SARGENTINI, Vanice., NAVARRO-BARBOSA, Pedro. Foucault e os
Domínios da Linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004.
260p.
APRESENTAÇÃO
Imaginar pode sugerir um discurso fantasioso, inventivo, portanto desprovido de
rigor científico – não que tenha sido essa a intenção de Blanchot. Mas imaginar pode ser
tomado no sentido de relembrar, de recordar, o que faz remissão a outra obra sobre o
filósofo. (p. 09)
Notas:
¹BLANCHOT, M. Foucault como o imagino . Tradução de Miguel S. Pereira e Ana L.
Faria Lisboa: Relógio D’agua Editora, S/d.
²RIBEIRO,R.J. Recordar Foucault : os textos do Colóquio Foucault . São Paulo:
barasiliense,1985.
(p. 09)
Tampouco, enumerar uma série de adjetivações que, dada a sua importância no
cenário intelectual e político francês dos anos 60, poderia rotulá-lo como, por exemplo,
o filósofo da geração francesa de 68, o historiador das descontinuidades, aquele que
proclamou a morte do homem, o filósofo das genealogias do poder e das práticas de
subjetivação dos corpos, o pesador da pós- modernidade ou, ainda, o defensor do
sistema, título que o incomodava. (p. 10)
Embora nosso objeto de estudo seja a teoria das condições de emergência dos
saberes e dos dispositivos de exercício do poder e não a pessoa que foi Foucault, essa
elisão não é de todo possível pois a sensibilidade que ele demonstrou às experiências
diversas, às conjunturas e às atmosferas culturais as quais esteve envolto ³ deixam-se
fazer presentes nas análises que realizou das estruturas que subjazem à constituição dos
discursos, dos mecanismos coercitivos que pesam sobre quem fala, do exercício do
poder nas sociedades disciplinadoras e da estética da existência, o que atesta um
pensamento inquietante e em constante ebulição. (p.10)
Unidade na dispersão é o que podemos constatar nas inúmeras pesquisas que se
orientam nas noções e nos princípios foucaltianos. Estudos que procuram objetivas a
obra do filósofo sob vários olhares. Estudiosos que falam de lugares distintos, em busca
de resposta as suas indagações. E são tantas e diferentes, como podemos observar nos
títulos de conferências e seminários realizados no Brasil na passagem dos vinte anos de
sua morte. (p. 10 -11)
O desafio, na verdade, é duplo. Primeiro, é necessário que nos situemos dentro
dos estudos linguísticos e, ao mesmo tempo, fora deles, ou seja, o objeto de nossas
reflexões não é a materialidade linguística, mas a constituição dos discursos e a
possibilidade de serem enunciados. No entanto, só é possível fazer uma análise dos
discursos porque eles têm uma existência material, porque eles contêm as regras da
língua, de um lado, e aquilo que foi efetivamente dito, de outro. (p. 11-12)
Segundo, é preciso marcar também nossa posição no interior mesmo da vertente
francesa de Análise do Discurso praticada aqui nesses trópicos. Essa posição, subjacente
às reflexões dos autores, insere-se num projeto de análise discursiva que, desde os
últimos trabalhos de Michel Pêcheux, desloca-se de um althusserianismo strictu sensu
para as propostas de Foucault e da Nova História (p. 12)
Sabemos que o percurso histórico de constituição do dispositivo de interpretação
no qual se tornou a Análise do Discurso registra um diálogo com Michael Foucault,
marcado ora por aceitação, ora por uma necessidade de reelaboração ora por recusa das
noções e dos princípios que ele elaborou (p. 12-13).
A entrada do filósofo nessa ciência do discurso se fez de modo restrito, quando
as análises começaram a denunciar a necessidade de se olhar para o discurso não mais
como uma máquina fechada e homogênea. Nesse momento, segundo registros sobre o
desenvolvimento da Análise do Discurso, a noção de “formação discursiva”,
desenvolvida por Foucault em sua Arqueologia do saber, é redefinida por Michel
Pêchuex, que o faz, no entanto, mantendo ainda o vínculo com a noção de ideologia. A
presença de Althusser nos anos 60 e 70 é muito forte. (p. 13)
Em outros momentos, Foucault é negado, porque se acredita que ele sustenta um
discurso marxista paralelo. Segundo seus críticos, Foucault mata a história, uma vez que
não trabalha com as noções de ideologia, de divisão e de luta de classes; soma-se a isto
o fato de que ele, conforme Pêcheux, não teria considerado, em suas análises das
condições de possibilidade do discurso, a categoria marxista da contradição. (p. 13)
Vale lembrar que, enquanto a Análise do Discurso reunia esforços para
compreender os discursos políticos, com o objetivo de oferecer um instrumento para a
sua leitura, Michel Foucault empenhava-se na tarefa de ouvir e de tirar do anonimato o
recalcado da razão ocidental, inaugurando aquilo que, anos depois, tornou-se alvo de
interesse dos pesquisadores: os discursos do cotidiano. (p. 13 – 14)
A denominação dos capítulos deste livro evidencia a aproximação entre M
Foucault e os domínios da linguagem, sobretudo no que tange a discurso, história, poder
e subjetividade. (p.14)
Nesse sentido, o texto expõe sua heterogeneidade, sendo marcado ora por aspas,
ora por itálico, num exercício linguístico-discursivo constante para deixar que o
pensamento do filósofo de sobressaia à voz da autora cuja interpretação, presente na
formulação das perguntas, destina-se a traçar um “programa de leitura” que oferece ao
leitor elementos para compreender as três noções pilares que sustentam o método
arqueológico: enunciado, formação discursiva e arquivo. (p. 15)
Apoiando-se na noção de sociedade de controle, proposta por Foucault, recupera
como se dão as relações entre as edificações urbanas e o controle dos usos linguísticos e
dos embelezamentos do corpo no final do século passado e início deste. (p. 17)
CAPÍTULO 1 – FOUCAULT E A TEORIA DO DISCURSO
1.
Há um conceito que é fundamental para o seu método arqueológico: o
enunciado. Tanto que ele ocupa todo o terceiro capítulo de A Arqueologia do Saber . A
sua definição se faz por oposições a outros conceitos (frase, proposição, speech acts) e
pela análise da relação entre enunciado no seu método? Qual é o seu conceito de
enunciado? (p. 23)
A discussão sobre o enunciado ocupa todo capítulo III da Arqueologia do saber,
cujo título é, justamente, O enunciado e o arquivo. Como o próprio nome diz, quis
mostrar a relação de dependência e de hierarquia entre essas duas noções – a mais
ampla (arquivo) e a mais molecular (enunciado) do método que estou propondo. Todo o
capítulo se articula a partir de duas questões, derivadas da minha reflexão sobre o que
eu investiguei nos meus trabalhos anteriores: “o que é o enunciado” e “como a teoria do
enunciado pode se ajustar à análise das formações discursivas?”. A elas vou tentar
responder, nesse capítulo III, seguindo certos passos: primeiro, definindo o que entendo
por “enunciado”; logo a seguir, destacando as características da “ função enunciativa”;
depois, teorizando a “ descrição dos enunciados”; para, então a partir da exposição das
características do enunciado (raridade, exterioridade, acúmulo), chegar a desenvolver a
articulação entre os conceitos principais que tenho manipulado em meus trabalhos –
“enunciado” / “formação discursiva” / “arquivo”. Como pode ver, o enunciado (ou,
como espero ter deixado claro, a função enunciativa) é a unidade elementar do discurso.
Em seu modo de ser singular (nem inteiramente linguístico, nem exclusivamente
material) o enunciado é indispensável para que se possa dizer que se há ou não frase,
proposição, ato de linguagem. [...] ele não é, em si mesmo, uma unidade, mas sem uma
função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz que
apareçam, com conteúdos concretos no tempo e no espaço. (1986,p. 98-99). Se o
descrevo a partir de oposições com outras unidades – freses, proposição, atos de
linguagem – é para marcar as diferenças e para acentuar que os estudos linguísticos
sempre deixaram o enunciado como um resto, um elemento residual e, portanto,
pressuposto, mas não analisado. Se você seguir minha exposição, até certo ponto
didática, nesse capítulo III, poderá ver que o enunciado se distingue desses três
conceitos porque: (p. 24)
a) ao contrário da proposição, o enunciado está no plano do discurso e, por isso,
não pode ser submetido às provas de verdadeiro/falso. Por isso, diferentemente da
proposição lógica, para os enunciados não há formulações equivalentes (por exemplo,
“ninguém ouviu” é diferente de “é verdade que ninguém ouviu” quando os encontramos
em um romance. Trata-se de uma mesma estrutura proposicional, mas com caracteres
enunciativos bastante distintos); (p.24-25)
b) ao contrário da frase, o enunciado não está, necessariamente, submetido a
uma estrutura linguística canônica (como, em português, sujeito-verbo-predicado), isto
é, não se encontra um enunciado encontrando-se os constituintes da frase. Um quadro
classificatório das espécies botânicas é constituído de enunciados que não são
“frases”;uma árvore genealógica; um livro contábil a fórmula algébrica; um gráfico,
uma pirâmide... Todos tem leis de uso e regras de comunicação que são diferentes
daquelas frases. Por isso, não parece possível definir um enunciado pelos caracteres
gramaticais da frase (1986, p. 93); (p. 25)
c) o enunciado, parece, à primeira vista, mais próximo do que se chama os
speech acts (atos de linguagem). No entanto, diferentemente das pesquisas pragmáticas
da filosofia analítica inglesa, não proponho procurar o ato material (falar e/ou escrever);
ou a intenção do indivíduo que está realizando o ato (convencer; persuadir etc.) ou
resultado obtido (se foi “feliz” ou não). O que procuro é descrever a operação que foi
efetuada, em sua emergência – não o que ocorreu antes, em termos de intenção, ou o
que ocorreu depois, em termos de “eficácia”- mas sim o que se produziu pelo próprio
fato de ter sido enunciado –e precisamente neste enunciado (e nenhum outro) em
circunstâncias bem determinadas (1986, p. 94). (p. 25)
Quero mostrar que a língua e o enunciado não estão no mesmo nível de
existência. Dou como exemplo desta diferença as letras que estão numa máquina de
escrever , que não constituem enunciados; no entanto, quando eu as disponho em uma
página – seguindo regras que vem do sistema da língua – tornam-se enunciado. A língua
é um sistema de construção para enunciados possíveis. (p. 25, 26)
Porque o que torna uma frase, uma proposição, um ato de linguagem em um
enunciado é justamente a função enunciativa: o fato de ele ser produzir por um sujeito,
em um lugar institucional, determinado por regras sócio- históricas que definem e
possibilitam que ele seja enunciado. (p. 26)
2.
Entende–se então que o enunciado é um conjunto de signos em função
enunciativa. Portanto, ser um elemento do nível enunciativo é o primeiro nível do
enunciado? (p. 26)
Sim, a primeira e mais fundamental. Insisto neste ponto, porque há uma relação
muito especial entre o enunciado e o que ele enuncia. (p. 26)
3.
Exatamente esses serão os pontos discutidos a seguir. Você poderia falar um
pouco sobre a relação entre o sujeito e o enunciado? (p.27)
Para que um enunciado exista é necessário assinalar-lhe um “autor” ou uma
instância produtora. Mas esse “autor” não é idêntico ao sujeito do enunciado (em termos
de natureza, status, função, identidade). Existem romances nos quais há vários sujeitos
que enunciam. Isso não é característica apenas dos textos romanescos – é uma
característica geral, já que o sujeito do enunciado não é o mesmo de um enunciado a
outro; essa função pode ser exercida por diferentes sujeitos, isto é, um único e mesmo
indivíduo pode ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes
posições e assumir o papel de diferentes sujeitos (1986, p. 107). (p.27)
Toda essa discussão é muito interessante, pois o que torna uma posição de
sujeito. Assim, descrever uma formulação enquanto enunciado consiste em determinar
qual é a posição que pode e deve ocupar todo o indivíduo para ser seu sujeito (1986, p.
109). (p. 28)
4.
Outra característica do enunciado é que ele tem sempre margens povoadas de
outros enunciados (1986, p. 112). Há uma relação do enunciado com a série de
formulações com as quais ele coexiste. Isso atesta sua historicidade. Do seu ponto de
vista, essa é mais uma diferença entre frase, proposição e o enunciado. (p. 28 )(...)
Derivada dessa idéia, que insere o enunciado no campo da intertextualidade, pode-se
pensar no papel da memória na produção dos sentidos? (p.29)
Desse modo, o que chamo de “campo associativo” forma uma trama complexa:
a) Ele é constituído pela série de outras formulações, no interior das quais o
enunciado se inscreve;
b) Ele é constituído, também, pelo conjunto das formulações a que o enunciado
se refere (implicitamente ou não) seja para repeti-las, seja para modificá-las
ou adaptá-las; seja para se opor a elas, seja para falar de cada uma delas. Por
isso, todo enunciado liga-se a uma memória, e assim, não há enunciado que,
de uma forma ou de outra, não reatualize outros enunciados (1986, p. 113)
c) Ele é constituído, ainda, pelo conjunto das formulações cuja possibilidade
ulterior é propiciada pelo enunciado e que podem vir depois dele como
conseqüência, sua seqüência natural ou sua réplica;
d) Ele é constituído, finalmente, pelo conjunto das formulações cujo status é
compartilhado pelo enunciado em questão, em relação às quais se apagará ou
tomará um lugar (será valorizado, conservado, sacralizado, e oferecido como
objeto possível a um discurso futuro). Por estar imerso nesse movimento que
institui sua enunciabilidade, pode-se dizer, de modo geral, que uma
seqüência de elementos lingüísticos só é enunciado se estiver imensa em um
campo enunciativo em que apareça como elemento singular (1986, p. 113).
