MEMÓRIA POÉTICA: A CONSTITUIÇÃO DO MUNDO MEMORÁVEL
EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE GUIMARÃES ROSA
por
Aline de Mattos da Costa
(Aluna do curso de Mestrado em Teoria da Literatura)
Trabalho apresentado ao Orientador Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro como Dissertação de Mestrado, requisito para titulação em Mestre na Área de Teoria da Literatura, Programa de Ciência da Literatura.
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
2006
MEMÓRIA POÉTICA: a constituição do mundo memorável em Grande Sertão:
veredas, de Guimarães Rosa.
Aline de Mattos da Costa
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Mestrado em Teoria da Literatura
Orientador:
Manuel Antônio de Castro
Doutor em Letras.
Professor Titular de
Poética -UFRJ
Rio de Janeiro
2006
MEMÓRIA POÉTICA: a constituição do mundo memorável em Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa
Aline de Mattos da Costa
Dissertação submetida ao corpo docente da Faculdade de Letras - Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Aprovada por:
Prof._______________________________________________ Orientador
DOUTOR EM LETRAS- UFRJ
Prof.________________________________________________ DOUTORA EM LETRAS - UFRJ
Prof._______________________________________________
DOUTORA EM LETRAS - PUC
Suplentes:
Prof.___________________________________________________ DOUTOR EM LETRAS - UFRJ
Prof.___________________________________________________ DOUTOR EM LETRAS - UFRJ
Rio de Janeiro 2006
Costa, Aline de Mattos da. Memória Poética: a consGuimarães Rosa / Aline de M xi, 155 f.: il. Dissertação (Mestrado eInstituto de Pós-Graduação em Orientador: Manuel Antô
1. Ciência da Literatura 3. Letras- Teses. I. Castro, Mde Janeiro. Instituto de Pós-G
FICHA CATALOGRÁFICA
tituição do mundo memorável em Grande Sertão: veredas, de attos da Costa. – Rio de Janeiro, 2006.
m Letras) – Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Ciência da Literatura, 2006.
nio de Castro
. 2. Teoria da Literatura. anuel Antônio de. (Orient.). II. Universidade Federal do Rio
raduação em Ciência da Literatura. III. Título.
Dedico esta travessia a João Guimarães Rosa, que me permitiu
enveredar por um cosmos poético arrebatador.
Em sua memória,
este breve diálogo com o Sertão-Memória.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que me permite ser.
A Cristo, que me faz olhar os lírios do campo, num mundo cada vez mais
sem lírios e campos.
A minha mãe, pela coragem de me ofertar o estudo.
A meu pai, pela saudade do que não vivemos.
Aos meus sogros, pais no afeto e dedicação.
Ao meu noivo, pela compreensão e cumplicidade em todas as lutas e alegrias
deste trajeto. Amor e gratidão eternos.
Aos meus familiares e amigos.
Com admiração, a meu orientador, Professor Manuel A. de Castro,
pela dedicação e alegria no compartilhar das questões.
A todos os que sonharam comigo...
Eis o sonho em realização.
RESUMO
COSTA, Aline de Mattos da. Memória Poética: a constituição do mundo memorável em Grande Sertão: veredas. Diálogo poético com a obra em tema, tomando como eixo basilar a memória como questão ontológica. Orientador: Manuel Antônio de Castro. Rio de Janeiro: UFRJ/ Letras, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura).
Estudo da Memória Poética, baseado na obra Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Propõe reflexões sobre as questões do mito, da verdade, da linguagem, da narrativa, da travessia como poiesis. Investiga as concepções: memória como reminiscência e memória como vigor criativo.
ABSTRACT
COSTA, Aline de Mattos da. Memória Poética: a constituição do mundo memorável em Grande Sertão:veredas. Diálogo poético com a obra em tema, tomando como eixo basilar a memória como questão. Orientador: Manuel Antônio de Castro. Rio de Janeiro: UFRJ/Letras, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura).
Study of Poetic Memory, based on the workmanship Grande Sertão: veredas,
of Guimarães Rosa. It considers reflections on the questions of the myth, the truth,
the language, the narrative, the passage as poiesis. It investigates the conceptions:
memory as reminiscence and memory as creative vigor.
SIGLAS
GSv _ Grande Sertão: veredas.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .....................................................................................................1
2. MEMÓRIA COMO QUESTÃO: o embate dialógico entre memória reiterativa e
memória ontológica ..................................................................... 3
3. MEMÓRIA E MITO: a evocação de Mnemósine como a Mãe das Musas _ canto
poético e conto memorialístico inscritos num guenos mítico ........ ....................... 22
3.1. Memória e Musas : o guenos originante do poético-memorável ......................22
3.2.Memória e Moira : o destino como quinhão do memorável ..............................28
4.MEMÓRIA POÉTICA: a tensão velo / desvelo do ser nas lembranças e
deslembranças de Riobaldo em Grande Sertão: veredas ...................................... 32
4.1..Memória: lembrança e esquecimento enquanto dimensões do modo mítico de
ser no mundo rosiano ............................................................................................... 42
4.2.Riobaldo e a experienciação mítica de Memória e Moira ................................ 52
5. MEMÓRIA E TEMPO: o poético ponteiro das horas memoráveis .................. 58
5.1. Tempo de auroras e veredas .......................................................................... 61
6. MEMÓRIA E ALETHEIA : a questão da verdade no desafio de narrar o que a
memória guarda e protege .................................................................................... 64
6.1. Memória e Verdade: o verdadeiro, a coisa, o real _ pensamento platônico e
pensamento originário ......................................... 66
6.2. O pôr-se-em-obra da verdade: a obra como lugar essencial do advento da
Verdade ............................................................................................... 73
6.3. As veredas da Verdade em Grande Sertão .................................................. 81
7.MEMÓRIA COMO LINGUAGEM: o canto memorável em Grande Sertão:
veredas _ vida vivida, experienciada e narrada .................................................. 88
7.1. Quanto à narrativa como linguagem de indagação ....................................... 101
8. MEMÓRIA E TRAVESSIA : o entre de todo caminho memorável ............ 119
8.1.As travessias _ veredas _ da Grande Travessia: Sertão ............................ 129
9. CONCLUSÃO .......................................................................................... 149
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................... 151
INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca estudar a Memória como manifestação ontológica, na
qual a questão da temporalidade se move numa tensão vigorosa entre o “que foi, o que é
e o que será”.
Nessa perspectiva, trataremos da tensionalidade vigente entre lembrança e
esquecimento, vida e morte, saber e não saber, tomando como foco Grande sertão:
veredas, de João Guimarães Rosa. Escolhemos tal obra pela pertinência com a qual
celebra a memória para além da mera compreensão consensual de reminiscência.
Para tanto, realizaremos um breve embate dialógico entre as concepções
racionalizadas de memória e o pensar intrigado e instigante daqueles que se defrontaram
com a ação memorável enquanto vigor concriativo.
A fim de perscrutar a origem originária e originante do memorável,
empreenderemos uma busca pela compreensão da Memória desde a eclosão mítica,
quando Mnemósine se apresenta como a Mãe das Musas, estabelecendo seu vínculo
familiar, através do guenos, com a canção poética.
Assim, canto poético e memória encontram-se indissociáveis e nos permitem
vislumbrar a narrativa como a configuração do memorável por excelência. Isso
significa: o ato memorável instaurado pela narrativa se propõe como inauguração de
toda possibilidade de ser e perpetuar-se.
Desse modo, para além da cronologia insípida, a Memória que vislumbramos se
doa como Mistério na densidade fulcral de um Sertão pulsando no tenso caos de uma
cosmogonia inaugural, em que o vigor da temporalidade presentificante rompe com a
tripartida visão de tempo cerrada em passado, presente e futuro.
Nesse apelo reflexivo, empreenderemos uma travessia pelas veredas da Verdade,
buscando pensar a radicalidade de uma dinâmica que põe em xeque as noções de
verdadeiro, coisa, real, recolocando-as para além dos conceitos, num vislumbre do que
há de incerto, denso e misterioso em suas entrelinhas.
Num contínuo de indagação e encantamento, nossa caminhada prosseguirá pelo
Sertão como Linguagem - Memória, numa saga que se instaura como o dizer que mostra
e vela o sentido do mundo no próprio eclodir deste mundo como poiesis.
Assim, nosso movimento se envereda pela dinâmica do real que emerge
belamente nas páginas de Grande Sertão, buscando o caminho da escuta da Linguagem,
em seu clamor de pensamento e fascínio. Na travessia de tais questionamentos, faz-se
flagrante toda a plenitude da existência, como o duplo domínio de ser e não ser.
2 MEMÓRIA COMO QUESTÃO: O EMBATE DIALÓGICO ENTRE
MEMÓRIA REITERATIVA E MEMÓRIA ONTOLÓGICA
Quando falamos de memória, logo nos vem à mente a idéia de uma dialética
entre o que foi e o que é. Pressupõe-se no ato memorialístico o convite a uma
temporalidade que não mais vivenciamos, a momentos guardados conosco, a um
passado que tende a, inesperada ou propositalmente, ressurgir. Essa é a compreensão
consensual de memória, compreendida como feixe de recordações, ou seja,
etimologicamente, como “o que torna ao coração”.
Entretanto, a modernidade e suas contribuições tecnológicas nos apresentam a
máquina como portadora de uma memória que salvaguarda informações para delas
usufruirmos. Nessa memória configurada em bytes, não se deslindam recordações, mas
um acervo de elementos que, não apagados, nos lançam novamente a eles, tal como
permaneceram, à espera de nossas interferências. Cada vez que nela depositamos
informações, cada vez que acessamos as já armazenadas, estamos lidando com uma
memória que nada cria sem nossa participação.
A memória humana também se pauta nessa concepção de “armazenamento”:
decorar para, mais tarde, fazer uso do feixe de informações, constitui-se como um
processo mnemônico. Lembrar configura-se como extrair de um reservatório de
lembranças aquelas que podem contribuir com as experiências que hoje se deslindam.
A palavra memória guarda em si uma gama de sentidos que fluem por todas
estas possibilidades. Do grego mnhvmh, recebemos o significado de “ação de lembrar”,
ou ainda, de “o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito, documentos,
arquivos, preceito, prescrição”.1 O vocábulo, quando decomposto, nos diz: mnh-
1 JARDIM, Antonio.Musica: vigência do pensar poético.Tese de Doutorado. Faculdade de Letras, UFRJ, 1997.
unidade, e –mh, derivado do indo-europeu med, abarca ação de governar, pensar,
sonhar ou medir. Portanto, podemos compreender memória como a ação de governar,
pensar ou medir a unidade, imbuída dos sentidos de meditar, refletir, inventar (já na
forma alongada de mhn), assim como velar (como cuidar) a unidade.2
No alemão, a herança etimológica faz-se igualmente rica: Andenken_Memória_
é um vocábulo que se compõe do verbo denken (pensar) e da preposição an (em, ao lado
de), daí seu sentido corrente de recordação, lembrança. Compreendida como pensar em,
memória encontra-se com seu vigor originário3. Dentro dessa perspectiva, Heidegger
desenvolve seu pensamento, tomando memória para além da concepção de
reminiscência, como testemunhamos em: “A memória se distingue essencialmente do
presentificar posterior da história no sentido do que transcorreu no passado. A história
não se processa primordialmente como acontecimento. E esse não é
transcorrer.”(HEIDEGGER, 1967,p.58).
Memória como “pensar em” nos diz de um movimento dinâmico e reunidor, no
qual o que é memorável se processa como o que a especulatio nos permite experienciar
enquanto instauração de realidade _ acontecer_ que não se define como transcorrer
porque não se confunde com a mera ocorrência (acontecimento, enraizado num
passado).
Dos múltiplos semas que a palavra comporta, adentramos, pois, em sua inscrição
originária: a de que memória se configura como a instância em que a unidade da
presença se potencializa, ou melhor, torna-se vigência.
Iniciamos aqui a caminhada por uma dimensão de memória ainda não deslindada
nestas linhas. Uma memória que nos soa como mistério e paixão. Memorialística que
2 Idem, ibidem. 3 HEIDEGGER, Martim. Carta sobre o humanismo. Tempo Brasileiro, 1967, p.58.
comporta uma temporalidade sem fronteiras, na qual o passado, o presente e o futuro se
diluem e tudo passa a girar numa dinâmica de intensa verticalidade entre “o que foi, é e
será”.
A memória que assim se nos apresenta, enevoada pelas brumas do enigma, é a
memória ontológica. Nas vias e desvios desta memória é que desejamos nos empenhar.
Contudo, para que isso seja possível, necessitamos compreender o que nos levou a de-
finirmos memória ora como mera lembrança, ora como armazenamento de informações.
Para compreendermos melhor como se dá a configuração memorialística na obra
Grande Sertão, estudaremos as concepções de memória em pensadores cujas reflexões
muito contribuíram para a formação e estruturação do plexo ocidental.
Platão trata da memória no Diálogo de Fedro (PLATÃO, 2005). Neste, Sócrates
narra a seu companheiro a invenção da escrita. Mas sua narrativa, a fim de que ressoe
como vigor e plenitude, só pode realizar-se a partir do mito. E é o mito egípcio do deus
Thoth quem nos desvela o caminho para o pensamento socrático.
Mas antes da narração do mito, vestígios vigorosos da palavra memória podem
ser flagrados desde o início do Diálogo.
“Fazer uma experiência de memória”(PLATÃO, 2005: 228, p.58) era o que Fedro
viria a realizar com Sócrates, caso este lhe pedisse para reproduzir o discurso de Lísias.
Entretanto, o mestre solicita não que o discurso seja narrado conforme a lembrança do
rapaz, mas sim que seja lido, visto que “estando o próprio Lísias desse modo presente”
(op.cit,p.58), o melhor seria deixar que ele mesmo, pela obra, se pusesse a falar.
Neste pequeno, mas fundamental trecho, percebemos a compreensão de memória
que Fedro possui, enredada na idéia da rememoração _ visto que é a partir das
lembranças das palavras do orador que o discurso se reconstituiria e que “a experiência
de memória” aconteceria. Junto a esta concepção, Sócrates deixa vislumbrar uma
dimensão mais densa e misteriosa de memória, na qual é o operar da obra quem, de fato,
presentifica o discurso e, faz dele, um ato memorável.
Nessa perspectiva, o próprio discurso se presentifica por si mesmo, instaurando
seu sentido em vigência plenificadora. A oratória de Lísias irrompe, no próprio ato de
narrá-la, como a possibilidade de configurar realidade. Não há, pois, a necessidade de
“decorar” as falas e / ou idéias do orador. Estas se tornam presentes no momento em
que são pronunciadas. É o pronunciar que inaugura a verdade e o sentido do
pensamento lisiano.
Repetir, como modo de trazer de volta o discurso que vigorara já numa instância
de passado, não dá conta da densidade na qual Sócrates compreende a memória. Esta
não faz retornar o discurso que ficou para trás. Sua vigência consiste em que, enquanto
o operar da obra aflora, através da narração (leitura) do discurso de Lísias, o próprio
discurso se realiza como sendo, vigorando como o que, a cada vez, simplesmente é.
Esta pequena flama já nos permite suspeitar as futuras chamas nas quais se
descortinaria a reflexão socrática. Esta, para alcançar as labaredas do vigor do
pensamento, nada mais pode fazer a não ser dizer-se a partir do dito do mito. E é,
portanto, o mito da invenção da escrita pela divindade, que potencializa a conjuntura
deste itinerário questionador.
Thoth, inventor de muitas artes, apresenta ao soberano divino Tamuz sua mais
nobre invenção, a escrita: “Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes
fortalecerá a memória, pois com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e
a sabedoria.” (PLATÃO, 2005, p. 119).
Nesse momento, fica-nos clara qual a concepção de memória que se engendra
por estas linhas: a partir da utilidade de tornar os egípcios mais sábios e de fortalecê-los
na memória o que testemunhamos é a idéia de memória como rememoração /
memorização.
A necessidade de rememorar, relembrar e, assim, mostrar-se com o conteúdo
eficazmente memorizado é o que se constitui como serventia da escrita em seu advento.
Contudo, a sabedoria de Tamuz intervém:
“Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é
inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que
dela advirão para os outros! Tu, como inventor da escrita,
esperas dela e com entusiasmo, todo o contrário do que ela
pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois
que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória,
confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um
assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e
não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um
remédio para a memória, mas para a rememoração”.
(PLATÃO, 2005, p. 121).
Nas sábias palavras do deus, a memória de que fala Thoth não toca na essência da
memória originária. Esta não pode ser reduzida ao rememorado ou esquecido, tanto
quanto não se dilui no aprisionamento dos caracteres gráficos. A vigência da memória
das origens reside muito mais próxima da tradição oral do que da escrita.
O mito egípcio nos remete a um tempo e a uma espacialidade em que dizer, e não
escrever, comporta a plenitude da vida. Nas eras ágrafas, o pronunciar se fazia sagrado e
inter-ditava o não reverenciar de sua vigência..
No âmbito da pronunciação do mundo, o falar implicava a ordem das coisas e a
concretude da realidade que todos, enquanto comunidade-ouvinte, co- memoravam.
A memória, nas instâncias do dito e do não-dito, desvelava-se como musical. Sua
musicalidade imbricava-se na certeza de projetar em si mesma e a partir de si, o sentido
de ser.
Daí, a frustração de Tamuz diante da compreensão de memória vivenciada por
Thoth. A rememoração, que seria beneficiada amplamente pela tradição escrita, não
consegue comunicar-se com a memória enquanto vigência do dizer essencial.
Daí, mais esquecidos ficarão os homens, à medida que “lembrarão de um assunto
por forças exteriores”(op.cit.,p.119) A exterioridade aqui tratada nos ressalta a distância
que as gerações grafas desenvolverão do real em si, substituindo-o por um real
representado (em signos escritos).
A memória em si nada depende de uma exterioridade que lhe dê vigência. Desse
modo, seu operar vigora no sentido que se instaura de sua própria floração como
realidade.
À medida que o grego pharmacon _ aqui concebido como “remédio para a
memória”_ pode ser tanto o veneno quanto o antídoto, a dubiedade da escrita tanto
denota benefício quanto dolo. Ser um “remédio” para a rememoração é igualmente ser
um veneno para a memória, afastando os homens do sentido originário da memória de
ser.
A dicotomia que assim se descortina trabalha com a oposição oral / escrito, mundo
real e simulacro. Longe de adentrarmos nestas questões, neste momento, cabe-nos,
refletir sobre a visão mítica da existência que ainda se insinua nas entrelinhas do
Diálogo e que, paulatinamente, daria lugar à racionalidade ocidental.
No mito, dizer e ser são o mesmo. Assim, a memória não pode viger numa
dinâmica que a ela seja exterior. Daí não se oferecer através do escrito. A grafia, como
sinais representativos, não evoca a memória em seu vigor de suscitar mundo. Afinal, a
escrita já surge envolta numa aura de representação, concebida como símbolo do sonoro
que, antes, faz-se símbolo do pensamento.
Nessas reflexões, oralidade e escrita se polarizam como representações distintas de
linguagem. Dessa forma, constituem-se como simulacros do inteligível, que vige no
mundo platônico das idéias. Embora sob a égide da dicotomia, por entre a tese socrática,
ainda se deslinda, veladamente, o mundo como dizer essencial.
Nessa dimensão, presenciamos: somente no rito da pronúncia do mundo é que
este se institui como realidade. O real precisa ser dito e não dito para que venha a ser.
Nesse modo, a memória não necessita grafar-se, pois ela mesma está escrita na memória
das coisas que vigem. É no viger incansável das coisas que brotam “os assuntos em si
mesmos”, sem qualquer pendência com um sinal que lhes concretize.
Entretanto, a reflexão socrática não termina assim. A partir da polarização oral/
escrito surge o viés intrigante de um terceiro caminho, onde o vigor do dito essencial se
interpõe: a possibilidade de uma escrita que diz, vigorando como o ser das coisas.
A escritura que se deslinda nesses termos comporta a abrangência genesíaca de
“plantar discursos auto-suficientes”(op.cit.p.125), os quais são tecidos com a “sabedoria
da alma” (op.cit.p.121), configurando-se “capazes de defender a si mesmos” (id. , ibid.).
A auto-suficiência que carregam nos revela o quanto a escrita destes discursos
compactua com as veias mais primórdias da oralidade, nas quais o mundo se
concretizava a partir das vozes que o invocavam.
Auto-geradores de mundo, semeadores de verdades, os discursos que conseguem
“ir de viva voz, além do escrito” (op.cit. p.129) são os que se constituem como
portadores da memória originária que, embora abarque a rememoração, não se finda
nesta, trilhando o rumo da potenciação mundificadora.
O Diálogo de Fedro nos brinda com a possibilidade de vislumbrar a percepção
mítica de memória contra a qual, infelizmente, as civilizações futuras fariam o caminho
do esquecimento.
Embora seu pensamento evoque a polarização do real, segmentando a existência
em estruturas opostas, Platão ainda nos permite escutar o ressôo da voz mítica. Esta,
ultrapassando as dicotomias entre oral / escrito, simulacro / verdade, nos suspende na
encruzilhada dos discursos, que aponta para a tríplice possibilidade: a que não se reduz
a este ou aquele caminho, mas diz da existência de uma terceira via_ onde oral e escrito
convergem-se, originantes, na obra poética. Obra esta que opera a memória enquanto
sentido e vigência essenciais.
Nessa perspectiva, não é o escrito que potencializa a memória. Afinal, mais do que
lembrança ou revitalização do signo, a Memória originária é o dizer essencial que, ao
ser pronunciado, presentifica, configurando mundo (s).
A compreensão de memória como rememoração, por Thoth, só nos vem a
confirmar como foi se perdendo progressivamente o caminho do mito e, com isso,
cerraram-se os ouvidos para a escuta do dito memorável.
O ego cogito cartesiano apresenta-se como um pensamento que ratifica tal
concepção de memória, já que delega ao homem enquanto animal racional, via
Sócrates, a plena detenção de sua vontade e direcionamento na vida.
Ao longo das épocas, do Renascimento, passando pelo Iluminismo, até alcançar
nossa contemporaneidade, a visão do homem como aquele que, através do saber,
domina o mundo, muito contribuiu para que a memória também fosse compreendida o
como produto da subjetividade.
A idéia de humanismo que, na modernidade, tem-se difundido, nos fala de uma
valorização exacerbada da figura do homem, colocando-o como sujeito, agente das
transformações no mundo, interferindo consideravelmente nas leis da natureza e na
constituição de um projeto histórico.
O caminho rumo à subjetividade moderna bebe nas fontes platônicas do Mundo
das Idéias (PLATÃO, A República, 2003). Ao separar o mundo entre sensível e
inteligível e colocar no âmbito da transcendência o eidos, definindo verdade a partir da
relação de equivalência entre enunciado e enunciação, Platão nos remete às nascentes da
concepção de sujeito como aquele que detém a essência do agir, determinada sob sua
vontade. Dentro desta ótica, a memória é vista como um mero reservatório de imagens
passadas que são despertas por emoções e percepções que surgem do sujeito para o
mundo e do mundo para o sujeito.
Entretanto, esse mesmo homem que, a princípio, detém o saber que lhe possibilita
o direito sobre a terra sente-se, diante da realidade perigosa e intrépida da vida, muito
mais frágil do que a consensual compreensão da humanitas lhe outorga compreender-se.
Tal fragilidade se dá por não atentarmos, enquanto humanos, para o fato de que a
vida ultrapassa as barreiras de nossas determinações subjetivas e ganha força no que há
de perigoso e imprevisível enquanto jornada de mistério.
Daí a humanitas do homem não poder ser medida pela falácia da subjetividade.
Afinal, a medida que redimensiona o homem em sua essência é aquela que lhe permite
ser. E, para ser, faz-se necessário abrir-se para o diálogo com a vigência de Ser, diálogo
este que nos é casa: linguagem.
A questão da subjetividade enquanto herdeira do ego cogito ou mesmo do id
freudiano nos trazem a foco uma visão de memória marcadamente artificial,
dimensionada entre “eu profundo” e “eu superficial” que, por não suportar a força da
concretude da existência, nada consegue criar, a não ser reiterar ou adormecer no
esquecimento.
Nessa perspectiva, estudemos os caminhos percorridos por Henri Bergson
(séc.XIX /XX), a fim de adentrarmos mais profundamente na compreensão do
memorável. Caminhos estes marcados pelo ideário do sujeito como o detentor da
memória individual e coletiva.
Para Bergson, a memória apresenta-se como “a principal contribuição da
consciência individual na percepção, o lado subjetivo de nosso conhecimento das
coisas” (BERGSON,1990,p.31). Neste viés, lembrar se constitui como um movimento
do sujeito, um direcionamento do espírito na busca por compreender o que se lhe
apresenta sob a forma de matéria.
Para o filósofo, existe a percepção concreta e complexa _ as quais as lembranças
preenchem e que oferecem certa espessura de duração_ e a percepção pura, mais de
direito que de fato, sem memória_ constituinte de uma visão imediata e instantânea do
real (op.cit. p. 31-32). Dividindo assim a apreensão da realidade entre a percepção e a
memória (a qual, segundo ele mesmo, abarca toda percepção, na medida que perceber é,
desde sempre, reconhecer), o teórico nos apresenta conceitos nos quais persiste a idéia
de uma “lembrança pura” e de uma “percepção pura”, virtualmente afastadas de sua
realidade híbrida e indissociável.
Bergson nos lança ainda seu conceito de temporalidade como “fluxo contínuo da
vida interior, como o escoamento ininterrupto da consciência humana”.(BERGSON
apud GUIMARÃES, 1994)4 Se enveredarmos por tal caminho, teremos um memorial
que se constitui na realidade subjetiva em seu “escoar-se através do tempo”.5 Tal
assertiva nos levaria a pensar que as lembranças são reflexos da interioridade da
experiência individual, da consciência, numa dureé6 que, sendo ininterrupta, não pode
abarcar os vazios.
Seria esta memória sem lacunas, direcionada por um sujeito_ a memória viva e
concreta que nos envolve em seu torpor e verdade? É real a compreensão do memorável
por sob os desígnios da consciência e da percepção humanas? Pensemos um pouco
mais.
A fim de aprofundar sua teoria, Bergson dilui a experiência humana em eu
profundo e eu superficial7,associando ao primeiro a dureé e ao último, a
descontinuidade. Dessa maneira, tudo que se manifeste como descontínuo é entendido
igualmente como superficialidade, incluindo-se aqui a noção de fragmento.
Daí, na compreensão bergsoniana, a memória ser o resgate subjetivo das
experiências vividas, num tempo que se apresenta como mobilidade ininterrupta,
pressupondo a indivisibilidade do movimento e as contínuas sucessividades. Como eco
das sensações, a memória traz novamente o que foi, agora remodelado tanto pela
operação consciente (no âmbito do espírito) quanto pela percepção (âmbito da matéria),
que podem, inclusive, falhar. Daí, as lacunas do esquecimento serem consideradas como
“erros” da rememoração, diante do todo indivisível que é o tempo.
4 GUIMARÃES, Maria Lúcia. A conversão proustiana do tempo perdido no tempo redescoberto. In:Revista da Faced / Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Salvador: FACED /UFBA, 1994.N.5.2001:153-182, p:162. 5 Idem,ibidem. 6 Idem,ibidem. 7 Idem,ibidem.
Nesse viés reflexivo, percebemos que a concepção de memória como produto da
subjetividade não corresponde à memória originária. Isto porque coloca o homem no
centro das decisões sobre o que lembra e o que esquece, através das noções de
consciente, subconsciente e inconsciente.
Em suas teorias, Bergson desenvolveu, ainda, as noções de memória-hábito e
memória espontânea8. Na primeira, teríamos como exemplo todo esforço repetitivo que
acaba se tornando habitual, daí sua nomenclatura; noutras palavras, poderíamos
entendê-la como nada além da mecanicidade da memorização, sempre atrelada à
percepção sensório-motora, o que nos aponta uma compreensão positivista do ato
memorável.
Quanto à noção de espontaneidade, a tese bergsoniana apresenta as
reminiscências que nos assaltam, independentes de nosso desejo ou procura, como o elo
dessa experiência involuntária.
Nessa diretriz, podemos até voluntariamente decidir buscá-las, mas esta busca não
necessariamente nos trará ao encontro o que procuramos. São estas as lembranças que,
num processo espiritual, evocam o passado como imagens que se imprimiram na
memória. Tais recordações contêm ainda a prerrogativa, reversa da outra, de não se
repetirem.9
Daí as duas formas de memória serem caracterizadas como, respectivamente, uma
memória que imagina e outra, que repete. Importante salientar que a lembrança
imaginativa intervém continuamente na formação da lembrança-hábito (reiterativa).
A imaginação que ora se descortina como constituinte da memória não alcança a
densidade da memória ontológica. Isto porque se apresenta delimitada pela visão de
8 Bergson, H.In: Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 86. 9 Idem, ibidem.
subconsciente, no qual as lembranças ficam impressas para um futuro resgate atualizá-
las como tempo vivido e recordado. À espera deste resgate atualizador, as lembranças
permanecem adormecidas até que a força de uma funcionalidade lhes redescubra para o
despertar, momento no qual se fazem memoráveis.
Desse modo, na perspectiva bergsoniana, a memória espontânea, para que efetive
sua utilidade em nossa relação com o mundo, precisa “substituir a imagem espontânea
por um mecanismo motor capaz de supri-la” (op.cit.,p.93). Esta necessidade de acionar
a memorização a fim de torná-la útil perpassa pela despotenciação do acaso10.
Contrapondo-se ao caos como partícipe da memória, Bergson imprime ao ritual
memorialístico um movimento de adequação do que é fugidio a uma dada estabilidade.
Ou seja, é necessário que o instável das recordações “espontâneas” seja substituído pelo
estável da proposição “recordação / memorização”(fato verídico / memória verdadeira.
A memória estabelece-se, por suposto, através do princípio do reconhecimento11, o qual
pode ocorrer tanto por distração, automaticamente, (realizando-se sobretudo por
movimentos) quanto por atenção (começa por movimentos, mas pauta-se na
intervenção das imagens-lembranças). É na atenção que a percepção se torna mais
intensa e na qual se destacam os detalhes.
Nessa dinâmica, rememorar é “deixar o presente para nos recolocarmos no
passado geral e depois numa certa região do passado: trabalho de tentativa, semelhante à
busca do foco de uma máquina fotográfica” (BERGSON,1990, p.156). Como ajuste de
“foco”, lembrar é simplesmente localizar uma dada situação passada. Tal concepção de
lembrança não corresponde à experiência ontológica de memória, visto que se mantém
num ditame que outorga a segregação artificial entre passado / presente / futuro e a
inviabilidade de uma recordação caso esta não consiga ultrapassar a idéia de “imagem- 10 GUIMARÃES, Maria Lúcia. Op.cit,, p.154. 11 BERGSON, H. Op.cit.,pp:110-111.
lembrança” para se adaptar aos mecanismos propositivos entre lembrança e fato
verídico, legitimada aquela pelo reconhecimento que a memória realiza deste. Ressalte-
se ainda que é a funcionalidade da recordação no presente que a torna ou não um ato
memorável.
Contrapondo o útil e o inútil na noção de memória, Bergson nos aponta o
caminho por demais abarrotado de pragmatismo do pensamento moderno.
Nesse viés, as acepções de subjetividade, de fluxo progressivo e de despotenciação
do acaso a que nos direciona o pensamento bergsoniano não correspondem à
experienciação memorável em sua plenitude. A subjetividade nada mais é do que uma
falácia da metafísica, que vem se arrastando ao longo das épocas; a noção de fluxo
progressivo anula a possibilidade da intermitência, tão concreta em nossas
experienciações de ser e não ser; e, por conseguinte, a negação do acaso só nos remete à
triste herança da racionalidade que, por não compreender o caos, rejeita a própria
intensidade constitutiva de sua existência.
Diante das prerrogativas de Bergson, a fim de travar um embate do pensamento,
convidamos Marcel Proust em nosso auxílio. Sua compreensão do ato memorável muito
nos ajuda a penetrar na densidade poética da memória e, sinonimicamente, em sua
dimensão ontológica.
Primeiramente, cumpre atentarmos para o fato de que, na reflexão proustiana, a
memória também se inscreve sob o signo da dualidade: memória voluntária e
involuntária12. Contudo, nuances distintas configuram tais concepções.
Convém salientar que Proust compreende o tempo como descontinuidade.13
Desse modo, contrapõe-se à tese bergsoniana de uma temporalidade ininterrupta,
12 PROUST, Marcel apud GUIMARÃES, M.L. in: A conversão proustiana do tempo perdido no tempo redescoberto, 1994, p.155. 13 GUIMARÃES, M.L. Id.,ibid., p.164.
compreendida como continuidade progressiva e todo indivisível14. Além desta assertiva,
faz-nos pensar que toda temporalidade abarca uma projeção nos inúmeros segmentos
espaciais. Sendo assim, sua busca do tempo equivale à busca do espaço perdido: “o
tempo dura porque se imprime no espaço” (op.cit.,p.164). Toda distância é, por suposto,
a separação de uma época em relação à outra, de um lugar a outro.
