LIVRO DE OCORRÊNCIA; DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS AO VIGIAR E PUNIR
Anailton de Souza Gama1
Márcia Regina Chagas da Silva Flores2
Resumo: Este artigo apresenta uma análise discursiva realizada nos livros de ocorrência de uma escola da rede pública estadual do município de Nova Andradina-MS. Com pressupostos da Análise do Discurso de linha francesa, objetivamos verificar a violência simbólica que ocorre na escola através da prática de registro de ocorrências, culminando com as reflexões de Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir. Tendo em vista que a AD está vinculada às questões teóricas relativas à ideologia e ao sujeito e que essas se dão nas relações de poder que a linguagem exerce sobre as pessoas e que o “sujeito” é constituído na e pela a linguagem, enquanto contradição e desejo, e que a história é entendida como processo de produção de sentidos, enquanto a língua é um corpo espesso e denso transpassado de cortes, essas noções contribuem para a nossa pesquisa e para a compreensão da inter-relação entre os adolescentes-alunos e a escola, fazendo emergir temas transversais como a diversidade cultural, a ética e a cidadania.
Palavras-chave: livros de ocorrência; violência simbólica; sujeito; ideologia.
Introdução
O presente artigo propõe analisar o discurso contido nos livros de ocorrência,
confrontando com as reflexões de Michel Foucault em Vigiar e Punir. Tendo em vista a
função dos livros de ocorrência, de registrar como forma de vigiar e, ao mesmo tempo,
impor normas de comportamento, considera-se que o mesmo enquadra-se no gênero de
discurso autoritário, utilizado pela instituição escolar e que perceber a ideologia presente
em seu discurso é analisar as relações de poder e a manutenção do domínio, ou seja, o
controle sobre os alunos, como forma de mudar, transformar a identidade do sujeito.
Optamos por efetuar recortes dentro de um universo maior que constitui o
nosso material de pesquisa. Os registros foram recolhidos dos livros de ocorrência de uma
escola pública estadual do município de Nova Andradina-MS no ano de 2008 e, por
motivos éticos, são suprimidos o nome da escola, bem como de qualquer pessoa envolvida
1 Mestre em Letras, Área de Concentração em Estudos Lingüísticos pela UFMS-Câmpus de Três Lagoas. Professor da UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Pesquisador.2 Graduada em Letras pela UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.
na pesquisa. Assim, adotamos como metodologia os recortes desses discursos que seguem
numerados seqüencialmente.
De posse desses recortes, aventamos algumas considerações confrontadas com a
obra Vigiar e Punir e alguns conceitos básicos da Análise do Discurso com a intenção de
perceber as ideologias que se fazem presentes no discurso contido nesse material.
Convém assinalar que esse artigo é parte de um projeto maior, projeto de pesquisa
realizado pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade de Nova Andradina,
intitulado Violência na Escola (da definição de violência à prática discursiva na\da
escola) iniciado em 2008 e ainda em andamento, cujo objetivo é a construção de uma rede
de pesquisa cujo eixo se funda na violência na escola, como reflexão crítica sobre a
violência e seus espaços de atuação e circulação, preponderantemente, a violência na
escola. Este lugar que, no imaginário popular ou no discurso do senso comum, supunha que
estivesse imune aos “efeitos de sentido” da violência em geral ou de um certo tipo de
violência específica, cuja inscrição se apresenta de forma mais incisiva, tanto no cotidiano
escolar, quanto nas páginas de revistas, jornais e telejornais com certo destaque. Em tempo,
destaca-se, também, a amplitude deste projeto de pesquisa, tendo em vista que o mesmo
agrega em seu bojo diversas instituições de ensino superior do país, dentre elas:
UNIVERSIDADE DE FRANCA- SP, UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRA,
UERJ, UNICAMP e UEMS, da qual participamos como colaborador e pesquisador com o
tema Livros de Ocorrência: violência simbólica na escola.
1. Pressupostos teóricos
Com o advento da globalização e do neoliberalismo, novos valores se
intercalam, cruzam-se ou excluem-se, impondo novos discursos à sociedade. São esses
discursos culturalmente formados para atender a valores pré-estabelecidos, mas nunca
totalmente homogêneos. Dessa maneira, qualquer pesquisa que envolva identidade e
discurso, articula-se a partir de um período determinado sócio-economicamente,
politicamente e também culturalmente, tendo em vista os sujeitos nela envolvidos. Ao
mesmo tempo, observa-se que, no mundo contemporâneo, a globalização, bem como o
neoliberalismo, produz interdiscursos e discursos heterogêneos que caracterizam a
identidade cultural que fazem voz aos acontecimentos, inevitavelmente julgando os fatos a
partir das diferenças, portanto, nossa pesquisa baseia-se numa abordagem qualitativa, com
o objetivo de refletir sobre o funcionamento do discurso e relações de poder nos livros de
ocorrência, em determinadas condições históricas e sociais. Registra-se que os livros de
ocorrência surgem no contexto educacional com a democratização do ensino, tendo em
vista o grande contingente de alunos das diversas camadas sociais num mesmo espaço e a
inserção de alunos das mais diversas circunvizinhanças para a zona urbana e, como forma
de ‘controlar’ o comportamento dos alunos ditos ‘indisciplinados’ adota-se a forma de
registro em questão onde vão relatados os ‘desvios de condutas’ com o objetivo de ‘vigiar’
e ao mesmo tempo ‘punir’ os reincidentes, ou mesmo encaminhá-lo para instâncias
superiores que lidam com os ditos ‘delinquentes’.
2. Sobre a Análise do Discurso
Este artigo situa-se na perspectiva da Análise do Discurso de linha Francesa,
campo de estudo que surgiu com Michel Pêcheux (1969) e que possui como base teórica a
relação entre linguagem e exterioridade no que concerne ao contexto ideológico, histórico e
social, ou seja, às condições de produção do discurso, que são sempre representadas pelas
formações imaginárias de interação entre o ouvinte e o falante. A Análise do discurso de
linha francesa (AD) como é conhecida, é um campo teórico da Lingüística, transdisciplinar,
que introduz reflexões sobre a linguagem a partir das Ciências Humanas, concebendo o
“discurso” e sua materialidade como objeto de análise histórico-social. Esse campo teórico
constituído pela tríade Lingüística (releitura de Saussure proposta por Pêcheux), Psicanálise
(releitura de Freud feita por Lacan) e Marxismo (releitura que foge da vulgata marxista
proposta por Althusser) surgiu com o objetivo de criar uma teoria crítica da “interpretação”
que superasse a hermenêutica que desconsiderava o sujeito e a sua historicidade bem com
as condições de enunciação. Embora a AD se constitua na relação desses três “campos do
saber” (POSSENTI, 2005), ela não se submete a nenhum deles. De acordo com Orlandi
(2001, p. 19):
a) a língua tem sua ordem própria, mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se da lingüística, ela reintroduziu a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem);
b) a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos);
c) o sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história não tendo controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
Ao abordar a língua como processo ou como movimento, ou seja, como ato
discursivo, a AD abriu a possibilidade de atuar no limite do social com o discursivo; nas
palavras de Orlandi (2001, p. 15), a AD atua:
como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana.