(p. 29-30)
Com tudo isso, quero dizer que, desde sua raiz, o enunciado se delineia em um
campo enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis com o
passado e que lhe abre um futuro eventual. Imerso nessa rede verbal, ele só pode ser
apanhado em uma trama complexa de produção de sentidos e, por isso, podemos
concluir com uma característica geral e determinante sobre as relações entre o
enunciado, o funcionamento enunciativo e a memória de uma sociedade: não há
enunciado em geral, livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo
parte de uma série oude um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros ,
nesses se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo
enunciativo ( 1986, p. 114) (p. 30)
5.
Segundo sua proposta arqueológica, a quarta condição para que uma seqüência
de elementos lingüísticos possa ser considerada e analisada como um enunciado è a sua
existência material. Sobre essa questão, o seu texto lança uma pergunta: poderíamos
falar de enunciado se uma voz não o tivesse enunciado, se uma superfície não
registrasse os seus signos, se ele não tivesse tomado corpo em um elemento sensível e
se não tivesse deixado marca – apenas alguns instantes – em uma memória ou em um
espaço? (1986, p. 115). (p. 30)
A materialidade é constitutiva do enunciado: ele precisa ter uma substância, um
suporte um lugar uma data. Além disso é necessário que essa materialidade possa ser
manipulada pelos enunciadores e, por isso, há umregime de materialidade repetível
(1986, p. 117) definida por certas instituições, como a literatura, a ciência, o jurídico
etc. (p.31)
6.
Isso significa que os enunciados agenciam a memória, constróem a história,
projetando-se do passado ao futuro? (p.31)
7.
Quais são, pois, as tarefas da descrição dos enunciados?
A grande tarefa que se propõe na descrição dos enunciados é a de definir as
condições nas quais se realizou o enunciado, condições que lhe dão uma existência
específica. Esta existência faz o enunciado aparecer em relação com um domínio de
objetos; como jogo de posições possíveis para um sujeito; como elemento em um
campo de coexistência; como materialidade repetível. No entanto, acredito que ainda
não desenvolvi uma teoria do enunciado: essa é uma tarefa que deixo para o futuro, para
que eu ou outros a façam. Por ora, tomo apenas o cuidado de fazer algumas precisões
terminológicas, fixando um vocabulário, já que estou operando com conceitos sem
atribuir-lhes exatamente o significado que tem para os gramáticos, para os lógicos e
para os lingüistas. Por exemplo, posso te dar um pequeno glossário, só por precaução 17
( Neste momento, ele retira do bolso um papel. Nele, manuscrito com sua redonda caligrafia, a lista de termos. Agradeço e anexo a esta (entre) vista.)
performance lingüística: todo conjunto de signos efetivamente produzidos em
língua natural (ou artificial);
formulação: ato individual (ou, a rigor, coletivo) que faz surgir, em um
material qualquer e segundo uma forma determinada, esse grupo de signos; é um
acontecimento demarcável no espaço e tempo, relacionado a autor e pode constituir um
“ato de fala” (speech act);
frase ou proposição: unidades que a gramática e a lógica podem reconhecer em um
conjuunto de signos.
enunciado: chamaremos enunciado a modalidade de existência própria desse conjunto
de signos: modalidade que lhe permite se algo diferente de uma série de traços, algo
diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano; modalidade que lhe
permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma posição definida
a qualquer sujeito possível, estar situado entre outras performances verbais, estar
dotado, enfim, de uma materialidade repetível (1986, p. 123)
formação discursiva: lei de série, princípio de dispersão e de repartição dos
enunciados;
discurso: conjunto de enunciados que se apóia em um mesmo sistema de formação
(discurso clínico, econômico, da história natural, etc.) (1986, p. 124). (p. 32 -33 )
8.
Apesar de afirmar que ainda não desenvolveu uma teoria – no sentido forte do termo –
acho que já estão delineadas as linhas mestras do método arqueológico. Você poderia
pontuar algumas características da natureza dessa descrição dos enunciados que está em
elaboração? (p. 33)
Nem oculto, nem visível, o nível enunciativo está no limite da linguagem (...) o súbito
aparecimento de uma frase, o lampejo do sentido, o brusco índice da designação, sugem
sempre no domínio do exercício de uma função enunciativa (1986, p. 130). (p.34)
9.
A segunda pergunta que se coloca, nesse capítulo III da Arqueologia, indaga
sobre as relações entre o enunciado e as formações discursivas. Mais claramente, você
pretende pensar como se relacionam o enunciado e as formações discursivas, no interior
do método arqueológico. (p. 35)
A definição de formações discursivas ocupa todo o capitulo II da Arqueologia
do Saber. (p. 35)
10.
E dessa definição, podemos deduzir o que você entende como “discurso” e
“pratica discursiva”?
Em minhas obras anteriores, usei o conceito de discurso de forma muito
flutuante, polissêmica, entendendo-o ora como domínio geral de todos os enunciados;
ora como grupo individualizável de enunciados; ora como prática regulamentada de um
certo número de enunciados. A partir de minhas reflexões sobre as formações
discursivas, posso agora chamar de “discurso” a um conjunto de enunciados, para os
quais podemos definir um conjunto de condições de existência; é, de parte a parte,
histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que
coloca o problema de seus próprios limites de seus cortes, de suas transformações, dos
modos específicos, de sua temporalidade (1986, p. 135 -36). Do mesmo modo, posso
definir prática discursiva como um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou lingüísticas, as condições de
exercício da função enunciativa (1986, p. 136). (p. 35 e 36)
Isso tem algumas conseqüências teóricas: a) o campo dos enunciados é
entendido como local de acontecimentos, de regularidades, de relacionamentos; b) o
domínio enunciativo não toma como referência nem um sujeito individual, nem uma
mentalidade coletiva, mas um campo anônimo cuja configuração defina o lugar possível
dos sujeitos falantes; c) as séries sucessivas não obedecem à temporalidade da
consciência: o tempo dos discursos não é a tradução, em uma cronologia visível, do
tempo obscuro do pensamento (1986, p.141). (p. 37-38) (...) “Não importa quem fala”,
mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente, no
jogo de uma exterioridade. (1986, p. 141-42). (p. 38)
12.
Sobre a noção de acúmulo, ela parece estar entrelaçada a essas idéias de raridade
e exterioridade... Parece-me que, nela, encontramos o fio da temporalidade... (p. 38)
Minha análise não propõe despertar textos de seu sono atual para reencontrar as
marcas legíveis em sua superfície. Pelo contrário, ela propõe segui-los ao longo de seu
sono, ou antes, levantar os temas relacionados ao sono, ao esquecimento – na
espessura do tempo em que subsistem, se conservaram ou foram esquecidos. (p.38)
13.
E é a análise de tudo isso que vai fazer aparecer a positividade de um discurso.
Sim, é a isso que eu chamo – de bom grado – de positividade. 21 (E ele acrescenta num tom
de irônica confidência: E se substituir a busca das tonalidades pela análise da raridade, o tema do fundamento transcendental pela descrição das relações
de exterioridade, a busca da origem pela análise dos acúmulos, é ser positivista, pois bem, eu sou positivista feliz, concordo facilmente (1987, p. 144).)
A positividade de um discurso caracteriza-lhe a unidade através do tempo e
muito além das obras individuais, dos livros e dos textos. Se ela não revela quem estava
com a verdade, pode mostrar como os enunciados “falavam a mesma coisa”, colocando-
se no “mesmo nível”, no “mesmo campo de batalha”. Ele define um espaço limitado de
comunicação (mais extenso, entretanto, do que o jogo de influências entre um autor e
outro). Toda a massa de textos que pertencem a uma mesma formação discursiva
(pouco importa se os autores se conhecem ou não, se percebem a trama que os enreda)
se comunica pela forma de positividade de seus discursos. ( p. 39-40)
14.
Acho que chegamos, enfim, ao conceito mais amplo de sua proposta de análise:
acho que estamos tocando no conceito de arquivo... A partir dele, pensando em atermos
hierarquizados, podemos unir todos os conceitos – enunciados; conjunto de enunciados
(discurso); formações discursivas; práticas discursivas, a priori histórico; positividade;
arquivo. Posso pensar assim? Acredito que sim, de uma certa maneira eu venho
operando por círculos concêntricos. Veja o que eu escrevi em algumas páginas: (p. 40)
(...)
São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado,
coisas de outro) que proponho chamar de arquivo. [...] Trata-se do que
faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos milênios [...]
tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam
particularmente o nível discursivo. [...] O arquivo, é, de início, a lei do
que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados
como acontecimentos singulares. [...] é o que define o sistema de seu
funcionamento. [...] entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem
as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao
mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da
formação e da transformação dos enunciados. [...] O arquivo não é
descritível em sua totalidade e incontornável em sua atualidade. (p. 41)
15.
Uma questão geral: a denominação de “arqueologia” para essa análise – e, logicamente,
já sabendo das restrições que você faz sobre alguns dos sentidos contidos na etimologia
da palavra, conforme aquela entrevista que acaba de ser publica no Magazine Littéraire
[ Trata-se do texto “ Michel Foucault explica seu último livro”. (Entrevista com J.J. Brochier). Magazine Littéraire.], 26, 1969, p. 23-25. Trad. Brás.
e: Motta, M. B. (Org.)., Michel Foucault. Arqueologia das ciências e História dos sistemas de pensamento -- deriva desse conceito
nuclear de “arquivo” (Col. Ditos & Escritos II.) Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2000, p. 145-152. (p. 41)
Por isso, o nome de arqueologia aos estudos que venho empreendendo .Como
você afirmou, restrinjo o sentido de “arqueologia”, pois ele não deve incitar à busca da
origem ou a uma escavação geológica. Ele designa o geral de uma descrição que
interroga a já-dito no nível de sua existência: da função enunciativa que nele se exerce,
da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte. A
arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo
(1986, p. 151). (p. 42)
16.
Para finalizar: agora que já delineou o “método arqueológico” – e, de alguma
forma, já acertou as contas com seus críticos – está pensando em um novo trabalho,
certamente...
“Acertar contas” é uma expressão muito forte, principalmente porque tenho
inúmeros interlocutores e, certamente, não poderei nunca estar quite com todos.
Ademais, nunca pensei em escrever um livro que fosse o último, que interditasse as
vozes futuras. (p. 42) Pelo contrário, escrevo para que outros livros possam ser escritos
e não necessariamente por mim. Quanto ao que estou escrevendo agora... Estou
trabalhando o texto de minha aula inaugural no Collège de France: trata-se de uma fala
em que abordo os perigos que o discurso representa para a nossa sociedade – nunca se
falou tanto e nunca, na história do ocidente, se temeu tanto as palavras. Pretendo tratar
dos dispositivos de controle da palavra, algo que tenho denominado como “a ordem do
discurso”. (p. 42- 43) Um deles, e talvez o mais importante, estou denominando
“principio da inversão”, porque proponho que, em vez de enxergar a originalidade, a
origem, a continuidade, é preciso ver o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação
do discurso. A ele, acrescenta-e a necessidade de atender ao “princípio de
descontinuidade”: porque os discursos são rarefeitos e não significa que para além deles
reine um grande discurso ilimitado, descontinuo e silencioso que fosse por eles
reprimido e recalcado; sabendo disso, os discursos devem ser tratados como práticas
descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram e se excluem. (p. 43)
(...) Quero, além disso, tratar de uma figura que ficou pouco esboçada na Arqueologia
do Saber: o autor. Quero escrever um texto que procure problematizar a questão “o que
é um autor?”. (p. 43)
(NOTA 25) Esse texto, que marca um limiar da passagem de Foucaul para as
reflexões sobre o discurso e o poder, será publicado em FOUCAULT, M. (1969)
Qu’este-ce que’um auteur? In : Bulletin de La Societé Française de Philosophie, n° 3.