Na compreensão de memória involuntária, Proust considera a irrupção repentina
como “fragmentos privilegiados de um passado sempre vivo” (op. cit, p.167). Em
Bergson, a involuntariedade se distingue, por compreender a mesma irrupção como
meras fragmentações inertes, retiradas de um passado que se conserva “virtualmente
integral” em algum ponto, impotente até que seja resgatado como memória útil à vida
presente. Desqualificado de qualquer vigor, o passado só retorna à mente se toma
emprestada a vitalidade da percepção atual.15
A vigência das lembranças não é deslindada pela ótica bergsoniana, enquanto
Proust a dimensiona não apenas no pensamento teórico, como também em sua criação
poética Em busca do tempo perdido. Buscar o tempo é, desde já, crê-lo não perdido,
mas sim, à espera de toda possibilidade de redescoberta.
Na visão proustiana, a memória voluntária também coopera com a involuntária,
trazendo as reminiscências, brotadas na aparente desconexão do acaso, a contornos
nítidos.16 Entretanto, é no vigor da espontaneidade, ou seja, na irrupção da nulidade do
sujeito, que a vida ganha sentido memorável.
Em tais reflexões, a fragmentação surge como intermitência primordial,
realidade profunda, o que deflagra o primado do instante e, por suposto, a infinitude do
ato criativo da memória: “a linha segmentada do sucessivo propicia a infinita recriação
14 Idem,ibidem,p:165. 15 BERGSON, H.Op. cit.,p.168. 16 Idem,ibidem.
temporal” (GUIMARÃES, 2001, p.168). Assim, os lapsos de memória não mais
assinalam falhas no processo mnemônico. Antes, representam um corte no fluxo
temporal, no escoamento do tempo, formando cadeias isoladas, mundos completos,
como brechas abertas na totalidade descontínua do tempo.
Assim é que o instante, o fragmento, ganha enfoque na tese proustiana: a
repetição e a interpolação das recordações é algo intenso, no qual cada lembrança
recebe o estatuto de um total isolamento, marcado pela originariedade da
reminiscência17.
Desse modo, o tempo, quando decomposto em “fatias de lembranças”
(GUIMARÃES,op.cit.,p.169) _ significativas em si mesmas_ abarca a simultaneidade
que alcança harmonizar momentos incompatíveis em elos indeléveis. A memória, então,
surge não como perda (no esquecimento) nem como reconstituição. Memória é, desde si
mesma, transubstanciação (op. cit.,p.170).
A transubstanciação aqui delineada nos remete à temporalidade de mistério e
poesia pertinente à Memória, configurada na verticalidade de um tempo denominado “o
que foi, é e será”. Este quando, sem cadeias limítrofes, concretiza o memorável como
vigor e vigência.
É esta transubstancialidade o que nos permite a coadunidade de todos os tempos
num mesmo, no qual as “sensações eram simultaneamente experimentadas no momento
atual e num momento longínquo” (op.cit., p.172).
Dentro desta perspectiva, na há fronteiras entre “ter sido” ou “ estar sendo”, pois
tudo é no mesmo movimento da vida, a qual não segrega as experienciações em “antes”
ou “depois”, mas as reúne na acolhedora possibilidade do infinito como o sempre
presente. 11 Idem, ibidem, p:165.
Dessa forma, a teoria de Bergson perde força, na medida que, compreendendo a
durée como jorrar ininterrupto,considera a repetição improvável e a possibilidade de
lacunas ou simultaneidades, falácias da consciência. Além disso, a subjetividade
enquanto diretriz do memorável também pode ser questionada. Afinal, cada recordação
é mais do que projeção de uma consciência individual. Sendo repentina e inesperada,
não se limita ao determinado pela racionalidade de um sujeito que se propõe dominador
de sua temporalidade.
O tempo, que o acolhe e aflige, é algo maior e mais complexo do que o homem
pode medir ou direcionar. Assim as lembranças são menos escolhas de nossa mente que
vertigens poderosas de uma dimensão em que anulam-se passado e futuro e o que nos
fica é o sempre presente da temporalidade memorável.
A temporalidade da memória, por ser poética, consiste, tomando como
empréstimo as palavras de Otavio Paz, numa dimensão “temporal que flutua, por assim
dizer, sobre o tempo, sempre com avidez de presente” (PAZ, 1982,p.227). Nesta, o
acontecer memorialístico entoa o mesmo canto do acontecer poético, em que “o tempo
cronológico_ (...)_ sofre uma transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de ser
sucessão, instante que vem depois e antes de outros idênticos e se converte em começo
de outra coisa” (id., ibid.). O começo que assim se instaura é a inauguração potencial de
toda criação: memória e história da condição existencial do homem ao viver e produzir
(no) mundo.
Vida e produção tornam-se configurações memoráveis, pois é a memória que as
dimensiona em sua vigência e vigor. O acaso potencia o mundo como lugar do mistério
e do imprevisto. Recordar não mais se assume como a certeza factual de um tempo
vivido.
O real se constitui, por conseguinte, na temporalização que a Memória
estabelece nos elos entre “ter sido, sendo e será” que, permeados pela riqueza de Ser, se
interpenetram do caos e do cosmos, do acaso e da previsibilidade.
A experienciação profunda do memorável é, desde si, recriar o tempo, vivê-lo no
momento mesmo em que se presentifica como sendo e não sendo.
Memória assume-se então como a abertura e a reunião de mundos, vigência de
toda harmonia entre a sucessividade e a intermitência, o esquecimento e a lembrança.
É nessa dimensão que o Sertão rosiano nos permite experienciar a concretude da
vida e da morte nas teias do Tempo Memorável. A Memória, pois, vela-se e desvela-se
no cerne da existência, através do tecer e destecer do real como acontecer poético.
3 MEMÓRIA E MITO: A EVOCAÇÃO DE MNEMÓSINE COMO A
MÃE DAS MUSAS: CANTO POÉTICO E CONTO MEMORIALÍSTICO
INSCRITOS NUM GUENOS MÍTICO
3.1 Memória e Musas: o guenos originante do poético-memorável
É no pensamento mítico que podemos vislumbrar como Memória é gerada no
âmago da Totalidade_ sendo filha de Ouranos e Gaia _ o que a configura como aquela
que abarca o Ser e o Não ser, que a tudo corresponde. É na vigorosa teia desse enlace
amoroso entre os Fundamentos inabaláveis da existência, tanto de mortais quanto de
imortais, que surge a fonte do esquecer e do lembrar nomeada Mnemósine.
Mãe das Musas, em conúbio com Zeus, Memória celebra a instauração de uma
nova ordem divina gerando as nove filhas da vigência poética:
“Para tão grande triunfo (a vitória de Zeus sobre o Khaos), a comemoração de uma noite não basta, pensam os deuses. É preciso registrar a façanha na própria memória do tempo. É preciso cantá-lo para sempre a todos os cantos do mundo” (parênteses nosso).
Cabe a Zeus engendrar os seres que haverão de celebrar a vitória através dos séculos. O rei do céu e da terra
escolhe para ajudá-lo na missão, a titânia Mnemósine, a própria memória: nada seria esquecido quando dito por alguém gerado no seio dela”.(PESSANHA apud JARDIM, 1997).
Como mãe daquelas que portam o sentido do canto e a canção da existência, a
Memória surge como a nutriz desse canto e, por extensão, como deflagradora de toda
possibilidade de ser. Isso significa o que em nós já está inscrito: fomos, somos e
seremos somente no âmago de um ritual memorialístico. Ritual aqui não diz de uma
repetição mecânica de gestos ancestrais, mas sim de um agir constantemente genesíaco
e inaugural, que cura e recupera o sentido da vida como experiência.
Sem memória, não há ser, pois não há a constituição e a salvaguarda do mistério
profundo de existir. Configurar este mistério é uma doação da Memória, na medida em
que é ela quem nos dimensiona seres ambiguamente finitos e eternos. Mas tal doação
precisa ser ofertada aos mortais, e esta oferta nos acontece vigorosamente pelo (e no)
Canto Musal.
Assim, a canção que cantando concria existência perpassa pelas brumas
originárias da Memória mítica, delineando as vozes de suas filhas Musas, como uma
voluptuosa entrega do mistério aos meros mortais. Porém, entrega não significa
resolução do enigma, mas partilha do insondável, no mais profundo sigilo da Fala do
Mundo.
Mas como se dá a Memória no seio originário do mito? E como esta doação
corresponde à doação do memorável nas veredas do Grande Sertão rosiano? Em que
momentos Riobaldo encontra a possibilidade de uma memorialística divina? Onde canto
poético e conto memorialístico se entretecem na vigência de uma travessia?
Nessa trilha de questões, propõe-se o pensar de agora.
No pensamento originário grego, ilatência, mito, culto e canto se apresentam
numa coadunidade indissociável18.O mito das Musas se inscreve no modo fundante
dessas quatro dimensões. Nessa perspectiva, dizer mito é dizer culto, na medida que o
ser mítico se oferece aos mortais pelo ato cultual. Mas também dizer culto é pronunciar
canto, à proporção que é pelo cantar que Deuses e mortais estabelecem o diálogo da
doação de mundo. O canto cria a essência mesma desse mundo, confraternizando os
homens numa concriação de existência, de mundificação.
As Musas são, portanto, mais do que divindades que celebram o mundo pelo
canto. Elas são o próprio canto que configura mundo, ou noutros termos: o próprio
mundo que se oferece como canto. Daí serem “palavras cantadas”(TORRANO,
1992,p.21) guardando o profundo mistério do sentido de palavra que, ultrapassando as
esferas lingüísticas, conflagra-se doação do ser.
Ser se inscreve no duplo domínio do silêncio e do som, o que significa que as
Musas cantam num modo tanto eloqüente quanto silente. Nesse canto enigmático,
interpelam os mortais a participarem do divino saber, saber este que não se limita à
imagem etérea do inteligível, mas se oferece como a sabedoria plena da experienciação
de existir e de mundificar.
É por tamanha vigência de ser que o primeiro nome que se pronuncia na
Teogonia é Musas. Por outra palavra, o canto não poderia começar19. Por outro
chamado, o mundo não seria evocado à existência. Por outro nomear, nem mesmo o
silêncio se apresentaria como vigorosa mundificação.
São, pois, as Musas que regem o canto do mundo, tornando presente a
possibilidade de sermos. Como poder de presença e de presentificação20, permitem-nos
18 TORRANO, Jaa. O Sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo: Iluminuras, 1996, p.17. 19 TORRANO, J.Op.cit.,p: 21. 20 Id.,ibid.,p:22.
compreender que o ser nosso e de tudo o que nos rodeia (sendo e não sendo) irrompe e
se manifesta através do canto musal.
Através aqui diz não a mediação, mas o entre de todo diálogo originário.
Dialogamos com as Musas (e isto significa dialogamos com o mundo por elas revelado)
numa inter-mediação em que o sentido do divino e do humano excedem a compreensão
dialética e se desvelam, velantes, numa unidade indelével.
A manifestação das Musas comporta, portanto, nesta unidade de contrários, tanto
o esplendor da diacosmese diurna quanto o negror das densas trevas noturnas. Filhas do
luminoso Zeus, mas também da nebulosa Mnemósine, as Musas proclamam a
fasticidade e a nefasticidade da existência.
Assim, o Canto Musal é o porta-voz de nosso próprio canto. Constituindo nossa
existência, nele e por ele, encontramo-nos com o sentido poético de ser e realizar, no
qual poeticamente o homem habita esta terra21 e constrói (recebe) o (s) mundo(s), que a
partir dela se erige(m).
Se são as Musas que presentificam o mundo, o que a Memória nos delega como
mãe-nutriz dessa presentificação?
Como mulher do Deus, Mnemósine se situa entre Demeter e Leto.22
Contigüamente à primeira, articula as forças do Visível e do Invisível; à segunda,
corresponde seu poder de luminosidade celeste. No eterno feminino que se transmuta
nas três deusas aqui destacadas, brilha e se ofusca o vigor essencial de toda
manifestação memorialística.
21 HEIDEGGER, Martin. Poeticamente o homem habita. In: Ensaios e Conferências.Petrópolis:Vozes, 2001. 22 TORRANO, Jaa. Memória e Moira. In: HESÍODO. Teogonia (estudos e tradução). São Paulo: Iluminuras, 1992, p.70.
É a Memória quem opera a decisão entre o Ocultamento / esquecimento e a
Aparição / lembrança23. É na mesma vigência que o canto memorável ecoa como um
chamado ambíguo ao oblívio e à recordação. Tal evocação dúbia não se resume à
sucessividade de ora lembrar, ora esquecer, mas ao enigmático movimento em que
recordar comporta o adormecer da lembrança, assim como esquecer abarca a presença
do memorável.
Daí compreendermos o intento das núpcias entre Zeus e Mnemósine. Do
conúbio amoroso nasce o Canto Perpetual, que prerroga o reino do deus como Sombra e
Aparição na dubiedade do sempre vigente.
O Canto _diga-se_ as Musas são semeadas no ventre da Memória pelo genitor da
Luz: Zeus. Daí, o nascimento dúplice de luminosidade e brumas no qual as figuras
musais se instauram.
A maternidade de Mnemósine e a paternidade de Zeus conclamam tanto à
lembrança / claridade do acontecer desvelante, quanto ao olvido / soturnidade do
acontecer velante.
É por tamanho vigor de ausência e presença que o tempo nas vias da Memória
não conhece os limites de uma lógica pautada em passado, presente e futuro. O sempre,
como a cada vez mais, é o tempo que se delineia não como fluxo contínuo, mas como
fluidos intersticiais.
Nessa perspectiva, Ser / Linguagem / Tempo assumem uma complexão sem o
rigor da causalidade. Zeus, Mnemósine, Musas dizem cada um sua própria voz e o
mesmo: que a realidade se dá como um cantar infatigável, em que tudo se renova na
dinâmica mesma do canto entoado.
23 Idem, ibidem.
O guenos mítico nos revela mais do que uma linhagem entre ancestralidade e
posteridade. Diz-nos de uma relação complexa em que pais e filhos não vigem numa
perspectiva linear: gerar e ser gerado não necessariamente implicam uma ordem
seqüencial. É nesse modo de vigência que o Canto Musal tanto é gerado por Zeus e
Mnemósine quanto os gera no seu poder de presentificação da Totalidade.
É esta inextricável dinâmica de ser (não sendo), tão nebulosa aos olhos
racionais, mas tão vigorosa na escuta poética de nossa própria ambigüidade, que a
Memória faz questão de nos recordar e nos permitir esquecer, para que possamos
retornar à origem que, não simples começo, mas convocação atualizadora, nos faz
receber o memorável como nosso quinhão essencial.
No conúbio dos Deuses instaura-se o guenos mítico que liga o Canto Poético,
configuração musal, à filiação do Conto memorialístico, constituição memorável.
Nessa perspectiva, é o ventre da Memória que origina o Canto Poético,
tornando-se nutriz de tudo o que foi, é e será. Sendo assim, é do âmago de toda
lembrança e de todo esquecimento que ex-surge a possibilidade de cantar e, por
conseguinte, deflagrar a existência.
Somente na doação maternal de um ritual memorialístico, podemos cantar e
sermos encantados pelo Mistério do Mundo. Somente na escuta de uma Fala para além
do tempo (fala esta de mãe), como a terra que nos dá guarida, é que podemos nos deixar
perder e encontrar pela memória de nós mesmos. Somente nos perdendo e encontrando,
dentro de um culto memorável, é que podemos celebrar o Canto como nossa
proclamação de vida e morte.
Na temporalidade originante da Memória _ sem fronteiras entre o que foi, é e
será _ é que o Canto perpetual torna-se possível, revelando-nos as Musas como a
germinação de toda origem memorialística.
Do útero da Memória, no qual todos nos sentimos filhos do Tempo _ onde o
abrigo umbilical nos acolhe em nós mesmos _ nascem as Filhas da Perpetuação. E só
neste nascimento é que podemos compreender que Canto Poético e Conto Memorável
são uma só realidade, múltipla e una, originária e originante, como mãe e filho são, ao
mesmo instante, um e dois, dois e um. O guenos que aqui se delineia miticamente nos
diz que lembrar e esquecer, as dimensões misteriosas da Memória, tornam-se o cantar
silente e eloqüente das aparições musais no Mito do Mundo.
O mundo mítico revela-nos e segreda-nos, pois, um Mundo Falante24. Mundo
este que, ao falar, convoca à existência. Esta fala, enquanto nomeação materna e filial, é
a voz da Linguagem como medida para o homem. Este, ao dispor-se numa escuta
atenciosa, logra co-responder ao que o Mundo Falante lhe diz e assim, perpetua seu
próprio ser na inscrição da Memória originária. Compartilhando do rito memorialístico,
no qual lembrança e olvido são dimensões igualmente densas da realidade, o homem
pode aceder de uma vivência banal para uma existência fulcral.
Entretanto, a fulcralidade da existência enquanto Memória só pode ser
experienciada em sua proximidade com a questão do Destino.
3.2 Memória e Moira: o destino como quinhão do memorável
A Memória ainda nos diz mais de sua presença vigorosa: sua indissociabilidade
com a figura mítica Moira.
O guenos que se inscreve no curso das manifestações de presença entre Memória
e Moira revela-se como força de presentificação na qual o Destino se oferta enquanto
possibilidade de caminho. Possibilidade não construída por um sujeito senhor de si, mas
experienciada a partir de uma doação do Mistério.
24 TORRANO, Jaa. Idem, ibidem.
No pensamento grego arcaico, o destino não é somente uma determinação dos
Deuses, visto que também lhes ultrapassa e domina. Isso significa: todos, quer mortais
ou imortais, são marcados por um fatum,que lhes chega e arrasta poderosamente.
O âmbito do Mistério, pois, marca esta força que atende pelo nomear essencial
de Moira, através da qual a porção de Ser é doada a cada ente, convocando o indivíduo
a participar da parte que lhe cabe na inscrição de seu guenos, como identidade e tempo.
Afinal, o tempo é “o próprio destino que se doa como genos”. (CASTRO, 2004).25
Possuindo uma identidade que se funda na diferença _ a família _ todo mortal e
imortal corresponde ao apelo de ser que lhe está reservado no Tempo dos Tempos.
Como um convite ao desvelamento de sua essência, o quinhão de vida e morte que
marca todo o nosso destino é o quinhão que nos diz quem somos e a que viemos.
Moira, pois, significa lote ou lotes e se funda na dimensão da partilha. Sua força
somente é coercitiva à medida que ultrapassá-la implica em “transgredir a esfera que
constituía os privilégios da timé” (TORRANO, 1992, p.53). Toda partilha, seja de
honras ou desgraças, dá-se como uma potência cósmica que se faz constituinte de toda
natureza, quer mortal ou imortal.
Os Deuses esperam, ávidos, que a partilha seja feita, pois sabem que o ser de
cada um também se inscreve sob o signo de Moira. Desse modo, nem o Olimpo possui
a decisão de seu Destino. A imortalidade dos deuses não é sinônimo de soberania sobre
os mistérios da Moira.
Por conseguinte, os mortais, ao receberem dos Deuses _ de acordo com o guenos
no qual estão reunidos _ a parte que a cada um cabe em seu próprio tempo_ kairós_
encontram-se com o sentido de sua existência e tornam-se viatores de caminhos com-
partilhados.
25 CASTRO, M.A. O Homem e a Poiesis. Mimeo.
No vigor das potencialidades cósmicas, cada ser só se configura como indivíduo
à medida que se identifica num todo, seu guenos. Assim é que podemos compreender a
totalidade de ser como uma força que nos arrasta, levando-nos a caminhos em que nos
encontramos como se jamais tivéssemos deixado de estar ali. Isso porque o guenos que
nos marca como filhos de uma linhagem, constituídos de uma dada natureza, múltipla e
divina, escreve o que ainda nos acontecerá com as mesmas tintas que nossos
antepassados escreveram antes de nós. Nesse âmbito, ser a si mesmo é ser o outro e
vice-versa. O que nos é ofertado pelas moirai, como lotes da Grande Partilha Cósmica,
fazem-nos tanto o que somos como identidade quanto como diferença, na mesma
proporção em que nos cria como ipseidade e alteridade dentro de uma inscrição
genótipa.
A concepção de individualidade, no pensamento mítico, revela-nos não um
sujeito, mas um drama familiar que nos é doado como natureza de ser. A natureza que
constitui uma linhagem apresenta-se como o elo que define o ser de cada um como um
modo e manifestação do Ser que une a todos numa só rede de existências. A supra-
individualidade é a expressão do guenos enquanto marca identitária de uma família.
O elã familiar torna-se, então, mais do que uma relação de contigüidade
sangüínea; é, pois, uma relação de coadunidade de ser o mesmo e o outro, de escrever
uma história particular ao mesmo tempo em que se inscreve numa história coletiva.
Aqui, coletividade bebe na mesma fonte de legein _ Logos, potencializando o diálogo
como essência mesma de ser.
Cada potência cósmica, pois, alude a uma força ao mesmo tempo única e
coletiva, cujo vigor e vigência se dão através da Moira.
Como o limite ôntico que delimita a essência de cada ser, em suas aparições e
oblívios, em sua claridade e noturnidade, em sua fortuna fasta e / ou nefasta, a Moira
converge para cada ser, mortal ou imortal, todas as sortes e azares passíveis no mundo,
como lotes de uma partilha. Partilha esta que é tanto coercitiva, por limitar as
possibilidades dentro de um conjunto genótipo, quanto libertadora, por fazer aparecer a
vigência vigorosa do que cada um é a partir do Ser.
A Moira surge, portanto, como um caminho individual que, numa vigência
cósmica, segmenta o todo da Partilha Originária, ao mesmo tempo em que, ao nos fazer
experienciar o lote que nos cabe, nos concede a graça de sermos plenamente,
alcançando o sentido totalizador do Destino enquanto existência.
No feixe das existências divinas e humanas, Moira e Memória dialogam, visto
que só atingimos o que somos no movimento dúplice de lembrarmos o que nos é
próprio e o que não nos é próprio, ou ainda: de esquecermos o que não poderemos
jamais ser, por não estar circunscrito em nossa memória genótipa.
Lembrar e esquecer configuram-se como vórtices de uma mesma dinâmica, que
se potencializa num elo familiar, extensivo às Filhas de Mnemósine: Musas.
São as Musas que potencializam ser através de seu Canto. Assim como elas, as
Moirai potencializam cada ente ser e não ser o que podem e não podem, a partir de sua
inscrição cósmica.
Relações estas que se estabelecem nas ordens da temporalidade e da
espacialidade26, num tempo e num espaço que são regidos, a cada vez, pelo Deus que os
instaura numa ordem cosmogônica.
Nesse modo de pensar é que podemos compreender como Moira e Mnemósine
se co-respondem: a memória jamais se deixa reduzir à recapitulação de uma história
individual; antes, dá-se como uma potência cosmogônica que, por assim ser, acontece
para além de uma concepção subjetiva de lembranças e esquecimentos. Como
26 TORRANO, Jaa. Op.cit.p.81.
cosmogonia, instaura uma recordação e um olvido marcadamente co-letivos, visto que
se inscrevem no agir essencial, que é o de dar ordem / desordem ao mundo, o que
através da Moira se apresenta como “o princípio individuante (...) (que) só o é na
medida em que é um princípio mundificante.” (TORRRANO,1992,p. 81).
4 MEMÓRIA POÉTICA: A TENSÃO VELO / DESVELO DO SER NAS
LEMBRANÇAS E DESLEMBRANÇAS DE RIOBALDO, EM GRANDE
SERTÃO: VEREDAS
“Eu lembro das coisas antes delas acontecerem”.
(GSv, p.47). A Memória, enquanto Tempo Originário, pode ser contemplada e experienciada
nas obras poéticas. Isso porque toda obra opera o acontecer ontológico, resguardando
um tempo e um espaço fundantes de realidade.
Nessa trilha, encontramo-nos diante de Grande Sertão: veredas, numa busca por
vislumbrar o enigma da memória como constituição de mundo.
A concepção de memória defendida por Bergson, como vimos, é marcada pela
virtualidade. Algumas de suas acepções poderiam até ser flagradas em Riobaldo, como
no caso das recordações voluntárias em que rememora,conscientemente, os feitos
vividos. Afinal, é por sua própria decisão que o protagonista se põe a narrar suas
experiências para o misterioso interlocutor. Teríamos também como encaixar as demais
lembranças do ex-jagunço, aquelas que sorrateiramente irrompem-lhe n´a alma, dentro
da memória de caráter involuntário: “Andei, em dei, até que lembrei”(GSv, p.199).
Entretanto, seguindo por essa diretriz, as lembranças de Riobaldo se
restringiriam a um ciclo fechado, no qual as reminiscências “puras” eclodiriam, sem
direta relação com o presente, ou seja, seriam convites ao mergulho nas abstrações,
realizado no intuito de se atingir a memória procurada. A virtualidade desta memória
não dá conta do fenômeno denso e concreto da memorialística que acontece em Grande
Sertão.
Desse modo, complica-se para nosso estudo aceitar passivamente as acepções de
subjetividade, de fluxo progressivo e de despotenciação do acaso a que nos remete o
pensamento bergsoniano.
A noção de sujeito, por exemplo, tão veiculada em nossa contemporaneidade,
possui raízes muito suspeitas, as quais nos convém analisar para uma melhor
compreensão de seu caráter falacioso.
O plano da Razão domina o pensamento ocidental e, com ele, a subjetividade
ganha corpo como representação individual do conhecimento lógico.
A dicotomia subjetividade-objetividade parece clarificar toda e qualquer relação
com o mundo. Há sempre um olhar de análise, no qual o homem se apresenta como
aquele que detém o conhecimento das coisas. Seja pendendo mais para o plano da
objetividade, seja para o plano da subjetividade, o saber sempre se pauta por essa noção
dialética do real.
Mas, será que esta convicção tão inconteste não é passível de questionamento?
A etimologia de sujeito nos traz, a partir da fonte grega, o vocábulo
hypokeimenon. Tal palavra chega na língua latina como sub-jectum (sub_ sob, debaixo
de; jectum_ lançado, jogado), do verbo latino subiicere, com os sentidos de atirar, pôr,
deitar debaixo de, pôr ao pé. Do latim, originou-se o nosso vocábulo português sujeito,
já abarrotado dos sentidos de uma individualidade com razão e vontade particulares.
Assim, o indivíduo torna-se o fundamento das coisas, instaurando a
subjetividade como sentença racional, que a tudo (inclusive a si mesmo) predica.
Mas será que Riobaldo pode ser definido como o sujeito de sua memória? Será
que ele realiza sua travessia pelo memorável como o detentor de suas recordações e
esquecimentos?
Vejamos o que a obra nos diz: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por
mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu
quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa”.(GSv, p.31).
Aqui presenciamos um eu que diverge de todo mundo. A individualidade de
Riobaldo nos é apresentada como o diferente, alguém que não consegue se enquadrar
nos moldes da sociedade.
A questão da identidade e da diferença pode ser vislumbrada neste trecho da
obra, no qual o jagunço nos convoca a pensar sua essência enquanto o que é e o que
deseja ser.
Como jagunço, tenta se encontrar num dado grupo, vivenciando uma lógica
própria ao sertanejo, em batalha constante pela vida. Como barranqueiro, reflete sobre
suas experiências de paz e guerra, de modo que se descobre externo a toda aquela
dinâmica: não se vê como parte da jagunçada; compreende-se apenas como sertanejo.
Nessa perspectiva, o eu no qual Riobaldo se reconhece é alguém que nada sabe,
mas desconfia de muita coisa. Tal concepção de saber como não saber, apenas suspeitar
das coisas, já nos remete à fragilidade da acepção de sujeito como o determinante do
agir no mundo.
E mais: “Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas
cada um só vê e entende as coisas dum seu modo”.(GSv, pp.32-33).
Nessa passagem, podemos vislumbrar um dum seu modo (de cada um) de ver e
entender as coisas. Tais flagrantes de individualidade nos revelam como a questão da
subjetividade paira sobre os homens, ao passo que cada qual se faz o detentor de uma
idéia particular de “concertar consertado” o mundo. Uma profusão de sujeitos, pois,
pode ser deslindada no meio jagunço, causando muitas relações tensas entre os
membros do grupo e suas divergentes opiniões. Este é, por exemplo, o episódio da
discórdia entre Hermógenes e Joca Ramiro quanto ao destino de Zé Bebelo.
Porém, quando falamos em falácia da subjetividade, não estamos negando a
existência de cada um como uma pessoa única. O que estamos buscando compreender é
o sentido originário de ser um que, na verdade, não se dissocia do sentido de ser todos.
Isso porque toda individualidade é fruto de um guenos, o qual constitui sua
vigência enquanto destino no mundo. Cada homem recebe sua história e sua memória
como uma doação da physis / ser. Sendo assim, o quinhão de vida e morte recebido o
configura como alguém que é um na reunião plenificadora do todo originário.
Sendo assim, somos todos oriundos de um mesmo Guenos e de um mesmo
Logos. Somos essencialmente a identidade e a memória que se comunicam como
Diálogo. Daí, seres dialógicos, ser-nos impossível a subjetividade, mesmo quando
estamos sozinhos. A solidão essencial não é mero isolamento até porque, mesmo
cercados pela multidão, sabemos o que é ser solitário. Solidão como escuta originária,
esta sim é o que nos traz de volta ao silêncio da Co-letividade 27 a qual pertencemos.
Com a consciência de saber a vida como perigo é que Riobaldo a enfrenta, não
como sujeito-mor de sua vontade, mas como partícipe de seu jogo imprevisível. Jogo
este cujos lances revezam-se entre Deus e o diabo, imagens aqui do caráter fasto e
nefasto da existência:
“(...) o diabo, é às brutas, mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro _ dá gosto! A força dele, quando quer _ moço! _ me dá o medo pavor! Deus vem vindo:
27 CASTRO, Manuel A. de. Linguagem: nosso maior bem. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, p.29.
ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho _ assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza”.(GSv, p.39).
“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem _ ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! _ É o que digo”.(GSv, p.26).
Experienciando as dimensões divinas e diabólicas da vida, Riobaldo percebe a
vulnerabilidade do homem diante do mistério inextricável da existência: “Meu rumo
mesmo era o do mais incerto”.(GSv,p.152)./ “Qual é o caminho certo da gente? Nem
pra frente, nem pra trás: só para cima.(...)Mas quem é que sabe como? Viver... O senhor
já sabe: viver é etcétera...” (GSv, p.110).
Ou ainda: “Como é que posso com esse mundo? A vida é ingrata no macio de si;
mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é
muito misturado...” (GSv, p.237).
Sendo a vida misteriosa e arredia, num mundo muito misturado, a memória que
a salvaguarda só pode ser igualmente imprevisível. Para além de qualquer medida
factual, a memória poética se configura no âmbito do incalculável: “Sertão é isto: o
senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é
quando menos se espera”(GSv, p:302). Como o sertão, lugar de imprecisões, assim é a
memória riobaldiana: inesperada, mesmo que se tente empurrá-la, ela volta, rodeia,
presentifica.
Na presença do memorável, a distribuição do tempo adquire o contorno nítido de
um determinado instante temporal e de uma específica situação espacial: “Respirar é
que era bom, tomar todos os cheiros. Respirar a alma daqueles campos e lugares”.(GSv,
p.340). A “alma dos campos e lugares”, absorvida na presentificação da memória_ em
que vida física (respiração) e vida anímica são uma só realidade_ é a manifestação de
um ritual memorialístico no qual espaço e tempo se interpenetram, sem quaisquer
cercanias dicotômicas.
É nessa via que Riobaldo, em cada momento recordado, fixa igualmente um
lugar memorável: “Aqueles foram meus dias. (...) Os lugares sempre estão aí em si, para
o confirmar”. (GSv, p.43).
Daí suas recordações virem sempre delineadas numa espacialidade
detalhadamente narrada:
“Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e a nhiíca e a escova, amarelinhas ... Isto _ no Saririnhém. Cigarras dão bando. Debaixo de um tamarindo sombroso ... Eh, frio! Lá geia até em costas de boi, até nos telhados das casas. Ou no Meãomeão _ depois dali tem uma terra quase azul. Que não que o céu: esse é céu-azul vivoso , igual um ovo de macuco. Ventos de não se deixar formar orvalho ... Um punhado quente de vento, passante entre duas palmas de palmeira ... Lembro, deslembro.” (GSv, p.42).
