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Sexta-feira | 16 Maio 2014 | ipsilon.publico.pt
William OnyeaborNigéria, anos 1970: regresso ao futuroBlack KeysAscensão ou queda?
olharPor este
vimos o mundoRetrospectiva de Henri Cartier-Bresson em Paris ©
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22 + 23 Maioquinta, 21:00h — Grande Auditóriosexta, 19:00h — Grande Auditório
Orquestra GulbenkianGeorge Benjamin maestro
Elin Rombo soprano
Tim Mead contratenor
Victoria Simmonds meio-soprano
Rupert Charlesworth tenor
Christopher Purves baixo
Talvez a melhor ópera escrita nos últimos 20 anosle monde
ópera semi-encenada por Håkan Hagegård
Written on Skin
Mecenas Ciclo Piano
Mecenas Concertos de Domingo
Mecenas Ciclo Grandes Intérpretes
23 Maiosexta, 21:30h — Grande Auditório / Entrada livre
Solistas da Orquestra Gulbenkiandvorakrimsky-korsakov
george benjamin
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ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 3
concentra hoje às 19h30 numa
única sessão de 1h15 oferecem uma
visão panorâmica sobre dez anos
da produção videográfica deste
artista plástico, coincidindo com os
últimos dias de Botânica, a sua
primeira exposição individual no
Museu do Chiado, em Lisboa (até
domingo).
Abordam as temáticas que se têm
instituído como o grande pano de
fundo e fio condutor da obra de
Vasco Araújo: as questões de
género e identidade e as
problemáticas em torno do pós-
Um Josef Nadj em estreia mundial — presente do Festival de Almada
“Sim, vocês vão ser os primeiros a
ver o novo Josef Nadj”, confirma o
telefonista do Centre
Choréographique National
d’Orleáns quando ligamos a
perguntar se a estreia mundial do
novo espectáculo do coreógrafo
de origem sérvia, mas há muito
radicado em França, se fará
mesmo a 16 de Julho no Teatro
Nacional D. Maria II, em Lisboa. É
mais uma peça a encaixar-se no
puzzle da 31.ª edição do Festival
de Almada, cujo programa
integral será anunciado até ao
final de Junho — até agora,
conheciam-se apenas as
identidades de dois espectáculos,
Testamento — Preparações Tardias
para Uma Nova Geração, do
colectivo berlinense She She Pop
(Culturgest, 5 e 6 de Julho) e
L’Architecture de La Paix, do
Théâtre Pigeons International (São
Luiz Teatro Municipal, 10 a 13 de
Julho).
Paysage Inconnu, que terá uma
pré-apresentação ainda in progress
em França, começou por ser a
remontagem de uma peça de
2006, Paysage après l’Orage —
entretanto, Nadj desviou-se do
propósito inicial e acabou a
compor de raiz uma nova criação,
que ainda assim exibe (a começar
pelo título em mash-up) as marcas
desse espectáculo estreado no
Festival de Avignon e de um outro,
Journal d’un Inconnu (2002), que
foi encomenda da Bienal de
Veneza e do Théâtre de la Ville.
Como é habitual em Nadj, Paysage
Inconnu é um híbrido que não se
sabe muito bem de que terra é
(teatro, música, dança?), embora
tenha os pés bem assentes em
Kanjiza, a cidade da Voivodina
(então Hungria, actualmente
Sérvia) onde o coreógrafo nasceu
em 1957: “A ‘paisagem
desconhecida’ de Kanjiza e as
figuras tutelares das amizades
fecundas e misteriosas que a
compõem mantém-se uma
extraordinária fonte de inspiração
para Nadj”, lê-se no curto texto
sobre a peça que está no site da
companhia. Para recriar esse
mundo tão misterioso “num
quadro absoluto com o mínimo de
gestos e o máximo de força”, Nadj
quis que se lhe juntassem em
palco o saxofonista Akosh S.,
um dos seus mais imprescindíveis
cúmplices (vimo-lo por cá no
impressionante Les Corbeaux,
mas já tinha estado em vários
espectáculos anteriores),
o baterista Gildas Etevenard e o
bailarino Ivan Fatjo — são quatro
corpos para quatro personagens
entre a ficção e a realidade que
incluem um poeta, um pintor
vagabundo e um ex-lutador
tornado escultor.
Entretanto, e ainda antes da
estreia em Lisboa, o coreógrafo
que chegou a França em 1980 e 15
anos depois estava a dirigir o
Centre Choréographique National
d’Orleáns será objecto de uma
retrospectiva em Paris. De 16 a 28
de Junho, o programa Nadj à la
Villette levará ao Grande Halle de
La Villette as duas peças (Les
Philosophes, a partir da obra de
Bruno Schulz, e Ozoon, o filme-
concerto (Elegia, do mesmo Akosh
S.) e a exposição (desenhos,
fotogramas, filmes e instalações)
com que Josef Nadj respondeu à
carta branca da instituição.
Inês Nadais
Ficha TécnicaDirectora Bárbara Reis
Editores Vasco Câmara,
Inês Nadais
Design Mark Porter,
Simon Esterson
Directora de arte Sónia Matos
Designers Ana Carvalho,
Carla Noronha, Mariana Soares
E-mail: [email protected]
Sumário6: Henri Cartier-BressonUma testemunha decisiva de todo o século XX
12: Black KeysSurpreendentemente no topo do mundo
14: William OnyeaborUm génio relutante, da Nigéria para o mundo
17: Sir Richard BishopViajemos nesta guitarra hipnótica
19: Black BombaimDuas montanhas-russas
20: Joris LacosteTodos ao mesmo tempo, no arranque do Alkantara
Flas
hS á i
Editora convidada: Rita RedshoesAcabada de lançar o seu terceiro disco, Life Is A Second Love, Rita Redshoes é a editora convidada deste Ípsilon — para o qual escreveu a crónica da página 25 (e fez outras coisas que podem ser vistas na edição iPad). É dela também a playlist que está desde anteontem a rodar no nosso Spotify
Vasco Araújo — dez anos de filmes em revisão
Mulheres D’Apolo, de 2010, um dos filmes incluídos na sessão de hoje da Cinemateca
Paysage Inconnu, a nova criação do coreógrafo, estará no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, a 16 e 17 de Julho
colonialismo, todas
intrinsecamente ligadas a
narrativas de poder e de lutas de
poder. Entre The Girl From The
Golden West, de 2004, e Retrato,
estreado há duas semanas no
festival IndieLisboa, os oito filmes
que a Cinemateca Portuguesa
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4 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
anunciados os Hawkwind, a
histórica banda space-rock
britânica, que finalmente se
estreará em Portugal.
Constatámos que com eles
chegariam os Psychic TV, os
Electric Wizard, os Red Fang, os
Cosmic Dead ou os portugueses
Mão Morta e Black Bombaim,
Jibóia e Asimov. Concluímos então
que a vila ribatejana só poderá ser
alvo de romaria por parte dos
fascinados pelas maravilhas que o
rock’n’roll dado à boa distorção e
ao psicadelismo provocam na
mente e no corpo.
Se ainda subsistissem dúvidas,
começa a ser quase impossível
resistir. O cartaz começa a
assemelhar-se a uma antologia do
psicadelismo contemporâneo.
Atentemos: os já clássicos Bardo
Pond, ponte entre os Pink Floyd
planantes e ruído shoegaze, os
Cave, americanos devotos do
kraut germânico, Wooden Wand,
ou seja, a folk magnífica de James
Jackson Toth, o classicismo dos
Sleepy Sun, os franceses The
Feeling of Love, companheiros de
digressão de luminárias como Ty
Segall e Thee Oh Sees e os
inclassificáveis Daughters Of The
Sun (ree jazz In the court of the
Crimson King). Juntem-se o duo de
viajantes galáxia fora White Hills,
o psicadelismo de alpendre dos
Woods, os Moon Duo de Ripley
Johnson (dos Wooden Shjips), o
hard-rock dos Graveyard ou os
Ringo Deathstarr, com um nome
que, só por si, justifica a banda.
Como resistir?
O Reverence Festival realiza-se no
Parque das Merendas de Valada do
Ribatejo. O bilhete diário custa
38€. Os passes vendem-se a 55€ até
30 de Junho e, a partir daí, a 70€.
Podemos já não nos lembrar do
que fizemos no Verão passado,
mas começa a tornar-se evidente o
que faremos nos dias 12 e 13 de
Setembro deste ano. Há alguns
meses soubemos da chegada de
um novo festival, o Reverence, a
realizar em Valada, Cartaxo, nas
margens do Tejo. Vimos
“Durante dez dias queremos guiar
as pessoas por aquilo que de mais
fracturante, interessante e novo há
para mostrar. E estamos no
momento certo: no momento em
que os festivais de ficção e os
festivais de documentário se
interrogam até onde podem e
devem ir.” É este o mote de Dario
Oliveira, co-fundador e co-director
do Curtas Vila do Conde, para a
primeira edição do Porto/Post/
Doc, um novo festival de cinema
que não é só um festival de cinema.
Porque, antes da estreia de 4 a 13
de Dezembro próximos, o Porto/
Post/Doc vai gerir semanalmente
uma noite de filmes no cinema
Passos Manuel, e, no futuro, quer
também apostar na produção
regular de filmes que desvendem
as “muitas histórias para contar”
que existem na região do Grande
Porto.
O “alvo” da aposta de Oliveira,
agora “a solo” como rosto público
do Porto/Post/Doc, é o cinema
documental. Ou, com mais
propriedade, o “cinema do real”,
“área de fronteira entre o
Porto/Post/Doc, ou os cinemas do real viajam para o Porto
documentário e a ficção”, nas suas
palavras “o cinema mais criativo,
mais inovador e mais apaixonante
que aparece no circuito de
distribuição alternativa mundial”.
O novo festival quer mostrar uma
personalidade própria, mas sem
excluir forçosamente títulos
importantes que já tenham
passado pelos “colegas” lisboetas
IndieLisboa e DocLisboa. Trata-se
antes de procurar uma
complementaridade que leve
também em conta a existência no
Porto de um público “ávido” de um
cinema que dificilmente chega ao
circuito comercial tradicional fora
da capital. Mas “um festival tem de
fazer muito mais do que passar
filmes, tem de ser um encontro,
tem de ter uma perspectiva
crítica”, diz o director do Porto/
Post/Doc. A ideia é também
investir na renovação gradual do
tecido cultural do centro da cidade,
no seguimento da nova dinâmica
criada pela eleição de Rui Moreira
para a Câmara Municipal do Porto.
Primeiro, através de uma
programação regular, Há Filmes na
Real Combo Lisbonense meets Carmen MirandaA 21 de Junho, no Anfiteatro Ao
Ar Livre da Fundação Calouste
Gulbenkian, em Lisboa, haverá
um concerto de apresentação
integrado no festival Próximo
Futuro. Em Setembro será
lançado o álbum. E a partir do
Outono prosseguem os
espectáculos.
De que falamos? Do Real Combo Vítor BelancianoDisco em Setembro, concerto já a 21 de Junho, em Lisboa
Bardo Pond, Wooden Wand e Cave no Reverence Festival
Mário Lopes
Os Bardo Pond são um dos novos nomes anunciados para Valada do Ribatejo
Todos estes trabalhos foram já
antes apresentados, mas,
normalmente, em contexto
expositivo, quer museológico, quer
galerístico. Nunca no grande ecrã
de uma sala de cinema. “Porque é
que os filmes de um artista plástico
não têm cabimento num cinema,
ou, neste caso, mais exactamente,
num museu do cinema?”,
questiona Ana Isabel Strindberg,
programadora deste núcleo de
obras em que se incluem ainda
Augusta (2008), Eco (2008), O
Percurso (2009), Impero (2010),
Mulheres D’Apolo (2010) e Far
Donna (2005). “A mim interessava-
me saber como é que os filmes do
Vasco podem ser vistos no cinema,
até porque têm uma ideia de mise-
en-scène muito específica.”
Cruzando referências — e
estratégias — contemporâneas com
as grandes narrativas — e temáticas
— da cultura clássica, Vasco Araújo
levanta questões políticas pouco
trabalhadas em Portugal, tanto no
cinema como nas artes plásticas. É
o caso, nomeadamente, dos
dilemas de uma bagagem colonial
com que lidamos com dificuldade.
São, no entanto, questões que
extravasam quaisquer contextos
nacionais. Como em Impero,
parcialmente filmado entre os
edifícios da arquitectura dita
racionalista do EUR, o bairro
construído em Roma pelo regime
fascista italiano onde Mussolini
quis concentrar todo o poder
político do país, enredamo-nos em
tramas que atravessam o mundo e
os tempos, travestindo-se uma e
outra vez com novas roupagens.
Vanessa Rato
Baixa, a decorrer na sala do Passos
Manuel (a partir de Setembro, em
alternância com o pequeno
auditório do Rivoli). O Há Filmes na
Baixa começa já no dia 30 deste
mês com a exibição de A Mãe e o
Mar, de Gonçalo Tocha, em
simultâneo com a estreia comercial
em Lisboa (repete a 8 e 9 de
Junho); seguir-se-ão, a 15, o filme-
ensaio do galego Lois Patiño, Costa
da Morte, a 22 a ficção do chileno
Alejandro Fernández Almendras
Matar a un Hombre (vencedora do
IndieLisboa 2014), e a 29, em
simultâneo com Lisboa, o
aclamado E Agora? Lembra-me, de
Joaquim Pinto. Depois, no futuro,
através da aposta na produção,
usando as lições aprendidas no
projecto Estaleiro, do Curtas Vila
do Conde.
Para já, o “centro nevrálgico” fica
no site oficial www.portopostdoc.
pt, que serve também como ponto
de contacto da associação cultural
que o organiza, e que está aberta a
todos aqueles que estiverem
interessados em dela fazer parte.
Lisbonense e do seu novo álbum
(que é também um novo
espectáculo), à volta da vida e da
obra de Carmen Miranda, a
cantora nascida em Marco de
Canaveses que foi para o Rio de
Janeiro, cresceu brasileira e
nunca mais voltou à terra que a
viu nascer, apesar de nunca ter
desistido do passaporte
português. Quase 60 anos depois
da sua morte, o legado de
Carmen Miranda continua
ausente da música feita em
Portugal e é essa lacuna que o
projecto fundado pelos irmãos
João Paulo e Mário Feliciano para
recuperar o espírito das antigas
orquestras numa perspectiva
actual, pretende colmatar.
O álbum terá edição da Pataca
Discos e o espectáculo
atravessará quase três décadas da
história musical de Miranda,
através de um repertório de
sambas, marchinhas e outros
ritmos tropicais, na recriação dos
quais irão participar cantoras
como Ana Brandão, Joana e
Margarida Campelo e músicos
como Bruno Pernadas, David
Santos, Ian Mucznik, João
Pinheiro, Rui Alves, Sérgio Costa
e Tomás Pimentel, para além dos
irmãos Feliciano.
Jorge Mourinha
Costa da Morte, o filme-ensaio do galego Lois Patiño, passa a 15 de Junho no Passos Manuel, incluído no programa Há Filmes na Baixa — o festival chega depois, a partir de 4 de Dezembro
THE NATIONAL · PIXIES KENDRICK LAMAR · CAETANO VELOSO
NEUTRAL MILK HOTEL · MOGWAISLOWDIVE · GODSPEED YOU! BLACK EMPEROR
TELEVISION Marquee Moon · ST. VINCENT · SLINT · HAIM DARKSIDE · TRENTEMØLLER · JOHN GRANT · WARPAINT
LOOP · !!! · SKY FERREIRA · CHARLES BRADLEY · OS DA CIDADE TODD TERJE · STANDSTILL · SHELLAC · SPOON · MIDLAKE · JAGWAR MA
DUM DUM GIRLS · TY SEGALL · LEE RANALDO & THE DUST · PIONAL CLOUD NOTHINGS · BICEP · POND · RODRIGO AMARANTE
SPEEDY ORTIZ · YOU CAN’T WIN, CHARLIE BROWN · JOHN WIZARDS GLASSER · HEBRONIX · FÖLLAKZOID · JOANA SERRAT
COURTNEY BARNETT · REFREE · VISIONS FORTUNE · TORTO · EAUXMAS YSA · YAMANTAKA // SONIC TITAN · HHY & THE MACUMBAS
6 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
“Il ballerino!”, disse em voz
alta um italiano. E num
ecrã um homem parecia
bailar. Punha-se em bicos
de pés. Esticava-se, con-
torcia-se, levantava ligei-
ramente um pé, outro, até encontrar
uma zona de equilíbrio. Fazia mo-
vimentos repentinos (meio contor-
cionistas, meio apalhaçados), erguia
o pescoço, espreitava, talvez no en-
calço de um enquadramento capaz
de juntar na mesma linha “cabeça,
olhar, e coração”. E, caso esse mo-
mento se lhe oferecesse, dispara-
va.