Trad. port. Lisboa: Veja, 1992. (p. 44)
FORMAÇÃO DISCURSIVA EM PÊCHEUX E FOUCAULT: UMA
ESTRANHA PATERNIDADE
Michel Foucault em Vigiar e Punir, ao se reportarão caráter heurístico do
discurso nietzscheano, afirma que o único sinal de reconhecimento que se pode ter com
um pensamento como o de Friedrich Nietzsche é precisamente utilizá-lo, fazê-lo ranger,
gritar. Penso que essa prática possa ser deslocada para trabalhos que se propõem
realizar um diálogo entre a Análise do Discurso de orientação francesa e o arcabouço
teórico de Michel Foucault, por exemplo. Para tanto, é necessário, contudo, que se faça
não só o pensamento foucaultiano ranger, gritar, isto é, render o máximo, mas a própria
teoria do discurso proposta por Michel Pêcheux e, também, alguns dos conceitos
desenvolvidos por Mikail Bakhtin. (p.45-46)
Ao ler algumas das narrativas da escrita da análise do discurso francesa é
possível constatar que um de seus conceitos mais caros, o da formação discursiva, foi
abandonado no início dos anos oitenta na França. As razões para a sua renúncia,
apontadas por tais narrativas, nem sempre muito claras, vão desde a alegação de que a
formação discursiva possui um caráter eminentemente taxionômico até a existência de
uma relação conflituosa ente o marxismo e Michel Foucault. Há em relação à narrativa
do conceito formação discursiva nos termos de Guilhaumou (2003), “um elipse não
explicitado”. Contudo, embora denegado pelo grupo de Michel Pêcheux na França e,
apesar do estatuto desse conceito se apresentar muitas vezes de maneira indefinida, ele
permanece ainda bastante operativo nas pesquisas sobre o discurso, principalmente no
Brasil. Essas narrativas publicadas em francês e em português asseveram que Michel
Pêcheux teria emprestado o sintagma – formação discursiva – da Arqueologia do Saber,
de Michel Foucault, para, à luz do materialismo histórico, reconfigurá-lo, relacionando-
o com o conceito althusseriano de ideologia. (p. 46)
Existem muitos pontos de contato entre aquilo que Michel Foucault elaborou no
que se refere ao discurso e aquilo que fez Michel Pêcheux, pelo menos no nível teórico
(por exemplo, encontra-se em Foucault uma noção de “formação discursiva” que tem
alguns pontos em comum com aquela de Pêcheux), e em particular no nível prático
(Foucault nunca tentou elaborar um dispositivo operacional de análise do discurso)...
Pêcheux partilhava com Foucault um interesse comum pela história das ciências e das
idéias que pode explicar por que ambos, mais do que qualquer outro autor, focalizaram
o discurso (HENRY, 1993, p. 38). (p. 47)
Parto então dessa citação para tentar precisar quais seriam efetivamente os
pontos de contato e de afastamento entre as noções foucaltianas e de Michel Pêcheux de
formação discursiva. Devo dizer que não sou o primeiro a empreender tal tarefa. (p. 47)
Passaremos agora a um exame da noção de formação discursiva em A
arqueologia do saber, de Michel Foucault.
Nos escritos foucaultianos, a noção de formação discursiva aparece pela
primeira vez em A arqueologia do saber, texto que, posteriormente nos Ditos e
escritos, o próprio Foucault diz que teria sido escrito como introdução As palavras e as
coisas e que depois fora transformado num livro que tenta teorizar sobre a história das
chamadas ciências do homem. (p. 49)
Com o método arqueológico Michel Foucault busca descrever não só as
condições de possibilidade dos enunciados que formam as ciências empíricas, mas as
condições mesmo de existência desses enunciados. Para tanto, segundo Foucault,
é preciso renunciar a todos os temas – tradição; influência;
desenvolvimento e evolução; mentalidade ou espírito; tipos e gêneros; livro e obra; idéia
da origem; já-dito e não-dito – que têm por função garantir a infinita continuidade do
discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É preciso
estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos,
nessa pontualidade e dispersão temporal, que lhe permite se repetido, sabido, esquecido,
transformado... Não remetê-lo à longínqua presença da origem, é preciso tratá-lo no
jogo da sua instância (FOUCAULT, 1986, p.28) (p.50)
UMA TEORIA DO DISCURSO NUM CERTO PREFÁCIO
O que é afinal um prefácio? Conforme Ferreira (s/d), prefácio é “Texto ou
advertência, ordinariamente breve, que antecede uma obra escrita, e serve para
apresentá-la ao leitor”. Antecede na disposição em que é colocado no livro, no ato de
sua edição, o que não quer dizer que anteceda no ato da escrita. (p.63)
É paradoxal que o prefácio, que se lê primeiro quando se abre um livro, e que
fala por antecedência, tenha sido escrito, sempre, talvez, por último... Estranho destino
do livro: ele avança, afinal de contas, pelo começo, inverte o sentido do caminho; assim
o prefácio das edições sucessivas... Desenlace de uma história e liberação de um
fantasma, ambos da escrita, ele marca a entrado do livro em um universo diferente, o da
alienação, da publicação, da circulação: ele é despossessão, luto, separação. Enfim, o
prefácio é a prova da realidade do livro, uma prova ilusória – não escrevo senão um
simulacro de prefácio – mas o suficiente (COMPAGNON, 1996, p.87). (p. 63-64)
E é necessário que ele exista, porque é preciso dar um fim à escrita, acidental ou
conjuntural, mas sempre simulado. O prefácio, conclui o autor, “condena à morte todos
os sujeitos da escrita... [mas conjura-a], quando confunde a origem e o começo”
(COMPAGNON, 1996, p.89). (p.64)
Retomando a pergunta inicial, agora mais específica: como se afigura o prefácio
que o próprio Foucault escreve para o seu polêmico livro As palavras e as coisas? Um
prefácio nada fácil, tal como o livro para o qual serve de apresentação. (p. 64)
E é ninguém menos que o escritor argentino Jorge Luis Borges, com sua palavra
especular e especulativa, no sentido da investigação teórica, que Foucault usa como
isca; isca para cuidadosa empreitada que deverá o leitor ensaiar já na leitura do Prefácio
e posteriormente realizar na leitura do livro. (p.65)
Conforme Monegal (1980, p.42), Foucault cita Borges e lhe atribui a motivação
para a escrita do livro, associando o texto do escritor argentino ao que é um dos pontos
importantes de As palavras e as coisas: nossa prática do Mesmo e do Outro. (p.66)
Já não estou em jejum, diz Eustenes. Por todo o dia de hoje estarão a salvo da
minha saliva: Áspides, Anfisbenas, Anerudutos, Abedessimões, Alartas, Amóbatas,
Apinaos, abasrabãs, Aractes, Astérios, Açcarates, Arges, Aranhas, Ascalabos, Atélabos,
Ascalabotas, Aemoróides... (FOUCAULT, 1987, p. 6) (p.69)
Eis a lição provinda de Borges: abrir as janelas do imaginário, cavar no seu
roteiro o inesperado, liberando-o dos hábitos de uma razão preguiçosa, satisfeita com
filiações e totalidades, enfim, desconectar os hábitos de nossa razão para fazer-nos
pensar (RIBEIRO, 1985, p.34). (p. 71)
CAPÍTULO 2 - FOUCAULT, O DISCURSO E A HISTÓRIA
A DESCONTINUIDADE DA HISTÓRIA: A EMERGÊNCIA DOS
SUJEITOS NO ARQUIVO
A mudança epistemológica que se dá no interior das ciências humanas,
sobretudo em relação a história cronológica e à lingüística estruturalista, sustenta um
novo modo de estudar o discurso e os sentidos. Assim, neste artigo torna-se importante
abordar a concepção de descontinuidade da História, questão tão bem discutida por
Foucault em A arqueologia do saber e que sustenta o conceito de arquivo tão caro à
Análise do Discurso. (p. 78)
A ANÁLISE DO DISCURSO E A HISTÓRIA
As relações edificadas entre lingüística e história e, posteriormente, entre
discurso e história emergente a partir do modelo estruturalista e da desestabilização
desse modelo. A Lingüística, durante algum tempo, desfrutou do status de ciência
piloto, de paradigma a História, vista sob alguns olhares como prima pobre, pelo fato de
voltar-se à diacronia, de considerar a função de uma ideologia. O historiador, naquele
momento, rende-se ao desejo da ciência formalizada e, segundo Robin, (...) (p. 78-79)
O que ele solicita ao lingüista é que o ensine a ler o que está no texto, e esta
questão é menos ingênua do que parece à primeira vista. Ele lhe pede que o ajude a
desbastar o texto e a ordená-lo (ROBIN, 1977, p.19). (p. 79)
Nessa perspectiva, toma-se o discurso como objeto de estudo e não
exclusivamente a língua. Aos historiadores interessa a articulação das práticas
discursivas sobre as práticas discursivas no interior de uma formação social. Inclui-se,
assim, a ideologia no conceito de discurso, atendendo aos questionamentos postos no
interior da lingüística, bem como se passa a levar consideração a História no interior do
estudo da língua. (p.80)
Os estudos pautados nesta articulação Discurso e História surgem como
nascimento da Análise do Discurso, baseada nos trabalhos de Pêcheux. Para esse autor
não se tratava de aliança de disciplinas, mas de pensar o discurso entre o real de língua e
o real de história. Quanto à categoria “discurso como objeto da história”, alguns estudos
desenvolvem-se, sobretudo, a partir da publicação do livro História e Lingüística, de
Régine Robin e da obra Langages e idéologies. (p. 80)
As pesquisas desenvolvidas nesse campo do discurso e da história trouxeram
contribuições extremamente relevantes para as duas áreas. Vários conceitos como
arquivo, trajeto temático e acontecimento discursivo sustentam nos anos seguintes o
desenrolar dos estudos que tomam o discurso como objeto da história. (p. 81)
É preciso considerar que para os estudos avançarem nessa área não se pode
prescindir das reflexões que Foucault (1986) apresenta em A arqueologia do saber,
especialmente em relação à descontinuidade de um arquivo. Se Foucault revoluciona a
história, com diz Paul Veyne (1998), tal movimento lança interferências nos estudos do
discurso, com os conceitos de discurso e de formação discursiva. (p. 81)
Estudiosos da teoria do discurso e, por extensão de uma teoria das ideologias
não raras vezes questionam o posicionamento ideológico da teoria foucaultiana.
Lecourt, (1970), Robin (1977) e Maldidier, Normand e Robin (1994), concordam com
Foucault (1986) sobre a não evidência do discursivo, sendo necessário se perguntar o
porquê da ocorrência de tal enunciado e não outro em seu lugar, e sobre a noção de
discurso como prática. Entretanto, criticam um certo número de reduções (alusão à
história, elisão do lingüístico e elisão do significante) e o caráter muito geral ou
ambíguo de certos conceitos, como o de sujeito definido como ‘descontinuidade’ e o de
texto como ‘espaço de dissensões múltiplas’, ambas noções direcionando para a
necessidade de uma arqueologia. Assim, Maldidier, Normand e Robin (1994) marcaram
pontos de recusa e de relevância em relação às reflexões de Foucault (1986): (p. 82)
Assim, as reflexões de Foucault, ao mesmo tempo em que interessavam aos
estudos do discurso, eram questionadas por estudiosos dessa área. Apresentar-se como
um filósofo de esquerda na França, nos anos 60 e 70, tinha praticamente como
pressuposto o apoio ao ideal marxista, porém para Foucault as lutas políticas não
deviam ser travadas tendo apenas como opositor as grandes instituições capitalistas.
Para o filósofo, tais instituições sustentam-se pela existência de aparelhos e de práticas
que favorecem a governabilidade, seja por estratégias ou táticas presentes nas relações
de saber, de poder ou de produção de verdades. (p. 83)
Considerando a sociedade inscrita neste novo século, - quando a luta de classe
modifica sua forma, desloca-se das relações de enfrentamento entre classe proletária e
burguesa, para um chamamento de valorização e defesa das minorias, - torna-se um
caminho pautar-se, para além da Arqueologia do Saber, nos estudos foucaultianos que
buscam analisar e categorizar as formas de poder e os processos de subjetividade.
Pautados nessa reflexão, torna-se relevante, na seqüencia, retomar dois conceitos
centrais apresentados por Foucault na Arqueologia: a questão da descontinuidade e a
noção de arquivo. Assim, posteriormente, buscarei localizar com mais clareza em que
momentos de suas pesquisas desenvolvem-se os estudos dobre o poder e o sujeito. (p.
