Revista Latino-Americana de História
Vol. 3, nº. 10 – Agosto de 2014
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Justiça e Identidade no Brasil Escravocrata: ambiguidades das leis no século XIX
Alysson Luiz Freitas
Regina Célia Lima Caleiro
Resumo: O presente artigo analisa a atuação da justiça no século XIX tomando como pano de
fundo a ordem escravocrata e as aspirações modernizantes do estado Imperial. Utiliza
especialmente como fontes processos-crime de duas localidades distintas: a cidade de Montes
Claros, sede da Comarca da região norte de Minas Gerais e a cidade de Franca, sede da
Comarca de parte da região sudeste do estado de São Paulo.
Palavras-chave: Justiça. Escravos. Mulheres.
Abstract: This article analyzes the role of justice in the xix century taking as background the
order of slavery and modernizing aspirations of the Imperial state. Uses especially as sources
criminal cases of two different locations: the city of Montes Claros, headquarters of the
Judicial District of northern Minas Gerais and the city of Franca, the headquarters of the
Judicial District of part of southeast region of the state of São Paulo.
Keywords: Justice. Slaves. Women.
Justiça e poder no Brasil Colonial
Analisar a atuação do judiciário e dos homens envolvidos com a justiça no Brasil foi
objetivo de muitos historiadores, juristas e cientistas sociais, acompanhados geralmente de
impressões que se tornaram clássicas sobre os elementos que impediam o avanço da justiça e
do poder público. A frase do frei Vicente do Salvador, do início do século XVII, se tornou um
clássico sobre o tema, e merece espaço. O mesmo, em sua impressão sobre alguns dos
principais problemas que se passavam na colônia, avaliava que no Brasil “nem um homem
(....) é republico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular (...)
Doutor em História pela USP. Professor naUNIMONTES. Doutora em Histótia pela UFMG. Professora da UNIMONTES.
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(pois) nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada
casa”. (SALVADOR, 1627. In: 1965, p. 59)
Silvia Hunold Lara, em texto sobre a temática, procura aprofundar a análise de alguns
dos temas mais recorrentes sobre a justiça e o poder público no Brasil, isto é, a relação entre
poder privado e poder público. Em estudo sobre a região da vila de São Salvador do Campo
dos Goitocazes, na segunda metade do século XVIII, Lara demonstra alguns dos “diferentes
usos” que a justiça, “exercida em nome do rei”, podia ganhar em terras coloniais. (LARA,
2006, p. 63)
No que se refere ao período colonial, a autora demonstra que:
As análises sobre a justiça colonial têm enfatizado que os tribunais serviam
menos para controlar ou coibir infrações às normas do que mediar fricções entre grupos de mesmo status social. O recurso aos tribunais seria, assim, o
último passo numa longa série de conflitos, um recurso mediador quando
outras possibilidades se mostravam ineficientes. Por outro lado, é comum a afirmação de que os magistrados agiam muitas vezes por constrangimento
dos potentados locais, ou por interesses pessoais (embora sempre houvesse a
necessidade de aparecerem como protetores dos interesses reais). Unidos às elites locais de diversos modos, aceitavam subornos para decidir certas
causas, ou utilizavam sua jurisdição e seus cargos para obter vantagens
econômicas (LARA, 2006, p. 84-85).
A autora, entretanto, propõe ir além dessas impressões coloniais, demonstrando também
que em muitos casos “a justiça nada decidia – ou tomava decisões ambíguas e polivalentes”, e
mesmo assim continuava “sendo acionada por várias partes, que a ela recorriam, sempre
reiterando a necessidade de uma pronta intervenção para sanar o abuso ou dar exemplo aos
demais” (LARA, 2006, p. 85).
Ao mesmo tempo, como parte de uma sociedade que era efetivamente desigual, baseada
em grandes diferenças sociais e econômicas, a justiça também se apresentava como desigual,
tratando de modo diverso pessoas que eram consideradas desiguais. Para Lara, os privilégios
atribuídos a cada condição social ou a determinados cargos ou posições, estipulavam também
tratamentos especiais. Assim, o exercício do poder judiciário implicava algo mais importante
do que estabelecer ou fixar a verdade dos casos: “significava reafirmar e reforçar a rede
hierárquica que ligava todos os súditos ao rei e o lugar de cada um nesse emaranhado de
poderes, alçadas e jurisdições”. (LARA, 2006, p. 86)
Esses pressupostos nos permitem discutir um elemento central para a nossa proposta:
compreender as relações entre público e privado no âmbito judiciário, bem como as
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ambiguidades e parcialidade da justiça nos casos envolvendo escravos, livres e mulheres em
duas regiões do Brasil ao longo do século XIX.
A justiça no Oitocentos
As análises da historiadora Silvia Lara nos permitem avaliar pelo menos dois aspectos
fundamentais para a avaliação da justiça norte-mineira no século XIX. Em primeiro lugar,
mesmo diante dos inúmeros problemas que envolviam o sistema judiciário no Brasil, desde a
época colonial, o recurso à justiça era comum e legítimo, pois as pendengas encontravam
muitas vezes na justiça o lócus para a solução de querelas importantes do cotidiano.
Ao longo do século XIX, no norte das Minas Gerais, veremos que a recorrência à justiça
também era comum, demonstrando uma aproximação cada vez maior do poder público e da
justiça frente ao cotidiano da população, mesmo que muitas vezes reforçada por relações
desiguais que marcavam o sistema escravista.
Em segundo lugar, o exemplo da região de Campo dos Goitacazes, nos coloca em frente
ao tratamento diferenciado que a justiça oferecia aos desiguais, e que, em última instância,
reforçava e reafirmava redes de poder que se estabeleciam. Redes hierárquicas que tornavam
evidentes a desigualdade, a submissão e a dominação, elementos próprios do regime
escravista brasileiro. Essa avaliação se faz imprescindível para a nossa proposta que visa
demonstrar a condição escrava em detrimento de determinados privilégios dos homens livres,
muitas vezes comprometidos e imersos nas relações clientelares que se estabeleciam. Além
disso, a relação da justiça com a violência das mulheres também apresenta contornos bem
peculiares.
