FILOZOFICKÁ FAKULTA MASARYKOVY UNIVERZITY
ÚSTAV ROMANSKÝCH JAZYKŮ A LITERATUR
Portugalský jazyk a literatura
Kateřina M. Dosoudilová
Metaficção historiográfica e o romance “Ualalapi” de Ungulani Ba Ka Khosa
Bakalářská diplomová práce
Vedoucí práce: Mgr. Silvie Špánková
2008
2
Prohlašuji, že jsem závěrečnou bakalářskou
práci vypracovala samostatně za použití uvedených
pramenů a literatury.
Děkuji Mgr. Silvii Špánkové za trpělivost a
cenné rady a připomínky při psaní této práce.
V Brně 29. 8. 2008 Kateřina M. Dosoudilová
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ÍNDICE:
1. Introdução................................................................................................................4
2. O romance histórico pós-moderno ou a metaficção historiográfica........................5
2.1 O conceito de romance histórico..........................................................................5
2.2 O romance histórico “clássico”............................................................................6
2.3. A estética pós-moderna.......................................................................................7
2.3.1. A visão pós-moderna da História......................................................................7
2.3.2. A historiografia contemporânea........................................................................9
2.4. A metaficção historiográfica..............................................................................11
2.4.1. A relação com a historiografia........................................................................11
2.4.2. Carácter metadiscursivo..................................................................................13
2.4.3. O papel do leitor..............................................................................................14
2.4.4. A relação com o presente.................................................................................15
3. Várias considerações sobre o romance Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa......15
3.1. Ualalapi – contos ou romance?..........................................................................17
3.2. A relação do romance com a História...............................................................19
3.2.1. A História é uma ficção controlada.................................................................19
3.2.2. Fontes escritas.................................................................................................21
3.2.3. Oralidade africana...........................................................................................25
3.2.4. O diário de Manua ou oralidade versus escrita...............................................31
3.3. O último discurso de Ngungunhane ou questionamento do presente................34
3.4. Ualalapi, o personagem principal?.....................................................................38
4. Considerações finais..............................................................................................40
5. Bibliografia............................................................................................................42
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1. Introdução
Como tema da minha tese de bacharelato escolhi o romance histórico Ualalapi,
do escritor moçambicano contemporâneo Ungulani Ba Ka Khosa. Trata-se do livro que
causou grandes polémicas, porque visou desmistificar o herói nacional moçambicano
Ngungunhane, o símbolo da luta contra o colonialismo.
O objectivo da minha tese é demostrar que se trata do romance escrito no âmbito
da estética pós-moderna ou, mais concretamente, dum representante da metaficção
historiográfica.
A primeira parte do trabalho será teórica. Antes de expormos o próprio termo de
metaficção historiográfica, pretendemos dar um breve esclarecimento de conceito e
evolução do romance histórico e da estética pós-moderna, principalmente como esta
concebe a História e a historiografia. Mesmo que possa parecer inutilmente vagaroso, é
necessário mencionar todos esses aspectos, porque a metaficção historiográfica se
aproveita deles todos – é um produto da filosofia pós-moderna que busca a sua
inspiração na historiografia contemporânea e, ao mesmo tempo, questiona o cânone do
romance histórico “clássico”.
A segunda parte será dedicada às várias considerações sobre o romance Ualalapi
com as quais tentaremos provar que se trata da metaficção historiográfica. Vamos
também observar como o autor trabalha com as fontes históricas e orais e dos quais
meios se serve para questionar a visão do passado, mais concretamente da época de
Ngungunhane, e, a seguir, do presente.
Nas considerações finais recapitulamos os resultados da nossa pesquisa e
esclarecemos como foi subvertido o cânone do romance histórico “clássico”.
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2. O romance histórico pós-moderno ou a metaficção historiográfica 2.1 O conceito de romance histórico
De acordo com o Dicionário de termos literários1, o romance histórico é definido
como uma forma do género literário do romance devido ao seu critério temático -
orientação para o passado - e ao material que emprega – a sua base constituem os factos
históricos, geralmente tirados dos documentos históricos ou dos livros historiográficos.
Mas já a própria designação “romance histórico” levanta, desde o seu nascimento no
século XIX, muitas questões e uma dessas é a do paradoxo contido neste termo: como
um livro pode conjugar em si a História2 com a ficção? Como podem essas duas
antinomias coexistir lado a lado num só espaço?3 Disso decorrem duas principais
atitudes para com o romance histórico: a primeira não o concebe como uma forma
especial do género literário do romance4, uma vez que é sujeito aos princípios e à
dinâmica intrínseca do romance em geral, e para a sua designação são propostas
denominações como “romance da História”, “romance sobre a História, etc.5. Esta
atitude liga o romance histórico mais à ficção, ao contrário da segunda atitude que o
aproxima mais da História. Particularmente a estética pós-moderna aproxima-o dos
livros historiográficos, destacando que os dois são produtos do homem, da sua selecção
e interpretação dos factos históricos e lembra que existem tantas interpretações quantos
autores. A única diferença entre eles é que os autores dos romances históricos têm mais
liberdade da expressão 6.
1 Vlašín, Štěpán: Slovník literární teorie. Praha: Československý spisovatel 1984, p. 136. 2 Neste trabalho vamos fazer distinção entre os termos “história” que pretende indicar uma narrativa, um tratamento romanesco dos acontecimentos, e “História” que quer designar curso do tempo, sequência dos acontecimentos históricos. Alguns autores, como por exemplo Pierre Barbérise, faz diferença entre “história” como o plano da história romanesca, narrativa, “História" como a representação do conhecimento da história próprio da época do autor (onde se reflecte a ideologia desta época) e “HISTÓRIA” como um plano de um ininterrupto processo histórico; mas este procedimento, mesmo que provavelmente mais acertado, nos parece desnecessário para os fins deste trabalho. Apud: Hrbata, Zdeněk – Procházka, Martin: Romantismus a romantismy. Pojmy, proudy, kultury. Praha: Karolinum 2005, p. 220. 3 Ibidem, p. 217. 4 Ibidem, p. 217. 5 Ibidem, p. 217. 6 A concepção da literatura como a liberdade da expressão é de Bakhtin. Apud: Silva, Haidê: A metaficção historiográfica no romance Os cus de Judas, de António Lobo Antunes (Tese de Doutoramento). Universidade de São Paulo, 2007, p. 14.
6
2.2 O romance histórico “clássico”
Mas o romance histórico não é ligado só com a ficção e a História, mas também
com as correntes filosóficas e políticas e com o modo como estas concebem e reflectem
a História7. Na época do romantismo, os filósofos concebem História como uma
evolução ascendente, apesar de não completamente linear. Mas todos os altos e baixos
que podem aparecer com o decorrer da História, servem como forças dinâmicas da
evolução progressiva da humanidade.8 A História, por consequência, tem um
determinado sentido, direcção e princípio e é transparente e legível.9 Os filósofos ainda
salientam que cada época tem o seu “espírito”.10 Esta concepção finalista da História
reflecte-se, naturalmente, também nos romances históricos românticos que são, em
geral, escritos sob alguma ideologia (detalhadamente exposta no prefácio do livro que
nessa época, de mesma maneira como as epígrafes, faz parte quase obrigatória do
romance histórico) e não carecem duma perspectiva didáctica. Os autores, ou melhor os
narradores omniscientes dos seus livros, procuram uma relação causal entre o passado e
o presente, ou, depois de 1830, entre ou passado e futuro (de carácter profético), uma
vez que o presente não resultou numa situação ideal como era proclamado. Somente os
grandes eventos e personagens da História têm o direito à representação. A
credibilidade histórica, muitas vezes, não é tão importante como a captação e a
elucidação do “espírito” e da atmosfera da época e, para este fim, estão nos romances
incorporados os mitos, as lendas e as superstições da época em questão. E tudo isso é
utilizado para explicar o sentido do curso da História e, assim, para consagrar a ordem
presente, ou para captar o brilho do antigo mundo ideal numa visão nostálgica do
passado11.
Mas já dos anos 30 do século XIX, o romance histórico deixa de ficar no
centro de interesse. O romance realista intenta retratar a realidade assim como realmente
é, ou melhor, nas palavras do autor e teórico literário canadiense George Bowering, “a
7 Às vezes, como por exemplo na época do romantismo, as noções científicas e artísticas do processo histórico quase coincidem. Apud: Hrbata, Zdeněk – Procházka, Martin: Obra citada, p. 216. 8 A concepção do Johann Gottfried Herder (1774 – 1803). Apesar de cronologicamente pertencer mais à época do Iluminismo, as suas ideias influenciaram altamente a literatura romântica. Apud: Holzbachová, Ivana: Dějiny společenských teorií. Brno: Masarykova univerzita 2000, s. 47 – 48. 9 Hrbata, Zdeněk – Procházka, Martin: Obra citada, p. 231. 10 Johann Gottfried Herder (1774 – 1803) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831). Apud: Holzbachová, Ivana, Obra citada, p. 47 – 48; 53 – 54. 11 Apud: Hrbata, Zdeněk – Procházka, Martin: Obra citada, p. 220 – 241.
7
realist fiction was intented to produce a window on the world”12. Mas esta atitude não é
possível para com a História, porque nunca sabemos o que precisamente aconteceu, por
isso o romance histórico cede lugar ao romance da temática actual. E caso o realismo se
dirija à História, é só por causa da “sanação de uma busca axiológica que dê
consistência à experiência do presente”13. O romance histórico reaparece só na época
pós-moderna, sob a forma da metaficção historiográfica.
2.3. A estética pós-moderna
A concepção do mundo modernista pressupõe que o mundo é objectivamente
real e tem uma ordem que lhe é imanente e que é independente da actuação humana. E
também crê que a mente humana é capaz de espelhar a realidade exterior. Também
presume que a língua, como o produto da mente humana, é um meio suficiente para
podermos comunicar aos outros, e a nós próprios também, como o mundo realmente é.14
Mas tudo isso a filosofia pós-moderna rejeita. Proclama que o conhecimento objectivo
do mundo é impossível, porque não somos capazes de entrar em contacto com o mundo
“objectivamente existente”, mas somos nós próprios quem o constrói através das noções
que nele inserimos. E estas noções são criadas por meio das nossas línguas que são
meros resultados das convenções sociais que fixam o mundo por meios diferentes,
dependentes do contexto em que ocorre a comunicação. Por outras palavras, diferentes
línguas favorecem diferentes visões do mundo e desta maneira, diferentes grupos da
gente produzem diferentes histórias sobre o mundo em que vivem15. Assim se institui a
pluralidade da visão do mundo, que é um dos traços mais significantes da filosofia e
cultura pós-moderna.
2.3.1. A visão pós-moderna da História
A filosofia pós-moderna também reexamina a atitude para com a História e,
por seguinte, à historiografia. Michel Foucault, o arquitecto do pós-modernismo16,
12 Apud: Hutcheon, Linda: The Canadian postmodern: a study of contemporary English-Canadian fiction. Toronto: Oxford University Press 1988, p. 63. 13 Seixo, Maria Alzira: Narrativa e ficção – problemas de tempo e espaço na literatura europeia do pós-modernismo. Colóquio & Letras, n. º 134, Outubro – Dezembro 1994, p. 104. 14 Grenz, Stanley J.: Úvod do postmodernismu. Praha: Návrat domů 1997, p. 47. 15 Ibidem, p. 48 – 49. 16 Ibidem, p. 122.