O palco deste “bailarino”, deste
caçador — fato completo, alto, es-
guio —, é a rua em bulício, no meio
de muitas pessoas, carros a passar,
caixas de fruta empilhadas. E o no-
me é Henri Cartier-Bresson (1908-
2004), o fotógrafo superlativo, o
dono do olhar que nos deixou boa
parte da iconografia fotográfica mais
reconhecível (mais matricial e ino-
vadora também) do século XX.
Esta amostra da frenética coreo-
grafia que Cartier-Bresson punha em
prática no seu trabalho foi retirada
do documentário-entrevista
L’Aventure Moderne (1962), de Roger
Kahane, e é-nos mostrada já perto
do fim da grande retrospectiva que
o Centro Pompidou, em Paris, de-
dica ao fotógrafo francês (a primei-
ra na Europa depois da sua morte).
À frente do ecrã, juntam-se peque-
nos grupos, que, entre risos pela
forma desconcertante como este
homem se movimentava de Leica
na mão, descobrem um modo de
actuação afinal cheio de hesitações,
longe da imagem de “fotógrafo-ma-
tador” (implacável na caça) que se
foi construindo à volta de Henri
Cartier-Bresson, talvez o nome que
mais se confunde com o da arte a
que mais se dedicou: “Observar, ob-
servar, observar”. “É pelos olhos
que compreendo”, disse um dia o
fotógrafo que detestava ser fotogra-
fado (e de aparecer em público, de
ser reconhecido).
Até se chegar ao complexo (e di-
vertido) jogo de pernas cartierbres-
soniano da exposição (que fica em
Paris até 9 de Junho e depois se
aproxima de nós: estará na Funda-
ción Mapfre de Madrid de 28 de Ju-
nho até 8 de Setembro), é preciso
passar por centenas de fotografias
(a maior parte cópias de época),
muitas das quais imediatamente re-
conhecíveis por quem tenha o mí-
nimo de cultura visual (não neces-
sariamente ligada à fotografia). Esta
opção de manter um bom número
de imagens-cliché não é só inevitável
— é também consciente e serve para
sublinhar uma selecção mais secre-
ta (e politizada), verdadeiro contra-
Entre o antes
e o depois da fotografia, Henri Cartier-
Bresson
Uma retrospectiva entre Paris e Madrid põe um fotógrafo fundamental — a quem devemos boa parte da iconografi a mais reconhecível do século XX — em contexto. E acaba de vez com a conversa do “instante decisivo”.
Sérgio B. Gomes, em Paris
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 7
Camagüey, Cuba, em 1963: Henri Cartier-Bresson haveria de confessar que não desejava tornar-se um globetrotter, mas foi-o, ainda que renitentemente
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forte na interpretação de uma obra
que pode não ser assim tão conhe-
cida como se pensa que é. Uma obra
conceptualmente muito diversifica-
da, também contrariamente ao que
se pensava, e isto muito por culpa
do autor, que sempre lutou por dar
a máxima unidade formal ao seu
trabalho, por si controlado meticu-
losamente (em reproduções, expo-
sições e livros) ao longo da vida.
Até à sua morte, Cartier-Bresson
fez questão de supervisionar todas
as mostras que incluíssem imagens
suas, garantindo que as tiragens
eram feitas apenas para essas ocasi-
ões, em um ou dois formatos e utili-
zando papéis fotográficos com a mes-
ma qualidade de grão, tonalidade e
superfície. Sempre dedicou um cui-
dado extremo às exposições e, mui-
tas vezes, foi enquanto as organizava
que tomou decisões cruciais acerca
do rumo do seu trabalho.
Além do instante decisivoA maneira como as imagens de Car-
tier-Bresson foram sendo circunscri-
tas ao mundo muito particular do seu
próprio criador é muito devedora da
famosa noção de “instante decisivo”,
que tem tanto de certeira como de
redutora. O fotógrafo utilizou parte
de um axioma de Jean-François Paul
de Gondi (1613-1679), cardeal de Retz,
segundo o qual “não há nada no mun-
do que não tenha o seu momento
decisivo”. Estas duas últimas palavras
acabaram por formar o título do pre-
fácio que assinou no seu primeiro
livro, Images à la Sauvette, publicado
em 1952, naquele que é o seu primei-
ro (e mais profundo) texto sobre fo-
tografia, a forma como concebe a sua
prática, a sua ética e a sua metodolo-
gia. Ao defender que os fotógrafos
deviam procurar captar o “instante
decisivo”, Cartier-Bresson acabou
por estampar um carimbo estilístico
em cima das suas imagens que com
o passar dos anos se foi tornando
mais um empecilho do que uma
Cartier-Bresson erguia o pescoço, espreitava, no encalço de um enquadramento capaz de juntar na mesma linha “cabeça, olhar, e coração”
8 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
marca distintiva ou um modelo a se-
guir. É um selo que acabou também
por se transformar numa sanguessu-
ga capaz de esvaziar as imagens de
alguma dinâmica perceptiva relacio-
nada, por exemplo, com imaginário
acerca do que pode estar antes ou
depois. Ou simplesmente de as esva-
ziar do acidental. Mas para além des-
ta muralha, o mestre francês foi ca-
paz de erguer outra, porventura ain-
da mais alta, quando, em 1979,
decidiu criar a master collection, uma
selecção de 385 fotografias que con-
siderava as melhores do seu arquivo
e que destinou a instituições interna-
cionais com o objectivo de fornecer
o derradeiro mosaico do seu traba-
lho. Foram impressos seis jogos de
provas, quatro dos quais estão em
museus de França, Japão, EUA e Rei-
no Unido. Mas, passado algum tem-
po, foi o próprio a autorizar que a
essa primeira escolha se acrescentas-
sem mais fotografias ou que, quando
mostradas em público, se fizessem
outras escolhas. E por aqui já se per-
cebe como as imagens fotográficas,
por mais extraordinárias que sejam,
convivem mal com demasiados es-
partilhos, nomeadamente com os
que tentam impor leituras (precon-
ceitos, chaves de leitura) antes de
chegarem à percepção de cada um.
Não é de estranhar que em todos
os textos assinados no catálogo da
exposição do Pompidou se refira a
parangona do “instante decisivo”.
Mas desta vez não é para a elevar
aos píncaros pela expressão que te-
rá conseguido impor nas fotografias
de Henri Cartier-Bresson, mas jus-
tamente para a relativizar e para
tentar distanciar esta retrospectiva
do anátema que o fotógrafo lançou
sobre as imagens que foi registando
ao longo de mais 70 anos. “A não ser
que se quisesse refazer sempre a
mesma exposição e o mesmo livro,
torna-se evidente que, apesar de
conter a maior parte dos seus maio-
res ícones, a master collection não
permite apresentar uma obra em
toda a sua diversidade criativa”, re-
fere o texto de introdução do mo-
numental catálogo organizado por
Clément Chéroux, comissário da
mostra e um dos maiores especia-
listas do trabalho de Henri Cartier-
Bresson. Ali o “instante decisivo” é
atribuído à necessidade que os exe-
getas têm de encontrar alguma coi-
sa que simbolize a “unidade da
obra” do fotógrafo, e que, numa ex-
pressão, resuma “o génio da com-
posição”, a “capacidade de movi-
mentação” ou sua “habilidade para
estar no sítio certo“.
A tentativa de libertar as imagens
de Cartier-Bresson da armadilha (e
da expectativa) do “momento do
tudo ou nada” é um dos desafios
assumidos nesta empreitada levada
a cabo pela equipa do Pompidou e
pela fundação com o nome do artis-
ta (foram precisos três anos para
concluir a estrutura da exposição).
Nas duas últimas retrospectivas, em
2003, na Biblioteca Nacional de
França, também em Paris, e em
2008, no Museu de Arte Moderna
(MoMA), em Nova Iorque, o espec-
tro desta chave estética (que muitos
consideram mais uma regra de con-
duta moral e social perante a sua
prática fotográfica) ainda esteve
muito presente. Na primeira, em
jeito de homenagem comissariada
pelo editor Robert Delpire (criador
da mítica colecção Photo Poche), a
presença em vida de Cartier-Bresson
(que inaugurou no mesmo ano a sua
fundação) terá necessariamente
condicionado as principais orienta-
ções, que privilegiaram as fotogra-
fias “clássicas”. Na segunda, da res-
ponsabilidade de Robert Galassi
(antigo conservador-chefe de foto-
grafia do MoMA), foram preferidos
critérios temáticos e geográficos ob-
jectivamente mais voltados para os
trabalhos que fossem “sinónimos
do instante decisivo”.
Agora, a partir de mais de meio mi-
lhar de fotografias, desenhos, pintu-
ras, filmes, livros e outros documen-
tos gráficos, a exposição de Paris (que
tem sido um enorme sucesso de bi-
lheteira, com tempos de espera para
entrar que podem chegar às duas ho-
ras) reclama o ceptro do “inédito”, se
é que tal classificação pode ser ambi-
cionada para um fotógrafo como
Cartier-Bresson, cujo trabalho tem
sido mostrado à exaustão. O ponto de
partida de Chéroux foi o coração da
sua obra: as mais de 30 mil reprodu-
ções de época que estão à guarda da
fundação. Para além destas, foram
consultados e estudados provas de
contacto, livros, escritos (notas, car-
tas…) e as poucas entrevistas de fun-
do que concedeu. Foram ainda ouvi-
dos testemunhos de quem com ele
privou. Esta abordagem (“decidida-
mente histórica”) teve por objectivo
“refazer” as leituras da obra “não de
um, mas dos vários Henri Cartier-
Bresson”, que se foram moldando às
circunstâncias de tempo e espaço. Hic
et nunc (latim para “aqui e agora”) era
uma expressão muito cara ao fotógra-
fo e é usada pelo comissariado para
indicar o princípio geral que se quis
aplicar a esta retrospectiva, como
quem tenta fazer regressar à terra
uma nave espacial que andou perdida
no cosmos. “O Henri Cartier-Bresson
que aqui se tratou não é utópico nem
anacrónico (…), é um Henri Cartier-
Bresson em contexto”.
Três Cartier-BressonAs grelhas de análise que tradicional-
mente se utilizam para situar a obra
de Cartier-Bresson dividem-se em du-
as tendências muito distintas. Uma,
assente sobretudo na historiografia
americana, atribui às fotografias o
estatuto de “obra” dentro do contex-
to das artes plásticas, essencialmente
as imagens produzidas durante os
anos 30. Outra, de raiz francesa, en-
quadra a produção de Cartier-Bresson
a partir das qualidades fundamentais
atribuídas à fotografia, a partir da re-
portagem e da edição e, apesar de
reconhecer valor plástico às suas ima-
gens, jamais descarta a sua qualidade
como documento, preferindo os tra-
balhos do pós-guerra, das décadas da
cooperativa Magnum, que ajudou a
fundar em 1947.
A retrospectiva do Pompidou ten-
ta fugir a uma abordagem manique-
ísta, descartando a tentação de “pôr
em oposição” ou de “reconciliar”
estas duas visões tão díspares da
obra do mestre francês. Sem rene-
gar uma e outra, propõe a sua pró-
pria visão assente em três pilares
fundamentais. O primeiro, que se
refere à produção feita entre 1926 e
1935, é profundamente marcado
pelo contacto com tertúlias de gru-
pos ligados ao surrealismo, inclui as
primeiras fotografias captadas com
uma Brownie Box, e as grandes via-
gens pela Europa, pelo México e
pelos EUA. O segundo, que se inicia
com o regresso dos EUA e termina
com uma nova viagem para Nova
Iorque, em 1946, é determinado pe-
la militância política, pelo trabalho
para a imprensa comunista, pelo
cinema e pela guerra. O terceiro co-
meça com a criação da agência Mag-
num e conclui-se no início dos anos
70, depois de ter decidido abando-
nar progressivamente a fotografia
de reportagem para se dedicar a al-
gumas das suas primeiras aspirações
artísticas, o desenho e a pintura.
Entre as dualidades típicas do pré
e do pós-guerra, a do artista e a do
repórter fotográfico, o período do
meio acabou por se tornar menos
conhecido. No entanto, é talvez
aquele que melhor ajuda a perceber
todas as escolhas de carreira e de
estilo que se seguiram e que torna-
ram Cartier-Bresson um nome fun-
Não é de estranhar que em todos os textos do catálogo se refira a parangona do “instante decisivo”. Desta vez não é para a elevar aos píncaros, mas justamente para a relativizar e para tentar distanciar esta retrospectiva do anátema que Henri Cartier-Bresson lançou sobre as imagens que foi registando ao longo de mais de 70 anos
Premier Congés Payés, 1936: na França da Frente Popular, os trabalhadores conquistam finalmente a semana de 40 horas e o direito a férias pagas, que Cartier-Bresson regista em todo o seu fulgor inicial
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 9
damental da afirmação do fotográ-
fico como um suporte moderno,
poderoso e eficaz para comunicar,
testemunhar e denunciar. Numa
tentativa de revelar as principais
orientações do seu olhar e os assun-
tos em que decidiu investir mais
tempo, esta retrospectiva tem a vir-
tude de trazer um número conside-
rável de documentos originais e de
publicações de época. As reporta-
gens que realizou para a imprensa
comunista (Regards, Ce Soir…), por
exemplo, são mostradas com gran-
de destaque e começam a revelar
um gosto pelos “assuntos sociais”,
de pendor humanista, como a po-
breza, as crianças na rua, a joie de
vivre (um género muito parisiense)
ou as manifestações de rua.
Mas uma das primeiras coisas que
espantam nesta mostra é o talento
precoce de Cartier-Bresson no olhar
certeiro e, sobretudo, na eficácia da
composição da imagem fotográfica,
um olhar moldado pelo desenho e
pela pintura, que aprendeu, no final
dos anos 20, na academia de André
Lothe (1885-1862), pintor e escultor
fauvista e cubista, que incute no fo-
tógrafo a obsessão pela geometria
visual. É nessa altura que começa a
frequentar também os círculos sur-
realistas e a fazer colagens muito in-
fluenciadas pelo amigo Max Ernst
(que foi chamado para o momento
em que Cartier-Bresson disse ao pai
que seria fotógrafo, quando tinha 22
anos). A partir deste caldo de influ-
ências diversificadas forma-se uma
exigência cada vez maior, e um olhar
clínico que se revela essencialmente
a partir da primeira viagem a África,
entre 1930 e 1931, que tinha como
missão a procura de negócios para
as empresas da família, ligadas ao
algodão e aos tecidos. Um grupo de
amigos americanos ( Julien Levy, o
primeiro a expor o seu trabalho nos
EUA, Caresse e Harry Crosby, Gre-
tchen e Peter Powel, que tinham uma
cultura fotográfica muito actual e
apurada) dão-lhe a conhecer, entre
outros, Eugène Atget (1857-1927),
uma das principais influências das
primeiras fotografias de Cartier-Bres-
son (manequins, vitrines, fontes ti-
pográficas de velhas lojas, santos…),
bem como a corrente germano-sovi-
ética da Nova Visão (ângulos radicais,
composições geométricas, repetição
de motivos…).
“Um duro prazer”É um Henri Cartier-Bresson cheio de
informação, um tubo de ensaio ar-
tístico, aquele que decide dedicar o
seu talento e o seu saber “à arte”
(prefácio de Images à la Sauvette).
Sedento de aventura e depois de des-
pachar os negócios que o levaram ao
continente africano — Costa do Mar-
fim, Camarões, Togo e Sudão —, Car-
tier-Bresson entrega-se à fotografia.
Manda rolos para França e, numa
carta à mãe, mostra-se curioso com
o resultado da revelação. “Tenho ti-
rado muitas fotografias”, diz na mis-
siva de Janeiro de 1931.
O exotismo, a antropologia visual
e toda mística, muito em voga na
época, acerca do “continente negro”
não lhe interessaram. Preferiu o mo-
vimento das pessoas e o frenesim das
ruas, o quotidiano. A experiência
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10 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
O tempo que baliza o
nascimento, o auge e o
declínio da fotografia dita
humanista corresponde,
grosso modo, ao tempo
em que Henri Cartier-
Bresson se manteve publicamente
activo na fotografia, entre 1930 e
1970. A sua prática fotográfica é
citada de forma recorrente entre os
que se dedicaram a dar expressão a
um movimento que privilegiava a
pessoa, a sua dignidade e a sua
relação com o meio. Mas há
também quem duvide deste
alinhamento de Cartier-Bresson.
