MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALPROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA
Recurso N.º 02/2018 – AJCR/SGJ/GABPGR Sistema Único n.º PGR-172900/2018
HABEAS CORPUS Nº 151.819/PA IMPETRANTE: José Eduardo Rangel de Alckmin e outros (a/s)COATOR: Superior Tribunal de JustiçaPACIENTE: Regivaldo Pereira GalvãoRELATOR: Ministro Marco Aurélio
O Ministério Público Federal, pela Procuradora-Geral da República, interpõe
AGRAVO REGIMENTAL,
com fundamento no artigo 317 do RISTF, em face da decisão monocrática do Ministro
Relator que deferiu o pedido de liminar formulado nos autos deste Habeas Corpus, para
suspender, até o julgamento do seu mérito, o início da execução provisória da pena a qual
o paciente Regivaldo Pereira Galvão foi condenado na Ação Penal 2010.2.012127-8, à pena
de 30 anos de reclusão, pela prática de homicídio qualificado contra a missionária Dorothy
Mae Stang.
Pede-se a Vossa Excelência, desde já, que reconsidere a decisão agravada, ou
envie este pedido de reforma da decisão à Primeira Turma desse Tribunal.
Gabinete da Procuradora-Geral da RepúblicaBrasília/DF
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I - DOS FATOS
Trata-se de habeas corpus com pedido de liminar impetrado por José Eduardo
Rangel Alckmin e outros em favor de Regivaldo Pereira Galvão, contra decisão do Ministro
Félix Fischer, do Superior Tribunal de Justiça, que determinou a prisão do paciente no
Recurso Especial 1.405.233.
Registre-se que diante dessa determinação, impetrou-se em favor do paciente o
HC 133.528, tendo na ocasião o relator concedido liminar para recolhimento do mandado de
prisão, a fim de que o paciente aguardasse o trânsito em julgado em liberdade. A ordem, ao
final, não foi concedida. Aliás, a Primeira Turma sequer conheceu do writ, dada a ausência de
flagrante constrangimento ilegal na espécie, tendo o acórdão sido lavrado pelo Ministro
Alexandre de Moraes.
Diante disso e em razão do quanto decidiu o Supremo Tribunal Federal no HC
126.292/SP, o Ministro Félix Fischer determinou novamente que o juízo de primeiro grau
desse início à execução provisória da pena, fato que ensejou esta impetração.
Pretende-se, aqui, obstar, em caráter liminar, a execução provisória da pena de 30
anos de reclusão em regime inicial fechado imposta ao paciente. Para tanto, alegam os
impetrantes ofensa ao princípio constitucional da não-culpabilidade, uma vez que não se
concluiu o julgamento de embargos de divergência no Superior Tribunal de Justiça.
Argumentam, ainda, que a existência de decisão a incidência da proibição da reformatio in
pejus, uma vez que na origem - e a luz da jurisprudência prevalente à época dos fatos - havia
determinação para que a pena fosse cumprida após o trânsito em julgado.
Com bases nesses argumentos, requer o impetrante, liminarmente e no mérito,
seja revogada a sua custódia com a consequente suspensão da execução provisória da pena
imposta ao paciente.
O Ministro Relator Marco Aurélio, em decisão de 21 de maio de 2018, deferiu a
liminar ao argumento de que a execução provisória da pena afronta o artigo 5º-LVII da
Constituição, que a Suprema Corte não declarou a inconstitucionalidade do artigo 283 do
Código de Processo Penal e que a decisão no HC 126.292 não tem efeito vinculante.
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Contra esta decisão monocrática, o MPF interpõe o presente Agravo Regimental,
pelas razões expostas a seguir.
II - RESPEITO À DECISÃO VINCULANTE DO STF SOBRE EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA
- SOBRE EFEITOS VINCULANTES E A DECISÃO DO STF NO ARE 964.246 E DO HC 126.292
Data venia do entendimento firmado pelo Ministro Relator, as decisões firmadas
pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no ARE 964.246/SP e no HC 126.292 revestem-
se de eficácia erga omnes.
Para tanto, apresenta-se, aqui, exame da extensão dos efeitos vinculantes1 das
referidas decisões do Supremo Tribunal Federal, a fim de verificar se a aludida decisão tem
eficácia vinculante erga omnes2 ou inter partes 3.
1 Inteiramente cabível, aqui, a ressalva feita, em obra doutrinária, pelo Ministro Luís Roberto Barroso: “Todas as decisões judiciais produzem efeitos vinculantes. Quando tais efeitos obrigam apenas às
partes do caso concreto, afirma-se que os efeitos são vinculantes e inter partes; quando a orientaçãofirmada em um julgado tem de ser observada nos demais casos futuros e idênticos, afirma-se queproduzem efeitos vinculantes e gerais (erga omnes). Entretanto, o jargão jurídico vem utilizando aexpressão efeito ou precedente vinculante para referir-se a esta segunda categoria de precedentes, cujosefeitos obrigatórios ultrapassam o caso concreto e equivalem aos efeitos dos binding precedents docommon law. Trata-se de uso menos técnico, porém consolidado na comunidade jurídica. Por essa razão,a menção a efeitos ou a precedentes vinculantes neste trabalho designará sempre aqueles entendimentosque firmam orientações gerais obrigatórias para o futuro.”
(BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro:Saraiva, 2015, p. 160-161 e 235-248).
2 Isto é, se se aplica a todos, com força para vincular todos os órgãos jurisdicionais. Na doutrina de GilmarFerreira Mendes, o efeito vinculante "… tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas poraquela Corte Constitucional, assegurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mastambém aos chamados fundamentos ou motivos determinantes (tragende Gründe)." (in MENDES, GilmarFerreira. O efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal nos processos de controle abstratode normas).
3 Isto é, se tem força para vincular apenas as partes das demandas nas quais foi proferido, servindo de meroreforço argumentativo e fonte de interpretação do direito para os demais órgãos jurisdicionais.
Há inúmeras classificações sobre tipos de eficácia dos precedentes judiciais no Brasil. Grande parte delas refere-se a pelo menos dois tipos de eficácia citados neste parecer (embora não raro sob outra nomenclatura): a)eficácia vinculante geral ou erga omnes; b) eficácia meramente persuasiva. A este respeito, Patrícia PerroneCampos Mello e Luís Roberto Barroso afirmam:
“Diante das considerações acima, pode-se afirmar que os precedentes judiciais, no direito brasileiro,produzem três espécies de eficácia. Há, primeiramente, os precedentes com eficácia meramente
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Até recentemente, para responder a esta questão, a Doutrina costumava apontar
duas diferenças entre as decisões da Suprema Corte: no controle concentrado e no controle
difuso de constitucionalidade. A primeira diferença provinha da própria natureza das
decisões. Enquanto no controle concentrado o STF resolve questões jurídicas desvinculadas
de um caso concreto (a priori), de forma objetiva e geral, como o pedido principal de uma
ação originária (principaliter tantum), no controle difuso, resolve questões suscitadas em
recursos extraordinários (a posteriori) considerando as peculiaridades do caso concreto, os
interesses subjetivos das partes, de forma incidental (incidenter tantum). A segunda diferença
decorria da extensão dos efeitos vinculantes. Enquanto no controle concentrado a decisão
judicial tem eficácia vinculante geral, no controle difuso tem eficácia vinculante inter partes.
Neste último caso, haveria extensão a terceiros se a lei declarada inconstitucional tivesse sua
eficácia suspensa por Resolução do Senado Federal, nos termos do artigo 52-X da
Constituição.
Todavia, esta abordagem tradicional tem sido progressivamente alterada. A
jurisprudência do STF aproximou a natureza e a extensão da eficácia vinculante de suas
decisões nas duas modalidades de controle de constitucionalidade das leis. O Ministro Gilmar
Ferreira Mendes afirma, a propósito, que há uma tendência de "dessubjetivação das formas
processuais, especialmente daquelas aplicáveis ao modelo de controle incidental, antes
dotadas de ampla feição subjetiva, com simples eficácia inter partes".
Ou seja, as decisões do STF no julgamento de recursos extraordinários ou no
persuasiva. Esta é a eficácia que tradicionalmente se atribuía às decisões judiciais em nosso ordenamento,em razão de sua própria raiz romano-germânica. Os julgados com esta eficácia produzem efeitos restritosàs partes e aos feitos em que são afirmados, são relevantes para a interpretação do direito, para aargumentação e para o convencimento dos magistrados; podem inspirar o legislador; e sua reiteração dáensejo à produção da jurisprudência consolidada dos tribunais. São, contudo, fonte mediata ou secundáriado direito. Há, no outro polo, os precedentes normativos em sentido forte, correspondentes aos julgados eentendimentos que devem ser obrigatoriamente observados pelas demais instâncias e cujo desrespeitoenseja reclamação. Nos países do common law, um instrumento como a reclamação é prescindível paraque a eficácia normativa se torne efetiva. O respeito aos binding precedents é pressuposto e tradição dosistema. A experiência mostrou, contudo, que não é isso o que ocorre no Brasil. O cabimento dereclamação é essencial, em nosso sistema, para a efetividade do respeito ao precedente. Não há, aqui,tradição neste sentido. Ao contrário, há mesmo alguma resistência em aceitar a ampliação dos precedentesvinculantes, por se considerar que estes interferem indevidamente na independência e no livreconvencimento dos juízes. E a correção das decisões que violam os precedentes judiciais pelo sistemarecursal tradicional pode levar muitos anos. Consequentemente, só é possível falar em eficácia normativaforte, por ora, para aqueles casos em que é cabível a reclamação.Há, ainda, em nosso sistema, um conjunto de julgados que produzem uma eficácia intermediária”.(Trabalhando com uma nova lógica: A ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Encontrado emhttps://www.conjur.com.br/dl/artigo-trabalhando-logica-ascensao.pdf).
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controle difuso de constitucionalidade, sempre que oriundas do Plenário, têm caráter
objetivo, desprendido do caso concreto e de suas especificidades. O controle difuso de
constitucionalidade, nesse passo, quando feito pelo Pleno da Suprema Corte, perde a marca
tradicional do "controle concreto" (à luz das peculiaridades do caso concreto) para assumir a
natureza de "controle abstrato", em que a questão jurídica é analisada em tese, ainda que de
forma incidental4.
O caráter objetivo dos acórdãos do Plenário no controle difuso de
constitucionalidade torna-se mais nítido com a criação do instituto da repercussão geral
como requisito de admissibilidade dos recursos extraordinários (ex vi do artigo 102-§3º da
Constituição, incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004). É
que, em razão deste requisito, apenas os recursos extraordinários que tratem de questões
constitucionais relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que
ultrapassem os interesses subjetivos da causa, são conhecidos pela Suprema Corte, dando
origem a precedentes que resolvem questões jurídicas em tese.
Nesta realidade jurídica, vigente desde a EC 45 de 2004, a distinção tradicional
entre as decisões da Suprema Corte no controle concentrado e no controle difuso, que se
baseava na natureza objetiva ou subjetiva de cada uma delas, deixou de existir.
Resta examinar se persiste a segunda diferença que havia entre essas duas
decisões, relativa à extensão erga omnes ou inter partes da eficácia vinculante delas
emanada.
A resposta é negativa, por mais de um motivo.
Primeiramente, a feição objetiva e definitiva das decisões do Pleno do Supremo
Tribunal Federal que resolvem arguições de inconstitucionalidade no julgamento de recursos
extraordinários com repercussão geral – que em nada diferem das decisões em controle
concentrado –, já é suficiente para dar-lhe eficácia vinculante erga omnes. Nas palavras de
4 Mais uma vez, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, citadas por Fredie Didier: "o recurso extraordinário deixa de ter caráter meramente subjetivo ou de defesa de interesses daspartes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. (...) Afunção do Supremo nos recursos extraordinário - ao menos de modo imediato - não é a de resolverlitígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das Cortes inferiores. Oprocesso entre as partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas comopressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos.
DIDIER JR., Fredie. Transformações do Recurso Extraordinário. In: Processo e Constituição. Estudos emhomenagem a professor José Carlos Barbosa Moreira. Luiz Fux, Nelson Nery Júnior, Teresa Arruda AlvimWambier (coordenadores). São Paulo: RT, 2006. Pág. 122.)
