MEMÓRIAS DE INFÂNCIA E EDUCAÇÃO JAPONESA: CIVILIZAÇÃO DE
IMIGRANTES JAPONESES
JOICE CAMILA DOS SANTOS KOCHI
MÍRIA IZABEL CAMPOS
Introdução
O interesse em pesquisar uma escola étnica, especificamente japonesa, surgiu da
trajetória pessoal da pesquisadora Joice Kochi, a qual tem uma significativa vivência com
japoneses, pois viveu desde a infância até o começo de sua vida adulta no país do oriente.
E a partir dessa experiência e interesse pessoal, desde 2012 vem investigando a história
dos imigrantes japoneses em Dourados/MS.
Somado ao interesse pessoal, importante salientar a relevância social e científica
do estudo proposto. É sabido que o Brasil recebeu o maior contingente de imigrantes
japoneses no mundo. Em se tratando de Mato Grosso do Sul, o estado hoje concentra a
terceira maior comunidade japonesa no país. Especificamente na região da Grande
Dourados, registra-se a grande importância da presença desse povo, porém ao fazer um
levantamento bibliográfico da área, foi constatada uma grande carência de estudos
acadêmicos sobre imigrantes japoneses no estado e no município.
Como esclarecem Matsumoto e Bueno (2011: 2), “no âmbito acadêmico, devemos
ressaltar que, existem poucas pesquisas relacionadas a este povo no Estado de Mato
Grosso do Sul [...]”. Assim, buscamos a importância de ‘descobrir’ as características de
um grupo que se constituiu no município de Dourados/MS.
Nesse sentido, o nosso objetivo com o estudo foi compreender a normatização do comportamento
das crianças no âmbito familiar de imigrantes japoneses, buscando nas memórias daqueles que viveram a
infância na terra do sol nascente, fragmentos acerca da educação recebida e diferenciada, com a perspectiva
de encontrar diferenças no processo, considerando as características culturais de cada grupo e suas
influências na educação das crianças.
UFGD, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu), apoio CAPES. UFGD, Professora Assistente da Universidade Federal da Grande Dourados, Doutoranda do PPGEdu e
coorientadora da aluna no Mestrado/UFGD.
A metodologia consistiu de estudos bibliográficos sobre imigração japonesa no país, no estado de
Mato Grosso do Sul e especificamente na região do município de Dourados. Foram realizadas entrevistas
a partir da História Oral, por meio de gravação de voz, com roteiro semiestruturado. As memórias dos
idosos que viveram naquele país nas décadas de 1930 a 1940 foram fontes imprescindíveis para o nosso
trabalho. Buscamos a partir dessas fontes orais, compreender como apreenderam os hábitos, costumes e
comportamentos esperados na família, as normas consideradas ‘corretas’.
O lugar de onde falamos: do Japão ao Brasil
O Japão, que se situa ‘do outro lado do mundo’, é composto por arquipélago de
quatro grandes ilhas: Hokkaido, Honshu, Shikoku e Kyushu. Com uma extensão
superficial de 372.487 km², pouco maior que o estado de São Paulo, sua geografia é
inóspita, o país tem apenas 25% de seu território com regiões planas e todo o restante é
ocupado por montanhas. Mesmo com esse pequeno espaço, há cidades movimentadas
como Tóquio, Osaka e Kyoto, com a rica cultura para apreciar como teatro kabuki,
concerto sinfônico ao estilo ocidental, dança gagaku, shamishen (KISHIMOTO, 2009).
É um país de forte traço cultural, o qual valoriza a cooperação, respeito pelo grupo
e, ainda, a consciência de grupo é bastante forte e praticada, refletindo assim na educação
das crianças, com grande maior valor ao trabalho coletivo, grupal, até mesmo definindo
a estrutura das instituições que recebem os pequenos (KISHIMOTO, 1997). Com essa
cultura própria, “[...] os imigrantes japoneses sempre tiveram a sua identidade marcada
por suas diferenças com a sociedade brasileira” (SAKURAI, 1998:2), pois o grupo e a
sociedade receptora eram distintos, havia não só a distância geográfica, como também
cultural.