Apesar de se poder considerar que
a abordagem humanista é
intrínseca à fotografia e um dos
seus objectos permanentes, é
possível delimitá-la entre o
momento em que se sentiu
necessidade de regressar ao real e
o momento em que a fotografia-
documento deu lugar à fotografia-
expressão (André Rouillé).
No arranque dos anos 30,
depois de uma década em que se
manifestou todo o tipo de
vanguardas (surrealistas,
abstractas, construtivistas…), um
número crescente de fotógrafos
assume a vontade de voltar a olhar
para o que se passa nas ruas,
procurando a “precisão
fotográfica” para através dela
captar o espírito do tempo.
Abalada pela Grande Depressão
que estala nos EUA em 1929, a
classe operária sofre e os
fotógrafos usam as suas
ferramentas para dar visibilidade
a esse sofrimento. Para afirmar
esse desígnio, há um meio que
ganha cada vez mais importância:
a imprensa fotográfica (entre
muitas outras, a Vu, a Life e a
Paris-Match, fundada em 1949,
que tornou célebre o lema “le
poids des mots, le choc des photos”,
ou seja “o peso das palavras, o
choque das imagens”). E também
meios técnicos de fácil
manuseamento (Leica, Rolleiflex),
que fixam o quotidiano de uma
maneira inovadora e vívida.
A primeira década de produção
de Cartier-Bresson enquadra-se
nesta corrente que procura um
“realismo poético”,
nomeadamente com imagens que
mostram a descoberta do tempo
livre, as várias faces da pobreza ou
o quotidiano das cidades. Apesar
desta escolha de temas sociais, o
fotógrafo português Paulo
Nozolino, que conheceu Cartier-
Bresson em Paris, não identifica
na sua obra nenhum traço da
fotografia humanista. “Era um
esteta, um formal e um
dogmático. Encontro uma prática
humanista em W. Eugene Smith
(1918-1978) ou em Robert Capa
(1913-1954), mas em Henri Cartier-
Bresson não.” Para Nozolino,
Cartier-Bresson “não era um
fotógrafo da emoção”, e o facto de
fotografar com uma lente de 50
mm colocava-o “longe do sujeito,
sem contacto com ele”. “Há
algumas fotografias dos primeiros
tempos, sobretudo as que fez em
“Era um fotógrafo do rigor. Não me parece que tivesse a mínima empatia pelo proletário russo ou pelo operário chinês”Paulo Nozolino
Durante os dois anos em que estagiou na Magnum, António Pedro Ferreira concentrou-se na emigração portuguesa, uma comunidade fechada sobre si e triste
africana foi de tal maneira intensa
que, quando regressou a França, de-
cidiu fazer da fotografia o seu modo
de vida, a sua expressão plástica, a
ferramenta através da qual tentou
compreender e (apreender) o mun-
do. O empurrão definitivo foi dado
por uma fotografia do húngaro Mar-
tin Munkácsi (1896-1963), que Cartier-
Bresson viu na revista Arts et Métiers
Graphiques e em que três rapazes
correm rumo às vagas do lago Tan-
ganica. “Fez-me perceber imediata-
mente que a fotografia poderia atin-
gir a eternidade através do momento.
É a única fotografia que me influen-
ciou. Há nela tal intensidade, espon-
taneidade, alegria de viver e prodígio
que ainda hoje me sinto deslumbra-
do”, escreveu em 1977.
Com as fotografias de África e as
que tirou nos meios surrealistas, no
final dos anos 20, constrói o First
Album (disponível digitalmente nu-
ma das primeiras salas da retrospec-
tiva): não mais do que algumas de-
zenas de imagens coladas num ca-
derno de argolas, mas que revelam
claramente a intenção de fazer es-
colhas e delinear um estilo. A partir
de então, passa a pôr os pés ao ca-
minho não para viajar, mas para
fotografar. No final de 1931, parte
num velho Buick rumo a Berlim,
Budapeste e Varsóvia. Em 1932, vol-
ta a partir para Itália e depois para
Espanha (Alicante, Barcelona, Va-
lência, Toledo, Madrid, Sevilha),
altura em que, para muitos, terá re-
alizado as suas melhores fotografias,
aquelas em que se revelam alguns
dos traços de estilo e de conteúdo
que o acompanhariam. Há compo-
sições muito cuidadas, linhas fortes
e geometrizantes, picados e contra-
picados para mostrar o movimento
de pessoas, a rua, o trabalho, o lazer
e as condições de vida.
Seguindo os famosos “exercícios
de purificação” dados por Lothe para
chegar às composições perfeitas, atra-
vés das regras da “divina proporção”,
Cartier-Bresson movimenta-se à pro-
cura de “um ritmo da superfície”, das
“linhas” e dos “valores”, mas não es-
quece, no entanto, o papel da “sorte
objectiva”, que se consegue através
da “sensibilidade”, da “intuição” e de
uma “capacidade de antecipação”. E
se há coisa que não se pode negar a
esta retrospectiva é a forma como, na
diversidade, procura mostrar a capa-
cidade de Cartier-Bresson em unir
estes dois talentos numa prática foto-
gráfica sempre perseguida pela am-
bição da “síntese”. Mesmo quando o
cinema parecia ganhar mais espaço
na sua carreira (deixou vários docu-
mentários sobre a Guerra Civil de Es-
panha e participou em filmes de Jean
Renoir, como assistente e actor), o
olhar cirúrgico influenciado pela fo-
tografia manteve-se. E, enquanto se
dedicou mais às câmaras de filmar,
não deixou o ofício que paradoxal-
mente considerava um “duro prazer”,
fotografando intensamente para a
imprensa comunista.
Em 1943, depois de se ter evadido
de um cativeiro de três anos às mãos
dos nazis, regressa à imagem foto-
gráfica para abraçar a foto-reporta-
gem, decisão que o conduzirá à fun-
dação da agência Magnum (com
Robert Capa, George Rodger, David
Seymour e William Vandivert), no
mesmo ano em que o MoMA lhe de-
dicou a sua primeira retrospectiva,
quando já era um nome firmado in-
ternacionalmente. É o início de uma
etapa que o conduzirá aos quatro
cantos do mundo (Cartier-Bresson
não desejava tornar-se um globetrot-
ter) e em que será testemunha de
alguns dos acontecimentos mais
marcantes do século XX. A lista é
demasiado vasta para caber num
artigo de jornal, mas citemos apenas
dois: no dia 30 de Janeiro de 1948,
fotografou Gandhi em Nova Deli ho-
ras antes de ter sido assassinado (as
imagens que fez do funeral deram
a volta ao mundo); a 3 de Dezembro
do mesmo ano estava em Pequim
no momento em que o Exército Po-
pular de Libertação de Mao Tsé-tung
dava as últimas estocadas no regime
nacionalista de Chang Kai-chek (fi-
cou na China durante quase mais
um ano). Nesta época, a reportagem
ao serviço da cooperativa Magnum
dominou a sua produção visível,
mas sempre que possível ia cons-
truindo um universo fotográfico
mais pessoal, longe dos constrangi-
mentos e dos prazos da imprensa.
Essas fotografias foram resumidas
pelo próprio como “uma combina-
ção de reportagem, de filosofia, e
de análise social, psicológica”, uma
forma de “antropologia visual” num
tempo analógico em que o registo
gráfico jogava um papel fundamen-
tal. Esse corpo de trabalho, que na
retrospectiva assume pontualmen-
te a forma de núcleos temáticos (So-
nhadores Diurnos, O Homem e a Má-
quina…), é talvez o mais desconhe-
cido e o que revela um lado
(formalmente) mais livre da fotogra-
fia de Cartier-Bresson.
Quer seja para ver os macro-acon-
tecimentos, quer seja para ver os
fogachos de mundo que deslumbra-
ram Henri Cartier-Bresson, quem
quiser entrar nesta exposição deve
preparar-se para esperar — se quiser
ver, de facto, as provas de época,
que respeitam os formatos e as (pe-
quenas) dimensões por si impostas.
E isto quer dizer também que é pre-
ciso ficar com a cara a dois palmos
da superfície em que o mestre deci-
diu registar os seus momentos foto-
gráficos. Afinal, talvez não tão “de-
cisivos” assim.
Um humanista pouco dado ao contacto humano
Cartier-Bresson será testemunha de alguns dos acontecimentos mais marcantes do século XX: fotografou Gandhi em Nova Deli horas antes de ter sido assassinado
Três fotógrafos — Georges Dussaud,
Paulo Nozolino e António Pedro Ferreira
— revêem, entre a proximidade afectiva
e a distância ideológica, a prática
de Henri Cartier-Bresson.
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 11
Espanha, que ainda podem ter
algum calor, mas o resto não.”
O fotojornalista do semanário
Expresso António Pedro Ferreira,
que estagiou entre 1982 e 1984 na
Magnum, onde se cruzou com o
fotógrafo francês, reconhece em
Cartier-Bresson um pendor
humanista, mas sublinha “a frieza,
às vezes desconcertante”, de
muitas das suas imagens mais
conhecidas. “Ele é um virtuoso.
Quem olha para as suas fotografias
dirá que tem o poder da máquina
do tempo, que consegue fazê-lo
parar no auge de um gesto
escolhendo com uma precisão
matemática a abertura certa, a
composição perfeita, tudo.”
Apesar desta destreza, António
Pedro Ferreira lembra um lado de
Cartier-Bresson pouco dado a
contactos pessoais: “Na Magnum,
só me davam orientações se eu as
pedisse. Como o meu trabalho era
sobre imigrantes, fui ver todas as
fotografias que tinham sobre
imigração. Foi numa dessas visitas
que me cruzei com ele. Era temido
por toda a gente. Tinha mau génio.
As pessoas tinham-lhe medo,
evitavam-no. Tinha um espírito
crítico implacável. Houve alguém
que um dia lhe foi mostrar um
portfólio e ele decidiu vê-lo de
pernas para o ar.” O fotojornalista
do Expresso, o único português a
estagiar na mítica cooperativa,
fala ainda de um homem “muito
nervoso, sempre a gesticular,
sempre aos pulinhos”. “Era muito
enérgico, mas era um estilo de
energia que parecia não dominar.”
Paulo Nozolino traça um retrato
semelhante: “A composição era a
única coisa que lhe interessava.
Era um fotógrafo do rigor. Não era
um homem muito preocupado
com as pessoas. Era um burguês.
Viajou pelo mundo e teve acesso a
coisas que mais ninguém teve.
Não me parece que tivesse a
mínima empatia pelo proletário
russo ou pelo operário chinês. Era
pedante e frio.” O fotógrafo
português afirma ainda que
quando Cartier-Bresson deixou de
fazer reportagem, no início dos
anos 70, “sabia perfeitamente que
os seus bons velhos tempos já
tinham acabado”. E a partir daí
“passou a ser um papa, mais do
que outra coisa qualquer”. “É o
papa de muita gente, mas meu
não é”, insiste.
Já o francês Georges Dussaud,
fotógrafo da extinta agência Rapho
(fundada em 1933 e viveiro de
muitos fotógrafos humanistas,
como Robert Doisneau, Édouard
Boubat, Bill Brandt, André Kertész,
Janine Niépce, Willy Ronis e Sabine
Weiss), ressalva que Cartier-
Bresson “comprometeu
completamente a sua vida para
testemunhar o estado do mundo, a
vida quotidiana das pessoas mais
comuns”. Para Dussaud, que
fotografou Portugal ao longo das
últimas três décadas, “é preciso
regressar à fotografia humanista,
porque ela é um testemunho
importante do mundo, de um
determinado tempo histórico, e
dificilmente será substituível”.
Na Magnum, António Pedro
Ferreira, que durante dois anos se
concentrou apenas na emigração
portuguesa em França, lembra
que os conselhos dos fotógrafos
mais experientes iam sempre no
mesmo sentido — estar com as
pessoas. “James Fox disse-me para
escolher uma família e seguir cada
membro o mais tempo possível.
Dizia que era preciso sair de
manhã com cada um deles e voltar
à noite…” O resultado não foi
“uma visão optimista do homem”
(um dos mandamentos do
humanismo do pós-guerra que
teve a sua expressão máxima na
exposição The Family of Man,
organizada por Edward Steichen e
inaugurada em 1955, em Nova
Iorque, em que Cartier-Bresson
participou) mas o retrato de uma
comunidade fechada sobre si e
triste, sem esconder “a
especificidade histórica e social
das representações dos indivíduos
no mundo” — que foi o que Roland
Barthes pediu em Mythologies
(1957), quando criticou a
linearidade encenada do
humanismo de The Family of Man.
Com Sérgio C. Andrade
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
16 SEX · 23:00 MANÉ FERNANDES - BOUNCELAB PT
PAPANOSH FR
17 SÁB · 21:00 EDUARDO CARDINHO
& JOÃO BARRADAS QUARTETO PTHAYDEN POWELL TRIO NOR
18 DOM · 21:00 MARCO SANTOS QUARTETO PTMARLY MARQUES QUINTET LUX
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SEJA UM DOS PRIMEIROS A APRESENTAR HOJE ESTE JORNAL COMPLETO NA CASA DA MÚSICA E GANHE UM CONVITE DUPLO PARA O CONCERTO DO DIA 18 DE MAIO. CONDICIONADA À DISPONIBILIDADE DA SALA, A OFERTA É LIMITADA AOS PRIMEIROS 10 LEITORES E VÁLIDA APENAS PARA UM CONVITE POR JORNAL E POR LEITOR. OBRIGATÓRIA A APRESENTAÇÃO DO DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO NO ACTO DO LEVANTAMENTO.
16–18 MAIO
12 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
A ascensão dos Black Keys a banda mais célebre do rock’n’roll é a história de uma improbabilidade. Ninguém imaginaria vê-los no topo do mundo — e eles muito menos. Turn Blue mostra que o novo estatuto nada lhes diz.
No topo do mundo
Mário Lopes
Blac
k Ke
ys
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 13
“Começámos por baixo e as condições eram lastimáveis, portanto sentimos cada ano como um passo acima. Tem sido uma subida constante, constante”Dan Auerbach
O novo álbum dos Black Keys pode ser um grande álbum falhado — no imediato, porém, terá vida feliz
E então chegou aquela canção
e todos se ergueram das ca-
deiras e dançaram tentando
imitar os passos vistos no ví-
deo que se transformara me-
ses antes em fenómeno viral.
Pavilhão Atlântico, 29 de Novembro
de 2012. Os Black Keys e as primeiras
notas de Lonely boy. Tudo parecia
vagamente irreal: milhares de pes-
soas reunidas para verem os Black
Keys e Dan Auerbach e Patrick Car-
ney, cuja música pede salas onde se
veja o suor no rosto dos músicos,
tão à vontade naquele espaço gigan-
tesco. Provavelmente, o cenário se-
rá igualmente irreal quando a banda
actuar no Optimus Alive, a 11 de Ju-
lho. Irreal porque lembramo-nos de
como tudo começou, há 12 anos.
The Big Come Up (2002), o primei-
ro álbum, mostrou-os como banda
de um blues-rock descarnado, gara-
geiro, muito de acordo com a explo-
são mediática rock’n’roll espoletada
pelos White Stripes. Thickfreakness,
no ano seguinte, foi outra face da
mesma moeda. Os Black Keys sur-
giam no cenário, vindos de Akron,
no Ohio, e eram banda simpática,
mas, apesar de um excelente álbum
intitulado Rubber Factory, o tercei-
ro, editado em 2004, estávamos
longe de vislumbrar ali sinais de
grandeza. Imaginávamos que a sua
ética de trabalho e a paixão pela mú-
sica que criavam juntos asseguraria
que continuariam ano após ano a
gravar num estúdio caseiro e a mon-
tar digressões que dariam à justa
para pagar as contas. Não imaginá-
vamos mais do que isso — nem, de
resto, o imaginavam eles.
Porém, ao contrário de muitas
outras bandas da sua geração, como
algumas para quem os Black Keys
abriram concertos à época, como
os australianos The Datsuns ou os
americanos Von Bondies, aconteceu
aos Black Keys uma coisa extraordi-
nária. Continuaram. E, em vez de
desaparecerem do radar, não para-
ram de crescer. Até este ponto: da
sua geração, são provavelmente a
banda rock mais célebre do planeta,
com vendas de milhões, com o Ma-
dison Square Garden a esgotar em
15 minutos, com Jeniffer Lawrence,
a actriz, a guardá-los no coração co-
mo a sua banda preferida (“tudo
fica mais cool quando os ouvimos”,
elogia ela), com Lana del Rey a con-
vocar Auerbach para produzir o seu
novo álbum, Ultraviolence (edição
prevista para Junho), e com Mike
mmmmmBlack Keys
Turn BlueNonesuch;
distri.