Iniciada na década de 60, do século XX, a AD sofreu uma profunda evolução
teórica que pode ser demarcada em três períodos. De forma sucinta, pode-se dizer que a
“primeira geração” preocupou-se em evidenciar as particularidades das “formações
discursivas”. Já a “segunda”, em reação aos pressupostos anteriores, deu relevância às
teorias da enunciação. A “terceira”, ainda em definição, conduz suas reflexões aos
benefícios que a AD pode trazer ao estudo do vocabulário, ou seja, “às palavras do
discurso” dando ênfase ao processo de interação e argumentação; e é, por este motivo,
segundo Maingueneau (1997, p. 22) que a enunciação e a pragmática têm se revelado como
as novas tendências que prometem trazer substanciais contribuições ao campo da
linguagem.
Segundo Orlandi (2001, p. 99), a negação da transparência de sujeito e de sentido
é um princípio elementar na AD. Essa afirmação se apóia na articulação de três áreas do
conhecimento já citadas anteriormente: Marxismo, Psicanálise e Lingüística que,
respectivamente, fundam seus pressupostos na opacidade existente na história, no sujeito e
na língua. Tudo isso porque a re-configuração de indivíduo para sujeito se dá no discurso –
materialização da ideologia responsável pela ilusão de evidência de sentido e de sujeito - da
relação da língua com a história ocorrendo num deslocamento de sentidos. Assim, para a
AD (idem, p. 99), o sujeito é descentrado pelo inconsciente e pela ideologia na sua relação
com o simbólico, uma posição entre outras, projetada a partir do seu lugar no mundo para
sua posição no discurso: “situação social (empírica)” transformada em “posição sujeito
discursiva” (idem, p. 99). Porém, a condição de existência de sentido e de sujeito é a
submissão deste à língua (idem, p.100).
Assim, a AD, ao se constituir em um campo teórico, elabora um arcabouço
instrumental-teórico que considera as condições históricas de enunciação, a historicidade
dos “sujeitos” (PÊCHEUX, 1997, p. 149), destacando que “só há práticas através de e sob
uma ideologia; 2) só há ideologia pelo sujeito e para os sujeitos”, e dos “discursos”
(PECHEUX, 2002, p. 56) enquanto “índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-
históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito
dessas filiações”.
Ao enunciar, o sujeito o faz a partir de uma conjuntura específica em que estão em
jogo, não apenas o que discursa, mas as tensões sócio-históricas e ideológicas, pois o
espaço da enunciação é fortemente marcado pelas tensões dos “aparelhos ideológicos do
estado” (ALTHUSSER, 1985, p. 68).
Pêcheux (1997, p. 29-32) faz uma distinção do discurso como “estrutura” e do
discurso como “acontecimento”. O discurso como estrutura, constitui-se em espaços
“logicamente estabilizados” por suas características estruturais próprias das ciências exatas,
biológicas. Já o discurso como acontecimento pode apresentar uma estabilidade relativa ou
simplesmente não as apresentam, uma vez que se constitui num espaço estrutural das
humanidades, ou seja, “todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-
reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação
nas filiações sócio-históricas de identificação” (idem, p.56).
Para Pêcheux (1997, p. 160), a evidência de “sentido” na linguagem é um efeito
ideológico determinado pela “formação discursiva” (FD) que o sujeito se identifica ao
enunciar, ouvir, ler, escrever. A FD constitui-se na “matriz” do sentido. Assim, uma
seqüência verbal poderá ter mais de um sentido se for inscrita em FDs diferenciadas. Por
configurarem-se em marcas das contradições sócio-ideológicas, as FDs são heterogêneas:
resultando num emaranhado de dizeres e de sentidos. Não há uma delimitação rígida entre
as FDs, mas sim, uma intersecção constante entre elas, ou seja, uma FD é atravessada e
constituída pelo seu “efeito de sentido” (idem, p. 164) em maior ou menor preponderância.
Assim, o sentido:
de uma mesma palavra, uma expressão e uma proposição podem receber sentidos diferentes – todos igualmente “evidentes” – conforme se refiram a esta ou aquela formação discursiva, é porque – vamos repetir uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria “próprio”, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantém com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva. (PÊCHEUX, 1997, p. 164).
Pêcheux (idem, p. 92), para referir-se ao mecanismo de produção dos discursos,
cunha o conceito “processos discursivos”. Conforme este teórico, “processos discursivos”
diferenciados têm como base comum a língua e se desenvolvem a partir das leis internas de
um determinado sistema lingüístico. Indiferentemente da classe social a qual o “indivíduo”
pertença e das crenças que possua, o sistema lingüístico é o mesmo utilizado por
“indivíduos” situados em diferentes estratos sociais. Porém, o que acaba por distinguir e
revelar a “formação social” (PECHÊUX, 1997) a qual o sujeito pertence é a FD na qual ele
se filia no processo da enunciação, pois, “todo processo discursivo se inscreve numa
relação ideológica de classes” (idem, p. 92) e emerge de um “sistema de relações de
substituição, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos lingüísticos –
significantes – em uma formação discursiva dada” (idem, 161).
Assim, Pêcheux (1997, p.172) considera as FDs como o “espaço de reformulação-
paráfrase”: lugar onde os sujeitos e os sentidos são constituídos. A FD é vista por ele como
um modo de ser do sujeito que, ao ser interpelado, revela sua visão de mundo. O
assujeitamento ocorre no momento em que o indivíduo produz o seu enunciado, pois, para
produzi-lo o enunciador obrigatoriamente se inscreve em uma determinada FD. É a FD que
determinará o sentido do enunciado, uma vez que ela “representa na linguagem” as
formações ideológicas que lhes são correspondentes.
Para Foucault (1997, p. 136), o discurso deve ser pensado como prática discursiva:
não a podemos confundir com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada num sistema de inferência; nem com a ‘competência’ de um sujeito falante quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, numa dada época, e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa.
Foucault tenta liberar “os discursos” das análises lingüísticas ou do tratamento do
discurso como uma proposição. Foucault trata-os como práticas que determinam a
historicidade dos enunciados. Para Foucault, o discurso é um acontecimento e, para analisá-
lo é necessário que nos situemos dentro dos estudos lingüísticos e, ao mesmo tempo, fora
deles, ou seja, o objeto de nossas reflexões não é a materialidade lingüística, mas a
constituição dos discursos e a possibilidade de serem enunciados. Porém, só é possível
fazer uma análise dos discursos porque eles têm uma existência material, porque eles
contêm as regras da língua, de um lado, e aquilo que foi efetivamente dito, de outro.
Depreendido assim os efeitos da aliança entre marxismo e lingüística, a AD objetiva
devolver ao discurso a sua espessura histórica; em outras palavras as análises que tomam os
discursos como objeto devem considerar o modo como historicamente efetua-se o
cruzamento entre os regimes de práticas e as séries enunciativas dispersas e heterogêneas
selecionadas pelo analista.