Não obstante, no processo de estruturação do regime imperial, novos elementos foram
somados ao universo do judiciário. A justiça, à medida que avançava o século XIX, era
reformulada, a partir de novos mecanismos e uma nova estrutura de poder, condizente com as
mudanças políticas que o regime propunha.
Segundo Keila Grinberg, a reforma da justiça e do sistema judiciário no Brasil foi um
dos temas mais recorrentes no debate político do Império.
Tida como um dos resquícios do período colonial, sobretudo pelo papel central que cabia ao imperador no exercício cotidiano, a Justiça foi objeto de
discussão entre os liberais brasileiros desde o início da década de 1820,
quando muitos consideravam sua modernização elemento essencial para a
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própria constituição do Estado independente (GRINBERG, In: VAINFAS,
2002, p.451).
A Constituição de 1824, nesse caminho, teria dado um importante passo na organização
da justiça brasileira, junto a outros elementos criados no mesmo período.
Em 1827, segundo aponta Thomas Flory, temos a criação da figura do juiz de paz, um
magistrado sem formação específica, eleito pela população para exercer nas paróquias a
função de juiz, especialmente em casos menores onde se poderia buscar elementos de
conciliação das partes. Segundo o autor, a polêmica da criação dos juízes de paz residia no
fato de ser a sua criação um dos símbolos do próprio liberalismo brasileiro da época do
Primeiro Reinado, cioso do fortalecimento do poder local e da maior autonomia de distritos e
províncias, sendo por isso combatido pelos políticos conservadores do regime monárquico.
(FLORY, 1986)
Em tese de doutorado sobre a região do médio sertão do São Francisco, Dimas José
Batista demonstra também que as mudanças no sistema judiciário vão se dar somente na
segunda metade do século XIX, em meio a reformas e transformações importantes do sistema.
Mesmo assim, o autor também avalia alguns dos elementos de poder e do cotidiano que se
misturavam nas decisões do judiciário, impondo ao mesmo um funcionamento ambíguo e
contraditório.
Os embaraços, ambigüidades e contradições somente seriam resolvidos na
segunda metade do século XIX. O Estado brasileiro legislou a respeito de
todas as matérias e assuntos fossem eles econômicos, políticos, educacionais, culturais, religiosos e judiciários. Os embaraços eram frutos
diretos da indistinção, da superposição e dos tênues limites e fronteiras entre
as competências dos agentes da administração civil e militar. (...) As normas e leis possuíam também esse caráter difuso graças às relações sociais
dominantes na sociedade brasileira que, como vimos, era em si mesma densa
e difusa, ou melhor, recorria a meios extralegais para pensar a justiça e o
Estado. As leis e as normas eram princípios vinculatórios que expressavam as ambigüidades e contradições da própria sociedade brasileira e mineira da
época (BATISTA, 2006, p. 57).
Um último aspecto no que diz respeito a uma das características mais marcantes do
Código Criminal do Império deve ser avaliado. Segundo Grinberg, mesmo com toda a
importância do código e das questões levantadas, eram os escravos os que mais sofriam com
as penas instituídas. Dessa forma, muitos juristas e políticos do Império argumentavam que o
“nível cultural” e a “evolução social” do país eram incompatíveis “com os princípios clássicos
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da igualdade entre seres humanos”, justificando assim os direitos dos senhores em castigarem
seus cativos. Além disso, o Código Criminal consolidaria, também, punições exclusivas para
escravos, como “açoites e ferros, além das penas de galés e de morte”. (GRINBERG, In:
VAINFAS, 2002, p. 146)
Veremos, não apenas para o exemplo da região norte-mineira, como para outra região, o
sudeste do estado de São Paulo, que realmente os escravos “sofriam” mais com os
mecanismos de poder estabelecidos, gerando assim uma distinção clara na condição cativa em
relação ao universo dos livres.
Esses elementos nos levam, naturalmente, a imaginar a presença de um sistema
judiciário que se encontrava em processo de reestruturação. Tal processo condicionava a
justiça à reformas, no intuito de influenciar diretamente na organização do Estado,
adequando-se aos preceitos liberais que se manifestavam em revoluções e movimentos sociais
que vinham da Europa. Todavia, no cotidiano das relações sociais, sobretudo no papel
exercido pela justiça diante dos desiguais – pobres e ricos, negros e brancos, escravos e
senhores, mulheres e homens – as diferenças se faziam sentir mais claramente, refletindo em
uma justiça parcial e hierarquizada pelos interesses de alguns, em detrimento de outros tantos,
sobretudo os cativos. As sentenças de alguns processos criminais avaliados são exemplos que
ilustram essa afirmação.
Homens livres e escravos: a justiça parcial no sertão das Minas
Ao nos debruçarmos sobre os dados referentes às sentenças aplicadas aos homens livres
enquanto réus dos processos referentes ao período de 1850 a 18881 constatamos que dos 430
processos selecionados para a análise percebemos um número bem maior de processos que
não determinaram penas aos réus livres. Em quase metade da documentação (48,4%) os réus
livres foram absolvidos dos crimes praticados, somado ainda a um grande número de
1 A pesquisa em questão foi sobre a região norte de Minas Gerais, com ênfase para a cidade de Montes Claros.
Para tal ver: JESUS, Alysson Luiz Freitas de. Cotidiano e poder nas relações sociais escravistas e pós-
escravidão: o sertão das Minas entre 1850 e 1915. Tese de Doutorado em História Social, São Paulo, FFLCH,
USP, 2011. Para alguns autores que estudaram a região norte-mineira, a cidade de Montes Claros era a única “da
região Norte de Minas que poderia merecer, ainda que com certas restrições, o nome e os direitos de cidade.”
(BRITO, 2006, p. 69) Em 13 de outubro de 1831, o Arraial de Formigas é transformado em vila. Já na década de
50 é elevada à categoria de cidade, com o nome atual de Montes Claros. O estabelecimento de um poder público
mais efetivo contribui para a ascensão da cidade e da região ao longo do século XIX. Como salientou Tarcísio
Botelho, é importante destacar ainda que este processo de ascensão de Montes Claros, na verdade, se deu através
de transformações lentas e graduais, contando com uma povoação limitada e pouco dinâmica. (BOTELHO,
1994).