Parlophone
mote para o álbum foi dado por Wei-
ght of love, que se tornaria a primei-
ra canção do alinhamento — um
épico de sete minutos em que a ban-
da se entrega ao rock cósmico como
os Pink Floyd de Meddle e em que
explora aquele psicadelismo de de-
signer que os Air nos apresentaram
em Moon Safari antes de Auerbach
se lançar, convicto, em solos de gui-
tar-hero de outros tempos. “Depois
daquilo, sentimos um ‘podemos fa-
zer o que quisermos — tudo estará
bem’”, confessava o guitarrista à
Rolling Stone.
Brothers fora o disco em que o
travo clássico rock’n’roll da banda
encontrava uma produção de calor
orgânico, criada meticulosamente.
A crueza desapareceu para surgirem
em seu lugar teclados vintage, baixo
bojudo e baterias de som saturado,
ou seja, Dan Auerbach e Patrick Car-
ney descobriam finalmente, com a
ajuda de Danger Mouse, considera-
do o terceiro membro da banda, e
depois da experiência em Blakroc,
álbum que reuniu os Black Keys a
rappers com Raekwon, Mos Def ou
RZA, como aplicar à sua música o
trabalho de cientista sonoro dos
produtores hip-hop — e, de cami-
nho, com piscadelas de olho aos T.
Rex ou a Sly Stone entre a agilidade
blues-rock habitual, alargavam as
suas fronteiras sonoras e chamavam
o povo à pista de dança. El Camino
chegou depois como versão destila-
da, mais directa (cada canção um
projecto de single) do caminho ini-
ciado anteriormente.
Turn Blue é o momento em que a
banda como que soçobra perante a
visão do novo mundo sónico desco-
berto em Brothers. O gesto não é
similar à deliciosa auto-sabotagem
das expectativas que os MGMT fize-
ram no seu segundo álbum, Congra-
tulations, e está muito distante da
transformação consciente dos Kings
Of Leon de óptima actualização do
boogie sulista em bafienta máquina
de singles com refrão oleoso.
O circunspecto Dan Auerbach, fi-
lho de músicos cujo sonho na infân-
cia era tocar bluegrass com o pai e
os tios, e o desengonçado Patrick
Carney, dono de um humor seco e
inseguro da sua valia enquanto mú-
sico (teve de recorrer à ajuda de um
psicoterapeuta para enfrentar os
concertos), não são gente dada ao
planeamento de carreira. Fizeram-no
uma vez, quando, após uma digres-
são europeia da qual regressaram
com um dívida de alguns milhares
de dólares, e perante o cenário de se
aproximarem dos 30 e não consegui-
rem com a banda mais do que o ren-
dimento equivalente ao salário mí-
nimo, decidiram que ceder algumas
canções para publicidade não equi-
valeria a prostituírem a sua música
(o que seria depois indissociável, co-
mo habitualmente, da massificação
da banda). Não, Turn Blue é simples-
mente resultado de uma banda que,
enquanto o seu vocalista lidava ob-
cecado com um divórcio (as letras
explicam), fez o que faz habitualmen-
te. Enfiou-se num estúdio e deixou
que o momento guiasse as opera-
ções. “Não temos quaisquer regras
e, por vezes, tomo [a música] por
garantida porque nos sai tão facil-
mente”, confessava Auerbach recen-
temente.
Antes, a gravação mais demorada
dos Black Keys arrastara-se por 17
dias. Turn Blue demorou meses a
gravar. E nota-se. A produção é ima-
culada, mas parece impor-se às can-
ções mais vezes do que o desejável
— o piano foleiro, muito 80s, a ma-
cular o refrão desse lamento soul
intitulado Turn blue; a linha de sin-
tetizador a comandar essa bizarria
no cânone Black Keys que é Fever
(precisamos de uns Franz Ferdinand
americanos no ano da graça de
2014?). Quando tudo se equilibra,
porém, como em Year in review, com
stomp em midtempo, cordas, apon-
tamento de castanholas, coros e pan-
deireta unidos em densa melancolia,
os Black Keys parecem dar um passo
em frente. Não chega, porém, para
fazer de Turn Blue o sucesso que de-
sejaria a ambição da banda. Bullet in
the brain, por exemplo, apresenta-se
como curioso encontro entre o psi-
cadelismo planante britânico e
rock’n’roll americano, mas fica a
meio caminho e quebra em refrão
anónimo, decididamente pouco ins-
pirado. Perante ela, preferimos a
fórmula já testada: It’s up to you now,
com bateria primitiva, guitarra in-
candescente e a chama blues e ilu-
minar os três minutos da canção.
Na já extensa discografia dos Bla-
ck Keys, Turn Blue figurará como o
grande álbum falhado, um disco em
que momentos surpreendentes e
justos para com a natureza da banda
(são conservadores progressistas,
digamos) convivem com marcas
clássicas e com, pelo menos, um par
de equívocos. Enquanto o eco de
Lonely boy ou de Tighten up conti-
nuar a ouvir-se, tal será insignifican-
te para o estatuto da banda enquan-
to nome mais célebre do rock’n’roll
da actualidade. Além disso, esse
mesmo estatuto assegurará a Turn
Blue, no imediato, uma vida feliz. O
que se seguirá é, claro, uma incóg-
nita. Certo é que os Black Keys, que
nunca esperaram chegar ao topo do
mundo e ter Mike Tyson a oferecer-
se para os ajudar no que for preciso,
continuarão como sempre.
Na entrevista à Mojo, Patrick Car-
ney conta que continua a contar os
tostões sempre que enche o depó-
sito do carro e que põe de lado me-
tade do dinheiro porque tudo isto
lhe parece demasiado irreal para se
manter por muito tempo. Há quatro
anos, imediatamente antes de a lou-
cura se instalar, dizia ao Ípsilon:
“Precisamos de trabalhar para pagar
as contas. Felizmente, tudo isto é
também um vício. É a indústria mais
fodida da cabeça que existe, mas
tudo nela à fascinante”. Um ano an-
tes, Dan Auerbach: “Isto é o que
continuarei a fazer, quer seja popu-
lar ou não, quer tenha ou não opor-
tunidade de pôr um álbum nas ru-
as.”
Não deixaram de ter essa oportu-
nidade desde então. O fascínio man-
tém-se. E eles, no topo do mundo,
fazem o que bem lhes apetece. Con-
sideremos ou não Turn Blue um glo-
rioso álbum falhado, só podemos
louvá-los por isso.
Tyson, a quem ofereceram uma can-
ção para incluir num documentário
do pugilista, a dar-lhes o número de
telefone (ele estará do outro lado
para tudo aquilo que eles necessita-
rem). Dan Auerbach passa tardes a
conversar com Robert Plant, Patrick
Carney mora bem perto do seu gran-
de amigo Harmony Korine, e os Bla-
ck Keys são convidados pelos Rolling
Stones para interpretarem juntos
em palco Who do you love?, o clássi-
co de Bo Diddley (aconteceu em
2012). E, entretanto, Dan Auerbach,
homem discreto e metido consigo
(“Não confio em pessoas felizes, são
uma maldição”, dizia ao Ípsilon
quando da edição, em 2009, do seu
magnífico álbum a solo, Keep It Hid),
vê a sua vida privada devassada pe-
la imprensa tablóide (o dinheiro
pago à ex-mulher, a custódia da fi-
lha, os pormenores pouco edifican-
tes que um divórcio implica, tudo
escarrapachado em papel e on-line).
Se tudo isto não é sinónimo de es-
trelato, o que será?
“Começámos por baixo e as con-
dições eram lastimáveis, portanto
sentimos cada ano como um passo
acima”, diz Dan Auerbach no artigo
de capa que a Mojo lhes dedicou.
“Quando tivemos o nosso primeiro
autocarro [de digressão], sentimos
‘uau, podemos fazer isto para sem-
pre’. Todos os anos desde que come-
çámos foram melhores do que o ano
anterior. Tem sido uma subida cons-
tante, constante.” É verdade. Tem-no
sido desde que editaram Brothers em
2010, o álbum em que a parceria com
Danger Mouse (Gnarls Barkley, Cee-
Lo Green, Broken Bells), iniciada no
álbum anterior, Attack & Release
(2008), frutificou, cristalizando o
som que lhes ouvimos hoje. Depois
de Brothers, chegou El Camino, com
El Camino chegou Lonely boy, e os
rapazes de Akron, hoje senhores na
primeira metade dos trintas, torna-
ram-se estrelas globais — nos EUA, a
indústria fez o habitual: depois de os
ignorar durante quase uma década,
começou a cobri-los de Grammys
(sete entre Brothers e El Camino) a
partir do momento em que as ven-
das, as partilhas on-line e as presen-
ças televisivas se tornaram prova
inequívoca de que ali havia talento
(mede-se pelo dinheiro gerado, se-
gundo os critérios daquela malta).
EquívocosUma subida constante, constante.
Sem dúvida. E agora? Agora há novo
álbum, Turn Blue, e a história pode
mudar. Atingido o topo, será altura
de começar a descida? Colocamos
a questão porque Turn Blue, mais
“psicadelicamente” lento, com sin-
tetizadores para pista de dança do
tamanho de um estádio a conduzi-
rem as operações e, aqui e ali, false-
te a arriscar a soul, não parece disco
para manter a loucura popular (ou
para recuperar o pedigree indie).
Gravado depois de dois anos inin-
terruptos em digressão (“o que foi
idiota e pouco saudável”, confessa-
va Auerbach à imprensa australia-
na), viu a banda dividir-se entre es-
túdios em Hollywood, no Michigan
e em Nashville, cidade em que vivem
actualmente Auerbach e Carney. O
14 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
David Byrne, Damon Albarn, uma compilação e um documentário revelaram a festa de sintetizadores que William Onyeabor fez antes de se dedicar a Cristo. Mas continua a haver muitas perguntas sobre este nigeriano que rejeita tocar ao vivo e falar da sua música.
Poucos músicos não ficariam
eufóricos se a Luaka Bop
lhes telefonasse a mostrar
interesse em fazer uma
compilação em torno da
sua obra. Mas William
Onyeabor não ficou. “Porque é que
queres falar sobre isso?”, perguntou
a Yale Evelev, presidente da editora
fundada pelo ex-Talking Heads Da-
vid Byrne. “Eu só quero falar sobre
Jesus.” E desligou o telefone.
Sobre Onyeabor, homem de Enu-
gu, cidade do Sudeste da Nigéria,
dizia-se todo o tipo de coisas: que
estudou cinema na União Soviética
(ou Direito?) e voltou a casa em me-
ados dos anos 70 para fundar estú-
dios de cinema e de música e a sua
editora; que os sintetizadores que
usava vinham da Rússia; que finan-
ciou o seu próprio filme; que foi ad-
vogado; que representou a marca
de sintetizadores Moog. O que se
sabia ao certo, porque os discos não
mentem, é que fazia funk como nin-
guém fazia na Nigéria, um funk com
espaço para sintetizadores e outra
maquinaria, a milhas do que se pro-
duzia no seu país nos anos 70 e 80
— e que ainda ia mais longe, já que
temas como Let’s fall in love parecem
mesmo antecipar a cadência infini-
ta da música house, que nasceria na
mesma altura, mas em Chicago. E
sabia-se também que, em 1985,
Onyeabor parou de fazer discos e
dedicou a vida a Cristo.
Sem outra colaboração do músico
além da assinatura no contrato, a
Luaka Bop demoraria meia década
a conseguir lançar a dita compila-
ção, Who Is William Onyeabor?, edi-
tada no final do ano passado. Mais
recentemente, o nigeriano, hoje na
casa dos 70, foi alvo de um docu-
mentário, Fantastic Man. Mas con-
tinua a rejeitar tocar ao vivo, escla-
recer a sua vida ou falar com jorna-
listas. O New York Times e a Mojo
tiveram a sorte de publicar algumas
palavras. “Eu era um pecador que
se arrependeu e se deu a 100% a
Cristo”, disse ao primeiro.
Nos últimos dias, Damon Albarn
(Blur), Alexis Taylor (Hot Chip), Ke-
le Okereke (Bloc Party), Pat Maho-
ney (LCD Soundsytem), David Byrne
e outros músicos participaram em
concertos em Londres, Los Angeles,
Nova Iorque e São Francisco — não
temos Onyeabor em palco, mas te-
mos gente que o adora a prestar-lhe
homenagem. Mais amor: a propósi-
to do Record Store Day, em Abril,
foi lançada uma compilação com
versões e remisturas das canções de
Onyeabor pela mão de gente tão di-
versa como Hot Chip e The Vaccines.
Músicos (os supracitados, mas tam-
bém Caribou, Devendra Banhart e
muitos outros) fazem-lhe vénias e
coleccionadores de todo o mundo
cobiçam os oito álbuns que fez entre
A incrível história de William Onyeabor ainda está por contarPedro Rios
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 15
1977 e 1985 (chegam a ser vendidos
por valores com três zeros). Ouvidos
hoje, soam modernos e inclassificá-
veis: na Nigéria de Fela Kuti e de
bandas como The Funkees e Apos-
tles ( James Brown era referência
tutelar), havia um homem, recluso
e misterioso, a produzir música com
instrumentos electrónicos como os
Moog, estranhos e luxuosos.
Os jornais nigerianos da época
falavam em “sintetizadores sofisti-
cados” e “instrumentação disco so-
fisticada”. Mas já na altura se sabia
pouco acerca dele.
Detectives“No início foi difícil. Não sabes que
Damon Albarn é um fã, pensas que
ele é praticamente desconhecido,
as primeiras dez pessoas que con-
tactas não te respondem”, confessa
Eric Welles-Nystrom, manager da
Luaka Bop, a partir dos escritórios
da editora, em Nova Iorque.
Quando conversou com o Ípsilon,
Eric acabara de chegar de uma visi-
ta a Enugu. Who Is William Onyea-
bor? está cá fora, mas abundam as
questões ainda sem resposta. “Não
o ficamos a conhecer melhor de ca-
da vez que o visitamos. Podemos
passar uma semana com ele e ficar
só a ver televisão cristã e a ouvi-lo
falar sobre Deus. Mas depois há um
momento em que fala de outra coi-
sa e aprendes algo. Quando concor-
dou em fazer o disco mas disse que
não iria falar, ficámos numa situação
complicada”, conta. Como promo-
ver alguém que recusa tocar ao vivo,
dar entrevistas, alguém para quem
ceder um velho VHS com um tele-
disco difícil de obter é um problema
quase intransponível?
A Luaka Bop empreendeu um ver-
dadeiro trabalho de detective, que
envolveu conversas com músicos
contemporâneos de Onyeabor e vi-
sitas a Enugu, onde o músico tem
uma grande propriedade e uma rua
com o seu nome. Nos encontros
com Onyeabor, Eric mede as pala-
vras e procura as melhores formas
de saber algo mais sobre a persona-
gem: “O facto de não conseguires
encontrar nada on-line — uma bio-
grafia ou uma presença — intrigou-
nos e obcecou-nos. Hoje consegui-
mos encontrar quase tudo na Inter-
net, até a foto da casa de alguém. E
eis este tipo sobre o qual não se con-
segue encontrar quase nada.”
“Acho que ele agora começa a per-
ceber que as pessoas no Ocidente
gostam dele. E aprecia, mas preferia
saber que tu lês a Bíblia à noite do
que falar sobre isso. Repete cons-
tantemente coisas como não querer
mais publicidade, querer apenas
estar em paz. Quando estou lá, diz-
me muitas vezes que não quer que
eu fale com mais ninguém, liga-me
para ver se estou no hotel e não a
andar pela cidade. Só quer fazer as
suas orações”, continua Eric.
“Quando as coisas não são pes-
quisáveis na internet provavelmen-
te confundem toda a gente”, acres-
centa Jake Sumner, realizador de
Fantastic Man. “O facto de ele não
aparecer está relacionado com o
fascínio das pessoas. E Onyeabor
está provavelmente muito ciente
disto — é um tipo muito esperto.”
“Leiam as vossas bíblias”Nas estadias em Enugu, Eric e com-
panhia mostram a William Onyea-
bor recortes de imprensa que lhe
dêem a noção do burburinho que
causa em todo o mundo. Parece va-
lorizar mais que uma revista desco-
nhecida publique a sua foto do que
saber que a Time pôs Who Is William
Onyeabor? entre os dez melhores
discos de 2013.
Onyeabor demorou muito tempo
a aceitar o convite da Luaka Bop.