O conceito de “formação ideológica”, FI, foi elaborado por Pêcheux (1997, p. 146)
a fim de determinar o posicionamento das diferentes classes sociais em face da realidade:
na medida em que considera-se o sentido como um efeito ideológico determinado pelo
lugar social de onde o sujeito fala. Cada FI corresponde uma FD, constituindo-se num
palco onde acontece as relações de confrontos ideológicos presentes nas formações sociais.
Nesse sentido, todo discurso encontra sustentação em “já-ditos” produzidos
anterior e exteriormente ao que está sendo dito. Esse pressuposto é base da noção de
“interdiscurso” (PÊCHEUX, 1997, p. 162-4), que representa as FIs presentes no interior das
FDs. A interpelação do sujeito pela ideologia acontece no nível do interdiscurso no
momento em que o sujeito da enunciação se identifica com o “sujeito universal”.
Já a materialização lingüística da “fala” do sujeito se dá no “intradiscurso”, ou
seja, no “funcionamento do discurso, em relação a si mesmo”, sendo este um efeito
reflexivo, no interior do próprio interdiscurso (idem, p. 167).” Ao falar, o sujeito deixa
“rastros” lingüísticos a partir dos quais se constrói uma aparente evidência de sentido. É no
intradiscurso, “fio discursivo” (idem), que se obtém as condições para as análises
discursivas.
Outro conceito da AD, relevante neste estudo é o de formações imaginárias, “que
designam o lugar que A e B se atribuem cada um a ‘si’ no discurso e ao ‘outro’, a imagem
que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro”, uma vez que se entende que esses
lugares são “representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo”
(PÊCHEUX, 1997, p. 82).
Fuchs (1982) vem “falar” sobre o processo parafrástico que estuda uma certa
relação de equivalência de sentidos entre um conjunto de enunciados. Porém, esses sentidos
não se encontram de forma latente nas enunciações, mas são produzidos pelo discurso, no
momento da sua produção, significando diferentemente por/para sujeitos. O conceito de
paráfrase é diferente para lingüistas e teóricos do discurso: enquanto os primeiros tomam o
referente como ponto de partida para a constituição dos sentidos; os segundos partem em
busca da “identidade de sentido” (FUCHS, 1992, p. 29), embora ambos encontrem seus
objetivos a partir da materialidade lingüística. Os efeitos da história na língua promovem
um deslocamento semântico constante na constituição dos sentidos: fazendo-os apenas
próximos, mas nunca idênticos ao original - isso porque o momento histórico de sua
produção é sempre outro. Assim, esse processo discursivo se dá numa tensão constante
entre o “Mesmo e o Outro”.
Já o conceito de “pré-construído”, ainda de Pêcheux (1997, p. 102) foi elaborado
para referir-se ao elemento que “pré-existe” ao sujeito. Elaborado no interior do
“interdiscurso” (idem), o pré-construído aproxima-se da noção de senso comum, ou seja,
àquilo “que todo mundo sabe”. Apresentando-se sob a forma de evidência de um “contexto
situacional”, encontra-se presente no interior das formações discursivas e atua como uma
espécie de “sujeito universal” - que seria o “Outro” do discurso, em termos lacanianos,
(idem, p. 133), aquele que serve de referência para o sujeito enunciador no processo de
identificação, resultando, fatalmente, na sua interpelação.
Pêcheux (1999, p. 59-71), em “Papel da memória”, relata uma discussão entre
lingüistas, teóricos do discurso e semioticistas sobre o papel da memória nos discursos.
Esse debate levou-o a observar que a imagem apresenta-se como ponto de convergência
entre texto/discurso e imagens, nesses diferentes campos teóricos, exercendo um papel
fundamental na memória discursiva: isso porque um acontecimento histórico (enunciado)
pode vir a se inscrever no interior das FDs (interdiscurso ou memória) funcionando como
um ícone, que permite aos sujeitos falantes projetarem as suas falas. Ou seja, a imagem
funciona como um “operador de memória social”, na medida em que descreve “um
percurso escrito discursivamente em outro lugar” (idem, p. 51), oferecendo aos sujeitos um
“trajeto” de leitura, que pode romper-se ao choque de um fato de discurso, dando margem a
outras leituras. No entanto, referem-se à memória de sentidos, inscrita em práticas sociais, e
à memória histórica; não à memória neurobiológica:
da memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados , discursos-transversos, etc.). (idem, p.53).
A “memória discursiva” é, então, um espaço tenso, movediço, de deslizes e
retomadas, confrontos e regularização, polêmicas e contra-discursos e encontra-se em
constante processo, pois, pode tanto recuperar um enunciado num discurso como rejeitá-lo,
num determinado momento histórico (idem, p. 56). Entre atualizações e apagamentos,
interessa(m) ao analista o(s) efeito(s) produzido(s) por tal mecanismo.
Para Orlandi, (1999, p. 59-71), a memória é constituída por silêncios,
silenciamentos, sentidos não ditos e silêncios a não dizer. Por seu caráter simbólico, o
discurso age politicamente nos indivíduos, interferindo diretamente em suas crenças e
práticas cotidianas. A irrupção de um novo acontecimento discursivo pode vir a
desencadear, numa sociedade, novos modos de ser e agir. Porém, o sentido não é dado pelo
sujeito de forma deliberada, pelo contrário, é delimitado e regido pelas instituições,
conforme os interesses do momento.
Assim, as diferentes formas de poder agenciam as identidades e as controlam,
instituindo os sentidos. Trata-se de um “processo histórico-político-silenciador” (idem, p.
62) que apaga as significações que já foram possíveis, de-significadas; como também
interdita, censura (silencia), aquelas que não se fazem convenientes aos interesses dessas
instituições num determinado contexto sócio-histórico.
A interdisciplinaridade e as relações entre identidade, história, formação discursiva
e linguagem constituem a base para análise do discurso presentes nos livros de ocorrência,
investigando aspectos relativos ao discurso dos ‘controladores institucionais’, tendo em
vista que são eles que registram o que ali vai escrito, no que se refere à suposta construção
ou re-construção dessa “nova” identidade frente à sociedade; refletindo sobre o discurso da
vigilância dos alunos ‘problemas’, suas identidades e representações imaginárias.
Partimos da perspectiva de que as constantes transformações políticas e dilemas
cotidianos influenciam na construção das identidades dos adolescentes envolvidos nessas
ocorrências. Entre os pesquisadores que se interessam pela questão da Identidade,
recorremos a Hall (2005), Woodward (2000) e outros; todos defendem que as identidades
não se apresentam como “prontas e acabadas”, por estarem, constantemente, sendo “re-
construídas”, ocasionando a “descentralização do sujeito”.
Segundo Coracini (2003), identidade é um produto de interesse de época. Ela cita
Souza ao dizer que a identidade é o que, em princípio, nos diferencia dos “outros” (p. 240).
De acordo com Woodward (2000, p.09-10), a identidade é marcada pela “diferença”, sendo
essa diferença sustentada pela “exclusão”, a negação final de tudo que se opõe ao que já
está concebido como verdade “pronta e acabada”.