83-84)
A DESCONTINUIDADE DA HISTÓRIA
Os estudos do discurso articulam-se, assim, à escrita da história, já que em
ambos observam-se as práticas discursivas; - essas regularidades que ganham corpo seja
em um conjunto técnico, em uma instituição, em formas de difusão. Elas estão
submetidas a um jogo de prescrições que determinam exclusões e escolhas
(FOUCAULT, 1997). (p. 86)
Entretanto, para sustentar tal perspectiva de estudo, torna-se preciso recolher e
organizar o material a ser analisado sob um novo enfoque. Esse se refere à concepção
foucaultiana de arquivo, que em seu bojo traz contribuições centrais para os estudos da
Análise Discurso. (p. 86)
ARQUIVO
Esta longa citação de Foucault introduzirá nossas discussões sobre o conceito de
arquivo:
Não entendo por esse termo (arquivo) a soma de todos os textos que uma cultura
guardou em seu poder, como documentos de seu próprio passado, ou como testemunho
de sua identidade mantida; não entendo, tampouco, as instituições que em determinada
sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e
manter a livre disposição. Trata-se antes, ao contrário, do que faz com que tantas coisas
ditas por tantos homens, há tantos milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis
do pensamento, ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam
simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do que se pôde
desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas; mas que tenham aparecido
graças a todo jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo; que
em lugar de serem figuras adventícias e como que inseridas, um pouco ao acaso, em
processos mudos, nasçam segundo regularidades específicas: em suma, que se há coisas
ditas – e somente estas – não é preciso perguntar sua razão imediata Às coisas que aí se
encontram ditas ou aos homens que as disseram, mas ao sistema da discursividade, às
possibilidades e às impossibilidades enunciativas que ele conduz. O arquivo é, de início,
a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como
acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas
ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam,
tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de
acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com
as outras segundo relações múltiplas [...] (FOUCAULT, 1986, p. 148-9). (p. 87)
Considerando que a arqueologia é a seleção e descrição do arquivo, as relações
que se estabelecem entre a análise do discurso e o método arqueológico pautam-se na
tomada das práticas discursivas como objeto de estudo, sendo o enunciado considerado
para além da realização lingüística. O método arqueológico focaliza as práticas
discursivas que constituem o saber de uma época, a partir de enunciados efetivamente
ditos e o funcionamento dos discursos. Assim, o enunciado é apreendido como discurso
e acontecimento, produzindo sentido a partir das relações que estabelece com outros
enunciados e momentos enunciativos. Nessa perspectiva, o discurso não está nunca livre
de coerções, e Foucault em A ordem do discurso (1996) apontará o rumo do método
arqueológico: (p. 89-90)
Observa-se, portanto, que, no desenvolvimento de seus estudos, Foucault indica
um novo direcionamento para o método arqueológico. É preciso reconhecer o discurso
produzido no interior de coerções. Assim, pauta-se em uma concepção de discurso que
se articula com a noção de poder. No enfoque genealógico ressaltam-se as noções de
poder e de saber relacionadas às práticas discursivas. (p. 90)
A EMERGÊNCIA DOS SUJEITOS NO ARQUIVO
O arquivo passa a ser, então, um lugar onde se torna possível pensar as práticas
discursivas de uma sociedade. (p. 91)
Foucault, a partir de um enfoque genealógico, pauta-se em uma concepção de
discurso que se articula com a noção de poder. Compreende-se, assim, que á poder no
próprio discurso, cujo funcionamento se dá no interior das práticas discursivas. Em
seus estudos, o autor observa que esse poder não é exercido apenas por meio de
enunciados interditos ou enunciados de caráter repressivo e negativo. Tal reflexão leva
o filósofo a postular a noção de vontade de verdade.
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não
é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a
recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que
souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu
regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela
acolhe e faz funcionar côo verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e
outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade;
o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
(FOULCAULT, 1996) (p. 93)
O autor observa que a oposição verdadeiro/ falso no interior de um discurso é
regida pelo modo como a verdade circula, estando envolvidos nesse processo quem
pode dizer a verdade, a quem dizê-la e qual é o regime regulador da aparição de
enunciados de uma época FOUCAULT, 1996). Dessa perspectiva é preciso
compreender o sujeito em um sentido político, e não como um ausente ou finito, pois se
considera que os enunciados são marcados como espaço de efeito de poder. (p. 93)
O ACONTECIMENTO DISCURSIVO E A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE NA HISTÓRIA
Em meio á ebulição do paradigma estrutural que dominou nos anos sessenta as
ciências humanas na França, Michel Foucault surge e se firma como um pensador que
fez incursões em vários campos do conhecimento, pois abordou temas diversos, tais
como: as condições de formação dos discursos, as redes e dispositivos das relações de
poder e os procedimentos reguladores de expressão da sexualidade. A partir de seus
estudos, Foucault abriu um leque complexo de questões envolvendo a constituição dos
saberes, a loucura, o processo de subjetivação, a prisão e a clínica. Disso resulta a
dificuldade de caracterizar esse filósofo como um intelectual representante de uma
determinada “episteme”, como atestam seus críticos, dentre os quais Rojas (2000), que
chama a tenção para a multiplicidade de adjetivações que, segundo diferentes olhares,
representantes do estruturalismo francês, ou um pensador de direita e antimarxista, ou
ainda o filósofo da geração francesa de 68. (p. 97)
Para se posicionar criticamente diante de um projeto positivista de história
tradicional, Foucault define a diferença entre história tradicional e história nova. O
trabalho da história tradicional concentra-se em “reconstituir a forma de conjunto de
uma civilização, o princípio – material ou espiritual – de uma sociedade, a significação
comum a todos os fenômenos de um período, a lei que explica sua coesão”
(FOUCAULT. 1972, p. 17). O projeto dessa história é, pois, o de reconstituir o “rosto”
de um determinado período, supondo haver um sistema de relações homogêneas, uma
rede de causalidade entre todos os acontecimentos de uma área espaço-temporal. Para
tanto, o método adotado pelo historiador positivista consiste em traçar as linhas de
continuidade do desenvolvimento de um pensamento, numa lógica evolutiva. (p. 99)
A nova história-genealogia rejeita a noção de causalidade linear, assim como a
concepção de tempo contínuo e unilinear, em favor de uma história que se pauta pelas
múltiplas causalidades imbricadas e por uma teoria das diferentes temporalidades
sociais. (p.100)
Da oposição história tradicional / história nova, decorre a discussão sobre o par
documento/monumento. Segundo o que analisa Foucault, a história tradicional
empenhava-se no trabalho de memorização dos monumentos dos passados para
transformá-lo em documentos, procurando, com isso, encontrar relações de causalidade,
de determinação circular, de antagonismo ou de expressão entre fatos ou
acontecimentos datados. Porém, a essa prática histórica que considera o documento
como uma matéria inerte, por meio do qual o discurso se empenha em reconstituir
aquilo que os homens fizeram ou decidiram, ou em determinar o que é passado e o que
apenas deixa rastros, Foucault opõe outra, que faz do documento histórico um
monumento, por meio do qual o historiador pode constituir séries, definindo-lhes seus
elementos e limites, descobrindo o tipo de relação que lhe são específicas e a lei que as
rege. Além desse trabalho, a análise do documento possibilita descrever as relações
entre as diferentes séries, para constituir, assim, séries de séries ou “quadro”. (p. 101-
102)
Ao historicizar as práticas que instituíram a figura do louco como aquele que
deve ser odiado ou apartado do convívio em sociedade, Foucault põe a mostra o sistema
de exclusão e de divisão instituído nas sociedades cujo poder pode, através de um
decreto administrativo, dividir a sociedade não em bons e maus, mas em sensatos e
insensatos.
Como analisa Blanchot (s/d), a partir dessa primeira obra Foucault começa a
problematizar questões como razão e desrazão, tradicionalmente pertencentes aos
estudos filosóficos, à luz de uma determinada perspectiva da história, que privilegia
uma certa descontinuidade, ou seja, um pequeno acontecimento que pode fazer a
história oscilar. (p. 102)
Dosse vê na historicização desse objeto uma ruptura com a história do sujeito
ocidental, por abrir caminho para uma nova sensibilidade histórica que, ao contrário de
valorizar os heróis da história ou glorificar os seus condenados, faz ressurgir do
esquecimento aquele que foi encerrado nos asilos e nos hospícios pela razão ocidental.
Nessa mesma direção, Blanchot argumenta que o fato de Foucault privilegiar o
discurso não significa que ele rejeita a história. O que faz é procurar entrever nela
descontinuidades, deslocamentos, mudanças locais, atribuídas não à vontade de um
soberano, mas a práticas sociais de homens anônimos que escrevem a história Essa
opção de Foucault representa uma recusa à idéia de que, subjacente às transformações
históricas, haveria “uma grande narrativa silenciosa, um rumor contínuo, imenso e
ilimitado que seria necessário reprimir (ou recalcar), à maneira de um não-dito
misterioso ou de um não-pensado” (Blanchot, s/d, p.33). (p. 103)
A partir dos estudos de Foucault, funda-se uma prática histórica, mais tarde
rotulada de micro-história, que direciona sua atenção aos heróis anônimos, àqueles que
são excluídos da história tradicional.Uma modalidade de história que deixa de olhar
para as grandes batalhas, as importantes lutas de monarcas, para se voltar para os
pequenos acontecimentos (a micro-história), que fazem a história mudar seu curso (DE
CERTEAU, 1994).
Embora fomente inúmeras críticas por parte daqueles que não conseguem se
desfazer do pensamento psicologizante, o método de Foucault é claro, pois, como
sintetiza Kremer-Marietti (1977) consiste interpretar os documentos existentes e
reformulá-los para, então, definir um domínio imenso, que comporta o conjunto de
todos os enunciados efetivamente falados ou escritos em sua dispersão de
acontecimentos e na instância própria a cada um. (p. 104)
Anulado na episteme clássica, o homem reaparece na episteme moderna, mas de
modo ambíguo, pois apenas se tem acesso a ele pela vida, pelo trabalho e pela
linguagem. Em outras palavras, só é possível conhecê-lo pelo que ele é, produz e diz.
Assim, a aparição do homem como rei da criação ocorre quando a história natural se
torna biologia, a análise das riquezas, economia e a reflexão sobre a linguagem se faz
filologia. (p. 105)
Como salienta Blachot (s/d), para tratar das práticas discursivas que remetem
somente para si próprias (suas regras de formação, o seu ponto de fixação e a sua
emergência), sem que, para tanto, seja necessário determinar um ponto de origem ou,
ainda, um autor, Foucault precisa descartar a crença na existência de um grande
inconsciente coletivo – uma espécie de providência pré-discursiva –, o que funcionaria
côo o alicerce de todo o discurso e de toda a história. (p. 106)
Assim, a idéia que se te sobre o homem é datável, uma vez que sua aparição se
dá num determinado momento, quando se torna objeto do saber. O homem passa a ser
também alvo de um poder, não de um poder centralizado num determinado aparelho
ideológico, como reivindicam os adeptos do marxismo-althusseriano, mas de práticas,
como a psiquiatria, a medicina, economia, ou a mídia, objeto deste estudo. Messe
sentido, o indivíduo é, segundo os estudos foucaultianos, tecido nos enunciados
científicos, que, de um lado, constituem campos específicos é, de outro, estabelecem-se
“como práticas descontínuas, que se cruzam, se avizinham, às vezes, mas também se
ignoram ou se excluem” (FOUCAULT, 1995, p.21).
A ARQUEOLOGIA DO ACONTECIMENTO DISCURSIVO
Considerar o discurso como acontecimento significa abordá-lo na sua irrupção e
no seu acaso, ou seja, despojá-lo de toda a e qualquer referência a uma origem
supostamente determinável ou a qualquer sistema de causalidade entre as palavras e as
coisas. Como lembra Dosse, a rejeição à noção de origem tem respaldo na filosofia
proposta por Nietzsche, segundo a qual interpretar não é o mesmo que buscar um
suposto significado original, uma vez que é o discurso que instaura a interpretação.
Eis, portanto, mais um elemento que se acresce à compreensão do que seja
acontecimento discursivo, pois entender o discurso como acontecimento é aceitar que é
ele que funda a interpretação, constrói uma verdade dá rosto às coisas. Por isso o
discurso é objeto de disputa, em vista do poder que, por seu intermédio, se exerce. (p.
108)
Para realizar uma descrição pura dos discursos Foucault vê a necessidade de
restituir ao discurso a sua neutralidade primeira, e o faz, como mencionado, pondo em
suspenso o que denomina “formas prévias de continuidade” – tradição, influência,
desenvolvimento ou espírito, tipos e gêneros, livro e obra, idéia de origem, já-dito/não-
dito – que impedem de considerar o discurso como acontecimento porque o vinculam a
um sentido dado antes ou que lhe estaria oculto, garantindo, com isso, a infinita
continuidade do que os homens disseram. (p. 108-109)
Ele é feito de cesuras que dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e
de funções; é um corte ou recorte que se realiza livremente na realidade, um acúmulo ou
uma seleção de elementos.
Apoiando-se em Foucault, Veyne define o acontecimento histórico como algo
que resulta de uma escrita historiográfica, como podemos constatar pelo seguinte
excerto: (p. 109)
A descrição arqueológica distingue-se também da análise da relação entre
enunciado e pensamento, que intenta encontrar nos discursos a atividade consciente do
sujeito falante, aquilo que supostamente ele desejou falar, ou o jogo inconsciente que
veio à luz a partir do que disse. (p. 110 – 111)
O SUJEITO DO ACONTECIMENTO DISCURSO
Para Foucault (1998), o poder está em todo lugar, disseminado no interior das
instituições criadas pelos homens. Por isso, ele não fala em ideologia determinando
aquilo que o sujeito pode e deve falar, mas em sistemas de interdição, em
procedimentos que criam um jogo de fronteiras, limites, supressões que tentam
controlar a produção dos discursos na sociedade. Por meio desses mecanismos
coercitivos, as instituições conjuram o acaso do discurso, impondo regras para quem
deseja entrar na sua ordem. A ordem do discurso pode ser lida, por esse viés, como uma
arqueologia dos procedimentos de controle, de seleção de organização e de
redistribuição dos discursos, bem como uma arqueologia dos procedimentos que
instituem e significam o sujeito que fala. (p. 112)
Quem tem o direito de entrar na ordem do acontecimento discursivo? Foucault
responde, afirmando que não é qualquer sujeito que pode sustentar um discurso. É
preciso antes, que lhe seja reconhecido o direito de falar, que fale de um determinado
lugar reconhecido pelas instituições, que possua um estatuto tal para proferir discurso.