8
afirma que a História não é um processo contínuo, monolítico, como nos tentam
persuadir os historiadores, mas sim cheia de incontinuidades, rupturas, limites e
transfigurações. No seu entender, a História não é dominada por um destino ou por
algum mecanismo, mas é mais o produto dos conflitos acidentais. Não é natural que o
presente resulte dos acontecimentos passados; o presente não é necessariamente a etapa
mais recente no curso incessante contínuo do progresso. A História carece do sentido.17
O que Foucault repreende aos historiadores é que estes assumem uma atitude
“superhistórica”, que quer dizer que se sentem superiores à História e por isso, como
dizem, são capazes tomar uma perspectiva objectiva18. Mas esta atitude não é possível,
uma vez que o homem faz parte da sociedade humana, e assim da História, e é o
produto desta sociedade que, de modo muito significante, influencia a sua visão e
interpretação da História.19 Por isso a sua atitude perante a História não pode ser
objectiva, mas, pelo contrário, subjectiva. Como diz Foucault, a ciência, presa nas
relações do poder, ambiciona dominar o passado com o objectivo de consagrar as
estruturas contemporâneas.20
Outra razão da subjectividade do discurso histórico é o facto que o historiador
selecciona. O historiador, ao querer apresentar a História contínua, ininterrupta, sem as
suas interrupções e incontinuidades, omite os acontecimentos que podiam perturbar a
integridade da sua História. Em outras palavras, pretende dissolver os factos parciais
numa certa continuidade ideal da História.21 Ou como afirma José Saramago:“ el
historiador selecciona, y, al seleccionar, abandona deliberadamente elementos, en
nombre, a veces, de razones de clase, otras veces en nombre de razones de orden
político conyuntural, o bien en nombre de razones de estrategia ideológica que tiene
como base de apoyo, no la Historia, sino «una» Historia: la Historia que conviene a un
determinado momento. (...) porque el historiador se presenta como una especie de Deux
ex Machina y decide que, del pasado, lo que es importante es esto, esto y esto. (...) de
alguna manera, él hace la Historia.”22
17 Ibidem, p. 133 – 134. 18 Foucault, Michel: Nietzsche, genealogie, historie. In.: Foucault, Michel: Diskurs. Autor. Genealogie. Praha: Nakladatelství Svoboda 1994, p. 85. 19 Como escreve Haidê Silva: “antes de estudar a História, estude o historiador e antes de estudar o historiador, estude seu meio histórico e social. O historiador é também um produto da História e da sociedade.” Silva, Haidê: Obra citada, p. 25- 26. 20 Grenz, Stanley J.: Obra citada, p. 131. 21 Foucault, Michel: Obra citada, p. 86. 22 Saramago, José: La Historia como ficción, la ficción como Historia. Debats, n° 27, Marzo 1989, p. 8.
9
Mas o historiador, mesmo que queira, nunca pode apreender a História na sua
complexidade, porque, na História, não há só uma linha dos acontecimentos, mas
ocorrem muitos em simultâneo. Também existem diversos modos como encarar os
acontecimentos históricos; cada participante envolvido na História tem a sua versão
acerca deles e nem todas são conservadas em documentos (e ainda que fossem, não
seria possível consultar todos os documentos). Mas a maior deficiência dos documentos
históricos não é a sua escassez, mas o facto que todos eles são escritos sob alguma
intenção ou ideologia, em geral dos que vão ao leme, e utilizam uma língua específica –
criadora do significado, mas não do objectivo, como já acima explicámos – para
conquistar certos fins.
Conforme aduzimos, a História, tal como os livros historiográficos, são meros
produtos da subjectividade e da ideologia do historiador que os cria. Por isso, a História,
de maneira como nos é apresentada, não é mais do que a ficção, servindo para a
formação dos mitos.23 Assim, a História aproxima-se dos romances históricos. Em
palavras da teórica do pós-modernismo Linda Hutcheon: “ to write history (or historical
fiction) is (equally) to narrate, to re-present by means of selection and interpretation.
History (like realist fiction) is made by its writer, even if events are made to seem to
speak for themselves.”24
2.3.2. A historiografia contemporânea
Mas os historiadores foram conscientes disso tudo já antes do surgimento do
pós-modernismo e nos meados do século XX, em França, apareceu uma nova “escola”
dos historiadores que se chamava “Nouvelle histoire” ou “Escola Annales” que
proclamava não se concentrar só à História política (= dos factos de carácter político) ou
económica e fazia valer a colaboração com as outras ciências, como por exemplo com
filosofia, sociologia, etc. Mas logo começou a ser criticada por se ter completamente
esquecido da História política e por a História, na sua interpretação, ter perdido a sua
estrutura firme em detrimento dos quadros estáticos e meras sondagens. Mas a sua
segunda geração viveu um grande êxito, pertencendo nela os famosos historiadores
23 Grenz, Stanley J.: Obra citada, p. 135. Foucault, indo mais além disso, afirma que não só a História, mas todo o género humano é pura ficção criada pela ciências humanas modernas. Ibidem, p. 127. 24 Hutcheon, Linda: Obra citada, p. 66.
10
como Jacques Le Goff, Fernand Braudel ou Peter Burke.25 Este ultimamente nomeado
na sua obra A Escrita da História esclareceu, no fundo da História tradicional, os
principais paradigmas da “Nouvelle histoire”, pelos quais se deixavam inspirar muitos
autores das metaficções historiográficas.26 Convém relatarmos aqui alguns desses
paradigmas:
1. Abranger toda a actividade humana. Este paradigma concede mais liberdade
ao historiador, permitindo-lhe tratar dos assuntos até já marginalizados, atribuindo a
todos os componentes da História a mesma importância.
2. A “Nouvelle histoire” não se importa tanto com o narrar dos
acontecimentos, como detalhadamente analisar os factos históricos e tentar explicá-los.
3. Não estudar a História sob uma visão “de cima”, mas, ao contrário, “de
baixo”. No centro do seu interesse são a História da cultura popular, a História das
mentalidades colectivas ou a História dos discursos ou “linguagens” – a linguagem da
escolástica, a linguagem forense etc.
4. Este paradigma está relacionado com o estudo da História “de baixo”. Os
historiadores não deviam aproveitar-se só dos documentos escritos, expressando, na
maioria das vezes, o único ponto de vista – o oficial, não dando espaço às massas
populares e assim se distanciando, frequentemente, da realidade. Burke aconselha
utilizar também outras fontes, como, por exemplo, os testemunhos orais ( se possível) e
a oralidade em geral.
5. Os documentos, tal como relatam a História, não representam o único e
objectivo modo de ver a História e sob este ponto de vista deviam ser escritas as
“Histórias”. As “Histórias” com o enfoque para a multiplicidade e pluralidade das
visões tanto dos documentos históricos como da História.27
Para recapitular podíamos dizer que o discurso histórico pós-moderno regressa
às três modalidades da História, tal como as definiu Friedrich Nietzsche, a as quais, a
seguir, subverte. O culto dos monumentos torna-se paródia, o culto das continuidades
antigas é substituído pela dissociação sistemática e pela crítica das antigas injustiças, em
25 Marek, Jaroslav: Přehled dějin dějepisectví v obrysech. (texto para o ensino superior). Brno 2000, p. 29 – 30. 26 Como o título de exemplo podíamos nomear José Saramago. (Veja. Saramago, José, Obra citada, p. 10.) 27 Todos estes paradigmas tirados de: Silva, Haidê: Obra citada, p. 17 – 24.
11
nome da “verdade” do homem de hoje, desembocando em destruição do sujeito do
conhecimento por meio da injustiça, que é essencial à vontade do conhecimento.28
2.4. A metaficção historiográfica
Segundo Mioara Caragea29, a renovação do discurso histórico teve como
consequência a ressurreição do romance da temática histórica, utilizando os novos
paradigmas da historiografia e da estética pós-moderna, e reinventou o romance
histórico, tendo por objectivos principais “reinventar as versões tradicionais da
identidade colectiva” e preencher “os espaços brancos do passado ignorados até aí
pelo discurso histórico oficial”.30
Mas também as metaficções pós-modernas revelam interesse pela História,
recorrendo: a) às falsificações ou, pelo menos, ao tratamento crítico da tópica histórica
tradicional; b) às ostentações da fabricação discursiva da História; c) às revisitações
irónicas da herança da memória cultural; d) à desconfiança em relação às grandes
narrativas.31
Então, a metaficção historiográfica, como já releva a própria designação,
relaciona-se com a historiografia e tem, ao mesmo tempo, o carácter metadiscursivo.32
2.4.1. A relação com a historiografia
A relação da metaficção historiográfica com a historiografia manifesta-se pelo
tratamento da História a exemplo dos paradigmas criados por “Nouvelle histoire”.
Como, por exemplo, o deslocamento do interesse para o que permanecia nas margens:
os assuntos e personagens marginalizados, ou ex-cêntricos. A marginalização pode
atingir tamanho grau que totalmente falta qualquer ligação com os grandes
28 Foucault, Michel: Obra citada, p. 94. 29 Caragea, Mioara: Metaficção historiográfica. In: E-Dicionário de Termos Literários. (Disponível em: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/) 30 Ibidem. 31 Ibidem. 32 Ibidem. Kaufman fala da „sua auto-referencialidade“ e do“ seu carácter reflexivo na abordagem da temática histórica“. In: Kaufman, Helena: A metaficção historiográfica de José Saramago. Colóquio & Letras, n. º 120, Abril – Junho 1991, p. 124), Hutcheon, criadora do termo metaficção historiográfica (historiographic metafiction) diz, que se trata de “fiction that is intensely, self reflexively art, but is also grounded in historical, social, and political realities. (…) They (metaficções historiográficas) are both self-consciously fictional but also overtly concerned with the acts (and consequences) of reading and writing of history as well as fiction.” In: Hutcheon, Linda: Obra citada, p. 13 – 14.
12
acontecimentos históricos e o romance torna-se assim antes um pequeno quadro da
História do que o romance histórico como o estamos acostumados a conceber. Mas este
procedimento não é muito frequente. Os escritores mais optam por retratar os
acontecimentos marginais ligados com os grandes eventos históricos, mesmo que estes
não sejam necessariamente mencionados.
Mais que os assuntos históricos marginalizados, os autores procuram empregar
as personagens marginalizadas33 ou ex-cêntricas nas suas metaficções historiográficas.
Mas como, frequentemente, os depoimentos das pessoas do povo faltam, uma vez que
sempre eram marginalizados ou omitidos pelo discurso oficial, os autores, resolvendo
preencher as lacunas da História, deixam-se inspirar quer pelos depoimentos orais, se
possível, ou pela oralidade ou somente pela sua fantasia e concedem a vida às
personagens inventadas, aproveitando-se do facto de terem mais liberdade de expressão
do que os historiadores que escrevem a História, não a ficção. Os feitos destas
personagens fictícias não são fixados pelos documentos históricos, mas, na maioria dos
casos, o autor se acautela para que não os contradigam. Assim se cria a outra visão da
História, “de baixo”, diferente da oficial, criada “de cima”. E existem tantas visões,
quantas personagens, sem que uma fosse mais “correcta” do que outra. O autor assim
pretende explicar que não existe só uma interpretação da História, mas sim várias,
dependendo do ângulo de vista, sem nunca sabermos qual é mais certa, caso exista
alguma mais certa que outra. Essas personagens, além de ser marginalizadas, também
são muitas vezes ex-cêntricas, o que quer dizer que existem fora do centro – político,
cultural etc., sendo esta uma posição óptima, porque, apesar de terem alguma relação
com o centro, podem observá-lo de certa distância. Como diz Hutcheon, „it is the place
where the centre is paradoxically both acknowledged and challenged“.34 Acrescenta
ainda que a margem ou o território de fronteiras é o lugar onde existem as novas
possibilidades.35
O que é também nas metaficções historiográficas destacado é o facto que tanto
documentos históricos como livros historiográficos estão escritos sob alguma ideologia
e que, para conseguir isso, utilizam certas técnicas: seleccionam os acontecimentos que
correspondem mais apropriadamente à sua concepção da História e também em
33 Agora falamos só das pessoas do povo, das massas omitidas pela História, mas pode tratar-se também da marginalização “do ponto de vista da classe, raça, sexo, tendência sexual, ou origem étnica”. In: Caragea, Milada: Obra citada. 34 Hutcheon, Linda: Obra citada, p. 4. 35 Ibidem, p. 4.
13
enquadramento desses acontecimentos têm em conta o sentido final que devia ter o seu
discurso. Este procedimento desperta muita atenção entre os romancistas pós-modernos,
mas com isso já entramos no campo metaficcional das metaficções historiográficas.
2.4.2. Carácter metadiscursivo
A metaficção “é ficção sobre ficção – isto é, ficção que inclui em si mesma um
comentário sobre a sua própria identidade narrativa e/ou lingüística”.36 Os autores
fazem o seu discurso transparente em sentido que o leitor possa descobrir como a
história está construída, no nosso caso também como a História está construída, com o
objectivo de mostrar como a própria forma da narrativa histórica serve para os
interesses do poder e da dominação e assim vira o léxico da História contra os que o
outrora utilizavam para os próprios fins.37 E essa transparência, chamada por Hutcheon
como a “narrativa narcisista”38, pode ser tematizada através da perspectiva em abismo
(mise en abyme//abîme), da alegoria ou da paródia.
A perspectiva em abismo, “representação especular, espelhamento auto-
reflexivo interno, encaixe, molduras, desdobramento”39, pode ser incorporada no texto
por meio de três tipos diferentes: 1) por meio da simples reduplicação; 2) por meio da
duplicação repetida ad infinitum; 3) por meio da duplicação justaposta (o fragmento
deve incluir a obra onde se encontra incluído).40 De vez em quando, a perspectiva em
abismo atinge tamanho grau de extensão que é designada como a alegoria.