Foi o nigeriano Uchenna Ikonne
que, em 2009, teve a ideia de fazer
uma compilação em torno de Onye-
abor. Percebeu que a Luaka Bop
faria um melhor serviço do que a
sua pequena editora, propôs-lhe o
projecto e assumiu as negociações
em nome da editora norte-america-
na. As conversas foram tensas. “Ele
estava relutante em assinar um con-
trato porque sentia que tinha sido
enganado no passado quando licen-
ciou a sua música a uma editora es-
trangeira”, conta Ikonne. Onyeabor
recebeu o dinheiro de avanço, mas
demorou três anos a assinar o con-
trato. Numa das conversas, acusou
Ikonne de ser um agente do Diabo.
Uchenna Ikonne ouviu a música
de Onyeabor quando era criança,
nos anos 70. “Os miúdos de hoje”
da Nigéria, diz-nos, “não sabem na-
da sobre ele, a não ser que tenham
ouvido que a obra dele está a ser
reeditada no estrangeiro”.
A viver em Boston, nos EUA, Ikon-
ne, que tinha um blogue dedicado
à música africana, compreende a
fixação actual do Ocidente neste fi-
lão. “As pessoas ficam surpreendi-
das porque conhece-se pouco de
África e a maioria dos media retra-
tam um local escuro, miserável e
violento”, teoriza. Num local desses
não haveria lugar para música alegre
como a de Onyeabor.
Em Fantastic Man, Laolu Akins,
músico de Lagos, diz que Onyeabor
era, nos anos em que durou a sua
carreira, o único artista a ter o seu
próprio estúdio e a sua própria fá-
brica de prensagem de discos. E nas
suas estadias em Enugu Eric encon-
trou, mais do que um músico, um
homem de negócios orgulhoso. “An-
tes de falarmos sobre a música dele,
falávamos sobre o facto de ele fabri-
car os seus próprios discos.”
O que Onyeabor fazia no início da
década de 70 e como chegou aos
instrumentos electrónicos é ainda
um “mistério”, afirma Eric, que che-
gou a contactar a Moog para saber
se tinha enviado sintetizadores para
a Nigéria naqueles anos. A resposta
foi negativa, o que indica que tê-los-
á conseguido no estrangeiro.
“Ele viajava muito. Sei que, no
início dos anos 80, ele visitou os
EUA, a Inglaterra, a Dinamarca, a
Suécia, a Itália... Importava equipa-
mento para a sua fábrica. A sua ci-
dade parece ser hoje muito remota,
nos anos 70 nem consigo imaginar:
Enugu foi um dos principais palcos
da guerra do Biafra [a guerra civil
nigeriana, entre 1967 e 1970].”
No final de Fantastic Man, há um
plano da enorme casa de Onyeabor
com um letreiro a dizer “Palácio
Deus é Rei” e um Mercedes à porta.
O músico rejeitou ser entrevistado,
mas pediu que filmassem a escada-
ria dentro do “palácio”. Estão lá um
Moog e fotos das vidas que levou (na
música e na fé), num altar improvi-
sado. No exterior, Onyeabor acena-
nos. Ouvimos uma gravação, as pa-
lavras que disse à Mojo: “Vivam uma
boa vida. Cumpram a palavra de
Deus. Leiam as vossas bíblias.”
“Ele agora começa a perceber que as pessoas no Ocidente gostam dele. E aprecia, mas preferia saber que tu lês a Bíblia à noite do que falar sobre isso” Eric Welles-Nystrom, Luaka Bop
Onyeabor rejeita tocar ao vivo ou falar com jornalistas, mas o New York Times teve a sorte de publicar algumas palavras: “Eu era um pecador que se arrependeu e se deu a 100% a Cristo”
16 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
“É uma ligação de sangue
e consegues senti-la.
É imbatível.” Citamos
de cabeça palavras de
Iggy Pop, comentan-
do o desempenho da
secção rítmica dos Stooges em Raw
Power. Falava de Scott Asheton, ba-
terista, e de Ron Asheton, o guitar-
rista tornado baixista naquele ál-
bum histórico de 1973. Uma ligação
de sangue, dizia então Iggy Pop. O
que diria ele dos Pontiak, homens
do rock’n’roll que decerto têm a
discografia dos Stooges em desta-
que na discoteca caseira? Criadores
hiperactivos (dez edições desde a
estreia em 2005) que passam me-
tade da vida num estúdio rural no
estado da Virgínia (a outra metade
passam-na em concertos), são for-
mados por Van, Jennings e Lain
Carney. Três irmãos. Aqui chegados
devíamos escrever “e nota-se”.
Mas, na verdade, não sabemos se
aquilo que são os Pontiak, ontem
rock’n’rollers dados à subversão
noise, stoner, dos cânones, hoje
uma banda que concentra esse sa-
ber adquirido em canções directas
e concisas em que continua a so-
bressair o nervo que a distinguia,
deve muito ao facto de terem nas-
cido quando três irmãos, descon-
tentes com as bandas em que se
haviam metido, decidiram que me-
lhor seria experimentar ver o que
conseguiriam fazer juntos. Van Car-
ney, o vocalista e guitarrista que
fala ao Ípsilon algures do campo
francês, pouco depois de pôr em
movimento uma carrinha que que-
brara a meio da viagem para novo
concerto, não dá relevo à questão
familiar. O mais importante é isto:
“Tocamos todos os dias. E fazemos
os nossos próprios vídeos, tratamos
da arte gráfica dos álbuns, temos
outros projectos a acontecer. Não
penso nisto como um trabalho. É
simplesmente o que faço. É, para
mim, como que um grande projec-
to de arte. Enlouqueceria se não o
fizesse. Nunca me canso.” Soube
que era isto que queria, assegura,
desde que viu o pai e o tio a toca-
rem canções de Chuck Berry, tinha
ele quatro anos. Pois, deve ser uma
coisa de sangue…
Esta noite, os Pontiak, nome de
culto que nunca deixará de o ser e
assim é que está correcto (fica-lhes
bem essa existência algo subterrâ-
nea, marginal), estarão no Sabotage,
em Lisboa (22h30), como convida-
dos da primeira noite Floresta En-
cantada, programa da rádio Radar
dedicado ao psicadelismo. Amanhã,
serão protagonistas das noites Flow
de Mayo no Centro para os Assuntos
da Arte e da Arquitectura, em Gui-
marães, partilhando palco com os
Kilimanjaro e Solar Corona
(21h30).
“Será uma mistura entre a setlist
que trouxemos preparada para a
digressão e o improviso do alinha-
mento. Decidimos noite a noite. Um
concerto é feito com o público e,
por isso, é sempre diferente. Não
concebemos que possa ser de outra
forma”, explica Van Carney antes
de contar que há dez anos não vem
a Portugal (esteve no país de passa-
gem enquanto estudava em Valên-
cia) e que está ansioso pela comida
e pelo bom vinho cá da terra. Van,
de resto, fala muito de vinho e de
comida. Ouçamo-lo a descrever In-
nocence, o álbum editado em Janei-
ro que vêm promover a Portugal.
Innocence alterna entre os riffs
mastodônticos, companheiros de
viagem dos Queens Of The Stone
Age iniciais e dos Black Sabbath de
sempre (os dois misturados em Sur-
rounded by diamonds), e os momen-
tos em que Neil Young bate à porta
do estúdio na Virgínia para serenar
as coisas (a clássica Americana de
Wildfires, que é novidade na banda
mas que, por demasiado canónica,
representa o lado menos interes-
sante do álbum). Diz então Van: “O
álbum é como que uma refeição
equilibrada. Podes sentar-te a uma
mesa e comer simplesmente um
pedaço de carne, mas uma refeição
torna-se muito melhor quando tens
mais do que isso, quando acompa-
nhas com vinho, quando tens café
no fim, quando misturas o doce e
o amargo. No álbum, tens tudo isso
ao mesmo tempo”. Acto contínuo,
defende o lado baladeiro de Inno-
cence: “Muita gente gosta da dinâ-
mica do disco, outros parece-me
que ficaram com medo dela. Que-
rem só uma coisa e ficaram confu-
sas. Tudo bem, há espaço no mun-
do para quem quer sempre a mes-
ma coisa.” Dito isto, regressamos
ao vinho: “Acontece que eu adoro
vinho tinto, mas também vinho
branco e champanhe.”
HonestidadeAo contrário de álbuns anteriores,
como o tão agreste quanto mag-
nífico Living, de 2010, Innocence
nasceu de um processo diferente
do habitual nos Pontiak. Aquilo
que ouvimos em “95%” da disco-
grafia da banda nasceu ao primei-
ro take — compõem, gravam uma
maqueta e, depois, preservam a
forma como a canção será imor-
talizada em disco de uma vez. “A
nossa ideia é captar a imediatez.
Sem merdas. Pôr a canção em ce-
na e bang!”. Innocence encontra o
trio entregue à nobre tarefa de,
como escrevemos e como diz Van,
“compor canções concisas e di-
rectas”. Obrigou-os a “tocar as
canções vezes sem conta e rear-
ranjá-las constantemente”. À an-
tiga: “Nenhum computador foi
utilizado. Gravámos tudo numa
mesa de oito pistas e, devido a es-
sa limitada quantidade de espaço,
tínhamos de ter a certeza de que
tudo o que fazíamos era exacta-
mente o que queríamos e que não
havia ali nenhuma merda dispen-
sável. Exigiu que tivéssemos um
grande nível de honestidade con-
nosco.”
Os Pontiak chegam a Portugal
com um álbum que, apesar de me-
nos consistente do que lançamen-
tos anteriores, se distingue na sua
discografia. Chegam, ainda assim,
a banda de sempre. Algo insular,
habitando o seu universo peculiar.
“Temos muitos amigos em muitas
bandas, mas não sinto necessidade
de me alinhar com nenhuma. Não
temos qualquer preocupação em
ser parte do que quer que seja. Tu-
do o que nos interessa é fazer.”
Não está a fazer cenário. Ouvi-los
é percebê-lo.
O feedback a anunciar-se em
crescendo, as guitarras a preen-
cherem o espaço sónico, cheias,
ameaçadoras. A voz que grita:
“Wasted! Corrupted!”. A canção
tem o título do álbum. Innocence.
Estão apresentados. Pontiak é o
nome.
Três irmãos, um estúdio rural na Virgínia, os Black Sabbath e os Stooges no subconsciente: os Pontiak, banda hiperactiva, estão hoje em Lisboa e amanhã em Guimarães.
Mário Lopes
Pôr a canção em cena e bang!
mmmmm Pontiak
InnocenceThrill Jockey;
distri. Flur
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 17
Sir Richard Bishop anda pelo mundo a recolher música para adulterar numa guitarra hipnótica. Hoje e amanhã, está cá para mostrar que há caminhos infi nitos nas suas seis cordas.
Quando Richard Bishop foi
convidado para editar o seu
primeiro álbum a solo pela
Revenant, a editora do míti-
co John Fahey que sucedeu
à Takoma Records, temeu
que fosse um engano e apressou-se
a aceitar antes que alguém desse
conta do equívoco. Não era engano.
A surpresa de Bishop prendia-se, em
parte, por se prostrar naturalmente
aos joelhos de Fahey se este assim o
quisesse, mas ao mesmo tempo não
se considerar sequer próximo da
linguagem musical do mestre. Só
que, contando com o aval de Fahey
e deslumbrado por poder engrossar
uma editora que lançava não apenas
o bluesman Charlie Patton mas tam-
bém figuras do jazz experimental
como Cecil Taylor ou Derek Bailey,
não perdeu tempo e avançou para a
edição de Salvador Kali, em 1998. O
título construía à bruta duas pontes
evidentes na geografia da obra de
Bishop daí em diante: a música es-
panhola e a tradição indiana.
Sabendo que Fahey assentira à
publicação do álbum por sugestão
do seu sócio Dean Blackwood — fã
dos Sun City Girls —, Bishop aprovei-
tou uma passagem do guitarrista por
Seattle, na primeira parte dos No-
Neck Blues Band, e pensou agrade-
cer-lhe pessoalmente. “E foi exacta-
mente o que aconteceu”, relata ao
Ípsilon. “Primeiro, o Fahey apare-
ceu, subiu ao palco e perguntou ao
público se alguém tinha uma guitar-
ra em que ele pudesse tocar. Achei
aquilo genial.” Em seguida, enquan-
to os No-Neck se preparavam no pal-
co, Bishop identificou Fahey no bar.
Apresentou-se. “Não houve qualquer
resposta. Ele não sabia quem eu
era”, recorda. Voltou a apresentar-
se, desta vez dizendo não apenas o
nome mas fazendo igualmente um
pequeno resumo da sua ligação à
Revenant. Conseguindo agarrar um
fragmento da atenção de Fahey, es-
te respondeu-lhe: “Ah, ok, és o Sir
Richard Bishop. Tocas como o dia-
bo.” Até à morte de Fahey, passados
dois anos, Bishop não voltou a ouvir-
lhe a voz. Retirou-se agradecido por
um elogio que, se pudesse, carrega-
ria escrito no peito ou apresentaria
como currículo para o resto da vida.
“Ele era muito intimidante. Era um
tipo muito grande e tinha uma ener-
gia à volta dele que tinha de se pe-
netrar só para conseguir dizer olá.”
A bênção, no entanto, estava dada.
Sir Richard Bishop, que não deve
o seu “Sir” a nenhuma condecora-
ção atribuída pela Rainha de Ingla-
terra, encontrava finalmente nas
palavras de Fahey uma razão oficial
para o estatuto de nobreza. Mas as
razões para o título nobiliárquico
são fatalmente plebeias. Era brinca-
deira entre velhos amigos que o gui-
tarrista adoptou “um pouco por
piada” quando começou a apresen-
tar-se a solo, a fim de cavar, na sua
própria cabeça, um fosso que o se-
parasse da identidade musical cons-
truída na folk-punk dos Sun City
Girls. Tanto assim que quando toca
com o irmão Alan Bishop (também
ex-Sun City Girls) ou com os Rangda
(trio que partilha com Ben Chasny
e Chris Corsano) Richard é apenas
Richard — “o Sir é para não me sen-
tir tão só, para me sentir especial e
da realeza”, ri-se.
Django (mal) imitadoNos tempos dos Sun City Girls, a mú-
sica em que Bishop se via metido par-
tilhava o desvairamento psicadélico
com uma ambição xamânica e ritua-
lista, como se oficiosamente a música
do trio servisse de banda sonora a
cerimónias de sociedades secretas.
A solo, Sir Richard — que sobreviveu
uns bons anos a negociar livros do
oculto — colocaria um açaime nessas
emanações para-religiosas, embora
não prescindisse de um lado medita-
tivo e transcendente. Menos rude do
que aquilo que praticava nos Sun Ci-
ty Girls, a música de Sir Richard
Bishop distancia-se também pela re-
lação que mantém com a exploração
de mundos musicais longínquos do
seu Arizona natal. E isto porque, no
início dos Sun City Girls, Richard e
Alan foram surpreendidos pelos ecos
que carregavam de uma infância na
natural convivência com alguns dos
grandes clássicos da música árabe
(Oum Kalthoum, Fairuz ou Farid al-
Atrache), cortesia dos avós libaneses
com quem cresceram. “Na altura não
significava grande coisa para mim
porque era muito novo”, diz Richard,
“mas estava exposto àquela música
e a partir do momento em que come-
cei a tocar guitarra lembrei-me de ir
ouvi-la novamente e explorá-la. Esta-
va-me no sangue, de uma forma ou
de outra.”
Com o investimento progressivo
na carreira a solo, Bishop foi-se em-
brenhando cada vez mais noutras
tradições musicais, quer fosse o Be-
atle George Harrison a sugerir-lhe a
música indiana, quer fosse a sua
curiosidade constante a fazê-lo che-
gar até às guitarras do egípcio Omar
Khorshid — ao qual dedicou o exce-
lente álbum The Freak of Araby — e
do romani belga Django Reinhart —
que ouve obsessivamente desde
criança —, ou à guitarra portuguesa
de Carlos Paredes. Em todos os ca-
sos, de forma mais ou menos explí-
cita, Sir Richard Bishop viaja pela
guitarra embalado por musicalida-
des alheias, mas sem se propor in-
terpretar estes repertórios em evo-
cações copistas. “São músicas que
parecem viver dentro de mim e que
tento tirar cá para fora, recriando
ambientes”, explica. “A música de
Django Reinhardt, por exemplo,
causou-me uma impressão tão du-
radoura que tento tocá-la de tempos
a tempos, mas falhei sempre. O que
me mostrou que essa inspiração po-
de servir para fazer algo diferente,
no contexto da minha música. É ape-
nas uma questão de viver no meio
desses sons para ver o que produz
em mim.”