Nosso arcabouço teórico envolveu a Análise do Discurso, disciplina que surgiu na
França em fins dos anos 60, tendo Michel Pêcheux como seu principal articulador, tendo
como princípio desvendar os fios em que se encontram os nós que amarram as redes
discursivas nesses livros de ocorrência, por meio da história, sujeito e língua.
Para Foucault (2003, p.52-53), os discursos devem ser tratados como práticas
descontinuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram questionando sempre a
“vontade de verdade”.
A ideologia, o acontecimento e a história se relacionam a partir do contexto do
qual fala o sujeito. De maneira que o “discurso” foi para Pêcheux, e continua sendo para os
analistas dessa vertente teórica, o objeto de uma busca infinita, nos instigando a prosseguir
nesse complexo e infindável campo de estudos trazendo indícios de ruptura que o trabalho
de um analista procura desvendar, compreender e interpretar, tentando detectar o momento
em que o sentido toma sua forma.
A AD encontrou no Brasil um terreno fértil de aplicabilidade e reflexão, não um
dispositivo apenas para analisar discursos na ordem estritamente imbricadas com o poder.
Uma dessas reflexões dizem respeito a Possenti (2004), que concebe a AD como “gestos de
rupturas”, marcando dois momento: um antes e outro depois do surgimento desta linha de
análise. Conforme Possenti (idem), é importante ressaltar, que nem tudo está “resolvido”,
mas da forma que se apresenta hoje, foi um desenvolvimento notável. Sua primeira reflexão
recai sobre as condições de surgimento da AD, propõe pensar a concepção de discurso
introduzida por esse campo teórico sob a ótica da ruptura, a qual se constitui num modo de
analisar a história do conhecimento. O autor explica que o “conhecimento não se produz
por acumulação, mas por saltos e mudanças de rumo em relação a etapas anteriores” uma
vez que “as novas teorias não são vistas como desenvolvimento e sofisticação das
anteriores, mas como efeito, em boa medida, de seu abandono, seja por estarem
‘esgotadas’, seja porque novas problemáticas, novas vontades de verdade tomam seu lugar
tanto teórica quanto politicamente” (POSSENTI, 2004, p. 355).
Possenti (2004: p. 353-392) expõe de maneira bastante objetiva os “gestos de
rupturas” sob os quais a AD constituiu seus fundamentos teóricos. Dentre esses gestos,
torna-se pertinente, apresentar concisamente algumas dessas rupturas.
Na perspectiva possentiana, a noção de interpretação é ressignificada na AD no
momento em que este campo teórico “rompe com a concepção de sentido, como projeto do
autor”, descartando a “idéia” de que há um sentido originário a ser descoberto. A língua
para este campo teórico “não é transparente, mas tem uma ordem própria (que a lingüística
descreve)”. Ao considerar como relevante às condições de produção, contexto histórico
amplo, a AD assinala “a sua ruptura com a pragmática em um de seus fundamentos”. Já o
sentido é concebido pela AD numa “versão peculiar: o sentido de uma palavra (ou
expressão mais ou menos equivalente) se resolve quando uma delas pode ser substituída
por outra [...] o sentido é um efeito de substituibilidade das expressões”. A noção de
acontecimento “permite romper, em primeiro lugar, com uma história que procurasse, em
tudo, o sentido. Em segundo lugar, com a relação discurso-enunciação com evento singular.
Esta concepção está situada claramente na ruptura com qualquer concepção de história
linear e teleológica”. A noção de interdiscurso, “rompe com conceitos que, de alguma
forma, fundamentam-se sobre os pressupostos da homogeneidade e do centramento, seja do
discurso, seja do sujeito: para a AD, os discursos não são independentes uns dos outros e
não são elaborados por um sujeito”. Falante, locutor e emissor são concepções de sujeito
descartadas pela AD. Para este campo teórico “há sujeitos (alternativamente, enunciador),
mas estes não são unos, livres, caracterizados pela consciência (isto é, sem inconsciente,
sem ideologia) e tomados como origem”.
Ao teorizar sobre as condições de produção, a AD francesa propõe considerarmos
tudo o que está externo à linguagem, para tanto observamos que o homem influencia o que
está ao seu redor e transforma o que está em sua volta, ao mesmo tempo em que é um
produto do meio em que vive. O mundo contemporâneo é resultado do capitalismo e da
globalização; o primeiro um sistema político e econômico historicamente construído pelo
homem, o segundo, o resultado do próprio capitalismo.
O grande desafio da AD francesa está em articular e compreender por meio das
condições de produção do discurso a construção histórica da humanidade que não se faz
somente em meio às grandes turbulências, catástrofes e desafios, mas também por meio dos
pequenos acontecimentos, quase sempre desapercebidos, porém esquecidos, e de
fundamental importância para a compreensão da vida humana.
3. Dos discursos dos livros de ocorrência
Compreendendo o livro de ocorrências como um documento, no qual a escola
registra os atos indisciplinares cometidos pelos alunos e entendendo que o mesmo funciona
como um procedimento de punição para os alunos que não respeitam as normas impostas
pela escola, o livro de ocorrências desempenha um papel fundamental no que diz respeito à
tentativa de a escola fazer com que os alunos sejam disciplinados. Em outras palavras, ele é
tido como uma espécie de exame que visa avaliar e classificar o aluno em relação ao seu
comportamento indisciplinado.
No horizonte dos saberes lingüísticos contemporâneos, a associação entre
identidade, discurso, história, instituições e práticas faz-se presente, transcendendo o campo
dos vários enfoques teóricos que lhe dão sustentação para se inserir no debate político-
cultural sobre a (pós)modernidade e seus processos constitutivos. Numa perspectiva
foucaultiana, os livros de ocorrência podem ser considerados como uma espécie de exame,
no qual os procedimentos são acompanhados por um sistema que visa registrar, isto é,
documentar tudo intensamente, ou seja, o uso do “poder da escrita” no funcionamento da
disciplina.
No livro de ocorrência em questão, analisamos alguns recortes abaixo:
R13: “[...] a inspetora de alunos trouxe o aluno à coordenação por estar matando aula [...]”
Analisando o recorte acima, temos um poder instituído em que “inspetora de
alunos” pressupõe, no universo escolar, uma autoridade, cuja função é ‘inspecionar’ os
alunos, vigiar suas condutas a fim de que os mesmos não oscilem para a indisciplina. Essa
relação inspetora versus alunos já pressupõe uma relação de poder marcada, tendo em vista
que ela é institucionalizada.
Para Foucault (2004, p. 236) “o discurso não é a vida”, seu tempo não é o nosso,
nunca viveremos mais que um discurso. Segundo Foucault (1986), o corpo deixa de ser
chagado para prostar-se no “cativeiro”, marcando o início da privação da liberdade e do
encarceramento da alma, mais vantajoso e econômico, porque reunidos os delinqüentes,
num lugar institucionalizado, agentes atuam na administração do ego desses indivíduos,
para impor-lhes a recuperação que a sociedade tanto almeja fazendo “funcionar a idéia do
3 Utilizaremos, para fins de análise, as marca R1, R2 e assim sucessivamente, para assinalar os recortes utilizados. Os recortes foram transcritos respeitando a grafia original do documento. Os grifos são nossos.
crime como um sinal de punição” (p. 106) e pagando “com essa moeda [...] a sua dívida à
sociedade” (idem). O corpo sob vigilância deixa de ocupar-se com inutilidades e coloca-se
à disposição de uma disciplina de exercícios regulares a fim de se mostrar possuidor de
uma conduta melhorada, passando a ser domesticado e modelado, sendo assim,
administrado por entidades de poderio que lhe garantem a formação e\ou a transformação.