A paródia, definida como “uma repetição com diferença”, tem como
objectivo imitar uma obra, um conjunto de obras ou um determinado género literário
(no caso da metaficção historiográfica trata-se, naturalmente, do romance histórico
36 Reichmann, Brunhilda T.: O que é mataficção? Narrativa narcisista: o paradoxo mataficcional, de Linda Hutcheon, p. 2. (Disponível em: http://209.85.135.104/search?q=cache:rjI-9eMRf-AJ:mestrado.uniandrade.edu.br/links/menu2/publicacoes/metaficcao.pdf+narrativa+narcisista+hutcheon&hl=cs&ct=clnk&cd=1) Ou nas palavras de Hutcheon: „ (…) self-consciously fictive constructions that thematize their own ´discursive processes´“. In: Hutcheon, Linda: Obra citada, p. 64. 37 Grenz, Stanley J.: Obra citada, p. 132. 38 Reichmann, Brunhilda T.: Obra citada, p. 4. („A narrativa narcisista, ao expor sue sistema lingüístico e seu status ficcional, compartilha com o leitor o processo do fazer, (…), cuja gênese e cuja estrutura transparence através da leitura.“) 39 Ibidem, p. 8. Segundo Annabel Rita: „A mise en abyme consiste num processo de reflexividade literária, de duplicação especular, (...) favorece, assim, um fenómeno de encaixe na sintaxe narrativa, ou seja, de inscrição de uma micro-narrativa noutra englobante, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre níveis narrativos.” In: Rita, Annabel: Mise en abyme. In.: E-Dicionário de Termos Literários. 40 Reichmann, Brunhilda T.: Obra citada, p. 8.
14
clássico). Mas não se trata da mera imitação, senão duma imitação exagerada que
intenta ridiculizar alguns traços do material de base, e para o seu reconhecimento no
texto, o leitor deve ter um certo conhecimento dos códigos literários para que seja capaz
de perceber as inadequações duma determinada convenção, uma vez que a paródia se
aproveita de certas normas literárias para que depois possa subvertê-las. Ao parodiar o
romance histórico clássico, concedendo-lhe assim a continuidade, a metaficção
historiográfica questiona a sua unidade narrativa, o seu narrador digno da confiança e o
seu carácter coerente da narrativa. O que era “transparente”, torna-se agora opaco.41
2.4.3. O papel do leitor
Como já assinalámos atrás, a leitura dos livros pós-modernos deixou de ser
uma tarefa fácil, porque o leitor, “atacado de todos os lados pelo texto literário
autoconsciente, passou a ser levado a controlar, a organizar e a interpretar esse
texto”42, sendo assim responsável pela sua interpretação. Assim se estabelece uma
quase equivalência entre a leitura e a escrita, entre o leitor e o autor.43 Então, como
qualquer obra da arte pós-moderna, a metaficção historiográfica requer a presença dum
espectador/leitor para que possa brincar ironicamente com ele – parodia, por exemplo
“as expectativas deste leitor, seu desejo de verosimilhança e o torna consciente de seu
próprio papel de recriar um universo ficcional”44. O leitor torna-se assim o co-criador
da história e, consequentemente, da História, uma vez que o texto não dispõe de
nenhum valor fixo, não sendo um produto fechado, mas sim “um processo aberto com
uma situação enunciativa que se modifica de acordo com cada receptor, cujo
posicionamento ideológico como consumidor é o que o pós-modernismo tenta
subverter”45. Assim na obra, apesar de ser aberta para as diferentes interpretações, o
leitor é aquele que é responsável pela sua interpretação.46
41 Hutcheon, Linda: Obra citada, p. 21. 42 Reichmann, Brunhilda T.: Obra citada, p. 4. 43 Ou, segundo Barthes, „the reader has been exalted at the expense of the writer: the author has had to die so that the reader may live“. Apud: Hutcheon, Linda: Obra citada, p. 62. 44 Reichmann, Brunhilda T.: Obra citada, p. 11. 45 Silva, Haidê: Obra citada, p. 133. 46 Reichmann, Brunhilda T.: Obra citada, p. 7.
15
2.4.4. A relação com o presente
M. Alzira Seixo, ao descrever o modo como o romance histórico se apropria
do passado, diz que o romance das últimas décadas ou se des-historiza ou busca na
História (e sempre no passado) uma explicação do tempo presente que é fugidio,
mutável, em transformação constante, e o que não somos capazes de apreender.47 Assim
se abre caminho para o diálogo entre o passado e o presente que pretende “substituir a
memória-mensagem por uma memória-diálogo” e o passado recebe uma nova
significação, já que revivido através da experiência do presente.48 Disso resulta um
certo anacronismo do romance histórico, sendo a História inevitavelmente contaminada
pelas ideias do presente.
3. Várias considerações sobre o romance Ualalapi, de Ungulani Ba Ka
Khosa
Ungulani Ba Ka Khosa, o nome tsonga de Francisco Esau Cossa49, nasceu em
1957 em Inhaminga (província Sofala) aos pais assimilados, por isso a sua língua
materna é o português. Só aos 12 anos aprendeu a língua do Sul de Moçambique.
Estudou História e Geografia na Faculdade de Educação da Universidade Eduardo
Mondlane e obteve o título de Bacharel. Trabalhou no Ministério de Educação ou na
Associação dos Escritores.
Em 1984, junto com os outros jovens escritores, fundou a primeira revista
literária em Moçambique na pós-independência Charrua. Saíram só oito números. Nas
palavras de Khosa, a revista não tinha filosofia própria, mas foi mais “um encontro de
indivíduos frustrados, que não tinham abertura, digamos em termos de empresa, de
publicação dos seus textos. Cada um possuía a sua trajectória.”50 Quando escreveu o
47 Seixo, Maria Alzira: Narrativa e ficção – problemas de tempo e espaço na literatura europeia do pós-modernismo. Colóquio & Letras, n. º 134, Outubro – Dezembro 1994, p. 104. 48 Caragea, Mioara: Metaficção historiográfica. In.: E-Dicionário de Termos Literários. 49 Segundo as palavras do autor, o pseudónimo tem origem na frase tsonga „Ungulani Ba Ka Khosa Ba Nhingue“ que, em português, quer dizer „Acabem os Cossas são muitos.“, proveniente dum ritual da infância. Apud: Ungulani Ba Ka Khosa (entrevista). In.: Saúte, Nelson: Os Habitantes da Memória. Entrevistas com escritores moçambicanos. Praia – Mindelo 1998, p. 301. 50 Ibidem, p. 304.
16
seu primeiro livro, A Confissão51, uma série de histórias, deu-o ler ao Petraquim que lhe
disse que “não prestava para nada”52. Eu até chorei, diz Khosa. Estreou-se só com o
conto Dirce, Minha Deusa, Nossa Deusa. Em 1987 publicou o livro Ualalapi ao qual se
segue Orgia de Loucos (1990), cuja aceitação pelos leitores e críticos não era muito
favorável. Nelson Saúte até disse que era “um texto para esquecer”53, mas Khosa o
avalia como melhor e tecnicamente superior ao Ualalapi. Depois de uma pausa, em
1999, lança o livro Histórias de Amor e Espanto e, em 2002, No Reino dos Abutres, o
resultado da tentativa de escrever um livro sem personagem. “Neste (livro), eu reportei-
me ao período dos anos 80, o tempo do mono partidarismo em que nós não tínhamos
personalidade “própria”, éramos teleguiados. (...) Extremamente difícil, se consegui ou
não, não sei. O livro que diga.”54
O livro Ualalapi, que visa questionar o passado e consequentemente o
presente e o futuro de Moçambique, inscreveu-se indelevelmente na consciência dos
leitores. Uns elogiam, outros dizem que não é um livro perfeito, mas o facto é que em
1990 recebeu Grande Prémio da Ficção Narrativa em Moçambique, em 1994 o Prémio
Nacional de Ficção e, em 2002, foi considerado como um dos melhores livros africanos
do século XX.
Opiniões sobre o género literário deste livro variam com cada crítico. Mas, ao
simplificar, podíamos dizer que se trata do livro enraizado no romance histórico (os
nomes das personagem e os acontecimentos históricos convidam à leitura à base dum
certo conhecimento histórico) com os traços etnográficos, da oralidade africana e do
realismo mágico sul-americano. Ana Mafalda Leite até avista nesse romance alguns
elementos duma narrativa policial.55 Esta indeterminação genológica é, como diz Leite,
“uma constante nas narrativas pós colonias, que partilham a autobiografia, a narrativa
mítica, e utilizam recursos a procedimentos e formas orais”.56
51 Não devíamos confundir com o conto Confissão que, ao ser publicado, causou muitos problemas ao seu autor. Até Marcelino dos Santos, quem o conto é dedicado, queria que Khosa explicasse “o que queria dizer com certas passagens”. Apud: Ungulni Ba Ka Khosa (artigo). In: Chabal, Patrick: Vozes Moçambicanos. Literatura e Nacionalidade. Vega 1994, p. 314. 52 Saúte, Nelson, Obra citada, p. 304. 53 Ibidem, p. 301. 54 A escrita está em mim (Entrevista, concedida a Rogério Mangane, com Ungulani Ba Ka Khosa). (Disponível em: http://www.maderazinco.tropical.co.mz/entrevista/ungula.htm) 55 Leite, Ana Mafalda: Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa: Edições Colibri 1998, p. 87. 56 Leite, Ana Mafalda: Literatura Moçambicana: Herança e Reformulação. Sarará – Revista electrônica de literatura e de língua portuguesa. (Disponível em : http://www.revistasarara.com/int_pente_finoTexto02.h
17
3.1. Ualalapi – contos ou romance?
O livro Ualalapi representa um conjunto de seis contos aos quais sempre
antecedem Fragmentos do fim. Os contos, aparentemente independentes, têm um elo
vincular que é a tentativa da construção e desconstrução (e talvez a reconstrução) da
personagem do imperador nguni - Ngungunhane. Assim, podem funcionar como
unidades independentes, e ao mesmo tempo interdependentes.57 São impregnados de
fenómenos sobrenaturais e de ecos dos mitos africanos o que lhes confere o carácter
circular do tempo, do tempo do eterno regresso. Os Fragmentos do fim, numerados,
compostos pelos documentos históricos (1º, 4º, 5º) ou pelos textos históricos inventados
que oscilam entre o testemunho histórico e a ficção (2º, 3º, 6º), ordenados por ordem
cronológica, que confere ao livro o carácter linear, retratam os acontecimentos que
resultam no aprisionamento de Ngungunhane pelos portugueses e, em consequência
disso, a queda do império nguni.
Daí decorre o incessante questionamento acerca do género. Trata-se do conjunto
dos contos ou do romance? Até parece que o próprio autor teve um problema com a
classificação do género - a primeira edição (1987) teve na capa a indicação “contos”, a
segunda (1991) já “romance”. E na nota do autor podemos ler: “ ao longo da(s)
estória(s)”58.
Leite diz que, em África, a arte de narrar oral faz parte do quotidiano africano.
“Conversar não é apenas trocar ideias, antes contar histórias que exemplificam as
ideias.”59 E esta oralidade entrou também na literatura moçambicana pós-colonial,
como podemos observar nos livros de, por exemplo, Paulina Chiziane ou Ungulani Ba
Ka Khosa cuja escrita altamente oralizada tenta recuperar as formas tradicionais da arte
de narrar, a qual pertencem o uso dos provérbios, a interacção entre o mundo natural e o
humano e os elementos mágicos da imaginação mítica. Aqui, não podemos deixar de
citar outra vez Ana Mafalda Leite: “Estes novos narradores, repõem na escrita a arte
griótica, o maravilhoso do era uma vez e, refrânica e encantatoriamente, vêm contar a
forma como se conta, na sua terra, encenando as estratégias narrativas, em simultâneo à
narração.”60 E para contar e escrever essas histórias grióticas, o conto é a forma mais
tml) 57 Ibidem, p. 86. 58 Ba Ka Khosa, Ungulani: Ualalapi. Lisboa: Editorial Caminho 1998², p. 11. 59 Leite, Ana Mafalda: Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa 2003,p. 89. 60 Ibidem, p. 92.
18
apropriada. Desta asserção provém uma das mais frequentes explicações do facto que o
romance é composto por contos: é porque “ o conto se adapta e se releva como a
prática narrativa mais adequada” para a literatura africana, com maior exactidão
moçambicana, “tendo em conta os seus estreitos laços com a oralidade, mais acessível
à edição e à leitura”61.