(p. 112-113)
Como exposto, o autor recusa de sua genealogia o antropocentrismo, por
considerar que o discurso que determina o que o sujeito deve falar, é ele que estipula as
modalidades enunciativas. Logo o sujeito não preexiste ao discurso, ele é uma
construção no discurso, sendo este um feixe de relações que irá determinar o que dizer,
quando e de que modo. (p. 113)
DISCURSO JORNALISTICO E OS 500 ANOS DO BRASIL: A
DESCONTINUIDADE ENTRE O ENUNCIADO E O ARQUIVO
O arquivo é o objeto específico da arqueologia, que é definido por Foucault
como sendo
o que faz com que tantas coisas ditas, por tantos homens, há tantos milênios, não
tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento, ou apenas segundo o jogo das
circunstantes, [...] mas que elas tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que
caracterizam particularmente o nível discursivo [...] O arquivo é, de início, a lei do que
pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos
singulares (FOUCAULT, 1972, p. 160-61). (p. 116)
Como não existe enunciado que não suponha outros, a memória exerce um papel
fundamental na relação entre o enunciado e o arquivo, que pode ser pensada nos
seguintes termos: em relação ao arquivo, o enunciado é aquilo que surge com valor de
acontecimento em meio a um espaço colateral povoado por outros enunciados. A esse
espaço colateral Foucault dá o nome de “campo associado”, que é formado pela série
das formulações que o enunciado repete, modifica, adapta, se opõe ou propicia a
possibilidade ulterior (sua conseqüência, seqüência natural ou réplica). (p. 117)
Como esses discursos não partem de um único, mas de vários lugares
enunciativos (o jornalista, o historiador, o político etc), a rede de formulações gerada
pelo cruzamento dessas diferentes posições enunciativas põe em cena a angústia da
sociedade para saber quem somos, quem é esse sujeito produzido pelas diversas práticas
historicamente instituídas. (p. 117)
ACONTECIMENTO DISCURSIVO-JORNALISTICO E A PRODUÇÃO
DE IDENTIDADE(S)
A questão da produção de identidade(s) no discurso da mídia impressa requer,
antes, a consideração de dois aspectos, um, mais geral, relacionado à produção do
acontecimento na prática jornalista, e outro, mais específico, que diz respeito à escrita
jornalística dos 500 anos. (p. 118)
A aceleração do presente histórico concorreu para o estabelecimento de uma
democratização da história, que culmina num fenômeno novo, o retorno do
acontecimento cuja produção se deve aos meios de comunicação, que detêm o
monopólio da história. É por intermédio deles que o acontecimento se faz presente. (p.
118)
Uma vez produzido no interior de uma prática que se pauta pelo emprego de
estratégias de manipulação do real e pelo sensacionalismo, o acontecimento é, antes de
tudo, produto de uma montagem e de escolhas orientadas de imagens, que lhe garantem
o efeito de acontececência, isto é, a impressão do vivido mais perto. (p. 118)
Isso nos coloca diante da evidência de não se poder precisar a construção de uma
identidade única sobre o Brasil e sobre os brasileiros, uma vez que o discurso da mídia é
multifacetado, isto é, para construir seu objeto, recorta outros domínios do saber
pertencentes, por exemplo, à sociologia, à antropologia e à história. Desse modo, como
a identidade desse discurso é ser dispersão e descontinuidade, a identidade que constrói
também não foge a essa condição. (p. 120)
Como essa memória projeta-se na descontinuidade de uma história, torna-se
impossível falar em “origens”, uma vez que essa noção supõe o trabalho incessante de
encontrar num passado que se crê coeso a explicação para o que somos, nossa
identidade perdida, mas supostamente reconstituída no esforço de uma lembrança.
Tendo isso por princípio, a identidade que é constituída na prática discursiva da mídia
impressa resulta dessa memória discursiva descontínua e dispersa nos textos. (p. 121)
É nesse sentido que os cadernos podem ser considerados como verdadeiros
acontecimentos discursivos, pelo motivo de construir uma nova identidade com base em
elementos do passado, não pelo o que neles está dito, mas pelo modo como esse já-dito
neles retorna, o que faz ecoar a máxima de Foucault de que “o novo não está no que é
dito, mas no acontecimento do seu retorno”. (1995, p. 13). (p. 123)
Contra a origem e o favor da descontinuidade, considerando as formulações de
Foucault, essa construção de identidade não é um retorno a uma suposta origem; ela não
se efetua na relação palavra/coisa. Essa construção remete e envia a outras palavras,
mais especificamente, a outros discursos sobre a figura do brasileiro. É nessa rede
interdiscursiva que se vêem constituídas identidades. (p. 128)
CHAPARRO, M. C. Sotaques d’aquém e d’além mar: percursos e gêneros do
jornalismo português e brasileiro. Santarém, PT: Jortejo Edições, 1998.
NORA, P. Les liex de mémoire. Paris: Gallimard, 1993.
_____. O retorno do fato. In: LE GOFF, J. e NORA, P. História: novos
problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 179-193.
ROUANET, S. P. (org.) O homem e o discurso (a arqueologia de Michel
Foucault). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971.
CAPÍTULO 3 – FOUCAULT, O DISCURSO E O PODER
ENTRE O VISTO E OS SENTIDOS: FRONTEIRAS, MUROS E
NORMAS
Ao tomar a Idade Média como ponto de partida, Pêcheux observa uma rigorosa
imobilidade nas relações sociais, sob a forma de nítidas fronteiras que separam nobres e
plebeus; do lado dos primeiros, os muros, os fossos, os castelos e o latim; dos últimos,
as cercas frágeis, simbólicas, ou até mesmo sua elisão, as casas simples e os falares
vulgares. De modo recíproco e coextensivo, as barreiras e as demarcações vão de
arquitetura para a língua e da língua para a arquitetura, conforme ratificam os seguintes
excertos:
As ideologias feudais supunham a existência material de uma
barreira lingüística que separava aqueles que, por seu estado, eram os únicos suscetíveis
d entender claramente o que tinham a se dizer, e a massa de todos os outros, tidos como
inaptos para se comunicar realmente entre si, e a quem os primeiros só se endereçavam
pela martelação retórica da religião e do poder (PÊCHEUX, 1990, p. 9-10). (p. 135-
136)
Assim, instaura-se uma cisão do mundo feudal em dois mundos, assegurada por
visíveis delimitações arquiteturais e por expressos limites lingüísticos. Além disso, os
dois mundos eram ainda divididos pela diferença dos corpos: a maior estatura do corpo
do nobre, frente ao corpo plebeu, era reforçada pelos trajes sustentava sem o
fundamento advindo da necessária presença (ausente) de um terceiro mundo invisível,
no qual não há separação, sendo “todos iguais perante Deus”: “ a ideologia religiosa,
que dominava a formação sócio-histórica, feudal e monárquica, consistia
essencialmente em administrar esta relação com o ‘alhures’ que a funda; ela
representava este ‘alhures’, tornando-o visível através das cerimônias e das festas –
inscrevendo aí os discurso – que colocavam em cena este corpo social unificado,
radioso,transfigurado, que manifesta o ‘inexistente constitutivo” da sociedade feudal”
(PÊCHEUX, 1990, p.10) (p. 136-137)
A paulatina derrocada da nobreza e a crescente ascensão da burguesia podem ser
observadas, de um modo complexificado, na passagem, assinalada por Foucault (1999 e
2000), do “poder soberano” para o “poder disciplinar”, que comportava dois pólos, dois
corpos: o individual, o corpo-máquina (dócil e produtivo), controlado por uma
anátomo-política; e o coletivo, o corpo-espécie (ser vivo e suporte de processos
biológicos), controlado por uma biopolítica da população. Enquanto o primeiro, o
soberano, baseava-se no “sangue”, no nascimento e era caracterizado pelo “direito de
vida e morte”, ou seja, o “direito de causar a morte ou de deixar viver”. O último, o
disciplinar, consiste num poder que gera e gere a vida dos corpos pessoal e social; sendo
que seu aparentemente paradoxal surgimento, em meio à ascensão das Luzes,
promoveu-se mediante a mobilização de instituições disciplinares, tais como: as escolas,
as famílias, as fábricas, os hospitais, as prisões, que se instalam, sobretudo, a partir dos
XVII e XVIII ( FOUCAULT, 1999, p. 131). Na sociedade disciplinar, “o indivíduo não
cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a
família, depois a escola (‘você não está mais na sua família’), depois a caserna (‘você
não está mais na escola’), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente
a prisão, que é meio de confinamento por excelência” (Deleuze, 2000, p.219).
ENTRE LÍNGUA, CORPO E MOVIMENTO: CONTROLES
MIDIÁTICOS E URBANOS
As formas do complexo de relações de força que hoje prevalecem tendem mais
à abertura do controle contínuo e permanente que ao fechamento descontínuo das
instituições disciplinares: O que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de
sanções, de educação, de tratamento. Os hospitais abertos, atendimentos a domicílio,
etc.(DELEUZE, 200, p. 216) No que diz respeito à educação, é possível facilmente
observar que sua promoção é cada vez menos um conjunto de ações realizadas em um
meio fechado, distinto do ambiente profissional; instaura-se a exigência da formação
continuada tanto para o operário-aluno quanto para o executivo-universitário, visto que
numa sociedade de controle nunca se termina nada. (p. 145)
Nesse sentido, a história caracterizaria a atualidade pela suposta inexistência de
distinções, separações e segregações instauradas pelo poder, pela liberdade própria a
uma época pós-vitoriana, desde o início do século XX, pós levantes feministas e de
outras minorias, pós Maio de 68, desde a segunda metade desse século, e, especialmente
no Brasil, pós abertura política, que se seguiu à derrocada da Ditadura Militar, a partir
do final dos anos 70: direito à livre expressão, direito ao próprio corpo. (p. 145-146)
A produção e a cristalização dessas representações do corpo e da língua têm se
tornado cada vez mais intensas e eficientes, graças à força da mídia, que pelo fato de
consistir atualmente numa das mais fundamentais instâncias de constituição de
representações imaginárias, objetiva, e naturaliza o mundo, constrói e propaga uma série
de “verdades”. Coextensivas do encolhimento/enfraquecimento da política e da
pedagogia strictu sensu, dão-se a politização e a pedagogização da mídia: uma vez que a
sociedade do controle se caracteriza se caracteriza pela abertura e continuidade das
instuições, observa-se o aumento da atuação midiática que, para além da transmissão de
informações e do entretenimento, pretende supostamente exercer papéis políticos e
pedagógicos. (p. 148)
Não sem razão, irrompem na mídia os múltiplos “conselhos”, as “valiosas”
indicações, as “inestimáveis” sugestões que concernem principalmente ao corpo, mas
também, à língua: as dicas de beleza e saúde da Adriane Galisteu e a dieta da Deborah
Secco; os alvitres gramatiqueiros do Pedro Bial aos participantes Big Brother Brasil e as
deliberações “lingüísticas” do Serginho Groisman, seja no Altas Horas, no Ação ou no
Alô Brasil! Aqui tem educação. (p. 149)
Todavia, enquanto lá, em função do fato de que a impossibilidade de um
compromisso com a monarquia empurrou a burguesia para uma aliança popular
(PÊCHEUX, 1990, p.11), bem como pela própria razão de essa mesma burguesia falar
francês, os falares vulgares, a língua francesa largamente utilizada, foram contemplados,
malgrado a instauração da langue de bois do Direito e da Política burguesas; no Brasil,
o estabelecimento da língua portuguesa como Língua Nacional oficial, com o decreto de
Pombal, no ano de 1759, em detrimento da Língua Geral, amplamente usada aqui
naqueles tempos, e de valias línguas indígenas, essas últimas com a desvantagem,
conforme a concepção das culturas letradas, produziu o surgimento de um modelo,
baseado na norma-padrão do português europeu, para toda produção lingüística
engendrada em terras brasileiras (p. 150).
E, ao pensar a relação da língua com o corpo e com o espaço urbano, poder-se-ia
aventar que, se o controle da primeira vem pela norma-padrão, o do segundo, vem pelo
padrão estético dominante, e o do terceiro , vem, dentre outros modos, pelas barragens e
fronteiras da cidade; três formas de controle eficientes, porém não absolutamente
hegemônicas: há, ainda, um “real da língua” (MILNER), um “real do corpo” e um “real
da cidade” (ORLANDI, 1999), visto que o “real” é o impossível (de se dar e de se
abranger nas totalidade: talvez, um pouco/um muito de Nietzsche e Saussure em Lacan),
ou, antes, a possibilidade e a propriedade intrínseca do “um” de torna-se outro,
diferente de si mesmo, de deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um
outro; enfim, toda manifestação lingüística, corporal ou citadina está/é crivada por uma
série de pontos de deriva possíveis (PÊCHEUX, 1997, p. 53), ainda que haja os
cerceamentos dado pelas regularidades da língua, pela naturalização do corpo e pela
elisão do espaço. (p. 151)
ENTRE O FIM E O COMEÇO, O DENTRO E O FORA: AÇÃO E
REAÇÕES, CONTROLES E RESISTÊNCIAS
É com base em duas máximas freqüentemente reiteradas nas mais diversas
disciplinas situadas no interior do macro-campo das ciências humanas, quais sejam, Le
corps est premier et le plus naturel instrument de l’homme (de Marcel Mauss, em 1934)
e É na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito (de Émile Benveniste,
em 1958), que começo a traçar o fim (provisório) das reflexões por mim aqui
delineadas. (p. 151)
O sujeito (pós) moderno constitui-se, por um lado, no jogo midiático entre a
visibilidade radiante / impetuosa da beleza e a dissimulação constrangida /recalcada da
feiúra, entre a correção eloqüente/exuberante do “bem falar” e a imperfeição
emudecedora / intimidadente do “falar errado”; e, por outro, na cisão urbana do
“dentro” (da proteção, da segurança, da inclusão/deferência) e do “fora” (da ameaça, do
risco, da exceção/elisão). (p. 152-153)
DELEUZE, G. Foucault. Paris: Éditions de Minuit, 1986.
______. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.
ECO, U. A busca da língua perfeita. 2. Ed. Bauru: Edusc, 2002. (P. 155)
ARTICULAÇÕES ENTRE PODER E DISCURSO EM MICHEL
FOUCAULT
A temática do poder em Foucault está presente nos dois processos de construção
de sua obra: na arqueologia o poder aparece na discussão sobre a relação saber/poder e
sobre a verdade científica na qual Foucault se posiciona, afirmando que aquilo que é
tomado como verdadeiro numa época está ligado ao sistema de poder. Ou seja, a
validação do conhecimento científico é uma questão de poder. O poder é quem
determina os enunciados como verdadeiros ou falsos em uma época. Foucault busca na
fase arqueológica libertar o saber dessa problemática. Na fase genealógica a ênfase recai
sobre as práticas de poder e seus efeitos na construção da subjetividade. O poder passa a
ser analisado a partir das suas práticas, das tecnologias de produção de poder
desenvolvidas pelas sociedades. Não mais o poder circunscrito ao Estado ou aos seus
aparelhos, não mais analisá-lo na consideração das lutas de classes, mas explicar seu
funcionamento comparando-o a uma rede que se estende ao corpo social, produzindo
seus efeitos. O poder não mais localizável, mas multidirecional, espalhado como micro-
poderes – grãos de poderes na mesa do social. (p. 160)
O PODER E DISCURSO NA FASE ARQUEOLÓGICA
O saber é tema de interesse na fase arqueológica. Foucault investiga como o
saber foi se constituindo e as condições de possibilidade do seu aparecimento. (p. 160-
161)
O enunciado é concebido como a unidade do discurso e, sendo assim, tanto um
como outro traduz em sua ocorrência a noção de poder:
Foucault toma o enunciado como acontecimento discursivo e, desse modo, o
arqueológico elege como seu material o discurso e os objetos que determinados
discursos, em cada época, podem dispor ou apresentar, isto é, como um objeto se torna
inteligível e como alguém pode apropriar-se de certos objetos para falar deles
(ARAÚJO, 2001, p. 55). (p. 161)
A idéia é a de que os objetos não pré-existem ao saber, eles existem como
acontecimento, como aquilo que uma época pôde dizer devido a certos arranjos entre o
discurso e as condições não-discursivas. Tais arranjos determinam as relações
circunscritas nos discursos e, por sua vez, as condições históricas para que apareça um
objeto de discurso: (p. 161)
Foucault tenta libertar o discurso das análises puramente lingüísticas ou do jogo
lógico do falso e do verdadeiro que trata o discurso como uma proposição. O que
interessa é tratá-lo como prática que determina a historicidade dos enunciados. Por isso,
ao descrever o enunciado como unidade desse discurso, argumenta que não se deve
confundi-lo como uma proposição ou como algo dotado de uma gramaticalidade. O
discurso é um acontecimento e para analisá-lo é necessário libertar-se das sínteses
apressadas, das continuidades homogêneas. (p. 162)
Afinal, somente tratando o enunciado como acontecimento se pode descrever
nele e fora dele, jogos de relações (FOUCAULT, 2000, p. 33) (p. 163)
O discurso, assim concebido, não é a manifestação majestosamente desenvolvida
de um sujeito que pensa, que conhece e sabe o que diz: é, ao contrário, um conjunto em
que podem ser determinadas a dispersão do sujeito sua descontinuidade em relação a si
mesmo. PE um espaço de exterioridade em que se desenvolve uma rede de lugares
distintos (...), não é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem pelo recurso a
uma subjetividade psicológica que se define o regime de suas enunciações.
(FOUCAULT, 2000, p. 61-62) (p. 166)
A análise do enunciado, como realizada em A Arqueologia do Saber, mostra-nos
que um enunciado pertence a uma formação discursiva, assim como uma frase pertence
a um texto e uma proposição a um conjunto dedutivo. (p. 167)
Para Foucault, essa não pode ser confundida com uma operação expressiva pela
qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem, nem com a atividade
racional que poder ser acionada em um sistema de inferência, nem com a “competência”
de um sujeito falante quando se constrói frases gramaticais. E nessa distinção, expõe o
conceito de prática discursiva:
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as
condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 2000, p.
136)
Se tais práticas limitam o surgimento dos enunciados, é preciso considerar, no
âmbito das formações discursivas, o efeito de raridade dos enunciados. Tal raridade
permite entrever que aquilo que é dito exclui outros dizeres, que o enunciado tem uma
existência que se mostra na dependência de uma formação discursiva. É nesse sentido
que para Foucault a análise das formações discursivas se volta para essa raridade, tenta
determinar-lhe o sistema singular e, não mesmo tempo, dá conta do fato de poder existir
interpretação. Nesse raciocínio, interpretar um enunciado seria uma maneira de reagir
pobreza enunciativa e de compensá-la pela multiplicação do sentido. Se assim é analisar
uma formação discursiva seria pesar o valor dos enunciados. (p. 168)
A SOCIEDADE E A ORDEM DO DISCURSO
A aula inaugural de Foucault no Collège de France marca um momento de
transição da fase arqueológica para a fase genealógica. Se na primeira não está
explícito o modo como as práticas discursivas estão ligadas a outras práticas
(não-discursivas), na segunda Foucault realiza essas ligações. A aula parte da
hipótese de que a sociedade dispõe de meios para controlar a produção dos
discursos, sendo a função dele conjurar seus poderes e perigos. A idéia é a de
que há restrições no ato de falar, que são tanto internas quanto externas. Há uma
política de silenciamento daquilo que oferece o perigo, que transgride a norma.
Nem tudo pode ser dito, e o que ameaça a ordem deve ser proibido. Atuam aqui
procedimentos de exclusão que incidem sobre o objeto como tabu, sobre o ritual
da circunstância, sobre o direito individual ou exclusivo do sujeito que fala em
regiões como a sexualidade e a política, por exemplo. (p. 170)
Essas constatações marcam o inicio de uma preocupação em mostrar
como o poder se exerce e como ele se apresenta na espessura do discurso. Com
esses procedimentos controlando os discursos, haveremos de conceber que não
se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa
(FOUCALT, 1999, p.9). Para Foucault, as regiões onde as proibições são mais
visíveis, onde o poder, portanto, mais atua, compreendem a sexualidade e a
política: (p. 170)
Sobre a vontade de verdade na ótica de Foucault, assim se posiciona
Pinho:
Esse termo, utilizado por Nietzsche para denunciar uma atitude de
depreciação ou enfraquecimento da vida – do que é terreno, mundano, transitório
– assume na aula inaugural dois significados precisos. 1º: o mundo “não é
cúmplice de nosso conhecimento”, ou seja, reconhecer a verdade, que até então
representava a riqueza do pensamento, a via de aceso ao universal, o inesgotável
reino da fecundidade, passa a ser concebida como uma “prodigiosa máquina”
destinada a excluir. (PINHO, 1998, p. 184-5)
A GENEALOGIA E O EXERCÍCIO DO PODER NO DISCURSO
Defendendo que o poder político não está ausente do saber, mas é
tramado por ele, a genealogia foucaultiana procurará investigar como acontece
em nossa sociedade uma história política do conhecimento. As obras posteriores
à Aula Inaugural seguirão uma busca de explicação para a mecânica do poder,
mostrando como ele se exerce, como produz seus efeitos, fabricando indivíduos
dóceis, inscrevendo subjetividades. Vigiar e punir marca-se nessa trama das
ações do poder sobre o saber. Ao investigar a prisão, Foucault conclui que ela
não devia ser vista somente como lugar de castigo, mas, desde a sua fundação,
esteve ligada a um projeto social de transformação dos indivíduos. (p. 172)
Visto desse modo, o indivíduo é uma produção do poder, ou seja, o
poder, na concepção foucaultiana, é formador de uma verdade sobre o sujeito.
Assim, o indivíduo é uma fabricação do poder e o elemento que torna possível
um conhecimento sobre ele: (p.172)
A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do
comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso,
com o objetivo de hierarquizar, tudo isso faz com que apareça pela
primeira vez na história esta figura singular, individualizada – o homem
– como de saber. Das técnicas disciplinares, que são técnicas de
individualização, nasce um tipo específico de saber: as ciências humanas
(MACHADO, 1979, p. XX) (p.173
Assim as ações do poder não são negativas, mas positivas, pois, como o próprio
Foucault afirma, faz parte das disciplinas não só produzirem discurso sobre si próprias,
mas também serem exercidas pela normalização discursiva. (p.173)
As ações do poder disciplinar também atuam sobre os corpos no ponto em que
esses expõem seus desejos – nas regiões da sexualidade. Esse é o tema de A vontade de
saber. Foucault considera que nos séculos XVIII e XIX houve uma grande proliferação
de discursos sobre o sexo em vários campos do saber, mas essa insistência em falar
sobre o sexo deve ser vista como estratégia do poder para controlar os indivíduos e
mapear seus comportamentos. (p. 174)
No desenvolvimento de suas reflexões sobre a relação saber / poder, Foucault
chega à análise de uma “racionalidade estatal” que pretende não mais controlar os
corpos, mas a vida, a espécie, a raça. Trata-se do bio-poder cuja atenção se volta para
fenômenos de cunho biológico – natalidade, saúde pública, habitação, etc., e que leva
onde a disciplina alcança seu ápice como dispositivo, instalando a sociedade de controle
cuja natureza é bio-política. (p.174)
DO FUNCIONAMENTO DA DISCIPLINA E DO CONTROLE – DO
PROJETO DO ESTADO À EXPOSIÇÃO MIDIÁTICA
Como ficou dito, o trabalho de Foucault foi o de analisar a produção do discurso
como efeito do poder. Em sua ótica, o poder produz saber, não havendo saber que não
se constitua nas tramas do poder. Mas, como afirma em uma de suas entrevistas, se ele
chegou ao poder foi para entender o sujeito. Dito de outro modo, sua preocupação foi
entender as estratégias de subjetivação do poder, já que esse é construtor de uma
verdade sobre o sujeito e também ordenador de um “perfil ideal” de sujeito que lhe seja
útil. A última fase dos escritos de Foucault é marcada pela compreensão da
subjetividade como produção de modos de existência e de estilos de vida. Tudo isso é
possível de ser analisado quando lançamos um olhar para os efeitos do poder sobre os
sujeitos, quando esse lança mão de seus dispositivos e de suas técnicas de subjetivação.
Analisaremos esses efeitos no processo de legislação do Estado brasileiro e sua
divulgação na mídia. Estado e mídia serão analisados em suas estratégias específicas de
fabricação de subjetividades. (p.175)
Mas, ao trazer para suas páginas a questão do desarmamento proposto pelo
Governo, expõe o fato em sua visibilidade. Gomes (203, p. 75), defende que trazer à
visibilidade é, simplesmente, mostrar o mundo do ponto em que ele deve ser visto e esse
ponto, por si mesmo, já é disciplinar: a educação da visão pela determinação do
visível. (p. 177)
O efeito é a produção de indivíduos, ou subjetividades que se inscrevam na
ordem do poder. Por tais processos, estabelece-se a verdade e a verdade é sempre uma
reta em direção ao poder. (p. 178)
PINHO, L. C. As tramas do discurso. In: BRANCO, G. C. e NEVES, L. F. B.