O indivíduo, em qualquer instituição, passa a ser classificado e ter a individualidade
partilhada por esses instrumentos de poder tendo em vista que essas instituições “ainda que
não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos ‘suaves’
de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e suas forças, da utilidade
e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão” (p. 25). A relação entre o corpo
e a disciplina é necessária para a ordem e o adestramento social, este último entendido
como a arte de disciplinar, exercer poder sobre indivíduos, segundo Foucault (idem, p. 143)
“a disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que torna os
indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício”. Para
Foucault “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser
transformado e aperfeiçoado”, enfim, a finalidade dessas instituições (livros de ocorrência)
é a de promover sobre o sujeito (aluno) a transformação de seu comportamento, para um
retorno útil e dócil à sociedade, porém, para Foucault, em Microfísica do Poder (1988, p.
134) ali “[...] não se procurava reeducar os delinqüentes, torná-los virtuosos, mas sim
agrupá-los num meio bem definido, rotulado, que pudesse ser uma arma com fins
econômicos e políticos”. Daí o caráter de organismo econômico e político dessas
instituições que, segundo Foucault (1988, p. 135) “está [...] ligado a um projeto preciso,
serve agora a uma outra estratégia”.
Em Foucault (1987, p. 117-137), sua atenção se volta para as práticas do poder,
para as relações que se estabelecem entre o saber e o poder. Foucault analisa, então, os
dispositivos do poder nas “sociedades disciplinares”, as instituições desenvolvidas para
controlar os corpos nas prisões, nas fábricas, nas escolas, etc. Foucault aborda, também, as
“técnicas de si”, a “governamentabilidade”, ou seja, os procedimentos de subjetivação que
constituem, para os sujeitos, a idéia de identidade. O sujeito, é, portanto, o lugar para onde
Foucault olhará na construção de sua obra. Ele é o seu objeto, seja enquanto objeto de
poder, seja enquanto objeto de construção identitária. Pensando o “sujeito” como uma
fabricação, uma construção realizada, historicamente, pelas práticas discursivas, é no
entrecruzamento entre discurso, sociedade e história que Foucault observa as mudanças nos
saberes e sua conseqüente articulação com os poderes. O sujeito é o resultado de uma
produção que se dá no interior do espaço delimitado pelos três eixos da ontologia do
presente (ser-saber, ser-poder, ser-si).
Ainda no recorte em questão, em “matando aula”, o ato de matar aula é
considerado um ato indisciplinar cometido pelo sujeito (aluno), assim, há um
descumprimento nas regras estabelecidas pela instituição, pois a mesma estabelece o que
pode e o que não se pode fazer, o que deve e o que não se deve fazer dentro do âmbito
escolar.
R2: “[...] o aluno estava tentando matar a quinta aula e a professora trouxe-o a coordenação que o advertiu [...]”R3: “[...] o aluno chegou atrasado na aula, atrapalhando não cumpre com os deveres[...] e o advertiu
[...]”
Em R2, o aluno é chamado a atenção por estar “tentando matar a quinta
aula” e, por estar tentando, recebe uma punição, sendo advertido. Já em R3 “chegou
atrasado” “atrapalhando não cumpre com os deveres” e “e o advertiu”, percebemos
que os discursos nos remete a idéia de que o sujeito deve sempre aceitar as regras
estabelecidas, sendo sempre conivente com tudo o que lhe é imposto. No conceito escolar,
o sujeito que não cumpre com os deveres e as normas impostas, é visto como
indisciplinado, por isso é digno de punição. Sendo assim, a escola procura observar esses
comportamentos tidos como anormais, através de uma “inspeção” constante que visa
qualificar, classificar e punir. Desta maneira, a escola faz uso do livro de ocorrências como
forma de vigiar e punir, todo sujeito que não se encaixe nas normas estabelecidas pela
mesma.
A AD, ao se constituir em um campo teórico, elabora um arcabouço instrumental-
teórico que considera as condições históricas de enunciação, a historicidade dos “sujeitos”
(PÊCHEUX, 1997, p. 149), destacando que “só há práticas através de e sob uma ideologia;
só há ideologia pelo sujeito e para os sujeitos”, e dos “discursos” (PECHEUX, 2006, p. 56)
enquanto “índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação,
na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações”.
Ao enunciar, o sujeito o faz a partir de uma conjuntura específica em que estão em
jogo, não apenas o que discursa, mas as tensões sócio-históricas e ideológicas, pois o
espaço da enunciação é fortemente marcado pelas tensões dos “aparelhos ideológicos do
estado” (ALTHUSSER, 1985, p. 68).
Tendo como base os pressupostos teóricos da AD e os objetivos deste estudo,
pretende-se apresentar ideologias materializadas em discursos produzidos oficialmente no
documento oficial (livro de ocorrência), numa tentativa de resgatar e dar visibilidade a
alguns sentidos presentes nesse instrumento legal. Parte-se do pressuposto de que todo
discurso tem uma história, uma memória e que sua problematização implica investigar os
processos de origem, construção e funcionamento. A proposta é abordar de forma rápida o
desenvolvimento legal sobre o instrumento, também legal, seus sentidos e funções, tendo
em vista que “o sujeito se constitui na e pela linguagem” (CARDOSO, 1999, p. 49).
Para Pêcheux (2006, p. 160), o discurso “é sempre pronunciado a partir das
condições de produção dadas”, ele “pode ser um ato político” que se “conjuga sempre sobre
um discurso prévio, ao qual ele atribui um papel de matéria-prima”. Assim, os discursos
concebidos nesse instrumento legal são práticas discursivas que correspondem a certos
“efeitos de sentido” (idem, p. 164) das “condições ideológicas de reprodução\transformação
das relações de produção” (idem, p. 180).
Essa posição-sujeito é condição necessária que permite ao sujeito enunciar nos
espaços das relações sociais, marcados pelas disputas históricas. A posição-sujeito
“determina o que pode e deve ser dito” (PECHEUX, 2006, p. 190), o que constitui um
intrincado jogo de estratégias, dentre as quais, as estratégias que o sujeito pode e deve
constituir no embate social.
Analisemos os recortes abaixo selecionados:
R3: “[...] o referido aluno estava indisciplinado na aula... mandou o aluno se retirar da sala e o mesmo assina
[...]”
R4: “[...] o aluno discutiu com a aluna... na aula de história o aluno fica advertido e assina [...]”
R5: “[...] o referido aluno após o recreio na 4ª aula, chegou atrasado e a profª... pediu para registrar. O mesmo
fica ciente e não fará mais e assina [...]”