Esta opinião é confirmada pelo próprio autor nas suas entrevistas. Recorda,
quando miúdo, passava muito tempo na casa da sua avó, onde “tudo o que gente ouvia
contar era o conto”.62 Quando, tempos depois, começou a estudar a estrutura do conto,
pegou em Hemingway, mas logo o abandonou porque sentia a necessidade de se inserir
na sua identidade cultural. Por isso se mergulhou na leitura dos autores latino-
americanos como, por exemplo, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa ou Jorge
Borges, porque a sua técnica lhe pareceu mais próxima da mentalidade africana.63 Estes
escritores deixam-se, nas suas obras, inspirar pela sua cultura - pela oralidade, pela
mitologia etc. “É uma realidade preocupada em contar histórias. E não se preocupa
com os dogmas, os racionalismos – onde é impossível alguém nascer com uma cauda
de lagarto. E essas são as coisas que a gente ouve aqui na nossa terra.”64 A seguir diz
que tenta transpor a oralidade na sua escrita para que lhe dê um certo ritmo, que ele acha
fundamental. E porque a oralidade tende ao conto, não é de modo nenhum
surpreendente que aparece também na sua obra.
Mas se o livro consiste de seis contos, porque o autor o denomina romance? Será
que se tarata duma mistificação pós-moderna? A hipótese não muito convincente.
Lourenço do Rosário até julga que o romance é um género com que os moçambicanos
lidam com dificuldade ou até com certa inabilidade.65 Mas com isso não podemos
concordar, porque em Moçambique existem os autores que lidam com o romance com
muita habilidade, como, por exemplo, Paulina Chiziane. Achamos mais correcta a
asserção de Leite que afirma, à razão de Mikhail Bakhtine que destaca o carácter
instável do romance como género, que o romance é um espaço “de hibridação de
formas”66 do que os moçambicanos se aproveitaram e preencheram-no com a ajuda da
oralidade pela qual se deixaram inspirar. Assim, deram origem a um novo modelo de
romance, “romance africano”, que assenta no seu costume de contar histórias. Em
61 Ibidem, p. 90. 62 Chabal, Patrick: Obra citada, p. 312. 63 Ibidem, p. 310 – 311. 64 A escrita está em mim. 65 Apud.: Leite, Ana Mafalda: Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa 2003, p. 93. 66 Ibidem, p. 93.
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virtude disso, podíamos dizer que Ba Ka Khosa se deixou inspirar pelo romance
histórico europeu que recriou “à moda” africana.
Outra explicação, mas que não exclui a primeira, é que se deixou influir pela
visão da História pós-moderna, o que é possível porque estudou a História e, se fosse
pelo menos um estudante medíocre, teve de tomar conhecimento das visões básicas da
História. Como já com minúcia descrevemos no capítulo anterior, a História é, na óptica
pós-moderna, encarada como um processo incontínuo, cheio de rupturas em que
ocorrem muitos acontecimentos em simultâneo e cada um tem a sua versão própria
acerca do transcurso e da relevância desses acontecimentos que depende do lugar e da
situação em que se encontra. E era talvez essa falta da continuidade e o empenho de
apreender a História pelas várias perspectivas a razão por que Ba Ka Khosa optou por
esta forma do romance constituído por contos. Como cada conto tem outro protagonista,
o autor concedeu-nos com cada um a diferente vista sobre a História. Assim, conseguiu
estabelecer várias perspectivas sob as quais podiam ser encarados os feitos e o carácter
de Ngungunhane e o seu tempo e deixou assim ao leitor a tarefa de compor os
fragmentos desse mosaico e, a seguir, de fazer a sua própria opinião. Desta maneira, o
autor questiona “potentially single and closed structures of story-telling, historical or
fictional”.67 Este questionamento é um dos traços da literatura pós-moderna,
concretamente, da metaficção historiográfica.
Para recapitular, podemos dizer que o autor, para retratar a História, se apropriou
do género próprio a este fim, que é o romance, para o, imediatamente, subverter com o
aproveitamento da oralidade com o fim de mostrar a incoerência da História e a
necessidade de a examinar sob vários pontos de vista.
3.2. A relação do romance com a História
3.2.1. A História é uma ficção controlada
Antes de iniciar a narração das histórias, autor coloca uma citação da escritora
portuguesa Agustina Bessa Luís: “A História é uma ficção controlada”. Com o nome
dessa escritora remete para o legado cultural europeu, concretamente português, em
África e para a sua “colonialidade cultural sustentada pela versão da História
67 Hutcheon, Linda: Obra citada, p. 15.
20
formulada pelo outro”68. Mas é óbvio, partindo dos excertos contraditórios que
descrevem Ngungunhane, antecedentes à citação, que se não tratará dum simples
aproveitamento do legado europeu quanto à visão e criação da História, principalmente
da de Moçambique, mas sim, ao contrário, do seu questionamento, do seu
aproveitamento com a conseguinte subversão.
Mas passemos agora para a própria citação. Ao escolhê-la, o autor deixa-nos
antever alguns desígnios do seu romance. Primeiro, a noção pós-moderna da História
como uma ficção. O autor tem conhecimento do facto que o sentido da História é criado
pelos homens que, para escrever os seus “rerum gestarum”, utilizam certos
procedimentos que, inevitavelmente, modificam o curso da História, “res gestae”, uma
vez que nunca estarão capazes de abranger esses “res gestae” em toda a sua
complexidade. Por isso têm que seleccionar. Outro problema constitui a deficência dos
documentos históricos que também, como já foi várias vezes dito, frequentemente
representam o único ponto de vista.
Disso resulta que a criação duma obra historiográfica é um processo altamente
complicado. O historiador tem que (tentar) interpretar imparcialmente os
acontecimentos, examinar a sua importância e seleccionar os mais importantes, pelo
menos do seu ponto de vista, e só depois pode começar com a construção da sua
História em que se inevitavelmente reflecte a sua ideologia sob a qual encara a História.
Assim a construção do livro historiográfico se aproxima da construção da ficção. Mas
ao contrário do autor da ficção, que tem mais liberdade de expressão, o historiador tem
que sempre ter em conta a credibilidade e a verosimilhança da sua História. Por isso
Agustina Bessa Luís fala da ficção controlada.
A partir desta citação podemos esperar que, ao escrever este romance, o autor
pretendeu reflectir alguns procedimentos da escrita da História, mas, aproveitando-se da
sua maior liberdade de expressão, incluiu na sua obra também acontecimentos e
personagens ficcionais, porque a sua intenção não era descrever a História como
realmente tinha sucedido, sendo isso o trabalho dos historiadores, mas como podia ter
sucedido e desta maneira intencionou questionar a visão do tempo do reinado de
Ngungunhane que hoje em dia possuímos. E que se não arroga o direito da
68 Meneses, Pedro: Resistência & Hibridez, p. 4. (Disponível em: http://palavraluminosa.googlepages.com/MicrosoftWord-Re.pdf)
21
verosimilhança histórica, comprova-o também o facto que denomina os seus contos
como as “estórias”69 e não como as “histórias”.
3.2.2. Fontes escritas
Que se não trata da mera invenção da História, prova-o o facto que no romance
de Ualalapi são incorporados os excertos tanto dos documentos históricos da época,
como dos depoimentos das testemunhas oculares. Todosestes documentos são
naturalmente escritos pelos europeus.
Para além dos relatórios de Joaquim Mouzinho D´Albuquerque, governador
militar de Gaza, e de Conselheiro Correia, governador interino de Moçambique, como
fontes principais acerca do personagem de Ngungunhane, encontram-se no livro os
testemunhos dos dois homens que tinham oportunidade de conhecer Ngungunhane de
perto – Ayres d’Ornellas, que viveu na corte de Ngungunhane e é autor das Cartas
d´África e das Raças e línguas indígenas em Moçambique, e o médico e missionário
protestante suíço George Liengme que, desde 1892 até a queda do império de Gaza nos
finais de 1895, viveu junto do Kraal70 de Ngungunhane. Dominava a língua nguni e
relevou grande interesse por “modus vivendi” dos ngunis que guardou num longo artigo
escrito em francês71 onde podemos encontrar as descrições minuciosos da habitação e
da aldeia, da vida do régulo, das principais festas, da organização do exército, mas
também da alimentação, das trajes, dos ritos e superstições e outras coisas.72 E
precisamente destas informações serve-se o autor no seu romance para descrever os
costumes ngunis, como, por exemplo, os ritos ligados com a morte do rei (p. 27), o
funcionamento do aparelho judicial, que agia de acordo com um código oral (estória A
morte de Mputa), ou as festas (ritual anual e sagrado do nkuaia que Ngunhunhane
proibiu por causa da doença de Damboia, p. 61 – 62).73
69 Na nota do autor podemos ler: „ao longo da(s) estória(s)“. In: Ba Ka Khosa, Ungulani: Obra citada, p. 11. 70 Trata-se duma povoação dos zagais sul-africanos com a construção circular, com o gado no centro. Apud: Klíma, Jan: Mosambik (Stručná historie států). Praha: Libri 2007, p. 174. 71 Un Potentat Africain – Goungounyane et son règne que foi publicado no Bulletin de la Societé Neuchâteloise de Géeographie, em 1901. Apud: Vilhena, Maria da Conceição: Gunhunhana no seu reino. Alguns capítulos da obra de Maria da Conceição Vilhena. (Disponível em: http://www.macua.org/gungunhana/introducao.html) 72 Apud: Leite, Ana Mafalda: Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa: Edições Colibri 1998, p. 85. Também: Vilhena, Maria da Conceição: Obra citada. 73 O leitor pode comparar as descrições do romance com as do livro historiográfico de Maria da Conceição Vilhena.
22
Mas o enquadramento desses depoimentos no romance não é tão simples e
inequívoco como podia parecer dado o que dissemos no parágrafo anterior. Já da
descrição do aspecto físico e do carácter de Ngungunhane, que antecipa as narrativas, é
evidente a ambiguidade dos depoimentos – dois de Ayres d´Ornellas e dois de Dr.
Liengme que se revezam, negando sempre um o outro. “Era evidentemente o chefe
duma grande raça...” diz Ornellas e continua: “olhos castanhos e inteligentes e um
certo ar de grandeza e superioridade”.(Ba Ka Khosa, 13) A resposta, em forma do
depoimento de Dr. Liengme, segue imediatamente:
“Era um ébrio inveterado. Após qualquer das numerosas orgias a que se
entregava, era medonho de ver com os olhos vermelhos, a face tumefacta, a expressão bestial, que se tornava diabólica, horrenda, quando, nesses momentos se encolerizava...” Dr. Liengme “Só direi que admirei o homem, discutindo durante tanto tempo com uma argumentação lúdica e lógica...” Ayres d´Ornellas “...mas toda a sua política era de tal modo falsa, cheia de duplicidade, que se tornava difícil conhecer os seus verdadeiros sentimentos.” Dr. Liengme (Ba Ka Khosa, p. 13) Desse modo, o autor pretende mostrar-nos não só a ambiguidade da vista sobre
Ngungunhane (que se estende por todo o romance), mas também a ambiguidade das
fontes históricas. Assinala assim que não são objectivas, porque se fossem, deviam
retratar Ngungunhane de forma, pelo menos, semelhante, mas esses, ao contrário,
carregam em si uma certa atitude do seu autor que causa a sua subjectividade. O
narrador sabe que os criadores dos documentos históricos deliberadamente seleccionam
os factos que ora servem melhor para a sua ideologia ora os pintam sob a luz mais
favorável. Este procedimento também faz-se espelhar no terceiro Fragmento do fim que
se diz mostrar o início do relatório à posteridade do coronel Galhardo. Descreve a
ocupação de Manjacase, onde os portugueses foram buscar Ngungunhane, mas só
encontraram a cidade vazia. E segundo as leis de guerra, considerando esta cidade como
uma espécie do troféu da guerra, saquearam e incendiaram-na. Mas o narrador
acrescenta que o coronel esqueceu-se de escrever alguns aspectos importantes, como,
por exemplo:
“- O facto de ter profanado com um ímpio o lhambelo74, urinando com algum
esforço sobre o estrado onde o Ngungunhane se dirigia na época dos rituais (...). - O roubo de cinco peles de leão que ostentou na metrópole, como resultado
duma caçada perigosa em terras africanas.
74 Nomeação do local sagrado. (Ba Ka Khosa, p. 61)
23
- O facto de ter, pessoalmente, esventrado cinco negros com o intuito de se certificar da dimensão do coração dos pretos. (...)”
(Ba Ka Khosa, p. 56) Estes aditamentos, mais do que provavelmente procedentes da pena do autor,
espelham como os documentos históricos são a miúdo escritos em favor dos que os
escrevem ou mandam escrever. Este espelhamento, ou até podemos dizer a perspectiva
em abismo, claramente revela o carácter metadiscursivo deste romance e chama a
atenção do leitor para o processo de escrever, da construção do romance, dos
documentos, dos livros historiográficos e da História em geral. E exactamente este
carácter metadiscursivo do texto é um dos traços essenciais da metaficção
historiográfica.
O historiador, durante a sua “criação” da História, depara frequentemente com o
problema como compor correctamente o mosaico dos factos ou documentos históricos.
