signos em suas relações internas, e não uma semântica ou hermenêutica (no
estrito senso) porque não o fez mais intensivamente quanto à relação dos signos
com a sua exterioridade, a saber, a realidade do sujeito.
A quê estruturalismo entre os estruturalismos Ricoeur se refere? Será mais
propriamente daquele conforme expresso por Merleau-Ponty em “Sinais” e que
nos remete parcialmente a uma Fenomenologia husserliana. Husserl, mais tardia-
mente, em Lógica formal e lógica transcendental: ensaio de uma crítica da razão lógica,
pensa que a linguagem, ela mesma, visa a certos objetos e funciona mesmo como
o corpo do pensamento, por ser uma operação pela qual os pensamentos, sem ela,
permaneceriam fenômenos meramente privados e sem valor intersubjetivo.
Para Merleau-Ponty, a língua, como se apresenta num dado momento, é a
concreção, o corpo de toda “uma longa história (da língua), com todos os acasos,
todos os desvios de sentido que fizeram finalmente dela aquilo que é hoje (...) fato
consumado, resíduo, sedimentação de atos de significação passados”. Posto isso, e
evocando Saussure, Merleau-Ponty aponta encontrar-se na língua uma unidade,
um sistema, uma estrutura cujos elementos concorrem e interagem
(diacronicamente, no “eixo das sucessões” 103 ) na sua totalidade para, governados
por uma lógica interna e objetiva, sedimentarem-se na língua presente como
disposição final, sincrônica e estrutural (langue, em Saussure) dos elementos que a
compõem (no “eixo das coexistências”104 ). E que essa composição, não é a mera
soma dos elementos ali diacronicamente depositados, mas o resultado sincrônico
mediatizado por suas diferenças de significação através dos tempos. O que se dá, por
103 designação de Ricoeur em Estrutura e hermenêutica in RICOEUR. O conflito das............p.33104 ibidem, p.33
66
fim, na linguagem de cada um dos falantes (parole, em Sausurre) é a intenção signi-
ficativa (dada também por cada um dos respectivos ouvintes), em que os significantes
são superados pelos significados, de tal forma em que o sujeito falante, ao se expri-
mir, falando, dá-se a conhecer para o outro, assim como toma consciência de si.
A intenção significativa constrói para si um corpo e conhece-se a si própria
procurando-se um equivalente no sistema das significações disponíveis que
representam a língua que falo e o conjunto dos escritos e da cultura cujo
herdeiro sou. Trata-se, para este propósito mudo que é a intenção significa-
tiva, de realizar um certo arranjo dos instrumentos já significantes ou das
significações já falantes (instrumentos morfológicos, sintácticos, lexicais, gê-
neros literários, tipos de narração, modos de apresentação do acontecimen-
to, etc.) que suscite no auditor o pressentimento de uma significação diversa
e nova, e, inversamente, realize naquele que fala ou escreve o depósito da
significação inédita nas significações já disponíveis.105
E seria mesmo essa significação inédita da fala do sujeito referida acima por
Merleau-Ponty que Ricoeur julga não terem os estruturalismos106 efetivamente
alcançado, vindo a constituirem-se mais propriamente como “transcendência sem
sujeito”107, uma transcendência sem consciência, um como que inconsciente
kantiano, categorial, que condicionaria o sujeito (sem que este soubesse ao ex-
pressar-se) a uma “ordem acabada” ou a um “finitismo da ordem”108.
2. c. Existência, Fenomenologia e hermenêutica: aproximações,
para a construção do método ricoueriano.
Até aqui, fica-nos claro que Ricoeur não pode aceitar como Filosofia ou
Ontologia nem a Psicanálise, nem o Estruturalismo.
Da primeira pensa que ela depende “do mesmo ‘racionalismo aproximado’
105 Merleau-Ponty. Sinais, p. 133-34106 Ricoeur se refere mais efetivamente à Antropologia estrutural de Lévi-Strauss, designando-a como
uma disciplina científica. Em Estrutura e hermenêutica in Ricoeur. O conflito das interpretações.107 Ricoeur....................108 citações em Ricoeur. Estrutura e hermenêutica in Ricoeur. O conflito das....p.33
67
que as ciências da natureza”109. Na medida em que, como disciplina científica,
tem por referência teórica o inconsciente e que este só pode se expressar ou se
deixar inteligir mediante suas “ramificações” na consciência. Ora, se o inconsci-
ente só aparece e se constitui na consciência, o seu fundamento só pode se dar na
sua realidade empírica, no interstício intersubjectivo da realidade empírica de
quem o porta (o paciente) e da realidade empírica de quem o lê (o analista); daí a
Psicanálise pecar pelo extremo risco ao relativismo, o que a desconstitui como
Filosofia da consciência.
Da segunda, o Estruturalismo deixemos Ricoeur falar:
O que é feito, pois, da redução, após o estruturalismo?
Como se sabe, Husserl via na redução o acto filosófico primordial pelo qual
a consciência se separa do mundo e se constitui como absoluto; após a redu-
ção todo o ser é um sentido para a consciência, e, nessa qualidade, relativo à
consciência. A redução coloca, assim, o Cogito husserliano no coração da
tradição idealista, no prolongamento do Cogito cartesiano, do Cogito kantiano,
do Cogito fichteano. As Meditações cartesianas vão ainda mais longe no sentido
da auto-suficiência da consciência e progridem até um subjectivismo radical
que não deixa nenhuma outra saída senão vencer o solipsismo pelos seus
próprios excessos e derivar outrem da constituição originária do ego Cogito.
O privilégio assim conferido à consciência numa concepção idealista da re-
dução é radicalmente incompatível com o primado que a lingüística estrutu-
ral reconhece à língua sobre a fala, ao sistema sobre o processo, à estrutura
sobre a função. Aos olhos do estruturalismo, este privilégio absoluto é o
preconceito absoluto da fenomenologia. Com esta antinomia, a crise da filo-
sofia do sujeito atinge o seu ponto extremo.110
Diríamos, então, que o ponto extremo das filosofias do sujeito seria uma
filosofia sem sujeito, que, assim como a Psicanálise, e esta já por seu relativismo, é
preciso superar.
109 Ricoeur. O consciente e o inconsciente. In Ricoeur. O conflito das.......p.107110 Ricoeur. A questão do sujeito. In RICOEUR. O conflito das.......p.251-2
68
Vimos já também que a Fenomenologia como uma Ontologia tem seus
claros limites.
Então, de que forma superar estes limites postos e elaborar uma metodologia
que dê conta de uma tarefa ontológica, a partir do nível ôntico-existencial, medi-
ante uma fenomenologia hermenêutica confiável?
2. c. 1. A tarefa que Ricoeur empreenderá parte de duas zonas fronteiriças:
a da a.Analítica heideggeriana e a Fenomenologia; e a da b. Fenomenologia com a
Hermenêutica (enquanto teoria da compreensão, assim como inicialmente
explicitada por Dilthey, para objetos históricos, e acrescida com os aportes
posteriores da Linguística e da Semântica).
A. A primeira zona de fronteira apresenta interações entre o último Husserl,
da Krisis e a ontologia que empreende Heidegger. A essa passagem, que culmina-
rá na ontologia da compreensão de Heidegger, Ricoeur chama-a de “via
curta”entre Husserl e Heidegger. A origem desta via é a Krisis, já interpretada sob
a óptica heideggeriana, ou seja como a Fenomenologia husserliana tardia como
uma reação à radicalidade crítica do objetivismo científico das Meditações cartesianas,
ao postular (em Krisis) o Lebenswelt (o mundo da vida) que para Ricoeur é “uma
camada da experiência anterior à relação sujeito-objeto”111, esta última relação de
escopo apenas epistemológico, como já vimos anteriormente. É dito, então, que
ao correlato sujeito da relação sujeito-objeto até o Husserl das Meditações cartesianas
é “não uma natureza, mas um campo de significações”112. A via curta se deu
porque Heidegger a percorreu “rompendo com os debates do método”113, ou
seja, aspirando a uma ontologia direta subtraída a toda exigência metodológica
111 Ricoeur. Existência e Hermenêutica in RICOEUR. O conflito das........, p.10112 ibidem, p.10113 ibidem, p.08
69
das filosofias reflexivas. O que Ricoeur pretenderá é justamente que, em face das
aspirações de uma ontologia da compreensão, que se pergunta compreensivamente
pelo ser, antes de visar o compreender como um modo de ser, ou que desvela o
ser, terá de visá-lo (o compreender) antes como um modo de conhecer. Um
compreender duplamente reflexivo: primeiro, compreender o como se co-
nhece, numa epistemologia da interpretação (ou hermenêutica) dos significados
das expressões multívocas e simbólicas do mundo, mediante o acréscimo de sub-
sídios linguísticos e semânticos; segundo, conhecer o ser, ao articular o arsenal
semântico e hermenêutico do conhecimento à pergunta mesmo pelo ser. Essa
será o que ele, Ricoeur, denomina como a via longa entre fenomenologia e a
hermenêutica do eu sou.