O ano de 1868 é a data do marco histórico do Japão chamado Restauração Meiji,
pois após 250 anos do shogunato Tokugawa1 e fechamento do país a qualquer contato
com exterior, acontece a retomada de poder político do imperador, trazendo grandes
mudanças na sociedade, como também na história posterior do país. Esse processo está
1 O termo significa Sociedade Feudal, onde o poder é pulverizado nos diversos senhores de terras.
Controlada a partir de 1608 pelo Ieyasu Tokugawa, a estrutura do poder consiste na lealdade de diversos
senhores das terras e a sociedade é moldada sobre uma base de castas, com princípios de lealdade, do dever,
dos cerimoniais etc. A linhagem imperial continuou a existir, porém sem nenhum poder político de decisão
no país, o seu poder é passado para o shogun, o detentor da maior área de terras cultiváveis e a mais alta
posição da estrutura social da época (SAKURAI, 2014).
intimamente ligado às mudanças geopolíticas, sociais e econômicas dos países ocidentais,
as quais ocorriam em função da necessidade da expansão capitalista em meados do século
XIX (SAKURAI, 2000).
Em rumo à modernização do país, após o Tratado de Amizade, Comércio e
Navegação entre ambos os países em 1895 (Brasil-Japão), a imigração japonesa
concretiza-se no Brasil em 1908, com os primeiros 781 imigrantes que chegaram ao porto
de Santos no navio Kasato Maru. Posteriormente, cerca de 234.000 imigrantes vieram
para o país, se fixando primordialmente nos estados de São Paulo e Paraná. Após a
primeira chegada o fluxo imigratório veio aumentando e até a década de 1990 o número
chegou a cerca de 1.200.000 japoneses e descendentes (SAKURAI, 1998).
A imigração japonesa no antigo sul do estado de Mato Grosso se dá de forma
secundária, pois o destino primordial foram os cafezais do interior do estado de São Paulo.
A vinda dos imigrantes/migrantes2 para o Estado iniciou-se, ainda, na primeira década do
século XX, e a sua história conforme Inagaki (2008:32) “[...] está ligada a construção da
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que ligava Bauru a Porto Esperança, no antigo Mato
Grosso, próximo a Corumbá”. No ano de 1909, esses imigrantes, ao serem atraídos pela
remuneração mais recompensadora da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil
(NOB)3 do que nas fazendas cafeeiras, resolvem encaminhar-se para a região centro-oeste
do país (KUBOTA, 2008).
A partir da década de 1940, principalmente na era Vargas, houve o movimento de
expansionismo no Brasil, quando o governo acreditava que o desenvolvimento da nação
se daria, se acabasse com regionalismo das fronteiras. Então, houve um grande controle
estratégico dessa área fronteiriça. Tal movimento objetivava a ocupação dos espaços
vazios e, portanto, aconteceu um grande movimento de implantação de Colônias
2 Conforme Inagaki (2008), podemos especificar que, imigrante é o japonês que veio para região de
Dourados diretamente do Japão. E migrante é o japonês que primeiramente se deslocou do Japão para outras
regiões do Brasil e, posteriormente, migrou e se fixou na região de Dourados. 3 A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) construída às margens do rio Paraguai passando por Campo
Grande, no antigo Mato Grosso, foi uma ferrovia destinada a ligar Bauru (SP) a Porto Esperança (próximo
a Corumbá). O início da sua construção em 1909 marcou, também, a chegada dos primeiros japoneses ao
antigo estado de Mato Grosso. O trabalho de construção atraiu muitos imigrantes que vieram no navio
pioneiro, Kasato Maru em 1908, os quais não tendo se adaptado ao trabalho das fazendas cafeeiras paulistas,
perceberam como oportunidade as propostas para trabalharem na construção (INAGAKI, 2008).
Agrícolas Nacionais, para que os homens se fixarem no campo através das pequenas
propriedades. Os espaços vazios do sul de Mato Grosso foram ocupados, nesse sentido,
pelo governo do estado, que estabeleceu um projeto de colonização em parceria com as
empresas colonizadoras, colocando à disposição as terras da região (INAGAKI, 2008).
Desse modo, a região da Grande Dourados, fez parte da rota de
imigração/migração japonesa de forma significativa e, segundo Inagaki (2008), essa
região, desde 1927, já era conhecida por possuir bons ares e terra fértil, possibilitando
uma grande perspectiva de fixação de imigrantes. A partir de 1940 foi escolhida como
destino para um número significativo de migrantes nikkeis4 e imigrantes japoneses.