Do mesmo modo, quando vida e rio se fundem numa só experienciação de
memória, temos:
“(...) De em de, sempre, o Urucúia acima, o Urucúia _ tão a brabas vai ... Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corre torta. A serra faz ponta. (...). Olhe: o rio Carinhanha é preto, o Paracatu moreno: meu, em belo é o Urucúia _ paz das águas... É vida! ... (...).”(GSv, p.43).
Outro marco memorável presenciamos, na travessia do rio junto a Reinaldo:
“(... ) Ele se sentou em minha frente, estávamos virados um para o outro. Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado do rio. (...). Bom aquilo não era, tão pouca firmeza. (...) Eu estava indo a meu esmo.
Saiba o senhor, o de-Janeiro é de águas claras. (...). No alto eram muitas flores, subitamente vermelhas, de olho-de-boi e de outras trepadeiras, e as roxas, do mucunã, que é um feijão bravo; porque se estava no mês de maio, digo. (...). Um pássaro cantou. Nhambu? E periquitos, bandos, passavam voando por cima de nós.Não me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar?”(GSv, pp. 119-120, grifo nosso).
A impossibilidade do esquecimento, tão atrelada à topicalização do memorável,
nos leva a perceber o quanto a dinâmica memorialística compactua com a tese de Proust
de que cada lembrança funda uma espacio-temporalidade própria. Tal assertiva nos
permite dizer, junto com Rosa que, se “o sertão está em todo lugar”, a memória também
se faz presente em todo o tempo.
Outro momento crucial desta memória-lugar, encontramos também na realização
do pacto, onde as Veredas Tortas / Mortas são os descaminhos do demo / homem
humano em conflitante embate originário:
“Eu caminhei para as Veredas Mortas. Varei a quissassa; depois tinha um lance de capoeira. Um caminho cavado. Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaçavam as estopas eram uns caborés. E eu ia estudando tudo. Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando. Aí, friazinha. (...) ... porque o chão bem debaixo dela é que o Careca dansa, e por isso ali fica um círculo de terra limpa, em que não cresce nem um fio de capim; e que por isso de capa-rosa-do-judeu nome toma. Não havia. A encruzilhada era pobre de qualidades dessas. Cheguei lá, a escuridão deu”. (GSv, p.435).
Todas as descrições nos situam numa espacio-temporalidade nefasta: as imagens
de “caminho cavado”, “mato cerrado” já nos trazem à esfera de abismo e sufocamento,
até que Riobaldo avista o não-visível: “um rôr de nada”(id., ibid.). Tendo visto o nada,
pode, de fato, tornar-se pactário.
Daí o lugar do pacto ser, na verdade, o não-lugar: “E de um lugar _ tão longe e
perto de mim, das reformas do Inferno – ele já devia de estar me vigiando, o cão me
fareja. Como é possível se estar, desarmado de si, entregue ao que outro queira fazer, no
desmedir de tapados buracos e tomar pessoa?” (Gsv, p.436, grifo nosso). Nem longe e
nem perto, o espaço que se delineia conflagra-se como imprecisão e mistério, os quais
subvertem o sujeito metafísico num alguém tão desarmado de si.
Nessa mesma dimensão, a memória se converte em não-memória:
“Nem eu queria me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era __ ficar sendo!” (id.,ibid.).
“Ficar sendo” é, pois, o que a memória salvaguarda para Riobaldo, seja na
lembrança ou no esquecimento, no tudo ou no nada de ser e não ser. O jagunço é /
existe enquanto homem humano lançado na correnteza incansável da vida, na qual
muitas vezes se encontra perdido provisório de lembrança. A memorialística, por ele
experienciada em sua travessia pela morte nas veredas_ veredas estas tão tortas como
qualquer viver sem alcance de seu próprio destino_ é a recordação do pacto enquanto
quinhão de morte e vida, de luz e trevas, de querer e não querer, na busca por uma
sabedoria que se faz, coadunamente, prerrogativa do não saber.
Daí a simultaneidade originária, unindo todos os tempos num momento
fundante, se desvelar nas insistentes assertivas do sertanejo: “Mire veja” (GSv, p.29).
Mirar / ver, simultaneamente, é convidar o interlocutor a olhar e, no momento da
mirada, enxergar o que ali mesmo, naquele exato instante (e não meramente no
tempo que se pressupõe passado), está surgindo como realidade. Nessa dimensão, dois
instantes acontecem verticalmente, não havendo qualquer espaço para a tão consensual
distinção passado / presente.
Decidir pela narrativa memorável é uma opção-aceitação de Riobaldo, ou
melhor, uma entrega ao chamado inexorável da Memória. Mas esta, quando atendida,
toma as rédeas do ato narrativo e transubstancia a experiência única do pactário em
experiências igualmente humanas, universais.
A memória de Grande Sertão: veredas, portanto, não se apresenta numa ordem
linear, cronológica, causal. Não começa pela infância ou pelo momento da morte do
protagonista. Não segue uma horizontalidade seqüencial. Ao revés, surge como cenas
entrecortadas, desregradas entre o recente e o remoto, entre o perto e o longe. Memória
fragmentada, descontínua, constituinte de uma espacio-temporalidade de intermitências
e interstícios, de “brancos”, lapsos, silêncios e vazios.
Configuradora dessa memória-fluxo, mas fluxo intermitente e intersticial, temos
a própria composição do romance como um jorrar fluido das experiências do
protagonista: não há segmentações em capítulos, os quais ordenariam e decodificariam
uma certa linearidade narrativa.
Sem segregações ou pausas estruturais, sem delimitados antes e depois, o enredo
se projeta na mesma imagética do sertão (“está em todo lugar”) e do rio (“aquela terrível
água de largura: imensidade”). Como ubiqüidade e imensidão, a narrativa nos chega
numa torrente única, que a tudo arrasta e preenche, mesmo que de lacunas.
Tal unicidade faz-se correspondente à unidade da qual a memória é portadora,
como nos assinala Jardim:
“(...) é pela memória que se estabelece a possibilidade de vigência da unidade. A memória é um modo privilegiado de constituição da unidade e por isso, um modo privilegiado de consolidação de toda possibilidade de relacionamento entre o que foi, o que é e o que será”. (JARDIM, 1997).
Tal unidade não compactua, vale ressaltar, com a indiferenciação e a não-
diversidade. Ao revés, é a unidade de todas as diferenças, irrompendo na multiplicidade
da própria amálgama que é o sertão rosiano. Assim, a memória, embora fluxo, não é
continuidade ininterrupta. Suas intermitências se deflagram na constituição mesma do
romance em estórias muitas vezes dissonantes, como contos dentro da obra, como
causos paralelos a outros causos. Daí, a sentença riobaldiana: “a vida é cheia de
passagens emendadas”.(GSv, p.235). Como a vida, a memória narrada faz-se de
emendos, num tecido plurívoco e intersticial.
O tecido da memória se entremeia por tais remendos e vazios, instaurando uma
lógica em que lembrar e esquecer se entrecruzam, como linhas de cores distintas,
entretanto, indissociáveis. Na procura pelo entrecruzamento destes fios é que nos
posicionamos agora. Mas, para tanto, faz-se necessário que percorramos novamente o
caminho originário do mito.
4.1 Memória: lembrança e esquecimento enquanto dimensões do modo mítico
de ser no mundo rosiano
O mundo rosiano é um mundo mítico. Isto se deflagra por toda a obra, quer em
referências explícitas quer em implícitas configurações poéticas.
Sendo assim, a memória deslindada em Grande sertão surge como uma doação de
mistério e encantamento, que bebe na fonte mítica o seu sentido originário.
Como estudado anteriormente, Memória é, miticamente, Mnemósine, mãe das
Musas, esposada por Zeus a fim de perpetuar o próprio deus e seus feitos vitoriosos
através do canto memorável. Recordemos o dizer mítico:
“Para tão grande triunfo (a vitória de Zeus sobre o Khaos), a comemoração de uma noite não basta, pensam os deuses. É preciso registrar a façanha na própria memória do tempo. É preciso cantá-lo para sempre a todos os cantos do mundo” (parênteses nosso).
Cabe a Zeus engendrar os seres que haverão de celebrar a vitória através dos séculos. O rei do céu e da terra escolhe para ajudá-lo na missão, a titânia Mnemósine, a própria memória: nada seria esquecido quando dito por alguém gerado no seio dela.28
Desse modo, nas linhas míticas, Memória está vinculada à idéia de perpetuação
e co-memoração _ na celebração dos feitos memoráveis.
Nesse caminho reflexivo, notamos Riobaldo como aquele que, narrando sua
trajetória, busca perpetuar e co-memorar o que se potencializa como digno de memorial.
Daí suas declarações: “Dor do corpo e da idéia marcam forte, tão forte como o todo
amor e raiva de ódio. Vai, mar...” (GSv.p.37). O que se faz memorável, o que marca
28 PESSANHA, J.A. apud JARDIM, A. Os caminhos da memória. In: Música: vigência do pensar poético. Tese de Doutorado, Faculdade de Letras – UFRJ, 1997, p.4.
forte como amor e ódio, é o que se perpetuará na narrativa: far-se-à presente como o
mar para o sertanejo: ausência presentificada no mistério de sua possibilidade.
Desde o mito, memória é potencializadora de eternidade, o que a configura para
além de um tempo linear. É ela ainda aquela que sabe tudo o que foi, é e será 29. Isto
significa carregar em sua essência uma temporalidade que se propõe originária.
Ademais, outro índice de significação nos convoca ao pensamento, quando diz:
“nada seria esquecido quando dito por alguém gerado no seio dela” (id. ibid.). Se são as
Musas geradas no seio de Mnemósine, seriam elas as portadoras dos cantos imortais,
sem qualquer brecha para o esquecimento?
Se Riobaldo apresenta uma narrativa marcada pela imprecisão, carregada de
lapsos e vazios, como pode a memória de GSv confluir com a memória mítica que nada
deixa esquecer?
Talvez a resposta se insinue no próprio mito. Assim como aletheia guarda o
duplo sentido de velo e desvelo, memória encontra-se intimamente associada ao
esquecimento.
Mnemósine e Lete correspondem-se, no mito, como duas nascentes onde
deveriam beber os que consultavam o oráculo de Trofônio. Lete era também a fonte
onde os mortos bebiam para esquecer o que viveram no além-vida, “transformando-se
numa alegoria, o Esquecimento, irmã da morte e do Sono” (GRIMAL apud
JARDIM,op.cit,p.8.). Nesse caminho, acena-nos Ronaldes de Melo e Souza (2002,
p.30): “No jogo ontológico, a aletheia é a memória da lethe”.
Assim como aletheia comporta tanto o encobrir quanto o desencobrir, memória
apresenta-se indissociada do esquecimento. Sendo a mesma, força de imortalidade e
29 ELIADE, M.apud JARDIM, A. id.ibid.
vivificação, o último liga-se ao ocultamento e à mortalidade. Tudo isso não como partes
contrárias que tentam sobrepor-se, mas como movimentos de uma mesma dinâmica,
assim deslindada nas palavras de Jardim: “É na dinâmica estabelecida por esquecimento
e memória, na intermitência e nos interstícios deixados abertos por essa dinâmica, que
pirilampeja a verdade, o ser, a própria vida”.30
Nessa perspectiva é que Riobaldo lembra e esquece simultaneamente, porque
memória abarca tal duplicidade. A imprecisão de seu narrar é a imprecisão do
memorável, o qual não pode ser medido, visto que seu campo mapeia-se pelas
incertezas, pelas lacunas instigantes de toda ação memorialística. Não é sem sentido o
emprego constante dos vocábulos alembrar e deslembrar em Grande Sertão, que
convergem na mesma semanticidade dúbia de a-letheia.
Assim, testemunhamos no romance: “Ou conto mal? Reconto”.(GSv, p.57). A
constante interpelação que Riobaldo faz a si mesmo sobre sua narração, quanto a ser
bem ou mal contada, já nos indicia que lhe é flagrante essa memória intermitente,
imprecisa. Unidas às vagas deste narrar, percebemos a força do memorável enquanto
vigor do que se presentifica: “Me alembrei” (p: 246) / “Relembrava” (p.249) “Lembro
daquela manhã “(p.253). Aqui a certeza das lembranças remete-nos a momentos que o
ex-jagunço não consegue esquecer, mesmo que deseje: “Ao tanto com o esforço meu,
em esquecer Diadorim (...)” (p. 248).
É visando à necessidade de atentarmos mais detalhadamente para as
sinuosidades das lembranças e deslembranças de Riobaldo que nos moveremos a
seguir.
A ambigüidade da narrativa de GSv entre o lembrar e o esquecer é flagrante em
diversos trechos da obra: “ Narrei miúdo, porque não sou, não quero ser”. (GSv, p.166)/
30 JARDIM, Antônio. Op.cit. 8.
“E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas minudências. (...) é
saudade”.(GSv, p.92).
Miúdo e minudências nos trazem a riqueza dos detalhes do que se constitui como
inesquecível para Riobaldo, daquilo que não quer ser ou do que é saudade, por
exemplo. Assim é também que diz, numa alusão ao poético como memorável: “eu
nunca esqueci formal a canção de Siruiz”. (GSv, p.186) / “Mas eu guardava triste de cór
a canção recantada (GSv, p.192). Tudo o que é essencial, porque resgata o sentido de
ser do sertanejo, manifesta-se como memorial e, portanto, digno de ser contado
minuciosamente.
É nessa mesma força mnemônica que o narrador declara, num momento que o
afeta, por perceber seu ciúme pelo companheiro Reinaldo / Diadorim: “Me lembro,
lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. E ainda: Ah, Diadorim... E tantos
anos se passaram” (GSv,p.207). Nesse trecho, fica-nos claro que a imprecisão nada tem
a ver com o passado ser remoto ou recente, visto que tantos anos se passaram. Porém, a
rememoração se viabiliza por ser um dia tão remarcado, ou seja, um momento
essencial, vigoroso enquanto memória para Riobaldo.
Em igual travessia memorável, diz: “O que lembro, tenho. Venho vindo, de
velhas alegrias” (GSv,p.204). Aqui, deflagra-se a co-pertença de memória ao ser,
porque Riobaldo passa a possuir o que lhe é memorial.
Na própria tessitura do ato narrativo emerge o questionamento entre o que se
conta e o que não é contado, o que se resume e o que se detalha, o que se lembra e o que
se esquece:
“Por que é, então, que eu salto isso, em resumo, como não devia de, nesta conversa minha, abreviã? Veja o senhor, o que é muito e mil: estou errando. Estivesse contando ao senhor, por tudo, somente o que Diadorim viveu presente em mim, o tempo _ em repetido igual, trivial _
assim era que eu explicava ao senhor aquela verdadeira situação de minha vida. Por que é, então, que deixo de lado? Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada : quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom. Seja?” (GSv, p.202).
O narrador indaga-se: por que não conta apenas o que lhe parece essencial, o que
era a verdadeira situação de sua vida, isto é, o amor por Diadorim? Aqui, desvela-se-
nos como o memorial ultrapassa a subjetividade daquele que se propõe a lembrar /
esquecer. No mesmo momento em que assume “estou errando” _ como se declarasse
sua culpa por não alcançar a exatidão do narrável_ também demonstra que esta mesma
precisão é impossível, pois o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada, entretanto
esta escolha é dúbia, pois não pode fugir do que é tristeza e morte e acaba afastando-o
de ver o que é bonito e bom. Assim, entre o arbítrio e a fugacidade, é que se apresenta a
memória riobaldiana.
Por outro viés, a descrição pormenorizada, muitas vezes, surpreende-nos nas
evocações das batalhas do jagunço, como a primeira grande guerra em que Riobaldo, ao
lado de Hermógenes, enfrenta o bando de Zé Bebelo (GSv,pp.214-232). Gastam-se
muitas linhas (18 páginas) pela urgência que há em se contar o essencial e, ali _o
primordial_ reside justamente na travessia para o combate _ que é travessia para a
morte, seu enfrentamento e sua derrota; portanto, caminhada para a vida.
Quando o conto não interessa, por não abarcar a essencialidade das descobertas,
Riobaldo logo esclarece: “(...) e o mais do caminho se seguiu por muitos diversos
rodeios” (GSv,p.232). E mais: “Vou reduzir o contar: o vão que os outros dias para mim
foram” (GSv,p.244).
Mas quando as marcas existem e o valor delas é posto em xeque, temos:
“Dias que marquei: foram onze. (...) que isso merece que se conte? Miúdo e miúdo, caso o senhor quiser, dou descrição. Mas não anuncio valor. Vida, e guerra, é o que é; esses tontos movimentos, só o contrário do que assim não seja.
Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima _ o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe” (GSv, p.245).
E mais:
“De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir conselho. Por daí, então, careço de que o senhor escute bem estas passagens: da vida de Riobaldo, o jagunço. Narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! _ porque não sou, não quero ser. Deus esteja!”(GSv,p.232).
É na intenção do ponto de um fato (e não do fato em si)_no que nem está perto
nem longe, apenas parece_ que nosso protagonista se envereda pela memória de sua
vida. Quando encontra este ponto, a narrativa transborda em minúcias; quando não, é
simplesmente o vazio que cabe na sentença: “De tudo não falo”. Assim como o
questionamento entre ser e não ser jagunço / pactário permeia toda a trama, lembrar e
esquecer, narrar e calar, silêncio e fala fazem-se presentes, na tensão harmônica de velo
e desvelo de toda herança memorial.
O esquecimento, por sua vez, participa do jogo memorável, tanto de modo fasto
quanto nefasto. É o que nos ensina Emmanuel Carneiro Leão:
“O esquecimento da memória é tanto negativo quanto positivo. O esquecimento negativo impede a reprodução iterativa da mesma coisa. O esquecimento positivo desencadeia a produção inaugural das transformações”. (LEÃO, 2003, p.144)”.
Numa visão metafísica de memória, todo esquecimento é perda. É a
impossibilidade de se resgatar os acontecimentos tais quais foram num tempo passado.
Ontologicamente, o esquecimento se reconhece como partícipe da dinâmica da
existência, na qual os lapsos representam os vazios constituintes de toda temporalidade.
Aqui, a dubiedade de lembrar e esquecer associa-se intimamente à manifestação
igualmente ambígua de saber e não saber, como nos diz Riobaldo:
“Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. Agora, o senhor querendo está aqui que eu sirvo forte narração _ dou o tampante, e o que for_ de trinta combates. Tenho lembrança. Pelo tempo durado de cada fogo, se é capaz até do cálculo da quantidade de balas. Contar? (GSv, p.245).
O ex-jagunço tem a lembrança. Sua mente consegue reconstituir até a
quantidade de balas de um combate. Mas não é essa precisão numérica que interessa à
narrativa, nem mesmo é ela que impulsiona sua memória. O que movimenta suas
recordações é o saber/ não saber de sua caminhada; é o lembrar e o esquecer que
figuram seus momentos como memoráveis.
O primordial, então, localiza-se na sorrateira sentença: “mas principal quero
contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”. Nem ele, Riobaldo,
sabe se sabe, nem mesmo tem certeza se seu interlocutor pode sabê-lo. Entretanto, o que
importa, de fato, não é quem detém ou não o conhecimento, mas o próprio movimento
de sua procura. Nesse mesmo viés, não é tanto o que se consegue lembrar nem o que se
acaba esquecendo que se faz importante, e sim, o que a memória recupera,
invencionando perspectivas inaugurais.
Não há, portanto, como delimitar a memória à esfera da reminiscência. Mais do
que atuar como guardiã do vivido, a memória trabalha no enredar sinuoso e silente das
brechas que cortam o tempo seqüencial. É nos interstícios que ela elabora toda
possibilidade de ser, inaugurando o novo (pelo caos dos olvidos) em meio à aparente
ordem dos acontecimentos.
Poeticamente, o jagunço nos apresenta, uma vez mais, a memória nessa mesma
sintonia:
“Ah, falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas _ de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem
não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado”. (GSv,p.200).
Na impossibilidade de reiterar o que foi (porque a precisão inexiste), a memória
potencializa sua autonomia e envolve certas coisas passadas de astúcia, fazendo-as se
remexerem dos lugares, num criativo balancê. Nessa dinâmica, Riobaldo fala falso,
indaga sobre o que contou: O que eu falei foi exato? Sabendo que a exatidão, nos
parâmetros da lógica causal inexiste, só tem a afirmar: Foi. Mas ser exato aqui reside no
âmbito de uma nova possibilidade de ser: a narrativa faz-se exata porque apenas o
memorável é o que merece ser narrado. Nesse movimento, perpetua a questão: Mas
teria sido? E lança a resposta ambígua: Acho que nem não.
Neste jogo entre a certeza e a incerteza é que a memória surge tão movente
como a travessia riobaldiana, num miúdo recruzado. O protagonista sabe que não pode
precisar o vivido, até porque isto se deflagra impossível no momento mesmo em que é
experienciado. O perigo da vida é a sua sinuosidade, o mistério de sua inextricabilidade.
Perigo traz o desafio do limite (peras) em suas raízes etimológicas. Limite e não limite
inscrevem-se, pois, como a tensionalidade na qual a existência se move, sem qualquer
estabilidade garantida. Da mesma forma, a memória é por demais perigosa, dificultosa
no contar, porque é igualmente eclosão da vida, do mistério, do ser.
Noutro modo, poderíamos dizer que o exato da narrativa está justamente no
ponto dum fato, busca incessante do jagunço, ao qual já aludimos anteriormente.
Nessa travessia, chegamos ao esquecimento como motriz de criatividade,
caracterizando-o em seu papel primordial:
“(...) o de impedir a interpenetração dos estados de consciência, preservando e salvaguardando os instantes do passado em “vasos fechados”, que mantêm o impacto da impressão primeira em todo frescor de seu brotar espontâneo (...) de modo que a reminiscência é o autêntico renascimento do êxtase originário (...). O esquecimento é o poço profundo e sagrado,
misterioso reservatório, de onde pode emergir, intacta e original, a memória involuntária” (GUIMARÃES,2001,p.160).
Para que as experiências vividas por Riobaldo possam eclodir enquanto
narrativa, faz-se imprescindível mover-se na dinâmica do esquecimento como anverso
harmônico da recordação. Só atravessando a nebulosidade do Letes é que se vislumbra a
claridade de Mnemósine. Da própria fonte letárgica, nasce a potencialidade mnemônica.
Ou como nos clarifica poeticamente Carneiro Leão:
“Esquecer é um acontecimento ontológico em que o homem se realiza, na medida em que os descobrimentos e revelações lhe encobrem sua própria realização. Isto significa: o homem também se vela para si mesmo sempre que consegue revelar-se num empenho de ser e desempenho de não ser. Para realizar-se, o homem tem tanto de esquecer como de recordar. (...) numa presença sempre atravessada por ausências. No esquecimento se retira inclusive a própria realização da retirada. Para poder esquecer, todo esquecimento esquece que esqueceu”. (LEÃO, 2002, p.74).
Como misterioso reservatório, o olvido potencializa o contato com a origem
imemorial. Esta não significa simples começo, nem encontro virtual com o que deixou
de ser. Na mesma medida que o passado se desvela, velando-se em muitos mistérios, a
narrativa memorável de Riobaldo se revela, segredando no não-dito / não-lembrado todo
o fulgor do acontecer ontológico: vazio/plenitude.
O acontecer ontológico, portanto, pressupõe a presença do passado não como
virtualidade, mas sim como matéria presentificada, na qual:
“o passado não existe primariamente como recordação, mas no esquecimento. Este é, com efeito, o modo de pertença do passado à existência humana. Graças ao passado possuir essa natureza de esquecido, podemos reter e recordar algo. Todo o transitório mergulha no esquecimento, e é este esquecer que permite reter e conservar o que se perdeu e mergulhou no esquecimento” (GADAMER, 2002,p.172).
Lembrar corresponde a mostrar tanto quanto esquecer corresponde a
desaparecer. Porém, tal desaparecimento não se constitui como perda e sim, como
terreno potencializador de todo aparecer enquanto vigência.
Só lembramos porque esquecemos uma multiplicidade de vivências
adormecidas. No seio deste adormecer, pulsam as memórias que se mostram porque
vigoram como experiências. Daí compreendermos que nem toda vida vivida pode
alcançar o estatuto de narrativa. Só recebe a dádiva de ser narrado / memorado o que se
experiencia profundamente como escuta / ausculta do ser.
Tudo o que Riobaldo conta funda-se menos no que escolhe narrar do que no que
lhe chega potencial e misteriosamente como memória. Um perfume, um toque, uma
imagem de Diadorim basta para que ela lhe apareça viva e próxima. Os lugares por onde
ele e o bando jagunço passam são rememorados através de seus céus, pássaros e cheiros.
Toda a memória de GSv se condensa nesta perspectiva: recordar o experienciado é
constituir o narrado; portanto, tecer vida.
A Memória, na sua dimensão de esquecimento, converte as deslembranças no
que dinamiza o próprio viger das lembranças, como seu nutriente mais elementar: o
êxtase da proximidade com o sempre, com o que jamais cessou de ser, já que tudo
vigora, latente e transcendente, no seio originário da vida.
4.2 Riobaldo e a experienciação mítica de Memória e Moira
Riobaldo experiencia memória como lembrança e deslembrança. Mas vive
igualmente a experiência da Memória como guardiã dos mistérios da nebulosa Moira.
Nessa via, o sertão lhe surge como o lugar de suas memórias de jagunço. Cada
passo trilhado, desvela-se para ele como um onde no qual um feixe memorialístico se
demarcou como território de boas e más lembranças, de próximos e longínquos
esquecimentos.
A Memória é, portanto, o lugar originário de onde partimos e para onde sempre
nos direcionamos. Riobaldo sabe e não sabe disso, de modo que atravessar o sertão
novamente, agora num movimento digressivo, transmuta-lhe o sentido de sua
caminhada, de sua vida. Relembrando e deslembrando as agruras e alegrias de sua
jornada, nosso protagonista se vê, uma vez mais e tão (ou mais) intensamente jagunço,
desbravador, apaixonado, chefe para, por fim, chegar a barranqueiro. A partir daí,
sentir-se apenas sertanejo.
Os cheiros, os sabores, os prazeres e desprazeres vividos são, agora, mais do que
flashes retornados à mente, são experienciações profundas que só a vigência da
Memória,enquanto reunidora de tudo o que foi, é e será, pode potencializar. Tornada
experiência, a vida ganha sentido e o Mundo Falante das Musas entoa seu canto
perpetual.
Só atravessando as vias e desvios dessa Memória, densa e sinuosa, é que
Riobaldo pode chegar a ser. Antes, restava-lhe sobreviver, arrastando-se numa realidade
nua e crua de jagunçagem. Quando se deixa enredar pelos fios memoráveis, conhece o
mais profundo de suas inquietações e, no intento de compreendê-las, tece sua vida como
vigor de existência, não mais reduzida à mera vivência de uma batalha após a outra.
No todo interligado da Memória, sem fronteiras entre passado, presente e futuro,
o Canto Musal deflagra o Conto Memorável, cantando e encantando a vida como
finitude e eternidade. Sem começo e fim_ o mais importante está no meio, na travessia
_ o ritual memorialístico configura-se como este meio, este entre, no qual todas as
lembranças e todos os esquecimentos se reúnem desvelando e velando o real em sua
vigorosa manifestação de ser.
Riobaldo atravessa o entre de seu caminho memorável tornando-o, pela escuta
poética do canto musal (pois as Musas cantam e encantam através da memória que a ele
se doa como narração / criação de sua existência) realmente digno de memória e, por
conseguinte, de sempiternidade. Quando sua narrativa se diz memorialística,contando
causos que já viveu, nosso protagonista experiencia um ritual que, evocando canto e
culto ao evocar a genesíaca fonte da Linguagem, transgride as leis racionais de uma
memória virtual e deflagra a concretude dialógica da Memória real.
É nesse viés que o Canto Poético pode ser nomeado Conto Memorável (e vice-
versa), no qual a constituição poética de mundo torna-se a salvaguarda de toda
constituição que promulga o real como vigor e vigência. E é este real que Riobaldo
experiencia nas construções narrativas / existenciais de seu sertão-mundo.
No modo mítico de ser no mundo, a Linguagem manifesta-se, pois, como esta
Palavra Cantada: esta Voz e este Silêncio que inauguram a existência.
O destino de Riobaldo é, portanto, inscrito como sina nas teias da Memória.
Lembrar dos feitos e fatos de jagunço é lembrar quem ele é e, ao mesmo tempo, como já
assinalamos, a abertura que lhe permite ser através da construção memorialística.
O guenos de Riobaldo se inscreve numa ambígua origem: sabe quem é sua mãe
e dela guarda lembranças afetuosas, mas não sabe, até a vida adulta (embora ouça
rumores a respeito), que seu pai era o tio.Morrendo a mãe, sente-se sem rumo e não é a
figura paterna quem lhe amarra o destino. Seu quinhão já está decidido na travessia, no
movimento de lançar-se ao sertão-mundo.
A jornada riobaldiana deflagra o quanto a porção de seu destino se instaura no
próprio caminho se fazendo: é na trilha dos áridos espaços sertanejos que se vão
delineando seus amores, seus ódios, suas motivações de viandante, a insígnia da
vingança; isto significa: sua trajetória vai sendo desenhada nos trajetos que o próprio
caminho_ sertão, buritizais, veredas_ se lhe oferece.
Para Riobaldo, o sertão se faz caminho para o Sertão e, assim, nessa dimensão, é
nas águas dos rios que sua sorte se inscreve: “Já era o do Chico_ o poder dele_ largas
águas, seu destino”(GSv,p.321). Assim como os rios seguem um curso definido, embora
possam desaguar em muitas possibilidades afluentes, os homens também recebem um
trajeto a percorrer, um curso que vai se transformando, pouco a pouco, no discurso de
sua existência.
A questão do Destino perpassa por toda a memória narrada, num impasse entre o
que já está destinado e o que temos a chance de mudar: “Mas foi nesse lugar, no tempo
dito, que meus destinos foram fechados. Será que tem um ponto certo, dele a gente não
podendo mais voltar para trás?” (GSv,p.305).
A morte surge como a certeza delimitada desde sempre: “A morte é o corisco
que sempre já veio”(GSv,p.231).
O amor também eclode como força a que não se pode resistir: “Destino preso.
Diadorim e eu viemos, vim”(GSv,p.214).
O Destino como questão, que gira entre o saber e o não saber, entre o que nos é
permitido conhecer e o desconhecido que se faz mistério, aparece na incisiva e
reiterativa indagação de Diadorim : “Você sabe do seu destino, Riobaldo? (p.211) /
“Você sabe do seu destino, Riobaldo?”(p.212)
Como a vida, que nos convida a saber e não saber o que nos aguarda, a narrativa
nos conflagra, através do sinuoso dizer de Riobaldo, a suspeitar o destino trágico de
uma moça, como se prenunciasse o fim de Otacília pelas mãos de Reinaldo. Só com o
desfecho da obra é que nos reencontramos com esta cena, que nos revela, na verdade, a
morte de Diadorim:
“Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de moça, morto á mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum
terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida? Ah, Diadorim ... E tantos anos já se passaram.” (GSv, p.207).
Percebemos, neste trecho, Diadorim como o destino de Riobaldo, seu quinhão de
vida e morte, de esperança surda, que o marca através dos tempos. A percepção de
Tatarana de que aquele amor era prenúncio de fatalidade nos é desvelada desde o início,
fortalecendo-se nesta passagem.
Outra interessante imagem do Destino nos é descortinada pela obra: “Acho que
o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai
não vendo o que é bonito e bom. Seja?”(GSv, p.202).
O cavalo surge como a imagem da liberdade, tanto que lhe é permitido “escolher
estrada”. Entretanto , mesmo na escolha que faz, há algo de involuntário e misterioso: a
impossibilidade de enxergar a beleza da vida quando se está rumando para a desgraça.
Além disso, a sentença termina com a abertura propiciada pela indagação: “Seja?”.
Assim, vontade e fatalidade, desejo e destino se entrecruzam, revelando-nos que em
Grande Sertão a dubiedade de ser isto e aquilo, de decidir e não decidir sobre os rumos
da existência, constituem a nossa ambígua caminhada como seres do entre.
Assim como o “cavalo que escolhe estrada”, mas também não sabe ao certo para
onde vai, Riobaldo questiona todo o tempo as experiências de sua trajetória,
marcadamente oscilante entre viver e morrer em combate: “ Ou me pegassem no
caminho, bebelos ou hermógenes , me matassem? Morria com um bé de carneiro ou um
áu de cão; mas tinha sido um destino e mór coragem.” (GSv,p.200).Já que ainda não
fora pego e, portanto, não padecera nas mãos do inimigo, podia seguir adiante,
buscando o que lhe estaria destinado.