Até em relação aos ragas indianos,
o trabalho de investigação que Sir
Richard Bishop diz ter levado a cabo
nas várias viagens à Índia ao longo
dos anos resume-se a aparecer, sen-
tar-se e ouvir o mais possível, ele-
vando-se a uma espécie de receptá-
culo vivo e ambulante. “Não me
interessa o academismo porque há
regras rígidas para fazer isto ou aqui-
lo correctamente”, reconhece. “E
já há muitas pessoas que estudam
anos e anos para tocar exactamente
como deve ser tocado.” Por isso, tal
como fez no tema âncora do recen-
te The Road to Siam, a sua interven-
ção limita-se a responder livremen-
te aos estímulos absorvidos. Na Tai-
lândia, em Novembro passado, tal
como hoje no Passos Manuel (Porto)
e amanhã na Zé dos Bois (Lisboa),
onde se apresenta depois do con-
certo de ontem em Ourém, Sir Ri-
chard Bishop começa a tocar sem
pensar no quê. Os dedos ditam o
caminho e a partir do instante em
que reconhece o território para on-
de foi levado, o cérebro tenta inter-
vir e sugerir desvios. Mas, na verda-
de, são mesmo os dedos que man-
dam. Quando a noite corre bem,
Bishop não lhes perde o rasto.
Gonçalo Frota
Umas mãos do diabo
18 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
A ideia era antiga. Queria
criar um álbum a partir de
20 discos escolhidos por
alguém a partir da sua co-
lecção particular, recorren-
do a técnicas de sampling
e colagem. Quem nos conta a histó-
ria é D-Mars, luso-croata que viveu
muitos anos em Portugal — deixou
a sua marca na alvorada do hip-hop
com os Zona Dread e depois com os
Micro, ao lado de Sagas e Nel’ Assas-
sin, antes de se projectar em nome
próprio, ou com as identidades de
Rocky Marsiano ou Double D Force,
na editora Loop Recordings que co-
fundou — e que há seis anos vive em
Amesterdão.
“No ano passado andava à procu-
ra de novos desafios como Rocky
Marsiano e lembrei-me de voltar a
essa ideia”, diz-nos. Para a concre-
tizar contactou um velho amigo, o
jornalista e crítico de música Rui
Miguel Abreu, também conhecido
pela faceta de coleccionador, desa-
fiando-o a escolher duas dezenas de
discos. Ele trataria de criar um ál-
bum a partir daí.
“Quando fui a casa dele buscar os
discos não fazia a mínima ideia do
que ele tinha seleccionado e foi uma
surpresa completa quando percebi
que havia escolhido discos dos países
africanos de expressão portuguesa.
Não estava à espera. Mas assim que
ele me mostrou os discos, de imedia-
to, na minha mente, o disco e o con-
ceito começaram a tomar forma.”
Na sua maioria eram discos da dé-
cada de 1970 — de Angola, Cabo Ver-
de ou Moçambique, alguns pré e
outro pós-independência —, que fo-
ram trabalhados de formas diferen-
ciadas. “O disco foi feito em três épo-
cas diferentes do ano passado e com
abordagens distintas”, recorda, alu-
dindo ao facto de haver recriações,
temas feitos à base de colagens e da
introdução de elementos de percus-
são, e ainda outros criados a partir
de dinâmicas rítmicas estabilizadas
por ele. “O Rui [Miguel Abreu] deu-
me os discos em Julho do ano passa-
do e depois fui logo para uma ilha na
Croácia, de férias, e foi fabuloso, por-
que ali a sonoridade tropical fazia
todo o sentido. Mais tarde, em Outu-
bro, trabalhei a partir do meu estúdio
em Amesterdão.”
O resultado final é excitante. Sur-
preendente pela simplicidade, pela
leveza e pela eficácia, com ritmos,
harmonias ou vozes resgatadas a
mornas, coladeras ou funanás, re-
criadas por entre técnicas do hip-
hop, elementos rítmicos dancehall,
propriedades jazzisticas ou compo-
nentes disco ou afro-beat. Apesar
de já ter havido outras experiências
de filosofia algo semelhante (como
os Batida), o enquadramento final é
singular e refrescante.
Alguns temas parecem mais anco-
rados no balanço do hip-hop, como
Meu kamba, Irri birri ou Suave. Ou-
tros — como Psycho baio, Esse mam-
bo, Tuta ou Dançante — constituem
um irresistível convite à dança e à
insinuação física, enquanto Bernie,
nha mano, mantém um pouco do seu
travo melancólico original, numa re-
lação intuitiva, democrática e des-
complexada entre músicas africanas
e batimentos cardíacos urbanos.
Festa em palco“Quando comecei a utilizar técnicas
de sampling, recorri aos discos bra-
sileiros da minha mãe, porque ela
havia crescido no Brasil”, recorda
D-Mars, tentando explicitar os seus
motivos de inspiração ao longo dos
anos, que passaram pelo jazz, pela
soul, pelo disco ou pelo funk, sem-
pre com o hip-hop no foco. Agora é
a música angolana ou de Cabo Verde
dos anos 1970. “Lembro-me de ouvir
alguns destes discos há dez anos”,
diz, “mas desta vez ouvi-os com ou-
tra sensibilidade, porque entretanto
também cresci como compositor e
estou mais aberto a outros sons, e
não apenas soul ou funk.”
Até agora, na pele de Rocky Mar-
siano, havia lançado quatro álbuns
(The Pyramid Sessions, de 2005, Out-
side The Pyramid, de 2008, Back To
The Pyramid, de 2010, e Music For
All Seasons, de 2013), sendo que os
dois primeiros eram muito marca-
dos pela relação fusionista com o
jazz, o terceiro com a soul e o funk
e o quarto com a música brasileira.
Agora que a música africana se atra-
vessa no seu caminho, isso provo-
cará diferenças na forma como se
revela em palco: “No dia 23 vou to-
car no OutJazz, em Lisboa, ainda
com a formação habitual, com o An-
dré Fernandes e o João Moreira, mú-
sicos de jazz. Mas estou já a preparar
este álbum para ser tocado ao vivo
e aí vou colaborar com outros mú-
sicos, noutro formato. Vou querer
introduzir uma dimensão de festa
em palco. Não será apenas uma ses-
são de improviso. Seria um erro não
tentar isto ao vivo.”
O último álbum de Rocky Marsia-
no, do ano passado, ou a compilação
Lisbon Bass, lançada na sua mais re-
cente editora, a Adam and Liza, qua-
se não tiveram divulgação em Por-
tugal, acabando por obter visibili-
dade no Japão ou na Holanda, mas
desta feita vai ser diferente. Meu
Kemba será editado no próximo dia
26 e o músico até já está a pensar
num novo álbum.
Enquanto isso não sucede, desdo-
bra-se por várias actividades. Duran-
te o dia, trabalha numa empresa
especializada em licenciamentos de
música. À noite, principalmente aos
fins-de-semana, desdobra-se como
DJ — seja como Marko Roca, numa
linha mais tecno, em cidades como
Berlim, ou como Rocky Marsiano,
numa veia mais soul e funk.
O tronco comum de todas estas in-
fluências parece continuar a ser o
hip-hop que abraçou no final dos
anos 1980. Inspirou-se nas suas téc-
nicas e formas de operar. E o olhar
transversal que mantém sobre a mú-
sica actual também foi marcado por
uma estrutura hip-hop, a partir da
qual todas as ramificações parecem
possíveis. Próxima paragem: África.
Dêem-me 20 discos e dar-vos-ei um universo de sons. É Meu Kamba, novo álbum de Rocky Marsiano, criado a partir da colecção de Rui Miguel Abreu.
Vítor Belanciano
Deixar África entrar nesse corpo
mmmmm
Rocky Marsiano
Meu Kamba
Adam and Liza
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 19
Os Black Bombaim uniram-se aos La La La Ressonance e criaram um disco alucinante que deu brado lá fora; depois, gravaram Far Out, onde Africa II brilha num caos prog.
Copos e jantares: eis “o melhor
método para fazer música”, segun-
do TóJó. É uma abordagem à com-
posição mais relaxada e que está de
acordo com o mote do projecto. “O
facto de o disco ser uma colabora-
ção retira-nos a todos muita pressão.
De certa forma é uma brincadeira,
embora uma brincadeira que levá-
mos a sério. Agora nós lançámos Far
Out, eles estão a compor o novo de-
les, podemos até dar uns concertos,
mas o projecto acaba aqui e da me-
lhor maneira.”
Tal e qual o nome das canções in-
dica, e à excepção de Kraut, é um
álbum em que pequenas figuras me-
lódicas de guitarra ou de saxofone ou
de sintetizador se vão unindo, primei-
ro aos círculos e depois aos encon-
trões, até a bateria explodir e cada
tema entrar em combustão. A síntese,
como mencionado, chega à perfeição
em Kin, que é um medley entre um
tema dos La La La e outro dos Black
Bombaim: um filho perfeito.
Far Out surgiu imediatamente a
seguir, e seguiu um registo diferen-
te, embora influenciado pelo ante-
rior. “Black Bombaim, por norma,
é escrito em ensaio: vamos tocando
e quando paramos decidimos qual
a parte melhor que fizemos e a par-
tir daí começamos a trabalhar. É por
isso que as nossas músicas são lon-
gas [África II tem 16 minutos, a faixa
sem título tem 18]: precisamos que
um tema assente e a malta se habi-
tue e só depois dessa duração, que
nos põe naquele estado de nos dei-
xarmos levar pela música, quase
hipnotizado, é que surge uma mu-
dança de que não estás à espera e
perguntas ‘Uou, que foi isto?’”, es-
clarece TóJó.
Talvez por influência da convivên-
cia com os La La La, Far Out afasta-se
um pouco do que os Black Bombaim
fizeram antes. “Demos por nós a sen-
tir falta de mais qualquer coisa — e
por isso convidámos pessoas para
tocarem connosco. Não é que nos
sentíssemos limitados os três, mas
tivemos vontade de acrescentar coi-
sas. Estar com nove foi inspirador.”
Os Black Bombaim chamam ao
que fazem heavy-psy. Estão cons-
cientes de que agora o psicadelismo
está na moda. “A ideia de viagem,
esse termo que agora é usado todos
os dias a torto e a direito, é impor-
tante. A ideia é conseguires moshar
e viajar mentalmente ao mesmo
tempo.” Trata-se, explicam, de “pe-
gar numa música do Jimi Hendrix,
escolher um solo e fazer do solo to-
da a música”: “Ao ver os Earthless
há uns anos, percebemos que era
isso que andávamos a fazer nos en-
saios mas tínhamos medo de levar
para o palco. Éramos mesmo miú-
dos quando fizemos o primeiro dis-
co. E depois de ver os Earthless per-
demos o medo.” Basta atentar no
delírio caótico de Africa II para per-
ceber que hoje dominam essa lin-
guagem em que “há rock mas não
há canções e se estica o mais que se
pode a ver no que dá, mas sem pre-
tensiosismo”.
Resumindo: “Não somos espe-
ciais, estamos só a curtir”. A segun-
da parte é verdadeira, a primeira é
falsa.
João Bonifácio
Duas viagens na montanha-russa
Alguma vez andaram numa
montanha-russa? O carro
desce os carris a uma ve-
locidade que parece in-
controlável e quando che-
ga ao chão os carris ini-
ciam uma curva perfeita na direcção
dos céus, que, no seu ponto mais
alto, dá aos passeantes uma sensa-
ção de queda livre usualmente re-
cebida com um misto de pavor e
euforia.
Agora acreditem se quiserem: Kin,
a terceira faixa de Black Bombaim &
La La La Ressonance, resultado da
colaboração entre os Black Bombaim
e os La La La Ressonance, é uma ex-
periência ainda mais extremada. É
que na montanha-russa tudo é cal-
culado de acordo com a lei da con-
servação da energia e sabe-se que
para o carro não cair antes de chegar
ao topo da montanha é preciso que
o quadrado da velocidade do carro
no momento em que chega ao chão
seja igual a cinco vezes a gravidade
vezes o raio da curva. Em Kin não se
cai — sai-se disparado: é o equivalen-
te à experiência de estar na Arca de
Noé durante o dilúvio, condensada
em 13 minutos. Ora atentem nos no-
mes das canções que compõem o
álbum: Bruce Lee, Kraut, Kin e Tsu-
nami. Claramente estão a avisar-nos
que o conteúdo é explosivo. E não
acaba aqui: os Black Bombaim edi-
tam em simultâneo mais um LP, Far
Out, composto por duas faixas, uma
nomeada Africa II e outra sem título
— que vai por caminhos aproximados
aos do que gravaram com os La La
La, embora mais no osso e com
maior profusão de riffs de guitarra.
Que raio passou pela cabeça des-
tes moços? Que raio andam a pôr na
água em Barcelos, cidade de onde
são originárias as duas bandas?
Quando TóJó, baixista dos Black
Bombaim, nos atende o telefone,
diz-nos a rir que este acontecimen-
to simultâneo é “estúpido”: “Em
termos de marketing não se pode
fazer uma coisa destas. E ainda por
cima o nosso primeiro LP foi agora
reeditado nos EUA, pelo que são três
discos ao mesmo tempo. Mas que
se dane: não vamos ficar com discos
na gaveta.” Não só não ficam com
discos na gaveta como ainda por ci-
ma eles vão para outras prateleiras:
Terceiro vai ser editado nos EUA.
Entretanto, lá fora, o disco a meias
com os La La La é laudado: a The
Quietus, por exemplo, adorou.
Far Out foi o segundo dos dois a
ser feito. A ideia para o primeiro par-
tiu dos organizadores do Milhões de
Festa e consistia em pôr as duas ban-
das a darem um concerto conjunto
no festival. “Em Janeiro do ano pas-
sado começámos a ensaiar e logo
nessa altura achámos que era tonto
deixar isto só para o concerto.”
Sem medoBlack Bombaim e La La La Resso-
nance pertencem a duas gerações
diferentes de músicos de Barcelos,
e por isso não eram “amigos” no
sentido convencional do termo (pré-
Facebook): “Nós éramos os putos,
havia uma diferença geracional. Mas
tinha tudo para dar certo, porque o
teor psicadélico está presente em
ambas as bandas.”
Como é comum nestas circuns-
tâncias, “o primeiro ensaio foi com
todos a fazerem barulho e cada um
à procura do seu lugar”. Os La La La
“entraram numa onda mais pesa-
da”, enquanto os Black Bombaim
estavam numa “mais espacial”. De-
pois, “com tanta gente a tocar” (no-
ve elementos, ao todo), chegaram à
conclusão de que tinham de fazer
“um som mais simples, com mais
dinâmica, mas mais calmo”. Na prá-
tica isto implicou que os Black Bom-
baim, que disparam riffs por tudo e
por nada, os pusessem “muito de
parte, para haver espaço”.
O disco acabou por ser escrito
“nuns oito ensaios” e em “montes de
jantares e copos” em que se decidiam
coisas como “amanhã vamos fazer
uma música mais kraut, com baterias
simples e riffs espaciais”. Assim sur-
giu o segundo tema, Kraut.
mmmmm
Black
Bombaim
Far OutLovers &
Lollypops
JOA
NA
CA
STEL
O
20 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
Há uma diferença substan-
cial que distingue Suite nº1:
ABC, de Joris Lacoste, da
miríade de espectáculos
que nos últimos anos têm
enxameado os palcos com
statements sobre o poder político da
palavra. É que a política, aqui, não
tem lugar. Ou, pelo menos não no
sentido reivindicativo, de marcar
uma posição, de querer agitar cons-
ciências, de pretender fazer-se a um
desejo de participação que nunca
abandona a passividade.
Aqui, com estas vozes e estes cor-
pos, o discurso é outro. Diz Joris
Lacoste, prolífico defensor da pa-
lavra como matéria viva, que Suite
nº1: ABC, o espectáculo de abertu-
ra do Alkantara Festival (4ª, dia 21,
e 5ª, dia 22, no São Luiz Teatro Mu-
nicipal, em Lisboa) nos ensina a
ouvir, como se antes da acção — ou
em preparação para a acção — a es-
cuta fosse o gesto mais importante.
Em palco, uma massa de actores,
organizada em inventivas disposi-
ções que rejeitam a normalização
dos diferentes discursos através de
um empenho na interpretação que
tem mais a ver com ética do que
dramaturgia. Lacoste explica que
o texto surgiu do encontro de um
conjunto de fontes diversas, retira-
das da Internet ou registadas nas
ruas e em outros locais públicos,
apanhadas em filmes e programas
de televisão — juntas, todas essas
palavras funcionam como uma es-
pécie de cápsula dos tempos mo-
dernos. “Há muitas texturas e co-
loraturas que funcionam como
ganchos, prendendo a atenção de
quem ouve”, argumenta. Mas o que
se ouve é menos do que aquilo que
se vê porque, aqui, ver implica uma
concentração no som e um enfoque
num dispositivo sonoro que é, so-
bretudo, intuído.