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processos que ficaram apenas na pronúncia ou mesmo não constando sentenças (36,3%). As
prisões de homens livres pela prática, em sua maioria, de homicídios e lesões corporais,
representam pouco mais de 15% de todos os processos analisados, o que claramente nos
coloca diante de uma justiça com características que devem ser questionadas. Alguns
exemplos devem ser explorados para que possamos estabelecer um diálogo com essa justiça
oitocentista.
Três homens, o forro Lino em conluio com João Teixeira de Souza Júnior e Justino José
dos Santos foram indiciados como responsáveis pela morte de Roberto Xavier do Rego. A
queixa foi feita pela mulher da vítima, que informou que seu marido tinha sido assassinado
quando voltava de uma viagem, em tocaia armada pelos réus. O motivo do crime teria sido
um anterior desentendimento entre os mesmos, ocasião em que o senhor Roberto, devido a
uma briga por terras mal demarcadas, entrara com um processo contra João Teixeira e Justino,
pois estes haviam espancado um compadre de Roberto. Entretanto, esse processo tinha sido
anulado por falta de provas contundentes que levassem João Teixeira e Justino a júri. Assim,
os novos autos que corriam indicavam João Teixeira e Justino como mandantes do crime
executado pelo forro Lino. De acordo com as testemunhas a rixa entre as partes seria pública e
notória, assim como o espancamento que teria levado ao processo anterior anulado pela
justiça. Entretanto, apesar de todas as questões levantadas contra João Teixeira e Justino,
apenas Lino foi pronunciado. Ainda assim, o processo encontra-se incompleto, isto é,
encerrando-se com a pronúncia do forro e a liberação dos prováveis mandantes do crime.2
Em processo do ano de 1862, a livre Ana Luisa teria sido responsável pela morte de três
pessoas e pelos ferimentos em outras quatro vítimas. A autora do crime fora à casa do senhor
Manoel de Sousa na tentativa de vingar-se do seu desafeto, o senhor Joaquim Cardoso de
Moura. Chegando lá, atirou em todos os que estavam reunidos, não conseguindo,
ironicamente, atingir o seu inimigo. Ana Luisa foi indiciada como responsável pela chacina,
mas o processo não foi além da pronúncia da ré 3.
No ano de 1875 a ré Angélica, conhecida como “Brava”, e seu enteado de nome José,
foram indiciados como responsáveis pelo assassinato de Antonio, marido da vítima. Segundo
as testemunhas, Angélica “Brava” teria mandado José executar a vítima. No entanto, nenhuma
testemunha apontou possíveis motivações para o ato. Antonio fora executado com várias
2 DPDOR/AFGC, Processo Criminal nº 000.080. 3 DPDOR/AFGC, Processo Criminal nº 000.044.
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facadas na virilha. A viúva, entretanto, afirmou que o marido teria morrido devido a um
acidente, quando trabalhava na roça. O processo simplesmente é interrompido em meio aos
depoimentos das testemunhas e, ao que tudo indica, não foi mais retomado, conforme
demonstram as inúmeras folhas em branco da documentação 4.
Autores que estudaram o período demonstram que o aparato judiciário era muitas vezes
utilizado para resolver questões particulares, ignorando-se denúncias ou anulando-se
processos “com base na lei”. Isnara Pereira Ivo reafirma a parcialidade no julgamento dos
crimes locais – a região da Imperial Vila da Vitória –, demonstrando a “falta de precisão dos
juízes de direito à frente da comarca (...) seja no julgamento e punição dos homens comuns,
seja nos inquéritos envolvendo homens públicos. Por qualquer motivo a queixa crime podia
ser considerada improcedente.” (IVO, 1998, p. 90)
Não foi muito diferente, acreditamos, o que acontecia com o aparato judiciário em
outras regiões rurais do Brasil. Os casos expostos acima envolvendo os nossos atores sociais
são esclarecedores nesse sentido. A avaliação dessas sentenças nos apresenta indícios de uma
justiça que, ao que tudo indica, misturava constantemente questões privadas com as funções
públicas.
Muitos dos réus sertanejos como João Teixeira e Justino José, ou como as livres Ana
Luisa e Angélica acabavam impunes. A justiça, por meio dos homens da lei da região, não se
mostrava capaz de colocar os réus diante do Estado e fazê-los cumprir as penas
correspondentes aos crimes praticados, o que, como vimos pelos dados apresentados,
aconteceu em praticamente 85% dos casos. Dos 430 processos em que os homens livres
figuram como réus, em 364 ocorreram absolvições, somente pronúncia ou não consta
sentença por motivos variados, como prescrição, finalizações dos processos ou pela própria
fuga dos réus, muitas vezes motivados pela incapacidade do sistema judiciário em fazer valer
cumprir o seu papel de agentes da justiça.
Quando avaliamos as penas aplicadas aos réus escravos na região norte-mineira, as
diferenças ficam ainda mais explícitas, nos permitindo adentrar ainda mais o universo do
poder e da justiça.
4 DPDOR/AFGC, Processo Criminal nº 000.204.
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Dos 68 processos analisados para a apreciação da violência escrava na região5
percebemos um percentual de aproximadamente 55% dos processos com algum tipo de pena
aos cativos, como prisões, castigos, reescravização ou mesmo a pena de morte natural.
Nesse sentido, mesmo que estejamos diante de uma justiça ainda na sua “infância”, ao
que tudo indica, com relação aos cativos, ela se fazia mais presente e eficaz. estal situação fica
ainda mais evidente quando propomos uma comparação entre a violência praticada por esses
escravos junto ao universo violento dos homens livres. Notamos a existência de poucas
diferenças no que se refere à violência praticada por esses agentes, independentemente das
suas condições jurídicas. Assim, a proximidade e a simplicidade da vida permitiram um
contato intenso e dinâmico entre os atores que compunham o universo cultural norte-mineiro,
fazendo da violência um componente de aproximação dos “mundos” da escravidão. Para Ivan
Vellasco:
A forte hierarquização da vida social, que possibilitava a quase todos, algum
nível de distinção em relação aos socialmente inferiores, não impedia de todo as identificações horizontais entre pobres livres, forros e escravos, os
quais, aliás, compartilhavam os mesmos espaços urbanos e o mesmo mundo
de cultura, cujas veias corriam pelas tabernas, vendas, sambas e entrudos,
nas ruas escuras e empoeiradas das vilas (VELLASCO, 2004, p. 197).