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Luís Guilherme Marinoni,
[...] como a questão constitucional com repercussão geral necessariamente tem relevanteimportância à sociedade e ao Estado, a decisão que a enfrenta, por mera consequência,assume outro status. Não há como conciliar a técnica de seleção de casos com a ausênciade efeito vinculante, já que isso seria o mesmo que supor que a Suprema Corte se presta-ria a selecionar questões constitucionais caracterizadas pela relevância e pela transcen-dência e, ainda assim, estas poderiam ser tratadas de maneira diferente pelos tribunais ejuízes inferiores.
A ausência de efeito vinculante constituiria mais uma afronta à Constituição Federal,desta vez à norma do artigo 102, § 3.º, que deu ao Supremo Tribunal Federal a incum-bência de atribuir – à luz do instituto da repercussão geral – unidade ao direito mediantea afirmação da Constituição. Quer dizer, em suma, que o instituto da repercussão geral,ao frisar a importância das questões constitucionais com relevância e transcendência e,por consequência, demonstrar a importância do Supremo Tribunal Federal para garantir aunidade do direito, deu nova ênfase à imprescindibilidade de se ter as decisões da Su-prema Corte como precedentes constitucionais dotados de eficácia vinculante5.
Acentue-se que são praticamente idênticos os requisitos para alçar uma questão
ao Pleno do STF nos modelos concentrado e difuso, de modo que não há razão substancial
para diferenciar os efeitos das decisões tomadas em cada um deles. A posição da Corte a
respeito está claramente afirmada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, quando disse que
“a natureza idêntica do controle de constitucionalidade, quanto às suas finalidades e aos
procedimentos comuns dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece
legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no
controle incidental6”.
Finalmente, consolidando a autoridade dos precedentes no Brasil – que aproxima
a ordem jurídica brasileira (de civil law, de tradição romano germânica) à ordem jurídica do
common law –, a Lei 13.105/2015 (Novo Código de Processo Civil) estabeleceu
recentemente o caráter vinculante erga omnes dos precedentes do Pleno do STF em recursos
extraordinários com repercussão geral. É o que consta dos artigos 489-§1º-VI7, 927-I a III8 e
5 Marinoni, Luiz Guilherme, Mitidiero. E-book, Precedentes Obrigatórios.6 Voto proferido pelo Ministro no julgamento da Reclamação n. 4.335-5/AC7 Art. 489. São elementos essenciais da sentença:(…)§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
(...)VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a
existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
8 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;II - os enunciados de súmula vinculante;III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em
julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
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988-§5º-II9 do Novo Código de Processo Civil. Assim, atualmente, a decisão proferida em
recurso extraordinário com repercussão geral pelo Pleno do STF sobre constitucionalidade de
norma tem efeito erga omnes e deve ser obrigatoriamente observada por todas as instâncias
jurisdicionais do país. O seu desrespeito por qualquer delas enseja o cabimento de
reclamação constitucional.
Sob estas premissas, as decisões do Plenário do Supremo Tribunal Federal no
julgamento do ARE 964.246/SP, com repercussão geral, e do HC 126.292/SP têm eficácia
vinculante erga omnes (geral), ao contrário da pretensão do paciente neste habeas corpus.
O fato de estes precedentes terem eficácia vinculante geral gera duas
consequências que interessam à solução deste pedido de habeas corpus. A primeira é a de
que obriga a todos os órgãos jurisdicionais do país, de modo que, segundo se extrai
diretamente do artigo 489-§1º-VI do CPC, é nula qualquer decisão que, apreciando questão
jurídica idêntica, “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente
invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento”. A segunda, de certo modo contida na primeira, é a de que sua
inobservância só é possível quando o caso em julgamento for distinto do precedente
obrigatório (um caso de distinção, ou distinguishing), ou quando for o caso de revogação do
precedente por alteração de condições e requisitos (um caso superação, ou overruling).
Por lealdade processual, é de se verificar se este habeas corpus expõe fatos
diferentes dos que conduziram ao paradigma (quando seria caso distinção ou distinguishing),
ou, se a situação enseja a revogação do precedente (quando seria caso de superação, ou
overruling).
EXAME DE DISTINÇÃO (DISTINGUISHING)10
A inobservância do precedente vinculante em razão de distinção (distinguishing)
ocorre quando fatos relevantes distinguam o caso em análise e o paradigma. Patrícia Perrone
9 Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para:§ 5º É inadmissível a reclamação:(Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016) (...)II – proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral
reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quandonão esgotadas as instâncias ordinárias. (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016)10 CPC, art. 489-§1º-VI
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Campos Mello esclarece que“uma nova causa pode apresentar fatos diferentes, mas
juridicamente irrelevantes, circunstância em que se afirmará a identidade entre as duas
ações e na qual, por consequência, a decisão da nova demanda deverá observar o
entendimento proferido no caso anterior. Um novo caso pode, contudo, envolver situação de
fato sutilmente diferente, porém a diferença pode ser relevante do ponto de vista jurídico. Há
diferença juridicamente relevante quando a nova situação de fato atrair o debate sobre
regras ou sobre princípios que não se aplicavam à situação anterior”11.
Ocorre que os fatos são idênticos neste habeas corpus e nos paradigmas (ARE n.
964.246/SP e HC 126.292/SP). Em ambos questiona-se a possibilidade de executar a pena
aplicada em acórdão condenatório proferido por Tribunal - na espécie, pelo Superior Tribunal
de Justiça - após o regular exercício do duplo grau de jurisdição, com contraditório e ampla
defesa assegurados e de acordo com o devido processo legal, determinando-se a prisão do
réu, antes do trânsito em julgado para todas as partes.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal afirmou e secundou a tese de que "a
execução provisória de acórdão condenatório proferido em grau de apelação, ainda que
sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da
presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal"
Os impetrantes argumentam que o precedente vinculante não deve ser aplicado ao
caso concreto, porque seria distinto em razão das seguintes particularidades:
(i) o Supremo Tribunal Federal já lhe teria assegurado o direito de responder ao
processo em liberdade, conforme decisão de 05.11.2013 no Habeas Corpus 114.214/PA;
(ii) a execução provisória da pena, segundo o entendimento dos Ministros Gilmar
Mendes e Dias Toffoli, exige o trânsito em julgado do acórdão no Superior Tribunal de
Justiça;
(iii) ocorrência de indevida reformatio in pejus, uma vez que a sentença, que por
força do quanto decidiu o STF no HC 114.214/PA alterou decisão que impedia que o réu
recorresse em liberdade, a fim de que o início do cumprimento da pena ocorresse após o seu
trânsito em julgado.
A primeira alegação não é causa de distinguishing. O fato de o Supremo Tribunal
11 O Supremo e os precedentes constitucionais: como fica a sua eficácia após o Novo Código de Processo Civil.Encontrado em https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/jus/article/viewFile/3596/2842.
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Federal ter concedido anterior ordem de habeas corpus no sentido de obstar a execução
provisória da pena não impede que, diante de novos fundamentos e, sobretudo, de nova
orientação jurisprudencial firmada pela Suprema Corte, expeça-se novo mandado de prisão.
O writ, por sua própria natureza, é adstrito a uma determinada circunstância,
fixada no tempo e no espaço: a ordem de habeas corpus visa a afastar ato concreto que
limite, de forma ilegal ou abusiva ou direito de locomoção.
Neste caso, o ato coator é a decisão do Ministro Félix Fischer que, amparado no
posicionamento prevalente do Supremo Tribunal Federal – em especial do julgamento do HC
126.292 – determinou a prisão do paciente. Diferentemente, no HC 144.214, julgado em
05.11.2013, o ato coator consistia na sentença que negou o paciente de responder ao processo
em liberdade.
Descabida a pretensão dos impetrantes, uma vez que a jurisprudência
predominante sustenta tanto a possibilidade de o paciente recorrer em liberdade, assim como
a de determinar-se a execução provisória da pena após a confirmação da condenação pelo
Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal Regional Federal respectivo.
A decisão do Ministro Félix Fischer não é, portanto, incompatível com aquela
proferida no HC 144.214, sobretudo porque amparada em distinta fundamentação e à luz de
novo arcabouço fático e jurídico.
Não é o caso de distinguishing, portanto. Afinal, o acórdão proferido pelo
Supremo Tribunal no HC 114.214 cinge-se às peculiaridades fáticas observadas no caso
concreto à época do julgamento, sendo descabido conceder-lhe efeito similar ao de um salvo
conduto amplo e perpétuo – incompatível com a nossa ordem jurídica –, hábil a afastar toda e
qualquer decisão que determine a prisão do paciente.
O segundo argumento dos impetrantes também é improcedente. Antes do
precedente vinculante oriundo do ARE n. 964.246/SP, o início da execução da pena aplicada
pelo Tribunal dependia do trânsito em julgado da condenação para todas as partes. Fora dessa
hipótese, a prisão do réu condenado por Tribunal só era possível por razões cautelares e
diante da prova de seus requisitos legais.
O citado precedente vinculante veio justamente permitir a prisão do réu
condenado por Tribunal antes do trânsito em julgado da condenação para as duas partes e
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independentemente de razões cautelares. A essência deste precedente é estabelecer que a
observância do duplo grau de jurisdição cumpre a exigência constitucional da presunção de
inocência: por isso, a condenação do réu por Tribunal autoriza o início da execução da pena,
ainda que pendentes de julgamento recursos extraordinários e especial, pois estes não
permitem reexame dos fatos. A Constituição não exige terceiro ou quarto grau de jurisdição:
exige apenas o duplo grau. Como os recursos extraordinário e especial não têm efeito
suspensivo sobre a decisão condenatória do Tribunal, não impedem a produção dos efeitos
dos acórdãos condenatórios por eles impugnados. Por isso, o início da execução da
condenação, com a prisão do réu, pode ocorrer logo após o encerramento da jurisdição do
respectivo Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal, com o julgamento dos
recursos ali interpostos pelo réu. Após o esgotamento da jurisdição, haverá o início da
execução da pena aplicada, como efeito imediato decorrente do acórdão condenatório.
Imperioso recordar aqui que a prisão do paciente deu-se após o julgamento do
recurso especial, inadmitido, assim como do agravo de instrumento, desprovido, e dos
embargos de declaração, acolhidos, sem efeitos modificativos, apenas para sanar pequeno
erro material. Estando o feito pendente apenas do julgamento de embargos de divergência
opostos pelo réu.
Segundo o STF, portanto, o início da execução da pena de prisão após a decisão
definitiva do Tribunal pode ocorrer antes do trânsito em julgado da condenação e independe
da presença dos requisitos da prisão cautelar. É efeito resultante da condenação do Tribunal,
ainda que venha a ser impugnada por recurso (extraordinário ou especial) sem efeito
suspensivo.
Não é caso, pois de distinguishing. A rigor, este mesmo argumento foi examinado
pelo Plenário do STF quando julgou o ARE 964.246/SP. Este caso concreto, portanto, e o
paradigma em nada se diferenciam quanto à possibilidade de execução provisória quando
esgotada a jurisdição do Tribunal de apelação, sem demonstrar a necessidade da custódia. O
argumento dos impetrantes não nega a essência do precedente; ao contrário. Por isso não se
está diante de situação para deixar de aplicá-lo.
Também não merece ser acolhido o terceiro argumento dos impetrantes, no
sentido de que a decisão ofende o princípio de reformatio in pejus.
O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar caso substancialmente idêntico já
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afastou esta alegação:
Agravo regimental em habeas corpus. Penal. Crime de evasão de divisas (art. 22 da Leinº 7492/86). Condenação confirmada em segundo grau. Execução provisória da pena de-terminada. Pretendida desconstituição da medida. Negativa de seguimento ao writ por in-cidência da Súmula nº 691/STF. Possibilidade. Inteligência do art. 21, § 1º, do RISTF.Não ocorrência de violação do princípio da colegialidade. Precedentes. Inexistência deilegalidade flagrante capaz de temperar o rigor da súmula em evidência. Agravo regi-mental não provido.
1. Não ofende o princípio da colegialidade o uso pelo relator da faculdade prevista no art.21, § 1º, do Regimento Interno da Corte, o qual lhe confere a prerrogativa de, monocrati-camente, negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente inadmissível, improce-dente ou contrário a jurisprudência dominante ou a súmula do Tribunal.
2. A hipótese narrada nos autos não enseja a superação do enunciado da Súmula nº 691da Suprema Corte. A decisão ora hostilizada não merece reparos, pois a questão foi resol -vida nos exatos termos da jurisprudência que se formou na Corte.