Neste contexto, Brasil e Japão, dois países com culturas distintas, mas com uma
forte ligação histórica foi uma possiblidade que nos permitiu investigar a infância
japonesa considerando na reflexão as memórias destes imigrantes. Assim, pesquisamos
aspectos como a socialização das crianças na família; as relações entre adultos e crianças;
os papéis atribuídos aos grupos; os deveres; as relações de poder; características presentes
nas famílias de formação em uma cultura oriental.
Nessa perspectiva, nossa reflexão procurou caminhar por quais aspectos poderiam
ser diferentes nas concepções acerca da educação da criança. E, portanto, terminadas
essas incursões na história do movimento Japão-Brasil, apresentamos a seguir as questões
metodológicas utilizadas, considerando os relatos e os materiais da pesquisa.
Memórias e histórias: aspectos metodológicos
A busca, ampliação e aprofundamento de estudos bibliográficos em obras
relacionadas à temática proposta foram de suma importância para a efetivação da
pesquisa. Como destaca Luna (2006:35), “o referencial teórico de um pesquisador é um
filtro pelo qual ele enxerga a realidade”. Foram realizados leituras e estudos em autores
que tratam de temáticas como, imigração/migração japonesa, educação e civilização,
4 Nikkeis é um termo usado para se referir aos imigrantes japoneses. De acordo com Inagaki (2008), temos
uma diferenciação para os termos: japonês e nikkey. “Antes da II Guerra, ele era japonês e pretendia
retornar ao Japão, e seu filho era um japonês nascido no Brasil. Com a derrota sofrida na Guerra e a perda
da possibilidade de seu retorno, há mudança de perspectiva: o Japão passa a ser a “Terra dos Antepassados”,
e o Brasil a “Terra do Futuro”, a terra de seus filhos nisseis (segunda geração); e a partir daí tornam-se
nkkeis: japoneses do Brasil, e seus filhos, brasileiros, e não mais japoneses nascidos no Brasil” (INAGAKI,
2008:12).
infância e criança, memórias, história oral, cultura e cultura japonesa, dentre os quais
podemos citar Elias (2011); Inagaki (2008); Kubota (2008); Sakurai (1998, 2000, 2014);
Kishimoto (1997, 2009); Meihy (1996); Freitas (2006).
Em um segundo momento, realizamos a busca pelos entrevistados, considerando
que queríamos somente imigrantes japoneses, moradores da cidade de Dourados/MS, os
quais tivessem vivido sua infância no Japão, ou seja, pessoas da primeira geração de
imigrantes, que tinham nascido e vivido sua infância no Japão, antes de imigrar para o
Brasil. Seriam pessoas nas idades entre 60 e 80 anos, pois o interesse era ouvir as
memórias de sua educação na família, vivenciada naquele país.
A metodologia utilizada na pesquisa foi a Historia Oral, considerada uma
importante fonte para recolhimento dos dados empíricos, a qual juntamente com o
referencial bibliográfico, permitiu a construção da pesquisa. Conforme aponta Alberti
(2013:31) esta metodologia “[...] decorre de toda uma postura com relação à história e às
configurações socioculturais, que privilegia a recuperação do vivido conforme concebido
por quem viveu”.
Nesse contexto, tal metodologia é capaz de abrigar as histórias e memórias de
grupos pequenos, dando “[...] sentido social às experiências vividas sob diferentes
circunstâncias” (MEIHY, 1996:10). Ainda como o mesmo autor, tal perspectiva:
[...] implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje
e cujo processo histórico não está acabado. [...] garante sentido social à vida
de depoentes e leitores que passam a entender a sequência histórica e a
sentirem-se parte do contexto em que vivem (MEIHY, 1996:10).
Como já apontado anteriormente, nosso interesse era buscar nas memórias dos
imigrantes japoneses, aqueles que viveram a sua infância na terra do sol nascente,
fragmentos de memória da educação recebida. Uma educação diferenciada,
provavelmente, como pontua Sakurai (1998:3), pois “[...] os imigrantes japoneses sempre
tiveram a sua identidade marcada por suas diferenças com a sociedade brasileira”. Assim,
nossa perspectiva era de encontrar muitas diferenças no processo, considerando as
características culturais de cada grupo e suas influências na educação das crianças, como
também as influências da educação do adulto no processo educacional das crianças do
país oriental.