Entretanto, se o cotidiano permitia uma “feição desorganizada” na pretensa ordem
escravista, a justiça parecia ainda se utilizar de mecanismos que reafirmavam as diferenças
entre cativos e livres. Essas questões novamente nos colocam diante de uma justiça presente
mas, em vários sentidos, personalista, imprecisa e parcial.
Joaquim Nagô, mais um entre milhares e milhares de escravos espalhados pelo Brasil,
sentiu na pele a condição da escravidão, reafirmada pelo papel exercido pela justiça ao longo
do século XIX.
Em processo do ano de 1835, o escravo Joaquim Nagô, solteiro, com idade próxima dos
20 anos, foi acusado de assassinar o senhor Joaquim Antunes de Oliveira. Segundo a viúva,
senhora Anna Francisca, o crime teria ocorrido em abril do mesmo ano, e teria sido praticado
pelo referido escravo, propriedade do senhor Manoel Lopes de Oliveira. As testemunhas
arroladas no processo foram concordes ao apontar o africano como o executor do crime,
5 É importante salientar que a criminalidade escrava era menor que a criminalidade praticada por livres no sertão,
como de resto para inúmeras regiões do Brasil onde a população escrava era minoria ao longo do século XIX.
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declarando que o mesmo teria assassinado seu opositor a facadas, tendo como motivo o fato
do cativo estar agredindo uma escrava, parceira do mesmo.
Por meio do Libelo Crime Acusatório a acusação propõe-se a convencer o júri da falta
grave cometida pelo cativo, apelando para questões como o “valor da vida” para o ser humano
e a necessidade de “punições exemplares” na região:
P. que sendo a vida do homem o bem mais apreciável, pois que nelle se
reúnem todos quantos se pode possuir, sendo a perda da mesma o maior mal que se pode imaginar (...). P. que o Reo deve ser punido com a penna (...) no
gráo Maximo, para exemplo dos outros, pois que de outra forma não pode
haver segurança para os Pais de famílias, e principalmente neste Centro aonde ainda se não tem feito exemplo algum.
6
Joaquim Nagô não escapa da fatídica sentença, e em setembro de 1835 é condenado a
sofrer a pena de morte natural. Nove meses depois, em 30 de maio de 1836, o cativo é
executado, cumprindo-se a tarefa do mesmo servir “para exemplo dos outros”.
Os processos analisados nos possibilitaram uma comparação entre a violência de
escravos e livres no Brasil, por meio da atuação de uma justiça que se apresentava com
posturas distintas diante das condições jurídicas dos réus. Dessa forma, um importante
questionamento nos permite adentrar ainda mais o cotidiano jurídico do Brasil, isto é, os casos
que envolviam as mulheres, apontando algumas das características da parcialidade na
aplicação da justiça no século XIX.
Mulheres e justiça na ordem escravocrata do século XIX: o exemplo de Franca/SP
O Império brasileiro sobreviveu em um cenário de tensões entre a ânsia pela
“civilização” da elite culta e os ranços da ordem escravocrata, entre a burocracia
administrativa cuja formação intelectual se dera na Europa e a realidade do poder local
exercido pela aristocracia escravocrata. Discrepância também evidente entre a situação
confortável da elite seduzida pelas novidades do refinamento urbano e a precariedade da
existência dos cativos, dos libertos e livres pobres.
6 DPDOR/AFGC, Processo Criminal nº 000.046, fls. 18-19v.
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Em 1856, a antiga Vila do Imperador recebia o título de cidade de Franca. Circundando
a Igreja e a Câmara construíram-se casas cobertas de telha e paredes de adobe e estrutura de
madeira de lei. Eram casas altas e arejadas com muitas janelas e grandes portas. As refeições
compunham-se de milho e seus derivados. Do fubá faziam-se as broas e angu, que era
comido acompanhado de feijão e da carne de porco. Da mandioca fazia-se polvilho e do
polvilho os saborosos biscoitos. Entretanto, os “arranjos refinados” das casas mais abastadas
não escondiam as bases em que estavam assentadas as relações sociais. As algemas,
gargalheiras e palmatórias, expostos no Museu Histórico Municipal de Franca e os inúmeros
inventários atestam que:
(...) palmatórias, troncos e grilhões, os instrumentos de castigo cotidiano dos
escravos estavam arrolados juntamente com outros instrumentos de trabalho,
guardados na cozinha e na casa do engenho. O chicote senhorial, entretanto, ornado de prata, assim como sua bengala e esporas, era ostentado no espaço
senhorial da casa-grande; símbolo de um poder cuja força se fazia sentir, no
eito e na cozinha, em golpes vibrados por palmatórias de latão e chicotes de
madeira e couro torcido. Eis aí uma territorialização das instâncias de poder que, na sua prática cotidiana, permitia ao senhor unir e equilibrar opostos,
escondendo, sob o ornamento de prata a marca de sangue do chicote feitoral
( LARA,1988, p.168).
Nesse cenário, investigamos como a justiça institucionalizada7, na região de Franca,
tratou as mulheres no século XIX. Mulheres que, em diferentes contextos, tiveram sua cor,
condição social e jurídica, como fatores de diferenciação no modo como foram julgadas.
Mulheres acusadas de crimes variados foram utilizadas como evidência empírica da
participação feminina no universo da criminalidade. O primeiro passo do percurso dessa
investigação foi coligir seus nomes nos processos-crime e percebemos que, além dos nomes
próprios, muitas mulheres foram identificadas também por seus apelidos, com os quais,
evidentemente eram mais conhecidas.
Portanto, não é de se estranhar que os escrivães, antecedendo os interrogatórios que
devassavam o cotidiano e a intimidade das indiciadas registrassem também as alcunhas pelas
7 A pesquisa em questão teve como principal região de análise a cidade de Franca/SP, e teve como principal
objetivo analisar as relações de violência que envolviam as mulheres na ordem escravocrata, especialmente no
que tange à prática da violência feminina na condição de rés. Para tal ver: CALEIRO, Regina Célia Lima.