Nos recortes acima efetuados, o que se percebe em destaque é o ato de assinar:
esse ato de assinar é uma forma de legitimar o que foi escrito, de fazer com que o sujeito
assuma a sua responsabilidade diante do ato cometido. Nas sociedades atuais, o ato de
assinar vale como assumir-se como responsável. Ao mesmo tempo, o efeito de sentido que
se adquire aqui é o da intimidação; notamos que a escola procura intimidar o aluno através
dessa rede de anotações escritas, procurando comprometer esse aluno numa quantidade de
documentação que tem por objetivo captar e fixar, fazendo com que o sujeito responda por
seus atos. Esse efeito de sentido culmina com o “sujeito” constituído pela linguagem,
enquanto contradição e desejo, a história como processo de produção de sentidos e a língua
como um corpo espesso e denso transpassado de cortes; noções que contribuem para a
evolução do desenvolvimento da inter-relação entre as crianças e os adolescentes das
escolas com a educação, a diversidade cultural, a ética e a cidadania.
Dessa forma, observamos que a escola procura exercer sobre os alunos uma
autoridade e, desta maneira, formar sujeitos obedientes às regras e ordens impostas e, que
as mesmas devem ser deixadas funcionar automaticamente nele, tornando-o dessa maneira
“corpos dóceis”, como afirma Foucault (1987, p. 118): “é dócil um corpo que pode ser
submetido [...]” aos padrões impostos, que não foge às regras estabelecidas, “que pode ser
utilizado” pelo sistema que prefere sujeitos coniventes com tudo que lhes é estabelecido,
“que pode ser transformado” pela escola que exerce o papel de disciplinar, de tentar mudar
a identidade do aluno, “e aperfeiçoado” para a sociedade que visa ter um sujeito
manipulável que não conteste suas regras e normas. Conforme o princípio da especificidade
“...o discurso não pode ser tomado como um jogo de significações prévias; ao contrário, ele
deve ser concebido como uma violência que fazemos às coisas... (GREGOLIN, 2004, p.
106).
A AD francesa se insere na análise das significações, por teorizar que os
enunciados operam estrategicamente as formações ideológicas com as formações
discursivas, e que a materialidade desses processos se faz antes de tudo pelas condições de
produção.
Ao teorizar sobre as condições de produção, a AD francesa propõe considerarmos
tudo o que está externo à linguagem, para tanto observamos que o homem influencia o que
está ao seu redor e transforma o que está em sua volta, ao mesmo tempo em que é um
produto do meio em que vive. O mundo contemporâneo é resultado do capitalismo e da
globalização; o primeiro um sistema político e econômico historicamente construído pelo
homem, o segundo, o resultado do próprio capitalismo.
O grande desafio da AD francesa está em articular e compreender por meio das
condições de produção do discurso a construção histórica da humanidade que não se faz
somente em meio às grandes turbulências, catástrofes e desafios, mas também por meio dos
pequenos acontecimentos, quase sempre desapercebidos, porém esquecidos, e de
fundamental importância para a compreensão da vida humana, dentre eles, os livros de
ocorrência.
Segundo Foucaut “(2005) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder pelo qual nós queremos
apoderar” (FOUCAULT, idem, p.19). O discurso apoiado sobre um suporte e uma
distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos sempre uma vontade de
verdade. Seja “dominantes” ou “dominados”, o discurso operará sempre para apoderar-se
do “poder-saber” para a legitimidade de uma verdade discursiva.
É a legitimidade constituída do “poder-saber”, tido como verdadeiro nos discursos,
tantos os institucionais, quanto os não formais. No acúmulo e na luta do território
discursivo o “poder-saber” e a “verdade” se tornam relacionais. Foucault (2005, p. 36) cita
o exemplo da disciplina, posta por ele como “um princípio de controle da produção do
discurso”. Contudo, uma disciplina não pode ser concebida como a soma de todas as
verdades que a concerne.
Cada vez mais, a educação contemporânea e as profissões e ocupações humanas se
abrem para as capacidades inatas de cada ser humano, representando a escola neste
contexto um instrumento de acesso ao mundo para além da família. As escolas em geral,
passaram a representar, ideologicamente, o exercício de justiça e igualdade humanas, na
medida em que oferecem a todas as crianças o reconhecimento, independentemente de sua
condição social.
Atualmente as escolas representam o principal instrumento de socialização e
integração, um mundo de possibilidades, de auto-realização. Portanto, negar no contexto da
civilização contemporânea, o acesso à escola, significa negar um serviço público,
restringindo o acesso à cidadania.
A escola pública, apesar das deficiências, representa a salvação para milhões de
crianças, que não sendo assim, estariam condenadas à ignorância e conseqüentemente a
marginalidade. A escola é o caminho para o reconhecimento da sociedade do adolescente
enquanto cidadão, mas somente por meio de um ensino de qualidade construirá a criança e
o adolescente uma compreensão global da sociedade da qual faz parte. Em meio ao descaso
e a inoperância, cresce o celeiro que armazena o número crescente de brasileiros
miseráveis. Ao permanecerem as crianças excluídas das escolas, proibidas aos direitos que
lhe são constitucionalmente consagrados, configura uma violência social passiva e que
pouco é questionada. Segundo Sartre (1973, p.11-2), o homem é responsável por sua
“existência”, não em sua individualidade, mas por toda sociedade, posto sua interatividade
e dependência social. Essa posição nos leva a refletir sobre a indiferença dos educadores ao
recalcar, de não querer pensar no problema das causas da indisciplina. Como formar
cidadãos e falar de direitos humanos em uma sociedade que não são respeitados os direitos
básicos garantidos em lei? Ao tentarmos apontar um culpado pela presença em nossas
escolas do aluno indisciplinado, enfatizamos a violência da desigualdade social, mas não se
exige providências efetivas da Escola para com o descaso e a inoperância; não há um
questionamento sobre violência institucional.
A relação entre aluno indisciplinado e direção da escola permeia o processo
pedagógico do qual os diretores possuem uma posição de liderança, ambos têm como
objetivo educar o adolescente para sua possível integração a sociedade. Conforme Foucault
“[...] a pedagogia se formou a partir das próprias adaptações das crianças às tarefas
escolares, adaptações observadas e extraídas do seu comportamento para tornarem-se em
seguida leis de funcionamento das instituições...” (FOUCAULT, 1996, p. 122).
Foucault (1996), faz também menção as “sociedades de discurso”, cujo papel, foi
conservar e produzir novos discursos circulantes em um espaço fechado de “regras
estritas”, com uma delimitação dos indivíduos autorizados ou empossados do “saber-poder”
para proferir esses discursos; e que mesmo não existindo mais as “sociedades de discurso”,
a “estratégia” de controle discursivo ainda existe por meio da não-permutabilidade e formas
de segredos presentes até mesmo nos discursos livre de rituais. Dessa maneira o filósofo
desconstrói a neutralidade da linguagem e colabora para o fortalecimento da “circularidade
dos discursos”, “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento em sua volta”
(FOUCAULT, 2005. p. 26).