Ao seguir a pesquisa com a metodologia da História Oral na modalidade temática,
que conforme Freitas (2006: 21), é um dos gêneros possíveis dessa metodologia, pois
“[...] a entrevista tem caráter temático e é utilizada com um grupo de pessoas sobre um
assunto específico”, questionamos os entrevistados acerca da infância vivida no Japão,
considerando as relações nas famílias, os comportamentos das crianças e as relações entre
irmãos como temas mais específicos. Ainda segundo Freitas (2006:21), esse tipo de
entrevista “[...] facilita a comparação, apontando divergências, convergências e
evidências de uma memória coletiva”, pois assim se consegue obter maior quantidade de
informação.
A busca pelos entrevistados aconteceu no âmbito da Associação Cultural Nipo-
Brasileira Sul-Mato-Grossense5. Os entrevistados do perfil mencionado foram
encontrados nas reuniões de idosos que ocorrem no espaço da Associação.
O grupo que entramos em contato se reúne uma vez por semana para conversar
no idioma japonês, levam comidas típicas para saborearem juntos, cantam “karaokê” com
músicas japonesas e mantêm a socialização entre os amigos. Todos os entrevistados são
representantes da primeira geração, sendo assim, as entrevistas foram feitas em língua
japonesa, bem como a posterior tradução destas (pois como já apontado anteriormente
Joice Kochi viveu no Japão, portanto é fluente e tem o domínio do idioma). Foram
realizadas 06 entrevistas, sendo 02 homens e 04 mulheres.
De todo o material recolhido, optamos neste artigo em priorizar 03 delas, por
serem entrevistas que ficaram mais focadas no objetivo da pesquisa, quando os sujeitos
se referiram de forma mais contundente à infância. No processo anterior às entrevistas,
fizemos uma exposição acerca do projeto para esclarecer dúvidas e permitir uma melhor
compreensão da reflexão. E, ainda, foram feitas escolhas de nomes fictícios para serem
usados no trabalho, no sentido de garantir o anonimato dos entrevistados.
5 Associação Cultural Nipo-Brasileira Sul-Mato-Grossense está localizada em Dourados/MS e foi fundada
em 1974.
Desse modo, nós temos como entrevistadas a Sra. Mitiko, Sra. Akemi e Sra.
Miyuki, porque optamos por utilizar neste trabalho as entrevistas realizadas com as
mulheres, pois, além delas terem sido mais específicas no que buscávamos a experiência
das mulheres japonesas no cuidado com as crianças e espaço doméstico se evidenciou
muito maior, se apresentando como um aspecto importante para a análise da educação
desses indivíduos.
A ferramenta para captação da voz dos entrevistados foi um gravador de voz, parte
de um aparelho celular, que não representou maiores constrangimentos, pois como é uma
ferramenta largamente utilizada, observamos que as pessoas até ‘esqueciam’ que
estávamos gravando.
A primeira entrevistada foi a senhora Mitiko, 78 anos, natural da cidade de
Toyosaba – Hokkaido. Na sua infância morou com os pais, 05 irmãos e a avó. Depois
entrevistamos a senhora Akemi com 77 anos, que nasceu em Hokkaido e também morou
com seus pais e seus 04 irmãos. Ela é a caçula da família. E, finalmente, a senhora Miyuki
de 78 anos, que também nasceu na província de Hokkaido e morou com seus pais e mais
06 irmãos. Interessante perceber que todas as senhoras vêm da mesma região do país e
todas faziam parte de famílias extensas, ou seja, com grande número de filhos.
Depois das entrevistas realizadas, foram feitas as traduções e as transcrições das
gravações, o que constituiu um procedimento trabalhoso. Como explica Meihy (1996:16),
“a história oral tem três tempos principais e nítidos, ainda que apenas eventualmente
complementares: o da gravação; o da confecção do documento escrito; o de sua eventual
análise”. No caso deste trabalho, ainda tivemos o período de tradução da língua japonesa
para a língua portuguesa, o que fez com que o processo fosse ainda mais demorado, porém
não menos interessante, resultando nas análises do que o material empírico permitiu.