3. A decisão do juízo de origem que determinou a execução provisória da pena im-posta ao ora agravante não configurou reformatio in pejus e nem afrontou a juris-prudência fixada pelo Supremo Tribunal Federal que, no julgamento do HC nº126.292/SP, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Teori Zavascki, entendeu que “aexecução provisória de acórdão penal condenatório proferido em julgamento deapelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete oprincípio constitucional da presunção de inocência” (DJe de 17/5/16).
4. Esse entendimento, aliás, manteve-se inalterado na Corte, que, em 5/10/16, indeferiuas medidas cautelares formuladas na ADC nº 43 e na ADC nº 44, as quais pleiteavam,sob a premissa da constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, a sus-pensão das execuções provisórias de decisões penais que têm por fundamento as mesmasrazões de decidir do julgado proferido no HC nº 126.292/SP.
5. Agravo regimental ao qual se nega provimento12 [ênfase acrescida].
Com efeito, o caso posto à apreciação da Suprema Corte no HC 126.292/SP é
substancialmente idêntico ao aqui posto. Ali também franqueou-se a possibilidade de
execução provisória da pena de 5 anos e 4 meses de reclusão imposta ao réu em regime
inicial fechado em decorrência da prática do crime do artigo 157 –§2º–I e II do Código Penal,
a despeito de a sentença expressamente ter consignado a possibilidade de o réu recorrer em
liberdade.
Também há recordar que contra esta decisão apenas a defesa interpôs recurso,
tendo a Corte afastado tacitamente ofensa ao princípio da reformatio in pejus. Logo, se a
decisão proferida pelo juízo monocrático, secundada pelo TRF – 2ª Região e mantida pelo
Superior Tribunal de Justiça afrontasse a coisa julgada, também o seria o precedente em que
12 STF. HC 134863 AgR, relator o Ministro Dias Toffoli, Segunda Turma, DJe-017,divulgado em 31/01/2017.
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se firmou a tese da possibilidade de execução provisória da pena.
Além disso, note-se que a execução provisória da pena não conflita com o
aludido princípio, uma vez que decorre apenas, da interposição de recurso
especial/extraordinário, não revestidos de efeito suspensivo, em razão do "restrito espectro
de cognoscibilidade desses mecanismos de impugnação, bem como da atividade judicante
despenhada pelas instâncias ordinárias"13
Como reconhecido pela Primeira Turma desta Corte, inclusive, não há o
agravamento da situação jurídica do réu, mas apenas a incidência dos efeitos processuais
estabelecidos em lei:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL.CRIME DE PECULATO. ARTIGO 312 DO CÓDIGO PENAL. EXECUÇÃO PROVI-SÓRIA SUPERVENIENTE À CONDENAÇÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA E AN-TES DO TRÂNSITO EM JULGADO DO PROCESSO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIADE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INO-CÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE TERATOLOGIA, ABUSO DE PODER OU FLA-GRANTE ILEGALIDADE. APLICABILIDADE DO ENTENDIMENTO FIRMADOPELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM SEDE DE REPERCUSSÃO GERAL.TEMA 925. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A execução provisória deacórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso espe-cial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de ino-cência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, consoantejulgamento do ARE 964.246, julgado sob o rito da repercussão geral (tema 925). 2. Incasu, o paciente foi condenado à pena de 10 (dez) anos de reclusão, em regime inicial fe-chado, bem como ao pagamento de 550 (quinhentos e cinquenta) dias-multa, em razão daprática, por onze vezes, do crime tipificado no artigo 312, § 1º, do Código Penal. 3. Aexecução provisória da pena coaduna com o princípio da vedação da reformatio inpejus, quando mantida a condenação do paciente pela Corte local, porquanto aconstrição da liberdade, neste momento processual, fundamenta-se na ausência deefeito suspensivo dos recursos extraordinário e especial, no restrito espectro de cog-noscibilidade desses mecanismos de impugnação, bem como na atividade judicantedesempenhada pelas instâncias ordinárias. 5. Agravo regimental desprovido14 [ênfaseacrescida].
O imediato cumprimento da pena imposta ao acusado reflete, portanto, apenas o
atual entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal a respeito das condenações
confirmadas pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, quando pendente
recurso especial ou extraordinário, não configurando caso de distinguishing.
Não é, pois, caso de distinguishing, pelo que é possível aplicar os precedentes do
13 Trecho do voto do Relator, o Ministro Luiz Fux, no HC 154976.14 STF. HC 154976 AgR, Relator o Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 25/05/2018, DJe-115,
publicado em 12.06.2018.
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Plenário do STF no ARE 964246/SP e no HC 126.292, ao caso concreto. Destaque-se,
inclusive, que o Plenário da Suprema Corte, apreciando novamente a questão no HC 152.752
reafirmou a possibilidade de execução provisória da pena.
Tampouco é caso de “superação do precedente” (overruling), conforme restará
demonstrado adiante.
EXAME DE OVERRRULING
REQUISITOS FORMAIS E PRESSUPOSTOS MATERIAIS DE SUPERAÇÃO (OVERRRULING)
A revogação de precedentes vinculantes como o oriundo do ARE 964246/SP
poderia decorrer de superação (overruling, quando “um precedente perde a sua força
vinculante e é substituído por outro precedente”15. A superação do precedente, no entanto,
deve observar requisitos formais (quanto ao modo de realização: o “como”) e pressupostos
materiais específicos (quanto às hipótese de cabimento – o “quando”).
Estes requisitos formais e pressupostos materiais integram o sistema de
precedentes vinculantes adotado no Brasil para conferir estabilidade, unidade e
previsibilidade ao sistema jurídico. De fato, não há sistema estável, coeso e previsível se as
Cortes Superiores não adotam critérios específicos para revogar os seus precedentes. A
observância de critérios diferenciados para revogação do precedente vinculante é inerente a
sua eficácia vinculante geral. Do contrário, será um precedente comum, com eficácia
meramente persuasiva. O sistema de precedentes vinculantes despido de credibilidade e,
assim, de efetividade e utilidade é o que despreza estes parâmetros.
Nesta linha, no que tange aos requisitos formais necessários à revogação de
precedente vinculante, registre-se que o primeiro deles prescinde de maiores explicações:
somente o órgão jurisdicional que produziu o precedente tem atribuição para revogá-lo. Vale
dizer,“a competência para a superação do precedente judicial é do órgão jurisdicional
prolator do precedente judicial16”, o que parece ser essencial para preservar o caráter
15 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 8. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2013, v.2, p.456.
16 Jesus, Priscilla Silva. TEORIA DO PRECEDENTE JUDICIAL E O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
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efetivamente vinculante do precedente e, assim, permitir a consecução das finalidades
mencionadas.
No que tange aos requisitos formais, a revogação de precedente vinculante só
pode ser feita pelo órgão jurisdicional que o editou, mediante decisão motivada, de elevado
ônus argumentativo, necessário para demonstrar que é caso de overruling (demostrando-se a
presença dos pressupostos materiais da revogação, adiante tratados). Ou seja, “sempre que
um juiz ou tribunal for se afastar de seu próprio precedente, este deve ser levado em
consideração, de modo que a questão do afastamento do precedente seja expressamente
tematizada17”. Para tanto, segundo o artigo 927-§2º do CPC, “a alteração de tese jurídica
adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser
precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que
possam contribuir para a rediscussão da tese”.
Os pressupostos materiais também devem estar presentes para que seja o caso
de promover overruling. A jurisprudência do STF ainda é silente, pois há escassez de casos
de revogação de precedentes em seu histórico.
Há vários entendimentos doutrinários sobre os pressupostos materiais do
overruling. Caminham, em substância, para este sentido: a revogação do precedente
vinculante é possível quando não mais corresponder aos padrões, segundo Melvin
Eisenberg18: (i) de congruência social19, ou seja, revelar-se errado, injusto, obsoleto,
agredindo o sentimento de justiça do cidadão comum; e (ii) de consistência sistêmica20, o
que ocorre quando os seus fundamentos se mostrarem incompatíveis com os fundamentos
afirmados em outros precedentes do mesmo tribunal ou de Tribunais Superiores. Estes são os
pressupostos materiais básicos para o overruling21.
17 Marinoni, Luiz Guilherme, Mitidiero. E-book, Precedentes Obrigatórios.18 Eisenberg, Melvin Aron. The nature of the common law. Cambridge: Harvard University Press. 1998, p.
104.19 Um precedente deixa de corresponder aos padrões de congruência social quando passa a negar proposições
morais, políticas e de experiência. (…). É possível dizer que as proposições morais determinam umaconduta como certa ou errada a partir do consenso moral geral da comunidade, as proposições políticascaracterizam uma situação como boa ou má em face do bem-estar geral e as proposições de experiênciadizem respeito ao modo como o mundo funciona, sendo que a maior classe dessas últimas proposiçõesdescreve as tendências de condutas seguidas por subgrupos sociais (Marinoni, Luiz Guilherme, Mitidiero.E-book, Precedentes Obrigatórios).
20 De outra parte, o precedente não tem consistência sistêmica quando deixa de guardar coerência com outrasdecisões. Isso ocorre quando a Corte decide mediante distinções inconsistentes, chegando a resultadoscompatíveis com o do precedente, mas fundados em proposições sociais incongruentes. (Marinoni, LuizGuilherme, Mitidiero. E-book, Precedentes Obrigatórios).
21 “A superação de precedentes geralmente ocorre quando estes são socialmente incongruentes (e, portanto, não
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A incongruência e inconsistência devem ser robustas o suficiente para justificar o
sacrifício dos valores que a preservação de precedentes vinculantes visa a proteger: a
estabilidade, unidade e previsibilidade do sistema jurídico. Trata-se, aqui, de ponderar se
os benefícios possivelmente decorrentes da eventual revogação do precedente obrigatório
superam os custos que isso causará à estabilidade, unidade e previsibilidade do sistema, em
um processo de ponderação que deve ser iluminado por cautela e parcimônia, já que o uso
indiscriminado ou precipitado do poder de revogar pode gerar dúvida sobre a real força
vinculante dos precedentes, e, assim, provocar o descrédito do sistema jurídico.
A propósito, Luiz Guilherme Marinoni trata o atentado à estabilidade da ordem
jurídica causado pela alteração indiscriminada de precedentes obrigatórios nestes termos:
Em outra perspectiva, a segurança jurídica reflete a necessidade de a ordem jurídica serestável. Esta deve ter um mínimo de continuidade. Pouco adiantaria ter legislação estávele, ao mesmo tempo, frenética alternância das decisões judiciais. Para dizer o mínimo, asdecisões judiciais devem ter estabilidade porque constituem atos de poder. Ora, os atosde poder geram responsabilidade àquele que os instituiu.
E continua Marinoni, agora a respeito dos valores - previsibilidade e unidade –
que um sistema que respeita a autoridade de seus precedentes almeja proteger:
A previsibilidade constitui razão para seguir precedentes. Interessante notar, ainda, que aprevisibilidade é relacionada aos atos do Judiciário, isto é, às decisões, mas garante aconfiabilidade do cidadão nos seus próprios direitos. Um sistema incapaz de garantir aprevisibilidade não permite que o cidadão tome consciência dos seus direitos, impedindoa concretização da cidadania. (…).
O sistema jurídico brasileiro, em tal dimensão, afigura-se completamente privado de efe-tividade, pois indubitavelmente não tem sido capaz de permitir previsões e qualificaçõesjurídicas unívocas. Não obstante as normas constitucionais que preveem as funções doSuperior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal – respectivamente, de uni-formizar a interpretação da lei federal e de “afirmar” o sentido das normas constitucio-nais –, torna-se estarrecedor perceber que a própria missão de garantir a unidade dodireito federal, atribuída e imposta pela Constituição ao Superior Tribunal de Justiça, écompletamente desconsiderada na prática jurisprudencial brasileira22.
Em suma, se, por um lado, um sistema de precedentes vinculantes engessado e
imutável estaria fadado à falência por rapidamente se tornar obsoleto, um sistema que
refletem a compreensão social sobre o que é justo) ou, ainda, quando são sistemicamente inconsistentes (porqueconflitam com outras normas, com outras decisões do órgão vinculante ou, ainda, com outras decisõesreiteradamente proferidas pelas instâncias inferiores)”. (Mello, Patrícia Perrone campos. O Supremo e osprecedentes constitucionais: como fica a sua eficácia após o Novo Código de Processo Civil. Encontrado emhttps://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/jus/article/viewFile/3596/2842)22 (Marinoni, Luiz Guilherme, Mitidiero. E-book, Precedentes Obrigatórios)
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permitisse a revisão açodada e acelerada de seus precedente, por outro lado, estaria fadado ao
mesmo destino por, também rapidamente, revelar-se despido de credibilidade e utilidade. O
(difícil) equilíbrio entre a necessidade de se atualizar (diante de novos sentimentos sociais) e
a capacidade de se manter (mesmo diante das oscilações de humor e opinião que marcam a
realidade de qualquer corpo social, dinâmico por natureza) é o que parece fazer de um
sistema de precedentes vinculantes um elemento realmente benéfico à sociedade.