Mulheres e cotidiano na ordem escravocrata – A violência que se adivinha. Tese de Doutorado em História,
Belo Horizonte, UFMG, 2004.
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quais eram pejorativamente tratadas: Estrela, Maria Fumaça, Eva Crioula, Francisca
Tamanca, Rita Forra, Maria Canoa (CALEIRO, 2004).
Em nossa prática cotidiana, percebemos que para as mulheres “de família” os apelidos
são diminutivos carinhosos que pressupõem a intimidade doméstica. As alcunhas resultam de
características particulares, individuais, às vezes até íntimas de seus portadores. Mas, na
medida em que são forjadas, e utilizadas socialmente, expressam de modo bastante claro
como se dá a articulação entre a identidade privada e a identidade pública.
Outra questão a se considerar são as punições aplicadas às mulheres de acordo com os
valores inerentes ao sistema escravocrata e os tributos, inerentes à relação proprietários-
escravos.
Nada mais exemplar nesse sentido que a expedição de um bando, em 1810, pelo
governador da Capitania de São Paulo, Antônio José da Franca e Horta proibindo
terminantemente as mulheres de andarem com as cabeças cobertas e determinando as penas
aplicadas.
Portanto, pondo em seu inteiro vigor a lei que prohibe às mulheres
semelhantes rebuços novamente ordeno que toda a mulher que for achada rebuçada por qualquer maneira inteiramente descoberta (pois a devem fazer
inteiramente descoberta) sendo nobre das quaes não espero a contravenção
das raes ordens, seja recolhida por qualquer official militar, ou de justiça a
cada decente, e se mandará immediatamente parte para mandar a sua casa com decencia devida à sua qualidade e pagará vinte mil réis para o Hospital
dos Lázaros desta cidade se fôr mulher ordinária, e mulata ou preta forra
pagará oito mil réis da cadeia aplicados na mesma forma com oito dias de prisão. As escravas porém não poderão trazer baeta pela cabeça, e as que
assim forem achadas serão castigadas corporalmente na cadeia a meu
arbítrio.8 (grifos nossos)
As penalidades fixadas nos casos de infração expõem claramente a forma
discriminatória de lidar com o crime e a punição segundo a qualidade do seu autor. No caso
da proibição do uso das baetas pelas mulheres, a condição social das transgressoras definia
tanto as penalidades quanto as absolvições .
Da mesma forma, o drama vivido pela escrava conhecida por Maria Franqueira, ilustra
bem nossa afirmação, sobre a compreensão histórica das absolvições e condenações das
mulheres. Wanderley dos Santos cita um outro autor que, baseado na imprensa paulistana,
registrou a triste história dessa escrava (SANTOS, 1995).
8 DAESP, 1810: 305: 6.
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Diz Santos que de acordo com o professor Guido Fonseca, Maria Franqueira era uma
negra retinta, baixa, franzina, com os cabelos totalmente brancos, velha, de idade ignorada.
Estava ela a 16 de novembro de 1886, em sua cela na Penitenciária do Estado, quando
recebeu a ilustre visita do Imperador Dom Pedro II. Como já fizera com os outros presos,
procurou o Imperador saber pormenores de sua vida e dos motivos de sua prisão. Espantado,
tomou conhecimento que se encontrava presa há mais de meio século, ou exatamente 52 anos
e alguns meses, e aparentemente, ninguém sabia explicar porque Maria Franqueira estava lá
há tanto tempo na prisão. Dom Pedro II deve ter mostrado seu desagrado, uma vez que nos
dias seguintes o Dr. Clementino de Souza e Castro, juiz das execuções criminais, comparecia
ao presídio para inteirar-se do que estava acontecendo com ela. Apurou, então, o magistrado
que o nome da sentenciada era Maria Madalena e por ser proveniente de Franca, passou a ser
conhecida como Maria Franqueira. Fora escrava de Antonio Moreira Lima, residente naquela
localidade e lá tinha sido acusada de assassinar uma jovem, indo a júri a 11 de fevereiro de
1834. Por essa época, não compreendia a língua portuguesa, mas lembrava-se de seu
julgamento. Segundo Maria Franqueira, havia na sala de audiência muitos homens e ela
permaneceu sentada num banquinho o dia todo, até ser recolhida à cadeia. Fora condenada à
prisão perpétua. Durante um ano ficou presa em Franca, sendo depois removida para São
Paulo. Da capital foi trabalhar na fortaleza de Santos, voltando logo mais para a penitenciária.
Por várias vezes pedira perdão e três meses antes da visita do Imperador, novamente o fizera.
Por não ter instruído seu pedido com cópia do processo – extraviado na cidade de Franca – foi
ele negado. Após a vinda de Dom Pedro II, como não podia deixar de acontecer, a burocracia
judiciária foi agilizada e o decreto perdoando Maria Franqueira chegou, permitindo que ela
fosse finalmente libertada.
Nos trabalhos sobre criminalidade feminina no século XIX, verifica-se que escravas e
ex-escravas participavam muito pouco do universo da criminalidade na qualidade de
ofensoras. Deve-se considerar que, provavelmente inúmeros casos de violência praticados
pelas cativas, foram punidos no ambiente doméstico. As libertas, talvez pelo trauma inerente
aos seres humanos que vivenciaram a experiência da escravidão, evitavam situações que
pudessem colocá-las à mercê da justiça dos brancos. Portanto, a condição jurídica criava
condições para que estas mulheres se coadunassem mais ao papel de vítimas do que ao de
criminosas. Embora esta afirmação possa ser usada genericamente, devido à própria estrutura
em que se assentou a escravidão no Brasil, veremos que o cativeiro não restringia totalmente a
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violência feminina e que as exceções aconteceram e se constituíram como fator relevante nas
condenações.
O repertório punitivo do Código Criminal do Império apresentava distinções na
aplicação das penas dirigidas a homens e mulheres. O Artigo 43, referente à pena de morte
considerava que: “na mulher prenhe não se executará a pena de morte nem mesmo ela será
julgada no caso de o merecer senão quarenta dias depois do parto”. O estudo da legislação
demonstra que as mulheres recebiam considerações atenuantes justificadas pela sua
inferioridade em relação ao homem.