Assim, nas próximas seções vamos discutir a civilização e educação das crianças
e trazer alguns pontos elencados dos documentos produzidos a partir das entrevistas, os
quais nós acreditamos serão importantes para as reflexões que nos propusemos para este
texto.
Civilização e educação das crianças
Ao pensarmos a trajetória histórica da infância, a criança nem sempre foi vista como no dia de
hoje. Conforme Oliveira (1999:8), “ser criança é estar associado à infância. Criança e infância aparecem na
origem da palavra como sinônimos”. E “[...] a princípio, a infância está caracterizada pela ausência. Um
espaço na vida de todos os homens marcado por uma incompletude, pela falta, pela incapacidade inicial”
(OLIVEIRA, 1999:8).
Essa concepção de que a criança precisava ‘vir a ser’ para ter um espaço no futuro, atribuiu à
educação um papel importante, que seria de prepará-la para se tornar um adulto capaz de relacionar
socialmente. Portanto, de acordo com Oliveira (1999:13):
Na infância as diversas aprendizagens giram em torno da preparação da
criança para a vida adulta, de acordo com os padrões e comportamentos de
seu grupo. Essa percepção de educação como preparação para as gerações
posteriores pode ser percebida também na crítica feita por Freud citado por
Gadotti quando diz: que a educação representa um processo, cuja intenção
coletiva é modelar as crianças de acordo com os valores dos que vão morrer.
Ou seja, a educação sempre fez parte do processo de civilização dos seres
humanos na sociedade, e a “[...] difusão da escolarização e universalização dos saberes
elementares (ler, escrever e contar) se apresentou como fator preponderante de progresso
social” (VEIGA, 2007:2). Nesse panorama, entendemos que a educação tem uma
variação conforme a cultura de cada sociedade, que segundo Vygotsky citado por
Kishimoto (1997:67), “[...] objetos materiais e a cultura de cada povo influenciam a forma
de pensar dos seres humanos”. Assim, ao pensarmos em infância temos que considerar a
cultura e as diferentes concepções nas quais as crianças são percebidas.
A educação de crianças japonesas: experiências de imigrantes
As crianças que foram representadas na voz e na memória das depoentes foram
educadas na década de 1930 a 1940, um período em que o país estava instável, pré-guerra
mundial, ou seja, eram tempos de muita dificuldade e tensão na experiência das pessoas.
Porém, ao mesmo tempo, o contexto de vida foi amenizado, pois viviam em cidades do
interior do país. Por serem regiões pequenas de interior, como a maioria relatou, tiveram
uma vida muito tranquila, um cotidiano agrícola de trabalhos na roça. Cada família com
seus hábitos e costumes, mas todas sendo educadas com regras e padrões estabelecidos
naquele ambiente.
Ao perguntarmos sobre como foi à infância em relação a comportamentos e
padrões da época, cada uma delas respondeu que a infância foi “tranquila”. A expressão
que a Sra. Akemi (77 anos) usou foi “normal”. A Sra. Mitiko (77 anos) diz “como era no
interior, e bem interior...”, ou seja, a infância e a educação dentro de casa foram marcadas
pela tranquilidade, em oposição à preconcepção tomada por uma das autoras de
severidade das normas. Desse modo, conseguimos perceber que a experiência de algumas
delas pode ser assim relatada:
Não, os meus pais não eram severos não. Claro que quando fazia coisa errada,
ficavam bravos. Mas... (MITIKO, 77 anos).
Como faz tempo, não me lembro muito bem, mas acredito que não era tão
severa assim (AKEMI, 77 anos).
No contexto da vida agrícola, acreditamos que os pais dessas crianças eram
atarefados com serviços de roça e plantação. Assim, muitas vezes a tarefa de “educar”
ficava a cargo da educação formal. Como relatou a Sra. Mitiko (77 anos):
Sim, bastante tranquila. Era no interior, os adultos iam trabalhar na roça, e
as crianças estudavam na escola.