Às vezes é realmente difícil ordenar fragmentos históricos em imagens históricas
correctas, uma vez que cada erro, cada troca dos fragmentos, pode, de vez em quando,
redundar em versão completamente diferente da História. Este problema parece ser
reflectido na estória O diário de Manua, onde o narrador nos conta que a parte do diário
entre os anos 1892 e 1895 era comida pelos ratos. “As letras que restaram estão soltas.
Juntando as cinco letras tem-se a palavra morte. Ou temor. Ou tremo.” (Ba Ka Khosa,
p. 105) Trata-se, muito provavelmente, da alegoria da concepção do historiador como
um construtor da História.
Mas a ligação com a historiografia contemporânea revela-se também na
concepção da História vista “de baixo”, concedendo o narrador muitas vezes a palavra
ao povo (ou ao vulgo, como diz o autor). Assim nos permite entreouvir os seus
comentários, como, por exemplo, no oitavo capítulo da quarta estória com o nome dO
cerco ou fragmentos de um cerco:
“- Chamas. Sangue. Gritos. Choros. Morte. Fuga…
- Cadáveres… - A solidão acima de tudo. O silêncio depois da matança. O mundo sem sentido que fia. O vazio que paira depois do crime.
- A morte não está com os mortos. - A morte ficou nos intrépidos guerreiros de Maguiguane.” (Ba Ka Khosa, p. 87 – 88)
Podemos ler este capítulo ora como um diálogo dumas pessoas do povo, faltando
os seus nomes (o facto que, por outro lado, confere a estes testemunhos a validade
24
geral), ora como várias vozes do povo surgidas depois da batalha sangrenta. Caso tal, o
autor conseguiu neste pequeno espaço apreender pluralidade das vistas sobre a batalha,
destacando cada uma o que para ela era o mais importante. Quando nos orientamos na
língua deste capítulo, deparamos com o seu carácter altamente poético. Podíamos
considerá-lo como uma marca da oralidade ou como uma “inversão parodicamente
exagerada da retórica da representação histórica”.75 Esta última consideramo-la mais
provável, devido ao facto que as palavras são inseridas na boca do povo e,
principalmente, porque esta linguagem enfática serve para os fins de descrever as
consequências da batalha apocalíptica. Nisso podemos ver outro exemplo do modo
como o narrador se apropria dos relatos históricos para os seguidamente subverter, o
que não é nada mais que o outro traço típico da metaficção historiográfica.
Falando das fontes escritas, também queríamos mencionar a alusão aOs
Lusíadas de Luís de Camões, que aparece neste romance. É verdade que esta obra, que
celebra e mitifica os descobrimentos do povo português, eleito para este fim por
deus(es), não pertence à categoria das fontes históricas ou historiográficas, mas
inscreveu-se indelevelmente na memória colectiva (não só) dos portugueses e assim na
História, da mesma maneira como o seu autor que chegou a ser o objecto do mito
nacional. De acordo com Wesseling: “O alvo principal do discurso irónico é a história
canónica, o repositório de factos estabelecidos e as interpretações daqueles factos, mas
também os textos do passado/da memória cultural, maltratados por um uso contrário
ao tradicional.”76 No livro, pode ler-se:
“(...) escarpas que foram testemunhas de cenas várias, como a do viajante zarolho que por estas terras aportou com um volumoso manuscrito entre as mãos e que mais versos fez, cantando esta ilha enquanto saciava a sede e a fome que o atormentava, ante o espanto e a comiseração das negras islamizadas em verem um branco esquálido, longe de saberem que aquele homem magro e famélico relançaria ao mundo uma terra que os pedestres de pés cambados a percorrem numa semana sem outro esforço que olhar a paisagem.” (Ba Ka Khosa, p. 97 – 98) Neste retrato, o grande herói dos portugueses é despojado da sua dignidade pela
descrição da sua miséria. Deste modo, o autor desconstrui a sua grandeza e através disso
75 Leite, Ana Mafalda: Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa: Edições Colibri 1998, p. 87. 76 Apud: Caragea, Mioara: Metaficção historiográfica. In.: E-Dicionário de Termos Literários. Esta asserção é válida também para a oralidade.
25
também “o universo simbólico d´Os Lusíadas”77. Com este acto não parodia somente o
mito português dos descobrimentos, mas também o povo português “eleito” que, em
Moçambique, ostentava com tanto gosto a sua superioridade e oprimia as culturas
autóctones. E precisamente deste modo, através da utilização da paródia, é esse povo
“eleito”, como a sua cultura, despojado da sua superioridade e é abolida a dicotomia
“português superior” – “africano inferior” ou, na concepção de Bakhtine, a dicotomia
“cultura oficial” – “cultura popular”. Esta desmistificação do mito camoniano também
pode ser concebida como o mero espelhamento da desmistificação do mito criado em
redor de Ngungunhane.
3.2.3. Oralidade africana
A oralidade africana era sempre menosprezada pelos colonizadores. Mas nos
primeiros anos da independência não era muito melhor. Com explica Leite, “a política,
de base marxista, que prevaleceu durante a primeira década pós-colonial, retraiu os
movimentos culturais nativistas, em favor de uma postura ocidentalizada”.78 O
surgimento da temática nativista na literatura moçambicana remonta até aos finais da
década de oitenta, mas principalmente aos anos noventa, quando os livros publicados
“tematizam e absorvem, recriados, nas formas discursivas, os intertextos das poéticas e
tradições orais”.79
Ungulani Ba Ka Khosa incorporou no seu romance as narrações provenientes da
tradição oral de Ngungunhane e o seu tempo que até hoje circulam, transmitidas de
geração em geração, em Moçambique. Assim, colocou estes testemunhos orais em pé de
igualdade com os relatos históricos escritos. Porque se estes representam cultura oficial,
aqueles cultura popular. E se estes representam a visão da História pelos outros, os
portugueses, aqueles representam a visão da História pelos locais, os moçambicanos,
porque só a oralidade pode apreender a mundividência africana, o modo como os
moçambicanos vêem, percebem e explicam o mundo em todos os seus aspectos, todo o
que a escrita ocidental, naturalmente, não consegue. Assim, ao utilizar os relatos tanto
77 Meneses, Pedro: Resistência & Hibridez, p. 14. 78 Leite, Ana Mafalda: Modelos críticos e representações da oralidade africana. Via Atlântica, n. 8, 2005, p. 151. ( Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via08/Via%208%20cap09.pd f ) 79 Ibidem, p. 151.
26
escritos como orais, pode o autor examinar a História tanto “de cima”, como “de baixo”
e tanto “de fora” como “de dentro”.
As palavras, no seu romance, quase parecem ter uma vida própria. Funcionam
como unidades independentes da vontade, e até da vida, do homem, como podemos
observar nos seguintes excertos:
Morreu a dormir, sonhando alto. De manhã, ao entrar na sua cubata, vi-o deitado ao comprido, olhando o tecto. Falava. A voz tocava-me profundamente. Durante horas seguidas ouvi-o falar. Quis acordá-lo, pois já era tarde. Ao tocá-lo notei que o corpo estava frio. Há muito que tinha morrido. Tiveram que o enterrar imediatamente para que os vizinhos não nos chamassem feiticeiros. E o nosso espanto foi ouvir a voz saindo de escarpas abissais. O meu pai teve que sentar-se sobre a sepultura e acompanhar, movimentando a boca, a voz do defunto. Os vizinhos e outros familiares distantes sentiram pena do meu pai, pois pensaram que estivesse louco. Noite e dia, durante uma semana e meia, o meu pai abria e fechava a boca. (Ba Ka Khosa, p. 117) A pior coisa que aconteceu durante aqueles meses foram as palavras, homem! Eles cresciam de minuto a minuto e entravam em todas as casas, escancarando portas e paredes, e mudavam de tom consoante a pessoa que encontravam. A violência que Ngungunhane utilizou para sustá-las não surtiu efeito. Elas percorriam as distâncias à velocidade do vento. E tudo por causa dessas tinlhoco – nomeação em tsonga dos servos – que saíam da casa de Damboia com os sacos cheios de palavras que as lançavam ao vento.
(Ba Ka Khosa, p. 65) Para além de as palavras do segundo excerto correrem por todos os lados e com
grande velocidade, crescendo incontrolavelmente, e independentemente da vontade
humana, é também evidente a sua ligação com o povo, exprimindo o seu ponto de vista
que, por mais que queira, Ngungunhane, o representante do ponto de vista oficial, não
pode abafar. O autor assim concede a palavra ao povo que sempre era marginalizado ou
omitido pela historiografia oficial. Mas isso não significa que o narrador considerava o
seu testemunho como mais digno de confiança do que do dos documentos históricos
escritos. Tem consciência que também estes depoimentos não são objectivos, porque
exprimem o único ponto de vista, o popular, e mudam cada vez que estão ouvidos, uma
vez que a oralidade colabora muito estreitamente com a presença do ouvinte. O narrador
muda o seu discurso com cada ouvinte – como diz Lopes: „Tanto o contador como o
auditório participam na ato de criação. Existe sempre qualquer novidade a
acrescentar, consoante a emoção de momento de quem está contando ou de quem está
27
escutando.”80 Que assim a mensagem transmitida de boca em boca pode mudar tanto
que já não tem nada a ver com a mensagem inicial, o narrador demonstra-o noutra parte:
- Perdeu a fala – diz um. A frase arrasta-se de boca em boca. É envolvida pela saliva, é enxertada, cresce, ganha novas dimensões e chega aos ouvidos de Maguiguane:
- Enlouquecidos pela fome os homens devoram as mulheres e as mulheres devoram as crianças. O rei e os maiores apontam o dedo a carne para o repasto. Ninguém fala no kocolene.
Maguiguane ri. Os trinta mil guerreiros riem. Macanhangane dorme. E a frase volta ao princípio.
- É verdade? - Não sabemos. Este homem perdeu a fala.
(Ba Ka Khosa, p. 83) O autor também põe em dúvida a credibilidade dos alguns narradores dos
testemunhos orais dos quais se serve ao escrever a sua estória. É o caso, por exemplo,
de Malule que conta a vida de Damboia. “Muitos dos guardas que cercavam a casa
ficaram surdos para toda a vida e outros tiveram e têm acessos de loucura de tempos
em tempos, como o Malule com quem falaste ontem.” (Ba Ka Khosa, p. 70)
Assim, o autor nos mostra a falta de credibilidade dos testemunhos orais, mas
este facto não o impede de os inserir no seu romance, ao lado dos documentos históricos
escritos que, como descrevemos mais acima, também não são totalmente dignos de
crédito. Mas, ao incorporar no romance esses dois tipos de fontes, escritos e orais,
oferece ao leitor mais fragmentos do mosaico histórico, cuja composição lhe pertence.
Mas não são só as histórias acerca dos tempos de Ngungunhane que o autor tira
da oralidade, mas também se aproveita da sua estrutura das narrações, da arte de contar
as histórias. Esta consiste em sugerir imagens visuais e acústicas, por isso as histórias
orais são cheias dos elementos visuais, como, por exemplo, o aproveitamento do jogo
com a obscuridade e a luz, da simbologia das cores (em Ualalapi, a cor amarela e
vermelha têm as conotações negativas, representando a impureza e a pena pela
transgressão), e dos elementos fonéticos, como as repetições, onomatopeias etc. Como,
neste trabalho, não dispomos do espaço suficiente para tratar de todos os aspectos da
oralidade no romance de Ualalapi, limitamo-nos a referir-se, pelo menos em forma
abreviada, somente aos traços mais frequentes nas obras influenciadas pela oralidade
80 Lopes, José de Sousa Miguel: Cultura acústica e cultura letrada: o sinuoso percurso da literatura em Moçambique. (Disponível em: http://www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/miguel_lopes.doc)
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que são, como já assinalámos mais atrás, o uso do provérbio, a interacção entre o
mundo natural e o humano e os elementos mágicos da imaginação mítica.
O provérbio, um dos elementos essenciais da oralidade africana, é também com
muita frequência usado neste romance, como demonstra o seguinte excerto:
- Mptua esqueceu-se que a trovoada produz a chuva, filho. Mulher de rei é
sagrada. - Porquê, avô? O que ela tem entre as coxas outra mulher não terá? - Não fales assim, filho, não fales assim, pois há anos atrás, o teu pai ainda não
tinha nascido, houve um homem que ousou lançar impropérios jamais ouvidos ao rei, e passou o resto da vida carregando os testículos sem fim. Não fales assim. Deixa o Mputa. Deixa-o! Ele esqueceu que quem agita a lagoa levanta o lodo.