O Artigo 45 do mesmo Código Criminal considerava que: “as mulheres as quais,
quando tivessem cometidos crimes para que esteja estabelecida esta pena, serão condenadas
pelo mesmo tempo à prisão em lugar e com serviço análogo ao seu sexo”.
As diferenças entre a punição sofrida pelos acusados em função do sexo demonstram
que os fatores atenuantes são justificados pela condição feminina comum a todas as mulheres.
Em primeiro lugar a maternidade e em segundo o tipo de trabalho adequado ao seu sexo.
Percebe-se que seus legisladores também se apropriaram das representações femininas
incorporando-as aos fatores atenuantes. É sabido que as cativas realizavam todos os tipos de
trabalho, mas, em tese, cabia às mulheres o trabalho doméstico. Do mesmo modo a gravidez
redimia as mulheres dos seus pecados e, particularmente na ordem escravocrata, a imagem
maternal das negras significava também a decantada abnegação da “mãe preta”. Essas
ressalvas do Código Penal expõem a complexidade do Império. Nessa sociedade permeada de
contradições, havia que se atenuar a ação das escravas como agentes ativos da criminalidade
quando estivessem atreladas aos padrões relacionados aos lugares sociais ocupados
naturalmente pelas boas mulheres.
As penas aplicadas às rés, fontes desta pesquisa, demonstram que o grau de impunidade
das mulheres era elevado. Dentre os 73 processos pesquisados envolvendo 82 mulheres, 11
foram encerrados com a condenação. Mas, se observadas com o rigor necessário, podemos
constatar que apenas duas mulheres foram punidas com penas severas; uma com a prisão
perpétua e outra além de prisão perpétua e com trabalho análogo ao sexo. As demais, 9, não
ultrapassaram a prisão por seis meses com multa correspondente.
Estas condenações devem ser complementadas com uma análise mais acurada tanto em
relação à severidade das penas quanto à condição social das duas únicas condenadas com a
prisão perpétua: ambas eram escravas. A peculiaridade destas condenações é uma
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demonstração clara de que a intervenção da justiça, como um dos dispositivos de um conjunto
amplo de controle social, espelha a ordem vigente e as expectativas sociais acerca do
comportamento feminino no século XIX.
A condenação das escravas no interior paulista
As duas escravas condenadas cometeram homicídio contra a esposa e o filho de seus
senhores, crime percebido tanto pelos proprietários quanto pelo aparelho judiciário como
crimes limite, uma vez que atentavam frontalmente contra os princípios da sociedade
escravista. De acordo com Maria Helena Machado “o temor aos escravos permeou a
instituição escravista e encontrou, na Justiça, especial ressonância com a repressão exemplar
dos crimes contra a autoridade senhorial” (MACHADO, 1987). É o caso da Lei de 1835 que
considerava os cativos sujeitos de delitos, tanto quanto os homens livres e libertos, mas
distintos quanto às penas aplicadas. O texto da lei tinha como objetivo coibir e castigar
exemplarmente através da pena de morte os cativos que ousassem infringir o estatuto básico
da sociedade escravista. Em seu artigo 1º, a lei punia com pena máxima os escravos que “...
matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem
outra qualquer ofensa física a seu senhor, sua mulher, a descendentes ou ascendentes que em
sua companhia morarem, o administrador, feitor e à suas mulheres, que com eles viverem”
(MACHADO, 1987, p. 35).
Ainda de acordo com Machado, os locais privilegiados para a ocorrência dos crimes de
homicídios contra senhores e feitores era as grandes e a médias unidades agrícolas. Sob o
olhar vigilante do feitor, buscava-se obter uma alta produtividade escrava adequada aos
diferentes ciclos sazonais e às urgências da produção. No eito, uma disciplina cruel era
imposta pelo feitor munido de relho ou bacalhau. Para impor um ritmo menos intenso à rotina
árdua e sufocante do eito, os escravos criavam diversas artimanhas, como o jongo, entoado
em cadência monótona que impunha um ritmo comum ao trabalho das enxadas empunhadas
tanto pelos mais jovens quanto pelos mais idosos. Na época de pico de trabalho, os senhores
se faziam presentes nos eitos “tentando incutir nos escravos maior respeito às regras
disciplinares que redundariam numa aceleração do trabalho”( p. 93). Disciplina e vigilância
extremas resultaram na eclosão de homicídios perpetrados contra senhores e feitores,
estabelecendo limites às exigências pressentidas como injustas e irregulares “as quais urgia
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refrear, sob pena de tornar usual o ritmo excepcional de trabalho, legitimando uma disciplina
impiedosa” (MACHADO, 1987, p. 85).
Para Maria Sylvia de Carvalho Franco, a estrutura material das grandes propriedades
rurais condicionou uma complexa síntese de benignidade e extrema violência. Enquanto
núcleo doméstico, colocou os cativos em relação contínua e estreita com os membros da
família dominante onde o tratamento condescendente dispensado à ama de leite, à mucama,
ao companheiro de diversões infantis representam aspectos amenos da relação senhor -
escravo. No extremo oposto situava-se o cativo torturado para que a disciplina e a
continuidade do trabalho de sol a sol não fosse quebrada. Essa diversificação é decorrente das
situações particulares em que transcorriam contatos, isto é, o lar ou o eito. Mas, alerta a
autora, não se pode perder de vista que estas duas situações se constituíam numa unidade
econômica, a fazenda. Inseridas nessa formação social “as relações entre senhores e escravos
permanecem essencialmente as mesmas em qualquer das posições diferenciadas que estes
últimos possam ocupar em sua estrutura interna” (FRANCO, 1997, p. 212). Isto significa que
a mucama estava tão sujeita ao suplício legitimado por seu caráter de coisa, quanto o último
dos trabalhadores do eito.
Embora Machado e Franco não tenham feito referência à violência praticada pelas
escravas, contra seus senhores, ela é perfeitamente compreensível dado o caráter violento
desta relação de proximidade. Longe dos cafezais, lavando, cozinhando, amamentando,
recolhendo frutas e verduras nos quintais, as escravas também reagiram violentamente aos
conflitos que a proximidade doméstica acarretava.