“Desde o início, com a escrita,
houve um desejo de identificar, e
depois compreender, quais os ele-
mentos que melhor poderiam servir
a partitura. O que as coisas signifi-
cam depende não só do modo como
são ditas mas também do modo co-
mo são ouvidas”, continua o ence-
nador. Condicionando a palavra a
um uso, Suite nº1: ABC, que é parte
do projecto mais vasto Encyclopédie
de la Parole, tenta perceber que sen-
tido damos ao que escutamos. Na
altura da estreia do espectáculo em
Paris, em Novembro passado, Joris
Lacoste explicava que “um dos efei-
tos mais perturbadores” surgia da
“deslocação das palavras para um
contexto teatral, onde se produz
uma dissociação entre o contexto e
o conteúdo”. E acrescentava, em
entrevista incluída no programa,
que, automaticamente, “somos le-
vados a escutar de modo mais aten-
to formas de discussão, de sedução,
de explicação, de afirmação até en-
tão escondidas pelo nosso insaciável
desejo de perceber o sentido do que
é dito”.
Ouvir antes de falarPorque em Suite nº1: ABC “as pala-
vras são tratadas como se fossem
uma partitura exacta, revestem-se
de uma estranheza que nos permi-
te ouvi-las de outra forma”. Joris
Lacoste procurou não a heteroge-
neidade dos discursos, ou mesmo
das vozes, mas antes colocar-se no
ponto imediatamente posterior à
emissão de um discurso, o momen-
to da escuta: “O modo como cada
um fala e ouve está ligado ao modo
como cada um interpreta o que ou-
ve”, insiste. Se daqui se puder infe-
rir um sentido político para a pala-
vra, porque se relaciona com a pos-
s ib i l idade de intervenç ão
individual que nos está reservada
enquanto seres pensantes, então
Lacoste pede que esse sentido seja
mais intuitivo do que reactivo. É por
isso que a escrita, criada sob prin-
cípios semelhantes aos de uma par-
titura musical (um processo coor-
denado por Nicolas Rollet), consis-
te no equilíbrio entre interpretação
e repetição, através da “reprodução
de um conjunto de palavras grava-
das sem que isso signifique imitar
pessoas ou representar situações,
e menos ainda criar personagens”.
Foi o que quis fazer experimentan-
do diferentes modos de interpretar
a célebre frase de Taxi Driver, “Are
you talking to me?” — como um con-
vite à atenção, através de uma co-
Na próxima quarta-feira, Joris Lacoste abre o Alkantara Festival com Suite nº1: ABC — e muitas pessoas em palco a falarem ao mesmo tempo.
A palavra ao
Tiago Bartolomeu Costa
poder
“Somos levados a escutar de modo mais atento formas de sedução, de explicação, de afirmação até então escondidas pelo nosso insaciável desejo de perceber o sentido do que é dito”Joris Lacoste
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 21
reografia cénica que explora as to-
nalidades da voz, os seus efeitos no
corpo, e a experiência de partilha,
primeiro entre os intérpretes e, de-
pois, com o público.
É aqui que entram os convidados
especiais que, em todas as passa-
gens, de Seul a Roterdão, de Nova
Iorque a Nyon (exemplos contras-
tantes apenas para dar noção da
escala e do impacto de um projecto
sobre a palavra em contextos lin-
guísticos muito diferentes), são cha-
mados a interpretar o espectáculo
não para lhe darem uma moldura
regional mas para ampliarem a di-
mensão da palavra enquanto ele-
mento unificador. A lengalenga tra-
dicional que dizem, juntamente com
os intérpretes — todos de diferentes
nacionalidades —, brinca com as pa-
lavras, do mesmo modo que o se-
gundo excerto usado, uma gravação
de um noticiário, explora a dimen-
são pretensamente histórica (e por
isso tendencialmente ficcional) que
um texto ganha quando lido a pos-
teriori.
Joris Lacoste reforça que estes
participantes, diferentes em cada
país, possibilitam não que o espec-
táculo pisque o olho à comunidade
que se senta na plateia, mas que fi-
que sujeito ao risco do improviso,
da reacção e do desconforto. “Não
somos conscientes da forma das pa-
lavras”, diz Lacoste, que dá o exem-
plo da respiração como um modo
primário de comunicação: “Há qual-
quer coisa que se joga quando duas
pessoas respiram em simultâneo.”
O trabalho combinado entre o silên-
cio, a palavra, o corpo e o olhar po-
tencia o surgimento intuitivo de um
espectáculo onde “se expõe o voca-
bulário de base”: “Brincamos às
traduções ou ao canto, na alternân-
cia de línguas e de registos; falamos
não para falar mas pelo prazer de
dizer, pelo gosto pela língua.” E, no
meio de tudo isto, “as rupturas, as
pistas falsas, que não são se não des-
vios que suspendem ou perturbam
[o que ouvimos]”. É esse desejo de
não-normatividade que distingue
Suite nº1: ABC dos espectáculos que
levam as massas para o palco mas
não deixam que as ouçamos.
TIBO
R BA
CH
RATY
Missão de Antoine
Defoort e Halory
Goerger neste espectáculo:
criar uma nova história do
mundo
É costume dizer-se que há os
que têm graça e os que são
engraçados. Mas depois de
os termos visto a fazer
música com plantas, a
dinamitar o mundo a partir
de acordes de guitarra, a exlorar a
diversidade narrativa e discursiva
no encontro entre as artes
plásticas, a ciência e o teatro,
ainda não sabemos em que
categoria colocar Antoine Defoort
e Halory Goerger, os
multifacetados performers e
encenadores franceses que
parecem a resposta “belga” ao
britânico humor deadpan. Desde a
primeira vez que nos cruzámos
com eles, em 2005, numa salinha
do Théâtre de la Balsamine, em
Bruxelas — numa versão ainda
primária de La La Ré, onde se
divertiam a brincar com O
Desprezo, de Jean-Luc Godard —
até Germinal, o blockbuster que os
levou a tudo quanto é lado e agora
chega a Lisboa, vai um percurso
que procura construir outros
modos de comunicar.
Germinal, que veremos no
Alkantara na próxima semana
(dias 23 e 24 às 21h30; dia 25 às
19h, no Maria Matos) talvez seja o
momento em que a dupla
conseguiu finalmente chegar à
utopia desse novo mundo que já
havia demonstrado, por exemplo,
em Cheval (2007) e &&&&& & &&&
(2008), com passagens pelas
edições 2010 e 2012 do festival.
Começar de novoAntoine Defoort
e Halory Goerger
regressam a Lisboa
com Germinal.
Parece ser o acertar
do passo com um
outro mundo — mais
teatral, logo mais
real.
Agora tudo parece ser um
bocadinho diferente. Os rapazes
não se dirigem directamente ao
público, não o convocam como se
dele fizessem depender o sucesso
(íamos escrever o truque, a ilusão,
mas eles não parecem rir de si
mesmos da mesma forma) deste
espectáculo com que ambicionam
criar uma nova história do mundo.
Entre a perplexidade e o
entusiasmo, diziam no Verão
passado, quando o espectáculo se
apresentou no Festival de
Avignon, em França, onde o
Ípsilon o viu: “O que nos
interessava não era pôr em causa a
história do mundo, mas modelar
alternativas que partissem,
realmente, do zero, fazendo
alusão a uma série de momentos-
chave.” O projecto ambicioso de
contar a história do mundo surge
assim condicionado,
reconhecendo os seus limites. É
como se a ficção tomasse conta da
realidade para tentar perceber de
que forma a realidade é, também
ela, uma construção. São os
próprios Defoort e Goerger a
assumir que Germinal é um
espectáculo de teatro feito por
artistas plásticos — o que, não
sendo uma novidade, não é um
detalhe de somenos importância.
“Em boa verdade, não inventamos
nada. A luz que descobrimos, por
exemplo, é a luz teatral. A matéria
que inventamos é o pensamento.
As primeiras interacções nascem
de uma necessidade de
comunicação entre indivíduos.” E
por aí fora, até o teatro acreditar
de tal forma que é a realidade que
o público, antes meramente
espectador, se transforma, pelo
medo com que reage ao que se vai
descobrindo em palco. “O que
inventámos neste espaço
tipicamente teatral é determinado
por um conjunto de
comportamentos e, assim, torna-
se uma linguagem comunicante e
um sistema de jogo: rapidamente
o que era um espectáculo sobre a
criação do mundo torna-se,
paralelamente, um projecto sobre
a história do teatro.”
Se Germinal existe para lá da
margem de improvisação que
caracterizava os espectáculos
anteriores, em que se fingia
inusitada mas rapidamente era
integrada, tal parece dever-se à
responsabilidade de determinar o
que é da ordem da ficção e o que é
da ordem da realidade. Há um
lado anárquico que, se legitima a
destruição do cenário, é
compensado por um desejo de
clareza e de comunicação que
antes não existia. “Pela primeira
vez temos um texto escrito”,
confessam. Esse catálogo de
situações exploráveis deu origem
aos fragmentos que testam em
palco. O que daqui resulta não é
tanto um teatro reivindicativo
quanto um espaço de observação
e de aprendizagem. É como se
quisessem voltar ao início — mas
agora pondo de lado o cinismo e
ouvindo o que está à sua volta.
T.B.C.
BEA BORGERS
22 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
É preciso passar para lá do es-
panto e da surpresa para en-
contrar a metáfora que Amit
Drori quis criar com Savanna:
A Possible Landscape, espec-
táculo de 2010 que o Festival
Internacional de Marionetas e For-
mas Animadas traz ao Teatro Nacio-
nal D. Maria II amanhã, sábado e
domingo. Em palco, os autómatos
com a forma de elefantes, tartarugas,
pássaros e cabras ocupam, e for-
mam, a paisagem que este encena-
dor e marionetista israelita quer
transformar em parábola sobre a ori-
gem da vida. Mas, para lá do espanto,
o que vemos é a intimidade de uma
relação filial — um rapaz que quis re-
cuperar a memória da mãe através
de um piano que aprendeu a odiar.
E que depois reconstruiu, sob a for-
ma de apaixonantes animais que ex-
pressam emoções a partir de auto-
matismos mecânicos. Parece estra-
nho — mas é uma experiência feita à
escala da expectativa.
Drori, filho de um arquitecto e de
uma especialista em cultura medie-
val, é um dos nomes mais em voga
no circuito do teatro de marionetas:
os seus espectáculos têm sido cria-
dos, em residência ou em co-produ-
ção, nos mais importantes festivais
e teatros da Europa, como o Barbi-
can, em Londres, ou o Festival de
Charleville-Meziéres, em França, a
meca das marionetas. No perfil que
lhe é traçado pelo programador do
Barbican, explica-se que a influência
dos pais justificou a inclusão de ele-
mentos autobiográficos nos seus
espectáculos, descritos como pro-
cessos intermináveis. “Cada criação
amadurece lentamente fazendo com
que este jovem encenador israelita
um homem poder preparar a sua
chávena de chá”, explicava num dos
vídeos do espectáculo para falar da
possibilidade de extensão da iden-
tidade proporcionada pelos autó-
matos. Em Savanna: A Possible Lan-
dscape, os animais existem num
diálogo estreito com os cinco mani-
puladores, e a história de fundo de
Amit Drori com o piano da sua mãe
é transferida para a relação de afec-
to entre os animais-robô e os mani-
puladores, mas também entre os
próprios autómatos.
O que Amit Drori propõe é que
possamos integrar como identidade
de um autómato as nossas expecta-
tivas sobre o potencial narrativo do
objecto, alimentando assim aquilo
que define como “uma alegoria so-
bre a natureza humana” a partir de
objectos que foram sempre vistos
como reais. A equipa do encenador
demorou quase dois anos até con-
seguir dar forma emocional a estes
animais, explica num documentário
sobre o processo, disponível no site
da companhia. “Ensaiámos manei-
ras de encontrar as emoções ade-
quadas para cada uma das criaturas.
Foram dois anos de trabalho diário
que quase se tornou uma obsessão.
Queríamos que as pessoas as vissem
como algo pessoal.” O maior desa-
fio, explica, foi transformar os seus
autómatos em máquinas afáveis ao
longo do espectáculo. “Estamos ro-
deados de máquinas, são produzi-
das em massa nas fábricas, e são
frias e impessoais. Cada uma das
nossas máquinas é única, feita com
cuidado e atenção. Nunca quisemos
criar uma ilusão: estas máquinas
não são realistas”. E, no entanto, a
emoção que provocam é.
Os autómatos também sentem, supõe Amit Drori. Para fechar a boca de espanto, ei-lo fi nalmente por cá com Savanna: A Possible Landscape.
Tiago Bartolomeu Costa
Autómatos com sentimentos
demore anos até completar um es-
pectáculo. Foi através de um envol-
vimento cada vez mais intenso com
a mecânica que conseguiu transfor-
mar os seus animais em objectos
robóticos autónomos.”
Amit Drori diz que as suas mario-
netas são caseiras — chama-lhes “es-
culturas ciganas” pelo modo como
parecem inventar soluções a partir
das suas próprias necessidades.
“Criamos robôs por razões poéti-
cas”, explica sobre as razões que o
levam, desde há anos, a perseguir
modos de composição narrativos
que querem ir mais longe do que o
espanto e a surpresa. “Temos como
garantido que o homem é capaz de
fazer, com um simples gesto, coisas
que são óbvias. Mas quando são os
objectos que se movem não é pos-
sível prever o que podemos esperar
deles, porque não é evidente que
uma máquina possa sentir ou sequer
ter sentimentos.”
As emoções adequadasPorque os robôs estão muitíssimo
expostos e a sua mecânica é visível
durante o espectáculo, Amit Drori
distingue o efeito da técnica: “Nun-
ca quisemos criar uma metáfora.
Aquilo que o espectador vê não é a
ilusão de um elefante na savana,
mas sim um elefante-robô na sava-
na. É outra coisa.” Mas nem por isso
menos emocional. O objectivo é ou-
tro e tem a ver com identidade, co-
mo já havia acontecido antes com
Terminal (2010), um ensaio biográ-
fico acerca do célebre físico britâni-
co Stephen Hawking que devolvia a
liberdade a essa inteligência confi-
nada a uma cadeira de rodas. “A li-
berdade existe na possibilidade de
MA
RIO
DEL
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RTO
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M/12�������������� �����
Tradução� ��� ������ ��������� Encenação e Adaptação� ����� ������� ������� Cenário e ��������������������������� �� ����������������������������������������������������Interpretação������������������ �!���������� ��"��������� ������#�������$������������������������������#������%&
15 DE MAIO A 1 DE JUNHO
TEATRO DO BAIRRO ALTO De 4ª a Sábado às 21.00h Domingo às 16.00h�&�(������������������)*&� )+,-.+03�������� (��4�+)560),),����477888&������.���������&��� �����4��9�:������.���������&��$������������"��;�<� �4�FNAC, Worten, El Corte Inglês, Abreu, www.ticketline.pt
Co-produção (������ �������=�������!�����%�(��������������
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ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 23
Cine
ma Estreiam
A guerra dos monstrosUm blockbuster com mais
cabeça do que a maioria, fiel
à dimensão metafórica da
crianção original — mas que
não sabe o que fazer com as
suas personagens.
Jorge Mourinha
Godzilla
De Gareth EdwardsCom Aaron Taylor-Johnson,
Ken Watanabe, Elizabeth Olsen
mmmmm
Faz agora 60 anos, um pequeno
filme de monstros japonês dava
o pontapé de saída para uma das
personagens de maior
longevidade do cinema
fantástico — e desde o princípio
que Gojira, aliás Godzilla, aliás O
Monstro do Oceano Pacífico (para
lhe dar o título que esse primeiro
filme teve em Portugal), tem
resistido a quaisquer tentativas
de “ocidentalização” (foi, de
resto, por aí que a esquecível
Godzilla, de Roland Emmerich,
em 1998, criou tanto anti-corpo.
A primeira prova de inteligência
desta nova tentativa é a de se
instalar na sequência directa do
original de 1954, regressando à
origem oriental do monstro
(tudo começa no Japão e nas
Filipinas) e ao seu simbolismo
caucionário.