- Mas cacarejar não é pôr ovo, avô? - Não fales mais, calemo-nos. Se Mputa tem razão sairá ileso, pois o macaco
não se deixa vencer pela árvore. (Ba Ka Khosa, p. 48 – 49,
sublinhado nosso) Os provérbios africanos, como é também perceptível no nosso excerto, “fazem
freqüntemente alusão a fenômenos naturais e à vida animal”81. O seu uso não se
emprega apenas para ostentar conhecimentos, mas serve também para desafiar os outros
para um “combate verbal e intelectual”. Os interlocutores sentem necessidade de
superar os provérbios com outros, mais oportunos ou contraditórios, o mesmo que se
desenrola no diálogo do neto com o avô. Os provérbios também costumam ser, por
causa do seu carácter moralista, utilizados na jurisprudência. 82 Também neste diálogo
podemos encontrar algumas marcas da jurisdição, uma vez que se trata do julgamento
dos feitos de Mputa.
A interacção entre o mundo natural e humano faz-se sentir em relação com o
tempo. O tempo ora simplesmente reflecte o estado físico da personagem, como no caso
de Domia: “Ao acordar, nessa manhã nebulosa e aziaga, Domia sentiu as vísceras
bulindo de forma aterradora e mortífera...” (Ba Ka Khosa, p. 45), ora entra em
contraste com o espírito do homem, como no caso de Damboia: “Damboia tivera,
naquele dia fatídico, os momentos mais felizes da sua vida” (Ba Ka Khosa, p. 68).
81 Lopes, José de Sousa Miguel: O lugar da cultura acústica moçambicana numa antropologia dos sentidos. (Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/sousa.rtf ) 82 Segundo Walter Ong, “os provérbios não são meros adornos da jurisprudência, mas constituem eles mesmos a própria lei. Com freqüência recorre-se a um juiz de uma cultura oral para que se repita provérbios pertinentes a partir dos quais pode deduzir decisões para os casos de litígio formal que lhe são submetidos.” Apud: Ibidem.
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Mas, principalmente, achamos de grande interesse a relação entre a morte da
mulher e a água, em todas as suas formas. A mulher de Ualalapi morre, junto com o seu
filho, sufocada pelas lágrimas. Mais, “quando a chuva desabou Domia deu o último
suspiro, deixando a carne ser desfeita pela chuva que não parou de cair durante
semanas e semanas até que sobre a terra não restasse um osso.” (Ba Ka Khosa, p. 53)
Também na morte da Damboia, a água é presente. Durante a sua doença mortal também
chove, mas desta vez não se trata da chuva lustral, como foi no caso da Domia.83 E a
causa da morte da Damboia era a incessante menstruação. Neste caso podíamos
considerar o sangue como a água imunda.84 Como diz Leite: “A fenomenologia
escatológica prende-se obsessivamente aos líquidos: vómitos, sangues, chuvas
diluvianas, entrando em sintonia a natureza com o mal estar dos homens.”85
Outro elemento característico das narrativas orais é a intervenção do
sobrenatural. As personagens possuem poderes mágicos, vivem acontecimentos de
ordem mágica, e têm que se defrontar com os inimigos que possuem esses poderes, ou
são afectados por fenómenos sobrenaturais.86 A presença dos elementos sobrenaturais é,
neste romance, quase constante e decorre das transgressões das leis tradicionais da
comunidade que põem “em perigo o equilíbrio da comunidade. A instabilidade decorre
da falta de valores tradicionais.”87 Damboia é punida pela sua dissolução88, Manua, que
encheu o navio pelos seus vómitos, é punido pelo comer peixe, animal sagrado dos
nguni. “A Lei vence sempre, sendo apenas através do símbolo.”89 Daí decorre a
valorização das crenças animistas, dos códigos radicados no passado, a que se atribui
um valor sagrado. E precisamente nestes códigos antigos a comunidade devia ir buscar
83 “Ao amanhecer começou a cair uma chuca amarela, forte, de gotas grossas e pegajosas como a baba do caracol.” (Ba Ka Khosa, p. 64) Ou: “Ao segundo mês, creio, choveu como nunca durante duas semanas. O sangue dela escorreu ao rio, tingiu-o de vermelho e matou os peixes que os nguni não comiam. (...) Outros, velhos e novos, morreram de sede, pois a água estava contaminada ao longo da extensão do rio. O lago das proximidades estava contaminado.” (Ba Ka Khosa, p. 71) 84 Para os homens é reservada outra morte. A única morte digna do homem que é a morte no combate. (Posta em causa por Mputa, p. 27.) Só a morte de Manua e de Ngungunhane, como penas das suas transgressões contra as regras tradicionais, é conotada com a água. Manua morre por causa da aguardente (a água com o fogo) e Ngungunhane “em águas desconhecidas” (Ba Ka Khosa, p. 30). Estes dois não são dignos da morte do homem. 85 Leite, Ana Mafalda: Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa: Edições Colibri 1998, p. 92. 86 Leite, Ana Mafalda: Modelos críticos e representações da oralidade africana. Via Atlântica, n. 8, 2005, p. 159. 87 Meneses, Pedro: Resistência & Hibridez, p. 11. 88 “Damboia sofria da doença do peito que faz vomitar sangue pela boca, mas que ela vomitava entre as coxas, em paga da vida crapulosa que levara.” (Ba Ka Khosa, p. 65) 89 Meneses, Pedro: Resistência & Hibridez, p. 11.
30
a inspiração para a sua conduta no presente.90 O livro, deste modo, critica a sociedade
contemporânea pelo seu desvio do mundo tradicional africano.
O carácter sagrado do passado “detecta-se numa atmosfera cujo equilíbrio
precário depende da observância das normas”.91 A acção do romance, instalada assim
num tempo e espaço primordiais, num “cenário histórico que se orienta para uma
época longínqua e de contornos imprecisos, relembra a sacralidade da origem e da
fundação.”92 O uso desta “cronografia mítico-histórica”93, que é muito frequente nas
literaturas africanas contemporâneas, “pretende prolongar no presente o registo da
Memória dos tempos antigos, e este caminho retrospectivo mais do que resultante de
uma preocupação nostálgica, é uma forma de confronto com um presente histórico,
muitas vezes crítico e problemático.”94
Outra explicação possível para o enquadramento dos elementos sobrenaturais,
mas que não exclui a da inspiração pela oralidade, podia ser que o autor tinha-os
incorporado no seu romance histórico com o propósito de parodiar o realismo do
romance histórico tradicional.
Outro exemplo da paródia ligado com a oralidade é o discurso do branco com as
marcas da oralidade do outro. E são precisamente estas que servem os interesses da
paródia:95
“E o pior, compadre, foi a vez que acordámos pelos lençóis adentro. Eram
peixes deste tamanho, grandes. E porque não os apanharam, compadre? Se não apanhámos, cada vez que ia um pela borda fora apareciam cinco, compadre. Que bruxaria…E não os comeram? Não diga isso, compadre, tinham patas. O quê? Patas, compadre. Pareciam lagartos, compadre. Deviam queimar o moço, compadre. Aquilo era só pegar-lhe e deitar-lhe no forno. Isso não dava nada. Talvez, mas atirava-o pela borda fora, pois já o meu avô dizia, morre o bicho, acaba-se com a peçonha. Não nos chame parvos, compadre.”
(Ba Ka Khosa, p.104)
90 Leite, Ana Mafalda: Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa: Edições Colibri 1998, p. 91. 91 Ibidem, p. 91. 92 Ibidem, p. 91. 93 Leite, Ana Mafalda: Literatura Moçambicana: Herança e Reformulação. Sarará – Revista electrônica de literatura e de língua portuguesa. 94 Ibidem. 95 Meneses, Pedro: Resistência & Hibridez, p. 11. O autor não se esquece de destacar a dicotomia olhar – ouvido. Em África, es pessoas argumentam a veracidade das histórias, apelando o facto que as ouviram contar. Os europeus, ao contrário, argumentam apelando o olhar – “Que cortem os tomates do meu pai se minto. Vi com estes olhos.” (Ba Ka Khosa, p. 102)
31
3.2.4. O diário de Manua ou oralidade versus escrita
A quinta estória conta os acontecimentos ligados ao filho de Ngungunhane,
Manua que, na Europa, tirou o curso de artes e ofícios. Manua estima muito os brancos
e queria ser um deles. Mas nem os brancos nem os seus o aceitam por causa da sua
diferença. Meneses diz que “o vómito mais não é do que inatingida assunção da
mesmidade. (...) Permanecer no reduto monoracial, monológico e monodiscursivo do
outro obriga Manua a expulsar de si as suas próprias entranhas: acaba por devorar a
sua própria biografia”96 – o diário.
Um dos temas principais dessa estória é a relação da escrita com a oralidade, ou
melhor a “valorização do oral por oposição à escrita”97. A narrativa começa pelo
achado do diário de Mputa, do qual o narrador colhe informações. Mas, como o diário
nada diz dos acontecimentos entre 1892 e 1895, serve-se também do testemunho do
comerciante árabe, Kamal Samade, o pedestrianista.
O aparecimento da escrita, em África ligada aos árabes e aos europeus, como os
dois relatos na nossa estória, junta-se à ideia da decadência do império. E escrita é,
neste romance, “o símbolo maior da recusa da cultura tradicional e do início do
colonialismo.”98 É também o símbolo do desequilíbrio e da ruptura, porque a sua
imposição numa sociedade de tradição oral não é um produto da evolução histórica
normal, mas é introduzida violentamente pelo outro.99 A crítica da escrita aparece
também no último discurso de Ngungunhane:
“Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas
aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão. Os nomes que vêm dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que impôs a ordem nestas terras sem ordem, a palavra que tirou crianças dos ventres das vossas mães e mulheres. O papel com rabiscos norteará a vossa vida e a vossa morte, filhos das trevas.” (Ba Ka Khosa, p. 118)
96 “Escrever-se é, por si só, um acto ostensivo: Manua mostra-se a si mesmo e ao leitor, revelando um conflito insanável, sendo que o Eu é um fantasma em permanente errância. Estar-em-sua-casa é impossível, tanto cá como lá. Manua não resistiu ao engolfamento na cultura do outro, sendo castigado pela afronta à cultura bantu.“ In: Meneses, Pedro: Resistência & Hibridez, p. 8 - 9. 97 Leite, Ana Mafalda: Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa: Edições Colibri 1998, p. 89. 98 Ibidem, p. 89. 99 Ibidem, p. 90.
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Deste excerto é evidente, além da condenação da escrita, o apelo por
revalorização da oralidade e assim também da recuperação das tradições e valores
esquecidos dos seus antepassados. É uma chamada para o estado anterior à imposição
da escrita, isto é pré-colonial.
A denegação do valor da escrita é também aparente na invenção das fontes
escritas. O narrador, problematizando o valor da escrita, socorre-se parodicamente às
fontes forjadas o que lhe permite “reflectir, com ironia, sobre o abandono da oralidade
e a cultura que ela representa, enquanto uma das causas da degeneração cultural.”100
As narrativas da tradição africana reflectem na sua estrutura o seu componente
didáctico-moralizante. Como diz Lourenço Rosário, existem dois tipos básicos das
narrativas, conforme a transformação do melhoramento ou da degradação perante a
situação inicial, que determina a situação final da história. Primeiro, as narrativas de
carácter descendente que consistem “na exemplificação da punição de um anti-herói
pela transgressão das regras”, segundo, as narrativas de carácter ascendente que
desembocam “no prémio pela exemplaridade heróica”.101 A estrutura da estória O
diário de Manua é um representante típico da narrativa do primeiro tipo. Manua, mais
um anti-herói que um herói, transgride as regras dos nguni quando come peixe,
destruindo assim o estado do equilíbrio, o facto que o predestina à punição que é neste
caso a sua morte. Mas esta narrativa é somente uma pequena perspectiva do abismo de
toda a estrutura do romance que, como quase todas as narrativas do romance102, tem o
carácter descendente. O romance começa com assassínio do herdeiro legítimo do trono,
instalação do desequilíbrio, continua com as sucessivas transgressões de Ngungunhane
contra as tradições da terra que coloniza e termina com a queda do império. Mas, como
Ngungunhane avisa no seu discurso, o pior ainda está por vir.
Embora possa perecer que a oralidade e a escrita representam dois universos
completamente diferentes, é, n´O diário de Manua como em todo o romance, aparente a
sua fusão, devido ao aproveitamento da estrutura e dos elementos intrínsecos da
oralidade na escrita, o procedimento frequente na literatura contemporânea
moçambicana. Os moçambicanos assim conquistam a forma escrita, legado europeu,
100 Ibidem, p. 90. 101 Apud: Ibidem, p. 88. 102 Ualalapi, que é anunciado da sua morte pelos pangolins, depois da matar Mafemane, desaparece na floresta. Damboia é punida com a morte pela vida que levava etc.
33
para subverter a sua estrutura com a ajuda da oralidade. Esta conquista com a seguinte
subversão é um elemento típico da literatura pós-moderna.