(orgs.). Michel Foucault: da arqueologia do saber à estética da existência. Rio de
Janeiro: Nau; Londrina: Cefill, 1998. (p. 179)
CAPÍTULO 4 – FOUCAULT, O DISCURSO E ASSUBJETIVIDADES
A DISCIPINARIDADE DOS CORPOS: O SENTIDO EM REVISTA
A estética da existência, como nos é dada a entender por Foucault (1984), guiará
a perspectiva de um estudo engendrado na estetização do sujeito, encarado como forma
a ser elaborada, trabalhada e constituída segundo critérios de estilo, por meio de
tecnologias de saber, de poder e de si. Como nos mostrou o filósofo, cada um de nós,
enquanto sujeito, é o resultado de uma fabricação que se dá no interior do espaço
delimitado pelos três eixos da ontologia do presente: os eixos do ser-saber, do ser-poder
e do ser-si. São os dispositivos e suas técnicas de fabricação – dentre as quais a
disciplinaridade é um forte exemplo – que instituem o que chamamos de sujeito. Nesse
sentido, cada um faz não o que quer, mas aquilo que pode, aquilo que lhe cabe na
posição de sujeito que ele ocupa numa determinada sociedade. Partindo das propostas
de Foucault, analiso os tipos de individualidade e coletividade permitidas numa
determinada época e lugar, que supõem relações com tipos particulares de governos e de
autocontrole, além de processos de conhecimento e de autoconhecimento. (p. 183)
É, então, possível destacar três balizas no processo de subjetivação: a) um ser-
saber, determinado pelas duas formas que assumem o visível e o enunciado num
momento marcado; c)o ser-poder, determinado nas relações de força, variáveis de
acordo com a época; c) o ser-si, determinado pelo processo de subjetivação. (p. 184)
Aplicando esses três conceitos à investigação do processo de leitura, a
entendemos como uma atividade controlada, uma mídia com instrumentos de controle
do discurso que produz o que Foucault denomina saber assujeitado, isto é:
uma gama de conteúdos históricos sepultados, uma série de saberes
desqualificados como saberes conceituais, mascarados em sistematizações
formais, permitindo a descoberta da clivagem dessas sistematizações funcionais
maquiada pela história, de onde surgem também reviravoltas do saber
(FOUCAULT, 2000a, p. 11). (p.184)
MÍDIA E IDENTIDADE
Na sociedade contemporânea, a mídia pode ser entendida como um
poderoso dispositivo de produção de identidades (GREGOLIN, 2004). (p 185)
A mídia parece ocupar lugares, muitas vezes, previamente definidos,
exercendo o saber de seu controle, deixando-nos de mãos atadas, olhando-nos na
solidão, ainda que ela possibilite vias incomensuráveis e descontínuas do trajeto
percorrido pelo sujeito-leitor durante seu caminhar pela revista. (p. 185)
HISTÓRIA E COTIDIANO
Ao referir-me à experiência, remeto a Foucault (1984), que a toma como
correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e
formas de subjetividade. Dessa maneira, inclui-se o homem contemporâneo
num campo histórico constituído por três eixos: o da formação dos saberes a que
se refere, o dos sistemas de poder que regulam sua prática e o das formas pelas
quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos. (p. 186)
NAS NOSSAS MÃOS, O ENUNCIADO
(p. 192)
A REVISTA E SEUS BIO-CORPOS
Foucalt (1998) chamará esse processo de biopoder, relações que
envolvem o direito de vida e de morte quando atrelados aos poderes jurídicos
das soberanias, os quais se promulgavam o direito de ‘causar a morte’ ou ‘deixar
viver’. (p. 197)
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. E RABINOW, P.
Michel Foucault: uma trajetória. Para além do estruturalismo e da
hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 231-249
______. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1984.
______. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1998.
______. Em Defesa da Sociedade: curso no Collège de France (1975-
1976). São Paulo: Martins Fontes, 2000ª.
______. A Ordem do discurso. São Paulo: Ediçoes Loyola, 2000b.
______. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2000c.
______. O nascimento da clínica. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001. , 1984.
GREGOLIN, M. R. V. Discurso, história, e a produção de identidades
na mídia. 2004 (no prelo).
WEBLOGS: A EXPOSIÇÃO DE SUBJETIVIDADES
ADOLESCENTES
O termo weblog é derivado da união das palavras inglesas web (rede,
teia, tecido, palavra também utilizada para designar o ambiente da Internet) e log
(diário de bordo). Seu formado é semelhante a uma webpage, com a diferença da
agilidade e da facilidade de registrar e atualizar informações. Não é necessário
ter conhecimento de programação e HTML, uma vez que existem sites que
disponibilizam o serviço – muitos deles gratuitos – com instruções fáceis sobre a
criação e a alimentação dos programas. (p. 201)
Os discursos produzidos, marcados na subjetividade, trazem à tona
conteúdos que, nem sempre, são objeto do diálogo entre os jovens, portanto
iniciam ou sugerem descobertas de si ou da alteridade, constituindo aquilo que
Foucault entende como funções das “técnicas de si”.
as técnicas de si permitem aos indivíduos efetuarem,
sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de operações, sobre
seus corpos e suas almas, seus pensamentos, suas condutas, seus modos
de ser, de transformarem-se a fim de atender a um certo estado de
felicidade, de pureza, de sabedoria, de perfeição ou de imortalidade
(FOUCAULT, p. 783, 813). (p. 203)
Hall (2002) discute a questão da identidade em duas dimensões: uma dirigida
pelo conceito de homogeneidade, em que a globalização incumbe-se de torná-la uma
mistura equilibrada, e outra norteada por grupos de resistência, nos quais certos
elementos tradicionais resistem. A discussão de Hall em parte dialoga com a visão
defendida pela psicanálise e adotada pela Análise do Discurso de linha francesa, a qual
concebe o sujeito como um ser heterogêneo, cindido, atravessado pelo inconsciente,
habitado por desejos recalcados que irrompem via simbólico, pela linguagem onírica ou
verbal. (p.207)
Quando ao que é ser pós-moderno, Harvey afirma:
Eis, por exemplo, a descrição de Berman (1982): Há uma modalidade de
experiência vital – experiência do espaço e do tempo, do seu e dos
outros, das possibilidades e perigos da vida – que é partilhada por
homens e mulheres em todo o mundo atual. Denominarei esse corpo de
experiência “modernidade”. [...] Ser moderno é encontrar-se num
ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,
transformação de si e do mundo – e, ao esmo tempo, que ameaça destruir
tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. Os ambientes e
experiências modernos cruzam todas as fronteiras da geografia e da
etnicidade, da classe e da nacionalidade, da religião e da ideologia, nesse
sentido, pode-se dizer que a modernidade une toda a humanidade. Mas
trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos
arroja num redemoinho de perpétua desintegração e renovação, de luta e
contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um
universo em que, como disse Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”
(HARVEY, 1992, p. 21) (p. 207-208)
CAPITULO 5 – FOUCAULT, O DISCURSO LITERÁRIO E A LINGUAGEM
IMAGÉTICA
TEORIAS E ALEGORIAS DA INTERPRETAÇÃO NO THEATRUM DE
MICHEL FOUCAULT
Marisa Martim Gama Khalil – Professora da Fundação Universidade Federal de
Rondônia (UNIR), campus de Porto Velho.
Contra positivismo que pára diante dos fenômenos e diz: Há apenas fatos, eu
digo: Ao contrário, fatos é o que não há, há apenas interpretações...
Nietzsche (p. 217)
Um texto literário configura-se como um espaço instigador de leituras e
de interpretações. Esse espaço, que se constrói como uma rede, apresenta-se
como congregador e, ao mesmo tempo, dissipador de variadas vozes. Por esse
motivo, as reflexões acerca do ato da interpretação são costumeiras nos estudos
literários. As diversificadas correntes da crítica literária – quer as estruturalistas
ou as pós-estruturalistas – descortinam em seus métodos perspectivas possíveis
para “orientar” as possibilidades de interpretação do texto literário. (p. 217)
Sendo pintura, literatura, escultura ou cinema, a arte não tem a função de
afirmar placidamente os sentidos e engessá-los para todo o sempre, pelo
contrário, ela pretende sempre amolecer os sentidos, dar novas e contínuas
formas a eles. D. Quixote quis copiar as palavras que leu para reinterpretar as
cosas do mundo, mas a cópia já não era cópia, já era interpretação. (p. 218)
Projetando um olhar mais apurado sobre a obra de Foucault, percebemos,
entretanto, que não há um Foucault que estuda a interpretação, pois em toda a
sua obra há o estudo sobre o sujeito, que, com o seu discurso, representa,
interpreta, reinventa-se. (p. 219)
Em As palavras e as coisas, Foucault, tendo em vista as práticas
relacionadas ao saber, delineia principalmente dois recortes na cultura européia
ocidental: a episteme clássica – séculos XVII e XVIII – e a episteme moderna –
séculos XIX e XX. A primeira episteme, a clássica, é a da representação, a da
ordem do universo. Ela se opõe a uma episteme anterior ao século XVII, que era
a episteme da semelhança, porque as palavras passam a se distanciar das coisas;
no signo, linguagem e pensamento se superpõem; as coisas não falam mais, elas
são faladas, são pensadas, organizadas, classificadas. A episteme moderna é a da
interpretação. As práticas de saber já não se satisfazem em analisar as
representações. A verdade deve ser entendida no interior da história, e a
historicidade das palavras e das coisas é determinada pela sua espessura no
tempo, pela sua destruição, pela sua morte. (p. 219)
Com Nietzsche, Freud e Marx, no século XIX, abre-se uma nova direção
hermenêutica, e a interpretação deixa de ser entendida apenas pelo viés da
semelhança, porque, para eles, tudo que nos rodeia é interpretação. Nietzsche
não crê na existência de fatos, mas de interpretações; não há um significado
original, mas uma rede de significados prisioneiros um dos outros. Freud não se
ocupa da interpretação dos símbolos, mas da interpretação das interpretações. O
que Marx faz não é a interpretação das relações de produção, porém a
interpretação de relações que se constroem já como interpretações.
Esses três fundadores de discursividade provocaram o homem dos
séculos XX e XXI a considerar inválida toda idéia de origem e todo sentido de
acabamento, de completude. Incitado por tal proposta, Foucault desvela uma
teoria da interpretação que tem na sua base duas conseqüências:
A primeira é que a interpretação será sempre [...] a interpretação
de “quem?”; não se interpreta o que há no significado, mas, no fundo, quem
colocou a interpretação. O princípio da interpretação nada mais é do que o
intérprete. [...] A segunda conseqüência é que a interpretação tem sempre que
interpretar-se a si mesma, e não pode deixar de retornar a si mesma. [..] A vida
da interpretação[...] é acreditar que só há interpretações (FOUCAULT. 2000b,
p.61) (p. 220-221)
Não se pode, entretanto, considerar a interpretação como um ato que se propõe a
revelar um “núcleo interior e escondido” (Foucault, 1999ª, p. 53) do discurso a partir da
sua aparição e da sua regularidade, pode desvelar suas nervuras e suas novas e
inusitadas máscaras. (p. 221)
Muitos escritores acreditam que tecem sentidos ocultos, ou seja, que a sua
escrita abriga um “núcleo interior e escondido”; alguns leitores, fomentados por esse
clima místico, concebem a interpretação como uma busca do Graal. Todavia, a
linguagem da ficção, como adverte Foucault,
deve deixar de ser o poder que incansavelmente produz e faz brilhar as
imagens e converter-se, pelo contrário, em potência que as desamarra [...]
as anima com uma transparência interior que pouco a pouco as ilumina
até fazê-las explodir (FOUCAULT, 1990, p. 29) .
Nessa perspectiva, podemos entender que o texto também tem seus poderes.
Como disse Umberto Eco (1993), além das intenções do autor e das do leitor, há a
intenção do próprio texto. (p. 222)
A movência de sentidos é peculiar a todo discurso, principalmente no que diz
respeito ao literário, que traz em sua rede fios metafóricos que incitam a reinvenção, a
recitação, a re-interpretação. Todo discurso está entre quem projeta a enunciação e
quem a recebe, e esses dois sujeitos encontram-se numa rede que se re-constrói
continuamente, movida pelos procedimentos de controle do discurso. Os poderes e os
sentidos que o enunciador propõe podem ser silenciados diante do gesto de leitura de
quem o interpreta. Enquanto acontecimento, o discurso possibilita a irrupção de novas
interpretações. (p. 223)
Poe gerou Baudelaire, que gerou Mallarmé... É pela transgressão, pelo interdito,
pela morte, pelo simulacro que a literatura se desenha no tempo, se constrói, como
explica Foucault em “Linguagem e Literatura”: a literatura é uma linguagem que
autoriza, ao infinito, ao exegeses, os comentários, as duplicações, porque ela é uma
linguagem ao infinito (2000c, p.155) (p. 225)
Por acreditar na existência dessa miríade de interpretações, Fernando Pessoa cria
variados poetas-intérpretes para poetizar o mundo, cada qual com um ponto de vista
diferente o olhar complexo do ortônimo Pessoa, o olhar simples do mestre Alberto
Caeiro, o olhar humanista do pagão Ricardo Rei, o olhar caleidoscópico do futurista
Álvaro de Campos. Assim como o autor pode criar uma rede de variadas interpretações,
os seus leitores podem multiplicar os fios dessa rede. Logo, a mudança de posições é
decisiva no ato da interpretação. Provavelmente, Pessoa recolheu a lição da mudança
naquele que ele gostaria de ter reinventado ou mesmo superado – Camões: (p. 226)
Quando trata do conceito de interdição, Foucault explica-nos que não se tem o
direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que
qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa (1999a, p.9). (p.228)
FOUCAULT NAS VISIBILIDADES ENUNCIATIVAS
Em A Arqueologia do saber (1997), Foucault fundamenta uma teoria para a
análise dos discursos, a teoria arqueológica, na qual ele propõe que o analista
identifique e descreva o percurso: enunciado – formações discursivas – arquivo. Para
ele, é nesse percurso que o enunciado toma o status de ser considerado como enunciado
discursivo e, desse modo, tornar-se relevante na análise. Foucault (1997, p. 150, grifo
do autor) expõe: “o arquivo define um nível particular: o de uma prática que faz surgir
uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares, como tantas
coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação. [O arquivo] é o sistema geral da
formação e da transformação dos enunciados.