Vejamos como Ricoeur explicita, nos dois parágrafos seguintes, como a
Filosofia ocidental desde Husserl trouxe a ele, Ricoeur, o esboço para a sua
via longa, que em verdade corresponde à possibilidade mesmo de a
fenomenologia enxertada pela hermenêutica conseguir objetivar o ser em
existência, objetivar e dizer o ser, que é, posto que ser em existência, sempre
histórico, sempre em movimento:
Foi, portanto, finalmente contra o primeiro Husserl, contra as tendências
alternativamente platonizantes e idealizantes da sua teoria da significação e
da intencionalidade, que se edificou a teoria da compreensão. E, se o último
Husserl aponta em direção a esta ontologia, é na medida em que o seu em-
preendimento de redução do ser se frustrou, na medida em que, por conse-
qüência , o resultado final da fenomenologia escapou ao seu projeto inicial;
é apesar dela que ela descobre, em vez de um sujeito idealista encerrado no
seu sistema de significações, um ser vivo que tem desde sempre como hori-
zonte de todas as suas miras, um mundo, o mundo.
Assim se encontra destacado um campo de significações anterior à consti-
tuição de uma natureza matematizada, tal como a apresentamos desde
Galileu, - um campo de significações anterior à objetividade para um su-
jeito que conhece. Antes da objetividade há o horizonte do mundo; antes
70
do sujeito da teoria do conhecimento há a vida operante, a que Husserl
chama algumas vezes anônima, não que volte através deste desvio a um
sujeito impessoal kantiano, mas porque o sujeito que tem objetos é ele
próprio derivado da vida operante.114
Como se vê, voltamos ao Cogito. Não é possível conhecer senão mediante o
sujeito do conhecimento. No entanto, agora o Cogito foi ampliado. Ricoeur aponta
que o Cogito teve de ser ferido, despedaçado, mas que se enriqueceu e se aprofundou
mediante o recurso à hermenêutica. E é o nosso filósofo francês que se pergunta
“por que é que o si, que guia a interpretação, apenas se pode recuperar como
resultado da interpretação” 115 ? E por que o faz mediante a reflexão?
Por dois motivos:
Primeiro, porque o Cogito cartesiano é uma verdade que se põe a si mesma.
Existir para Descartes é pensar. Existe-se enquanto se pensa. E se isso é uma
verdade, é uma verdade vã: “o ego do ego cogito não se reaprendeu no espelho dos
seus objetos, das suas obras e, finalmente, dos seus actos”. Então, ensejará uma
reflexão que é crítica
não no sentido kantiano de uma justificação de ciência e do dever, mas no
sentido em que o Cogito apenas pode ser reaprendido através do desvio de
uma decifração aplicada aos documentos de sua vida. A reflexão é a apropri-
ação o nosso esforço para existir e do nosso desejo de ser através das obras
que testemunham esse esforço e esse desejo116
Segundo, porque o Cogito além de uma verdade vã é um “lugar vazio que
desde sempre foi preenchido por um falso Cogito”, por uma consciência falsa,
apontada por Marx, Nietzsche e Freud, cada a seu modo. Então, uma nova exegese
da consciência se faz necessária, e essa exegese far-se-á reflexivamente mediante a
Hermenêutica. Enfrentar-se-á inicialmente um paradoxo, já que o uso filosófico
das linguagens equívocas sempre foi exposto a objeções lógicas; porém,
114 ibidem, p.11115 ibidem, p.19116 ibidem, p. 19
71
a justificação da hermenêutica apenas pode ser radical se se procura na pró-
pria natureza do pensamento reflexivo o princípio de uma lógica do duplo
sentido. Esta lógica já não é uma lógica formal, mas uma lógica transcendental.
Ela estabelece-se ao nível das condições de possibilidade, não das condições
da objetividade duma natureza, mas das condições de apropriação do nosso
desejo de ser; é neste sentido que a lógica do duplo sentido, própria da
hermenêutica, pode ser chamada transcendental.117
Estará, assim, aberto o caminho para que Ricoeur aspire a uma Ontologia.
A uma Ontologia, no entanto, não desapossada de uma rigorosa epistemologia.
B. A segunda zona de fronteira, estabelecida por Ricoeur para a construção
de método, aquela entre Fenomenologia e Hermenêutica estabelece-se da se-
guinte maneira:
Pelo pressuposto fenomenológico da hermenêutica, ou de que a inter-
pretação é a formulação linguística de uma experiência. Segundo formulação
heideggeriana, o vivido antecede o sentido da experiência formulado em discurso,
este que é uma interpretação apropriadora daquela. Assim, retrospectivamente, a
linguagem, o enunciado e a ordem lógica que o formaliza, são todos originados a
partir do dizer, co-originário e solidário de um encontrar-se e de um compreender.
Escreve Heidegger que “a compreensibilidade ‘encontrando-se’ do ‘ser no mundo’
se expressa como fala”.E que “o todo de significação da compreensibilidade obtém
a palavra”.Das significações brotam palavras”(...) 118 ambos.
Ricoeur assim se expressa sobre isso: “Esta remissão da ordem linguística à
estrutura da experiência (experiência que ao enunciar-se chega à linguagem) consti-
tui, a meu ver, o pressuposto fenomenológico mais importante da hermenêutica”119.
117 ibidem, p.20-1118 Heidegger. Ser e tempo, §34, p.179-80119 Ricoeur. Fenomenologia y hermenêutica: desde Husserl....in Ricoeur. Del Texto a la acción, p.58
72
E se Husserl privilegiou mais estritamente a experiência perceptiva , embora com
algumas articulações desta com a dimensão temporal, a Fenomenologia ainda
requerirá que a experiência, o vivido, sejam alongados a uma experiência mais
integral, a saber, a que inclui a dimensão histórica e, ainda mais extensiva, a
dimensão cultural. Como vimos, é o que ficara anunciado em Krisis, com o
retorno ao Lebenswelt, que para Ricoeur
não se confunde com nenhuma imediaticidade inefável ou com a atmosfera
vital e emocional da experiência humana, mas sim designa essa reserva de
sentido, esse excedente de sentido da experiência viva e que torna possível a
atitude objetivadora e explicativa. 120
Pelo pressuposto hermenêutico da Fenomenologia, ou de que a
Fenomenologia concebe o seu método como uma Auslegung (uma explicitação
do que é percebido como vivido), ou ainda mais concretamente tudo quanto
percebido é já antes um interpretado.
Essa constatação já se manifesta no período lógico de Husserl (das Investiga-
ções lógicas). A apercepção compreensiva mediante a qual se desenvolve a operação
de significar dá-se como apercepção objetivadora e, como para Husserl há uma
falta de limites na razão objetiva, tanto as representações de um gênero como pas
representações de individualidades singulares dentro mesmo de cada gênero, não
são unidades de significados fixos, ou seja, os conteúdos representados por ex-
pressões estáveis que as designam têm significados flutuantes, fato que não pode
passar despecebido ante a tarefa de cientificidade que se impõe à Fenomenologia,
como um método ou epistemologia, a exigir o ideal de univocidade das palavras
e expressões que compõem um discurso que se pretende científico. Daí a neces-
sidade de uma tarefa de esclarecimento entre o que são significados essencialmen-
te ocasionais e o que é um significado unívoco121, e que aqui não cabe
desenvolver.O que nos interessa é que para Ricoeur, o Husserl das Meditações
120 ibidem, p.60121 Cf. ibidem, p.62-5
73
cartesianas, obra de seu período idealista, ele já não se preocupa com que a
Fenomenologia dê sempre conta do sentido ideal das expressões bem formadas,
porque sua preocupação já não é estritamente lógica, mas que ela possa responder
ao sentido da experiência em seu conjunto, ou seja, que possa responder à cons-
tituição das coisas como apreensão da generalidade essencial que as fundamenta e
isto se dá toda no ego já reduzido, o que implicaria num paradoxo inevitável:
Como posso proceder à constituição do outro se o outro constitui-se por mim,
num eu reduzido de tudo e depurado de tudo quanto outro que não o ego puro
ou transcendental? Como pode um outro, se o ego transcendental, referência
única constituinte de sentidos e irredutível a qualquer outro? Estabelece-se assim,
para Ricoeur, um conflito entre a exigência redutora e a exigência descritiva do
método fenomenológico122 .