PRESSUPOSTOS MATERIAIS PARA OVERRULING DO PRECEDENTE NO ARE 964.246.
Os pressupostos materiais necessários para superação (overruling) do precedente
vinculante instituído no ARE n. 964246/SP não estão presentes.
O precedente vinculante afirma que “a execução provisória de acórdão penal
condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou
extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência
afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal”.
O Plenário do STF aprovou este precedente vinculante há pouco mais de um ano,
após profundo e maduro debate e deliberação. Por sua importância, tem sido acompanhado
pela sociedade civil. A revogação deste importante precedente tão pouco tempo após sua
instituição não favorece a garantia de um sistema jurídico estável e previsível: que são
finalidades jurídicas próprias dos precedentes vinculantes.
Como já exposto, um sistema sério de precedentes vinculantes, comprometido
com os valores da estabilidade, coerência e previsibilidade do direito, não pode permitir
alteração ou revogação de modo indiscriminado ou precipitado, em função de fatores como
mudança na composição do Tribunal ou insatisfação de setores da sociedade, pois pouco
dizem sobre a justiça ou a adequação do precedente (ou, em outros termos, sobre a sua
congruência social e consistência sistêmica).
Não há como sustentar que, pouco mais de um ano após a formação do
precedente no ARE 964246, há razões contrárias a sua existência, seja quanto à congruência
social, seja quanto à consistência sistêmica.
O fato é que a Constituição não exige o trânsito em julgado da sentença penal
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condenatória: apenas exige o duplo grau de jurisdição como garantia da presunção de
inocência. Este é o princípio básico do referido precedente vinculante.
Exigir o trânsito em julgado após o terceiro ou quarto grau de jurisdição para, só
então, autorizar a prisão do réu condenado, é medida inconstitucional, injusta e errada.
Também favorece a impunidade e põe em descrédito a justiça brasileira, por perda de
confiança da população em um sistema em que, por uma combinação de normas e fatores
jurídicos, a lei deixa de valer para todos. O Ministro Luiz Fux, no julgamento do HC n.
126292/SP, afirmou:
E, como hoje, efetivamente, essa presunção de inocência não corresponde mais àquiloque se denomina de sentimento constitucional, eu colho da obra da professora PatríciaPerrone Campos Mello, sobre precedentes, que, às vezes, é fundamental o abandono dosprecedentes em virtude da incongruência sistêmica ou social. E, aqui, cito um trecho queeu também repisei no voto da "Ficha Limpa", quando se alegava presunção de inocênciairradiando-se para o campo eleitoral. Aqui, eu trago um texto muito interessante dessaeminente doutrinadora da nossa Universidade. Então afirma ela:
[…] A incongruência social alude a uma relação de incompatibilidade entre as normas ju-rídicas e os standards sociais; corresponde a um vínculo negativo entre as decisões judi -ciais e as expectativas dos cidadãos.
Por outro lado, Konrad Hesse, na sua obra sobre A Força Normativa da
Constituição, com tradução escorreita do eminente Ministro Gilmar Mendes, na obra da
Fabris Editor, afirmou:
[...] Quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singulardo presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa.
O disseminado sentimento de injustiça, que gerava grande insatisfação social e
descrédito na Justiça, foi considerado pelo Plenário do STF no julgamento do ARE 964246
(e dos processos que o precederam), à luz da Constituição de 1988. A Corte deliberou
considerando a expectativa social de receber a proteção do Direito. Em julgamento histórico,
decidiu que o princípio constitucional da presunção da inocência não impede o início do
cumprimento da pena de prisão após o esgotamento do duplo grau de jurisdição pela decisão
do tribunal de apelação e antes do trânsito em julgado da condenação.
Os fundamentos deste precedente continuam congruentes socialmente e
consistentes sistemicamente. São coerentes com a Constituição e a presunção de inocência.
Conferem as condições necessárias para o precedente ser mantido.
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Revogá-lo, mesmo diante de todos os fundamentos jurídicos que o sustentam,
representaria triplo retrocesso:
• para o sistema de precedentes do sistema jurídico brasileiro, que,
diante de julgado vinculante revogado menos de um ano após a sua edição,
perderia estabilidade e seriedade;
• para a persecução penal no país, que voltaria ao cenário do passado,
de baixa efetividade, sempre ameaçada por processos penais infindáveis, recursos
protelatórios e penas prescritas; e
• para a confiança e credibilidade na Justiça, porque haveria restauração
da sensação de impunidade que vigorava antes do julgamento do ARE
964.246/SP.
Há observar que o posicionamento firmado no ARE 964246 foi confirmado pelo
Plenário quando do julgamento do HC 126.292, recentemente confirmado após julgamento
de embargos de declaração. No referido julgamento, a Corte manifestou-se no sentido de que
"a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda
que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional
da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal".
Além disso, há recordar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal mais uma
vez, em 05.04.2018, reafirmou esta tese ao julgar o HC 152752, a afastar os fundamentos
invocados pelo Relator para a concessão liminar da ordem.
Diante da ausência dos pressupostos materiais para a superação (overruling), o
precedente vinculante formado no ARE 964246 deve ser mantido e aplicado ao caso
concreto, com a consequente denegação deste pedido de habeas corpus.
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III - SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 283 DO CPP
Data venia do entendimento do Ministro Relator, o Ministério Público Federal
sustenta que a constitucionalidade da execução provisória da pena restou decidida pelo
Plenário do STF em 2016, no julgamento do ARE 964.246.23
Considerando a eficácia vinculante erga omnes deste precedente, somada à
ausência de pressupostos materiais para seu overruling, ele deve ser aplicado neste caso
concreto para manter a execução provisória da pena, uma vez que já esgotada a jurisdição do
Tribunal de Justiça de São Paulo e presente, na espécie, decisão do Superior Tribunal de
Justiça determinando a medida.
De todo modo, explicitar-se-ão a seguir os fundamentos pelos quais o MPF
afirma ser constitucional a execução provisória da pena aplicada pelo tribunal, nos termos do
precedente vinculante, e inconstitucional sua vedação pela legislação ordinária (artigo 283 do
Código de Processo Penal).
POSIÇÃO DO STF ACERCA DO ARTIGO 283 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Os impetrantes argumentam que a execução provisória da pena aplicada pelo
tribunal afronta o princípio constitucional de presunção de inocência e é expressamente
vedada pelo artigo 283 do Código de Processo Penal. Por tal razão, segundo os impetrantes,
esta norma processual deve ser aplicada ao caso concreto, com a consequente proibição da
prisão do paciente.
Primeiramente, esclareça-se que, ao julgar o Recurso Extraordinário com Agravo
964.246/SP, o Plenário do Supremo Tribunal Federal deliberou por maioria de votos, e
afirmou que o artigo 283 do Código de Processo Penal não impede a execução provisória da
pena de prisão após esgotada o duplo grau de jurisdição.
Este entendimento majoritário já havia prevalecido, meses antes, no julgamento
da Medida Cautelar nas ADCs 43 e 4424, no sentido de que “não serve o artigo 283 do
23 Bem como do HC n. 126.292.24 Em outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal indeferiu medida cautelar pedida nas ADCs 43 e 44, e
deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 283 do Código de Processo Penal, para excluir apossibilidade de que esta norma seja interpretada para obstar a execução provisória da pena depois da
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Código de Processo Penal para impedir a prisão após a condenação em segundo grau –
quando já há certeza acerca da materialidade e autoria – por fundamento diretamente
constitucional; afinal, interpreta-se a legislação ordinária à luz da Constituição, e não o
contrário”.
A respeito do artigo 283 do Código de Processo Penal, o voto do Ministro Teori
Albino Zavaski, no Recurso Extraordinário com Agravo 964.246/SP, esclarece a posição da
maioria:
As razões de meu convencimento, além daquelas constantes do julgamento do HC126.292, foram ainda analisadas nos embargos de declaração no HC 126.292, submeti-dos à julgamento no Plenário Virtual do STF.
Eis os pontos mais relevantes: (...) 2. As razões recursais evidenciam, claramente, que,quanto aos demais pontos, não há ambiguidade, omissão, obscuridade ou contradição aser sanada. O que se pretende é, na verdade, uma nova apreciação da matéria, para o quenão se prestam os embargos declaratórios, cujo âmbito está delimitado pelo artigo 619 doCódigo de Processo Penal.
Pode-se, quem sabe, objetar que houve omissão consistente na declaração da inconstitu-cionalidade do artigo 283, caput, do Código de Processo Penal, inserto no Título IX, quetrata das prisões, das medidas cautelares e da liberdade provisória. Mas nem essa objeçãoprocede. A dicção desse dispositivo, cujo fundamento constitucional de validade é o prin-cípio da presunção de inocência, comunga, a toda evidência, da mesma interpretação aesse atribuída. Assim, o controle da legalidade das prisões decorrentes de condenaçãosem o trânsito em julgado submete-se aos mesmos parâmetros de interpretação conferi-dos ao princípio constitucional. Equivale a dizer que a normatividade ordinária devecompatibilizar-se com a Constituição, dela extraindo fundamento inequívoco de legitimi-dade. Aliás, a propósito da temática, o Ministro Roberto Barroso, em seu voto, bem sin-tetizou a questão ao afirmar que naturalmente, não serve o artigo 283 do Código deProcesso Penal para impedir a prisão após a condenação em segundo grau quando já hácerteza acerca da materialidade e autoria por fundamento diretamente constitucional; afi-nal, interpreta-se a legislação ordinária à luz da Constituição, e não o contrário.
Sinale-se que esse dispositivo do artigo 283 do Código de Processo Penal teve que con-viver com o disposto no seu artigo 27, § 2º, segundo a qual os recursos especiais e extra-ordinários (inclusive os criminais) devem ser recebidos apenas no efeito devolutivo. Essedispositivo de lei foi, é certo, revogado pelo novo CPC (Lei 13.105/15), o qual, todavia,manteve o mesmo regime aos referidos recursos (CPC, artigo 995). A solução para per-mitir a convivência harmônica do artigo 283 do Código de Processo Penal com os dispo-sitivos que sempre conferiram efeito apenas devolutivo aos recursos para instânciasextraordinárias, sem reconhecer a revogação ou a inconstitucionalidade de qualquer deles(v.g. Lei de Execução Penal, arts. 105 e 147), foi essa adotada pelo acórdão embargado,como também já havia sido a da jurisprudência anterior ao 2008, do Supremo TribunalFederal.
O Plenário do STF deixou claro, no julgamento do ARE 964.246, que a vedação
da execução provisória da pena deixa desprotegidos os bens jurídicos protegidos pelo direito
decisão condenatória de segundo grau e antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
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penal, como a vida e a segurança, o que não pode ser admitido. Este trecho do voto do
Ministro Luís Roberto Barroso esclarece este ponto:
Nessa situação, o sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilidade – prisão doacusado condenado em segundo grau antes do trânsito em julgado – é superado pelo quese ganha em proteção da efetividade e da credibilidade da Justiça.
E mais: interditar a prisão quando já há condenação em segundo grau confere pro-teção deficiente a bens jurídicos constitucionais tutelados pelo direito penal, muitocaros à ordem constitucional de 1988. Dessa ponderação decorre que, uma vez pro-ferida a decisão condenatória de segundo grau, deve se iniciar o cumprimento dapena. A prisão na hipótese decorre, assim, de fundamento diretamente constitucio-nal, limitando a esfera de liberdade do legislador.
Neste precedente vinculante, o Plenário do STF deliberou expressamente sobre a
constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, decidindo que não pode
obstar a execução provisória da pena após decisão do tribunal, cuja constitucionalidade
foi reconhecida pela Suprema Corte.
O ARTIGO 283 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E O ARTIGO 5º-LVII DA CONSTITUIÇÃO
TÊM CONTEÚDOS DISTINTOS
O Ministério Público Federal sustenta que o artigo 283 do Código de Processo
Penal não pode vedar a execução provisória da pena aplicada pelo tribunal de apelação, sob
pena de inconstitucionalidade, razão pela qual ele não pode obstar a prisão do paciente assim
que esgotada a jurisdição do TRF-4a Região.