Segundo Foucault (2005) os discursos são materializados por visões de verdade,
um produto histórico-social, um elemento de poder que opera no controle, seleção,
organização e redistribuição de regimes específicos das sociedades. Foucault enfatiza que
esses discursos objetivam controlar as práticas dos sujeitos, constitutivas do discurso.
Conseqüentemente, configura-se o discurso, o território de luta da imposição dos sentidos
no “desejo” de “poder”.
A (pós)modernidade nasce da preocupação com a identidade e com ela se
desenvolve. Tanto assim é que seu paradigma emerge da conceptualização do indivíduo
como centro de uma reinterpretação fundadora da autoria de si e do mundo. Desse prisma,
o entrecruzamento de discurso e identidade constitui-se, hoje, em um topos de importância
indiscutível para o debate relacionado às múltiplas questões que envolvem a linguagem,
pois instiga uma série de reflexões sobre a formação e determinação histórica dos sujeitos e
suas representações lingüísticas. E essas representações, acionadas pela memória, tornam
consciente o que o esquecimento, na sua capacidade de impor um limite negativo ao
conhecimento, suprimiu da lembrança e relegou ao silêncio.
É pelo e no discurso, como instância de articulação entre o nível lingüístico e sua
exterioridade, que se opera a construção\des-construção de identidades que se constituem
nos textos, na história, nas instituições. Identidades são concebidas aqui como movimentos
contínuos\descontínuos das relações que sujeitos, comunidades, nações e instituições
estabelecem imaginariamente com o real, produzindo uma interface que vem garantir sua
circulação e inserção dentro de certas condições sócio-históricas e discursivas que são, elas
próprias, constitutivas daquelas relações.
No domínio dos saberes lingüísticos contemporâneos esse temário possibilita o
entrecruzamento de diferentes problemáticas, vias de reflexão e questões que estão na base
tanto da investigação quanto da produção lingüística. Essas inquietações podem levar à
ultrapassagem dos limites estreitos das especialidades – modos canônicos de organização
do conhecimento -, permitindo agregar conceitos, pontos de vista, matérias, em outros
horizontes teóricos.
Apesar da escola acreditar que o livro de ocorrências possa contribuir para manter
sob controle a indisciplina dos alunos, podemos verificar vários casos de reincidência, ou
seja, nem sempre a punição garante fazer com que o aluno mude o seu comportamento,
seus conceitos, sua identidade; sendo assim, a escola estabelece uma luta identitária com o
aluno, para que o mesmo mude o seu jeito de ser, para que ele volte a se enquadrar nos
padrões de comportamentos estabelecidos, ditos “normais”. É o que se pode verificar nos
recortes abaixo efetuados:
R4: “[...] o aluno estava dando soco no colega... sempre indisciplinado não corresponde com as expectativas
da sala de aula e nem dos professores, novamente fica o mesmo advertido [...]”
R5: “[...] o aluno saiu da sala sem pedir licença, veio beber água e depois foi à porta da sala do 8° ano. O
aluno + uma vez fica advertido [...]”
R6: “[...] o aluno na aula de geografia...foi indisciplinado, assoviando e rindo, atrapalhando o
desenvolvimento do trabalho... fica o mesmo novamente advertido e assina [...]”
Esse discurso “sempre indisciplinado” mostra o poder institucionalizado da
escola, que pode fazer uso desse discurso autoritário, que tem o poder de caracterizar esse
sujeito como aquele que “não corresponde as expectativas” da escola, da sociedade
capitalista que necessita ter sujeitos manipuláveis em seu domínio e, por isso, “novamente
fica o mesmo advertido”. Ao fazer uso dos advérbios “novamente” e “+ uma vez”
repetidamente, a escola procura dar uma maior intensidade, frisando o ato desse aluno,
produzindo uma carga semântica negativa no discurso, caracterizando esse aluno como um
problema para a sociedade.
Para Foucault (2004, p. 236) “o discurso não é a vida”, seu tempo não é o nosso,
nunca viveremos mais que um discurso. Segundo Foucault (1986), o corpo deixa de ser
chagado para prostar-se no “cativeiro”, marcando o início da privação da liberdade e do
encarceramento da alma, mais vantajoso e econômico, porque reunidos os delinqüentes,
num lugar institucionalizado, agentes atuam na administração do ego desses indivíduos,
para impor-lhes a recuperação que a sociedade tanto almeja. O corpo sob vigilância coloca-
se à disposição de uma disciplina a fim de se mostrar possuidor de uma conduta melhorada,
passando a ser domesticado e modelado, sendo assim, administrado por entidades de
poderio que lhe garantem a formação e\ou a transformação. O indivíduo, em qualquer
instituição, passa a ser classificado e ter a individualidade partilhada por esses instrumentos
de poder tendo em vista que essas instituições “ainda que não recorram a castigos violentos
ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos ‘suaves’ de trancar ou corrigir, é sempre
do corpo que se trata – do corpo e suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua
repartição e de sua submissão” (p. 25). A relação entre o corpo e a disciplina é necessária
para a ordem e o adestramento social, este último entendido como a arte de disciplinar,
exercer poder sobre indivíduos, segundo Foucault (idem, p. 143) “a disciplina ‘fabrica’
indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que torna os indivíduos ao mesmo tempo
como objetos e como instrumentos de seu exercício”. Para Foucault “é dócil um corpo que
pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”,
enfim, a finalidade dessas instituições – livros de ocorrência - é a de promover sobre o
aluno ‘indisciplinado’ a transformação de seu comportamento, para um retorno útil e dócil
à sociedade, porém, para Foucault, em Microfísica do Poder (1988, p. 134) ali “[...] não se
procurava reeducar [...], torná-los virtuosos, mas sim agrupá-los num meio bem definido,
rotulado, que pudesse ser uma arma com fins econômicos e políticos. Daí o caráter de
organismo econômico e político dessas instituições – livros de ocorrência - que, segundo
Foucault (1988, p. 135) “está [...] ligado a um projeto preciso, serve agora a uma outra
estratégia”.
Para Bauman (2005, p.18-47) , a questão da identidade não pode mais ser tratada
pelos instrumentos tradicionais de entendimento, fazendo-se necessário desenvolver uma
reflexão mais adaptada à dinâmica do transitório, que se impõe sobre o perene. Vivemos
uma realidade onde o global se insere de maneira mais intensa e os valores se tornam mais
“líquidos” recolocando o problema da identidade em uma dimensão que exige a renovação
dos parâmetros de entendimento até então utilizados. Para Bauman, à medida que nos
deparamos com as incertezas e as inseguranças da “modernidade líquida”, nossas
identidades sociais, culturais, profissionais, religiosas e sexuais sofrem um processo de
transformação contínua, que vai do perene ao transitório, com todas as angústias para a
psique que tal situação suscita.
Para Bauman:
... o verdadeiro problema e atualmente a maior preocupação é a incerteza oposta: qual das identidades alternativas escolher e [...] por quanto tempo se apegar a ela? [...] a construção da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável. Os experimentos jamais terminam. Você assume uma identidade num momento, mas muitas outras, ainda não testadas, estão na esquina esperando que você as escolha. Muitas outras identidades não sonhadas ainda estão por ser inventadas e cobiçadas durante a sua vida (BAUMAN, 2005, p. 91).