Ricoeur 123 vê a resolução deste paradoxo na quinta meditação husserliana,
que ele equipara à terceira das Meditações Metafisicas de Descartes: se nesta, o Cogi-
to é transcendido pelo recurso a Deus; naquela, o ego é transcendido pelo recurso
ao outro. Assim é que o fundamento da objetividade estaria , para Descartes, na
veracitas divina e para Husserl em uma filosofia da intersubjetividade.
O ego monádico (e soles ipse) auto-constituido da egologia fenomenológica
terá de encontrar em si próprio a alteridade legitimadora do conhecimento, que
se quer redimido de sua condição solipsista e que, em Husserl, atinge o seu cume
na quarta das Meditações cartesianas.
Na quinta meditação, a exigência redutora, no limite crítico do desapareci-
mento do mundo e de si mesmo como ente psicológico, acolhe, reflexivamente,
a exigência descritiva e, em assim fazendo, percorre o caminho que vai da imanência
plena do ego à transcendência do mundo (e do outro), do mundo em si mesmo (e
do outro em si mesmo), a decorrer imanente a realidade do outro, como ego e
122 Cf. ibidem, p.65-70123 Cf. Presas nota 37 in HUSSERL. Meditaciones cartesianas, p.120
74
alter ego emparelhados (paarung), algo como a figura virtual e intermediária entre
dualidade e unidade, nem dualidade e nem unidade, figura imersa num só mundo
cultural, num só mundo natural.
Eis que, num mundo imaginário, vemos-lhe o fundo homogêneo e dele a
emergir uma figura nem dual, nem una, o ego que, por desdobramento analógico,
se é um pode ser o outro, mas de tal forma que, no limite infinitesimal do instan-
te, não é um nem outro, e em que no imediatamente antes o ego é um e no
imediatamente depois é outro. É no limite infinitesimal em que não se é nem
reconhecimento de si no outro, nem estranhamento do outro em si.
É essa exatamente a figuração do que Husserl denomina de “a esfera do ser
transcendental como intersubjetividade monadológica” 124.
E é exatamente essa figura nem dual, nem una, que inspirará o método de
Ricoeur, como uma fenomenologia hermenêutica em que o sentido da experiência
não é, em última instância, fixo e objetivável. Se quisermos, o que se pode virtual-
mente objetivar é justo um horizonte imaginário a que as diversas interpretações
(uma e outras) da experiência convirjam, como a uma fusão de horizontes 125, mas em
que uma não é a outra, e em que essa outra não é aquela uma. É justo nesta
hermenêutica necessariamente conflitual ou crítica, e em contínuo movimento
de horizontes, que se perpassam, um após o outro, que se pode vislumbrar a
verdade, ainda que verdade prenhe de outras verdades que se lhe seguirão.
Vejamos como Ricoeur anuncia o emergir de seu próprio método, diverso
do método husserliano mas engendrado e colhido no seio mesmo da
Fenomenologia que o filósofo tcheco criou:
O paradoxo de uma constituição que seria a um só tempo constituição em
mim e constituição do outro, toma um significado totalmente novo esclare-
cido mediante o papel da explicitação (Auslegung); o outro está incluído, não
em minha existência como algo dado, mas nela, como em um “horizonte
124 Husserl. Meditaciones cartesianas, p.119125 Expressão que Ricoeur empresta de Gadamer
75
aberto e infinito”, como potencial de sentido que eu não abarco com o olhar.
Posso afirmar, com isso, que a experiência do outro não faz mais do que
desenvolver meu próprio ser idêntico, e o que daí se desdobra é mais do eu
mesmo, posto que o aqui denomino com o meu próprio ser idêntico é um
potencial de sentido que suplanta o alcance da reflexão.
A possibilidade da transgressão do eu em direção ao outro está inscrita nessa
estrutura de horizonte que requer uma explicitação, ou com palavras do pró-
prio Husserl, uma “explicitação dos horizontes do meu próprio ser”
O que Husserl observou, sem disso extrair todas as suas conseqüências, é a
coincidência entre intuição e explicitação. Toda a fenomenologia é uma
explicitação na evidência e uma evidência da explicitação. A experiência
fenomenológica é uma evidência que se explicita , uma explicitação de que emerge
uma evidência. Neste sentido, a fenomenologia só pode completar-se como
hermenêutica126.
3. DOIS PROBLEMAS PARA A FILOSOFIA OCIDENTAL: O OUTRO E
O TEMPO. E DE COMO RICOEUR OS TORNA RECURSO E MARCA
DISTINTIVA DE SUA PRÓPRIA FILOSOFIA.
Em grande parte a Filosofia ocidental erige-se a partir dos princípios da
identidade e da não-contradição, e, para que eles possam legitimá-la na esteira
produtiva de conceitos segunda a ordem das razões, faz-se necessário admitir que,
num dado instante, A=A e, em assim sendo, A é diferente de tudo quanto não-A;
e que, ao longo de uma sequencia de instantes, no fluxo do tempo, A, em movi-
mento, continue como A.
Tudo quanto escapar a essas condições necessárias, infensas à alteridade e ao
tempo, tornará o discurso filosófico necessariamente equívoco, posto que se A for
, de início, designado como A, como poderia ainda designá-lo como tal se A
pode ser um outro ou se A pode tornar-se um outro? Qualquer discurso filosófico,
126 Ricoeur. Fenomenologia o hermenêutica: desde Husserl..... p.70
76
que baseasse seu encadeamento de proposições em palavras equívocas (o nome A
representando ora A, ou B, ou C...) e categorias predicativas instáveis (como as
locuções adverbiais de lugar, em que Belém, amanhã designada ainda como
“Belém”, não fosse a mesma que Belém), transformar-se-ia em mera multiplicidade
de nomes e proposições sem qualquer correspondência confiável com o real que
esse discurso pretenderia descrever e compreender.
No entanto se a vida e o ser, tal como em Aristóteles se diz de várias manei-
ras, se é potência e ato, geração e corrupção, como tornar, então, a filosofia um
discurso vivo?
Pois que, a não ser assim, de que nos serve a imutabilidade do ser na vida
estável das palavras se o meu discurso representará a vida tal como absoluta imo-
bilidade e esterilidade, a vida tal como morte?
A filosofia madura de Ricoeur, que inclui, no decorrer de 15 anos, o con-
junto A Metáfora viva (1975), Tempo e narrativa (1983-85) e O si mesmo como um
outro (1990), trará uma proposta de solução. O poder dizer as coisas e os valores,
o ser e o dever ser, como sempre passíveis de poderem ser mais que um ser inerte
no lugar e no tempo. Mediante os horizontes infinitos de significação, o eu é será
sempre um eu fazendo-se outro, um outro fazendo-se eu. O eu se revelará em
plenitude mediante o outro. O outro, em plenitude, mediante o eu. O corolário
disso será que a Filosofia de Ricoeur traz em seu bojo toda a História da Filosofia
ocidental, em que seus elementos formadores convivem equilibradamente, onde
os conceitos não anulam ou subsumem outros conceitos. Em que as condições
epistemológicas de possibilidade de uma Ontologia por ele ampliada, ao derivar-
se de uma Estética polifigurativa, caleidoscópica mesma, em que o um e outro
diferem entre si mas derivam-se reciprocamente, estas condições epistemológicas
desnudarão uma nova Ética, sem que os seus fundamentos anteriores sejam
destruídos. A filosofia de Ricoeur é a um só tempo, epistemologia, estética,
ontologia e ética, em um corpo sistêmico e inconsútil de conceitos, em uma
77
comunidade de conceitos de alguma forma analógicos entre si, e em que, mais do
meramente isso, não há analogados principais, de tal forma que o eu é sempre um
outro de si-mesmo.
A quem deve Ricoeur os créditos de sua filosofia, senão a todos os grandes
pensadores da tradição ocidental e os já abordados até aqui? Mas ele próprio, por
vezes em seus escritos e entrevistas privilegia alguns.