O artigo 283 do Código de Processo Penal não é mera repetição do artigo 5º-LVII
da Constituição.
As regras são diferentes. A Constituição estabelece que“ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, enquanto o
Código de Processo Penal estabelece que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante
crime ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em
decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou
do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Percebe-se, sem muito esforço, que a Constituição garante a presunção de
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inocência ao estabelecer que “ninguém será tratado como culpado” antes do trânsito em
julgado da respectiva condenação. Já a lei veda o início da execução da pena antes do trânsito
em julgado da condenação.
A lei não regulamenta a norma da Constituição. Por isso, o artigo 283 do Código
de Processo Penal não é inteiramente compatível com o artigo 5º-LVII da Constituição.
Em verdade, para que se defina se esta lei é ou não constitucional, é preciso
verificar se regulamenta de modo razoável e legítimo o princípio da presunção de inocência
previsto no artigo 5º-LVII da Constituição, ou se o extrapola a ponto de afrontar a
Constituição.
O ARTIGO 283 DO CPP E O ARTIGO 5º-LVII DA CONSTITUIÇÃO
CONTEÚDO ESSENCIAL DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
É preciso compreender o conteúdo essencial do princípio da presunção de
inocência no Brasil para resolver o pedido de habeas corpus. O artigo 5º-LVII da
Constituição25 o define. Todavia, há intensos debates doutrinários e jurisprudenciais desde a
inserção do princípio no texto constitucional de 198826. Muitos estudiosos do tema afirmam
a importância de se conhecer a arqueologia do princípio da presunção de inocência, ou seja,
a reconstituição histórica da sua evolução, para que se compreenda o preceito do artigo 5º-
25 Acerca da redação conferida pelo legislador constituinte ao artigo 5º-LVII, confira-se o que disse oMinistro Cesar Peluso: “Vamos agora tentar fazer uma síntese dos desdobramentos do alcance do princípio,sobretudo perante a nossa Constituição de 1988, que o adotou de modo expresso no artigo 5.º, LVII.Nenhuma Constituição anterior o consagrou literalmente. E é muito interessante rever a história da redaçãodesse inciso, porque o artigo 43, § 1.º, do Anteprojeto dizia o seguinte: "Presume-se inocente todo acusado,até que haja declaração judicial de culpa". O deputado constituinte, que depois foi governador do estado doEspírito Santo, José Inácio Ferreira, apresentou emenda que resultou na redação atual do inc. LVII, onde seestatui, com outras palavras, que ninguém - ninguém - será considerado culpado, até que lhe sobrevenhasentença condenatória definitiva.(Aula magna do Min. Antonio Cezar Peluso, ministrada no VI encontroAASP. Revista Brasileira da Advocacia | vol. 1/2016 | p. 231 – 245).
26 Embora as demais constituições republicanas brasileiras trouxessem capítulos próprios relativo a “direitos egarantias fundamentais, a Constituição Federal de 1988 foi a primeira constituição brasileira a adotar,expressamente, o princípio da presunção de inocência. Para conferir um histórico do referido princípio narealidade constitucional brasileira, confira-se a obra de Antonio Magalhães Gomes Filho, “Presunção deInocência e Prisão Cautelar, ed. Saraiva, 1991, p. 9-30.
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LVII da Constituição27.
Destacam-se aqui apenas os marcos da construção deste princípio constitucional
que influenciaram o legislador constituinte de 1988. São eles:
(i) a edição da Declaração do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789,
cujo artigo 9-IX dispôs que “Todo homem deve ser presumido inocente, e se for
indispensável detê-lo, todo rigor que não seja necessário (para submeter a pessoa),
deve ser severamente reprimido por lei”. Nessa previsão, o foco é o de coibir o rigor
desnecessário do poder de punir estatal, em reação a arbitrariedades no uso do
processo penal pelo monarca. Segundo Fernando Brandini Barbagalo, “a presunção
de inocência alterava a então existente presunção de culpabilidade quando era o
próprio acusado quem tinha que comprovar sua inocência. Diante dos abusos e
exageros comuns a essa inominada exigência à época, foi um avanço
significativo”28. A ideia subjacente a esse dispositivo, considerado a primeira
positivação do princípio da história29, tornou-se, dali por diante, um postulado
universal, influenciando boa parte dos diplomas constitucionais que vieram a ser
editados ao redor do globo.
(ii) a aprovação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos do Homem da
Organização das Nações Unidas (ONU), que, sem caráter cogente, estabelece a
seguinte recomendação: "Todo homem tem direito de ser presumido inocente até que
sua culpabilidade seja provada de acordo com a lei, em julgamento público, com
todas as garantias da defesa". Fixa um marco temporal para que a presunção de
inocência se desfaça (a saber: até que a culpabilidade seja provada de acordo com a
lei), e o princípio passa a atuar como regra de prova, segundo a qual o ônus de provar
27 Nessa linha, segundo ensina Weber Martins Batista: “(…) o ilustre jurista português afirmou que um preceito jurídico - e, de forma muito especial, um preceito constitucional - é, naturalmente o seu texto, mas é também, e sobretudo, a sua história (op. cit.). Ora, da norma constitucional que trata da presunção de inocência talvez se possa dizer que ela não é nada o seu texto, só a sua história. Ou seja, que vale tão-somente como uma idéia-força, no sentido de impedir que o réu seja tratado como sejá tivesse sido condenado, que sofra restrições de direitos não imprescindíveis à apuração dos fatos, que seja tratado como mero objeto de investigação e não como sujeito de direitos. Em suma, para impedir que lhe sejam negadas as garantias inerentes ao devido processo legal.”
Encontrado em: http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/5863e/58681/58a8a?f=templates&fn=document-frame.htm&2.0
28 Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais. Encontrado em https://www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/e-books/presuncao-de-inocencia-e-recursos-criminais-excepcionais.
29 BATISTI, Leonir. Presunção de inocência: apreciação dogmática e nos instrumentos internacionais e Constituições do Brasil e Portugal. Curitiba: Juruá, 2009, p. 33.
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a responsabilidade penal é do Estado.
(iii) a promulgação da Constituição italiana de 1947, cujo artigo 27 prevê que “o
acusado não é considerado culpado até a condenação definitiva”. Trata-se de
redação que foi “fruto de acaloradas discussões entre as duas correntes penais da
época: uma que pretendia a inclusão da presunção de inocência no texto
constitucional, e outra que preferia salientar sua contradição com a condição real
do acusado no processo penal, a fórmula adotada pela Constituição italiana
“pretendeu expressar um meio termo sobre as duas correntes de opinião”30. É
evidente a semelhança entre o artigo 27 da Constituição italiana com a redação do 5º-
LVII da Constituição; em razão disso, há autores que consideram que o texto italiano
serviu de inspiração para o brasileiro31, embora não haja registro expresso nesse
sentido nos trabalhos da Assembleia Constituinte.
Estes três marcos do desenvolvimento histórico do princípio da presunção de
inocência revelam o seu conteúdo essencial, que serve de parâmetro interpretativo do artigo
5º-LVII da Constituição.
Sob tais parâmetros, o princípio da presunção de inocência tem basicamente duas
dimensões. A primeira delas – inspirada na Declaração Universal dos Direitos do Homem de
1948 – é a de funcionar como regra de prova, de modo que as consequências de eventual
incerteza sobre a materialidade e autoria delitivas beneficiam o réu (in dubio pro reu),
impondo uma carga material da prova às partes acusadoras. Segundo o Ministro Luis Fux, “o
princípio da presunção da inocência, na vertente moderna, tem um significado diverso do
mero adágio in dubio pro reo. A meu juízo, a melhor formulação é o standard anglo-
saxônico, no sentido de que a responsabilidade criminal deve ser provada acima de qualquer
dúvida razoável, impondo, com acerto, um pesado ônus probatório à acusação. O exame
histórico evidencia que o princípio da presunção da inocência está fortemente vinculado à
30 Barbagalo, Fernando Brandini. Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais. Encontrado emhttps://www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/e-books/presuncao-de-inocencia-e-recursos-criminais-excepcionais.
31 Nesse sentido, por exemplo, assevera Luiz Flávio Gomes que “Considerando que o texto italiano aquienfocado constituiu a fonte de inspiração do dispositivo nacional semelhante, para sua exata compreensão eramesmo necessária a incursão que fizemos ao debate peninsular. Agora já sabemos porque nosso Constituinteevitou a utilização da locução 'presunção de inocência´. Quis adotar uma postura "neutra", asséptica, no queconcerne à posição do acusado frente ao processo penal”. (Sobre o conteúdo processual tridimensional doprincípio da presunção de inocência in Temas Atuais de Advocacia Criminal, São Paulo: Etna, 1996, p. 22.).
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questão probatória no processo penal32”.
A segunda delas, influenciada pela Declaração do Homem e do Cidadão de 1789,
é de servir como regra de tratamento33 do réu no processo penal, vetando-se antecipação de
juízo condenatório ou de culpabilidade, em situações práticas, palavras e gestos34. Mais uma
vez, conforme ensina o Ministro Luiz Fux: “a presunção de inocência protege, nessa
vertente, o processado de sofrer restrições desnecessárias a seus direitos antes de ser
provada a sua responsabilidade criminal, ou seja, antes de ser julgado e sem ingressar aqui
na questão da necessidade de este julgamento ser definitivo ou não.”
A função de tratamento processual é nítida na presunção da inocência inscrita na
primeira parte do artigo 5°-LVII da Constituição: “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A contrario sensu, são consentâneas
com este princípio medidas que o Estado adote, no exercício do seu jus puniendi, em face do
réu ainda não definitivamente condenado, que não equivalham a tratá-lo como culpado.
O que seria tratar alguém como culpado? Que tipo de tratamento dispensado ao
réu pelo Estado seria afrontoso ao conteúdo essencial do 5º-LVII da Constituição, em sua
dimensão de servir como regra de tratamento, por equipará-lo ao penalmente culpado?
No silêncio da Constituição, a lei pode dispor. Refletindo sobre esta questão, o
ministro Gilmar Mendes esclarece que
o núcleo essencial da presunção de não culpabilidade impõe o ônus da prova do crime ede sua autoria à acusação. Sob esse aspecto, não há maiores dúvidas de que estamos fa-lando de um direito fundamental processual, de âmbito negativo. Para além disso, a ga-rantia impede, de uma forma geral, o tratamento do réu como culpado até o trânsito emjulgado da sentença. No entanto, a definição do que vem a ser tratar como culpado de-pende de intermediação do legislador. Ou seja, a norma afirma que ninguém sera con-siderado culpado até o trânsito em julgado da condenação, mas está longe de precisar o
32 Trecho do voto proferido pelo Ministro no julgamento da ADC n. 30.33 Quanto a essa dimensão, esclarece Weber Martins Batista, em ensinamento que já se tornou clássico:“De
qualquer modo, qualquer que seja a redação, a regra vale tão-somente — e todos concordam nisso — comouma idéia-força, no sentido de impedir que o réu seja tratado como se já estivesse condenado, que sofrarestrições de direito que não sejam necessárias à apuração dos fatos e ao cumprimento da lei penal, emsuma, que não seja tratado como mero objeto de investigações, mas como sujeito de direitos, gozando detodas as garantias comuns ao devido processo legal, sobretudo 'as garantias da plena defesa'”. Encontradoem: http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/5863e/58681/58a8a?f=templates&fn=document-frame.htm&2.0
34 “O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outrasrelevantes consequências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar,em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sidocondenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.” (HC 95.886, Relator MinistroCelso de Mello, Segunda Turma, DJe-228, de 4/12/09).
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que vem a ser considerar alguém culpado (…). Disso se extrai que o espaço de conforma-ção do legislador é lato. A cláusula não obsta que a lei regulamente os procedimentos,tratando o implicado de forma progressivamente mais gravosa, conforme a imputaçãoevolui35.
Se é assim – ou seja, se, diante do silêncio do legislador constitucional, caberá à
lei definir o que vem a ser tratar alguém como culpado para fins de incidência do princípio
presunção de inocência –, então poderia parecer, à primeira vista, que a norma do artigo 283
do Código de Processo Penal é legítima quando inclui no conceito de “tratar como culpado”
a chamada “execução provisória da pena”. Sob essa ótica, a vedação de se executar
provisoriamente a pena, na condição de uma interpretação possível do artigo 5º-LVII da
Constituição, seria constitucional. Não é, todavia, o que ocorre.
PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA: LIMITES PARA A LEI. VEDAÇÃO À PROTEÇÃO
INSUFICIENTE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Ao regulamentar o princípio da presunção da inocência previsto no artigo 5º-LVII
da Constituição, notadamente quanto às atividades do Estado que impliquem tratamento do
réu como culpado, ainda não definitivamente condenado, a lei deve equilibrar dois vetores
axiológicos de igual relevância para o processual penal brasileiro: de um lado, o dever estatal
de assegurar ao acusado a aplicação dos seus direitos constitucionais fundamentais e, de
outro, o dever estatal de conferir efetividade à tutela penal36. Estes dois vetores vinculam-se
às duas principais finalidades do direito penal: garantir a defesa individual e ser instrumento
de persecução penal estatal.
A lei deve regulamentar as vedações no tratamento do réu entre estes dois vetores
axiológicos.
Caso contrário, a lei será inconstitucional por afronta ao dever estatal de garantir
o respeito a direitos fundamentais do réu, ou por ofensa ao dever estatal de dar segurança e
proteger, mediante a tutela penal, bens jurídicos essenciais, como a vida, a dignidade da
35 Trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes no julgamento do HC n. 126292/SP.36 Segundo Scarance Fernandes, a harmonização da presunção de inocência com a segurança pública é uma
das tendências do direito processual penal contemporâneo, que busca o equilíbrio entre assegurar aoacusado a aplicação dos seus direitos fundamentais e dotar os sistemas persecutórios de maior eficiênciapara fins da segurança social. Nesse ponto, os direitos fundamentais da liberdade e da segurança conferemaos indivíduos o direito a que o Estado atue positivamente para estruturar órgãos e criar procedimentos que,concomitantemente, lhes deem segurança e lhes garantam a liberdade. (FERNANDES, 2008, p. 231-233).
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pessoa humana, a integridade física, entre outros, contra a ação de terceiros. Este dever está
nos artigos 5º-caput, 6º-caput e 144 da Constituição.
Acerca do dever de proteção e segurança, "considerada a infração penal como
violação de um bem juridicamente tutelado por legislação específica, que não somente lesa
ou ameaça lesar direitos individuais, mas afeta também a harmonia e a estabilidade
indispensáveis à vivência comunitária, incumbe ao Estado a restauração da ordem jurídica
por ela atingida, de sorte a restabelecer, simultaneamente, a paz social, assecuratória da
segurança pública”37. Assim, o “dever de garantir a segurança está, além de evitar condutas
criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, também na devida apuração (com
respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, na
punição do responsável. (Fischer, 2009, p. 4). Exatamente por isso, “resta induvidosa a
existência do direito da sociedade coletividade ao acesso à efetiva justiça penal (eficientes
investigação administrativa e persecução judicial dos crimes perpetrados no seio social)”.
(Lima, 2015, p. 318)38.
Examina-se este dever pela lente da proteção insuficiente39 de direitos
fundamentais sociais. Ao lado da inconstitucionalidade por excesso do Estado, a proteção
insuficiente consiste em uma das faces do princípio da proporcionalidade40.
Lênio Streck esclarece que
37 TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 163.
38 Kurkowski, Rafael Schwez e Piedade, Antonio Sergio Cordeiro. Justificação Constitucional da execução provisória da pena privativa de liberdade na pendenvia dos recursos extraordinário e especial recebidos semefeito suspensivo. Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, vol. 9, nº18, mai.-ago. 2017
39 Segundo Douglas Fisher, a expressão “proibição insuficiente” foi primeiro utilizada pelo jurista alemão
Claus-Wilhelm Canaris (Fisher, Douglas. Execução da Pena na pendência de recursos extraordinário e especial
em face da interpretação sistêmica da Constituição. Uma análise do princípio da proporcionalidade: entre a
proibição do excesso e a proibiçao da proteção deficiente).
40 Sobre o tema, vale citar a clássica lição de Ingo Sarlet: “A noção de proporcionalidade não se esgota na
categoria da proibição de excesso, já que abrange, [...], um dever de proteção por parte do Estado, inclusive
quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de
dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim
chamada proibição de insuficiência no campo jurídico-penal e, por conseguinte, na esfera da política criminal,
onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados”. (SARLET, Ingo Wolfgang.
Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de
insuficiência. Revista da Ajuris, a. XXXII, n. 98, p. 107, jun. 2005).
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a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção deomissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Es-tado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resul-tado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidadepode advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social, como ocorrequando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativaspara proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionali-dade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Cons-tituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade(liberdade de conformação) do legislador41.
Por isso, a lei deve tanto regular o tratamento estatal dado ao réu que aguarda
condenação definitiva, como garantir efetividade ao processo penal, sem ferir a presunção
constitucional de inocência.
No limite, caso a lei amplie demasiadamente o que seja “tratar alguém como
culpado”, toda e qualquer medida adotada em face de alguém durante a investigação ou na
ação penal seria inconstitucional, já que em certa medida coloca o indivíduo no mínimo sob
suspeita.
Canotilho e Moreira compartilham esta preocupação ao afirmarem que
não é fácil determinar o sentido do princípio da presunção de inocência do argüido. Con-siderado em todo o seu rigor verbal, o princípio poderia levar à própria proibição de an-tecipação de medidas de investigação e cautelares (inconstitucionalizando a instruçãocriminal em si mesma) e à proibição de suspeitas sobre a culpabilidade (o que equivale-ria à impossibilidade de valorização das provas e aplicação e interpretação das normascriminais pelo juiz).
Em sentido semelhante, René Ariel Dotti defende que
não é possível adotar uma interpretação literal desse direito-garantia, porque ela conduzi-ria ao paradoxo frente às medidas cautelares de restrição de liberdades e direitos (busca eapreensão, interceptação de comunicações e dados etc.) e até mesmo diante das formasde prisão provisória adotadas pela generalidade dos sistemas processuais42.
É inexorável que o processo penal seja integrado por medidas restritivas de
direitos do investigado ou réu, que se justificam quando sobre ele pairam suspeitas que
exigem investigação, para proteger direitos de terceiros. Se a lei vedasse a investigação ou a
41 STRECK, Lênio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso
(Übermaßverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermaßverbot) ou de como não há blindagem contra
norma penais inconstitucionais. Revista da Ajuris, a. XXXII, n. 97, p. 180, mar. 2005.
42 Encontrado em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/colunistas/rene-ariel-dotti/o-processo-penal-constitucional---alguns-aspectos-de-relevo-dp37vc8cc3yr3v4vgz1oxdkgv.
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ação penal com base no caráter absoluto da presunção de inocência comprometeria a
efetividade da tutela penal a ponto de levar à “total inoperância do sistema, notadamente o
criminal-constitucional43”.
Por isso, ao regulamentar o princípio da presunção de inocência, a lei não pode, a
pretexto de protegê-la de modo absoluto, desproteger (ou proteger de modo insuficiente)
direitos de outros, mediante a imposição de restrições ao jus puniendi que levem à ineficácia
da tutela penal.
VEDAR A EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA CONTRIBUI PARA A DISFUNCIONALIDADE DO
SISTEMA PENAL BRASILEIRO
O artigo 283 do Código de Processo Penal, ao vedar a execução provisória da
pena antes do trânsito em julgado da condenação, extrapola a presunção de inocência após o
duplo grau de jurisdição, que é a garantia do artigo 5º-LVII da Constituição, na medida em
que, ao fazê-lo, põe em risco a eficácia da tutela penal, deixando desprotegidos outros bens
jurídicos que o Estado deve proteger.
O complexo sistema recursal permite que, na prática, o condenado só deixe de
apresentar recursos quando se “conformar” com a condenação, o que pode jamais ou tardar
muito a acontecer. Por isso, há sempre a possibilidade de novos recursos contra as sucessivas
decisões no curso da ação penal, impedindo o trânsito em julgado da decisão condenatória.
Veja-se um breve resumo disso44:
(i) todos os acórdãos condenatórios dos Tribunais brasileiros podem ser objeto de
recursos para o STJ e para o STF.
(ii) Caso tais recursos não sejam admitidos no tribunal intermediário, é cabível
interpor agravo nos próprios autos (artigo 1.042, CPC), que o presidente do Tribunal
intermediário não pode obstar, deve processar (artigo 1.042, § 2º, CPC) e remeter
(nos próprios autos) ao STJ ou ao STF, para que a decisão sobre o não recebimento
43 Fisher, Douglas. Execução da Pena na pendência de recursos extraordinário e especial em face da interpretação sistêmica da Constituição. Uma análise do princípio da proporcionalidade: entre a proibição do excesso e a proibiçao da proteção deficiente.
44 Barbagalo, Fernando Brandini. Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais. Encontrado emhttps://www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/e-books/presuncao-de-inocencia-e-recursos-criminais-excepcionais.
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dos recursos especial ou extraordinários seja revista pelo Tribunal ad quem (STJ ou
STF).
(iii) Quando o réu entender que a decisão permite interpor simultaneamente recursos
(especial e extraordinário), deverá apresentá-los conjuntamente. Se ambos forem
rejeitados, deverá, igualmente, insurgindo-se, apresentar dois recursos de agravos
(artigo 28, Lei n. 8.038/90 e artigo 1042, §6º, CPC). Entretanto, os autos inicialmente
serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça (artigo 27-§3º da Lei 8.038/90 e
artigo 1031, caput do CPC), salvo quando a matéria constitucional for prejudicial ao
tema tratado no recurso especial, caso em que será encaminhado o agravo (nos
próprios autos) ao Supremo Tribunal Federal (artigo 27-§ 4º da Lei nº 8.038/90 e
artigo 1031-§ 1º do CPC) para verificar a prejudicialidade e se ocorrer, decidir o
recurso, para só então, encaminhar os autos de volta ao STJ.
(iv) Caso seja admitido o recurso especial, apenas após o seu julgamento e de todos
os seus sucessivos recursos dentro do STJ é que os autos seguirão finalmente ao STF.
(v) rejeitado pelo Relator o agravo contra a decisão que inadmitiu os recursos, caberá
agravo regimental para a Turma (artigo 28, § 5º, Lei n. 8.030/90 e artigo 1.021, CPC);
(vi) resolvida a questão pela Turma, poderão ser apresentados embargos de
divergência (artigo 29, Lei n. 8.038/90 e artigo 1.043, CPC).
(vii) em qualquer destas hipóteses, sempre poderá ser apresentado embargos de
declaração quando o réu entender que a decisão não é suficientemente clara,
apresenta ambiguidade ou contradição (artigo 263, RISTJ).
(viii) Nesse ínterim, é sempre possível a apresentação de recurso de embargos de
declaração contra decisão que analisou anteriormente o mesmo recurso (os chamados
embargos dos embargos de declaração) desde que o fundamento seja distinto.
(ix) terminada a fase no STJ referente ao Recurso Especial e seus vários consectários,
não havendo possibilidade de outros recursos nesse tribunal, determina-se a baixa dos
autos para a execução da condenação.
(x) no entanto, se o réu tiver interposto conjuntamente o Recurso Extraordinário e o
Especial, os autos deverão agora seguir ao Supremo Tribunal Federal para análise do
agravo, e todo o caminho delineado acima pode ser repetido no Supremo: a
possibilidade de agravo regimental com a denegação do agravo (artigo 317, RISTF),
os embargos de divergência (artigo 330, RISTF) e sempre (decisões colegiadas ou
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monocráticas) os embargos de declaração (artigo 337, RISTF) e outros embargos de
declaração.
Assim, “constata-se que o sistema recursal brasileiro só encontra limite na
capacidade (ou imaginação) do defensor do recorrente45”. Diante de tais características do
processo penal, pode-se afirmar que as decisões condenatórias são sempre passíveis de
alguma forma de reexame. “Por isso, Pimenta Bueno referido por Marques acerta ao dizer
que a decisão condenatória penal nunca fará coisa soberanamente julgada, dito de forma
mais simples, decisão (sentença ou acórdão) que condene alguém criminalmente, não faz
coisa julgada material, pois nunca se tornará imutável, dado os diversos mecanismos de
direito material (indulto, anistia, abolitio criminis) e processual (revisão criminal e habeas
corpus) criados para alterar essa espécie de decisão”46.