No entanto, uma das entrevistadas respondeu que na sua educação a presença da
severidade dos pais foi grande, de um jeito “militar”, como relatado. Quando perguntamos
sobre sua educação, ela respondeu e acrescentou quais aspectos faziam parte da norma:
Nossa era como se fosse uma lei. [...] Sim, severa! [...] Bem, primeiramente
cumprimentos. Então, quando chegavam visitas, precisava ficar um passo
atrás e cumprimentar e dizer bem-vindo (MIYUKI, 78 anos).
Esse aspecto da relação com as pessoas estranhas, as visitas recebidas na casa, ou
pessoas que os adultos conviviam, é contado pela memória das regras que seriam parte
do padrão familiar. Podemos notar no relato:
[...] quando havia visita em casa... nesse caso oferecia doces que deixava
guardados até para essa ocasião. E se ia pegar esses doces na frente da visita
nós levávamos bronca. Diziam que era para pegar somente depois que a visita
ir embora... Então com a visita em casa, haviam essas regras claras (AKEMI,
77 anos).
Nos casos em que as depoentes contam sobre a educação, se por um lado havia a
falta do caráter da severidade, o que particularmente procurávamos, por outro havia a
preocupação com uma perspectiva educativa nos padrões familiares. A Sra. Akemi,
quando relatou que sua educação foi ‘tranquila’ e dentro da ‘normalidade’, aponta que
isso não significava ausência de regras de conduta dentro da casa.
Observamos que a regulação do comportamento das crianças é necessária e é um
processo que se propõe a fazer com que a criança controle suas vontades, emoções,
aprenda a controlar-se e auto controlar-se. Apoiada nas teorias de Norbert Elias, a autora
Andréa Leão aponta que:
Espera-se que as crianças atinjam um nível de controle das emoções, que
formem certos padrões de vergonha, comedimento e pudor capazes de lhes
auxiliar no recalque das pulsões – que quer dizer crescimento, habilitando-as
ao convívio social (LEÃO, 2007:11).
É possível perceber essa preocupação nos relatos das entrevistadas. Ao falar sobre
a educação recebida dentro de casa temos:
Mas claro minha mãe me ensinava conduta, quando saía de casa devia falar
“ittemairimasu - estou indo”, quando chegava “tadaima – estou chegando”,
sentava-se no tatami (piso de palha típico japonês) e cumprimentava. Então
havia uma educação de comportamento diferenciada de outras famílias, sim
(AKEMI, 77 anos).
A imposição de regras às crianças para se comportar na convivência social, pode
ser percebida como importante no sentido de criar os indivíduos de acordo com os padrões
do grupo social do qual eles fazem parte. No entanto, os modos de se fazer presente nesse
espaço nos fazem refletir com a afirmação do Pino (2005:3) na sua análise da teoria do
processo civilizador:
Por conseguinte, a estrutura dos sentimentos e consciência da criança guarda
sem dúvida certa semelhança com a de pessoas ‘incivís’. A passagem de cada
indivíduo humano por um processo civilizador é obrigatória para que ele
possa atingir o “padrão” de civilização atingido pela sociedade no curso da
sua história.
Assim, podemos considerar que as crianças foram educadas da maneira que
naquele contexto histórico era importante se comportar daquele jeito. Havia um
direcionamento de educação no sentido de ‘não fazer feio’, não permitir a adultos e
crianças ‘passarem vergonha’ nas casas das outras pessoas e na comunidade que ela vivia.
A criança japonesa: na memória dos imigrantes
Nas entrevistas foi possível notarmos que as crianças eram consideradas como os
‘mini adultos’. Os pais deixavam seus filhos sozinhos, ou seja, irmãos maiores cuidando
dos irmãos menores e todos cuidando das tarefas da casa, para que eles (os pais) pudessem
trabalhar na agricultura. A fala da Sra. Mitiko (77 anos) expressa parte dessa situação:
Todos os dias iam para a plantação e sempre estavam atarefados. Era
complicado. Quando eu era criança era desse jeito. Depois fomos crescendo
e podendo ajudá-los, ficou mais tranquilo [...] Como eu era uma dos mais
velhos, tinha que cuidar dos irmãos mais novos. Era assim a minha vida. [...]