Sua consciência do destino se abre para nós também quando diz: “Aviso. Eu
acho que, quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar o castigo, mas só para se ter
consolo legal, depois que o castigo passou e veio. Aviso? Rompe, ferro!” (pp.194-195).
Notamos que o destino chega como um aviso, mas não pode ser evitado. Sua
dimensão reside não em que possa ser combatido, mas que, sendo experienciado, possa
tornar-se aprendizado e garantir conforto aos que dele experienciaram.
Riobaldo sabe (e não sabe) que as partes que lhe cabem na vida são cada uma
delas doadas como uma oferta de descoberta e mistério: a ele é presenteado, como a
todos nós, mais do que o destino de fazer isto ou aquilo, de seguir por este ou outro
rumo, mas sim o profundo destino de ser.
Ser é o que a Moira, na fortuna , tem a nos doar: a inscrição de nosso ser que se
apresenta sendo e não sendo, que se vela e se desvela na dinâmica crucial de vida e
morte que governa, mais forte do que qualquer vontade humana, a existência. O próprio
verbo existir se configura, no latim, num movimento para fora (ex), respaldando nossa
procura de ser para além dos limites de um sujeito auto-suficiente.
A memória experienciada por Riobaldo faz-se, assim, mais plena do que uma
escritura autobiográfica: “E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for
jagunço, mas a matéria vertente.”(GSv,p.116).
A “matéria vertente” não diz apenas de si mesmo, mas, como vimos na essência
mítica de Moira e Mnemósine, diz a doação de ser que se instaura como lote do Destino
do que nos é e não é próprio e, assim, nos fala de um diálogo com o Ser, com o
Tempo, com a Linguagem. Enfim, desvela-nos um diálogo com a Memória do Mundo
que na própria narrativa encontra vigência.
Compreender o vigor mítico do guenos originário é ter a possibilidade de pensar
Memória, Poesia, Destino interligados pelo elo da vigência de ser. Assim, podemos
realizar nossa travessia hermenêutica na mesma perspectiva riobaldiana: de que a
procura já é, por si só, o achado mais fabuloso que poderíamos encontrar.
5 MEMÓRIA E TEMPO: O POÉTICO PONTEIRO DAS HORAS
MEMORÁVEIS
Memória e tempo encontram-se intimamente relacionados. Isto porque, quando
nos reportamos ao memorado, situamo-nos no limiar dialético da temporalidade: existe
um tempo vivido que dialoga com o tempo em que se lembra.
A lembrança, então, acontece como um jogo entre aparentemente duas
temporalidades: o passado e o presente. Isto significa: situamo-nos numa espécie de
duração.
Em nossa busca por compreendermos o tempo, acabamos usualmente por
defini-lo como uma duração que se apresenta dotada de começo, meio e fim, tornando-
se cognoscível como linearidade.
Entretanto, não possuímos a chave da conquista da temporalidade. Esta nos
transpassa, porque somos nela e por ela, sem possibilidade de nos localizarmos num
lugar que lhe seja exterior. Nessa compreensão, o próprio tempo se multidimensiona,
remetendo-nos ao caráter plural da realidade.
Como pluralidade, o tempo faz-se mais complexo do que a duração material das
coisas. A partir daí, outras apresentações de tempo se configuram.
As noções de passado, presente e futuro, enraizadas na lógica da sucessividade,
não se mostram suficientes para uma compreensão ontológica da temporalidade. A fim
de traçarmos um caminho poético e originário, pensaremos a questão do tempo tomando
como eixo as reflexões deslindadas pelo pensador Martin Heidegger.
Primeiramente, cumpre entendermos que o real não se apresenta para nós
encerrado em caixas distintamente lacradas com os selos “o que passou”, “o que está
sendo” e “o que ainda será”. Isso porque experimentamos a temporalidade como algo
que nos arrasta nestas três dimensões, sem qualquer fronteira pré-estabelecida. É nesse
movimento que podemos experienciar hoje algo que já vivemos ou mesmo celebrarmos
o que virá como algo que já está em nós, além de vislumbrarmos a impossibilidade de
se ater ao que se diz “presente”, na medida que não há essa “pausa” temporal, que nos
permite reter o instante como um agora estático. Afinal, tudo é fluido e fugaz,
irredutível a nossa mera capacidade humana.
Nessa linha reflexiva, Heidegger nos convida a pensar o tempo como vigor.
Vigor este que se dimensiona em “vigor de ter sido”, “atualidade” e “porvir”31. Mais do
que simplesmente possibilitar uma nova nomenclatura, o pensador nos oferece uma
outra possibilidade de transformar em questão o que consensualmente nos é dado como
tempo.
O “vigor de ter sido” compreende mais do que um passado efetivamente
acontecido e cerrado nas esferas do que não mais é. Como vigência, “ter sido” se
instaura como um modo da temporalidade no qual se flagra a “dupla experiência de uma
força que já se instalou e que continua atuante” (LEÃO, 1990, p.260).32
Sendo força já instalada, mas ainda atuante, o “vigor de ter sido” ultrapassa as
fronteiras do que “não é mais” e, assim, permanece “sendo”, imbricado
inextricavelmente no que urge como realidade.
Nessa dimensão é que se pode vislumbrar como a memória, numa perspectiva
ontológica, não pode ser reduzida à reminiscência nem se conota como a possibilidade
31 HEIDEGGER,M. Ser e Tempo.Parte II.Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 2 ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990. Especialmente capítulos 3 e 4. 32 LEÃO, E.C. In: Ser e Tempo. Notas explicativas acerca da tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Parte II. Petrópolis:Vozes, 1990, p.206.
de voltar “virtualmente” a um momento que deixou de ser. Afinal, nada ficou perdido
num “antes”, nada deixou de ser. A vigência de “ter sido” projeta a questão da
temporalidade para o que sempre se funda como desocultação e mistério. Este sempre,
não mais entendido como a continuidade ininterrupta, dialoga com a intermitência de
uma sempiternidade, que só assim é chamada por instaurar a possibilidade de ser, a cada
vez mais, num movimento fundante originário. A origem que aqui se desvela nada tem
a ver com princípio causal, mas sim com a potência inesgotável de vida e morte que
incansavelmente nos arrasta para sermos.
A “atualidade”, da qual Heidegger nos fala, também não pode ser medida pelo
tempo cronológico do que simplesmente “está acontecendo agora”. O vigor do atual
comporta primordialmente a ação, remetendo-nos ao verbo agere = agir , o que “conota
a força de impor-se a ... , guardando pois a dimensão de oposição e resistência”. Ou
ainda: “adversidade e resistência ativas à espera”(id.,ibid.). Mais do que meramente o
“agora” ou o “hoje” que chamamos “presente”, a atualidade remete-nos a um modo da
temporalidade no qual acontecer é marcadamente desvelar-se como sendo e velar-se,
resistente, como não sendo. Nessa dualidade oposta e harmônica, persiste ainda um
movimento de espera, que nos faz vivenciar o sentido de um porvir, já na
contemporaneidade dos haveres.
O “porvir” não se limita ao que “ainda não é”, visto que vigora desde o “vigor de
ter sido” e a “atualidade”. Assim, a adveniência já está lançada, ao projetar-se como
toda possibilidade de ser. É nessa linha de pensamento que se nos diz: “O porvir não
vem depois do vigor de ter sido e este não vem antes da atualidade. A temporalidade se
temporaliza num porvir atualizante do vigor de ter sido”.(HEIDEGGER, 1990,p.149).
Sem quaisquer demarcações entre anterioridade e posterioridade, o Tempo
Ontológico se dinamiza como caleidoscópio, no qual a vigência de ser se temporaliza,
portanto, como acontecer puro.
5.1 Tempo de auroras e veredas
Em GSv, Riobaldo experiencia as dimensões do tempo memorável, vivendo no
fluxo da memória tudo “ o que foi, é e será” não como realidades excludentes nem
complementares, mas sim como temporalizações vigentes do velo e desvelo de ser.
É nessa dinâmica que ele pode dizer: “O que é de paz cresce por si: de ouvir boi
berrando à forra, me vinha idéia de tudo só ser o passado no futuro. Imaginei esses
sonhos. Me lembrei do não-saber”(GSv,p.303, grifo nosso). E, de forma ainda mais
transtemporal, completa: “Comigo, as coisas não têm hoje e ant´ôntem amanhã: é
sempre.”(GSV,p.156). Sem limites temporais fixos, a simultaneidade passado / presente
/ futuro pode fazer-se vigência.
Em GS, não há a rigidez da cronologia. Assim, o tempo exato se transforma:
tudo acontece nos tempos memoriais da narrativa. Afinal, a própria realidade se deixa
ver como desgovernada, na medida que “avessava a ordem das coisas e o quieto comum
se transtornava” (GSv, p.241). Como a vida pode ser experimentada em seus avessos e
transtornos, a memória igualmente se remexe numa temporalidade viva e real, por
conseguinte, caótica e cosmogônica simultaneamente.
E ainda, quando nosso protagonista profeticamente diz: “Eu lembro das coisas,
antes delas acontecerem...” (GSv, p.47). A memória, aqui ontologicamente deslindada
como porvir, atesta o que também podemos colher nas semeaduras de Ronaldes de
Melo e Souza (2002,p.11): “As Musas não cantam o passado ou o futuro virtualmente
presentificado. Nada dizem acerca do real realizado. O canto das Musas realiza (kraínei)
o que diz, desvela o ser dos entes a que se refere”. É nessa conjuntura que o canto
memorável se revela como canto poético, recordando os elos filiais entre as Musas e
Mnemósine.
A Memória experienciada por Riobaldo é a configuração desta criatividade
genesíaca inerente à vida e à poeticidade, na qual o tempo se projeta para o mais além
da mera factuidade sucessiva e amorfa do tempo materializado como cronologia.
Mas como a temporalidade da memória pode ser medida? Que medida é esta que
não se contabiliza?
Para complementar nosso estudo, trouxemos a lume as noções de eternidade e
eviternidade.
A eternidade potencializa um tempo sem começo nem fim. Por não existir um
princípio, já se apresenta como ruptura ao padrão de tempo material, deslocando a
questão da sucessividade para a duração nunc stans:
“o que é eterno, nem começa, nem tem sucessão, nem finda. Sem começo, meio e fim, é um puro agora concentrado: nunc stans. É o modo de duração do absoluto.”(LEÃO apud JARDIM,1997,p.10).
O absoluto, portanto, apresenta a eternidade como medida. Seu caráter
mensurável pauta-se pela esfera da indeterminação, sem qualquer possibilidade de
medir-se pela lógica linear. Rompendo com a ordenação cronológica, a eternidade só
poderia se comprometer com a idéia de divindade, sendo o tempo no qual os deuses
vigem.33
Perguntamo-nos, portanto: a memória se realiza no seio desta temporalidade? A
memória dura na mensurabilidade do eterno?
É Jardim quem nos traz a concepção de memória como preconizadora de um
princípio e, portanto, distante da negativa total de um começo, emergente da noção de
eternidade: “não é possível recordarmos de algo que não tenha um princípio”. (id,ibid.). 33 JARDIM, A.Op.cit..,p.9.
Assim, toda lembrança se situa num início. Quando recordamos, somos levados
a uma inauguração, ao principiar de uma experiência. Daí, o tempo eterno não
corresponder completamente ao tempo da memória.
Nesse mesmo caminho, Jardim (op.cit.,p.10) nos assinala que, para uma
compreensão mais abrangente da temporalidade do memorável, devemos buscar ainda
como o tempo pode se dimensionar numa terceira possibilidade: a sua manifestação
como eviterno.
A eviternidade se configura como a temporalidade na qual se depreende um
início, mas não se alcança um término. Ou na fala de Carneiro Leão:
“Muitos escolásticos acreditavam, entre o tempo e a eternidade, num terceiro modo de duração, o aevum, a eviternidade. Trata-se de uma duração que tem começo, tem sucessão, mas não tem fim”. (Leão apud Jardim, op. cit.,p.10)
Começar, suceder e jamais cessar são dimensões que compactuam com a
temporalidade da memória, na medida que lembrar é movimento complexo entre
emergir (começo), acontecer e infinitude, já que se instaura como a possibilidade
inesgotável de recordar e esquecer: experienciação do duplo domínio de vida e morte no
qual estamos continuamente lançados.
A memória lança sua temporalidade na dinâmica do girar incessante: “Do que o
que: o real roda e põe diante. _ “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo,
são as horas de todos”_ me explicou o compadre meu Quelemém.”(GSv, p.154).
Nas horas que são só nossas, o tempo sabe mover-se na giratória força que, ora
se faz lenta e latejante, ora vertiginosa e efêmera. Nas horas de todos, o tempo também
transverte seus ponteiros na certeza incerta de que a vida se constrói numa
temporalidade que não é cronológica, mas vertical, variando na intensidade dos
instantes e não na seqüência dos caracteres numéricos.
O ponteiro das horas memoráveis gira em torno de auroras e veredas, pontuando
a vida não pelo rigor cronométrico, mas sim pela riqueza de ser que emana da phisys,
ora como possibilidade do despertar_ no entre auroreal da noite que ainda não é dia, do
dia que ainda não se despediu da noite_ ora como caminho de refrigério_ nas veredas
que surgem em meio ao árido extremo dos descaminhos do sertão.
Inaugurando-se onticamente, porém ultrapassando o limite dos entes34, a
memória inscreve-se numa temporalidade eviterna, na qual Riobaldo se move para
começar sua narrativa, figurá-la como acontecimento memorável e, assim, receber como
dádiva a liberdade de não seguir qualquer cronometria fixa, culminando na bela
simbologia de travessia e ∞, na qual a Memória se celebra como a origem inesgotável
de toda criação.
6 MEMÓRIA E ALETHEIA: A QUESTÃO DA VERDADE NO DESAFIO DE NARRAR O QUE A MEMÓRIA GUARDA E PROTEGE
“... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas _ mas que elas
vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou”.
(GSv,p.39, grifo nosso).
Dispomo-nos agora no empenho de pensar a relação entre Memória e Verdade
na sua manifestação como estatuto poético. Para tanto, continuamos nossa proposta
dialógica com a obra Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
A memória que a obra deflagra faz-se marcadamente distinta da acepção
consensual de mera reminiscência. A partir desse mote, diversas e profundas questões
insuflaram nosso pensamento. São elas: pode a Memória ultrapassar a temporalidade do
passado e constituir-se como vigência, atual e atuante?
34 Jardim,A. Op.cit., p.10.
Pode a verdade fugir dos parâmetros da lógica e brotar, sinuosa, numa
tensionalidade entre ser e não ser?
Pode a obra ser o lugar de experienciação da verdade? Real / Coisa e Verdade
implicam-se numa dinâmica entre o velar e o desvelar?
Como a narrativa, criação amplamente concebida como ficcionalização, pode
fazer eclodir a verdade por excelência? Como a verdade se manifesta em meio às
veredas do Grande Sertão?
As questões são, como se percebe, múltiplas. Não há limites para o indagar e não
propomos aqui o fechamento das mesmas com assertivas conceituais.
Nosso caminho investigativo propõe-se menos como fala que como escuta.
Tentaremos deixar viger o silêncio ressonante do “sertão é o sozinho”, para adentrarmos
na travessia do infinito rosiano. Travessia do pensar tecendo e do tecer pensante, na qual
o tecido de vazios e excessos compartilha conosco toda a magia da única tarefa
plausível do pensamento: manter a força da resposta enraizada na pergunta.35
6.1 Memória e Verdade: o verdadeiro, a coisa, o real _ pensamento platônico e
pensamento originário
Na tradição ocidental do pensamento, Platão é lido como o cerne que direciona
todas as referências com o real. Sua doutrina do mundo das idéias abrange as múltiplas
(e, ao mesmo tempo, reiterativas) respostas que têm sido criadas para a acepção de
verdade na qual se embasa toda a metafísica. Mas qual a verdade que o platonismo
fundou, elaborada em meio às sombras de uma caverna mítica?
35 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: ed.70, 1989,p. 57.
No diálogo A República, Livro VII, passagens 514-a -518 d, Platão nos mostra
uma caverna habitada por homens que só conheciam como realidade o seu interior,
suspeitando, através das sombras projetadas pelo fogo, o que se constituía como seu
mundo.
Mas, para que o mundo se desvelasse verdadeiramente, era preciso um
movimento ascendente: sair do interior da caverna, subir rumo à luz do Sol e descobrir a
realidade em plenitude. A esse real pleno, sítio do olhar liberto, figurado fora da
caverna, sem quaisquer manchas ou sombreados, chamou o pensador de “Mundo das
Idéias”.
Quando aquele que desconhecia o mundo das idéias o atinge, encontra o Sol (luz
não produzida pelo homem), o que torna as idéias visíveis, ou noutras palavras: o astro
celeste evoca a imagem da Idéia das Idéias, consensualmente chamada de Idéia do Bem.
Após um período de adaptação à luminosidade ofuscante, o real floresce para o antes
prisioneiro da caverna e este entende a limitação na qual vivia. As coisas, então, tais
como elas são, tornam-se verdadeiramente conhecidas.
Conhecer, aprender, saber implicam retornar à caverna e levar aos outros o
mesmo conhecimento. Os ainda prisioneiros devem ser conduzidos do não-velamento,
ainda sombreado, para o mais perfeito desvelamento.36 Nessa atitude, mora o perigo da
resistência dos companheiros ao novo, que eclode como mistério e sinuosidade. Mas o
preço pela verdade precisa ser pago, pois se não, só se obterá do real a mera ilustração
delineada pelas sombras.
A concepção de verdade que aqui se apresenta é regida pela lei da adequação. É
necessário que ao mundo das idéias corresponda tudo o que se quer dizer verdadeiro. É
36 HEIDEGGER, Martin. A teoria da verdade segundo Platão. Trad. do francês: JARDIM, A. Mimeo.
no âmbito da claridade, da presença, da luz, que a verdade se constitui. Aqui, a
obscuridade não assume nenhum relevo na construção do conhecimento:
“Eidos, Idea, a palavra fundamental do pensamento platônico, é a exposição do ser na evidência em que o ente se mostra. A evidência, porém, é um modo da presença. Que não existe evidência sem luz, o filósofo das idéias já o reconhecera. Mas ignora solenemente que não há luz alguma nem claridade nenhuma sem clareira. Até mesmo a sombra necessita da clareira. Na filosofia permaneceu impensada no ser, na presença, a clareira dominante e reinante enquanto tal”. (HEIDEGGER apud SOUZA, 2002, p.28).
Desse modo, as coisas, em sua evidência, exigem o olhar certo, a direção exata,
para que se desvelem ao homem. Como este, muitas vezes, nem percebe que reside na
caverna, cercado pelas sombras do engano, o que lhe resta é sempre a crença numa
realidade que apenas lhe é oferecida como simulacro.
A caverna é, portanto, a representação do cativeiro no qual todo homem está
preso, conhecendo do real apenas a aparência, ou seja, experimentando a existência
como cópia imperfeita.
Seguindo a diretriz do pensamento platônico, buscar a verdade significa
realmente encontrá-la, através da dinâmica ascendente do saber enquanto racionalidade.
O Sol que ilumina o homem ocidental é constituído pelas chamas da lógica e da
exatidão.
Quando a lei se pauta primordialmente pela Razão, a noção das coisas nela
encontra o respaldo para sua autenticidade.
Desse modo, ao tocarmos a palavra coisa, percebemos a força da concepção de
verdade legada pelo platonismo. Esperamos, então, que o intelecto do sujeito, quer
racional, quer psicológico, defina o conhecimento (da coisa) como “verdadeiro”.
Mas, o que é a coisa para que seja tomada como objeto? Seria a obra uma mera
coisa (no máximo representação estilística da coisa em si), portanto, impossibilitada de
manifestar a verdade? Seria a verdade apenas declarada no âmbito do real? Mas o que é
o real, concebido, atualmente, tão afastado do poético?
Na trajetória do pensamento metafísico, a coisa é concebida partindo de suas
propriedades. A coisidade da coisa, pois, determina-se pelas características que a
circundam. Essa concepção nos encaminha para compreendermos a coisa enquadrada
dentro de uma proposição, na qual a relação sujeito-objeto direciona sua realidade.
A percepção da coisa através dos sentidos torna-se, pois, a própria coisa. Daí a
subjetividade abstrair a coisa e torná-la um conceito, muitas vezes pretenso à
universalização.
A coisa, como substância e seus acidentes, torna-se a diretriz para analisar tudo o
que nos cerca. Afinal, tudo o que não é nada, é uma coisa, ou melhor, tudo o que é, uma
coisa é. Assim é que se pode atribuir a determinadas coisas o caráter de mera coisa; a
outras, o de utensílio (dada sua serventia) e a outras, até mesmo, a resistência a nomear-
se como coisa. Um claro exemplo disso temos nas proposições que reivindicam a luta
contra a reificação do homem, transformado em “coisa” pelos sistemas exploratórios
vigentes. Tal resistência nos revela o quanto a compreensão da coisa, em si, vem sendo
relegada a um plano depreciativo, no qual o humano se coloca como o centro do real e,
portanto, superior a tudo o que ele pode denominar e encaixar dentro do conjunto coisal.
Entretanto, serão estas concepções da coisa e de sua coisidade sentenças
absolutas?
Já nos alerta o pensador: “A confiança na interpretação corrente de coisa só
aparentemente é fundada” (HEIDEGGER, 1989, p.17), visto que aprisiona o elemento
coisal como suporte e não consegue estabelecer sentidos entre as manifestações do
coisal e do não coisal. Nessa perspectiva, o elemento não coisal, o que não é, acaba por
ser silenciado e negligenciado pela ratio. A ela, só interessa a presença, sem ao menos
refletir sobre a presença vigorosa da ausência.
Ainda outra interpretação de coisa nos é assinalada: “A coisa é uma matéria
enformada” (HEIDEGGER, op.cit, p:19). Se matéria e forma norteiam a acepção da
coisa, então, adentramos num terreno sinuoso onde quatro causas se conjugam para dar
sentido à coisidade deste modo compreendida.
São elas: a causa materialis, o material, a matéria de que são feitas as coisas; a
causa formalis, a figura na qual o material se insere e toma corpo; a causa finalis, a
finalidade,a plenitude a que pode chegar a coisa, a qual direciona a matéria e a forma da
criação; a causa efficiens, englobando o artífice da obra e a obra pronta 37.
As quatro causas remontam a Aristóteles. Porém, nas raízes de seu pensamento,
ainda não havia a funcionalidade que hoje se deflagra na questão da causalidade e nem
mesmo a quarta causa se via configurada. Foi nos moldes do pensamento escolástico
que esta foi deslindada, tendo como chave a interpretação do artífice como aquele que
opera a obra, o que dá corpo à noção de instrumentalidade, tão cara aos nossos dias.
Como a causalidade rege o princípio da coisidade, em que toda coisa encaixa-se
na dinâmica das quatro causas, podemos dizer que a coisa é de-finida como aquilo que,
enformado e apresentado em seu aspecto no mundo, possui uma finalidade e precisa ser
um efeito, ou ainda, realizar-se dentro de critérios de eficiência.
37 HEIDEGGER, Martin. A Questão da técnica. In: Ensaios e conferências.Petrópolis: Vozes, 2001,p. 13.
A causa efficiens, concebida como efeito de uma atividade, eficiência e eficácia
de um fazer 38, traz junto a si, uma transformação na própria concepção de finalidade.
Esta deixa de corresponder ao Τελος grego_ no sentido de levar à plenitude_ e passa a
abarcar o fim como meta, o qual precisa de um meio para ser atingido. Daí o caráter
instrumental a que se congregam as coisas no mundo.
Meios e fins instrumentalizam, pois, as coisas e tornam-nas apenas elementos
passíveis de serem utilizados. Tanto assim que a natureza é vista como uma fonte de
recursos a serviço da humanidade.
Nessa perspectiva, percebe-se o afastamento cada vez maior do entendimento de
coisa em sua acepção mais originária.
Mas se a coisa não é simplesmente o que é, o que é a coisa então?
Para continuarmos nos movendo no âmbito da pergunta, convém pararmos um
instante mais: o que era a causalidade no vigoroso experienciar grego?
A causalidade, para os gregos, apoiava-se em outros sentidos, apresentando-se
intimamente associada à noção de responsabilidade 39. Responsabilidade essa que diz do
dever e do responder de uma causa a outra, numa reciprocidade indelével.
Nessa trilha de pensamento é que podemos vislumbrar a coisa se manifestando
como material, encontrando o seu perfil, tornando-se o que está destinada a ser e,
finalmente, pronta pelas mãos de um artesão (que nela exerceu um ato criativo). Porém,
a criação do artífice aqui não é nada mais do que a escuta de um apelo para dispor-se a
tal reciprocidade.
A causalidade como dever e responder resgata, pois, o sentido originário da
causa grega: reunião dos modos de aparecer, ou melhor, o deixar-viger.
38 Op.cit:,p.14. 39 Op.cit:,p.15.
Pensar assim é igualmente dizer: “Todo deixar-viger o que passa e procede do
não-vigente para a vigência é pro-dução” (HEIDEGGER, 2001, p.16). Na passagem da
não-vigência para a vigência há um conhecer a coisa não como mera fabricação, estática
em uma forma e aspecto a ela dados, mas sim entendê-la como uma manifestação
vigorosa, como a própria ação de ser, como o acontecer em dinâmica incessante de velo
e desvelo.
Se a coisa faz-se acontecer, então a verdade não pode ser reduzida à idéia de
correspondência com um modelo conceitual. Afinal, o que está em constante sendo, não
pode estagnar-se numa proposição abstrata.
A coisa manifesta. Não é, por suposto, um objeto passível de depreensão em seu
mistério. A Coisa, pois, faz-se Res, o próprio real em seu fulgor vigente. Todo real em
vigor vigente é uma pro-dução, uma espécie de desencobrimento40.
Desencobrir é a dinâmica da realidade que, ainda assim, encobre-se no mistério.
A verdade não é mais uma descoberta do homem, pois este não pode des-cobrir o que,
em si, é simultaneamente coberto/ descoberto.
Dessa maneira, a visão da técnica como meio, para utilização deste real, não
acrescenta nenhuma veracidade. Não mais um simples medium, a técnica não se nomeia
mera tecnicidade. Compreendida como pro-dução (desvelamento), a técnica é algo
poético41.
Coisa e real sendo sinônimos de vigência realizam a abertura necessária para
adentrarmos num sentido de verdade mais profundo, no qual são destituídas as
assertivas do verum e do falsum em prol da reflexão pelo ser e não ser como concriação
genesíaca.
40 Op.cit. ,p. 17. 41 Idem, ibidem.
A Coisa, o Real, constitui-se como árdua tarefa do pensamento, promessa que é
de proximidade, não de conclusão. Poderíamos dizer que o melhor a fazer é pensá-la
(lo) não no âmbito do é, mas do ser. Afinal a entificação reduz o plano do agir ao plano
substantivo e, portanto, cala o movimento vigoroso das coisas em prol de uma
estaticidade pouco convincente.
A Coisa não é algo a ser definido e catalogado. A Coisa acontece. Sendo
acontecer, empreende em si a vigência de ser e realizar-se. A Coisa não é nada mais,
nada menos do que o Real enquanto agir e manifestar-se.
6.2 O pôr-se-em-obra da verdade: a obra como lugar essencial do advento da
Verdade
Mas, por que afirmar que a verdade pode ser experienciada no ato narrativo? O
que a poesia, aqui corporificada na obra rosiana, realiza a ponto de a verdade florescer
na própria tessitura da narração memorável?
Que a verdade seja o real sendo até se pode compreender. Entretanto, como a
obra se torna o lugar desta verdade ainda produz grandes interrogativas e, portanto,
convite à investigação.
À obra, podemos indagar: o que é verdade na travessia riobaldiana? Ele
realmente nos conta o que, de fato, aconteceu? Sua memória é guardiã da verdade
narrativa? Seria o sertão o lugar do encontro com a claridade de todo o saber? Em que
empenho o protagonista se lança, para alcançar a verdade de ser? Mas que verdade é
esta que se vela e desvela na poética de Grande Sertão?
Poderíamos co-responder a estas indagações valendo-se da profusão das palavras
do pensador: “Na obra, o acontecimento da verdade está em obra” (HEIDEGGER,
1989, p. 46).
Esta verdade, como já vimos, não mais corresponde à adequatio; embora esta
formulação ainda seja facilmente aplicada em muitas áreas de conhecimento.
Entretanto, estamos na era das incertezas, quando a própria ciência se descobre
carregada de assertivas imprecisas. O verdadeiro, cientificamente comprovado, dilui-se,
a cada nova descoberta, revelando a debilidade de todo conceito universalizante. O fim
das certezas, a estabilidade das proposições, o tempo compreendido unidirecionalmente,
tudo isso tem sido alvo de ávido questionamento.
Portanto, o que a obra de arte sempre contemplou e a ciência agora abre os olhos
para ver é a falácia do determinismo em meio a uma realidade marcada por “flutuações,
multiplicidade, multiplicidade de futuros, multiplicidade de realizações” (PRIGOGINE,
2003, p.57).
O eterno tempo da física clássica, medido pela idéia de irreversibilidade, dá
lugar a uma compreensão mais profunda da temporalidade, marcada pela reversibilidade
e pela criatividade das formas diversas de evolução.
Nenhuma unilateralidade consegue mais encontrar refúgio nas novas pesquisas e
debates. A dimensão plurívoca do real_ entremeada por contrários harmônicos_ é, a
cada vez, alvo de um pensamento que aceita a vigência do caos como partícipe da
dinâmica genesíaca. Sem qualquer notação pejorativa, o sistema caótico42 é vislumbrado
como vigor de concriação junto ao movimento cosmogônico.
A verdade, regida pela mesma dinâmica do sistema caótico e de suas flutuações,
encontra realização na ampla magia de velar e desvelar-se. Magia esta que ressoa na
melodia memorável de Grande Sertão: veredas.
42 PRIGOGINE, Ilya. O fim da certeza. In: Representação e Complexidade.Rio de Janeiro: Garamond, 2003,p.59.
A obra, por suposto, opera o acontecer da verdade. Isso nos diz: é a narrativa
enquanto advento do poético, que instaura a realidade em todo seu vigor manifestativo.
É no operar da narração, configurada como memória para Riobaldo, que se dá o Ser,
que a Coisa / Real se torna convite ao seu desvelamento.
A obra, podemos afirmar, é uma pro-dução, tal qual o real se pro-duz em sua
vigência. Precisamos, a partir daí, compreender os caminhos dessa vigência na arte e,
assim, desmitificar a idéia do real alheio ao poético.
A técnica, como assinalamos, é um modo de saber. Como sabedoria é, pois, um
produzir do ente, na medida em que “traz o presente como tal, da ocultação para a
desocultação do seu aspecto” (HEIDEGGER, 1989, p.47).
Nessa perspectiva, o artista não é técnico por ser o sujeito criador da obra, mas
sim por deixar-viger, deixar aceder o ente à sua presença 43. Nesse viés, torna-se o
intérprete, no sentido daquele que se dispõe para a força criadora, através do inter, que
marca seu diálogo com a essência criativa.
Se a essência da obra se diz como o acontecer da verdade, a criação pode ser
entendida como o deixar-emergir num produto (id., ibid.). Produto, não como efeito,
mas como o florescer da ação. Ou seja: poiesis.
Mas, e a verdade? Como esta, em sua dinâmica essencial, se move num tender
para a obra?
Primeiramente, convém saber que a verdade acontece num combate entre terra e
mundo. Porém, quando falamos de terra e mundo, o que nos chega à mente está deveras
açulado pelas preocupações cotidianas. É preciso reacender a chama da compreensão
originária, para que a verdade possa igualmente eclodir em sua plenitude.
43 HEIDEGGER, Martin. Op.cit., p.48.
Terra é, tomando emprestadas as palavras do pensador: “onde o homem funda o
seu habitar.(...) / onde o erguer alberga o que se ergue em evidência” (HEIDEGGER,
1989, p.33). Nessa argumentação, terra é concebida como um lugar, um onde que,
como abrigo, faz-se guarida para o homem e as demais coisas, revelando-os, pondo-os
em evidência.
Ainda nessas linhas, temos: a terra é o que ressai e dá guarida. Ou ainda: “A
terra é o infatigável que está aí para nada. Na e sobre a terra, o homem histórico funda o
seu habitar no mundo”. (op.cit.,p. 36). A terra, que está aí para nada, oferece-se ao
homem e este a habita.
Dessa maneira, convém salientar que “o homem habita esta terra”
(HÖLDERLIN apud HEIDEGGER, 2001, p.168, grifo nosso) fixando-se nela e nela
constituindo sua existência. Porém, não só a habita como também experiencia mundo.