Um deles é Jean Nabert, que lhe abre todo um percurso da Filosofia iniciado
por Espinosa. Vejamos: [sobre a dificuldade que a filosofia de Nabert encontra ao
defrontar-se com o problema dos motivos e dos valores que movem o pensamento]
diz respeito às relações do acto pelo qual uma consciência se põe e se produz
[remissão a Fichte?], com os signos nos quais se representa o sentido da sua
acção. Este problema não é próprio do pensamento de Nabert; ele é comum
a todas as filosofias que tentam subordinar a objetividade da Idéia, da Repre-
sentação, do Entendimento, ou como se quer dizer, ao acto fundador da
consciência [outra remissão a Fichte?], a que se chama Vontade, Apetição,
Acção. Quando Espinosa remonta da idéia ao esforço de cada ser para existir,
quando Leibniz articula a percepção com a apetição, e Schopenhauer a re-
presentação com a vontade, quando Nietsche subordina perspectiva e valor
à vontade de poder, e Freud a representação à libido – todos estes pensadores
tomam uma decisão importante a respeito do destino da representação: ela já
não é o facto primeiro, a função primária, o melhor conhecido, nem para a
consciência psicológica, nem para a reflexão filosófica; torna-se um função
segunda do esforço e do desejo; ela já não é aquilo que faz compreender, mas
aquilo que é preciso compreender.127
Isso afasta Nabert de Kant, aproximando-o mais a Maine de Biran, pois
neste “a análise reflexiva aplicada à acção deve ser subtraída à hegemonia da críti-
ca do conhecimento”.
Para Nabert, assim como para Ricoeur, a consciência na sua produtividade
viva é não inteiramente determinável pelas categorias clássicas sobre as quais repousa
127 Ricoeur. O acto e o signo....in O conflito das........, p.208
78
a verdade, mas nem por isso Ricoeur se deixará enredar pelas filosofias da diferen-
ça pós-estruturalistas e contemporâneas a ele, como as de Foucault, Derrida e
Deleuze, pois Ricoeur não quer desconstruir a linguagem filosófica ocidental e
não pretende pensar à revelia do princípio da identidade.
O que faz é procurar incluir a polissemia da linguagem na linguagem da
filosofia, sem que a mesma perca seu rigor e sua ancoragem para com a univocidade
das palavras dos conceitos, amplia-os, enriquece-os, tão somente projetando-os,
cada um, em horizontes possíveis de significações diversas, porém correlatas,
com isso de forma a não violentar uma referência de identidade internamente aos
conceitos e externamente à realidade que eles, conceitos, pretendem descrever e
compreender, assim preservando também o princípio da verdade como corres-
pondência, próprio às filosofias da representação.
Assim, como Nabert, colaborará para ampliar, sem destrui-la, a filosofia
reflexiva, pois que para ele, Ricoeur, será bem-vinda toda a conciliação filosófica
que possa dissolver e superar uma certa dualidade dada pelo Cogito cartesiano
ainda presente em algumas das tendências neokantianas: “a função de verdade a
operar no determinismo e a função de liberdade a operar na consciência ativa e
produtiva” 128, como se o pensamento estivesse apenas destinado para o objetivi-
dade fria e à margem da vontade. Porque, se assim fosse
Tudo está salvo, mas nada está ganho, visto que o sujeito desse modo
protegido não é nem eu (moi) nem pessoa. Também nada está ganho se se
procura na qualidade de certas representações, de certas idéias, o poder de
gerar a acção. Nós não sabemos nada desse poder ideo-motor e a questão
continua a ser saber se a representação é a realidade fundamental de que é
preciso partir. 129.
128 ibidem, p.210129 ibidem, p.210-11
79
Para Nabert e Ricoeur há que se fazer continuamente os dois trajetos. Antes
do ato acabado e dito há atos incoativos, inacabados, incompletos, que podem ser
resgatados retrospectivamente pela representação e ao incorporá-los e organizá-
los, mediante as categorias da representação e da linguagem, tem-se a forma de
reunir essas até então fulgurações instantâneas em uma história, uma duração, uma
identidade. De outra forma, há que fazer o caminho de volta, o da representação
para o ato. Só assim a identidade, no movimento intrínseco de sua liberdade,
efetua o desejado, e efetua-se a si mesma, ipseidade a partir da mesmidade.
Credite-se aqui outro mérito a Kant, em que, se o juízo determinante nos
dá, no entendimento, a organização da experiência e a nós a comunicabilidade a
outrem daquilo que experimentamos, postula as idéias reflexionantes, movidas
por valores e pela imaginação, para, mediante as quais, exprimir-se em nós (como
idealidade estética) aquilo que podemos vir a ser, ipseidade a plasmar-se pela
harmonia das faculdades (imaginação e entendimento), plenitude dos entes en-
quanto obras criativas, criando-se a si mesmas.
É chegado o momento de nos perguntarmos: de que forma Ricoeur impri-
mirá em sua obra a conciliação da identidade com a alteridade e o tempo?
Fá-lo-á mediante o recurso à filosofia da linguagem. Aqui se servirá de
Aristóteles, Frege, Saussure, Benveniste, e outros (e que serão abordados no capí-
tulo seguinte) De forma geral, seu trabalho será o de resgatar a metáfora como
instrumento do discurso filosófico e o de fundamentar o poder referencial das
metáforas, para ampliar as possibilidades ontológicas inerentes à palavra (semiótica),
à frase (semântica) e ao discurso (hermenêutica). Nos limites: a palavra, mediante
seu poder metafórico, traz em si, no deslocamento (movimento) de sentidos a
operar-se no mesmo significante, a ipseidade a erigir-se da mesmidade, um outro-
si da palavra que é dado por seu si-mesmo; e a narrativa (o discurso), mediante o
alongar do tempo, ampliará, por fim, na articulação sistêmica e criativa de suas
partes constituintes, a identidade do personagem(a identidade narrativa, ficcional
80
ou real, conforme o que se entenda por texto), forma virtualmente acabada de um
plenamente outro de si mesmo.
E será, no mérito mesmo que justifica a presente dissertação, que nos res-
tringiremos no próximo e derradeiro capítulo a compreender porque, mais do
que o Cogito instruir as palavras, são as palavras que instruem o Cogito, porque
mediante as metáforas vivas, as palavras têm o poder de continuamente redescrever
o ser e o mundo, que, então, se oferecem renovados à reflexão filosófica.
81
Em A metáfora viva Ricoeur se pergunta: “qual filosofia está implicada no
movimento que conduz a investigação da retórica à semântica e do sentido à refe-
rência?” 130, a desdobrar-se, por efeito implícito, em uma outra pergunta, qual seja,
a da passagem do discurso poético para o discurso especulativo, visto aqui, portanto,
o poético não como discurso mimético, na acepção platônica em A República, ou
meramente retórico e ornamental, mas como discurso que diz o ser e a verdade.
Já o discurso especulativo, aquele que pergunta pelo Ser, tem em Aristóteles
sua fundação articulada desde a multiplicidade equívoca, desde que os entes, nas
acepções múltiplas do Ser, encontram-se, por relações analógicas, distribuídos em
uma horizontalidade de significações possíveis, e dessa forma vinculados à subs-
tância primeira, de que são os analogados derivados. Ora, a distribuição horizon-
tal dos sentidos do Ser articula-se verticalmente com sua referência substancial,
qual seja o analogado principal. Vale dizer que, no discurso poético, necessaria-
mente polissêmico, encontra-se a possibilidade latente de a multivocidade tornar-
se mais propriamente um recurso que uma falta, pois que lhe é própria uma
amplitude descritiva maior do referente/referido, dada por fachos especulativos
distintos e concorrentes.
UMA TEORIA FILOSÓFICA DA METÁFORAA metáfora viva. A função referencial das metáforas.
E de como as palavras, mediante as metáforas vivas, alargamas possibilidades do Cogito em sua tarefa ontológica.
130 Ricoeur. Metáfora viva, Estudo VIII, p. 391
IV
82
Veja-se, em Metafísica gama, 2 : “O ser se toma em várias acepções mas
sempre relativamente a um termo único, a uma só natureza determinada” 131 ou
ainda, “O ser se toma em múltiplas acepções, mas em cada acepção, toda denomi-
nação se faz por relação a um princípio único” 132.
Ora, da comunidade analógica dos entes emerge uma qualidade comum e
substancial que lhes é soberana, segunda conforme a sua intelecção, mas primeira
conforme a sua natureza. E se a Ciência, sim, é una, essa unidade se diz pela
multiplicidade dos entes.
Daí que a multiplicidade potencial do dizer ao realizar-se como poiesis, rea-
liza-se também, como a própria palavra assim o designa, como o “fazer-se” a
coisa de que se diz.
Ou ainda, da ordem horizontal dos nomes e das significações, reunidos sob
o regime da proporcionalidade emerge em progresso vertical a coisa referente/
referida, seu atributo essencial.
Ora, nas várias acepções do nome e da palavra, a metáfora é o tropos por
excelência a exercer esse papel acima referido, o papel referencial, na medida
mesmo em que sua plasticidade inerente de significações torna-a célula discursiva
privilegiada e multiabrangente na investigação aproximativa a engolfar, qual
pseudópodos, a substância do real.