Mas, outra vez, não se trata da pura absorção da oralidade. Esta é retrabalhada na
escrita “de modo poliforme”.103 Uma das causas deste “retrabalhamento” é o facto que a
dinâmica da oralidade é intransmissível para a escrita104 e assim os escritores vêem-se
obrigados a inventar outras maneiras como lhe conferir uma dinâmica. Outra razão pode
ser a relação dos escritores com as tradições orais e a oralidade, que é “uma relação em
“segunda mão”, (...) não de uma experiência vivida, mas filtrada, apreendida,
estudada”105, uma vez que a maioria dos escritores das literaturas africanas de língua
portuguesa são assimilados, da origem urbana, sem contacto directo com o campo,
conservador da tradição oral, e muitos deles nem dominam outra língua que o
português. O próprio Ba Ka Khosa, filho dos pais assimilados, aprendeu uma das
línguas bantos aos 12 anos. Mas também não nos devíamos esquecer da liberdade de
expressão do escritor que lhe permite “brincar” com a língua ou com os modelos da
oralidade à vontade.
Todavia, a confluência da escrita com a oralidade neste romance não é
representada somente através da subversão da escrita pelos processos da oralidade, mas
está também simbolicamente descrita no fim do livro, onde o narrador, à noite, junto da
fogueira (um ambiente típico para contar e ouvir os contos tradicionais africanos), ouve
a narração dum velho sobre a partida de Ngungunhane para o exílio.
“- Há pormenores que o tempo vai esboroando – disse o velho, tossindo. Colocou duas achas no fogo e soprou. Novelos de fumo passaram pelo rosto. Pequenas lágrimas saíram dos olhos cansados e tocaram na pele coberta de escamas. Afastei os papéis. Olhei-o. Era noite.” (Ba Ka Khosa, p. 116)
Neste excerto, a oralidade encontra-se com a escrita. Percebemos que o ouvinte
anota as palavras do velho, porventura na tentativa de fixar as histórias antigas da
tradição oral, para as fazer renascer, mas já de forma escrita. Num certo momento, o
ouvinte afasta os papéis para poder pensar na história do velho. Podemos conceber este
103 Leite, Ana Mafalda: Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa: Edições Colibri 1998, p. 89. 104 Como nos esclarece Russel Hamilton: “Nas culturas em que o saber é transmitido oralmente, cada vez que ele é transmitido, a ato dramático muda. Sempre que o historiador de grupo muda do auditório, a entonação também muda. Então, quando a oralidade passa para o papel, deixa de ser oral, fica estática, dentro do texto escrito.” Apud: Lopes, José de Sousa Miguel: Cultura acústica e cultura letrada: o sinuoso percurso da literatura em Moçambique. 105 Ibidem, p. 31.
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momento ora como o acto da rejeição da escrita, ora como a reflexão, talvez sobre
escrita e oralidade, talvez sobre a História e a sua criação. Porque quando afasta os
papéis, é evidente que não vai continuar a escrever e assim a história do velho torna-se
incompleta, mesmo que o leitor não o perceba. O ouvinte que ao mesmo tempo escreve,
representa aqui o historiador que selecciona.
E no absoluto final do livro, o autor põe nos em dúvida acerca da autenticidade
do diálogo com o velho e da credibilidade de todo o romance, quando escreve:
“Levantei-me. Estava cansado. A noite clara, sem nuvens, dava total
liberdade à Lua. Comecei a afastar-me da fogueira. Com a cabeça apoiada entre as mãos o velho soluçava. Comecei a andar depressa. Não sei porquê mas à medida que ouvia o choro do velho apressava o passo. Afastei-me da cabana que me estava reservada e virei o rosto em direcção à fogueira. Entre duas mangueiras enormes, o velho, com a cabeça entre as mãos, não via o fogo e a noite. Chorava. E eu afastava-me da cubata, do meu quarto, e atirava-me à noite de luar. Algo me intrigava no velho e no discurso de Ngungunhane.”
(Ba Ka Khosa, p. 125) Depois de ler esta passagem, pensamos de quê se o narrador se afastava – da
cabana ou cubata no campo? Mas cabanas, nem cubatas, não têm quartos. E toda esta
conversa com o velho é ouvida, vivida ou só imaginada, inventada? Ficamos nas
grandes dúvidas, não só acerca do diálogo, mas acerca de todo o romance, porque é
neste ponto que o livro termina.
3.3. O último discurso de Ngungunhane ou questionamento do presente
No livro Ualalapi, o elemento que liga o passado com o presente é o
personagem de Ngungunhane ou, com mais exactidão, o seu último discurso.
Ngungunhane106 era um descendente dos invasores nguni, um dos ramos dos
zulus, que vieram da actual África do Sul e estabeleceram-se no território de Gaza,
actual sul de Moçambique. Diz-se que era um povo bélico e cruel, por isso não tinham
grandes problemas em vencer os povos indígenas, na sua maioria agricultores e zagais.
O próprio Ngungunhane viveu numa época agitada e complicada, pouco tempo depois
da Conferência de Berlim (1885) que revoltou o interesse dos europeus para África.
106 O seu nome original era Mudungazi. Depois de ter subido ao trono, aceitou o nome de “Ngungunhane” que, na opinião duns, tem o significado de terrível ou incrível. Para outros, esse nome tem “uma relação com as grutas do mesmo nome, para onde eram atirados muitos dos condenados à morte”. Diz-se que só a pronunciação do seu nome “inspirava nas pessoas maior terror”. Ngungunhane era também conhecido sob o cognome de “Leão de Gaza.” Apud: Vilhena, Maria da Conceição, obra citada.
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Ngungunhane era obrigado a defender o seu reino contra os portugueses e também
contra as rebeliões dentro do seu reino que não eram raras. A queda do seu império era
inevitável. Em 1895, Ngungunhane é aprisionado pelos portugueses e assim também
termina a história do império de Gaza.
Para os portugueses, Ngungunhane representava “o emblema da derrota dos
negros em Moçambique”107. Para os portugueses era um ser assustador e perigoso. “A
campanha militar (contra Ngungunhane) foi narrada como um feito heróico da maior
grandeza, com os comandantes militares elevados à condição de heróis singulares do
domínio colonial português.”108
O Estado de Moçambique não é o produto da evolução histórica natural, mas foi
criado pelos colonizadores europeus, e carece da unidade étnica, linguística. Mas a
grande falta que se sente, principalmente depois da independência, é a ausência da
memória colectiva comum a toda a população moçambicana, porque esta é
“simultaneamente a depositária do conjunto de atributos e símbolos de uma sociedade
e um dos instrumentos de legitimação da ordem social dominante.”109 Por isso era
preciso criar uns símbolos e mitos nacionais. E para este fim a figura de Ngungunhane
serviu bem, porque, de acordo com Fabre, há três elementos principais que caracterizam
o herói: 1) a imanência da morte (o perigo das batalhas dos nguni), 2) a necessidade de
agir (agir contra a ameaça do colonialismo) e 3) a arbitrariedade do sentido (que
permanece até hoje)110. Por isso, e com a ajuda da campanha da FRELIMO,
Ngungunhane tornou-se “um símbolo maior da luta contra o colonialismo”111, sendo,
aos poucos, eliminados “os aspectos mais negativos e brutais” deste personagem, “ao
mesmo tempo que se fazia a sobrevalorização das características mais positivas.”112 O
acto da mitificação de Ngungunhane culminou em 1985, quando os seus restos mortais
eram transportados dos Açores para Moçambique e solenemente sepultados.
Só dois anos depois, em 1987, Ungalani Ba Ka Khosa lança o livro de Ualalapi,
em que “desmistifica e desconstrói esta figura, transformando o mítico herói, naquilo
107 Leite, Ana Mafalda: Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa 2003, p. 97. 108 Ribeiro, Fernando Bessa: A invenção dos heróis: Nação, História e discursos de identidade moçambicana. Etnográfica, Vol. IX (2), 2005, p. 265. (Disponível em: http://www.adelinotorres.com/afri ca/Fernando%20Bessa%20Ribeiro_A%20inven%C3%A7%C3%A3%20dos%20her%C3%B3is_Identida de%20em%20Mo%C3%A7ambique.pdf) 109 Ibidem, p. 259. 110 Apud: Ibidem, p. 259. 111 Ibidem, p. 265. 112 Ibidem, p. 266.
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que ele era realmente, um ditador, estrangeiro e prepotente, que manteve o seu
domínio, escravizando, uma parte significativa do território moçambicano.”113
A figura de Ngungunhane aparece ems todas as estórias, mas só na última surge
como protagonista. Com algum exagero podíamos dizer que a única coisa que sabe é
discursar. Já na primeira estória, ainda sob o nome de Mudungazi, profere o seu
primeiro discurso. No decorrer das primeiras cinco estórias é retratado como uma
pessoa cruel, maléfica e usurpadora. Nada é conservado da sua grandeza. Enquanto os
seus guerreiros lutam, ele fica instalado no seu Kraal. Neste comportamento não vemos
nem uma sombra da valentia e da bravura do grande guerreiro contra o colonialismo,
mas antes um homem repousante ou até covarde que demonstra a sua grandeza só por
via das penas sanguinárias e, muitas vezes, mortais. As descrições que se referem ao
personagem de Ngungunhane, não são, às vezes, muito apuradas e elegantes, como seria
conveniente perante o grande imperador de Gaza. “O rei sonha alto, chama pela Vuiazi,
agarra-se à enxerga ataviada, transpira, peida, tosse, ejacula.” (Ba Ka Khosa, p. 82),
ou outro exemplo:
“Molungo (...) que tenha começado a elogiar o rei, enchendo os testículos, o bojo e o traseiro descomunal do hosi114 de glórias possíveis e imaginárias, de factos reais e irreais que ele, rei de tantos feitos, herói sem par na História, foi protagonista primeiro e único que a História registará enquanto os homens estiverem sobre a terra.” (Ba Ka Khosa, p. 47)
O modo, como é neste excerto Ngungunhane retratado, provoca riso e é até
grotesco. E, ao referir-se ao herói sem par na História, o texto ganha traços da paródia.
O texto evoca ainda mais a visão grotesca de Ngungunhane, quando nos lembramos
como ele próprio se apresenta nos seus discursos:
“(...) que dissipámos a noite infindável que cobria estas terras, dizia isto movimentando o corpo bojudo pelo átrio da casa real e mostrando com as mãos e os olhos as nuvens, o Sol, e as árvores imponentes que se erguiam ao longe à sua mulher que soluçava e ao chitopo que o seguia, acenando a cabeça por tudo e por nada, ouviste vassalo, eu dei a luz e o sorriso, eu dei a carne e o vinho, eu dei a alegria a estes vermes....” (Ba Ka Khosa, p. 46)
Nesta passagem, Ngungunhane, discursando como sempre, compara-se ao Deus
- ao referir-se do acto da criação, uma vez que o Deus como primeiro criou Luz,
mostrando toda a natureza como se fosse a sua obra. Também neste excerto é nítida a
113 Leite, Ana Mafalda: Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa 2003, p. 97. 114 Nomeação em língua tsonga da palavra rei. (Ba Ka Khosa, p. 11)
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diferença grotesca entre o discurso e a aparência e o comportamento de Ngungunhane.
Aqui, não desistimos de apresentar uma parte da citação bíblica (Job 2) que abre a
estória onde se encontra este excerto”: “Então, do seio da tempestade, o Senhor
respondeu a Job e disse: Quem é aquele que obscurece a minha providência com
discursos sem inteligência? Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra?” (Ba
Ka Khosa, p. 43) Esta citação pode ser considerada como uma crítica da falta da
humildade de Ngungunhane que se considera por alguém quem não é, e que se apropria
do trabalho do(s) outro(s). O facto que o Senhor fala do seio da tempestade, pode ser
interpretado como um prenúncio do fim de Ngungunhane, mas, ao mesmo tempo, a
possibilidade do recomeço.
Assim, o narrador despoja Ngungunhane da sua grandeza e realeza e por este
modo o desmistifica. Por isso pode ser surpreendente que, na sexta estória,
Ngungunhane se torna portador duma profecia, que costuma ser proferida pela pessoas
dignas, merecedoras do acesso ao saber transcendental. Como confirma Leite: “Pela
primeira vez, apesar da sua figura histriónica, a personagem é apresentada com
alguma dignidade, como sendo portadora de um saber/poder oculto, com que se faz,
mais uma vez tremer. Desta vez, não apenas por razões de poder temporal, mais pelo
uso da palavra que o transcende. (...) A profecia, (...) estabelece uma relação entre o
sujeito e o transcendente.”115 Disso emana a ambiguidade do personagem de
Ngungunhane.