O mundo não se constitui apenas do que existe ou como reunião das coisas que
aí estão. Ele pode ser entendido como “(...) o sempre inobjetável a que estamos
submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da benção e da maldição
nos mantiverem lançados no Ser” (HEIDEGGER, 1989, p.35).
O mundo, que não pode ser apreendido como objeto, só é possível nas esferas da
linguagem. Daí, só o homem como aquele que recebe a linguagem, ter o dom de
mundificar. As demais coisas habitam esta terra. O homem pode, pela e na linguagem,
habitar poeticamente esta terra44.
Ao falarmos em um habitar poético, entendemos que toda a dinâmica do real
impele o homem a uma morada onde a Poesia seja a medida de suas construções.
44 HÖLDERLIN apud HEIDEGGER, Martin. Poeticamente o homem habita. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001, p.168.
Sendo, pois, a verdade a eclosão de um combate originário, cabe-nos pensar
como este pólemos presentifica o Ser e como a obra poética nos permite habitar no
redemoinho dessa dinâmica.
O movimento duplo e, ao mesmo tempo, uno, de terra e mundo os revela como:
“essencialmente diferentes e, todavia, inseparáveis. O mundo funda-se na terra e a terra
irrompe através do mundo” (HEIDEGGER, 1989, p.38). Nesse combate entre o abrir-se
do mundo e o fechar-se da terra, mesmo que haja uma força de suplantação de um sobre
o outro, não há sobreposição. Ocorre, ao revés, que na vicinalidade da luta, um se
reafirma no outro, numa harmonia de contrários que instaura a plenitude do ser.
Daí a Poesia ser a condição e a fundamentação do habitar / construir humano. É
ela, enquanto deflagradora deste embate que percorre a vida como um todo, o que faz
abrir na crateridade da terra o mundo que a linguagem erige e doa ao homem.
O homem, vislumbrando a dimensão do entre, aqui delineada no entre terra e
mundo, recebe da linguagem a essência de suas ações, o agir poético _ já que, em sua
densidade etimológica, poiesis é como se nomeia a essência do agir.
Habitar poeticamente é resgatar a medida conferida pela Poesia, em sua
constituição de mundo. Medida esta que não é gráfico / quantidade. Medida que é um
deixar-ver o entre-lugar das coisas, do homem, do mundo.
A Poesia, por possuir a propriedade de não descrever as coisas, mas de fazer
apelo ao desocultamento que deixa mostrar-se ocultando, deflagra a verdade que, tanto
se permeia pelo fechar da terra quanto pela abertura do mundo.
A verdade, então, se institui no ente. Instituir-se onticamente é algo de sua
pertencência. Um dos modos essenciais desta manifestação é o pôr-se-em-obra-da-
verdade45. É o que assim se diz: “(...) há na essência da verdade o tender para a obra,
como uma possibilidade eminente de a verdade ser ela própria ente” (HEIDEGGER,
1989, p.50). A verdade doando-se como ente revela-se, então, no operar da obra como
real.
Aqui, real e poético não mais se dissociam, como se coubesse ao primeiro a
legitimidade e ao segundo, a fantasia e a falácia. Isso porque a Poesia, enquanto
essência do agir, é em si mesma instauração de realidade, na qual terra e mundo travam
seu vigoroso combate.
A obra realiza tal abertura: as brechas irrompem como verdade a não-verdade.
Esse é o lugar onde a obra realmente opera o fazer poético. Portanto, o fazer real.
Com o advento da verdade, originado no embate terra / mundo, clareira /
ocultação, articula-se a criatividade do real, que pode ser dita assim: “Na medida em
que se abre um mundo, põe-se em decisão para uma humanidade histórica a vitória e a
derrota, a benção e a maldição, a dominação e a servidão” (idem, ibidem).
Na obra, esse mundo emerge tão vigoroso quanto qualquer decisão de um
mundo a ela exterior. O mundo movente de Guimarães Rosa, por exemplo, apresenta-se
numa vigência tão verdadeira de vida e morte, benção e maldição, alegria e dor, quanto
a experienciação dos mesmos no chamado mundo não-ficcional.
Aliás, ficção e não-ficção, dicotomias tão apregoadas pelo pensamento
cientificista, se diluem quando aprofundamos no saber etimológico: fingir vem do verbo
latino fingere, que diz, dentre outros significados: fingir, formar, imaginar, educar,
45 HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte Lisboa: Edições 70, 1989, p.49.
modelar na argila. Nessa reflexão, ficção é algo real e verdadeiro, pois o homem, da
argila, foi ficcionado por Deus, no mito bíblico e, por Cura, no mito latino.
Ficcionar, figurar o ser humano, criar a partir do nada a vida que vige, é o que de
mais real e concreto podemos presenciar em nós mesmos. Herdando da experiência
divina esta técnica, como pro-dução / desencobrimento, o homem pode co-responder à
linguagem, vigor de toda ficção, ficcionalizando mundos em pungentes sentidos.
Por sua vez, enquanto um mundo (mundos) emerge (m), a terra se permite o
operar da obra num recolher. Tal recolhimento, como guarida, dá à verdade a
possibilidade de receber uma forma. Em nosso estudo, esta forma é a tessitura narrativa
na qual Grande Sertão instaura-se como verdade.
Nesse modo, tudo o que é verdade, permanece.
A verdade, posta em obra pela Poesia, instaura a permanência através da
salvaguarda46 . Só para a salvaguarda é “que a obra se dá no seu ser-criada como
efetivamente real” (op.cit.,p:53).
Esta salvaguarda se realiza na necessidade que a obra tem de encontrar os que
respondam à verdade que nela acontece. Tal necessidade parece ressoar toda a
fragilidade do poético. Pois, se precisa de salvaguarda, como pode ser dimensão maior
que o humano?
Entretanto, o fato de tender para a salvaguarda não a diminui nem a fragiliza.
Sua salvaguarda está garantida na ligação constante com os que a podem salvaguardar,
mesmo quando não os encontra. O elo entre o homem e o poético não esmorece. Mesmo
quando o poético jaz esquecido, este olvido é ainda uma salvaguarda, já que a Poesia
ainda vive, vigorando tanto na sua descoberta quanto no repouso da espera. Descobrir-
46 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 1989, p.52.
se ou repousar são movimentos de uma mesma dinâmica, que não anula a verdade que
poeticamente vige. A verdade, e não o homem, é a salvaguarda da Poesia.
Sendo salvaguarda, o poético permanece. Sendo permanência, constitui história,
evoca a memória.
A autenticidade é conferida à obra por seu próprio obrar ou, noutros termos: por
seu poetizar. É assim que podemos compreender que “toda arte, enquanto adveniência
da verdade do ente como tal, é na sua essência Poesia” (op.cit.,p.58).
A Poiesis, como um modo do projeto clarificante 47 da verdade, nos lança diante
de uma compreensão da realidade carregada da vigência de ser. A oferta desse real não
segue parâmetros lógicos de depreensão e análise, pois vige como excesso e vazio.
É, repetindo: no poético que mundificamos. Se só construímos mundo como
sentido pelo agir essencial da Poesia, então nada mais justo do que reconhecer, nessa
harmonia inusitada, a poeticidade como o que traz à tona o fulgor do real, fundando a
obra como o lugar originário de ser.
6.3 As veredas da Verdade em Grande Sertão
Riobaldo narra para achar a verdade. Esta remete à pergunta central do romance:
“O diabo existe e não existe?” (GSv, p.26). Na dubiedade da própria indagação, nosso
narrador nos convida ao vazio angustiante da não-resposta. Mas, se não há resposta, se
existe e não existe numa estranha concomitância, por que perguntar? Qual a eficácia do
questionamento se não se possibilita o encontro com a verdade perscrutada?
Essas seriam certamente nossas elucubrações se nos guiássemos pela falácia da
logicidade, na qual perguntar implica responder; e ainda, não apenas responder, mas
trazer no enunciado da resposta a verdade corretamente delineada. Contudo, o que
47 Op.cit.,p.58.
Riobaldo experiencia como busca e verdade distancia-se muito da concepção
consensual de nossa contemporaneidade. Daí, ser-nos imprescindível a escuta destas
questões na fonte do pensamento grego.
A experiência grega de verdade se dizia com a palavra aletheia
(LEÃO,2002,p71). Em sua morfologia, estão presentes tanto o alfa privativo a quanto o
lethe, do rio Lethe, cujas águas traziam o esquecimento. Assim, guarda
etimologicamente o significado de des-esquecimento, desencobrimento, o que é trazido
à desocultação, o que se desvela. Todos esses sentidos remetem ao sentido originário de
Memória.
Assim é que toda recordação é um des-esquecimento, um desvelamento. Este
ocorre na medida de um iluminar48. Mas o iluminar não se constitui numa luz total, que
a tudo clareia e nada deixa escapar. Se assim fosse, não haveria memória, apenas
rememoração. A máquina, por exemplo, domina esta claridade exata, na memória que
comporta como bytes. Essa memória se de-fine como armazenamento, pronto a ser
extraído como informes, através dos quais a verdade se dá como exatidão.
A memória ontológica, concedida à dimensão humana, é a memória que se in-
define, já que se instaura na infinitude de possibilidades memoráveis, as quais nos
assaltam, repentinamente, como instantes vigorosos da paixão de ser.
Ser se inscreve no duplo domínio encobrimento / desencobrimento.
Superficialmente, poderíamos entender essa duplicidade como ocorrência sucessiva, na
qual algo se desvela e depois se vela, vice-versa, em movimentos distintos. Entretanto,
duplo domínio vigora para além de uma linha diacrônica. A simultaneidade é
constituinte dessa manifestação dual, o que nas palavras de Heidegger (2003, p.233)
assim se configura: “Estar em vigência é um encobrir-se iluminado”. Iluminação e
48 HEIDEGGER, Martin.In:Aletheia.Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2003, p:228.
velamento se apresentam inextricáveis, levando-nos a uma compreensão de verdade que
se distingue da ortodoxia anteriormente mencionada.
Todo desvelamento perpassa por esse clarear da clareira que, mesmo
iluminando, guarda segredos. O véu permanece, na medida que não é somente expor
algo que se achava oculto, mas sim expor o que ainda vigora numa dinâmica de
latência, ou, no dizer memorialístico: de esquecimento. O que podemos vislumbrar nas
seguintes palavras:
“Na memória da physis / ser como poiesis não há dissolução, não há aniquilamento. Há o mistério sempre desafiante da diferença como diferença, ou seja, da identidade não formal nem gnosiológica das diferenças, mas concreta e ontológica” (CASTRO, 2004,p.24).
Nessa dimensão, verdade não se reduz à mera adequação, numa correspondência
ao verídico _ no sentido daquilo que, experimentado nas suas possibilidades de
correlação com uma causa primeira ou modelo superior, alcança homogenia /
homoiosis. Verdade, segundo a dinâmica da aletheia,é o que vigora numa vigência de
velo e desvelo, de aparecimento que secreta um ocultar-se. É a dinâmica da physis / ser
que, no pensamento de Heráclito assim se diz: “physis kryptestai philei”49 (fragmento
123) _ o brotar incessante ama velar-se.
A verdade surge, nessa dimensão, como o puro acontecer (HEIDEGGER, 2001,
p: 231)50 , o que se desvela para nós enquanto experiência de vida e morte. Daí verdade,
poeticamente, deslindar o apelo do que se presentifica como aquilo que acontece / brota
/ eclode, não apenas o que se diz como fato, ocorrência. Nessa diretriz é que Rosa
invenciona o seu mundo-sertão com verdades que vigoram enquanto encantamento
inobjetáveis.
49 HERÁCLITO apud SOUZA, Ronaldes de Melo e. A criatividade da memória. In: Historicidade da memória.ORG. Francisco Venceslau dos Santos. Rio de Janeiro, Caetés, 2002, p. 25. 50 HEIDEGGER,Martin. Aletheia. In: Ensaios e Conferências.Petrópolis: Vozes, 2001,p. 231.
A memória que busca sua verdade não se inscreve, portanto, numa procura por
uma revelação ascendente, que a tudo reduz em claros conceitos abstratos. Ao revés, o
memorável suplanta toda lógica linear e segura, visto que se dimensiona na imprecisão e
na simultaneidade vigorosa dos contrários. É nessa dinâmica que a narrativa
memorialística se articula para Riobaldo.
Narrando se instaura a busca da verdade. Verdade que se deflagra como
aletheia, na qual o ex-jagunço “não sabe se sabe” e nem se “conta exato”. A demanda
riobaldiana encontra-se indubitavelmente marcada pelo velo / desvelo de todas as
coisas, de tudo o que, por ser,é tão real.
Essa realidade que chega como “mistura” e, portanto, obscuridade/
indiscernibilidade é a aletheia que se oferece para que Riobaldo (e seu interlocutor /
leitor) não só a mire como também, a veja. A simultaneidade desse mirar / ver é
deslindada na própria forma gráfica que adquire na narrativa, comparecendo unidas:
“mire veja”(sem conjunção, p. 29 ) e com conjunção aditiva, nas posteriores.
Aparecimento e desaparecimento, recordação e esquecimento, velo/ desvelo, tudo são
configurações dessa dimensão de verdade.
Quando o convite é para o ver, implicitamente entendemos que algo jaz
presente, pois só conseguimos ver o que se presentifica, o que nossos olhos podem
alcançar. Assim é que presenciamos a memória ontológica, na qual lembrar não é trazer
de volta, virtualmente, algo que passou. Muito mais abrangente, sua manifestação
permite que o recordado seja visto, no sentido “lato de ver, que indica apreender o que
está presente enquanto tal” (HEIDEGGER, 1989, p.47), no exato momento em que,
evocado pela memória, torna-se presença, vigorosa e atuante.Ou ainda: torna-se
verdade.
A procura de Riobaldo se erige como o próprio caminho que realiza, através de
suas memórias, constituindo-se numa desocultação / ocultação indissociável, na qual a
verdade de ser se apresenta como saber, experiência e mistério.
Sendo assim, a verdade / aletheia conjuga proximidade e distância, segredo e
revelação. Heidegger contribui belamente numa acepção recíproca, quando diz: “Sendo
mistério, é distante. Sendo experiência de mistério, a distância é próxima”.
(HEIDEGGER, 2003, p. 187).
Em Rosa sempre podemos surpreender essa verdade, como no conto
Famigerado, em que narra: “Foi de incerta feita _ o evento”.51 Mais do que o fato, o
evento. Mais do que a certeza, a incerta feita.
Nessa criação, a trama se enreda não numa ocorrência factual, na qual o
desenredo se construiria como seqüências de antes e depois. Ao revés, todo o jogo
narrativo gira em torno da busca do significado de uma palavra: famigerado. Na
essencialidade dessa busca se movem o cangaceiro que pergunta e o doutor que tenta /
dissimula responder. Uma trama metalingüística que prova que, para a poiesis, a
essência do agir não se reduz à mera ação desprovida de sentido; mas comporta toda
ação originária que, pode fundar-se, inclusive, no movimento misterioso do não-agir.
Afinal, é frustrando a expectativa diante do não-acontecido (a esperada violência do
jagunço) que o conto se encerra.
Transpondo esse caminho interpretativo para GSv, presenciamos em Riobaldo, a
mesma tensão ação / não-ação no percurso que realiza em busca de sua verdade.
Como jagunço, somente age; como barranqueiro, reflete. A poiesis só se dá para
Riobaldo, plenamente, quando este encontra tempo para ouvi-la. E esse tempo lhe é
ofertado como memória, pois é somente no tempo da digressão que ele alcança 51 ROSA,Guimarães. Famigerado.In:Primeiras estórias.20ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986.
especular sobre si e o real, tentando compreender a vida vivida, transmutando-a como
experiência / narrativa.
A memória é, por suposto, a temporalidade da reflexão, que se dá no plano do
não-agir como plenitude de ação.
Sua verdade, portanto, não está no que viveu, mas primordialmente no que se
configura como narrativa. É o que presenciamos no trecho: “Narrei ao senhor. No que
narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.”(GSv,
p.616, grifo nosso).
A busca da verdade, portanto, está atrelada ao que Riobaldo denomina “no que
narrei”. É na construção narrativa que eclode a desocultação / aletheia para o ex-
jagunço e não numa perspectiva objetivamente delineada por um olhar investigativo do
passado. Nessa diretriz, é que se torna possível o interlocutor talvez achar mais da
verdade riobaldiana do que ele mesmo. Afinal, esta verdade não é subjetiva nem exata;
o verdadeiro que o feixe narrativo engendra é a dinâmica patente / latente de uma
experiência que, se descortinando de Tatarana para seu ouvinte, pode comunicar a este a
maior complexidade do real, pois paira justamente na revelação deste real, comum a
toda experienciação humana.
Há, porém, uma cisão entre o Riobaldo jagunço e o Riobaldo das memórias. E
esta cisão, que delineia sua procura da verdade, vem a se pautar no modo como o
protagonista se relaciona com o agir no mundo / sertão.
Riobaldo, enquanto jagunço, não pode refletir sobre seus atos. Vivencia uma
rotina de tarefas sucessivas e, mesmo nos intervalos de guerra, o que experimenta é a
angústia da inércia, ainda lhe sendo oculto o sentido pleno de um não-agir ontológico.
Como todos, é sufocado pela jagunçagem, sem chance para mudar o sentido de ser.
Entretanto, compreende-se como “nascido diferente”(GSv,p.31) por vislumbrar algo
além da rotina massificante, como se suspeitasse que ainda se escondem segredos
apesar da aparência simplória de tudo: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de
muita coisa.” (GSv, p:31).
Desconfiar, na múltipla possibilidade semântica de não acreditar em tudo que
ouve, como também de não fiar junto (des-con-fiar), ou seja, não tecer na mesma
tessitura de outrem. Assim, Riobaldo se apresenta como aquele que projeta suas
questões para além da mera resposta, buscando o “mais” das perguntas. Porém, é
somente no tempo da memória que a pergunta se potencializa e, assim, todo
questionamento se constrói nas vias e envios de um diálogo-monólogo do jagunço
consigo e com o interlocutor.
Nesse momento em que pára, descansando em “range rede” é que o barranqueiro
pode recordar e esquecer para, finalmente, instaurar um devir criativo, uma memória-
verdade.
É, pois, na compreensão da mutabilidade do real e, de sua conseqüente
inexatidão, que se suspeita a “Verdade maior” da aprendizagem constante de Riobaldo:
“O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas ___ mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou” (GSv, p.39).
Assim como a vida irrompe na ausência de certezas, a Verdade que a memória
riobaldiana salvaguarda como narrativa somente pode ser impressa nas tintas dúbias de
um caos cosmogônico ou de uma cosmogonia caótica, em que a face das coisas jamais
se estagna numa só possibilidade.
7 MEMÓRIA COMO LINGUAGEM: o canto memorável em Grande Sertão:
veredas _ vida vivida, experienciada e narrada
“O que eu vi, sempre, é que toda ação principia
mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante,
dada ou guardada, que vai rompendo rumo”.
(GSv, p.194).
Memória é a interligação de todas as coisas. É a reunião do que foi, é e sempre
será. Como reunião, desvela-se como uma das faces da Linguagem, de onde emerge o
sentido pleno de Logos, legein, como o que colhe, recolhe, reúne.52
Mas, quando associamos Memória e Linguagem, tomando-as na mesma
dimensão, o próprio ser de cada uma parece entoar um apelo, como se nos ofertasse
pensá-las em sua essencialidade e vigor.
Assim, podemos perguntar: qual o vigor da Linguagem? Qual o vigor da
Memória? Como tais manifestações se correspondem? Pode GSv ser nomeado como
discurso / linguagem da Memória?
É Idalina Azevedo da Silva quem compartilha conosco estas questões,
elaborando-as nos seguintes termos:
“O discurso da memória, não aparece como discurso e sim como memória. (...). O discurso opera a linguagem no que ela se dá em conversa.Conversa ou diálogo dizem o mesmo no jogo da dialética fundada na memória. Por este motivo não pode haver discurso da memória, pois ela é o cerne linguagem da qual não há portões de saída. Não há linguagem sem memória nem memória fora da linguagem”.53
Diante dessa indissociabilidade, cumpre-nos o caminho do pensamento no qual,
para que Memória nos seja apresentada como Linguagem, é necessário pensar 52 CASTRO, Manuel Antônio de. Linguagem: nosso maior bem. In: Série: Aulas Inaugurais, v.4. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2004, p.16. 53 AZEVEDO, Idalina de. Linguagem e Discurso: no silêncio das musas. Práticas discursivas: intuição, tradução e literatura, p.105.
Linguagem em sua profundidade e vigência, para que compreendamos quais são os elos
que as fraternizam, ou melhor, fazem-nas convergentes.
Linguagem, primeiramente, deve ser entendida para além da concepção de
língua, expressão, informação ou representação do pensamento. Para Portella,
“Linguagem não é uma coisa que se diga; é a força do que se diz”.54 Como força, faz-se
motriz de toda possibilidade de fala e escuta. Desse modo, embora abarque todo o
aparato lingüístico, contendo-o em si, manifestando-o na multiplicidade de recursos
sonoros, estilísticos, comunicativos, a Linguagem faz-se vigente numa
dimensionalidade que ultrapassa toda tentativa de instrumentalização.
Sabemos que o homem é considerado em sua essência humana porque possui
linguagem. Mas se buscarmos a envergadura desta questão, como nos acenam as
considerações acima, perceberemos que é a linguagem que possui o homem.
Teríamos, assim, a sentença inusitadamente carregada de reciprocidade:
“linguagem é: linguagem (HEIDEGGER, 2003, p.10)55.Linguagem sendo ela mesma,
sem atributo que lhe dê conta, é o que realmente fala.
O falar da Linguagem não se limita à sonoridade, aos ruídos ou mesmo às pausas
de uma conversa. É um falar que nos remete à vigência de uma rasgadura,56 a qual se
constitui como “o todo dos rasgos daquele riscado que articula o entreaberto e o livre da
linguagem”.57
Como rasgadura, traz-nos a imagética do tecido onde se abrem os múltiplos
vazios dentre o trançado de linhas. Ou melhor: é a vacuidade que faz emergir o tecido
enquanto fios emaranhados. Assim, somos levados a compreender linguagem fora de
uma linearidade de falas que se sucedem e se escutam, sem interstícios ou
54 PORTELLA, Eduardo. A linguagem e os signos. In: O signo e os signos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, nº 29, jun/julh. 1972, p.129. 55 HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003, p.10. 56 Id.,ibid.,p.201. 57 Id.,ibid.,p.201.
intermitências. Ao revés, a linguagem no seu próprio apresenta-se como abertura e
liberdade, como sulcos que velam / desvelam o dito e o não dito numa simultaneidade
originária.
Dessa forma, a linguagem em GSv, na qual se enreda a memória de Riobaldo, é
mais do que a fala sucessiva e desconexa do jagunço sobre seus feitos. É um falar que se
propõe como escuta da linguagem, no qual já se insere. Isto significa: um falar que se
tece numa urdidura de fios memoráveis que se interligam através de muitas palavras e
não poucos silêncios.
O falar memorialístico de Riobaldo nos surpreende com mais perguntas que
respostas, mais reflexões que conclusões, mais aberturas que ciclos fechados. É na
linguagem das brechas, em que o dito se transpassa pelo não dito que o ex-jagunço
concerta sua sinfonia de memórias: “Muita coisa importante falta nome” (GSv, p. 125).
A impossibilidade da nomeação a tanta coisa importante revela-nos o quanto o
não dito suplanta o que se pode exprimir com palavras. Assim também acontece com a
intensidade dos sentimentos do protagonista, no momento da descoberta de Diadorim-
mulher, quando o que consegue dizer se resume no tudo que dois pequenos vocábulos
podem comportar: “E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
“__Meu amor!...”(GSv, p.615, grifo nosso).
Ou ainda no momento em que percebe o vigor, o excesso da linguagem
enquanto silêncio: “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. (GSv,
p.438).
Vislumbramos a vigência da linguagem enquanto sulcos, silenciar de toda
sonoridade para que a fala original seja ouvida. A partir desse vislumbre, podemos
percorrer o caminho da seguinte indagação: por que o diálogo de Riobaldo se enreda
como um monólogo, sem interrupções diretas do interlocutor? E, por que a necessidade
de um interlocutor, num discurso que assim se operacionaliza?
O diálogo eclode em Grande Sertão porque só através de uma instância
dialógica é que a obra pode operar enquanto intermediação de falares, silêncios e
saberes. Um inter-médio que é mais do que meio, configurando-se como medida, na
qual a Linguagem dimensiona o sentido do existir e do narrar. Como Manuel Antônio
de Castro nos diz: “A presença do outro é a própria condição histórica e de memória de
fazer eclodir o sentido e a verdade.”58
É sempre para o outro, seja para o interlocutor, para o leitor, que se estabelece a
narrativa. Narra-se para dialogar, para pôr em tensão duas vidas (um eu e um tu), duas
vias (memória e história), duas temporalidades (passado e presente), duas dimensões
(Linguagem e discurso). Narra-se para ultrapassar a dualidade e atingir o encontro
furtivo da terceira margem, na qual todas essas instâncias pulsam como identidade e
diferença. Narra-se para ser, pois somente somos enquanto diálogo que nos transforma
em permanente interação.
Pensamos o interlocutor e seu papel dentro do diálogo. Mas e o narrador
Riobaldo? Em que dimensões toca e como dialoga conosco e com a obra?
Primeiramente, necessitamos refletir sobre as visões consensuais de narrador,
para que entendamos em que momentos tais concepções se tornam insuficientes para
apresentar o vigor poético daquele que narra.
O narrador geralmente é visto como aquele que faz a obra acontecer. A partir do
que narra e de como narra, a obra passa a existir e a interagir com os leitores. Essa
acepção possui raízes no pensamento platônico e na Teoria das Idéias que divide o
mundo em sensível e inteligível.
58 CASTRO, Manuel Antônio de. O narrador e a obra: a Linguagem como medida. In: http: //acd.ufrj.br/~travessiapoetica/literários/onarrador.htm.
Em Fedro59, Platão nos apresenta a obra como organismo. Esta, por suposto,
surge pelo agir do homem (narrador) que a faz brotar a partir do uso da Linguagem.
Nessas diretrizes, narrador, linguagem, obra movimentam-se respectivamente
como causa, meio e conseqüência. O caráter da narrativa como produto se evidencia.
Sua veracidade e, por conseguinte, sua legitimação, só acontecem diante de um
movimento comparativo entre o que se narra e o que é tido como real.
Dicotomizadas as dimensões narrativa e realidade, a primeira só passa a existir
porque a segunda lhe dá condições e, dentro de analogias possíveis, o narrado encontra
no real o que corresponde à sua homologação.
Desse modo, a linguagem se instrumentaliza como um meio utilizado pelo
narrador para efetivar a criação (obra). Tal concepção, embora nos pareça familiar,
suscita questionamentos.
Isso porque a obra comporta em si, desde a etimologia, o vigor do verbo latino
operare. Assim sendo, constitui-se não como objeto, mas como ação.
Agir implica movimento, abarcando em sua dinâmica o criar e o efetivar, sem
necessidade de um sujeito que a operacionalize. Entretanto, quando assim pensamos, a
figura do autor da obra nos surge como uma incógnita.
Mas somente porque nos deixamos levar por outro equívoco: a idéia de
linguagem como instrumento comunicativo.
É claro que a linguagem comunica. Entretanto, não se reduz a essa dimensão. A
linguagem fala, sendo ela mesma, o elo e a ruptura, o tecido e as brechas, o dizer e o
silêncio. Como o Logos que dimensiona nosso sentido como diálogo e existência, a
Linguagem realiza na obra o operar, consolidando o ato narrativo como o ato genesíaco
por excelência.
59 PLATÃO. Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2005.
O autor, então, não é o mais importante, se entendemos que ele nada cria, apenas
escuta o que a linguagem e a obra (a partir desta) nos dizem.
O narrador, em qualquer pessoa narrativa, somente diz na medida em que deixa
a linguagem dizer e a obra operar. Riobaldo narra sua história, não por deter o
conhecimento pleno da mesma, mas por se permitir escutar a memória que lhe vai
revelando, paulatinamente, quem é a partir daquele que foi.
O narrador, portanto, é aquele que se sabe em diálogo e travessia. Enquanto
dialoga e caminha, tece a narrativa como memória e história. Não é o que cria a partir
de um modelo conceitual homólogo, mas o que invenciona a vida como narrativa,
mundificação em si mesma, como nos atesta o próprio Riobaldo: “E me inventei nesse
gôsto, especular idéia”(GSv:11).
Desse modo, percebemos que o agir do narrador só se dá à proporção que se
entrega ao agir da Linguagem. Esta é ação essencial, portanto, poética.
Narrador e obra conduzem à palavra fundamental da questão que aqui se
delineia: o verbo narrar. Afinal, em que dinâmica se move o substantivo narrador? Qual
é a ação que nele se especifica a partir do agir essencial da Linguagem?
Narrar, por suposto, origina-se do vocábulo latino gnarus, aquele que conhece,
pela queda do g e acréscimo da terminação verbal (CASTRO, 2006, mimeo). Do verbo
latino narro, temos: conhecer e contar, com sentido causativo; ainda, noutro modo,
dizer. Como incoativo, significa no infectum: eu começo a conhecer, eu tomo
conhecimento. Os dicionários etimológicos dão como sendo homônimas as raízes de
conhecer e nascer (idem, ibidem).
Nessa perspectiva, conhecer e nascer estão intimamente unidos na compreensão
de narração como o ato sábio e genesíaco, que faz acontecer e permite a experienciação
como caminho.
Assim, narrar é deixar nascer o mundo que a obra poética faz existir, permitindo-
nos experienciar, conhecer e vigenciar os limites do saber e do não saber.
Narrar é a eclosão de um mundo que se origina ali mesmo, na suscitação do real
pela obra. O operar da obra dimensiona e potencializa um cosmos pleno de verdade e
sentido, grávido a partir de si mesmo de uma existência igualmente real.
A ação de narrar se inscreve, nessa concepção, como o momento inaugural de
toda realidade, abarcando a multiplicidade das experiências de vida na unidade da
composição narrativa, na qual criar é fazer acontecer, tornando-se real e válida como
experiência.
Narrar é, pois, ação memorável, que essencializa o tempo como fluir constante
do discurso e do curso existencial.
Mas, como já vimos, por todo diálogo perpassam as lacunas do não dito. Aquilo
que, mesmo adormecido, vibra como acorde de dizeres misteriosos e profundos.
Não se narra apenas como fala. Todo movimento narrativo se alimenta de
paragens no dito para que o suspenso do inaudito possa eclodir. É nesse viés que
podemos vislumbrar o diálogo entre Riobaldo e seu interlocutor. Uma experiência
dialógica na qual o silêncio assume-se como vigor da Linguagem.
Na conversação com o inaudito, é preciso mais do que um discurso à espera de
respostas. Faz-se crucial um colóquio que urja justamente da não-resposta, ou seja, do
silêncio.
O narrador busca uma palavra amena, que seja a confirmação da inexistência do
diabo, para que se sinta desobrigado da entrega de sua alma. Entretanto, o que lhe vem
(pelo menos na dimensão que nos chega enquanto leitores), à toda prova e com toda a
força que possui, é o silêncio, no qual tudo o que seu ouvinte lhe retruca, pergunta ou
acrescenta nos é segredado, havendo apenas uma certa suspeita de que a conversa,
alimentada por ambas as falas, prossiga : “ O senhor ri certas risadas...”(GSv,p.23). Isso
significa: não há, em momento algum, a fala direta do destinatário. Só conhecemos o
interlocutor pela fala de Riobaldo e pelas brechas que se inscrevem por meio deste falar:
“O senhor tolere, isto é o sertão”. (p.23). “Do demo? Não gloso. O senhor pergunte
aos moradores”. (p.24). “Então? Que-Diga? Doideira. A
fantasiação.” (p.25). (...) “Arres, me deixe lá, que _ em
endemoninhamento ou com encosto _ o senhor mesmo deve ter conhecido diversos, homens, mulheres. Pois não sim?” (p.25).
Notamos, portanto, que mais do que um falante em potencial, o interlocutor é
um ouvinte entregue às narrativas de Riobaldo. No papel de escuta, contribui
vigorosamente para que o protagonista possa também abrir-se, paulatinamente, para o
mistério da Memória e descobrir, a cada desvelar de suas lembranças e deslembranças,
que não é o verdadeiro narrador desta história, mas o intermediário da ação memorável
em sua existência.
Nessa dimensão, é sempre com o silêncio que Riobaldo dialoga, seja em suas
reflexões, seja na evocação do diabo, seja com o interlocutor. Daí, dar-se conta de que
“o silêncio é a gente mesmo, demais” (GSv, p.438). É na solidão da ausência de
respostas / falares que acontece, de fato, a res-posta: pois a res (coisa) se põe para ele
como nova questão; sendo assim, constrói-se nova possibilidade de vida.