O sistema recursal brasileiro, ao permitir a interposição sucessiva de uma
infinidade de recursos e outros mecanismos de impugnação da condenação, possibilita que o
momento do trânsito em julgado47 da decisão condenatória se protraia no tempo de modo
quase infinito, a depender da disposição da defesa de recorrer.
Neste modelo recursal, a exigência – consectário da vedação da execução
provisória da pena – de se aguardar o trânsito em julgado da condenação para, só então,
executar-se o acórdão que determina a prisão do réu, conduz quase que inevitavelmente a
duas consequências: ou a prisão do réu condenado (por ter de aguardar o trânsito em julgado)
ocorre anos ou décadas após a prática do crime; ou nem ocorre por causa da prescrição da
pretensão punitiva ou executória.
No que tange à consequência de retardar a prisão do condenado para momento
muito posterior à data do fato criminoso, são inúmeros os efeitos danosos para a jurisdição
penal. Uma pena aplicada sem imediatidade, ou seja, muito tempo depois da prática do crime,
perde seu efeito inibitório, inclusive porque “quando se julga além de um prazo razoável se
está julgando um homem completamente distinto daquele que praticou o crime48”. É atual a
45 BARBAGALO, Fernando Brandini. Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais, p. 102.Encontrado em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/plano-instrucional/e-books/e-books-epub/presuncao-de-inocencia-e-recursos-criminais-excepcionais/view
46 BARBAGALO, Fernando Brandini. Presunção de Inocência e recursos criminais excepcionais, p.98.Encontrado em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/plano-instrucional/e-books/e-books-epub/presuncao-de-inocencia-e-recursos-criminais-excepcionais/view
47 No Brasil, o trânsito em julgado” de uma decisão se dá com o esgotamento de todos os recursos possíveis contra ela.
48 LOPES JR., Aury e BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável, Rio de
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lição de Beccaria:
A presteza da pena é mais útil porque quanto mais curto o tempo que decorre entre ocrime e a pena, tanto mais estreita e durável no espírito humano é a associação dessasduas ideias, crime e pena; de tal modo que imperceptivelmente se consideram uma comocausa e a outra como efeito necessário e indefectível. Está demonstrado que a união dasideias é o cimento que forma o intelecto humano, sem o qual o prazer e a dor seriam sen-timentos isolados e sem nenhum efeito49.
O intervalo excessivo entre o fato e a pena equivale a dar uma resposta penal que
não afasta a percepção de impunidade. A Constituição obriga a prestação jurisdicional célere,
para ser efetiva.
O intervalo excessivo entre o crime e a pena, mesmo de réu já condenado por
Tribunal, gera a percepção de que a lei penal não é aplicada, de que as decisões judiciais não
são cumpridas, ou de que a Justiça não funciona. A propósito, disse Marcio Thomaz Bastos:
Não podemos ter uma resposta lenta ao ponto de, se os tribunais do júri de São Paulo tra-balhassem todos os dias, fazendo um julgamento, levaremos dezenove anos para pôr apauta em dia. E todos nós sabemos que hoje, em São Paulo, quando alguém comete umcrime de homicídio, só vai ser julgado, provavelmente, se tudo correr normalmente, de-pois de cinco anos do seu cometimento. Isto, sim, é um estímulo à impunidade. Cria-seaquela sensação de anomia, de impunidade que, acredito, seja um fator de criminalidade.Se tivermos uma resposta firme do Poder Judiciário, criminal, acredito que haverá umadiminuição da criminalidade. O fato de a pessoa ficar solta durante muitos anos, depoisde ter cometido um homicidio, leva a população a descrer na justiça e enfraquecer o fatorde intimidação que a pena deve ter. Se tivéssemos um Judiciário de resposta rápida, emque a pessoa não ficasse cinco anos solta, mas apenas seis meses, e depois fosse julgadae presa, assim, teriamos um forte fator de dissuasão da criminalidade50.
O pior é que a exigência do trânsito em julgado da condenação conduz à
prescrição penal, impedindo a própria execução da pena em parte significativa dos casos. É
um fator de inoperância do sistema penal.
A prescrição da pena é muito frequente. Como a interposição de recursos para o
STF e para o STJ não interrompe a prescrição, a exigência de trânsito em julgado para iniciar
o cumprimento da pena aplicada pelo Tribunal tem conduzido à prescrição.
Um fator adicional de impunidade é a prescrição da pretensão executória, que
começa a correr com o trânsito em julgado da condenação para a acusação (artigo 112-I do
Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 14.49 BECCARIA, Cesare. Dos crimes e das penas. Tradução: José Roberto Malta, São Paulo: WVC Editora,
2002, p.57.50 Atas da Subcomissão dos Direitos Políticos e Garantias Individuais, p. 49 e 81, disponível em <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/CT_Abertura.asp >, acesso em 8 de outubro de 2012 (destacamos).
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Código Penal), e tem como o seu primeiro marco interruptivo o início do cumprimento da
pena (artigo 117-IV do Código Penal). Como a defesa pode interpor infindáveis recursos
contra a condenação e protrair ao máximo o trânsito em julgado, não é difícil que a
prescrição da pretensão executória ocorra se o cumprimento da pena antes do trânsito em
julgado da condenação para ambas as partes for vedado.
A prescrição da pretensão punitiva na modalidade intercorrente, por sua vez, tem
início com o trânsito em julgado da condenação para a acusação, e tem como marco final o
trânsito em julgado para ambas as partes. Na prática, a defesa pode interpor infindáveis
recursos contra a condenação e protrair o trânsito em julgado da condenação. A defesa tem
tido o incentivo de fazê-lo por saber que o réu não será preso enquanto o trânsito em julgado
não ocorrer. Por isso, não é difícil que a prescrição da pretensão punitiva na modalidade
intercorrente ocorra com frequência, à consideração de que o cumprimento da pena antes do
trânsito em julgado da condenação para ambas as partes seria vedado.
Antes de 2016 (quando o STF aprovou o precedente vinculante e permitiu a
execução provisória da pena), centenas de condenações penais prescreveram, depois de ter
sido reconhecida a prática do crime e a culpa do réu (em geral após a condenação pelo juiz e
pelo tribunal). Simplesmente deixou-se de dar cumprimento a tais condenações penais por
causa da prescrição: ou seja, por demora processual. A sensação de impunidade e a descrença
na Justiça em razão dessa constrangedora realidade são notórias.
As principais consequências advindas da vedação da execução provisória da pena
após a condenação pelo tribunal são a resposta penal extemporânea (dada muitos anos após a
prática do crime) ou a falta de resposta penal (face à prescrição). Ambas impedem o Direito
Penal de cumprir o seu papel de inibir novos crimes e de punir os infratores, de modo que o
Estado não cumpre bem seu papel de proteger bens jurídicos por meio do direito penal.
No desenho processual penal vigente no Brasil, o trânsito em julgado da
condenação, na prática, só ocorre quando a defesa deixa de recorrer. Exigir que o início do
cumprimento da pena de prisão dependa do trânsito em julgado conduz, inevitavelmente, a
um sistema penal que ou pune tardiamente ou simplesmente não pune.
Com este perfil, o sistema torna-se disfuncional em um grau inaceitável, e sob
duas óticas: primeiro, ele deixa de dar resposta adequada e suficiente aos crimes, deixando de
tutelar bens jurídicos relevantes para a sociedade (função retributiva do Direito Penal); e
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segundo, ele deixa de produzir ameaça ou efeito intimidatório intenso e sério o bastante para
inibir a prática de novos crimes (função inibitória ou preventiva do Direito Penal).
Ao exercer a função inibitória do direito penal, o Estado deve assegurar resposta
eficiente para os crimes, senão perderá credibilidade como guardião de direitos fundamentais
e ensejará impunidade. A percepção de impunidade pode estimular a prática de crimes.
A razão é simples. Estudos mostram que o processo decisório do sujeito que quer
praticar crimes baseia-se em considerações de custo/benefício: simplificadamente, quando
antevê que o proveito decorrente do crime (montante da vantagem econômica, por exemplo)
supera os seus custos (calculados em função da pena prevista em lei para o crime e
probabilidade de o sujeito ser por ele processado e punido), a tendência é que o sujeito queira
delinquir.
O efeito “deterrence” (ou dissuasório) formulado por Gary Becker em sua Teoria
da Escolha Racional51– que tem servido para o desenho de sistemas penais – consiste em que,
quando se deparam com a possibilidade de cometer crimes, sujeitos racionais52 serão
dissuadidos e deixarão de delinquir se o custo de punição esperado (“expected punishment
cost”) superar os ganhos esperados (“expected gain”)53 advindos do crime.
51 “A aplicação dessa abordagem a questões jurídicas relacionadas à criminalidade começou no século XX como artigo seminal de Gary Becker, “Crime and Punishment: an Economic Approach”, escrito em 1968, e tornou-se conhecida como Teoria Econômica do Crime. De acordo com essa teoria, a chave para a compreensão docomportamento criminoso está em assumir que a maioria das pessoas cometeria um ilícito apenas se a utilidadeesperada percebida pelo agente excedesse a utilidade esperada do emprego de seu tempo e recursos em outrasatividades, como um trabalho tradicional. Nessa linha, algumas pessoas tornam-se criminosas não porque suasmotivações básicas diferem das motivações das demais pessoas, mas por seus benefícios e custos diferirem.Essa abordagem faz ressurgir o debate entre os efeitos retributivos e dissuasivos das penalidades1 e pode serresumido da seguinte forma: E[U] = (1 - P) XU(R) – P X U(R - C) [1] Nessa equação, “E[U]” é a utilidadeesperada individual decorrente do cometimento do ilícito; “p” é a probabilidade de punição, logo, (1 - p) é aprobabilidade esperada de não ser punido. “U” é a função utilidade individual do agente; “R” é o ganho ourenda obtida com a atividade ilícita; e “c” é o custo de ser punido. (...) De acordo com esse modelo, quando aexpectativa “E[U]” é positiva, o agente tem incentivos para cometer o ilícito, do contrário, ele não temincentivos.Aqui a probabilidade e a magnitude da punição são os elementos-chave para a análise juseconômicado comportamento criminoso.A essa altura deve estar bem claro que, de acordo com a teoria, a atividadecriminosa é altamente dependente dos fatores que influenciam a alocação de tempo entre atividades legais eilegais (custo de oportunidade)”. Ribeiro de Alencar, carlos Higino. Gico Jr., Ivo. Corrupção e Judiciário: A (in)eficácia do sistema judicial no combate à corrupção no Brasil. Encontrado emhttp://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/28_2.pdf52 Como se vê, trata-se de ideia que toma como pressuposto teórico o conceito de “homem racional”, o qual,apesar de ser alvo de intensas críticas por parte de estudiosos do campo da psicologia moral e da economiacomportamental, certamente ainda merece ser levada em conta ao se analisar o efeito “deterrence”(dissuassório) produzido por sistemas penais. E mais: tal ideia permanece aplicável com uma boa margem desegurança quando se está diante de criminosos de “colarinho branco”. É que estes são mais propensos a agiremde modo racional, à luz de avaliações ligadas ao custo benefício da sua conduta, quando se deparam com aoportunidade de auferir vantagens com a prática de crimes econômicos.53 Becker, Gary. (1968). "Crime and Punishment: An Economic Approach". The Journal of Political Economy76: 169-217
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A probabilidade de o criminoso ser punido pelo seu crime é um importante fator
para o sistema penal. Quanto maior essa probabilidade, maior deverá ser o efeito inibitório do
sistema penal, para evitar a prática de novos crimes54. A produção deste efeito inibitório –
diretamente vinculada à capacidade estatal de punir – é essencial para que o sistema penal
funcione bem55.
O sistema penal brasileiro tem sido analisado no âmbito internacional. A
Comissão que acompanha a implementação da Convenção Interamericana contra a
Corrupção no Brasil afirmou:
[224] Cumpre salientar que, com exceção do representante da Ordem dos Advogados do Bra-sil (OAB),197 todos os participantes da sociedade civil, inclusive os acadêmicos,198 critica-ram fortemente, durante a visita in loco, as conseqüências da existência de quatro instânciasjudiciais no Brasil; todos consideraram que isso contribui, na realidade, para que uma sen-tença definitiva (inapelável) seja quase inalcançável, levando com freqüência à prescriçãodas causas e, portanto, à impunidade dos acusados de atos de corrupção. Esses representantesda sociedade civil, bem como os membros do Ministério Público que participaram da visitain loco coincidiram em que era necessária uma reforma para dar mais eficácia ao STF, comoa Proposta de Emenda Constitucional 15/2011.