Aristóteles já diferençava uma função retórica da metáfora que, mediante a
eloqüência, tencionava à persuasão e uma função poética (presente na “Poética”),
que, esta sim, está ligada à referência, na medida em que a poesia, em sua função
mimética, procura compor uma representação aproximada das ações humanas e
nos lembra Ricoeur “dizer a verdade por meio da ficção, da fábula, do mythos
trágico” 133.
131 Aristote. La Métaphysique. - 1003 a 30132 ibidem, 1003 b 5133 Ricoeur. A metáfora viva, Estudo I, p.23
83
Se no discurso poético o mythos tem, ao menos, compromisso com o veros-
símil, e a unidade básica do discurso é o nome (a palavra), este também, mediante
a metáfora, na movimentação ou transposição de termos que a caracteriza, quem
carrega e desperta uma nova produção de sentido que amplia as possibilidades
semânticas da palavra ou da expressão, como a preencher uma lacuna ainda
inexplorada e inominada da realidade que a linguagem ordinária não tangia.
É a estranheza mesma que sentimos ante o nome que designa uma coisa que
ordinariamente pertence a outra coisa, que temos a ampliação da função semânti-
ca da palavra, mediante o recurso ao seu uso metafórico. O corrente, o ordinário
(kyrion) tornado estranho (allotrios) 134 promove, em sua impertinência semântica,
novas pertinências e ampliações de sentido que, ao fim e ao cabo, mediante o
preenchimento de vazios semânticos, adquirem veemência ontológica, i.é. apontam
realidades ou referências antes inominadas, agora então desveladas como verdade
metafórica, outro termo, tal qual os anteriores, do léxico ricoeuriano, a designar a
verdade dada pelo poder referencial ampliado das metáforas135.
Diga-se, a propósito, que tal poder referencial ampliado se dá não com as
metáforas gastas, ou metáforas mortas, tais como a catacrese (em “as pernas da
mesa”, ou mesmo em “o olho do furacão” ), em que já não vige a impertinência
semântica, posto que incorporadas na linguagem usual do cotidiano. Já, em
contrapartida, dá-se apenas com as metáforas vivas, em sua estranheza e imperti-
nência mesmas, a sua pertinência heurística a indicar veementemente uma reali-
dade até então obscura e inefável 136 a indicar clara relação entre os domínios
meta-fórico e meta-físico.
134 cf. ibidem, p 32-4135 cf. Ricoeur. A metáfora viva. Estudo VII, p.376-89136 cf. Ricoeur. A metáfora viva. Estudo VIII p.432-53
84
Dessa maneira vemos a íntima vinculação entre a poética e a metafísica
aristotélicas, como a consubstanciar o que muito mais tarde, no século XX, e cada
um a seu modo, a filosofia de Gadamer, que viria a tematizar o conceito de
linguisticidade do mundo 137 e a de Peirce, no conceito de sinequismo 138, em
que, como em outras ontologias realistas, significam o continuum entre mundo
externo e mundo interno, realidade (objetiva) e pensamento (objetivante), o mundo
e as palavras, entre as coisas e o nomes, e que tudo quanto existe no mundo é
dizível mediante a linguagem.
Importante frisar ainda que a Metafísica (ontologia) aristotélica já contém em si
o gérmen que frutificará nessa Poética de que nos valemos para o conceito de metáfora
viva e de verdade metafórica, posto que a metáfora só se apresentará como viva com
pretensão designitiva da verdade se portar em si uma necessária tensão de significados
concorrentes, valendo dizer que se não houver essa tensão, não haverá a experiência
de qualquer impertinência semântica a insinuar-se pelas faces até então sombrias do
real; a sua própria impertinência contém em si o seu avesso (a pertinência), pois que é
mesmo na ousadia exploratória das metáforas, e na correspondente experiência afetiva
do leitor ante o imprevisto e inusitado uso da palavra ou expressão, que se dá a
convicção emocionada de que algo novo se descobriu no mundo.
Disse Aristóteles, na Metafísica A, que é mediante a experiência, a empiria,
que ascendemos às noções gerais. E a experiência só pode se dar ante o particular,
o individual. Vale dizer: que é mesmo na diferença do todo a que pertence,
naquilo que se impõe como inusitado, que os entes acabam por indicar-nos a
universalidade que neles pouco a pouco se deixa suspeitar.
Ora, no que respeita à vida prática, a experiência em nada parece diferir da
arte; vemos,
Até, os empíricos acertarem melhor do que os que possuem a noção, mas não
a experiência. E isto porque a experiência é conhecimento dos singulares, e a
137 cf. Gadamer. Verdade e método, p.23138 cf. Peirce. ...a disputa entre nominalistas e realistas in Antologia filosófica, p.120-22
85
arte, dos universais; e, por outro lado, porque as operações e as gerações todas
dizem respeito ao singular. Não é o Homem, com efeito, a quem o médico
cura, se não por acidente, mas Cálias ou Sócrates, ou a qualquer um outro
assim designado, ao qual acontece também ser homem 139
O mesmo pode valer para nós, como argumento: a noção geral que se nos
desvela no exercício de uma metáfora (viva) é uma universalidade que se dá só e
tão somente na experiência do singular, a experiência da ousadia inusitada e sin-
gular que só então nos ilumina regiões ontológicas até então inexploradas. É a
originalidade da obra, uma nova e surpreendente forma de dizer, que me revela o
novo. Novo, e que, no contexto de invenção é, ao mesmo tempo, contexto de
descoberta. Cria-se o novo que já estava ali em regiões do ser que antes jamais
qualquer artista logrou adentrar.
Diga-se também que quando essa nova forma de dizer se torna velha, a
metáfora viva torna-se gasta e então morre. Como tudo quanto existe, a morte
está implícita na vida. Assim como a vida das metáforas surpreendentes, o esplen-
dor da experiência estética, só emerge no seio mesmo do discurso cotidiano, que
é no interior do mesmo que, por contraste, o diferente se anuncia.
Se uma outra questão disputada da Filosofia ocidental é a do paralelismo e
continuidade do pensamento/mundo em que as palavras e os conceitos designam
realidades objetivas, é justamente a diferença e a diversidade que Tomás de Aquino
toma como índices da participação dos entes na indeterminação da essência (esse).
Tomás foi quem deu o acabamento final e a sistematização dos conceitos aristotélicos
relativos à unidade analógica das significações múltiplas do ser e que, no doutor da
Igreja, compõem uma analogia entis, interpretada na historiografia filosófica como
uma onto-teologia. O critério de uma limitação formal ou de determinação afir-
ma que o esse é limitado pelas formas, naturezas ou essências, em que ele (esse) é
139 Aristote. Métaphysique, 981 a 10
86
recebido, assim como as formas materiais são limitadas pela matéria em que elas
subsistem. Ou seja, é a diversidade analógica quem indica a unidade que a trans-
cende e da qual ela participa140.
Não há dúvida de que quando se trata de pensar o paralelismo e continuida-
de da palavra poética com a realidade subsistente, como entes singulares que par-
ticipam da universalidade viva que os reúne, devemos este mérito ao Idealismo
objetivo de Schelling e ao Romantismo alemão e inglês.
Se Fichte dá o primeiro passo de ultrapassagem do Cogito cartesiano e
kantiano141, ao privilegiar a ação (o ser indeterminado e que se auto-determina,
pondo-se a si mesmo) como primária à percepção, o que daí, após, se nos põe como
mundo é ainda acessível apenas enquanto subjetividade pensante, ou seja, Cogito.
Já Schelling vai além, busca uma fundamentação objetiva do pensamento
para a atividade viva da Natureza e o que encontra é a realidade ela própria
substancial, dinâmica, livre, produtiva, co-extensiva ao pensamento. Vale dizer
que, em Schelling,
Um conhecimento [absolutamente livre] cujo objeto não é independente
do conhecimento mesmo, portanto, um conhecimento que produz seu ob-
jeto; uma intuição que é produção livre e na qual o que se produz e o que é
produzido são idênticos 142
E mais tarde, Colerigde, compreenderia claramente essa lição, um elogio à
imaginação, e Ricoeur, acerca de sua própria fundamentação da metáfora como
referência, cita-nos o poeta romântico inglês:
Enquanto enuncia o todo, [o símbolo] remanesce ele próprio como parte
viva da unidade que ele representa.