A profecia, além de ser característica por excelência das sociedades da tradição
oral, permite relacionar o passado com o presente e com o futuro, graças à sua
temporalidade abrangente. Este facto é conveniente para as intenções críticas da
narrativa histórica.116 O último discurso de Ngungunhane relata a era do colonialismo,
com as suas tentativas da assimilação linguística, religiosa e cultural, com a sua
humilhação e violação dos povos indígenas, e a guerra pela independência que passa
para a guerra civil com todas as suas atrocidades. Mas esta visão apocalíptica do destino
de Moçambique implica uma esperança sob a forma do recomeço:
“E terão que voltar ao princípio dos princípios. Eis o que é e o que será a vossa desgraça de séculos, homens.” (Ba Ka Khosa, p. 124)
115 Leite, Ana Mafalda: Oralidades & Escritas nas Literaturas Africanas. Lisboa: Edições Colibri 1998, p. 94. 116 Ibidem, p. 94.
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Deste discurso é perceptível que a instabilidade e desintegração do mundo
contemporâneo “estão ligados ao desrespeito pelo sistema de valores tradicionais,
próprios da cultura pré-colonial.”117 O passado, o presente e o futuro não são outra
coisa que as “consequências transcendentes e punitivas dos actos praticados pelos
homens”118 Assim, o narrador atribui o valor ao tempo da sociedade pré-colonial, isto é
da sociedade tradicional, onde, como já era dito, busca o ponto de partida para o
presente e o futuro.119 Essa época da sociedade tradicional evoca o tempo mítico que se,
neste romance, sobrepõe ao tempo histórico. Isto comprova a afirmação de Leite acerca
do uso duma cronografia mítico-histórica que citámos ao falar dos elementos
sobrenaturais.120 O regresso ao passado pode ser também, na opinião de Silva, uma
reacção contra a tendência da nossa época de valorizar apenas o novo e a novidade121, a
tendência muito comum nos estados africanos pós-independentes. O narrador pretende
com o seu romance mostrar que para vencer o futuro não basta estar aberto para as
novidades, mas também não nos devíamos esquecer das nossas raízes que representam a
base de uma sociedade.
3.4. Ualalapi, o personagem principal?
Depois de ler o romance, levanta-se a questão quem é o/a personagem principal.
Além de Ngungunhane, não há outro/a personagem que apareça em todas as estórias.
Mas nem Ngungunhane poderia ser considerado o personagem principal, pelo menos de
acordo com o romance histórico tradicional que introduz dois grupos de personagens:
um protagonista tipo e as figuras históricas.122 Figuras históricas são presentes neste
romance, como, por exemplo: Damboia, tia de Ngungunhane; Mafemane, o irmão
assassinado de Ngungunhane; chefe supremo do exército de Ngungunhane,
Maguiguane; Molungo, tio do imperador; Vuiazi com o seu filho Godide; Sonie, a
117 Ibidem, p. 92 – 93. 118 Ibidem, p. 94 – 95. 119 Como explica Dominique Zahan: „L´ideal pour l´Africain est un passé exemplaire qui se réalise dans le présent; le suprême idéal, pour lui, est la répétition indéfinie du passé normatif.“ Zahan, Dominique: Religion, Spiritualité et Pensée africains. Paris: Payot 1980, p. 86. 120 „O frequente uso de uma Cronografia mítico-histórica, pretende prolongar no presente o registro da Memória dos tempos antigos, e este caminho retrospectivo mais do que resultante de uma percepção nostálgica, é uma forma de confronto com um presente histórico, muitas vezes crítico e problemático.” Leite, Ana Mafalda: Literatura Moçambicana: Herança e Reformulação. Sarará – Revista electrônica de literatura e de língua portuguesa. 121 Silva, Haidê: Obra citada, p. 97. 122 Kaufman, Helena: Obra citada, p. 26.
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primeira mulher de Ngungunhane; Manua tem a sua prefiguração real em Mango, o
filho do rei mais inteligente e culto que morreu um dia depois de se recolher na palhota
com um garrafão de 25 litros de aguardente; etc. O narrador preenche as lacunas da
História com as pessoas fictícias que servem para preencher as margens da História,
tanto escrita como transmitida oralmente. Mas com um representante tipo será pior. O
Ngungunhane, única personagem que aparece em todas as estórias, como já dissemos,
nem tão pouco representa um personagem tipo.
O título do livro aponta a Ualalapi como o protagonista do romance. Mas este
aparece só na primeira estória. Robson Dutra diz que se trata de “uma falsa referência
ao leitor, outra marca da pós-modernidade literária”123 e até denomina Ualalapi como
“aquele que chorou e fugiu”124, o facto que o “afasta do panteão de heróis tão
demandados no pós-guerra”.125 Concordamos que se trata mais dum anti-herói que um
herói, mas optaríamos pela denominação de “aquele que dorme”, forma portuguesa do
nome tsonga Ualalapi126, que remete para o processo da iniciação. O ser no processo da
iniciação passa pela morte temporária e só ao terminar a sua viagem iniciática acorda,
mas já como um ser diferente, renascido com um saber mais profundo. Ao aplicá-lo no
personagem de Ualalapi, podíamos dizer que se trata duma personagem que se encontra
no processo da iniciação, esperando pelo seu despertar, que ainda não tinha vindo. Tal
como Moçambique. Neste caso, Ualalapi representa uma metáfora de Moçambique que
se encontra no caminho da sua viagem iniciática e espera pelo seu despertar que,
conforme o último discurso de Ngungunhane, chegará só com a revalorização da cultura
tradicional dos povos moçambicanos. Como a prova disso podia servir o facto que a
simbologia dos números que acompanha Ualalapi, está ligada com Moçambique.
“Desapareceu na floresta coberta pela noite, quebrando com o corpo as folhas e os ramos que os olhos ensanguentados não viam. Minutos depois o choro de uma mulher e duma criança juntaram-se ao não e ao ruído da floresta a ser arrasada. E o mesmo ruído cobriu o céu e a terra durante onze dias e onze noites, tempo igual à governação, em anos, de Ngungunhane, nome que Mudungazi adoptara ao ascender a imperador das terras de Gaza.”
(Ba Ka Khosa, p. 37) 123 Dutra, Robson: Quem tem medo de Ngungunhane? Sarará – Revista electrônica de literatura e de língua portuguesa. (Disponível em: http://www.revistasarara.com/int_pente_finoTexto05.html) 124 Ibidem. Aqui queremos aludir que reparámos no facto que Ualalapi fugiu para a floresta, mas, fazendo todo o possível, não encontrámos nenhuma outra personagem que chore do que a sua mulher e o seu filho. 125 Ibidem. 126 Hamilton, Russel G.: A literatura dos PALOP e a Teoria Pós-colonial. Via atlântica, n.º 3, Dezembro 1999, p. 17. (Disponível em: www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/665414.pdf)
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“Onze dias, onze noites, onze anos de governação de Ngungunhane, mas
também onze anos de governação de Samora Machel, na primeira fase pós-
independência” 127que tentou eliminar os movimentos culturais nativos, favorecendo a
cultura ocidentalizada.128
Para além disso, Mohamadou Kane, ao estudar as “formas” de sobrevivência da
oralidade na escrita, fala também da viagem iniciática que, no romance, “simboliza o
drama de África, dividida entre a tradição e a modernidade, e a viagem implica
aprendizagem, conhecimento, didactismo.”129
Partindo disso, podemos dizer que Ualalapi é o personagem principal. Como
todo o romance questiona o presente e o futuro de Moçambique através do seu passado,
é evidente que o enredo principal constitui o destino de Moçambique que é
personificado pelo personagem de Ualalapi.
4. Considerações finais Esperamos que este modesto trabalho tenha conseguido demonstrar que o
romance Ualalapi é um representante da metaficção historiográfica. A sua ligação com
a historiografia contemporânea é comprovada pela escolha dos acontecimentos e
personagens marginalizados pela História. O livro tenta retratar a imagem do império de
Gaza na véspera do seu desmoronamento pelos colonizadores portugueses. Mas a
ameaça do colonialismo e a negociação com os portugueses passam a segundo plano e
o narrador orienta-se mais para os acontecimentos ligados com a vida na sociedade
dominada pelos nguni. O seu interesse pelos personagens marginalizados pela História,
releva-se ora pela invenção dos personagens e acontecimentos com eles ligados (por
exemplo a estória de Mputa e a sua filha Damboia), ora pela simpatia com o vulgo. O
narrador também demonstra num processo transparente da escrita como a narrativa
histórica é construída, revelando assim ao leitor o carácter metadiscursivo do romance.
A perspectiva do abismo é muito frequente no romance – quer sob a forma da simples
reduplicação (por exemplo, a violência excessiva que caracteriza os métodos de
Ngungunhane espelha a brutalidade do Outro, do colonizador), quer sob a forma da
127 Leite, Ana Mafalda: Modelos críticos e representações da oralidade africana. Via Atlântica, n. 8, 2005, p. 160. 128 Ibidem, p. 152. 129 Apud: Ibidem, p. 150.
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reduplicação ad infinitum (neste caso, podemos mencionar como exemplo a estrutura
descendente das microestórias que se espelha nas estórias e, a seguir, em todo o
romance). Também não falta a paródia, outro elemento usado com frequência nas
metaficções. A estrutura do romance parodia: 1° o discurso histórico tradicional,
questionando a sua unidade narrativa, que é substituída pelas imagens da História, 2° o
narrador digno de confiança, uma vez que o narrador do nosso romance,
frequentemente, emprega as fontes forjadas ou da credibilidade duvidosa, 3° o carácter
coerente da escrita, visto que o romance é formado pelos seis contos, ou estórias, como
diz autor.
Com o carácter metadiscursivo é ligado o problema do papel do leitor que, com
a base dos seus conhecimentos acerca da narrativa histórica tradicional, deve descobrir
que se trata da sua paródia e também deve ser capaz de encontrar e interpretar as
perspectivas do abismo no romance.
Também é evidente a relação do romance com o presente. A memória-
mensagem é substituída por uma memória-diálogo e assim o presente recebe o novo
significado. O romance Ualalapi assim mostra que “a história e os mitos nacionais
moçambicanos podem ser lidos de maneira diversa.”130
O autor de propósito escolheu o discurso histórico europeu que, em seguida,
subverteu com o aproveitamento da oralidade africana. Desta fusão de oralidade com a
escrita nasce a “hibridez”, que Bhabha define como “terceiro espaço de enunciação,
que se situa entre duas culturas, beyond, isto é, para lá do antagonismo «centro» e
«margem», das categorias binárias self e other, inteiramente adequado à construção de
novas identidades, tanto da parte do colonizado como do colonizador.“131 Assim, o
romance Ualalapi, além de ser um típico representante da metaficção historiográfica
pós-moderna, é também o representante do pós-colonialismo africano na literatura que
visa voltar às suas tradições, mas não nega o legado europeu do que se apropria e que, a
seguir, subverte.
130 Dutra, Robson: Obra citada. 131 Apud: Meneses, Pedro: Resistência & Hibridez, p. 13.
42
5. Bibliografia: Literatura primária:
Ba Ka KHOSA, Ungulani: Ualalapi. Lisboa: Editorial Caminho 1998².
Dicionários, enciclopédias, manuais:
E-Dicionário de Termos Literários. (Disponível em: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/)132
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Entrevistas:
A escrita está em mim (Entrevista, concedida a Rogério Mangane, com Ungulani Ba Ka Khosa).
(Disponível em: http://www.maderazinco.tropical.co.mz/entrevista/ungula.htm) CHABAL, Patrick: Vozes Moçambicanos. Literatura e Nacionalidade. Vega 1994. Artigo: Ungulani Ba Ka Khosa, p. 309 – 315. SAÚTE, Nelson: Os Habitantes da Memória. Entrevistas com escritores moçambicanos. Praia – Mindelo 1998. Artigo: Ungulani Ba Ka Khosa (entrevista), p. 301 – 309.
Literatura secundária:
DUTRA, Robson: Quem tem medo de Ngungunhane? Sarará – Revista electrônica de literatura e de língua portuguesa.
(Disponível em: http://www.revistasarara.com/int_pente_finoTexto05.html)
132 Último acesso: 29.8. 2008. Válido para toda a literatura obtida por via de internet.
43
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(Disponível em: www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/665414.pdf) HRBATA, Zdeněk – PROCHÁZKA, Martin: Romantismus a romantismy. Pojmy, proudy, kultury. Praha: Karolinum 2005. HUTCHEON, Linda: The Canadian postmodern: a study of contemporary English-Canadian fiction. Toronto: Oxford University Press 1988. KAUFMAN, Helena: A metaficção historiográfica de José Saramago. Colóquio & Letras, n. º 120, Abril – Junho 1991, p. 124 – 136. KLÍMA, Jan: Mosambik (Stručná historie států). Praha: Libri 2007. LEITE, Ana Mafalda: Literatura Moçambicana: Herança e Reformulação. Sarará – Revista electrônica de literatura e de língua portuguesa.
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