[…].
[247] Em vista dos comentários formulados na referida seção, a Comissão sugere que oEstado analisado considere as recomendações seguintes:
5.4.1. Considerar a possibilidade de implementar reformas no sistema de recursos judiciaisou buscar outros mecanismos que permitam agilizar a conclusão dos processos no Poder Ju-diciário e o início da execução da sentença, a fim de evitar a impunidade dos responsáveispor atos de corrupção (ver seção 5.2. do capítulo II deste relatório56).
54“Outro elemento de fomento à corrupção é a impunidade. As pessoas na vida tomam decisões levando emconta incentivos e riscos. O baixíssimo risco de punição – na verdade, a certeza da impunidade – funcionavacomo um incentivo imenso à conduta criminosa de agentes públicos e privados. Superar este quadro envolvemudança de atitude, da jurisprudência e da legislação. (...) O enfrentamento da corrupção e da impunidadeproduzirá uma transformação cultural importante no Brasil: a valorização dos bons em lugar dos espertos.Quem tiver talento para produzir uma inovação relevante capaz de baixar custos vai ser mais importante do quequem conhece a autoridade administrativa que paga qualquer preço, desde que receba vantagem. Esta talvez sejauma das maiores conquistas que virá de um novo paradigma de decência e seriedade” (Trecho do voto doMinistro Luis Roberto Barroso no julgamento do HC n. 126.292).55 Especificamente no que tange ao crime de corrupção, estudo empírico realizado por Ivo Gico jr. E CarlosHigino Alencar demonstra que a chance de um servidor público corrupto ser efetivamente condenadocriminalmente é de 3,17%. À luz desses dados, eis as conclusões dos autores:
“Diante desses resultados, é possível afirmar-se que a eficácia do sistema judicial no combate àcorrupção no Brasil é desprezível, o que apenas torna o controle administrativo ainda mais relevante.Como um agente racional está normalmente preocupado com “p”, isto é, a probabilidade de ser punido, enão com a probabilidade de ser meramente processado, decorre diretamente da teoria e dos dadoslevantados que, atualmente, há no Brasil enormes incentivos à realização de práticas de corrupção, poiso servidor provavelmente sairá impune. Nesse caso, a percepção popular está amparada por evidênciasempíricas”. (Ribeiro de Alencar, Carlos Higino. Gico Jr., Ivo. Corrupção e Judiciário: A (in) eficácia dosistema judicial no combate à corrupção no Brasil. Encontrado emhttp://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/28_2.pdf)
56 Mecanismo de Acompanhamento da implementação da Convenção Interamericana contra a corrupção.Relatório Final aprovado na sessão plenária de 14.09.12.
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Por isso, o artigo 283 do Código de Processo Penal, no ponto em que veda a
execução provisória da pena, é incompatível com a Constituição, cujos artigos 5º-caput, 6º-
caput e 144, protegem direitos individuais do réu, mas não comprometem a funcionalidade
do sistema penal no país, deixando desprotegidos bens jurídicos que o Estado deve proteger.
IV - A EXECUÇÃO PROVISÓRIA NÃO CARACTERIZA EXCESSO ESTATAL
A PRISÃO APÓS DECISÃO CONDENATÓRIA DE TRIBUNAL OBSERVA O DUPLO GRAU DE
JURISDIÇÃO E A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
O artigo 283 do Código de Processo Penal, no ponto em que veda a execução
provisória da pena, ultrapassou os limites da presunção de inocência definido no artigo 5º-
LVII da Constituição, e tornou ineficiente a persecução penal, deixando desprotegidos bens
jurídicos que o Estado deve proteger. Esta norma fere a Constituição no ponto em que enseja
proteção insuficiente de direitos fundamentais. Fere o princípio da proporcionalidade em
sua vertente positiva, do qual derivam deveres de proteção.
É preciso destacar que a execução provisória da pena privativa de liberdade não
caracteriza excesso do Estado. A prisão do réu condenado pelo tribunal observa o duplo grau
de jurisdição, ainda que pendentes de julgamento recursos para o STJ e STF. Esta não é uma
medida desproporcional e excessiva, hipótese em que ela poderia ser considerada
inconstitucional por ofensa ao proporcionalidade em vertente negativa, da qual resultam
deveres de abstenção.
O cumprimento da pena de prisão aplicada por tribunal, com observância do
contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (inclusive as regras de prova e de
tratamento decorrentes da presunção de inocência) no exame dos fatos e provas não fere a
presunção de inocência. Muito pelo contrário, ocorre após o esgotamento das únicas
instâncias judiciais que, no sistema processual brasileiro, podem examinar fatos e provas.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 964.246, deixou bem claro
que o juiz e o tribunal de apelação são as instâncias ordinárias (1º e 2º graus de jurisdição)
Encontrado em http://www.oas.org/juridico/PDFs/mesicic4_bra_por.pdf
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que examinam os fatos da causa, as provas da materialidade e da autoria do crime e decidem
sobre a culpabilidade penal do réu.
O segundo grau de jurisdição é a última instância judicial em que as provas e os
fatos são examinados. No tribunal de apelação, o réu tem sua última oportunidade de
contestar as provas e os fatos que o ligam ao crime. Para condená-lo, sua culpabilidade deve
estar comprovada, o que engloba a comprovação do fato típico e do vínculo que o liga ao
fato. Definidos na decisão do tribunal, os fatos e provas não poderão mais ser reexaminados
pelo STJ ou pelo STF ao resolver os recursos extremos (chamados na lei de recurso
extraordinário e recurso especial), os quais só podem suscitar questões de direito.
Por isso, o réu que for condenado à pena de prisão pelo tribunal intermediário, é
alguém cuja culpa já foi definida em caráter definitivo, afastando a presunção de inocência.
Pesquisas estatísticas que medem o índice de sucesso de recursos extremos da
defesa em matéria criminal indicam que esse índice beira à insignificância.
No que tange aos recursos extraordinários, dados oficiais da assessoria de
gestão estratégica do STF, referentes ao período de 01.01.2009 até 19.04.2016, revelam que o
percentual de recursos extraordinários providos em favor do réu “é irrisório, inferior a 1,5%.
Mais relevante ainda: de 1.01.2009 a 19.04.2016, em 25.707 decisões de mérito proferidas
em recursos criminais pelo STF (REs e agravos), as decisões absolutórias não chegam a
representar 0,1% do total de decisões”.
Verificou-se que
o percentual médio de recursos criminais providos (tanto em favor do réu, quanto doMP) é de 2,93%. Já a estimativa dos recursos providos apenas em favor do réu apontaum percentual menor, de 1,12%. Como explicitado no texto, os casos de absolvição sãoraríssimos. No geral, as decisões favoráveis ao réu consistiram em: provimento dos re-cursos para remover o óbice à progressão de regime, remover o óbice à substituição dapena privativa de liberdade por restritiva de direitos, remover o óbice à concessão de re-gime menos severo que o fechado no caso de tráfico, reconhecimento de prescrição e re-fazimento de dosimetria57.
O dados são semelhantes em relação aos recursos especiais em matéria criminal
interpostos pela defesa: a taxa de sucesso é muito pequena.
57 Dados extraído do voto proferido pelo Ministro Luís Roberto Barroso quando do julgamento, pelo STF, do HC n. 126.292/SP.
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Recente pesquisa58 feita pela Coordenadoria de Gestão da Informação do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), divulgada pelos meios de comunicação, indica que em
apenas 0,62% dos recursos especiais interpostos pela defesa houve reforma da decisão de
segunda instância para absolver o réu; em 1,02% dos casos, as duas turmas de direito
criminal do STJ substituíra a pena (de prisão para pena restritiva de direitos); e em 0,76%
aplicaram prescrição da pretensão punitiva.59
A pesquisa mostra que a prisão do réu condenado pelo tribunal dificilmente será
revertida no julgamento dos recursos pelo STF ou STJ.
Segundo esta pesquisa, poderá ocorrer, ainda que raramente, que a pena seja
reduzida ou o regime prisional seja alterado no julgamento dos recursos extraordinário ou
especial. Pode ocorrer substituição por pena restritiva de direitos, a provocar a revogação da
custódia provisória. Essa possibilidade, todavia, nada diz com a presunção de inocência, pois
trata do tamanho da pena. São dados que não levam à revogação do precedente vinculante do
ARE nº 964.246/SP, que incide sobre uma realidade marcada por punição tardia ou por
impunidade, com afronta ao dever de proteção definido na Constituição.
As situações excepcionais podem ser corrigidas no recurso especial ou
extraordinário ou mesmo em habeas corpus, ocasião em que ao impetrante caberá
demonstrar a plausibilidade de que sua pena seja reduzida (a ponto de alterar o regime de
cumprimento da sua pena).
Tais situações não justificam a revogação do precedente vinculante. Para evitá-
las, não é possível enfraquecer todo o sistema de persecução penal no país, com inúmeros
prejuízos para a efetividade da Justiça, e, inclusive em detrimento da confiança que a
população nela deposita. Vale dizer, o remédio, na tentativa de curar o paciente, não pode ser
forte a ponto de matá-lo.
O voto do Ministro Luís Roberto Barroso no julgamento da Medida Cautelar nas
ADCs 43 e 44 dá lição muito lúcida sobre este aspecto da questão:
Não se ignora que em relação a algumas unidades da federação verificam-se taxas maiselevadas de sucesso nesses recursos, especialmente os interpostos perante o STJ. Tam-bém não se ignora que, como o sistema prisional é integrado majoritariamente pela par-
58 Pesquisa em anexo.59 Nesta pesquisa, foram examinadas decisões proferidas entre 1/09/2015 a 31/08/2017 pelos 10 Ministros
que compõem as 5ª e 6ª turmas do STJ, no julgamento de recursos especiais e de agravos em recursosespeciais.
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cela mais vulnerável da população, que estes acabem sendo de alguma forma atingidos.Porém, entendo que o problema decorre especialmente do fato de que Tribunais em algu-mas unidades da federação se mantêm recalcitrantes em cumprir a jurisprudência pací -fica dos tribunais superiores (algumas vezes, até mesmo súmulas vinculantes). A situaçãoé especialmente dramática em ilícitos relacionados às drogas, já que são responsáveis por28% da população prisional.
Nesse cenário, penso que, em princípio, a questão não deve se resolver com prejuízo àfuncionalidade do sistema penal (excluindo-se a possibilidade de prisão após a condena-ção em segundo grau), mas com ajustes pontuais que atinjam a própria causa do pro-blema e que permitam maior grau de observância à jurisprudência dos tribunaissuperiores. É possível, por exemplo, pensar em medidas que favoreçam o cumprimentodas decisões do STJ e do STF, como a edição de súmulas vinculantes em matéria penalnos casos em que se verificar maior índice de descumprimento de precedentes dos tribu-nais. Outra opção seria determinar ao CNJ a realização de mutirões carcerários commaior frequência nessas unidades federativas. Assim é possível até mesmo restabe-lecer-se o prestígio e a autoridade das instâncias ordinárias, algo que se perdeu no Brasila partir do momento em que o juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça passaram aser instâncias de passagem, aguardando-se que os recursos subam para o Superior Tribu-nal de Justiça e, depois, para o Supremo Tribunal Federal. Ainda assim, para evitar preju-ízos aos réus, especialmente aqueles hipossuficientes, recomenda-se, nos casos em quese verificar tal índice de provimento desproporcional, a adoção, nos tribunais superiores,de jurisprudência mais permissiva quanto ao cabimento de habeas corpus que permita acélere correção de eventual abuso ou erro das decisões de segundo grau.”
Estes fundamentos mostram que, ao contrário do afirmado pelos impetrantes, a
execução provisória da pena de prisão não é desproporcional, nem levará injustamente à
prisão réu cuja culpa ainda não esteja satisfatoriamente demonstrada. Muito ao contrário. É
medida que observa a presunção de inocência, o duplo grau de jurisdição e corrige a grave
disfunção que acometia o sistema penal do país.
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V - CONCLUSÃO
Assim, requeiro
a) a reconsideração, pelo Ministro Relator, da decisão agravada;
b) em não havendo tal reconsideração, o provimento deste agravo regimental,
para reformar a decisão monocrática que deferiu a liminar em favor do paciente.
Brasília, 15 de junho de 2018.
Raquel Elias Ferreira DodgeProcuradora-Geral da República
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