140 cf. Geiger. La participacion dans la philosophie de S. Thomas d’Aquin. p.156-217141 Não sejamos injustos com Kant, que invoca o uso regulativo das idéias da razão, e esboça um horizon-
te possível da totalidade do saber que transcenda ao Cogito (cf. p16).142 Kogan. Filosofia de la imaginacion. P.208
87
Ou acerca da planta que mergulha na luz e na terra para delas extrair seu
crescimento:
ela se torna o organismo visível de todo o silêncio e vida elementar da natu-
reza e, portanto, incorporando um dos extremos torna-se o símbolo do ou-
tro, o símbolo natural da mais alta vida da razão.143
Ns ontologia realista destes filósofos e poetas, assim como para Ricoeur, a
metáfora viva diz e ela própria é a vida.
E assim como a vida, assim como descrita desde Claude Bernard, criador do
método experimental nas Ciências médicas, e pelo fisiologista americano Walter
Cannon, a vida traz em si o equilíbrio dinâmico de forças antagônicas, equilíbrio este
que é razão mesma da capacidade homeostática e adaptiva dos organismos vivos.
A tensão que faz da metáfora o veículo da verdade metafórica dá-se para
Ricoeur 144 em três dimensões, todas elas emergindo do sentido imanente ao
enunciado posto:
a. tensão no próprio enunciado, entre o veículo e o conteúdo expresso pelo
veículo
b. a tensão entre duas ou mais interpretações, qual seja “a interpretação
literal que a interpretação semântica desfaz e uma impertinência metafórica que
faz sentido com o não-sentido”
c. tensão na função relacional da cópula: entre identidade e diferença na
própria constituição da cópula; e, nessa tensão dada na cópula, no sentido relacional
do verbo ser, transfere-se para o sentido existencial do verbo. Aqui residindo a
clara distinção entre a comparação e a metáfora: na primeira o ser próprio “como
se fosse” outro, na segunda o ser próprio sendo efetivamente outro.
Para esse tema da tensão, parece-nos que Ricoeur inspirou-se fortemente em
Wheelwright, mais especificamente no conceito deste de linguagem tensiva, em que
143 Tradução a partir das citações em inglês emRICOEUR. A metáfora viva, p.379-80144 Ricoeur. A metáfora viva, p.376-89
88
a linguagem expressa e contém nela mesma as forças tensivas imanentes à vida. É na
poesia que essa tensão viva é mais pervasiva. Cita, entre outros, a expressão poética
de Gerard Manley Hopkins: O luar apoiado ou vertendo nas copas como teias
azuis”145, que claramente nos traz a percepção da relação tensiva implícita à Natu-
reza, em que lua e árvore (céu e terra), luar e teia (insólito e solidez, movimento e
fixidez, permanência e evanescência) a um só tempo se opõem e se conciliam.
Ao nível da palavra, a própria metáfora (poema em miniatura, conforme
Beardsley 146 ), que não é “senão uma diferença no sentido”147 carrega em si,
mediante a impertinência semântica, um estranhamento seguido de uma apercepção
de semelhança, ou seja, a metafórica que justamente transgride a ordem categorial
é também o que a suscita, como a operar um jogo da semelhança na diferença.
Ora, voltamos a insistir que essa dinâmica tensiva constitutiva da metáfora, é
imanente à própria vida e Ricoeur argumenta que se a metáfora está no plano da
mimesis, todavia, ela há de dizer a physis e, neste ponto se vale novamente de
Aristóteles: “A metáfora, ele diz [Aristóteles] ‘põe sob os olhos’ porque ela ‘signi-
fica as coisas em ato’ ” 148. E, após essa citação, Ricoeur arremata: “A expressão
viva é o que diz a experiência viva”149.
Até aqui, no presente capítulo, o que se disse foi diferença como índice de
vida. O sentido tornado referência. Uma Poética como veículo de uma Ontologia
prenhe de intenções éticas, como veremos mais tarde.
Agora é chegado o momento de dizer e de fundamentar, num outro capítu-
lo, a diferença como primeira condição para o aparecimento do sentido e mais
tarde, ainda no próximo capítulo, a diferença e a falta como móvel da ação dirigida,
móvel da intenção significativa como ação dirigida, a de significar a palavra, a
145 Trad. do ingles de “moonlight hanging or dropping on treetops like blue cobwebs” em Wheelwright.Metaphor and reality, p. 53
146 Citado por Ricoeur em Teoria da interpretação, p. 58.147 Ricoeur. A metáfora viva, p.70.148 Aristóteles, Retórica, III, 11, 1411b24-25) in ibidem. p.74149 ibidem, p.75
89
frase, o texto, ou, após, de como a potência e o ato das palavras desvelam potência
e ato de tudo quanto existe e que age no mundo, fazendo da narrativa de uma
vida, através da multiplicidade dos seus tempos, um só tempo, unidade, de forma
a que o tempo, e quaisquer outras identidades, sejam um outro de si-mesmo, uma
unidade na diversidade, vocação ética maior da obra ricoeuriana.
Então, naturalmente, restará fundamentado que as palavras dadas no mundo
(múltiplas) e os sentidos (múltiplos) das palavras, indicam para o Cogito, amplian-
do-o, que o sentido, auferido mediante o Cogito, ainda que o Cogito seja ele
próprio imanência (intersubjetiva) de Cogitos potenciais , o sentido traz em si, ou
até eventualmente já antes de si, mas nele revelada, a referência possível, proces-
sada no Cogito, de um mundo melhor, um mundo a um só tempo criado e desco-
berto pela linguagem, a linguagem vivificante capaz de ser atos de potências,
porque linguagem viva capaz de ser ela mesma um sempre outro de si-mesma.
90
1. A DIFERENÇA150 E O SENTIDO
Não será imediata a ligação que Ricoeur fará entre diferença e a gênese do
sentido. Primeiro aponta uma diferença 151 que diz respeito a relações de oposi-
ção entre os elementos ou unidades da língua no que se refere à língua 152, estrito
senso, enquanto estrutura e não enquanto processo. A tarefa dessa explicitação
estrutural cabe à Semiologia ou Semiótica. E este é o débito para com o estrutu-
ralismo lingüístico.
Mas, se “a linguagem é constituída por uma hierarquia de níveis” 153, para
Ricoeur eles não terão abordagens teóricas homólogas, de forma que a passagem
da palavra [enquanto signo, ou mesmo significado, no nível ainda paradigmático]
para uma nova unidade do discurso que é a frase [aqui, então, com a palavra se
sintagmatizando como unidade básica de sentido, mediante a frase], essa passagem
“representa um golpe, uma mutação na hierarquia dos níveis” 154, um salto mes-
mo, em que a frase [e as palavras nela contidas] designam um sentido, e operam
A ESTRUTURA, A PALAVRA,O ACONTECIMENTO
Apercepção e experiência.Repouso e ação. O si-mesmo como um outro.
150 A propósito do vocábulo “diferença” há que se ter o seguinte cuidado: Aqui “diferença” refere-se àdistinção entre o nível semiótico e o semântico (cf. Benveniste); entre estrutura (ou sistema) da línguae seu processo (fala); entre significado e sentido.
151 Aqui “diferença” designa somente as relações binárias de oposição na estrutura (formal) da língua (cf.Saussure), entre os significantes (no plano da expressão, como quer Hjelmslev).
152 langue, na acepção saussureana como um sistema homogêneo e estável em que as partes do sistema sãoas relações internas entre as unidades do discurso. Saussure. Curso de lingüística geral, p.15-28.
153 a 155 Citações do texto de Ricoeur.A estrutura, a palavra , o acontecimento in Ricoeur. O conflito dasinterpretações, p.80-98.
V
91
uma primeira participação na esfera do ser, inaugurando uma “ontologia do logos”
155 e a solicitar da Semântica os seus préstimos. Será mesmo dessa diferença de
níveis que nasce o sentido.
Num primeiro nível, semiológico, da língua (langue) trata-se de proceder ao
método analítico para estabelecer relações internas finitas entre as unidades da
língua (fonemas, léxicos, sintaxe) seja sob a visada diacrônica seja mesmo sob a
sincrônica, constituindo para Ricoeur uma operação da análise de formas e de
regras finitas que regem o sistema de signos dispostos, portanto, em uma verda-
deira “clausura lingüística” 156.
Saindo desse plano imanente da língua e mediante já a uma intenção signi-
ficativa do locutor para dizer o mundo tal como o experimenta, passa-se para o
domínio da fala157 em que a idealidade do sentido (sentido que é próprio de cada
um dos locutores singulares) visa ao que lhe transcende, o real158. Este o momen-
to de liberdade da palavra (na fala), na medida em que a fala diz a alguém sobre
algo, e em que a fala opõe-se à estabilidade rígida do sistema e mobiliza, e atualiza,
de forma mais plástica, as potencialidades da língua, exigindo agora para seu estu-
do não mais o método analítico e sim o dialético.