Naquela época no Japão, as crianças mesmo pequenas tinham que fazer as
tarefas de casa. Todos. Meu irmão mais novo mesmo, como nós íamos à
plantação, então ele que cozinhava em casa, desde seus 13, 15 anos, pois não
tinha outra mulher em casa. Então era assim a vida, mas claro que é diferente
de uma cidade grande (MITIKO, 77 anos).
Percebemos por essa realidade contada, que provavelmente nesse contexto de
trabalho, não havia muito tempo para as brincadeiras. Assim, quando perguntamos sobre
as brincadeiras, a resposta foi:
Porque as aulas na escola ocupavam todo o tempo do dia, só voltada no fim
da tarde para casa. No Japão é assim... [...] mas tinha que fazer os afazeres
de casa também (MITIKO, 77 anos).
No espaço no qual as crianças e os adultos estavam envolvidos em inúmeras
atividades sobrava pouco tempo para brincar. Somente uma das entrevistadas relatou suas
memórias da brincadeira na infância.
Quando era pequena, não havia distinção de homem, mulher, todos brincavam
juntos. Até para fazer arte. Lembro quando os pescadores colocavam os peixes
para secar, nós íamos todos juntos correndo para roubar! E comiam na maior
felicidade, saudando a isso (MIYUKI, 78 anos).
Como cita Ariès (1981) na sua pesquisa acerca da representação da criança na
iconografia dos séculos XI ao XVII, a criança naquela época era retratada como ‘homens
de tamanho reduzido’. Se considerarmos o tempo destinado entre trabalho e a brincadeira,
trazidos nas lembranças das depoentes, podemos dizer que a criança em certo aspecto
também era percebida como ‘adulto em miniatura’.
Nas entrevistas percebemos que essas crianças tiveram que assumir
responsabilidades de pessoa adulta desde muito cedo. Uma infância marcada pelo
trabalho doméstico, quando as crianças mais velhas cuidavam dos irmãos mais novos,
enfim, nesse contexto podemos evidenciar que o tempo para brincadeiras ficava reduzido.
Provavelmente nesse tempo de atividades não sobrava outra perspectiva a não ser
envolver-se no trabalho. E os pais cobravam certo comportamento. Algumas se
lembraram de pais mais severos, outras menos. Podemos perceber nas falas:
[...] os meus pais não eram severos não (MITIKO, 77 anos).
[...] Ah, acho que foi normal (AKEMI, 77 anos, grifo nosso).
Tais afirmações denotam modos de relacionarem-se pais e filhos e em nossas
análises surgiu a seguinte dúvida: o que seria essa infância normal? E ao continuar o
relato, a Sra. Akemi, respondeu da seguinte maneira:
[...] acredito que não era tão severa assim. [...] havia uma educação de
comportamento diferenciada de outras famílias, sim (AKEMI, 77 anos, grifo
nosso).
Neste momento, nosso questionamento é com relação ao conceito de normalidade
como algo semelhante na educação de todas as crianças do período, mas ao que parece
diferenciada para as crianças e os comportamentos de outras famílias. Podemos entender
que há uma diferença de concepção, talvez cultural de como olhar a educação sob um
nível de exigência maior feito pela cultura japonesa à educação de suas crianças.
Um olhar que pode ser compreendido a partir das obras de Norbert Elias, ao
apontar que existe uma padronização de comportamento de acordo com as necessidades
de cada grupo social. Fundamentada nas teorias de Norbert Elias os autores abaixo
apontam:
Quando as pessoas são disciplinadas e educadas sistematicamente, quando se
conscientizam de que determinados hábitos são indesejáveis, sujeitam-se às
regras difundidas pela sociedade. Desenvolve-se um padrão social de
comportamento/sentimento que produz um autocontrole mais estável e
diferenciado, além de um aumento na identificação mútua entre as pessoas,
ou seja, um aumento da sensibilidade dos homens gerando uma sensação de
pertencimento a um grupo, à uma raça (OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2012:6).
Nesse sentido, o desenvolvimento de um padrão de comportamento precisa ser
internalizado e aprendido para que haja o que a depoente chama de ‘normal’ para todos.
Pois considerando essa ‘naturalização dos hábitos e costumes’, com o tempo estes “[...]
novos padrões de comportamento deixam de ser conscientes para transformar-se em uma
segunda natureza é a essa segunda natureza que o autor se refere quando fala em
mudanças na estrutura da personalidade” afirmam Oliveira e Oliveira (2012:5).