No início do mês de junho de 1866 na Fazenda do Boi-Morto, a escrava Maria Antonia,
solteira, 24 anos, que se ocupava “de todos os serviços da casa de seus senhores” deu a luz
um bebê de cor parda. Dona Maria Theresa, senhora de Maria Antonia, exigia saber quem era
o pai da criança, e mais precisamente se era seu marido, prometendo castigá-la caso não
dissesse. Porém, a cativa negava-se a dizer quem era o pai de sua filha. Entre ameaças e
negativas transcorreu um mês até que um incêndio tomou conta da casa de Dona Maria
Theresa que teria morrido vitimada pela ação das chamas. A certeza quanto à causa da morte
foi suficiente para a não realização do auto do corpo de delito regulamentar e o corpo foi
sepultado. Entretanto, motivado pela “voz pública” (termo recorrentemente utilizado nos
autos) o Juiz de Direito determinou a exumação do cadáver e a apuração dos fatos. Constatou-
se que a vítima recebera uma forte pancada na cabeça, motivando sua morte e não o incêndio
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como anteriormente se constatara. Foi aberto o processo e Maria Antonia confessou que na
noite do crime havia esperado Dona Maria Theresa dormir em companhia de seus dois filhos
menores, dirigiu-se ao quarto, pegou a tranca da porta e com ela atingiu a cabeça da vítima
que imediatamente morreu. Em seguida tomou de uma candeia que estava no quarto, colocou
fogo na cama de sua senhora e gritou por socorro tão logo as chamas atingiram o leito.
Ouvindo os gritos, o irmão da vítima que dormia no cômodo ao lado ajudou a escrava a retirar
as duas crianças que também dormiam no quarto.
Esta versão dos fatos confessada pela ré foi endossada por outras testemunhas que
atestaram a antiga inimizade existente entre senhora e escrava. Mas quase no final do
processo, uma declaração da cativa Maria Antonia mudava a lógica dos fatos até então
apurados:
Perguntada se tem algum motivo particular a que atribua a acusação?
Respondeu que seu senhor José Messias levou-a para a horta onde amarrou-a e começou a castiga-la para ela respondente dizer que foi a autora da morte
e que se assim dissesse ele havia de forra-la ou levar para a casa de seu
senhor velho ou ainda para o sertão e que então ela disse que foi ela a autora do crime por causa de sua filha (...). Perguntada se tem fatos a alegar ou
prova que justifiquem ou prove sua inocência? Respondeu que nada fez, que
é inocente e jurou por jurar 9.
Embora muito recorrente, não é possível determinar se os réus mudavam seus
depoimentos em virtude de torturas a eles impostas para que confessassem o crime ou se
tratava de uma estratégia dos defensores que instruíam os réus para que simplesmente
mentissem. Importa lembrar que escravos não podiam ser testemunhas juradas nos processos-
crime, apenas informantes. Portanto, a validade ou não de seus depoimentos ficava a cargo da
apreciação do juiz. A fala do cativo (legalmente por meio de um curador) em confronto com
provas materiais ou relatos de testemunhas juradas fazia com que, na maioria das vezes, fosse
ineficaz. Por outro lado, “quando tratou-se de confissões feitas em juízo pelos cativos
acusados, a fala dos escravos apresentou grande validade.” (FERREIRA, 2003, p. 52).
A mudança na confissão de Maria Antonia não convenceu os jurados e ela foi
condenada pelo Juiz de Direito, de acordo com a lei de 10 de junho de 1835, à morte.
Posteriormente, pela “Graça do Poder Moderador” a pena foi comutada em prisão perpétua.
Por mais que a convivência diária estreitasse laços de afeto entre senhores e escravos, a
vida dos cativos estava submetida à vontade de seus senhores que dispunham da prerrogativa
9 AHMF, 1866. Caixa 24, códice 659.
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dos castigos, amparados que estavam pela lei e pelos costumes. O que podemos auferir é que
o crime praticado por Maria Antonia fora tramado anteriormente e foi possível ocultá-lo por
algum tempo, a ponto de ser necessária a exumação do cadáver. Este fato demonstra um
comportamento bastante calculado, apontando semelhanças com o crime perpetrado pela
outra escrava condenada à prisão perpétua.
No início da década de 1880 , o Major Claudiano Ferreira Martins era o detentor da
maior posse de escravos, 40 (quarenta), na localidade de Franca. Além da extensa escravaria,
o major possuía mais de uma fazenda, entre as quais os cativos eram distribuídos de acordo
com as necessidades do trabalho.10
Em novembro de 1885 na Fazenda Vangloria, João Garcia
Ferreira Martins, 25 anos, feitorizava o trabalho dos cativos de seu pai na casa que abrigava a
máquina de beneficiar café. João Garcia estava costurando uma correia sobre a roda da
máquina, quando se desequilibrou e caiu no “caixão de separar café”. Simultaneamente, em
cima do rapaz caiu uma pesada viga de madeira que se desprendera da “beneficiadora”
atingindo-o mortalmente na cabeça. As escravas que trabalhavam no local correram para
avisar o senhor que, no entanto, não teve coragem de ver o filho morto. No dia seguinte, o
rapaz foi sepultado no Cemitério Religioso da Fazenda Jaborandy. Um mês mais tarde, em
virtude de um desentendimento entre duas escravas da fazenda, Firmina e Ricarda, a segunda
cativa relatou os fatos referentes à morte do senhor moço incriminando Firmina como
assassina. Exumado o cadáver constatou-se que a vítima havia falecido em razão de pancadas
desferidas em sua cabeça.
Interrogada, a escrava Firmina confessou com detalhes o crime:
Perguntada se conheceu um filho de seu senhor de nome João? Respondeu que conhecia e que já morreu. Perguntada do que morreu esse seu senhor
moço respondeu que ela respondente o assassinara, dando-lhe com uma mão
de pilão uma pancada sobre os ouvidos, com a qual caíra o mesmo ofendido e que ela respondente depois desta pancada estando o mesmo atirado ao
chão já nas agonias da morte, ela respondente acompanhou sua companheira
Ricarda para precipita-lo no caixão do separador da máquina 11
.