O interlocutor, para Riobaldo, não representa um alter-ego ou mesmo uma
companhia alegórica. É, mais que isso, a vigência do diálogo enquanto presença da
ausência. Na memória dialógica de Riobaldo não há lugar para ser sozinho, embora haja
caminhos para a solidão. Esta se faz experiência não pela individuação, mas sim pelo
movimento dialógico que a memória opera, trazendo Riobaldo e seu interlocutor a um
diálogo no qual um eu e um tu compartilham vida, não apenas na dimensão da
reciprocidade entre um e outro, mas sobretudo nas voltas e revoltas do círculo que se
inscreve de Riobaldo para si mesmo e do interlocutor para ele mesmo.
É o que surpreendemos na sentença:
“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem _ ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!_ é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco _ é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso_ por estúrdio que me vejam_ é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela_ já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. (...)”.(GSv,p.26 ).
Aqui vislumbramos a dinâmica deste diálogo que se move nas reflexões
angustiadas de Riobaldo, as quais demonstram tamanha urgência, a ponto de não dar
tempo para uma efetiva resposta do destinatário. Percebemos que é a partir das lacunas
que a ausência do interlocutor se presentifica, na mesma proporção que a resposta se
suspende no ponto de interrogação.
A opinião do interlocutor só nos fica mais clara na indagação do jagunço: “Não?
Lhe agradeço.” Somente através destes sinais é que aceitamos a concordância do
mesmo com Riobaldo. É nessas insígnias que transparece também o quanto a opinião do
interlocutor já está, de certa forma, inscrita na expectativa de Riobaldo (“Já sabia,
esperava por ela”). Saber e não saber (por isso, perguntar) constituem-se como o
movimento do jagunço rumo ao desvelo de sua história pelo viés da Memória. Daí ser
de grande valia a presença-ausência do personagem-ouvinte.
O silêncio que a obra opera, não nos permitindo vislumbrar muito da presença
do interlocutor, agindo nas brechas do diálogo narrado, configura-se no silêncio da
Memória. Este é, na verdade, o silenciar de toda fala para a escuta profunda da
Linguagem.
Quando Riobaldo pede uma resposta de seu companheiro está solicitando muito
mais que este se cale e que, naquele momento, algo mais profundo e vigoroso do que a
língua, possa dizer-lhe que, de fato, não existem diabos nem almas para pagar. É nessa
perspectiva que diz: “Só que uma pergunta, em hora, às vezes, clarêia, razão de paz”
(p.25). Enfaticamente percebemos que não é na resposta, mas sim na indagação que se
vislumbra o clarear da paz.
Riobaldo quer, pois, escutar o silêncio, o mistério de uma verdade que ele
mesmo já conhecia: de que a existência torna-se diabólica na medida que divide,
segrega, polariza. Daí sua necessidade essencial de uma existência simbólica que, sendo
assim, reúna toda possibilidade de ser numa só dinâmica. Por isso, precisa recorrer à
Memória e entregar-se a ela, deixando-se levar por seu silêncio simultaneamente
lembrança e esquecimento. A Memória que a tudo interliga põe-se, para Riobaldo,
como símbolo que vai, pouco a pouco, velando e desvelando o que ele precisa reviver e
remorrer nos memoriais da vida.
Daí, compreendermos o inter-locutor como ponte deste caminho que Riobaldo
atravessa rumo à Memória. É a presença deste em suas terras que lhe impulsiona no
movimento digressivo. É a ausência deste enquanto fala-resposta que lhe possibilita
alcançar a paz da sempre fundante indagação. É o entre do diálogo que inter-media as
buscas de Riobaldo por seu Sertão-Memória.
Diante do silêncio, também nos assalta o falar. Embora pareça óbvia esta
afirmação, há muito de mistério e assombro no que nela se abre para o pensamento. Isto
porque não nos situamos numa fala que é mera tagarelice. Buscamos um falar que nos
leve por outros roteiros reflexivos, que nos permita indagar: o que é o dizer enquanto
apelo vigente desse mesmo excesso chamado linguagem-silêncio?
Heidegger compartilha conosco a essencialidade deste dizer no que a palavra
sagan / saga pode nos ofertar: “ Sagan , a saga do dizer significa: mostrar, deixar
aparecer, deixar ver e ouvir (2003, p.203). Daí, o ato de nomear elevar-se como
vigência da linguagem.
Um nome, na configuração rosiana, é mais do que realizar uma correspondência
entre o que é e como devemos chamar-lhe. Não é simplesmente dizer que chamamos o
que já é e que, portanto, nomear é um procedimento secundário. Afinal, poderíamos
dizer: as coisas e as pessoas são, independentes de lhes darmos um nome. Entretanto, é
no momento da nomeação que a coisa, seja pessoa ou não, é convocada para o
mundo_ou seja, para a constituição mundificada na e pela linguagem.
Nessa diretriz, é que surpreendemos em GSv: “ Que é que é um nome? Nome
não dá, nome recebe” (GSv,p.172).Compreendendo o nomear como dádiva da
linguagem, nosso autor compartilha de uma concepção criativa muito próxima de
Heidegger, quando este diz: “nomear é evocar para a palavra”
(HEIDEGGER,2003,p.15). Nomear é, continuando tal pensamento: “aproximar o que se
evoca” (idem,ibidem) trazendo-o para o florescer do real.
O dizer enquanto saga constitui, assim, o movimento de mostrar, deixar aparecer
o que é. É nomeando que a coisa se desvela no mundo. O dizer mostrante, que
Heidegger assinala, é flagrante na língua grega com o pronome demonstrativo isto que
acompanha as sentenças e perguntas no respectivo idioma. 60 Em nossas línguas latinas,
o demonstrativo já não aparece com o mesmo grau de vigência, deixando-nos oculta a
essencialidade dessa manifestação.
Porém, na poesia de Rosa a inquietação vigente e vigorosa deste dizer mostrante
faz-se elemento constituidor de toda fala. É nessa trilha que Riobaldo sente o vazio de
60 HEIDEGGER,Martin. O que é isto_ filosofia?
não poder nomear tudo, já que o mistério ainda se vela pela impossibilidade do dito
total. É nesse caminho também que a expressão lingüística na qual o texto se inscreve é
sempre partícipe do aspecto dos entes, num idioleto que instaura o ver da coisa pelo
ouvir da palavra: “A ver o que eu contava” (GSv,p.174).
O nomear essencial configura-se na seleção dos próprios nomes, apelidos e
codinomes dos personagens. Nomeados não apenas por receberem uma nomenclatura,
mas primordialmente por serem chamados a partir da vigência de uma nomeação
originária, os atores do drama sertanejo revelam a profundidade semântica deste dizer
que mostra.
É nessa dimensão que Riobaldo é aquele que possui o fluir do rio no
nome;61Diadorim, aquele / aquela que porta a ambigüidade (dia – entre, através de) no
nome perpetual e Hermógenes, o que se caracteriza por sua essência hermogênea62.
Dia-dorim nos segreda ainda, por entre a vigência de seu nome, o vigor de
dorum, que nos diz dom, tesouro. Como o destino que se doa, Diadorim vela e desvela o
essencial de cada um de nós, o que se oculta no interior e se deixa perscrutar como
mistério.
Os nomes dos lugares por onde realizam a travessia do sertão são igualmente
evocados desde uma nomeação originária, na qual a memória do que o sítio foi, é e será,
inscreve não apenas o roteiro de conhecimento do solo, mas o das transformações por
que passam os personagens, incluindo suas angústias e alegrias. O topicalizado em GSv
sempre transpõe as barreiras geográficas, incidindo neles o vigor do lugar como o
território onde se mora e se demora, onde se habita e se constrói mundo / experiência.
61 Para um aprofundamento da questão, cf. MACHADO, Ana Maria. Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 62 ROSENFIELD,K.H. Os descaminhos do demo. Tradição e ruptura em Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Imago / São Paulo: Edusp, 1993, p.101(e seqüências).
Daí é que no lugar nomeado Coruja, simbolicamente mistério e sabedoria, prenuncia-se
a possibilidade do pacto, o qual só vem a se realizar nas Veredas Mortas/ Tortas .
Desse modo, percebemos com Heidegger: “a linguagem fala dizendo, ou seja,
mostrando” (2003, p.203). Nessa fala, toda a vigência se faz aparecer, mesmo que
velante, no mistério da vida, no ilimitado do ser.
Assim, toda palavra é palavra essencial. Todo nome comporta o ser daquilo que
nomeia. Toda narrativa riobaldiana é nomeação e parábola, em que para ballein diz o
que tende para o símbolo, reunindo em si o vigor do aparecer, mesmo que obscuro.
E, como o vigente nos convida a ouvir para ver, podemos contemplar a
existência a partir da ausculta da Linguagem. Observemos que é a partir do sonoro, quer
vibrante, quer silente, operado pela narração de uma história para um interlocutor, que
Riobaldo experiencia o memorável, revigorando sua existência contemporânea.
Riobaldo realiza tal ausculta no jogo memorativo em que se lança para escutar
o vigor de sua experiência enquanto travessia. Rememorando as passagens marcantes do
próprio ser é que realiza o caminho da audição de silêncios e falares de seu coração.
Ressonâncias que ecoam sua essência enquanto Linguagem - Memória.
7.1 Quanto à narrativa como linguagem de indagação
Guimarães Rosa, em G.Sv, ao escolher a forma narrativa na 1ª pessoa, realiza,
desde já, a opção por um discurso de vida, de experiência. São as vivências do próprio
Riobaldo,enquanto jagunço, e suas reflexões enquanto pensador de si e do real, que
constituem a trama romanesca. Sendo trama, enreda-se em teias discursivas,
entremeadas por jogos lingüísticos num embate contínuo com os limites do idioma. Mas
como delimitar as fronteiras entre vida vivida, experienciada e narrada?Como
descortinar as tramas dessas manifestações? Até que ponto pode-se dizer que o vivido
transformara-se em experiência? E como se faz flagrante o vivido como narração e o
narrado como vivência? Como a Memória potencializa tais manifestações?
Nesse caminho reflexivo, prosseguimos nosso movimento.
Construído como diálogo com um ouvinte, ao mesmo tempo presente e ausente
na narrativa, GSv se desenvolve como questão, ao passo que Riobaldo “narra para
perguntar e pergunta para narrar”(CASTRO,1976,p.24).Dessa maneira, a linguagem
rosiana se deflora em incessante indagação, linguagem de perplexidade e dúvida. Se
como Logos, assim se reúne e se recolhe na dubiedade e na questão, a memória de G.Sv
só pode compactuar com a instabilidade e a incerteza. Assim, o que temos é um
rememorar descontínuo, desregrado.
A pergunta, como ainda nos diz Castro (op.cit,p.25) “é portadora do caráter
dúbio do conhecer / não conhecer”. Dentro desta acepção ambígua do próprio saber,
enreda-se a memória igualmente dúbia, vaga e ondeante de Grande Sertão. Daí
Riobaldo declarar: “Estou contando fora, coisas divagadas” (G.Sv, p. 20). Se conta o
fora, demonstra que narra não apenas o que está dentro, exato e fechado, mas o que
escapa a qualquer limite e, assim, circunfere pela exterioridade os acontecimentos.
Além disso, é na divagação_ no vagar próprio da criação_ que as coisas tomam forma
como memorial da vida do jagunço.
O ato narrativo, portanto, é o feixe memorialístico por excelência. É narrando
que se constitui a memória de Riobaldo. É nesse feixe que as perguntas riobaldianas são
realizadas. O vigor de seus questionamentos é engendrado pelo ato narrativo. Narrar é,
em GSv,corporificar a dúvida.
O memorável (o lembrado, o narrado) por Riobaldo é portador do questionar. A
memória reúne, recolhe enquanto Linguagem, a dúvida, a questão. A memória tematiza,
transforma o duvidar em Linguagem. Ou ainda: a Linguagem transforma o
questionamento em ação memorável, porque o que é lembrança / deslembrança
(memória) é questionamento humano.
Conhecendo esta verdade da narrativa é que Riobaldo sabe e não sabe que o que
ele escreve (diz) faz-se ser. É nessa perspectiva que diz, diante da morte de Diadorim:
“Não escrevo, não falo! _ para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo!” (G.Sv,
p.614). Se deixar de escrever (falar) é não ser, narrar é, por conseguinte, ser.
O ser, portanto, se condensa na linguagem. Ou como nos clarifica Emmanuel
Carneiro Leão: “A linguagem é o mais concentrado modo de ser da realidade. Na
linguagem, o real se mostra em si mesmo com plenitude de liberdade”. 63
Essa plenitude de liberdade se reflete em GSv na própria ação de narrar (dizer e
mostrar) em que o real se corporifica enquanto diálogo da vida _ conversação que se
realiza como duplo movimento de ser ( falar) e não ser (calar).
Narrar é, por suposto, o verdadeiro acontecimento, para além da factuidade; pois
é na ação, na poiesis como essência do agir, que se constitui o real, a verdade: “O que
eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra
pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo (GSv, p:194). O romper rumo que a
palavra poética instaura, seja dada como desvelo ou guardada no velo, faz de cada
lembrança narrada o fato memorável por excelência.
Assim é que o ex-jagunço associa suas memórias à ação de figurar: “Ah.
Figuração minha, de pior para trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de
contar não...”(G.S:v, p.27). Figurar, remontando a sua própria etimologia, traz-nos o
sentido de fingere: figurar como criar, inventar, tomar a forma de figura. Assim, figurar
é criar e, portanto, as recordações de nosso protagonista são, antes de meros ocorridos,
invencionalidades, recriações de sua vida, de seu mundo. 63 LEÃO, Emmanuel Carneiro. Fundamentos teóricos da poética. apud CASTRO, M.A. In: O homem provisório no Grande Ser-tão.Tese de Mestrado-UFRJ. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/ Brasília: INL, 1976, p.79.
A memória, numa dimensão ontológica, é a concriação de rito e culto de uma
existência, seja ela coletiva ou individual (SOUZA, 2002). Nesse mesmo caminho, os
vários repensares riobaldianos constituem-se como um olhar reflexivo sobre suas
experiências e, desse modo, toda lembrança é lembrar recriando, concriando memórias:
“Repensava, no frio do dia”/ “Hoje em dia verso isso: emendo e comparo” (Gsv,p.173).
Num outro viés, o ex-jagunço declara: “Conheci. Enchi minha história”. (GSv,
p.607). Encher a história não significa necessariamente criar uma fábula subjetiva.
Aqui, não se trata de subjetividade, mas sim de instaurar mundo, criar história,
perpetuar na e pela memória a própria vida, como lote do Destino e como narrativa
tanto irrepetível como experiência própria, quanto comum, generalizada em nossa
condição humana.
Mistérios vastos ainda nos guarda tamanha narrativa. Desde o título, instiga-nos
perguntar pelo SER do sertão _ o que é, em outras palavras, questionar a identidade
múltipla do sentido do Ser-tão e da Linguagem (CASTRO, 1976). É Riobaldo mesmo
quem nos prenuncia esta identidade: “o aqui não é dito sertão?” (G.Sv, p.24, grifo
nosso). Perguntando pelo dito, pergunta pelo que é. Daí não aceitar quem diz / define o
sertão como apenas o espaço geográfico, simplesmente como “fim de rumo” (GSv,
p.24).
Como Linguagem, o Ser-tão é o anverso do limite: não tem fim: “O sertão está
em toda a parte” (GSv,p.24). Apenas o dito não mensura a Linguagem, o Ser-tão.
Dessa forma, todo o embate com o sertão, nas agruras da vida de sertanejo /
jagunço, é um embate com a linguagem, numa tentativa de domar o indomável.
Nos próprios jogos verbais de Rosa, pressupomos a força criadora do Ser-tão:
“O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... O
senhor crê minha narração?” (G.Sv, p.443).
Nessa jogada de _ presente / passado / passado/ presente_ nos quais os verbos se
inscrevem, notamos que o sertão produz Riobaldo. No eterno presente dessa assertiva,
que remonta à contínua transmutação de toda produção / processo, poderíamos
perguntar: se produz, não é Sertão = Linguagem? Afinal, quem produz Riobaldo, ou
mesmo quem nos produz, se não a Linguagem que nos possui? Não foi igualmente pela
palavra de Deus64 que se fez luz, mar, céu, pessoas, bichos e plantas? Não é pela palavra
que Grande Sertão se faz mundo aos nossos olhos?
A perenidade desta presentificação se contrapõe às demais formas que se
seguem no passado: enguliu,cuspiu. Enquanto eterno presente, o Sertão / Linguagem
produz Riobaldo. Enquanto mera lembrança do que foi, maltrata-lhe na raiz de fazê-lo
alimento e vômito. Ou seja, deglute o homem, transformando-o, desvirando-o pelo
avesso, tornando-o o que ele sempre fora: homem humano. Esta última acepção
curiosamente remonta ao verso bíblico-apocalíptico quando o Cordeiro de Deus ameaça
vomitar os mornos na fé, demonstrando o desprezo por uma existência de
indiferenças.65
O desfecho com a pergunta ao interlocutor: “O senhor crê na minha narração?”_
deflagra a busca por uma correspondência de fé com seu ouvinte. Assim, a narrativa só
é crível por ser o relato verdadeiro de Riobaldo, verdadeiro por ser narrável, narrável
por ser memorável. Como nos atesta Walter Benjamin:
“... o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do esquecimento?”. (BENJAMIN,1993,p.37).
Walter Benjamin, embora não aprofunde a questão da memória, limitando-a à
reminiscência, deixa-nos em aberto a possibilidade de pensarmos a partir da tensão
64 Gênesis 1:1-26, Bíblia Sagrada. Nova Versão Internacional. Trad. da Sociedade Bíblica Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2001. 65 Op.cit. Apocalipse 3:16.
vibrante entre “o que viveu” e “o tecido da rememoração”. Nessa perspectiva, a
memória surge como aquela que tece “o mais importante”, pois seu entretecer reúne o
que há de fundamental: a experiência entretecida pelos nós das múltiplas vivências.
Nem tudo o que se vive recebe o estatuto de memorável. Apenas o que atravessa a
factualidade para abarcar a experienciação é que permanece como memória e, portanto,
constitui história.
Nesse caminho, como produção, numa espécie de desencobrimento,66 a
Linguagem invenciona o cosmos sertanejo, desvelando (lembrança) / velando
(esquecimento) simultaneamente o sertão de Riobaldo, o sertão memorável. Dessa
maneira, Memória e Linguagem se consubstanciam numa única forma: são
manifestações do ser confluentes na identidade de todas as diferenças, na unidade de
todas as diversidades.
A memória riobaldiana é, pois, memorialística de entrecortadas e, muitas vezes,
aparentemente desconexas lembranças; além, é claro, de se elaborar nas lacunas do
esquecimento. O que volta ao seu coração (recordação) é o sertão sinuoso e múltiplo da
Linguagem / Logos. Memória que não tem limites e, portanto, extrapola qualquer
exatidão e certeza factual. Em outras palavras, é o que reciprocamente ainda nos fala
Benjamin: “... um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do
vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma
chave para tudo o que veio antes e depois’’67
Testemunhando a operação dinâmica da memória poética, Riobaldo diz:
“(...) não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco carôço,querendo esquentar, demear, de feito, meu coração,naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é. (GSv,p.192).
66 HEIDEGGER, Martin.A questão da técnica.in: Ensaios e Conferências.Petrópolis:Vozes,2001,p.17. 67 Idem nota 44.
O que o ex-jagunço nos conta não é certo, fixo e rígido, porque a finitude do
vivido é remexida pela infinitude potencial da memória. Como uma chave, no sentido
benjaminiano, a memória abriria portas. Indo além desta compreensão, percebemos que,
ontologicamente, a memória não apenas abre portas, mas é ela mesma a abertura de um
mundo que se instaura no próprio ato memorialístico.
A idéia de Riobaldo busca o quente no coração, o rumozinho forte das coisas.
Como rumor, faz-se sorrateiro e nebuloso, não de todo apreensível ou restaurável. No
sussurro que se suspeita é que o protagonista surpreende sua vida enquanto memorial,
buscando não apenas o caminho do que houve, mas a beleza plena do vazio de tudo o
que não houve.
Daí, o esquecimento ultrapassar as fronteiras encerradas do que foi e chegar até
nós como plenitude criativa. Ou como Carneiro Leão nos deslinda, nas seguintes
palavras: “É o jogo da memória que nos faz esquecer e deixar cair as injunções e nos
joga na diversão da liberdade e nas peripécias da criação” (LEÃO,2003,p.146).68
E mais: “Como esquecimento positivo, a diversão perde o caráter passivo e
frívolo e se converte no mais elevado patamar de ação e atividade: a invenção de ser, a
inventividade de criar-se”. (id. ibid.).
A inventividade do criar-se é o mundo movente de Riobaldo, configurado na e
pela Linguagem/ Memória; o que poderíamos partilhar com o dizer de Manuel Antônio
de Castro da seguinte maneira: “linguagem (...) é a memória como logos” (CASTRO,
2004, p.22).
Além das reflexões expostas, na busca pela simbiose de Memória e Linguagem,
não podemos abandonar o reencontro com o mito. Aqui, o que se escuta é o canto das
Musas, filhas de Mnemósine. 68 LEÃO, Emmanuel Carneiro. O esquecimento da Memória. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, nº 153, pp: 143-147.
Se, como vimos anteriormente, Mnemósine é a memória nomeada no mito, suas
filhas_ engendradas no conúbio com Zeus_ ressoam o encanto perpetual de ser no canto
infinito de não ser.
As musas, como filhas, demonstram sua ligação íntima, por guenos, com a
Memória. Assim, compatibilizam familiarmente com toda potencialidade de
perpetuação.
A relação maternal das Musas com a Memória revela a inextricabilidade entre o
canto poético e a permanência. Daí podermos dizer com Hölderlin: “ tudo o que
permanece, fundam-no os poetas”.69
Grande Sertão instaura um mundo movente, no que possui de nebuloso e
escorregadio, tal qual a imagética das brumas musais; e perpétuo, no que se apresenta
como porta-voz do canto poético, portanto fundante de perenidade. Mundo que se
instaura na própria tessitura da narrativa, como nos clarifica Castro: “algo é na medida
em que é conhecido, em que é dito, e algo ainda não é, na medida em que ainda poderá
ser dito” (CASTRO, 1976, pp.64-65).
Nesse viés, cada dito em GSv (e o não-dito que nele se encobre) é um poema,
um pensamento. Nomear / narrar está estritamente ligado ao que algo é, na mesma
envergadura em que aquilo que não é se viabiliza no não-nomeado / não narrado. Daí
toda a tensão velo / desvelo entre o dito e o não-dito, entre a “palavra pegante / pegada”
e o silêncio do “sertão é o sozinho”.
O mistério dessa tensionalidade se deflagra em diversos momentos da obra,
como podemos encontrar, dentre outros: “me escute mais do que eu estou
dizendo”(GSv,p.86) / “O senhor sabe o que é o silêncio? É a gente mesmo, demais”.
(GSv, p.438).
69 HÖLDERLIN. apud JARDIM,Antonio. Quando a paixão é filosofia. In: A construção poética do real, Rio de Janeiro: Sete Letras, 2004.p. 108.
O silêncio é o excesso, a Linguagem, o “mais do que se está dizendo”, amplitude
irredutível à língua, a signos. Dentro dessa perspectiva, a memória de GSv é uma
memorialística do silêncio. É no excesso das vagâncias, dos lapsos, das desconexões
que Riobaldo entremeia seu discurso.
Sua vida vivida não importa tanto, no sentido do que exatamente ocorreu
enquanto fato. O que lhe dirige a narração é tudo aquilo que se constitui como
experiência. Toda experienciação, por suposto, faz-se ação digna de memorial; portanto,
narrativa.
Desse modo, a proposta riobaldiana de narrar sua existência é bem mais do que
repeti-la para um dado interlocutor. Aliás, repetir pode até ser a ação aqui denotada, se a
compreendermos dentro da acepção de Heidegger: “Repetir, retomar não diz arrolar
uniformemente o sempre igual. Re-petir, retomar diz: ir buscar, trazer e recolher o que o
passado guarda e protege”.70.
A radicalidade dessa dinâmica, na qual repetir é o ir de uma busca _ travessia _
reside na tentativa de transcendência que a mesma instaura. Transcendência esta na
qual a vida vivida se transmuta ao configurar-se como vida narrada, expurgando no
pensar da memória a experiência, para além da mera reiteração factual. Como nos
confirma Souza (1978,p.20) : “A narração de Riobaldo é a configuração de sua própria
existência. A sua existência só se consuma no autêntico ato da narração”.
Etimologicamente, o próprio sentido de consumar nos auxilia neste caminho
reflexivo: trazer de volta ao sumo (HEIDEGGER, 2003). Nesse viés, con-sumar a
existência riobaldiana pela narrativa corresponde a trazê-la de volta ao que há de
substancial, de sumo, de essencial enquanto vivência memorável:
“Assim, ao narrar a sua própria vida, Riobaldo re-começa a viver. Ao assumir a
70 HEIDEGGER, Martin. De uma conversa sobre a linguagem entre um japonês e um pensador. In: A caminho da Linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003, p.103.
linguagem, reveste-se de uma dignidade profética, na medida que a sua expressão configura os primeiros delineamentos do futuro : o narrador que assume a linguagem e fala em nome próprio enuncia-se a si mesmo e, sobretudo, enuncia-se com a sua decisão existencial.” (SOUZA, 1978, p.109).
Recomeçar a viver ao começar a narrar é o percurso do ex-jagunço no diálogo
que estabelece com um possível interlocutor. Nesse recomeço, não existem rédeas que o
aprisionem, visto que se liberta, na linguagem /memória, do peso do passado e se
assume portador de um novo futuro. Realiza, portanto, a transcendência discursiva, na
qual o próprio discurso dá conta de transformá-lo num homem diverso do que fora:
“assumir a linguagem e narrar a sua própria significa transfigurar a experiência no
universo do discurso, ou seja, ver e mostrar-se no espelho da linguagem”. (SOUZA,
op.cit., p.110).
Compreender a linguagem como espelho não corresponde à idéia de mimetismo
do real, mas sim ao vigor etimológico contido no verbo especulare, no qual a narrativa
se desenha como ato especulativo, experienciado por Riobaldo através de suas
memórias. O memorável, em suma, deflagra-se como portador do especulum do ser.
Noutros termos, diríamos: ver e mostrar-se enquanto memória é deixar eclodir o
ser memorável através de uma linguagem que corporifica a vida como perpetuação. Daí
ser o ato narrativo autêntico em si mesmo, sem necessitar de qualquer comprovação a
partir de uma suposta veracidade que lhe seja exterior.
Assim, a linguagem se dimensiona como recriação, ruptura de limites: “No
movimento de superação da linguagem estabelecida, o homem continuamente recria a si
mesmo” (op.cit., p. 110).
Superar a linguagem estabelecida, neológica não apenas na morfologia, mas
primordialmente na semanticidade, é superar a lembrança rígida, que não abarca
intermitências, presa a uma cadeia linear, objetivável. A memória ontológica é a
superação desse memorialismo que nada cria, apenas se conforma em reiterar
exaustivamente o acontecido, tornando-o desprovido de originalidade.
A linguagem, como memória, é o espelho no qual as lembranças se refletem,
iluminadas não pela luz que a tudo clarifica, mas pela luz / sombra que eleva, no jogo
claro/escuro da poesia o acontecer apropriador (HEIDEGGER 2001,p.231) à categoria
de memorável.Só se consuma, se memora e se co-memora com um interlocutor / leitor,
o que se constitui como poeticamente narrado, vivido e experienciado como velo /
desvelo do ser.
Dessa maneira, o pacto com o diabo, que surge como articulador da narração,
faz-se igualmente articulador de memória. As lembranças e deslembranças de Riobaldo
são tecidas a partir da possibilidade e da dúvida sobre o pacto.
Pactar é estabelecer elos. Se os vínculos estabelecidos são com o diabo, a
existência se apresenta dividida (dia). Entre um pólo ou outro, Riobaldo não pode ser
sem escolher, por exemplo, o amor de Diadorim ou a virilidade; Diadorim ou Otacília;
derrota ou vitória; o bem ou o mal. Esta é a angústia profunda do jagunço: ter de decidir
por um caminho ou outro quando, na verdade, a vida lhe oferta ambos os mundos no
modo movente de uma existência sim-bólica (reunião).
Não é por acaso que o protagonista se recorda, no momento do pacto, do “rio
que viesse adentro a casa de meu pai” (GSv, p.438). Rememorar o rio é lembrar, ali, no
momento do pacto, nas Veredas Mortas, da vida que corre, fluida e profunda. É deixar
emergir uma memória que vivifica, transborda, arrasta na correnteza, tal qual o rio: clara
e escura, margeante e funda, memória como curso de todo percurso existencial. É Souza
(op.cit.p.115) quem nos acena, através da imagética fluvial, a riqueza destas
correspondências: “incessante fluir (que) simboliza a coalescência divina e a travessia,
em que a existência do homem se apresenta e se representa (...)”. Desse modo,
apresentar a existência e representá-la convergem na semanticidade do fluir, no qual a
vida vivida flui e deságua como um dos afluentes da vida experienciada.
O cerne narrativo, memorialístico de GSv _ o pacto _ testifica, uma vez
mais,que lembrar e esquecer ,dizer e silenciar, são dinâmicas da “matéria vertente”, que
é a vida, na qual a linguagem consuma a existência num canto memorável. Isso
significa: Riobaldo conhece quem é por reconhecer quem foi, convocando no ato
memorialístico o ser do jagunço e concriando, ali mesmo no inventivo da memória, o
novo ser que se desvela como narrativa.
Quando diz: “De hoje em dia, eu penso, eu purgo” (GSv, p.365), nosso
protagonista reporta-nos a uma lembrança pensada, purgada, ou seja, especulada.
A ação especulativa se dá na proximidade que vigora a partir da distância
identitária entre o Riobaldo da vivência e aquele que se desvela no cerne da Memória.
Longe de uma compreensão dialética do protagonista, o que nos cabe é pensar o quanto
a vigência de ambos os modos de ser se converge na unidade das diferenças_ que faz do
jagunço o outro e o mesmo, o vivido e o experienciado. Para, por fim, constituir-se
como o narrável.
A distância que se torna proximidade revolve-se numa renúncia de não ser para
ser. O que também se diz, ainda nas palavras de Souza como: “Recusar o passado
pactário é reconhecer que o real não está no início, nem no fim, mas no meio”
(op.cit.,p.114). E que meio é este senão a narrativa que nos atravessa como i-mediação
entre Riobaldo antes e depois da jagunçagem, antes e depois de Diadorim? Ou ainda,
meio do caminho que se realiza no entre, entremeio que se depõe para nós como o
agora do ato narrativo no qual o próprio Riobaldo se tece?
O ex-jagunço, que se torna “contemporâneo de si mesmo / autor e ator de sua
própria vida” (op.cit.,pp.116-117) figura seu discurso con-figurando sua existência. Daí
a poeticidade das correspondências que se podem estabelecer a partir da apelativa: mire
veja. Narrar é mais do simplesmente mirar a existência, no sentido de trazê-la à vista
para contemplá-la, numa distância falaciosa de sujeito-objeto. Para ir além, é necessário
mais do que mirar: ver. Para que haja essa visão plena, a ação de lembrar surge como o
movimento de mirada, só que alargada em seu sentido pela etimologia de mirabilia, em
que o epifânico se projeta como desvelamento do ser. Desvelamento este que se dá
através da especulação, diante da qual Riobaldo pode ver o mundo que, pela
contemporaneidade narrativa, naquele mesmo momento se instaura.
A tensão vida vivida / experienciada / narrada se movimenta num ir e vir
incessante e descontínuo, no qual viver um fato não significa necessariamente
experiênciá-lo nem torná-lo narrável.
Para que se opere a transmutação da vivência em experiência, faz-se inelutável
a entrega e a escuta da Linguagem, que nos vela e desvela no que somos. Ser vigora,
nessa dimensão, a partir do ultrapassar dos limites factuais para alcançar o horizonte da
criatividade, na qual é a narrativa quem nos dá conta do que brota como realidade.
Narrar é, portanto, poiesis_ agir essencial que inaugura cosmos a partir de um
movimento no qual rito e culto também se imbricam. Isso significa: toda ação narrativa
comporta uma dinâmica ritualística e cultual, visto que algo, ao ser narrado, perpetua-
se; assim como ao narrar, o acontecer se faz cultuado na celebração memorialística.