O autor abandona o lugar-comum antropológico e vai ao cerne da questão: na
modernidade líquida não é uma mera “construção social”; ter uma ou muitas identidades é
uma tarefa, ou mais precisamente, uma tarefa política.
Para Giddens (2002, p. 9-20), em obra intitulada Modernidade e Identidade, é
impossível dissociar a constituição das sociedades modernas, em sua complexidade atual,
sem levar em conta as conseqüências dramáticas que a globalização ou os riscos sociais
imprimem tanto no indivíduo quanto à coletividade, contribuindo de forma decisiva para
afetar os aspectos mais pessoais da existência humana. Os indivíduos contribuem para as
influências sociais que são globais em suas conseqüências e implicações, tendo em vista
que sua constituição não está centrada no “eu”, mas na importância do entendimento dos
mecanismos de auto-identidade que são constituídos pelas instituições da modernidade.
Giddens (2002) circunscreve a modernidade considerando tanto as situações locais
quanto as globais denominando de “dialética do local e do global” (p. 27-47), a cultura, a
economia e as dimensões sociais como fatores preponderantes para a construção da
identidade, analisando o “eu” tanto em sua dimensão ontológica quanto em sua trajetória na
modernidade, incluindo, nesta trajetória, os controles do corpo e da mente pela necessidade
de constituição de um modelo de aceitação.
As tensões sofridas pelo “eu” e sua busca por novas identidades na alta
modernidade encontram espaço e referência no surgimento do que o autor chama de
“política-vida” (p. 198), entendida como uma política “das decisões de vida” (idem),
encontrando aí a afirmação de que o “pessoal é político” e que “as questões da política-vida
[...] clamam por uma remodalização da vida social e demandam uma sensibilidade
renovada para as questões que as instituições da modernidade sistematicamente dissolvem”
(p. 199). Para Giddens, a sociedade contemporânea abre espaço para considerar o “eu” e a
busca de “novas identidades” como pontos fundamentais.
Woodward (2000, p. 13) afirma que as identidades se encontram “partilhadas” na
pós-modernidade pela diferença e que as tradicionais fontes que antes davam suporte à
identidade, como a instituição da família, do trabalho e da igreja, entre outras, se encontram
em crise. Para compreendermos o funcionamento da identidade precisamos conceituá-la e
dividi-la em suas variadas dimensões.
Mas a identidade é uma “verdade relacional e a diferença uma marcação
simbólica”, estando a primeira vinculada às condições sociais, e a segunda, ao meio pelo
qual estabelecemos sentidos às práticas das relações sociais, diferenciando o “excluído do
incluído”. Essa conceituação da identidade envolve sistemas classificatórios marcados pelas
diferenças, algumas vezes obscurecidas por uma diferença maior, sendo ambas
representadas discursivamente.
Com as novas identidades, surgem os novos discursos, o que deixa o sujeito
fragmentado e provoca uma crise de identidade, resultado de um amplo processo
transformacional que desloca as estruturas da sociedade moderna e faz-se perder a noção do
sujeito, pois a idéia de que as identidades eram plenamente unificadas e coerentes se tornou
inválida em face da totalidade dos acontecimentos, das informações e das imagens que
nunca circularam com tanta velocidade.
Assim, a escola, além de constituir como o espaço do saber e do conhecimento,
pode ser considerada um lugar no qual o sujeito deve ser disciplinado; nesse sentido, a
mesma favorece para constituir uma série de políticas disciplinares que visa “formar
sujeitos” a partir de uma discursividade dominante que tem como objetivo favorecer a
sociedade capitalista. Como afirma Althusser (1985, p. 68): “a escola constitui o conjunto
de aparelhos ideológicos do Estado”. Sendo assim, ela é um dos meios que a classe
dominante usa para continuar influenciando e mantendo sua autoridade sobre o sujeito. E
para cumprir o seu papel, a escola acaba praticando uma violência simbólica sobre o aluno
ao tentar mudar e transformar sua identidade, fazendo com que o mesmo se submeta às
regras, à ordem que a mesma impõe, para que esse sujeito seja formado num sistema em
que ele sempre aceite tudo o que lhe é estabelecido, ou seja, determinado.
Podemos verificar que o livro de ocorrências é o meio que a escola utiliza para
registrar todas as informações em relação aos comportamentos ditos ‘indisciplinados’ dos
alunos, sendo ele a forma de punição para aqueles que não estão dentro das normas. Pois
tudo que é inadequado e se afasta das normas estabelecidas, pode ser considerado
“anormal”, dessa maneira, a sanção normalizadora visa fazer com que esses indivíduos
voltem a ser considerados “normais”. Conforme afirma Foucault (1987, p. 149):
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes ‘incorretas’, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é utilizado a título de punição, toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações.
Portanto, a instituição escolar pode ser considerada uma espécie de aparelho de
exame constante que acompanha todo o processo de ensino, levando a individualidade do
aluno a um campo documentário. Como afirma Foucault (1987, p. 147): “a vigilância torna-
se um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça
interna do aparelho de produção e uma engrenagem específica no poder disciplinar”.
Enfim, o exame é considerado o centro dos processos que formam o sujeito, como
efeito e objeto de poder e é, através dele, que a vigilância hierárquica e a sanção
normalizadora realizam as grandes funções disciplinares de divisão e classificação.
Considerações finais
Através das análises dos discursos registrados no livro de ocorrências
verificamos como os mesmos desempenham um papel importante para que as regras e
ordens instituídas pela escola sejam cumpridas, sendo assim um ato de legitimar com o
“poder da escrita” as atitudes indisciplinares dos alunos.
A escola pode ser considerada o lugar do saber, do conhecimento e do poder;
ela pode influenciar na identidade do sujeito favorecendo, desta forma, a sociedade
capitalista que visa obter sujeitos manipuláveis em seu domínio, por isso há toda uma
prática disciplinadora nas escolas, na qual os sujeitos são submetidos às regras e normas
impostas, sendo o livro de ocorrências envolvido em um sistema que procura monitorar
toda a formação do sujeito, tentando transformar o seu jeito de ser, enfim, moldar sua
identidade de acordo com os parâmetros da sociedade.
Através desta prática autoritária, a escola acaba praticando uma violência
simbólica contra o aluno, pois o mesmo é pressionado a aceitar as normas que lhe são
estabelecidas, através de uma vigilância constante que observa suas atitudes e reações. Com
isso, a escola faz uma divisão, uma classificação, caracterizando os alunos ‘indisciplinados’
como um problema que deve ser resolvido, mesmo que de uma forma que afeta a moral e
identidade desse sujeito que se encontra em formação. Portanto, ao pesquisar sobre a
violência simbólica na escola através dos análise discursiva do livro de ocorrências,
podemos refletir sobre o ambiente escolar e perceber que o mesmo é controlado por uma
sociedade que prega a liberdade, mas que não abre mão de ter sujeitos de fácil domínio
sobre seu controle.
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