Contudo, em determinados momentos da leitura da obra desse autor um
problema se apresentou, qual seja: -- Foucault propôs a aplicação dos seus princípios
somente para os enunciados verbais (falados e escritos)? (p. 231)
Qual foi então a preocupação desse filósofo, enquanto pesquisado de uma teoria
para a análise dos discursos?
Em uma entrevista concedida a R. Bellour, publicada em um texto intitulado
“Sobre as maneiras de escrever a história”, Foucault argumenta.
Certamente nos interessamos pela linguagem; no entanto, não por termos
conseguido finalmente tomar posse dela, mas antes porque, mais do que nunca,
ela nos escapa. [...] Pessoalmente, estou antes obcecado pela existência dos
discursos, [...] esses acontecimentos funcionaram em relação à sua situação
original; eles deixaram traços atrás deles, eles subsistem e exercem, nessa
própria subsistência no interior da história, um certo número de funções
manifestas ou secretas [...] [Deste modo] meu objeto não é a linguagem, mas o
arquivo, ou seja, a existência acumulada dos discursos (FOUCAULT, 2000,
p.72, grifo nosso). (p. 232)
Se a singularidade do enunciado é um dos seus temas centrais,
observemos outra passagem, na qual ele procurou justificar sua compreensão do
enunciado como um acontecimento. Foucault argumenta:
[...] um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua
nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um
acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está
ligado, de um lado, a um gosto de escrita ou à articulação de uma
palavra, mas por outro, abre para si mesmo uma existência
remanescente no capo de uma memória, ou na materialidade dos
manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro, em
seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está
aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente,
porque está ligado não apenas a situações que o provocam, e a
conseqüência por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e
segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados
que o precedem e o segue. (FOUCAULT, 1997, p. 32, grifo
nosso). (p. 234)
Primeiramente ele esboça que o enunciado é um acontecimento, pois está
ligado à escrita e à palavra oral, mas ele abre para si mesmo uma existência
remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos,
dos livros e de qualquer forma de registro. Compreendemos que um dos modos
de o enunciado manifestar-se como acontecimento, obviamente, é por meio da
escrita e da oralidade, mas ele não se fixa nessas modalidades, pois ele abre
para si mesmo uma existência remanescente em vários outros campos, outras
materialidades, ou seja, a quaisquer [outras] formas de registro. Desse modo,
avaliamos que o enunciado pode estar num livro, numa fotografia, num quadro,
num filme ou em outra forma de registro. (p. 234)
O enunciado é também um acontecimento pelo fato de ser único e , ao
mesmo tempo, estar aberto à repetição, à transformação, à motivação. (p.235)
O que Foucault observou, portanto, não é a análise das estruturas da
linguagem ou da língua nos textos, mas o funcionamento dos discursos, pois
embora os enunciados estejam contidos nos textos, eles se encontram no
movimento das transformações dos sistemas de formação dos discursos. (p. 236)
No entanto, para que o enunciado seja efetivamente observado como
enunciado, além do seu aparecimento em uma série que se repete, em sujeitos
distintos, em campos enunciativos diferenciados e em materialidades diversas, a
teoria arqueológica também solicita que se observe o modo como essas
instâncias se relacionam nas formações discursivas que geraram o enunciado.
Foucault sugere, então, outros princípios no movimento da análise que, no caso,
e por hipótese, precisariam ser aplicados nos textos a serem analisados, uma vez
que as regras para a identificação do enunciado devem se relacionar e se ajustar
às regras das formações discursivas. Assim, o que ainda precisaria ser observado
são as possíveis relações entre os princípios para a identificação do enunciado
com os da formação discursiva. Ou seja, se todos os textos trabalham com o
mesmo objeto, qual a posição os sujeitos que estão pronunciado os discursos
(modalidades enunciativas), quais os conceitos aos quais os sujeitos recorreram
para os pronunciar, quais as estratégias (teóricas e temáticas) que se encontram
em torno dos pronunciamentos discursivos. (p. 239)
Pelo exposto acima, percebe-se que a teoria arqueológica oferece quatro
princípios para se identificar o enunciado: a série, o sujeito, o campo associado,
ao enunciado e a materialidade enunciativa. Deternos-emos com mais cuidado
nesse último princípio, interrogando o que Foucault compreendeu por
materialidade enunciativa. (p. 240)
ASPECTOS DO LEGADO DAS OBRAS DE FOUCAULT
Na sua tese de doutorado, História da Loucura (2002), publicada pela primeira
vez em 1961, Foucault já demonstrava uma caráter diferenciado na análise dos
discursos sobre a loucura, pois recorreu a várias materialidades para tratar dessa
temática, tais como: textos científicos, tratados, tabelas, dicionários, óperas, vários
textos literários. Dentre as materialidades enunciativas apresentadas por ele nesse livro,
destacamos o “prefácio” no qual ele o “abre” como um quadro de Frans Hals: As
regentes. (p. 243)
O Nascimento da Clínica (2001), publicado originalmente em 1963, é uma das
análises discursivas que conduziu Foucault a observar como a clínica médica se
instaurou. Nesse texto, o autor revela de que maneira o analista pode considerar o olhar
e a linguagem como aspectos intrinsecamente ligados e que devem ser investigados
enquanto tal. (p. 243)
Em As palavras e as coisas (1999), obra publicada originalmente em 1966,
Foucault dedica todo o Capítulo I, intitulado Las Meninas, analisando o quadro
homônimo de Velásquez. Em artigo escrito originalmente em 1967, As palavras e as
imagens, Foucault argumenta:
Estamos convencidos, sabermos que tudo fala em uma cultura: as
estruturas da linguagem dão forma à ordem das coisas. [...] às vezes, os
elementos de discurso se mantêm como temas através dos textos, dos
manuscritos recopiados, das obras traduzidas, comentadas, imitadas; mas
eles ganham corpo em motivos plásticos que são submetidos às
transformações; [...] outras vezes, a forma plástica se mantém, mas
acolhe uma sucessão de diversos temas [...]. O discurso e a forma-se
movimentam um em direção ao outro [...]. O discurso não é, portanto, o
fundo interpretativo comum a todos os fenômenos de uma cultura. Fazer
aparecer uma forma não é uma maneira desviada [...] de dizer alguma
coisa. Naquilo que os homens fazem, tudo não é, afinal de contas, um
ruído indecifrável. O discurso e a figura têm, cada um, seu modo de ser:
mas eles mantêm entre si relações complexas e embaralhadas. É seu
funcionamento recíproco que se trata de descrever (FOUCALT, 200, p.
78-80, grifo nosso). (p. 245)
Em 1969, Foucault publica o livro que compõe a teoria arqueológica – A
arqueologia do saber (1997). Por ser o livro em que ele fundamentou o método
arqueológico, seu objetivo nesse texto não era trabalhar com nenhuma análise empírica,
mas justificar teoricamente as análises que haviam sido feitas por ele até então, bem
como sinalizar as que ainda faria posteriormente. Devido a isso, Gregolin (2003),
pondera que, por esse caráter metodológico, a Arqueologia é um livro que não pode ser
lido independentemente dos anteriores. Remissões, recolocações, deslocamentos das
análises anteriores costuram as reflexões da Arqueologia. (p. 246)
Em 1973, Foucault divulga Isto não é um cachimbo (1988), texto no qual pode-
se observar, com toda a clareza, o pensamento do autor na análise enunciativa cujo
propósito é também estabelecer relações com a linguagem estética dos quadros de
Magritte, (des) vinculando-a da linguagem escrita. No texto em questão, Foucault
consegue evidenciar a harmonia recíproca entre o discurso pictórico e o escrito. (p. 246)
Vigiar e Punir (2002), publicado originalmente em 1975, seria um importante
empreendimento de Foucault, não somente para destacar as relações entre o poder e o
saber, mas também para demonstrar aos pesquisadores de que modo as linguagens
verbais e não-verbais podem ser analisadas conjuntamente. É nesse momento que
Foucault recorreu a diversas materialidades enunciativas, tais como quadros, plantas
arquitetônicas, projetos, gravuras e também, objetos culturais como as moedas.
Depois de Vigiar e Punir, o autor intensificou seus estudos direcionados para as
materialidades estéticas, incluindo nas suas pesquisas a análise de filmes. (p. 246)
Se Foucault parte do princípio de que as unidades do livro e da obra precisam ser
“colocadas em suspenso”, entendemos que ele apontou para a possibilidade do
enunciado não surgir apenas dentro de um livro e, tampouco, dentro da obra de um
determinado autor, mas também, em outros suportes que não somente esses. No
entanto, compreendemos, também, que, se o livro remete a uma forma que compõe a
escrita e a oralidade, Foucault igualmente “coloca em suspenso” essas materialidades
únicas de pronunciamentos discursivos. Se assim for, Foucault, “colocou em suspenso”
os suportes textuais que se apresentam apenas na forma da escrita e da oralidade.
Contudo, ele sugere que a análise se volte para os discursos, que, obviamente,
comportam também os enunciados advindos dessas modalidades de linguagem.
Sendo assim, no contexto em que essa citação se insere, pareceu-me que ele
inicia uma discussão sobre texto e discurso, e não propriamente sobre a escrita e a
oralidade, procurando justificar seu posicionamento ao discurso, e não propriamente ao
texto enquanto livro e obra, já que são essas últimas instâncias que ele está colocando
em suspenso. (p. 249)
Portanto, uma das compreensões que se pode fazer dessa passagem é que o
analista deve descrever acontecimentos discursivos, neutralizando na identificação
enunciativa as formas materiais. (p. 249)
Nesse sentido, a análise do discurso necessariamente não precisa se ater aos
enunciados falados e escritos, uma vez que a dispersão enunciativa, que é algo
intrínseco à teoria, induz ao encontro de outras instâncias materiais. (p. 250)
AS VISIBILIDADES ENUNCIATIVAS
Para Foucault:
Por um lado, é preciso, empiricamente, escolher um domínio em que as
relações corram o risco de ser numerosas, densas e relativamente fáceis
de descrever: e em que outra região os acontecimentos discursivos
parecem estar mais ligados uns aos outros, e segundo relações mais
decifráveis, senão nesta que se designa, em geral, pelo termo ciência?
(Foucault, 1997, p. 34, grifo nosso). (p. 251)
É interessante observarmos isso, uma vez que parece haver uma certa
contradição em Foucault, pois de um lado, nas práticas empíricas das suas pesquisas, ele
recorreu a materialidades que não se dirigem somente à escrita e à oralidade, no
domínio teórico, ou seja, no momento de propor a teoria arqueológica dos saberes
discursivos (condensada na ‘Arqueologia’); de outro, restringiu os objetos a serem
analisados pela arqueologia, acolhendo em seu método somente enunciados efetivos que
seriam falados ou escritos.
Deleuze oferece uma importante luz a essa aparente contradição:
A Arqueologia não era apenas um livro de reflexão ou de método gera – ela era
uma orientação nova, como que uma nova dobragem que ia retroagir sobre os livros
anteriores. A arqueologia propunha a distinção de duas espécies de formações práticas,
umas ‘discursivas’ ou de enunciados, outras ‘não discursivas’ ou de meios. [...] Aquilo
que a ‘Arqueologia’ reconhecia – mas não designava ainda senão pela negativa – como
meios não discursivos, encontrará em ‘Vigiar e Punir’ a forma positiva que atravessa a
obra de Foucault: a forma do visível, naquilo em que ele se diferencia da forma do
enunciável. [...] Existe uma pressuposição recíproca entre as duas formas. E, no
entanto, não existe forma comum, nem existe conformidade, nem mesmo
correspondência. Será neste ponto que ‘Vigiar e Punir” irá colocar os dois problemas
que a ‘Arqueologia’ não havia podido colocar porque se ficara pelo era e pelo
primado do enunciado dentro do saber. (DELEUZE, 1998, p. 54;56-57, grifo nosso).
(p. 252-253)
Nesse sentido, Foucault (1997, p. 218-221) faz alguns questionamentos
importantes, e suas respostas também não são menos significativas:
(...)
E responder duas vezes não. o que a arqueologia tenta descrever não é a
ciência em sua estrutura específica, mas o domínio, bem diferente do
saber.
Julgamos que a resposta de Foucault é esclarecedora, no sentido de se
compreender que ele está propondo a análise arqueológica direcionada não somente
para a ciência e aos enunciados escritos e falados, mas também, aos discursos advindos
dos saberes e que aglutinam enunciados com materialidades distintas.
Deleuze (1998) e Roberto Machado (1982), dentre outros fazem uma análise dos
textos de Foucault, reconhecendo que, desde o início dos seus escritos, ele trabalhou
com suas possibilidades de formas enunciativas: “o visível e enunciável”. (p. 255)
FOUCAULT, M. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento.
Coleção: Ditos & Escritos v. II. Organização e seleção de textos de Manoel Barros da
Motta. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
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