Nessa dimensão, Linguagem e Memória preconizam o rito que se constitui na
reiteração celebrativa do que se quer lembrar e do que se quer esquecer. Toda
lembrança e todo esquecimento são ritualizados, na proporção que são convocados à
repetição ou ao velamento. Rituais para nos alegrarmos diante de recordações graciosas
e para sofrermos diante das mais dolorosas são constantemente experienciados em
nosso agir no mundo.
Entretanto, convém salientar que não se trata aqui do rito meramente como
reiteração mnemotécnica. Se assim fosse, o vigor da criatividade concebida no seio do
ritual se perderia, deixando-se sufocar por cadeias de memorização, esvaziadas mas não
vazias.
É necessário que se compreenda o rito como a concriação vigorosa e vigente do
sentido, revitalizado no movimento poético de se narrar e instaurar mundo e verdade.
Vigenciar do vazio como plenitude e do nada como tudo, prodigalizadores da brotação
incessante do viver.
Nessa perspectiva, notamos, uma vez mais, que a Memória de Grande Sertão
não pode ser reduzida ao relato de um passado. Afinal, seu sentido se estabelece
justamente na força atualizadora que faz de Riobaldo um novo homem num novo estado
genesíaco.
Para que a Memória se ritualize, sem cair na vanidade rememorativa, faz-se
primordial que a ação memorável compactue potencialmente com o culto.
A concepção das Musas como palavras cantadas, em sua divindade misteriosa,
muito auxiliam nessa compreensão. Afinal, Memória nos afeta no mais divino de nossa
essência, como palavra-canto-concriação, à medida que se transpõe para nós como
guardiã do Tempo-dos-tempos, vigenciando uma experiência com o sagrado. Cultuar
aqui não significa prestar honras ou temor, mas sim revitalizar o sentido da sacralidade
da vida e da morte na vibração da memória que volta por jamais ter deixado de ser.
Quando afirmamos que é a Linguagem que fala, testemunhamos que esta é a fala
do rito do mito: fala das Musas entoando o canto de Mnemósine. É o modo mítico de
ser que pontua o Logos como ritual memorialístico.
Nessa reflexão, testificamos: é a palavra cantada que revela, de fato, o real,
trazendo ao mundo a sua significação. Daí, rito e culto vigorarem como instâncias que
se conjugam na proximidade, oferecendo-nos a visão-audição do sentido vital e letal da
existência. É o que também se diz noutros termos: “A essencialização do mundo só se
consuma na poematização da palavra que revela o sacrossanto ser da realidade”
(SOUZA, 2002,p.11).
Cantar (narrar) é, pois, pronunciar o sentido do mundo, o qual, em nossa obra,
constitui-se como o sentido do ser de Riobaldo, ser que se descortina, sagrado e
profano, por entre as agruras do Grande Sertão.
O canto “que é o rito em palavras” (op.cit,p.18) não celebra um mundo (ou
ainda, uma vida) que já passou, mas sim institui um novo mundo, uma nova existência a
partir da deveniência de toda memória enquanto Memória das origens.
O culto que aqui se concebe confraterniza com a ritualística memorável que
clama e conclama à participação na Memória originária como comemoração.
Entretanto, o sentido de co-memoração aqui deixa de ser a consensual compreensão de
festejo do que se lembra junto, para se transubstanciar em memorial que se cria e se
memora na recriação incessante e co-letiva do Lógos.
Nesse viés, a religião surge na obra como um culto e um rito que trazem saúde,
em contraponto com a loucura. Loucura esta que nos revela a ambigüidade entre quem é
louco e quem é são (dono da razão). Diante da afirmativa do próprio Riobaldo de que
“todo-o-mundo é louco”(GSv, p:32), a “reza é que sara da loucura”(id., ibid.), notamos
o quanto a compreensão do sagrado e da razão não correspondem à concepção moderna
destas dimensões de ser.
Rezar, ato cultual e ritualísco, é uma ação memorialística, operada na reiteração
de ditos e não ditos em que imperam a entrega e a devoção. Rememorar é igualmente
poiesis que, ao constituir-se como religare, potencializa o elo com a dimensão sagrada
da existência.
Na (s) religião (ões) que Ribaldo abraça (“aproveito de todas”) a busca não é por
dogmas ou por uma verdade absoluta, mas pela abertura do divino através de um
diálogo entre sua experiência humana e o que existe de mistério e sacralidade.
A memória é, portanto, dinâmica de rito e culto, que transpassa a temporalidade
horizontal na esfera de uma verticalidade intensa, na qual narrar é concriar, não havendo
mais limites entre o real e o fictício, o passado e o presente (ou mesmo, o futuro), o ser
e o representar.
O fazer narrativo ficcionaliza a existência, realizando-a. A contemporaneidade
da narração inaugura o tempo memorável, que se constitui sempre fundante,
apresentando e representando a vida e a morte, não como imitação do real, mas como
reiteração concriativa do existencial.
O rito configura a cultura enquanto culto. A ação narrativa é um agir
essencialmente ritualístico e cultual, através do qual a língua se tece como narração,
mobilizando o rito da Linguagem. O narrado constitui-se, assim, não como o fato
descrito, mas como o rito e o culto transformados em cultura, semeadura e colheita da
ação poética.
Tal ação é essencialmente sagrada, na medida que figura, de fingere, o real. Ao
potencializar o acontecer, a narrativa se assume como discurso, num curso intenso de
novos cosmoi.
A realidade é, por conseguinte, instaurada pelo ato narrativo. Isso significa:
reside no dizer e, por contigüidade, no mostrar, a ação de inaugurar mundos e
configurar vigências. É o que Rilke poetiza ao dizer: “canção é existência” 71.
A existência, que se constitui numa dinâmica de projetar-se para fora (ex) só se
possibilita no ritmo da canção. Somente através do canto poético _ aqui desvelado como
71 RILKE, Rainer Maria. Poemas. As elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu. Trad.de Paulo Quintela. Porto,1983.
narrativa_ é que o conto pode instituir-se como acontecimento / memória. Cantar
assume “o sentido estrito do termo einatmen72, aspirar o alento vital prodigalizado pela
potência musal do divino zoogônico.”(SOUZA, 2002,p.221). Nessa diacosmese, o canto
e o conto vigem na proximidade que os nomeia suscitação de realidade.
Nesse modo fundante, é que Grande Sertão se tece como urdidura e rasgadura,
fazendo florescer as veredas do real desde o operar inquietante da obra poética. Este
operar, o advento do ser conclama a tornar-se memorável.
Apresentando-se como discurso, a narrativa deixa eclodir a tensão entre língua
(desvelo) e Linguagem (velo), possibilitando que a vivência se transmute em
experiência, e esta em narrar concriativo. Assim, dá-se o pólemos vigoroso da
complexão entre Linguagem, Tempo e Memória. Somente através da temporalidade
estabelecida pelo memorável é que a linguagem logra êxito: reunindo nossa essência
numa única / múltipla dinâmica de Ser.
O memorável, portanto, aflora como a autêntica experiência. Só o originário, o
autêntico se perpetua.
Se moramos na Linguagem, Casa do Ser, é por nos de-morarmos na Memória.
8 MEMÓRIA E TRAVESSIA: o entre de todo caminho memorável
“Existe é homem humano. Travessia.” (GSv:624)
Aqui, o pensamento nos convoca a questionar a própria travessia riobaldiana,
buscando o perscrutar de seus mistérios e sentidos profundos. Sabemos da
impossibilidade de resolvê-los, porém o que nos move é o vislumbre mágico de pensar
o vigor da jornada como a própria vigência do existir.
72 Verbo da língua alemã, que significa “inspirar”.
A travessia do sertão-mundo, marcadamente combativa e fulcral, desvela-se
como uma imagética ritualística na qual a Memória é o Lugar originário, de onde se sai
e para onde se volta, de onde, essencialmente, jamais se partiu. Nos meandros dessa
caminhada aparentemente sem saída, sem começo ou fim, por se situar no meio, é que
delineamos nosso percurso. Que seja um curso e um discurso igualmente belo e
vigoroso, através do qual a Memória Poética possa nos dizer que não nos afastamos
tanto assim da Origem.
A Memória é o método experienciado por Riobaldo para encontrar o sentido de
ser. Esta palavra_ método_ é composta de dois étimos gregos: metá_ que abarca os
sentidos de com, entre, procura, sucessão no tempo; e hodós _ caminho, via, meio,
modo de fazer alguma coisa. Assim, o caminho memorialístico se assume como o
método que, ao ser trilhado, constitui-se como caminhada memorável.
Caminhar é, pois, direcionar-se por vias e desvios, escolhas e coerções da
jornada. O sertão está aí para nada assim como a terra dá guarida não como utensílio,
mas simplesmente por ser. Surge ambíguo, sinuoso, em suas estradas de pó e barro
vermelho, que nos surpreende abundante nos rincões de águas densas e intranqüilas, nas
matas escuras repletas de vaga-lumes, que pontilham de claridade o fundo trevoso das
noites intermináveis.
O sertão através do rito memorialístico emerge, vivo e fulgurante, como a
dimensão existencial que marca profundamente as impressões do jagunço Riobaldo.
Dentro dessa perspectiva, perguntamos:
Que caminhos e descaminhos são traçados e trilhados por Riobaldo? Em que
rumo se direciona sua travessia? E que meio é este que potencializa o infinito?
Onde, quando e como começam e terminam (?) seus passos?
Primeiramente, cumpre pensarmos o vigor das palavras que nos assombram em
seu cerne originário: método diz caminho. Todo caminho é feito de passagens e
impasses. O método do qual Riobaldo faz uso, como já assinalamos, é o ritual
memorialístico.
Através do rito da memória que vai, pouco a pouco, delineando a vida do
jagunço numa dinâmica movente, é que o protagonista se vê às voltas com a
configuração de um discurso que seja o curso de sua existência. Isso significa: enquanto
realiza a ação de percorrer, traça o rumo deste mesmo percurso.
Assim como o rio não se define por uma linha reta, unidirecional, a vida narrada
é curvilínea e traiçoeira, deixando que se perca constantemente o fio da meada, o eixo
coordenador dos acontecimentos. Daí a Memória chegar como a possibilidade não
simplesmente de um retorno à jornada riobaldiana, mas sim, de um novo caminhar por
essa jornada, que se reinaugura em cada passo digressivo, evocando o que foi, o que é e
o que, a cada vez, será memória de ser.
O caminho, portanto, não diz de um para onde. Sua fala nos conflagra apenas a
um onde que se reescreve na contemporaneidade do narrável. Assim quando e onde não
mais se dissociam. Tempo e espaço são dínamos de um mesmo movimento no qual
lembrar o caminho é tracejá-lo uma vez mais e de uma maneira jamais antes tracejada,
visto que a nova caminhada, impetrada no âmbito da Memória, é uma caminhada
criativa, que concria novas possibilidades a partir do que já foi trilhado.
Daí ser uma caminhada do entre, do meio. Na metade que não é lá nem cá, não é
perto nem longe, não tem começo nem fim, é que o método / caminho de Riobaldo
encontra seu sentido.
Andar novamente pelo sertão, não apenas o topos geográfico, mas o cerne de
sua memória, é colidir uma vez mais com esta verdade: de que há um ponto na vida, um
eixo de decisões, onde nem ir nem voltar é permitido; onde se deve apenas parar e a
parada é que se concede como caminho. Este ponto de parada, que ainda assim é
jornada, Grande Sertão nomeia travessia.
Estamos em constante travessia. Seguimos por trilhas diversas e mal
vislumbramos uma direção. Guiamo-nos, muitas vezes, pelas pegadas já traçadas, que
nos dão a aparente segurança da jornada e nos fazem crer que é possível prosseguir.
Caminhamos infatigavelmente em busca de um fim, de um ponto de chegada, onde
matemos nossa fome e sede e possamos repousar do duro esforço da viagem.
É assim que Riobaldo, a princípio, também parece direcionar sua caminhada: sai
de uma vida sem sentido para buscar um rumo entre os jagunços. Mas não o encontra,
dada a certeza de que seguir o bando não daria conta de sua realização.
Entretanto, em meio ao vaguear sem sentido, do bando que percorre sem refletir
por múltiplos caminhos, Riobaldo se depara com um norte em seu trajeto: Diadorim. A
paixão pelo amigo, proibida e angustiante, oferece-lhe ambigüamente alento e
desassossego. Encontra um rumo para sua trajetória, mas este coloca em tensão os
limites de ser e não ser, de amar e não amar. Limites dúbios e harmônicos que se
entrelaçam nos caminhos da vida.
Após diversas batalhas e intenso companheirismo, novamente perde o rumo,
com a morte de quem lhe direcionava os passos_ Diadorim_ e recomeça um novo
trajeto, casando-se com Otacília e vivendo como fazendeiro pacato no interior sertanejo.
Esta é sua trajetória.
Mas sua jornada não pode terminar assim. Riobaldo não se contenta em calar sua
história e adormecer sua memória. Decide que precisa contar e escolhe um interlocutor
interessado nos causos do sertão.
Sua decisão de contar sua história é igualmente uma decisão por narrar sua
trajetória. Narrando, não apenas revive o percurso, mas o transforma num dis-curso.
Como discurso, o caminho novamente ganha o fluxo vigente desde a etimologia latina
de currere. O correr incessante da vida é o correr incansável da narrativa. Ambos os
modos de ser evocam a imagem de uma dinâmica fluida, onde ir / ser / viver/ narrar são
todos possibilidades de travessia.
Narrar seu trajeto é, pois, oferecer ao interlocutor e a nós, leitores, a
possibilidade de percorrer, junto com Riobaldo, a travessia de sua existência que é, não
apenas sua, mas de todos os homens.
Para que adentremos com maior proximidade na trilha que assim se delineia, nos
detenhamos um pouco mais nos sentidos do entre, do meio e da travessia.
O entre nos convoca a um pensamento no qual ser não se resume nem num pólo
nem n`outro: estar no meio não é chegar a qualquer definição exata. Mas isto, embora
nos seja um mistério, é igualmente nossa verdade mais completa, pois nos sabemos
seres do entre, na medida que somos todo o tempo entre a vida e a morte, entre saber e
não saber, entre ser e não ser.
Dessa forma, experienciamos os limites numa jornada de não-limite. Do vigor
etimológico grego, herdamos três possibilidades de se dizer e pensar a tensão limitável /
ilimitável: horidzo, peras, telos.
O primeiro nos desvela uma realidade onde vislumbramos o limite na
perspectiva do ilimitado: contemplar o horizonte é perceber o infinito que se descortina
numa linha aparentemente finita. Peras, de apeíron, enquanto limite, aponta-nos o não-
limite, vasto e inexplicável, para além de qualquer exatidão. Telos nos surpreende com o
sentido, já discutido anteriormente73, de plenitude, para além da idéia de finalidade.
73 No capítulo sobre Memória e Verdade, desta mesma dissertação, pp.65-88.
No jogo dinâmico da existência, residimos no limite nos lançando
incansavelmente para o não-limite. Daí a vida com sentido, mais do que vivência,
nomear-se experiência, palavra que diz “literalmente eundo assequi; no andar, estando a
caminho, alcançar uma coisa, andando, chegar num caminho” (HEIDEGGER, 2004,
p.130), na qual ex-peri nos revela a vigência de nosso trilhar na esfera do entre de todo
caminho memorável.
Seres do entre, trilhamos a vida e a morte, a dor e o prazer, o medo e a coragem,
o amor e o ódio, não como pólos que jamais se tocam. Sabendo da verdade que nos
move, experienciamos o não-limite destas forças como anverso e reverso de uma
mesma dinâmica, movimentos que se cruzam e entrecruzam no balé sincronizado pelo
silêncio e pelo som do existir.
A Memória surge, então, como aquela que potencializa a travessia do homem
pelo ilimitado. Isso porque é ela, vigor e vigência do Tempo, a que pode reunir em uma
temporalidade própria toda a diluída segmentação cronológica de passado, presente e
futuro. Assim, é a memória quem nos permite atravessar todas as possibilidades do que
foi, é e será, oferecendo-nos o entre como travessia.
A travessia é a procura pela Memória do ser, do homem sendo, pela memória do
mundo. Procura como travessia já é ato de perpetuar, pois se configura como o empenho
de tornar memorável a busca, de reconhecê-la em sua vigência memorial.
O caminho memorável é o entre que todo homem percorre, constituindo sua
história, eternizando sua memória, que é mais do que uma memória individual, é
coletiva. Co-letividade da reunião do logos que revela a verdade da memória de ser.
Assim, a Memória como Travessia é a única certeza ofertada ao homem: a
certeza de que ele precisa seguir / prosseguir. É o caminho do homem na busca de ser.
O trajeto realizado na dimensão do entre a vida e a morte se faz memorável
simplesmente por ser trajeto, busca, demanda. Cada vereda que se abre no sinuoso e
incrustado sertão ex-surge como uma possibilidade de questionamento, como renovação
do vital enquanto sentido e realização.
É nesse viés que Riobaldo pode perguntar: “Minha vida teve meio do caminho?”
(GSv, p.235, grifo nosso). O que significa indagar: minha vida teve o ponto central? O
eixo de decisão? O entre que nos faz parar e decidir para que lado seguir?
O meio se apresenta com toda a força imagética ao nos dizer que há um pólo já
percorrido e outro, de dimensão igual, a ser traçado. A metade do caminho nos situa
num ponto fulcral em que seguir ou voltar se oferecem como possibilidades
equiparadas. Entretanto, não basta decidir por um lado ou outro. É preciso seguir por
um lado E outro. É preciso que não haja excludência. É preciso que o meio seja a
abertura vitalizadora de mundo.
Perguntar se este meio existiu ou não é como perguntar se houve esta
possibilidade de repensar a vida e decidir seu curso. É questionar se houve um momento
em que ele, Riobaldo, pôde optar por ser ou não jagunço, por entregar-se a essa
existência marcadamente mortífera ou não. É indagar: havia outros caminhos para
decidir? Existe a oportunidade da decisão ou somos todos levados pelo vento das
estradas, sem qualquer escolha?
A questão do destino é forte presença na memorialística riobaldiana: saber e não
saber o caminho que se deve seguir pontua vigorosamente o percorrer desse mesmo
caminho, assinalando-nos como é a própria realidade da viagem que nos faz viajantes e
não o reverso.
Destino, etimologicamente “sem tino” nos remete à vigência de se experienciar a
vida para além da razão massificadora. Não significa necessariamente o que nos chega
como fatalidade, mas sim o que nos espanta por ofertar-nos o que somos numa espécie
de convite que mais nos arrasta avassaladoramente à medida que nos revela / vela quem,
de fato, somos e o que queremos alcançar.
A Memória, portadora de nosso destino_ por nos conhecer no mais íntimo do
que fomos, somos e seremos_ é aquela que nos concede a possibilidade de
contemplarmos, num movimento digressivo, a atualização revitalizadora de nossos
próprios anseios. E estes anseios se inscrevem no ato memorável da viagem - travessia.
A densidade da viagem como questão nos é indicada desde a bela sentença que
se segue: “Digo: o real não está nem na saída nem na chegada: ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia” (GSv,p.52).
Primeiramente, Riobaldo diz. Dizer, como já vimos74, é no Falante Mundo
Mítico, mostrar. Quando nosso protagonista fala, deixa a linguagem falar através de
todo silêncio, mostrando o real que ali se instaura.
O real se dispõe para a gente, ou seja: o ser se dá. A realidade é uma dádiva que
recebemos, que se dis-põe para nós, portanto, não somos seus dirigentes, não possuímos
a chave de sua definição. Podemos sim, experienciá-la concretamente sendo e não sendo
dentro das possibilidades que se nos oferece.
Se o real se dispõe na travessia, a Memória de tudo o que foi, é e será também se
perpetua na dinâmica deste atravessar. É no meio do caminho que se instaura o
memorável.
O memorável, pois, não reside nem no início nem no final de uma existência.
Não se restringe a um passado vivido nem a um futuro sonhado. Riobaldo não lembra
um tempo que se foi, mas o que foi, continua sendo e sempre será, visto que sua
74 Desenvolvido no capítulo: Memória e Mito, da presente dissertação, pp: 22-32.
memória eclode neste meio, neste entre que não fala apenas de um antes em contraponto
a um depois.
Nessa perspectiva é que o meio reflete a tensionalidade do entre viver e morrer,
em que atravessar o sertão é residir “no meio do caminho da morte, no meio do caminho
da vida” (SOUZA, 1978,p.95). Nesse entre é que se situam as batalhas, narradas em
pormenores quando sugerem a travessia do mortal para o vital ou o seu reverso.
Entretanto, enquanto jagunço, Riobaldo apenas atravessa, mas ainda não realiza
a compreensão essencial do atravessar. É o que testemunhamos em:
“Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas _ e no meio da travessia não vejo! _ só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?” (GSv,p:51).
Não ver era não experienciar a dimensão vigorosa do atravessar, do perceber-se
no meio, no ponto fulcral. A questão aqui deslindada nos revela o quanto nos
preocupamos excessivamente com o princípio e o fim quando , na verdade, o meado é o
entre que possibilita que alcancemos o “mais em baixo do em que primeiro se pensou”.
A densidade e não a horizontalidade de um caminho, com partida e chegada
definidas, é o que surge para Riobaldo a partir da Memória como travessia. Só nesta
jornada digressiva é que ele pode deixar de simplesmente passar pelas coisas e, só
assim, conseguir vê-las. Sua visão _compreensão de ser o que deve ser _ só se dá no
momento em que seu atravessar não é mais “pelas coisas” e sim, no “mais em baixo”.
Ou seja, a liberdade de enxergar o invisível só se dá no instante em que se reconhece
não mais numa postura analítica de sujeito observador de dado objeto.
Tal verticalidade somente o rito memorialístico pode ofertar, na medida que
intermedia o antes e o depois num sempre a cada vez mais, permitindo o primado da
profundidade sobre a fatídica e superficial objetividade.
Ademais, a travessia é sempre para a solidão. Riobaldo atravessa o sertão
jagunço e o sertão memorável para atravessar seus próprios medos e angústias, para
enfrentar suas dúvidas, para questionar: “o diabo existe e não existe?”
É na travessia enquanto Memória que ele obtém a possibilidade de transformar
a vivência em experiência visto que, enquanto vivenciava a jagunçagem, simplesmente
era sem ser:
“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp´ro, não fantasêia. Mas,agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gôsto, de especular idéia”. (GSv,p.26).
No ritual memorialístico, o trajeto é revitalizado não apenas como lembrança
geográfica, mas como recordação anímica, de todas as disposições lembradas e
esquecidas. A trajetória que realizara se dá agora como reflexão: “especular idéia”. E é
nesse viés que Riobaldo pode desvelar a verdade na qual: “A caminhada é assim, é ser!”
(GSv, p.81).
Nessa caminhada que não aponta direções, mas se conflagra como simplesmente
SER, é que Riobaldo pode conhecer-se como viator de uma viagem que se constrói a
cada novo passo trilhado.
O caminho de sua alma descobre, no movimento digressivo e concriador da
Memória, que “a vida não é um percurso linear, prefixado de um começo a um fim,
como ocorre na vida de jagunço” (SOUZA, 1978, p.121). Assim como a travessia não é
fixa, a Memória também opera essa transcendência concreta: transcende a cronologia de
uma vida iniciada e findada e escolhe narrar uma vida no meio da travessia, uma vida
lembrada sem linearidade, com fluxos e refluxos, idas e vindas, além das muitas lacunas
do esquecimento. Uma existência autêntica, portanto, memorável.
Essa medida que faz Riobaldo pensar sua existência e receber a dádiva de
constituir experiência se desenlaça nas vias e desvios do ritual memorialístico ao qual se
entrega. Nessa entrega, a Memória opera uma transmutação que o faz reconhecer-se
como a própria travessia e não externo a ela. Noutras palavras: “Quando a alma se
transforma, vai deixando de “andar” por um caminho. Ela é, por fim, o próprio
caminho” (SOUZA,op.cit., p.121).
Desse modo, a alma deixa de lembrar o que é memorável e passa a ser ela
mesma, o memorável por excelência. A memória de sua caminhada é, na verdade, a sua
autêntica vida, independente do que se configura como vivido factualmente.
A Memória, como o rio, não tem uma direção exata, objetivável, externa a si
mesma. Ela só quer se mais funda, só deseja encontrar-se com a profundidade de ser o
que plenamente pode ser: “O rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser
mais grosso, mais fundo.”(GSv, p.329). Ser o mais de si é a travessia memorável a qual
todos nós somos convidados. Atravessar a memória é potencializar nossa trajetória
como o que nos é próprio ser, como o que nos assalta como destino e nos liberta como
telos, plenitude.
Atravessar a vida e atravessar o rio se correspondem como o sentido que deve
percorrer Rio-baldo desde o nome. Tanto o rio atravessa Riobaldo quanto este atravessa
as águas fluviais. A co-pertença desta relação_ “O senhor nonada conhece de mim; sabe
o muito ou o pouco? O Urucúia é ázigo...” (GSv,p.611)_ tornam rio e homem distintos e
o mesmo: ambos igualmente sem firmeza, vigorando na demanda de encontrar-se com o
mais profundo de sua essência.
8.1 As travessias _ veredas_ da Grande Travessia: Sertão
Na obra, várias são as imagens que nos transportam à questão da travessia: a
travessia pelo Rio dos então meninos Riobaldo e Reinaldo; o desafio do Liso do
Sussuarão _ que é a viagem da vingança; a travessia solitária de Riobaldo pelas Veredas
Tortas / Mortas, no pacto; a travessia da vida para a morte de Diadorim, no meio da rua,
travessia esta do diabo e do redemoinho.
A primeira grande travessia de Riobaldo não é a primeira no tempo memorável
da narrativa. Ele inicia seu discurso já velho, a fim de que a experiência legitime o vigor
de suas recordações. Depois, já se apresenta como jagunço, ao lado de Diadorim,
lutando sob o comando de Medeiro Vaz.
Tais cenas _ trajeto do bando sob Medeiro Vaz _ compõem um tempo
desconexo dos demais, não apenas por caracterizar uma vivência anterior à narrativa do
barranqueiro, mas por constituírem uma lembrança que, na seqüência cronológica dos
fatos, compreende um acontecimento posterior, o qual objetiva vingança do que ainda
nem foi narrado: a morte de Joca Ramiro.
Mas, no meio da narrativa dos seus dias de jagunçagem, Riobaldo interrompe os
desfechos de batalhas para contar “um fato que se deu, um dia, se abriu” (GSv,p.116). E
chama não aleatoriamente este acontecimento de “O primeiro” (idem, ibidem).
Na adolescência, dois meninos cruzam seus destinos: Riobaldo e Reinaldo. À
frente de ambos, o Grande Rio, a Travessia inaugural.
Reinaldo, ainda inominado, convida Riobaldo para um passeio de canoa. O
convidado aceita: “Ele se sentou em minha frente, estávamos virados um para o outro.
Notei que a canoa se equilibrava mal, balançando no estado do rio.” (GSv,p.119).
O estado do rio era o estado do coração de Riobaldo e, mais que isso, o estado da
vida que só depois ele assim compreenderia: “Bom aquilo não era, tão pouca firmeza”/
“Eu estava indo a esmo” (GSv,p.120). Ausência de “firmeza”, “ir a esmo” constituem
mais do que atributos de uma viagem fluvial. São configurações da vida movente da
qual Riobaldo ainda não tinha consciência.
Diadorim / Reinaldo, desde o primeiro encontro, surge para Riobaldo como
ambigüamente seu mistério e seu porto seguro: “Via os olhos dele, produziam uma luz.
_ Que é que a gente sente, quando se tem medo?”_ Ele indagou, mas não estava
remoqueando; não pude ter raiva.(GSV,p:122).
O destemido Menino fora o exemplo da segurança e da coragem que, naquele
momento, Riobaldo ainda não havia conquistado. O assombro daquela verdade: não
apenas não sentir medo naquela situação específica, mas simplesmente ignorar o que
vinha a ser medo, traz ao nosso memorialista novas questões: “Por que foi que eu
precisei encontrar aquele Menino? / Mas que coragem inteirada em peça era aquela, a
dele? De Deus, do demo?” (GSv,p.125).
Novamente, o destino como questão. O Menino, vigorando ainda na ausência do
nome (depois desvelado) surge como a figura que marca e inquieta Riobaldo desde
sempre, apresentando-lhe com sua força e coragem, uma nova possibilidade de vida:
aquela na qual o medo é desconhecido. O saber desta verdade só posteriormente o
jagunço Riobaldo experimentará. Mas esta travessia, que é o atravessar das águas
intranqüilas do rio, simboliza um rito iniciático em que, pela primeira vez, Riobaldo se
vê às voltas com a angústia de ter de seguir, o medo de não lograr êxito e a promessa de
que aquele acontecimento ecoaria profundamente em toda a sua existência.
Atravessar o rio foi, para nosso jagunço, um momento fulcral: a partir daquela
experiência, estão atados (e impossibilitados de desates), os laços que unem Diadorim e
Riobaldo. Ambos saem desta travessia com a certeza de que um elo, inexplicável e
profundo, envolveria suas vidas.
É nessa perspectiva que a Memória permite a Riobaldo indagar o que, na
meninice, apenas sentira, mas não pudera questionar:
“Na ocasião, idade minha sendo aquela, não dei de mim esse indagado.” / Mas, onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta. Por que foi que eu conheci aquele menino? O senhor não conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não conheceram. O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino?”(GSv,p.126).
Na ânsia de uma possível resposta, ele mesmo se co-responde: “Sonhação_ acho
que eu tive de aprender a estar alegre e triste juntamente, depois, nas vezes em que no
Menino pensava, eu acho que.” (126).
Estar alegre e triste juntamente é o princípio da aprendizagem da vida, na qual
Diadorim _ dúbio desde o nome / identidade: Dia (através, entre) _ comportando ambas
as experienciações em si mesmo (a) _ iniciará Riobaldo.
Não havendo conclusão possível sobre os porquês da existência, isto é, por ser
bobice qualquer resposta, as perguntas ressoam, infatigáveis, de volta para nosso
protagonista: “Mas , para que? por que?” (p.126).
E a única certeza que lhe assoma é a da sentença, ainda indagativa: “Deveras se
vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim?” (idem, ibidem).
O que presenciamos desta primeira travessia é que Riobaldo está sendo
preparado pela vida a viver, atravessando não apenas o sinuoso curso de um rio
intranqüilo, mas a densa neblina de sua travessia essencial: Diadorim. O através deste
nome perpetual_ dia_ aqui ainda velado pela alcunha de “Menino”, constitui-se na
vigência de ser o caminho da metamorfose de Riobaldo. Metamorfose que se configura
na travessia do amor proibido para o amor permitido, liberto na morte da amada.
A travessia fulcral de Riobaldo não é apenas a de homem comum a jagunço, ou
mesmo de jagunço a barranqueiro, mas a travessia da mera vivência para a profunda
experiência e esta só acontece através de Diadorim. É este amor, experienciado
ambigüamente, que instaura a possibilidade de passagem, mesmo por entre os impasses
da não concretização amorosa.
Passagem de amor que é passagem de morte e vida, de saber e não saber, de ser
e não ser, que mais adiante se desvelará como a última travessia, representada pelo
combate fatídico entre Diadorim e Hermógenes.
No pulsar da jornada, entre o ritual iniciático e a travessia derradeira, Riobaldo
segue seu trajeto sob as ordens de Medeiro Vaz. Nesse seguir, a trilha que se
circunscreve é a do bando. Como uma comunidade obediente, todos devem atravessar o
até então intransponível: o Liso do Sussuarão. É nesse momento que surge o desafio da
travessia da vingança.
Tal região representava o terror de qualquer sertanejo, dada a força da ausência
que nela se petrificava: “Liso do Sussuarão, é o mais longe,_ pra lá, pra lá, nos ermos.
Se emenda com si mesmo. Água não tem”. ( GSv,p.50).
Território inóspito, sem águas nem sombras, sua travessia é vista por muitos
como loucura. Como lugar do impasse, é assim descrito: “que o Liso do Sussuarão não
concedia passagem a gente viva, que era o raso pior havente, era um escampo dos
infernos.”(p:50). Mas Medeiro Vaz decide que aquele era o caminho dos valentes, era a
trajetória que daria coragem aos seus jagunços.
Como justificativa, o fato de que, depois do Sussuarão, residia a família de um
dos judas, o Hermógenes. Neste atravessar, o motivo se apresentava: dar cabo do plano
de vingança pela morte de Joca Ramiro.
Uma travessia de vingança é uma travessia marcada pelo ódio e pela violência.
O Liso se configura assim como o espaço igualmente cruel e intransponível. Dum outro
modo, surge também como a promessa de vencer o impossível: “O que ninguém ainda
não tinha feito, a gente se sentia no poder fazer.” (GSv, p.61).