E para alinhar o plano da frase com o da referência, Ricoeur retoma Frege,
dizendo-nos que
a mira da linguagem é dupla: mira de um sentido ideal (isto é, sem pertença
ao mundo físico ou psíquico) e mira de referência; se o sentido [Sinn] pode
ser dito inexistente, enquanto puro objeto do pensamento, é a referência - a
Bedeutung – que enraíza as nossas palavras e as nossas frases na realidade (...) O
momento em que se produz a viragem da idealidade do sentido para a realidade
156 ibidem.Em Curso de lingüística geral (p.112), Saussure afirma: “Em Lingüística, como no jogo de xadrez,existem regras que sobrevivem a todos os acontecimentos.”
157 parole, na acepção saussureana, como “ato individual de vontade e inteligência (...) combinações pelasquais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal.” Saussure.Curso de lingüística geral, p.22
158 Fala, que, sub-reptícia e evolutivamente retroalimenta o sistema ou estrutura da língua, passível so-mente de mudanças muito lentas.
92
da coisa, é o da transcendência do signo [o mesmo que o da ruptura da clausura
lingüística]. É no plano da frase que a linguagem diz alguma coisa; abaixo, não.
Com efeito, a dupla articulação de Frege é a mola da predicação, na medida
em que “dizer alguma coisa designa a idealidade do sentido e “dizer sobre
alguma coisa” designa o movimento do sentido para a referência. 159
É na referência que o sentido se instaura, e em que a palavra é livre, preen-
chendo seu telos e sua função proposicional. A palavra e a frase, uma pela outra,
não uma sem a outra, são entes livres para acertar ou errar se se tratam de senten-
ças declarativas (proposições, estrito senso); para bem ou mal expressar
afetos,vivências, ou atitudes, se se tratam de sentenças expressivas; ou melhor
pedir ou impor, quando se tratam de sentenças diretivas.
De qualquer forma, uma coisa é certa. A frase, e a palavra “enfrasada” 160
ou “a palavra em situação de frase”161 operam na esfera da intersubjetividade,
ainda que o poeta lírico se não fala propriamente a outro, fala a um outro virtual,
um outro de si mesmo, pois que a lírica vem preencher o espaço entre o ter sido
e o sendo, entre o sendo e o que se aspira ser.
Viver entre vivos requer a frase. E a frase requer a palavra. A frase é a gênese
da palavra, é o vagido e o movimento da palavra, pois que só se nasce para o
mundo no dizer e na ação.
Benveniste é marco inspirador para Ricoeur:
A noção de semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e em
ação; vemos desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o
homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitin-
do a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando
a resposta, implorando, constrangendo (...) Ora , a expressão semântica por
excelência é a frase(...) Não se trata mais, desta vez, do significado do signo,
159 Ricoeur. O conflito das interpretações, p.88160 Aplicação da licença poética de João Cabral de Melo Neto. Obra completa, p.350, que, no poema
“Rios sem discurso”, a respeito do período pós-seca, em que as poças d’água se fundem, se “enfrasam”,de forma a refazer o discurso-rio, tal como os morfemas, palavras e sintagmas se fundem para aformação da frase.
161 Ricoeur. O conflito das interpretações, p. 91
93
mas do que se pode chamar o intencionado, do que o locutor quer dizer, da
atualização linguística de seu pensamento. 162
O elogio da frase como a operadora da ação viva, e antes, como a passagem
da apercepção para a experiência e da experiência para ação, não dignifica menos
a palavra.
A palavra é muito mais e muito menos do que a frase (...) A frase, vimo-lo,
é um acontecimento: nesta qualidade a sua atualidade é transitória, passagei-
ra, evanescente. Mas a palavra sobrevive à frase. Como entidade deslocável,
sobrevive à instância transitória do discurso e mantém-se disponível para
novos empregos. Assim, pesada com um novo valor de emprego (...) regres-
sa ao sistema. E, ao regressar ao sistema, dá-lhe uma história 163
A palavra tem história. A palavra diz a história. E na trama ficcional, ou na
trama da existência, a história é unidade de ação, e que só mesmo se consolida
como unidade mediante a vontade que lhe imprime um fim( vontade do escritor;
vontade de “Deus”).
Até então, temos a oportunidade de uma vontade livre capaz de escolhas.
Na existência, até a consumação da mais clara falibilidade de que temos a marca,
a morte, há que nos fazermos capazes, nós, homem falíveis.
Para isso, e para pensarmos de que forma a linguagem (as palavras) podem
ancorar-se ao projeto ricoeuriano do homem capaz, há que se fazer uma articulação
da obra ricoeuriana com Aristóteles, ainda outra vez.
Antes disso, deixemos Ricoeur falar:
Haveria então um novo percurso para a meditação sobre a “palavra”. Porque
há grandes palavras, palavras poderosas (...): graças ao processo de nomeação,
essas palavras operam a captura de qualquer aspecto do ser, por meio de uma
espécie de violência que delimita precisamente isso que a palavra abre e
descobre. São as grandes palavras do poeta, do pensador: elas mostram, elas
deixam ser aquilo que elas rodeiam com sua cerca. 164
162 Benveniste. Problemas de linguística geral, vol II, p.229163 Ricoeur. O conflito das interpretações, p.94164 ibidem, p.97.
94
2. ARTICULAÇÃO COM ARISTÓTELES (POTÊNCIA E ATO)
Se as palavras deixam ser aquilo que elas rodeiam com sua cerca, penso que
aqui, para Ricoeur, a metáfora da cerca terá o significado de uma abrangência
suficientemente móvel como fosse cerca viva, de tal forma a conter em si, a um só
tempo potência ativa e potência passiva 165: projeta-se em movimento de tal
forma a emoldurar o ser que este nela se revela e se deixa dizer, e deixa-se mover
em novas projeções segundo a atividade plástica do ser que, vivo, solicita-lhe a
expansão contínua para melhor significá-lo. Porque deixar ser é também deixar
que o ser se manifeste em suas múltiplas acepções. Que se, como já vimos166, “a
expressão viva é o que diz a existência viva”, a linguagem, mediante a metáfora
viva, há de abranger a polissemia do ser, “no ponto em que a referência da
enunciação metafórica põe em jogo o ser como ato e o ser como potência”167.
Na confluência entre poética e ontologia, o verbo poético “significa em ato” e o
poeta seria “aquele que vê como acabado e completo o que se começa e se faz,
aquele que percebe toda forma obtida como uma promessa de novidade” 168.
Identidade na alteridade e alteridade na identidade.
O conceito diretor para onde conflui a obra de maturidade filosófica de
Ricoeur é o de atestação, conceito contemplado pela sua obra magna “O si-
mesmo como um outro”. Trata-se da afirmação, do reconhecimento e
asseguramento de si, da confiança mesmo de identificar-se como o ser si-mesmo
em todas as circunstâncias da existência. Essa busca faz da ética ricoeuriana ética
mais teleológica que deontológica169, busca filosófica que se inicia para a superação
das aporias inescapáveis das filosofias do Cogito, após o esgotamento do recurso à
165 cf. Aristóteles, La Métaphysique, tome II, Theta, 1, 1046a 5-30166 citação 149, p. 89167 Ricoeur, Metáfora viva, p.471168 ibidem, p. 474169 Visar à vida boa (agindo e sofrendo), com e para o outro, nas instituições justas. cf. Ricoeur. O si-
mesmo como um outro. Sétimo estudo. p.199-236. Já, em respeito à noção de universalidade huma-na, a solicitude é dita por Ricoeur uma obrigação, uma norma.
95
reflexão e à intuição e como recusa “ da dissociação do si perseguida com furor
pela desconstrução nietzscheana”170. Percorre este caminho, como já vimos, pela
via longa do método interpretativo ou hermenêutico, consistindo-se, por isso,
como a hermenêutica do si-mesmo, e situando-se num lugar epistêmico (e
ontológico) alternativo entre o Cogito e o anti-Cogito 171.
Ricoeur mesmo reconhece que sua filosofia não tem uma pretensão
fundacionista, por isso, assume-a como filosofia segunda (em contraste com as
filosofias primeiras, de caráter eminentemente epistemológico), num gênero mais
propriamente alético (ou veritativo)172. E o seu escopo é menos o conhecimento
e mais a ação. Daí que nela, troca-se a certeza (imediata) do Cogito pela atestação
de si (mediada dialética e hermeneuticamente) no eixo longo de toda uma vida.