Portanto, o que aparentemente é considerado normal na educação das crianças
japonesas foi historicamente e culturalmente construído. Como Elias (2011:78) esclarece
ao escrever “[...] o que achamos inteiramente natural, porque fomos adaptados e
condicionados a esse padrão social desde a mais tenra infância, teve, no início, que ser
lenta e laboriosamente adquirido e desenvolvido pela sociedade como um todo”.
Nesse contexto de análise das entrevistas, outro aspecto que suscitou dúvidas foi:
será que o nível da exigência da cultura japonesa é o mesmo da cultura brasileira?
Sabemos que a cultura desses dois países é distinta, ao considerarmos cultura como:
[...] o modo próprio de ser do homem em coletividade, que se realiza em parte
consciente, em parte inconscientemente, constituindo um sistema mais ou
menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se perante o
Absoluto, e, enfim, reproduzir-se (GOMES, apud, MATSUMOTO; BUENO,
2011:3).
Outro aspecto importante que foi percebido, e que fazia parte de concepções
anteriores das pesquisadoras, era a percepção sobre as diferenças culturais do oriente e
ocidente presentes em vários aspectos como característicos desta educação diferenciada.
Conforme explica Hirose (2012:38), “[...] a tradição oriental pensa o homem como um
todo: corpo-espírito, e integrado num todo maior: homem-natureza”. Portanto, as culturas
diferem em diversos sentidos. Na cultura oriental retratada pelas entrevistadas, nos
pareceu que na educação das crianças, os pais apontavam os caminhos e as crianças
obedeciam.
Algumas considerações
Conforme apontaram Matsumoto e Bueno (2011), os estudos acadêmicos sobre o
povo nipônico no estado de Mato Grosso do Sul estão por fazer e há uma grande demanda
para a tarefa. Nesse sentido, nossa pesquisa teve como objetivo contribuir para diminuir
essa lacuna, buscando conhecer melhor essa cultura distinta da realidade brasileira, porém
um grupo étnico que faz parte e vem contribuindo em diversas maneiras no estado e na
cidade de Dourados.
A pesquisa de campo evidenciou que, apesar de nossas hipóteses terem uma carga
de conceitos prévios devido à experiência pessoal intensa e significativa de uma das
pesquisadoras, as formas de educar do povo japonês eram organizadas com regras
explícitas para todas as crianças. A ênfase, no nosso entendimento, se deu no processo de
educar e civilizar suas crianças, para que aprendessem o comportamento social e como
diziam ‘não fazer feio aos outros’. E deixou demonstrada a padronização de
comportamento com as normas e regras postas e apreendidas, o que de certa maneira fez
com que tivessem uma concepção de que tal situação era totalmente “normal” na sua
cultura.
Assim, o estudo foi uma oportunidade para compreendermos a distinção entre o
que seria parte do comportamento da cultura de cada país Brasil-Japão, e como essa
cultura influencia na educação das crianças de suas sociedades. A severidade da educação
japonesa em educar suas crianças para se tornar como membro de um grupo é tão forte,
quanto fazer com que suas crianças sejam mais determinadas, perseverantes e
disciplinadas, seja qual for à circunstância que elas irão enfrentar, sejam sozinhas ou
dentro de um grupo para viver na sociedade japonesa.
A pesquisa mostrou, ainda, que cada grupo social com suas especificidades, busca
civilizar as crianças para viver na sociedade de maneira ‘aceitável’ ao comportamento
coletivo dentro deste grupo. Notamos que há valores em comuns nos dois países, tais
como o respeito pelas pessoas mais velhas, como também o fato de as normas e as regras
serem postas para que as crianças tenham uma atitude diferenciada no ambiente público
ou até mesmo no âmbito privado, com a forma ‘educada’ a qual é esperada pelos adultos.
Finalizando, registramos que a investigação possibilitou uma grande reflexão
acerca de uma diferença cultural e de educação nos dois países e, especialmente,
constituiu-se como importante oportunidade para uma das autoras de pensar, refletir e
analisar a experiência vivida no Japão e os estudos realizados no Brasil.
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