Avançando para dentro do Liso, a paisagem descortinava-se árida:
“Aquilo, vindo aos poucos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, no descampante. Acabou o sapé brabo do chapadão. A gente olhava para trás. Daí, o sol não deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz, castigo.” (GSv, p.63).
Ou ainda: “era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia. Onde é que seria o
sobejo dela, confinante? O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava. (...) E fogo começou
a entrar pelos pobres peitos da gente.” (GSv, p.64).
Ali, onde a luz era um castigo, Riobaldo e o bando de jagunços começavam a
experimentar não apenas um solo inóspito, mas a agrura de uma vida inóspita:
“Exponho ao senhor que o sucedido sofrimento sobrefoi já inteirado no começo; daí só
mais aumentava.” (GSv, p.64).
E a angústia vivida naquela viagem é tão ácida que difícil se mostra até para
ganhar narração:
“Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuação do martírio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, na brumalva daquele falecido amanhecer, sem esperança em uma, sem o simples de passarinhos falantes? Fomos.” (p.66, grifo nosso).
“Fomos”. Como se vê, ir era o único destino possível, assim descrito: “Não
destruí aqueles pensamentos: ir e ir, vir_ e só”(p.67, grifo nosso). Não havia retorno
numa travessia de aridez e aprisionamento.
Nesta passagem repleta de impasses, o sentido simbólico do caminho se desvela
como a jornada de morte que, ultrapassada, deixa-se eclodir em vida.
Todo o trajeto pelo Liso é um trajeto de dor e ausências: “Nem sinal de sombra.
Água não havia. Capim não havia.”(GSv, p.67). Num lugar onde “nem pássaros há”, o
vazio e o medo delegam constantemente a solidão aos seus transeuntes. Entretanto, esta
não é uma solidão originária, que permite ao homem o encontro com seu sentido. É
apenas uma caminhada seca e cruenta, onde estar entre os demais jagunços é
simplesmente andar em bando, sem vivenciar uma comunhão: “iam como o costume _
sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio desistido por si....”(p.67). Daí ser uma
solidão sem profundidade, na desistência de si, solitários vagando pelas terras do sertão,
viandantes cujo caminho não assoma esperança nem refrigério. Solidão sem o encontro
originário.
O caminho revela-se então labirinto, visto que os decreta perdidos. Na perdição
do mais não poder ir, só resta o caminho de volta. Nesse momento, reaparecer a
possibilidade do retorno é ressurgir a perspectiva da questão.
Voltar revela-se como a alternativa de vida, como a possibilidade de
revitalização: “(...) de supêto, eu já estava remoçado, são, disposto! Pra trás, sempre dá
o prazer.” (GSv, p.70).
O retorno nos revela não apenas uma parada de derrota, mas um impasse que
vislumbra a vigência da tensão do entre. Morrer na aridez do sertão ignoto corresponde
a morrer numa existência sem sentido. O Liso do Sussuarão abarca o simbólico
atravessar de um mundo que não foi feito para a travessia, que não foi preparado pela
própria Mãe Terra para ser desbravado. O Liso, cujo nome já traz desde si a lisura do
destino desvitalizador, é o trajeto que suga todas as energias e impossibilita qualquer
ação criativa.
Realizar o caminho de volta é dispor-se ao entre, à errância como promessa de
novos acertos, retornando pela ambígua possibilidade que só este nos dá: o meio como
potenciação de ir e vir, de ser e de não ser.
O trajeto do Sussuarão, mais do que um topos intransponível é, antes de tudo, o
lugar das ausências sem vigências, onde a nadificação do espaço corresponde à
nadificação do ser, impossibilitado de manifestar-se plenamente na inospitalidade do
sem sentido.
O retorno surge como o questionamento de uma caminhada linear e como a
proposta de um recomeço que, não menos difícil, segreda a vida ao invés de degredar à
mera morte.
O Liso do Sussuarão fica, então, para trás. Novos trajetos se inauguram. A ser
desvelada, havia ainda a Grande Travessia: para a outra banda do Rio, onde estavam os
homens de Sô Candelário e Titão Passos, reforços no plano de vingança.
Nesse momento, cabe a Riobaldo partir junto com Sesfrêdo, como mensageiro
entre os bandos amigos. Assim, encontra João Goanhá, que dá notícia da derrota dos
dois grandes chefes.
A travessia de Riobaldo é agora marcada pelo combate com os soldados do
governo e pelo intento de voltar e dar apoio a Medeiro Vaz. Quando retornam, o Vaz já
está para morrer. Desta morte, Riobaldo recebe a missão de comandar a tropa.
A princípio, simplesmente rejeita. Depois, vendo que o mando ficaria nas mãos
de seu amigo Diadorim, resolve interferir através da nomeação irrisória de Marcelino
Pampa.
O comando, rejeitado, é ainda uma promessa de passagem para o porvir. A
paragem desta decisão suspende não apenas a questão da chefia substituta de Medeiro
Vaz, mas o destino de todos os jagunços. Afinal, por onde seguir e como seguir é uma
das ações / decisões essenciais da liderança.
Riobaldo rejeita o comando por ainda não ter atravessado o sentido de ser
jagunço; por ainda não transpassar o caminho que o levaria de Riobaldo à Tatarana e
deste, a Urutu-Branco. Isso significa: por ainda não ter realizado a travessia de sua
metamorfose existencial.
Tal travessia exige mais do que aceitar ser chefe. Isso inconscientemente ele já
havia aceitado, como na percepção certeira de Diadorim: “Foi você, mesmo, Riobaldo,
quem governou tudo, hoje. Você escolheu Marcelino Pampa, você decidiu e fez.”(GSv,
p.101). Na verdade, a metamorfose pela qual Riobaldo iria passar abarca o sentido da
compreensão, da disposição para ser o que deveria ser, para corresponder ao apelo do
que lhe era próprio. Mas compreender e dispor-se a este apelo era o que ainda lhe estava
oculto, gerando-lhe o impasse da caminhada.
No meio do impasse, o encontro com Zé Bebelo faz dele o novo chefe. Novas
viagens tornam-se passagens e paragens de caminhos e descaminhos. Atravessando e
desatravessando, no ir e vir da jornadeia jagunça, cada batalha sopra possibilidades de
vitória e de derrota, mostrando-nos a vida como morte e a morte como plenitude de
vida, o trajeto como obstáculos e os obstáculos como potenciação do trajeto.
Só sabemos o que seja trilhar por conhecermos o que seja parar. Assim, cada
parada / esbarro dos jagunços ex-surge como a vigência de toda liminaridade: ser e não
ser, viver e morrer.
O “Paredão” surge como outro simbólico espaço essencial onde, pela primeira
vez, Riobaldo vislumbra as Veredas Tortas, na encruzilhada dos caminhos. É lá também
onde “o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas”. Lá
onde o arraial é “a rua de guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho...” (GSv,
p.114).
Parede lembra limite, fim de rumo, murada. É ali o topos da obrigatória
paragem, onde toda a decisão deve acontecer, sem adiamento possível. A força
imagética deste lugar pressupõe o silêncio da meia-noite, o mistério do lado soturno da
existência, rememorado na tortuosidade de um caminho que é, inelutavelmente, descrito
como fonte de vida em meio à morte: veredas.
O encontro com o demônio na rua nos remete à não-liminaridade vigente no
centro do limite: o Paredão. Para além dos muros possíveis, existe uma rua, um espaço
livre, sem muros ou fronteiras. No meio (e não no início ou no final) está o redemunho
e, novamente, o diabo.
O redemoinho, como imagem-questão do círculo que a tudo e a todos arrasta em
seus ventos incontroláveis, é correspondente da vigência do Destino que nos assalta
como tempestade imprevisível. O caráter do intempestivo e do imprevisto perpassa toda
a jornada riobaldiana, como uma jornada da liminaridade do entre: entre o destino e a
escolha, entre o diabólico (a divisão) e o simbólico (a reunião).
É no entre que não se dicotomiza que Riobaldo pode tanto ser o matador que
abre passagem desbravando o sertão, como pode dar paragem para, aprendendo com
Diadorim, “(...) se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros,
em seu começar e descomeçar de vôos e pousação.” (GSv, p.159).
Nessa perspectiva é que atravessar lugares é também atravessar sentimentos e
sensações, como nas sentenças: “Purguei a passagem do medo: grande vão eu
atravessava.”(p.168) / “Eu atravessava no meio da tristeza”(p.169).
A travessia do grande vão é a travessia da solidão originária: “(...) naquele dia
eu tardava, no meio de sozinha travessia”.(p.200) . É transpor o meio da tristeza que não
é antônimo de alegria.
Tamanha solidão abarca o vazio e o silêncio não como meras negações do tudo
e da fala, mas como potências cósmicas de toda vigência de ser, na qual o mais
importante não é calar, mas deixar o silêncio dizer, assim como o essencial não é
mergulhar no vazio sem-fundo, mas permitir que o sem-fundo nos mergulhe no vigor do
Vazio.
“Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucúia vai se levar no
mar.”(GSv, p.206). A percepção da vida como rio, confusa, já que repleta de afluentes /
possibilidades, vigente como limite (margens) e não-limite (mar) é o que permite a
Riobaldo compreender que toda travessia não leva a lugar nenhum, pois não se
dimensiona como mera topografia, mas se potencializa como rumo existencial, marcado
pelo ir / vir / prosseguir infatigável dos caminhos do ser.
A chegada às Veredas Tortas /Mortas potencializa o encontro com o silêncio e a
noite, portanto, reúne todos os mundos já trilhados na concruz dos passos dados. A
encruzilhada, como imagética da tríplice estrada, aponta para três direções que, não
sendo duas, não forma pares e, por conseguinte, não delimita combinações,mas sim
disparidades. Na ausência da certeza de se chegar a algum lugar ou de se encontrar uma
concomitância, a concruz dos caminhos nos lança no encontro de trilhas que se
entrecruzam e, entrecruzadas, nos ofertam o infinito.
O pacto torna-se, para Riobaldo, mais do que factuidade. Ter acontecido ou não,
ter-se tornado pactário ou não, é a questão que perpassa toda a obra. Mas como questão
não exige uma resposta que defina um dos pólos propostos pela conjunção alternativa
“ou”. É desse modo que a pergunta já transita no viés da complexa rede na qual o real /
sertão se tece: “O diabo existe e não existe?”.
Coordenadamente, existir E não existir o diabo nos remete a uma compreensão
de existência na qual ser e não ser correspondem à manifestação da plenitude de Ser.
O pacto diz muito mais um questionamento do Ser do que uma indagação sobre
uma figura personificada de demonização. Etimologicamente, diabo comporta o
ambíguo dia já experienciado em Diadorim (através, entre, por intermédio de) e bo, que
vem do verbo ballein (mesma origem de palavra), que nos diz “lançar, mandar”. Nessa
perspectiva, diabo não pode ser um ente (CASTRO, 1976, p.36). Afinal, movimenta-se
como ação.
Daí, pacto não nos remeter a um elo entre os entes Riobaldo e demônio. Pactar,
em sua etimologia, oriunda do verbo latino paciscor, incoativo de pango, nos fala da
ação de escrever poesias, poetar, cantar (CASTRO, 1976,p.71).
Pactário se abre então em duas possibilidades de leitura: como aquele que não
recebe seu destino como doação e segue sua vida, repetindo o destino de um bando,
quer jagunço, quer outro bando qualquer; isto é, pactário por prender-se a uma vida que
nada cria, apenas reitera o já criado; e, num outro modo, como a ação de poetar, a partir
do momento em que selar o pacto é fincar um elo poético entre ser e criar.
Como memorial, a campanha de Riobaldo revela-se como a recusa de um
passado pactário, no sentido de submissão a um destino que não lhe pertence, destino
que segrega e dicotomiza: “Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes, reparti o
dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras __ aí ultimei o jagunço Riobaldo!
Disse adeus para todos sempremente.”(GSv, p.616). Como também, a partir daí, assume
a promessa do nascimento de uma nova jornada, na qual seu caminhar faz da vida pacto
poético.
Realizar o pacto trouxe para Riobaldo a ilusória sensação de que usufruía de um
poder que o levaria à vitória. Entretanto, o mesmo movimento que lhe garante a objetiva
vitória sobre Hermógenes, oferta-lhe a terrível derrota da vida: a morte de Diadorim.
O pacto, como esperado, cobra-lhe um alto preço. Entretanto, a surpresa está em
que esta cobrança não exige a alma do pactário, mas a vida de sua amada. Tal fato nos
possibilita pensar em Diadorim como a alma plena de Riobaldo, já que é ela o penhor de
seus empenhos. Conviver com a dor desta perda é ter de enfrentar o preço que a própria
existência nos cobra: preço de amor e dor, de morrer e viver constantemente.
O pacto como poesia e ruptura é o enlace entre Riobaldo e uma nova ordem
cosmogônica, na qual não mais se diz líder ou liderado, mas simplesmente se assume
como ator e espectador de sua vida memorável. Na ambigüidade de agir e testemunhar
sua ação de ser, Riobaldo transcende a mera contação de causos para encontrar a
especulação como princípio e fim de sua narrativa.
Riobaldo precisa do pacto para ser. Para alcançar uma existência simbólica,
necessita experienciar uma vivência diabólica. A experienciação do pacto como o mais
profundo de seu ser se reflete nos nomes que, como numes, não apenas chamam-no,
mas o evocam a florescer como real.
A metamorfose de sua vida está intimamente desvelada nos nomes que recebe e
que lhe dão o sentido de sua caminhada existencial. Como Riobaldo é aquele cujo rio
lhe atravessa e submete, no qual a força da vida e da morte o arrasta na correnteza dos
dias. Como Tatarana é aquele cuja pontaria certeira de-fine o destino de si e dos outros.
A exatidão do fogo que dispara nos remete à dissimulada compreensão de auto-
suficiência e controle diante dos percalços da estrada. Como Urutu-Branco é cobra,
serpente astuta e traiçoeira como o diabo no mito bíblico. É aquele que, atravessando os
caminhos do pacto, conhece os mistérios do Bem e do Mal. “É, nesse nível, pacto
poético”.(CASTRO, 1976, p.74).
A luz do pacto com Lúcifer (do latim lux fero) não é nem boa nem má. Espalha a
claridade (id., ibid.) na memória de Riobaldo, tornando-o capaz de ver-se e rever-se
como foi, é e será, vigorando como verdade. Verdade esta que não polariza alegria e
dor, maldade ou bondade, mas as envolve num único movimento denominado “sendo”.
Reencontrar-se como Riobaldo, compreendendo-se como realmente é, deslinda-
se na narrativa simbolicamente através do nascimento do Menino, a quem dá seu nome.
No momento em que este chega ao mundo, nosso protagonista descendia de uma
vida tragicamente mortal para ascender a uma morte tragicamente vital: morre para o
passado aprisionador do pacto e renasce para o presente potencializador de esperanças e
realizações. O novo Riobaldo que irrompe através do Menino nos remonta a uma nova
concepção de existência, que faz de sua jornada um ato memorável, cuja convicção é
“Nasci para ser” (GSv, p.607).
Nessa dimensão, o diabo existe E não existe, assim como o pacto cobra e não
cobra a alma, assim como a vida de Riobaldo está marcadamente mortificada pela
ausência de Diadorim e, ao mesmo tempo, profundamente vitalizada pela vigência que
esta lhe ofertara no mistério desse amor.
Na idade dos dias e no Tempo-dos-Tempos da Memória, reflete sobre seu trajeto
e seu destino (nos sentidos tanto de estruturação quanto de direção de sua vida). É nesse
momento que pode redimensionar sua existência.
A morte de Diadorim lhe dá a percepção maior de sua própria vida e é o
acontecimento fulcral que o liberta de ser pactário para seguir seu Destino plenamente.
Aqui, convém salientar que não se trata de subjetivismo: seguir o Destino é aceitar e
concriar, junto com esta doação, as múltiplas possibilidades de ser que a vida e a morte
nos oferecem como um manancial inesgotável chamado existência.
A batalha entre Diadorim e Hermógenes é simbolicamente a batalha dos
“entres”: de Dia, temos o entre, através, que perpassa todo diálogo; de Hermógenes, a
raiz semântica de Hermes nos oferta o entre, o através daquele que, miticamente é,ao
mesmo tempo, a palavra e o intermediário entre a voz divina e a escuta mortal. Ou seja,
é também o diálogo entre divindade e humanidade.
Em ambos, o movimento dialógico se faz mistério: com Diadorim, este diálogo
faz dela o nome perpetual_ nome que, como nume, estabelece o elo entre mortais e
imortais, entre feminino e masculino, entre amor e ódio, entre bravura e delicadeza; com
Hermógenes, temos a essência daimônica dinamizada entre a palavra do sertão, bravio e
sem limites racionais e a palavra de uma nova ordem, nascendo nas trilhas de Zé
Bebelo.
A morte dos dois duelistas só vem a nos ratificar sua equiparidade dialógica.
Não há sobrepujança entre a suposta dicotomia da ordem do bem e do mal. Ambos se
configuram como guerreiros corajosos e apaixonadamente entregues à luta que os
alimenta.
Como sertanejos, Diadorim e Hermógenes terminam seu combate igualmente
vitoriosos e derrotados. A morte não é um castigo imposto aos vilões nem um martírio
sofrido pelos mocinhos. É em si potencialmente o lado outro da vida, como nos dizia
Fernando Pessoa75.
Como o reverso da vida, possibilita tanto fim quanto recomeço, tanto dor quanto
refrigério. Diadorim morre para dar a Riobaldo o sentido da vida. Não é gratuitamente
75 PESSOA, Fernando. Álvaro de Campos.Reflexões.In: Obras em prosa. Org.intr. e notas de Clarice Berardinelli. Rio de Janeiro, Cia. José Aguilar, 1974, p.163.
que só nesta morte o amor entre os dois pode ser experienciado. A morte liberta, pois
revela a Riobaldo o corpo feminino de sua amada.
A travessia de Diadorim para a morte é a travessia para a liberdade, ao passo
que, viva, seu destino era ser homem-jagunço; morta, desvela-se mulher, moça em fina
flor. A virgindade de seu corpo sugere a promessa de vida que comporta toda
simbologia da Noiva e que, em outros termos, é perpetuada pela figura de Otacília.
Diadorim é, em si mesma, travessia. Enquanto dia, neblina perpetual de
Riobaldo, apresenta-se como toda possibilidade de amor, acima das convenções, assim
como toda demanda de ódio, na dura caminhada que trilha como jagunço.
Sua morte é um encontro com as forças ctônicas da existência, numa entrega à
potência telúrica que lhe permite morrer não para findar, mas para renascer de jagunço à
mulher, num elogio poético ao eterno feminino.
Na dança funesta que baila com Hermógenes, o redemoinho eclode como a
ciranda que envolve a ambos, levando-os, num ritmo frenético, a não mais se
dissociarem : “ E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão ... e só...” (GSv,
p:610). Não há mais Diadorim nem Hermógenes enquanto individuações. O que vige é
a figura de Hermes que os conduz ao mundo dos mortos: “O diabo na rua, no meio do
redemunho”... (id., ibid.). Diabo, rua, redemoinho ... Todo o nomear aqui vigora para a
travessia mortal pelas mãos do deus subterrâneo.
Nesse momento, Diadorim e Hermógenes são numes para Hermes. Ambos
conduzem e são conduzidos para a Grande Travessia. Ambos descendem para a
experiência do mortal enquanto prodígio do vital.
A Riobaldo, no momento de decisivo combate, couberam-lhe a paralisia e o
silêncio de quem não pode contra o fluxo cosmogônico, enredado por entre a fasticidade
e a nefasticidade de ser. Cumpre, portanto, o destino de amar sem medidas e de,
atravessando este sentimento, compreender a vida para além do mero somatório de
vivências.
É Diadorim ,como o entre de seu destino / envio, que lhe permite o atravessar
originário, o qual faz do jagunço homem humano.
É Hermógenes que enterra consigo uma parte do sertão, aquela da crueldade sem
freios, do combate pelo combate, da jagunçagem como caminho.É o sertão caótico e
soturno que, embora jamais deixe de existir, abre espaço para o ex-surgir de novas
possibilidades inscritas na alcunha de Zé Bebelo. Com este, um novo sertão se promete,
delineado em novas leis e novos projetos, que fundam uma outra ordem cosmogônica.
É a travessia de Hermógenes para a morte que abre passagens para este porvir,
portanto, similarmente, morrer é metamorfosear vida. É nesta nova diacosmese que
Riobaldo vai configurar renovada trilha.
Num modo amplo, na travessia dos gerais, o Sertão se re-vela como o lugar de
experienciação da morte em vida (como o Liso do Sussuarão) e da vida em morte (como
a grandeza do fim de Joca Ramiro e de Medeiro Vaz, de Diadorim e de Hermógenes).
Potencialmente plenitude, o Sertão é o espelho do real manifesto em desafios entre o
limite e o não-limite do estar e do permanecer, sem dicotomias polarizadoras.
Nesse viés, Riobaldo pode finalizar, dizendo: “E me cerro, aqui, mire e veja. Isto
não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi,
no levantar do dia. Auroras”(GSv, p:623).
O relato aqui não se resume num mero descrever de passagens de uma vida, mas
se constitui nas próprias passagens e paragens do que se foi e se viu, isto é, do que se
conflagrou como experiência.
A bela simbologia que abarca o aurorescer nos remete uma vez mais ao entre de
todo caminho memorável: entre a noite e o dia, o recomeço se instaura como “auroras”.
O fim das múltiplas estórias, vividas por Riobaldo, se decreta como o infinito da
História, experiência de ser.
A conclusão que encerra a narrativa permanece jogando entre o limite e o não-
limite, pois compreende que “o diabo não existe”, que “o diabo não há”. O que existe é
“homem humano. Travessia” (GSv, p:624).
A descoberta de que a demonização não é algo externo ao homem, mas que sua
humanidade a concerne, é ao mesmo modo a compreensão de que a divindade também
nos abarca, constituindo nossa essência.
Riobaldo, neste momento, compreende que não há mais uma estrada adiante,
não precisa mais viajar por lugares diversos, visto que ele mesmo já se sabe como Ser e
Lugar, como homem humano e Travessia.
A compreensão profunda de sua humanidade enquanto essência do entre é a
mobilização de que necessitava para descobrir-se como trajetória. Só quando se percebe
homem humano, isto é, quando se apropria do que lhe é próprio ser, passa a conhecer-se
como Travessia. É o que igualmente se diz, nos seguintes termos: “Na e pela tra-vessia
nos transvertemos (do verbo latino trans-vertere), ou seja, nos apropriamos do que nos é
próprio, como sentido e verdade do que somos, numa forma em formação permanente
de libertação” (CASTRO, 2003).
A “forma em formação” de Riobaldo bebeu das fontes de rios diversos,
desembocando em afluentes vastos, em sua trajetória de jagunço, amante e sonhador.
Ainda em constante figuração, sua travessia memorável se promete como reinauguração
de si pelo que, na realidade, jamais deixou de ser: aquele que habita o sertão como
mundo e o mundo como sertão, desbravando novas rotas, a cada novo diálogo com a
existência. A esse movimento poderíamos nomear libertação.
Libertação como dinâmica inexaurível de redescoberta e renascimento a cada
morte. Morte de seu destino pactário, de sua neblina Diadorim, de seu caminhar vão.
Renascimento em novas auroras de realizações.
Daí a proposta de se atentar para as veredas em meio ao Grande Sertão: são estas
as águas que promulgam uma existência simbólica – que a tudo reúne pelas vias
afluentes da Memória _ sobrepondo-se a uma vivência diabólica, que a tudo divide,
segmenta, polariza.
Nas auroras dessa nova concepção de vida e mundo, Riobaldo amanhece seu
novo existir, uma vez mais evocando a “nonada” e a “travessia”, pois ambas são as
diferenças e o mesmo. Ambas cincunscrevem o trajeto do começo e do fim no numem
vigoroso que comporta a palavra “meio”.
Somente fazendo uso do dizer mostrante é que a obra pode revelar e velar seu
sentido como o mais pleno e profundo dito. Daí findar-se o discurso no curso do
símbolo: ∞.
A obra, que se inicia a partir da “nonada” e se fecha (abre) na promessa do
infinito, opera o círculo que vela e desvela nosso percurso existencial como discurso
narrativo, dizendo e mostrando a vigência de ser no lugar que lhe é possível: o não-lugar
de ir e chegar aonde jamais se deixou de estar: na morada da Linguagem que é,
poeticamente, a de-mora na Memória.
CONCLUSÃO
Na travessia de Grande Sertão: veredas, muitos foram os viajantes que
enriqueceram o caminho literário com suas reflexões acerca da mundividência rosiana
que ali se faz flagrante.
Nosso trabalho se propôs como uma viagem a mais nesse percurso que porta
como início e término a possibilidade do infinito. Assim é que a Memória, enquanto
potencializadora do sempre, que se viabiliza no “vigor do que foi, é e será”, surge como
dínamo de nossas questões.
Nossa pesquisa, na busca por compreender a Memória em sua manifestação
ontológica, perpassou por veredas vastas: atravessamos a temporalidade em suas
múltiplas concepções, indagamos pela Linguagem em seu elo com o memorável e com
a constituição da narrativa, encontramo-nos com a verdade /aletheia, em sua demanda
para além do verídico como adequação.
Nas sendas do pensamento, o que nos fica é a plenitude de ser e não ser
flagradas na memorialística de Riobaldo. A partir de seu canto memorável, pudemos
vislumbrar como as lembranças e o esquecimento, a vida e a morte, o amor e o ódio são
vertentes do domínio duplo do Caos e do Cosmos como constituidores de toda vigência
e, portanto, de todo real.
A realidade, instaurada na obra, movimenta-se, portanto, na dinâmica de uma
trajetória genesíaca: ultrapassando quaisquer fronteiras de tempo e espaço, a
cosmogonia de Grande Sertão nos revela um novo Riobaldo, um novo homem a partir
de uma nova mundividência. E esta mundividência advém da sua travessia pelo mistério
da Memória.
Do Caos enquanto força ao Cosmos que conforma este vigor em momentos de
ordem, o sentido brota do não sentido, confluindo os opostos numa harmonia
vitalizadora. Nessa medida que não contabiliza, mas sim dimensiona, o canto poético,
aqui evocado por Rosa nas múltiplas vozes de seu sertão-mundo, comporta em si a
vigência de tornar a experienciação um ato memorável, o qual perpetua “o mútuo
pertencer de dizer e ser” (HEIDEGGER, 2003,p.189).
É, portanto, através da Memória que Riobaldo pode se modificar e modificar o
mundo à sua volta, inaugurando, a cada momento de digressão, uma nova possibilidade
de ser e perpetuar-se.
Por conseguinte, encerramos provisoriamente nossas reflexões. Mas é nas vias e
desvios de toda travessia memorável que continuamos a proposta de um sentir-pensar76
bem rosiano, que nos provoque e questione infinitamente, para que novos cosmoi
possam emergir no sempre fundante clamor da obra poética.
76 ROSA, João Guimarães; LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Guimarães Rosa. Col. Fortuna Crítica, 2ª ed. Civilização Brasileira, 1991,pp.62-67.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d.
AZEVEDO, Idalina de. Linguagem e Discurso: no silêncio da musas. Práticas
discursivas: intuição, tradução e literatura. Faculdade de Letras – UFRJ.
BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.
BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional. Trad. da Sociedade Bíblica
Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2001.
CASTRO, Manuel Antônio de.(org.). A construção poética do real. Rio de Janeiro:
Sete Letras, 2004.
_____________________ A leitura e o método. Mimeo.
____________________ A poética da poiesis segundo Guimarães Rosa. Mimeo.
_______________________ A questão do método: dialética e verdade. Mimeo.
______________________ Diálogo poético: a interpretação do texto.Mimeo.
_______________________ Linguagem: nosso maior bem. In: Série Aulas
Inaugurais, v.4. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras – UFRJ, 2004.
_______________________ Heidegger e as questões da arte. Mimeo.
_______________________ O mito de Midas do ser feliz. Mimeo.
_______________________ O Homem e a Poiesis. Mimeo.
______________________ O homem provisório no grande Ser-tão. Dissertação de
Mestrado - UFRJ. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: INL, 1976.
______________________ O pensamento originário. Mimeo.
__________________________ O narrador e a obra: a Linguagem como medida.
Disponível em: http: //acd.ufrj.br/~travessiapoetica/literários/onarrador.htm.
______________________ Poética e Poiesis: a questão da interpretação. In: Veredas
2, pp:317-340, Porto, 1999.
_____________________ Questões, conceitos e jargões. Mimeo.
_____________________ Segunda parte: A metafísica. Mimeo.
_____________________ Terceira parte: O pensamento Originário. Mimeo.
CHANTRAINE P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris,
Klincksieck.
ERNOUT, A. et MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris,
Klincksieck.
GADAMER, Hans-Georg. In: Verdade e método II. Petrópolis: Vozes, 1999.
GALVÃO, Walnice. As formas do falso _ um estudo sobre a ambigüidade no
Grande Sertão: veredas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986.
GUIMARÃES, Maria Lúcia. A Conversão Proustiana do Tempo Perdido no Tempo
Redescoberto. Revista da FACED, nº 05:153-181,2001.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003.
__________________ A origem da obra de arte.Lisboa: Edições 70, 1989.
__________________ A teoria da verdade segundo Platão. Trad. do francês de
Antonio Jardim. Mimeo.
__________________ Carta sobre o Humanismo. Introdução, tradução e notas de
Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1967.
__________________ Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2001.
__________________ O originário da obra de arte. Tradução e comentários de
Manuel Antônio de Castro e Idalina de Azevedo. In: Apontamentos de aula. Mimeo / 2º
semestre de 2005. Mestrado _ UFRJ.
_____________________ Ser e Tempo. Parte II. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 2 ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990. HESÍODO. Teogonia. A origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano.2ª
ed.São Paulo: Iluminuras, 1992.
JARDIM, Antonio. Os caminhos da memória. In: Música: vigência do pensar
poético. Tese de doutorado. Faculdade de Letras, UFRJ,1997.
________________ A dimensão poética no contexto hegemônico da técnica. In:
Conferência. Universidade do Rio de Janeiro_ UNIRIO, 1996. Mimeo.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. A experiência grega da verdade. Revista Tempo
Brasileiro. Rio de Janeiro, nº 150:71/80, julho-setembro, 2002.
________________________ Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 1977.
_________________________ Hermenêutica e mito. In: Caderno de Letras, nº 11.
Faculdade de Letras, Departamento de Letras Anglo-germânicas. Rio de Janeiro: UFRJ,
1995.
________________________ O esquecimento da memória. In: Horizontes da
Memória. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº. 153: 143-147, abril-junho,
2003.
MACHADO, Ana Maria. Recado do nome : leitura de Guimarães Rosa à luz do
nome de seus personagens. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade. São
Paulo: Annablume, 1999.
NUNES, Benedito. Os Círculos de Heidegger. O Amor na Obra de Guimarães
Rosa. A Viagem. A Viagem do Grivo. Guimarães Rosa e Tradução. Tutaméia. In:
O Dorso do Tigre. São Paulo: Editora Perspectiva, 1969.
PAZ, Otacvio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PEREIRA, Isidro S.J. Dicionário grego-português e português-grego. Porto,
Apostolado da Imprensa.
PESSOA, Fernando. Álvaro de Campos. Reflexões. In: Obras em prosa. Organização,
introdução e notas de Clarice Berardinelli. Rio de Janeiro: Cia. José Aguilar, 1974.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2003.
________ Fedro. São Paulo: Martin Claret, 2005.
PORTELLA, Eduardo. A linguagem e os signos .In: O signo e os signos. Rio de
Janeiro:Tempo Brasileiro, nº 29, jun/julh. 1972.
PRIGOGINE, Iya. O fim da certeza. In: Representação e Complexidade. Rio de
Janeiro: Garamond, 2003.
RILKE, Rainer Maria. Poemas. As elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu. Trad.de Paulo
Quintela. Porto,1983.
ROSA, João Guimarães; LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In:
Guimarães Rosa. Col. Fortuna Crítica, 2ª ed. Civilização Brasileira, 1991,pp.62-67.
__________________Grande Sertão: veredas. 19ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2001.
________________ Primeiras estórias. Edição Especial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2005.
________________ Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. Os descaminhos do demo. Tradição e ruptura
em Grande Sertão: veredas.Rio de Janeiro: Imago, 1993.
SOUZA, Ronaldes de Melo e. A criatividade da memória. In: Historicidade da
memória. Org. Francisco Venceslau. Rio de Janeiro: Caetés, 2002.
_______________________ Ficção e Verdade. Diálogo e catarse em “Grande
Sertão: veredas”. Série Compromisso. Nº3. Brasília: Clube de Poesia de Brasília, 1978.
TORRANO, Jaa. O sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mítico de ser no
mundo. São Paulo: Iluminuras, 1996.