A unidade temática desta filosofia refere-se ao agir humano, mas ao agir huma-
no em uma unidade analógica das várias acepções do termo agir e constituída por uma
tripla condição: o dizer, o narrar, o prescrever. Trata-se, em torno desta condição
trina, de atestar-se: quem fala? (i.é, o sujeito da enunciação) quem narra (a incluir a
questão da temporalidade e da identidade pessoal)? que prescrição nos responsabiliza?
(que direções éticas e morais da ação do sujeito, tornado sujeito de imputação).
Por isso, o projeto ricoeuriano parte da Filosofia da linguagem ( Na Semân-
tica, o que se diz? Na Pragmática, contígua à Estética, o como se diz?), avança
pela Ontologia e encontra na Ética a sua destinação final.
Na seções anteriores, restringimo-nos ao dizer como ação e à natureza e o
sentido do dizer. Agora, nesta seção, procuraremos contemplar a questão do quem
diz, para, no capítulo final (VI), prolongá-la como uma resposta à pergunta do quem
é aquele que diz, que é exatamente aquele que narra, como totalidade em face de
toda uma vida, e que portanto, é sobretudo temporalidade, interioridade do tempo a
170 ibidem, p.31171 ibidem, p.28172 ibidem, p.31
96
perpassar o que se foi, o que se é, e o que se pretende ser numa só unidade inconsútil,
síntese identidária ainda que num horizonte em contínuo movimento.
Quem diz?
Aqui, mais uma vez, Ricoeur pratica o método hermenêutico gadameriano
do justapor tradição e inovação com vistas a uma possível fusão de horizontes projetados
por cada uma delas. O grande gênero da tradição de que Ricoeur se apropria é a da
temática do Mesmo e do Outro, cotejada com o conceito de atestação, numa visada
contemporânea, inovada e tributária da filosofia analítica de matiz realista173.
Quanto à tradição, trata-se da polissemia dos entes enunciada por Aristóteles
em Metafísica E 2:
“O ser propriamente dito se dá em várias acepções; vimos inicialmente o ser
por acidente, em seguida o ser como verdadeiro ao qual o falso se opões
como não-ser; além disso, há os tipos de categorias, a saber, a substância, a
qualidade, a quantidade, o lugar, o tempo e todos os outros modos de signi-
ficação análogos do ser. Enfim, há em torno de todas essas espécies de seres,
o ser em potência e o ser em ato”. 174
Se essa polissemia, transportamo-la em ato inovador, tanto para as palavras e
seus sentidos como entes, assim como para os entes que as dizem, então, fica-nos
bastante claro compreendermos que a tensão entre o mesmo e o outro na vida das
palavras e na vida de quem as enuncia, está sob a orientação da noção geral e
omnienglobante do par potência (dynamis) e ato (energéia). Porque, na vida das
palavras, a metáfora lhes permite, em dialética fecunda, que os sentidos figurados,
como outros de si-mesmas, lhes expanda o poder referencial; e, na vida de seus
emissores, nós mesmos, somos interminavelmente outros sem deixarmos de nos
atestar como um, mais do que isso, atestamo-nos mais amplos e plenos no dizer e
no sermos tangidos e reconhecidos pela alteridade dita.
173 Não desenvolveremos essa visada contemporânea em sua fundamentação da atestação, pois o que nosinteressa é mais a vinculação de toda a questão do ser com a linguagem ( e mais propriamente com asmetáforas, como recurso cognitivo ampliado a partir das aporias do Cogito)
174 Aristote. La Metaphysique, 1026 b
97
A FILOSOFIA DE RICOEURHermenêutica crítico-fenomenológica
para um projeto ontológico e ético.
VI
Abertura para o outro é abertura para o que difere. Pensemos na palavra: a
diferença na palavra é a alteridade latente dos significados que ela oferece para o
mundo; escrita, tornada fixa na textura do papel, permanece para sempre disponí-
vel ao distanciamento imaginante do leitor. A metáfora é, sim, um “poema em
miniatura”. Um poema da palavra que decerto, se metáfora viva, haverá de ex-
pandir-lhe a miríade de significados, expandidos em sentidos quando em situação
de frase, expandidas em intrigas, mais ainda, quando frases em situação de texto.
O texto, no tempo, é narrativa. Narrativa de ações. Aquele que narra, aquele que
o lê, ambos também agem, ambos configuram e refiguram o mundo. O mundo é o
referido transformado quanto mais as diferenças sejam vivas e fecundas na pala-
vra/semente do poeta. E o hermeneuta é aquele que tem a visada móvel e ade-
quada para a plasticidade intrínseca do texto/mundo. O hermeneuta é também o
imaginante que se deixa surpreender pela impertinência das palavras do poeta.
Pode assim redescrever o real. E se o rio de Heráclito é sempre o outro de si-
mesmo é que das palavras transbordam rios, e de rios mais pensamentos.
A proposta filosófica de Ricoeur firma-se como rio que adentra a floresta
densa e organizada que se ergueu de Descartes até Husserl. Era tão densa e orga-
nizada que desde ali já não se viam nem as copas, nem o azul do céu. Nem
mesmo, entre as árvores, distinção. E os fios de rio que ali irrompem informam
trechos da floresta, e contudo, não a desorganizam. A floresta continua a ser
98
filosofia. Mais que isso, as árvores se nutrem, e, em nutridas, também informam
mais vida para o mundo. A filosofia deve sempre uma resposta para o mundo.
Para Ricoeur, há uma clara “correspondência entre um ver-como no plano
da linguagem e um ser-como no plano ontológico” 175.
E, assim, também uma clara correspondência entre a narratividade tácita do
homem e sua identidade.
Sua filosofia é um não-sistema, a propiciar inclusive permanente abertura
para o diálogo com outros pensamentos que lhe sejam diversos, um pensamento
internamente articulado, mas sem a rigidez e impenetrabilidade próprias das es-
truturas e sistemas estritos. Assim, a identidade de sua filosofia é um permanente
questionamento de si mesma como identidade. Pressupõe a liberdade de ser e a
liberdade de não-ser.
A árvore da vida resplandece livremente e, sem perder aquilo que lhe é
eminentemente próprio, materializa em si os aportes do mundo e a ele fornece
seu dom, continuamente renovável. Acrescente-se a isso um pathos humano ca-
paz de intuir a excelência e a justiça, e chamar-se-á a isso uma Ética.
“Visar à vida boa (...) agindo e sofrendo (...) para e com os outros (...) nas
instituições justas’176 .
Essa, a “pequena ética” de Ricoeur, como o próprio denomina sua obra de
maturidade, O si-mesmo como um outro, que assim vem completar, em 1990, a plenitu-
de de um projeto filosófico, a culminar com a proposição de uma phronesis a tecer-se,
no tempo, mediante os diversos matizes ou figuras do outro: a metáfora a desvelar o
outro da palavra; o Cogito hermenêutico, o outro do Cogito; o si-mesmo a desvelar-
se como o outro de si; o “tu” como o outro de si-mesmo, o “cada um” como o outro
da vida em instituições. E todas essas figuras da alteridade regidas pelo “coração dos
corações” 177, a consciência, e nesta, indissociável, a consciência moral.
175 Ricoeur. Da metafísica à moral. p. 124176 cf. Ricoeur. O si-mesmo como um outro. P.202-236177 Ricoeur. Da metafísica à moral. p.129
99
Para Ricoeur, é justamente a reflexão sobre esse “coração dos corações”
que o regresso de si ao si-mesmo se completa. “Mas o si podia regressar a casa
apenas no fim de uma longa viagem. E é ‘como outro’ que o si regressou” 178.
O que, então, teria faltado à longa viagem de nosso grande pensador, que
nos deixou em 2005, se a falta é sempre o outro da plenitude? Isso, aqui deixamos
apenas entrevisto aos leitores, mais como atmosfera do que propriamente como
definição.
Deixamo-lhes o que o próprio Ricoeur nos deixou, como pergunta, como
“aporia do Outro”, ao fim de sua autobiografia intelectual, e o que também
encerra a presente dissertação:
Por fim, não lamento a viragem agonística expressa nas linhas finais, nas
quais afirmo que não posso dizer enquanto filósofo de onde vem a voz da
consciência – essa expressão última da alteridade que assombra o en-si-
mesmamento! Virá ela de uma pessoa que é outra que eu posso ainda consi-
derar, dos meus antepassados, de um deus morto ou de um Deus vivo, mas
um tão ausente de nossa vida como o é o passado de toda a história
reconstruída, ou até de algum espaço vazio? 179
178 ibidem. p. 129179 ibidem, p. 135
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