Em seguida obrigou duas escravas menores, Graciana e Roza, a colocarem o corpo no
caixão separador de café. Aterrorizadas por terem presenciado o crime, as escravas
cumpriram as ordens de Firmina que instruiu a todos para que o crime parecesse um acidente,
obtendo sucesso até que Ricarda a denunciasse. Todas as testemunhas ouvidas disseram que o
10 MHMF. Edital da Coletoria Provincial por ocasião do lançamento da cobrança de tributos sobre cativos.
Publicado no jornal O Nono Distrito, 15 e 20 de dezembro de 1884. 11 AHMF, 1885. Caixa 4, códice 1160.
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Major Claudiano era bom senhor por não deixar faltar comida nem vestuário aos escravos,
castigando-os quando estes não trabalhavam bem.
Contrariando essas afirmações, em seu depoimento Firmina disse que seu senhor era
bom, porém em uma ocasião por ela não ter revelado um furto praticado por suas
companheiras teria sido castigado com severidade. Ouvida como testemunha, Genoveva
Cypriana acrescentou que “... não havia inimizade da vítima com Firmina, sendo certo porém,
que em um dia que ela não se recorda, João Garcia chegando a porta da cozinha e dizendo à
Firmina: „vamos para a roça, você está muito mangona‟. Firmina respondeu „vai diabo, um
dia nós havemos de acabar na porta do inferno‟”.
As conclusões do delegado de polícia, logo após Firmina ter confessado em juízo a
autoria do assassinato, recomendavam que após “confissão tão espontânea, que revela ou
muita perversidade ou sofrimento nas faculdades mentais, proceda-se exame na mesma,
verificando se sofre ou não de desarranjo mental.” O exame físico foi realizado e detectado
sua total consciência, mas não se descobriu o motivo pelo qual ela cometera o crime. No final
de seu depoimento, Firmina dizia que “no dia que não reza, o tinhoso atenta a ela...”.
Sendo crime público, a denúncia foi dada pelo promotor público, mas ainda assim em
09 de fevereiro de 1886, o Major Claudiano Ferreira Martins direcionou uma queixa relativa
ao homicídio praticado por Firmina, solicitando que a mesma fosse condenada “com todo
rigor” do artigo 1º da lei excepcional de 10 de junho de 1835.
Por unanimidade de votos, a escrava foi condenada à pena de prisão perpétua com
trabalho análogo ao seu sexo.
Considerações finais
As pesquisas demonstraram que as condenações dos escravos são extremamente
coerentes com as expectativas de ordem e convívio social propostas pela elite, tanto no
interior paulista quanto no interior mineiro, regiões qualificadas como “sertões” pelos
viajantes do século XIX. Ainda que a convivência diária estreitasse laços de afeto entre
senhores e escravos, a vida dos cativos estava submetida à vontade de seus senhores que
dispunham da prerrogativa dos castigos, amparados que estavam pela lei e pelos costumes.
Por mais que interroguemos as fontes jamais saberemos realmente do medo que os escravos
sentiam perante a possibilidade de serem vítimas da violência senhorial, ou qual o limite
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suportável da condição servil que desencadeava os atentados violentos, ou seja, nos casos
aqui apresentados, a criminalidade escrava. O crime é uma construção cultural, definido pela
lei em decorrência do que a sociedade concebe como ameaçador e como tal deve ser
reprimido ou punido. Como afirma Michelle Perrot:
Não existem fatos criminais em si mesmos, mas um julgamento criminal que
os funda, designando ao mesmo tempo seus objetos e seus atores, num
discurso criminal que traduz as obsessões de uma sociedade. Toda a questão é saber como ele funciona e muda e em que medida exprime o real, como aí
se operam as diversas mediações (PERROT, 1988, p.244).
Nesse sentido, investigar as discussões acerca das normas jurídicas nos permite
compreender o modelo de sociedade da qual ela é fruto, o que se considera como socialmente
positivo, aceitável ou passível de punição. Conforme demonstramos anteriormente, um
extenso aparato jurídico de repressão contra os escravos foi elaborado no Império. Além do
Código Criminal, à medida que o Estado reforçava sua presença na sociedade local, as
Câmaras elaboravam as Posturas Municipais com vistas à manutenção da ordem e da
segurança no interior das províncias. A legislação, de modo geral, objetivava intimidar os que
atentavam contra a manutenção do status quo concebendo penas gradativas de acordo com a
gravidade representada pela infração e pela condição social do infrator. Portanto, com a
punição, a sociedade efetuava sua conservação e ao mesmo tempo tentava se precaver de um
perigo futuro.
Porém, não devemos considerar essas condenações exclusivamente como o
mascaramento ideológico das intenções das classes dominantes. Como alerta Edward P.
Thompson:
Se a lei é manifestamente parcial e injusta, não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição
prévia essencial para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que
mostre uma independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser
justa (THOMPSON, 1987, p.354).
O autor enfatiza a idéia do Direito como um espaço de constantes embates, cuja
manifestação na sociedade visa apresentá-lo de forma potencialmente autônoma e a mudança
nas suas regras faz parte do desenvolvimento das correlações de força de uma sociedade.
O autor não nega a assertiva mais geral de que o Direito exerce funções classistas, mas
rejeita as teses que se iniciam com este pressuposto pois, como instrumento de mediação entre
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as classes, pode ter resultados imprevistos desde que os “dominados” tenham condição de
recorrer ao aparato jurídico. Thompson demonstrou que ao lado do seu caráter opressivo há
nas leis uma restrição ao poder desenfreado da classe dominante, reconhecendo a autonomia
adquirida pela legislação a partir do momento de sua elaboração. Este ponto de vista embasou
e contribuiu para a análise do embates travados entre senhores e escravos em regiões distintas,
tal como o trabalho aqui apresentado.
Fontes
- DPDOR/AFGC. Divisão de Pesquisa e Documentação Regional da Unimontes/Arquivo do
Fórum Gonçalves Chaves. Processos criminais.
- AHMF. Arquivo Histórico Municipal de Franca. Processos criminais.
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- MHMF. Museu Histórico Municipal de Franca.
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