Entregue ao inglês Gareth
Edwards, cuja estreia notada com
Monsters/Zona Interdita (2010)
situava a reverência pelos filmes
de monstros clássicos num
mundo reconhecivelmente
quotidiano, Godzilla ejecta por
completo o humor piadético que
parece ser de rigor no moderno
blockbuster para perseguir a
seriedade da dimensão
metafórica deste monstro de uma
outra era, originalmente
acordado pelo poder nuclear
desencadeado pelo homem.
Quem esperar de Godzilla a
proverbial porrada de matar
bicho entre monstros gigantes
não sairá desiludido, mas será
certamente surpreendido pelo
subtexto apocalíptico de uma
civilização tecnológica
confrontada com poderes
telúricos contra os quais não tem
defesa — estamos longe da série B
popular da Batalha do Pacífico de
Guillermo del Toro, por exemplo.
O Godzilla de Edwards responde
às instabilidades
contemporâneas, evoca ao
mesmo tempo Fukushima e o
tsunami de 2004 no Oceano
Índico, as alterações climatéricas
e os acidentes industriais com
uma naturalidade quase
ostensiva. No momento em que o
Cosmos de Neil de Grasse Tyson
nos fala do nosso lugar no
universo, o filme questiona como
pode a natureza reagir à
arrogância do ser humano, e fá-lo
de modo muito menos
descartável do que é costume nos
“filmes pipoca”.
Nos seus melhores momentos,
Godzilla recria o terror
existencial, quase
incompreensível, que Spielberg
aperfeiçoou na primeira meia-
hora da sua Guerra dos Mundos.
Fá-lo, sempre, do ponto de vista
das personagens humanas — que,
infelizmente, têm uma total
ausência de espessura. O “herói”
Aaron Taylor-Johnson é
perfeitamente letárgico, é
criminoso ter Elizabeth Olsen,
Sally Hawkins e Juliette Binoche
sem lhes dar nada para fazer. É
por aí que esta Godzilla
resolutamente “à moda antiga”
(mais Spielberg via Abrams do
que Joss Whedon) perde pontos
— por aí e por um 3D
desnecessário. Mas a força e a
grandiosidade das imagens que
Gareth Edwards cria e a
inteligente gestão do ritmo do
filme (recusando a mera
demonstração tecnológica a torto
e a direito) chegam para
confirmar que há mais cabeça em
Godzilla do que na actual linha de
montagem de super-heróis que
parece ter sufocado o cinema
mainstream americano.
nome de Philippe Garrel, que há
décadas se tem insistentemente
autobiografado, encontrando
nesse mês de Maio um ponto
nevrálgico da autobiografia. Vindo
relativamente pouco tempo
depois de um filme de Garrel que
a este respeito é crucial (Os
Amantes Regulares, filme de 2005,
que para mais “revelou” Garrel a
muita gente e se tornou uma das
suas obras mais populares), há
que ter um certo respeito pela
coragem de Olivier Assayas em
trilhar um caminho semelhante:
Depois de Maio é a sua
autobiografia com Maio de 68 ao
fundo. “Ao fundo” porque, na
verdade, já passou: a acção situa-
se em 1971 (quando Assayas tinha
16 anos) e o espírito de Maio, tal
como o filme o mostra, vive
A leveza com que Assayas trata a violência é um dos aspectos que mais limitam este Depois de Maio
Nos seus melhores momentos, Godzilla recria o terror existencial da Guerra dos Mundos de Spielberg
O museu da adolescênciaÉ uma pena que o que mais
tenha interessado Olivier
Assayas seja a fotogenia —
idealizada — do Maio de 68.
Luís Miguel Oliveira
Depois de Maio
Après MaiDe Olivier AssayasCom Clément Métayer,
André Marcon, Lola Créton
mmmmm
Quando se articulam as
expressões “autobiografia” e
“Maio de 68”, costuma-se ir dar ao
fundação carmona e costaEdifício Soeiro Pereira Gomes (antigo edifício da Bolsa Nova de Lisboa)Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºA/C, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego / Bairro Santos) | Tel. + 351 217 803 003 / 4www.fundacaocarmonaecosta.pt
Parque de estacionamento mais próximo: Hotel SanaMetro: Sete Rios / Praça de Espanha / Cidade Universitária | Autocarro: 31
Exposição: até dia 24 de Maio de 2014Horário: de quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00 (excepto feriados)
gabinete > panero
Pedro Saraiva
Curadoria: Maria João Gamito
24 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
Um actor “excessivo”, Nicolas Cage, corporiza a impotência desta América rural e fantasmagórica que Joe dá em apoteose gótica
Jonathan Glazer não tem ferocidade, nem excentricidade, para o corpo de Scarlett Johansson
Jesse Eisenberg, em excelente forma, é um dos trunfos de O Duplo
Veja os trailers das estreias na edição do ípsilon para tablets
agora num grupo de adolescentes
porventura demasiado novos para
terem tido real participação na
agitação de três anos antes.
Esta espécie de teimosia, mais
ou menos irracional e já um
pouco “desligada”, é um dos
temas evocados pelo filme,
sobretudo quando um acto de
“protesto” descamba
acidentalmente em violência e
obriga os miúdos protagonistas à
errância para se furtarem à
Justiça. Ao mesmo tempo, a
leveza com que Assayas a trata é
um dos aspectos que mais limitam
Depois de Maio. É um filme
demasiado embevecido consigo
mesmo para ser capaz de olhar as
coisas com alguma frieza. A
reconstituição da época é credível
e, num certo sentido,
irrepreensível, mas até por isso —
o glamour dos decores, do
guarda-roupa, dos penteados —
vê-se Depois de Maio com a
sensação de que o que lhe
interessa primeiramente é a
fotogenia, idealizada, do Maio de
68 ou, mais genericamente, da
rebeldia juvenil. Uma forma de
superficialidade, portanto, que
não anda longe de se encerrar,
sem qualquer distância crítica,
numa espécie de folclore cultural,
de que são exemplo ainda as
elegantíssimas escolhas musicais
do filme e dos seus protagonistas
(Syd Barrett, Soft Machine…). Não
questionaremos a sinceridade da
memória de Assayas, assim
organizada no seu “museu”
pessoal do Maio de 68, mas este
tratamento, tão auto-
condescendente, articula-se mal
com as contradições e as
complexidades da época, e por
certo com as contradições e as
complexidades da época tal como
outros filmes (e aqui outra vez
Garrel mas não só) a articularam.
Depois de Maio é só um passeio,
pontualmente agradável, bem
feito (demasiado bem feito), mas
onde a suave nostalgia da
adolescência corta toda a
gravidade. No fim, uma metáfora
mostra que o “duplo” de Assayas
foi “escolhido” pelo cinema, e que
essa escolha representa uma
“saída”, ou uma passagem à
frente. Sugerindo, portanto, que
as coisas não se sobrepõem, antes
se vão substituindo umas às
outras. É a derradeira, e capital,
diferença entre Assayas e Garrel,
cineasta que (em Os Amantes
Regulares e em muito mais filmes)
leva uma obra inteira a mostrar
que nada substitui nada, tudo se
sobrepõe, e que o espírito do
Maio de 68 foi, justamente, todas
as coisas (o cinema, o amor, a
política e etc.) integradas,
sobrepostas, no mesmo
movimento.
Angústia existencial
O Duplo
The DoubleDe Richard AyoadeCom Jesse Eisenberg, Mia
Wasikowska, Wallace Shawn
mmmmm
O humorista britânico Richard
Ayoade estreou-se na realização
com Submarino (2010), uma
irreverente história de
adolescentes à procura do seu
lugar no mundo; se O Duplo é
também a história de alguém que
procura o seu lugar no mundo,
é-o numa direcção
diametralmente oposta. Trata-se
de uma adaptação livre,
claustrofóbica e desconfortável,
da novela de Dostoiévski sobre
um zé-ninguém que vê a sua vida
banal ser metodicamente
desfeita pelo seu sósia perfeito.
Ayoade constrói habilmente a
sua teia sufocante, ajudado por
um Jesse Eisenberg em excelente
forma no duplo papel, e pela
cenografia evocativamente
nocturna e sombria de David
Crank, a meio caminho entre o
Brazil de Terry Gilliam e a Cidade
Misteriosa de Alex Proyas, mas
substituindo o surrealismo
escarninho daqueles por uma
angústia existencial asfixiante
que termina num final
opacamente lynchiano. Mas,
algures nesse cadinho de ideias e
referências, Ayoade ensimesma-
se num exercício de estilo,
interessante mas estéril, fugidio
mas derivativo, mesmo que com
qualidades indesmentíveis. J.M.
Continuam
Vida Activa
De Susana Nobre
mmmmm
Susana Nobre passou vários anos
a trabalhar no programa de
“reabilitação” profissional Novas
Oportunidades na zona de Vila
Franca de Xira; durante todo esse
tempo, foi filmando as histórias
pessoais daqueles com quem
lidava, montando-as neste
documentário seco e enxuto que
chega, merecidamente, à estreia
comercial. As múltiplas histórias
que a realizadora vai agrupando
desenham, com atenção e sem
demagogia, um retrato resignado
e triste, um olhar sobre vidas
suspensas que reflecte ao mesmo
tempo a realidade do desemprego
e a atitude economicista dos
empregadores, que desvaloriza a
experiência pessoal e o próprio
orgulho pessoal, que não hesita
em descartar aqueles que ainda
têm muito a dar em nome de um
qualquer resultado (político ou
financeiro) que nada diz a
ninguém — e que, nos seus
momentos finais, revela como
mesmo a “reabilitação” pode
estar condenada. Vida Activa não
se vê com prazer, mas deve ser
visto. J.M.
Joe
De David Gordon GreenCom Nicolas Cage, Tye Sheridan,
Gary Poulter
mmmmm
Um dos temas mais caros ao actual
“cinema independente” americano:
a América rural dada em apoteose
“gótica” (ou apenas grotesca), uma
espécie de comboio-fantasma (ou
comboio de fantasmas) habitado
pela maior violência, real e
simbólica, num percurso aberto
pela combinação, exacerbada e
explosiva, de alusões bíblicas,
álcool, e ressentimentos tão
profundos que se diria virem
directamente de debaixo da terra.
Por natureza, e especialmente no
caso de um filme como Joe, a
subtileza é, neste contexto, uma
noção estranha: tudo “reverbera” e
tudo grita. Mas apesar de tudo o
que o filme de Green tem de
incomodativo, há alguma coisa de
tocante nesse grito (e, de resto,
muito bem corporizada por um
actor tão “excessivo” como Nicolas
Cage, aquilo de mais parecido a
América tem hoje com um
Depardieu), porque o que se grita é
a impotência, e mais do que isso, a
impossibilidade de se voltar a ter
um olhar sobre América
“profunda” com a crença,
humanista em primeiro lugar, que
animou os clássicos e as mais
sublimes visões clássicas da
América rural. É que já não há
estrelas na coroa de ninguém.
L.M.O.
Debaixo da Pele
Under the SkinDe Jonathan GlazerCom Scarlett Johansson
mmmmm
A experiência de Jonathan Glazer
em redor do corpo de Scarlett
Johansson é uma afectação. Pode-
se imaginar que para a actriz deve
haver qualquer coisa de desafiante
em passar um filme a tentar ser
não uma personagem, mas um “it”
— e, na verdade, falhar
completamente. Bowie também foi
uma “it girl” em O Homem que Veio
do Espaço, de Nicolas Roeg (1976), e
esse cineasta e essa tradição do
cinema britânico (e ainda Ken
Russell) são para aqui chamados
para filiar o trabalho do
publicitário e do realizador de
(notáveis) videoclips (Massive
Attack, Radiohead…) que adaptou
o romance de Michael Faber sobre
uma alienígena que anda à caça,
através dos corpos dos outros, da
sua humanidade. Glazer tornava
intrigantemente atmosféricos
pedaços de Birth (2004), a sua
anterior longa-metragem. Em
Debaixo da Pele quer estender a
experiência sensorial por todo um
filme — anulando, como explicou,
os picos e rugosidades de plot do
livro. O resultado é um videoclip
clínico sem música. Até o
voyeurismo pelo corpo de Scarlett
(poderia ser uma forma perversa
de reforçar a condição de “it girl”
de quem ambiciona ser actriz) é
bastante domesticado e serôdio.
Glazer não tem ferocidade para
esse corpo. Nem a visceral
excentricidade, para o bem e para
o mal, de Roeg ou Russell. V.C.
AS ESTRELAS DO PÚBLICO
JorgeMourinha
Luís M. Oliveira
Vasco Câmara
Debaixo da Pele mmmmm – mmmmm
Depois de Maio mmmmm mmmmm mmmmm
O Duplo mmmmm mmmmm –Joe – mmmmm mmmmm
Godzilla mmmmm a –A Lancheira mmmmm mmmmm –As Ondas de Abril – mmmmm mmmmm
Prince Avalanche mmmmm – mmmmm
Sacro GRA mmmmm mmmmm mmmmm
Vida Activa mmmmm mmmmm –
a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 25
Disc
osClássica
A hora de GraçaPortentosa gravação de
música de Lopes-Graça pelo
pianista Artur Pizarro.
Rui Pereira
Fernando Lopes-Graça
Música para piano
Artur Pizarro (piano)Capricio 5156
mmmmm
Justiça feita à
obra de Lopes-
Graça num CD
monográfico
gravado pelo
virtuoso Artur
Pizarro. Esta música de cunho
intensamente português ganha
agora uma dimensão épica e
granjeia um lugar no repertório
internacional. Há muito sabor a
folclore e o que Pizarro consegue
do ponto de vista da interpretação
e da execução é verdadeiramente
notável: sentido cerimonial
grandioso, ambientes de festa,
ritmos precisos com um domínio
do rubato avassalador, a polifonia
das procissões e dos andores, mas
sobretudo um domínio técnico que
permite transmitir um sentido de
facilidade e a naturalidade das
coisas simples. E diga-se que esta
música não tem nada de fácil, mas
para soar gloriosa não pode
parecer difícil.
As Nove Danças Breves (1938-48),
dedicadas ao grande pianista
húngaro Andor Foldes, abrem o
disco num registo grandioso, quase
orquestral, e situam o ouvinte no
universo do folclore português. O
tempo lento do Tema popular
português (1927), o opus 1 de Graça
dedicado a Florinda Santos, é alvo
de uma condução das harmonias
irrepreensível. A Sonata nº 2
(1939), obra revista nas décadas de
40 e 60 e dedicada ao
incontornável nome da música
antiga portuguesa Santiago
Kastner, deixa transparecer um
rigor na escrita pianística mais
elaborado e de grande
consistência. O disco encerra com
as 16 peças para piano intituladas
Ao fio dos anos e das horas (1979),
conjunto de grande diversidade em
que a imaginação e sensibilidade
de Pizarro encontram o melhor
terreno para florir.
Um conjunto bem diversificado
dentro do espectro estético de
Lopes-Graça, percorrendo mais de
50 anos de composições para
piano, o instrumento do
compositor, ilustrado ao melhor
nível artístico por Artur Pizarro.
A ópera a ouvir
George Benjamin
Written on Skin, ópera
Duet, para piano e orquestra
Barbara Hannigan, Bejun Mehta,
Christopher Purves, Rebecca Jo
Loeb, Allan Clayton (voz)
Pierre Laurent-Aimard (piano)
George Benjamin (direcção)
Mahler Chamber OrchestraNimbus 5885/6
mmmmm
Written on Skin, a
mais recente
ópera do
compositor e
maestro britânico
George Benjamin
(n.1960), sobe ao palco do
renovado Grande Auditório da
Fundação Gulbenkian nos
próximos dias 22 e 23 de Maio.
Desde a sua estreia no Festival de
Aix-em-Provence, em Julho de
2012, a ópera tem reunido a
unanimidade da crítica
internacional e corrido alguns dos
mais prestigiados teatros líricos e
festivais da Europa. A estreia, que
decorreu sob a direcção do próprio
George Benjamin à frente da
Mahler Chamber Orchestra,
contando com um elenco de luxo,
foi gravada e está disponível no
mercado em CD. A produção
apresentada na Royal Opera House
de Londres, com o mesmo elenco
de cantores, também já se
encontra disponível. A opção pela
versão em CD justifica-se para os
melómanos que se querem centrar
na questão musical da obra, na sua
audição repetida.
Disc
osArtur Pizarro consegue uma interpretação e uma execução notáveis, exibindo a naturalidade das coisas simples
Dizem que é longo e velado o caminho até ao
inconsciente. No meu caso são precisas
umas escassas horas de sono. Muitas das
canções que já escrevi apareceram-me em
sonhos e para mim é estreita a ligação entre
a música que faço e o mundo onírico. Soará
estranho mas vou partilhar convosco a noite em que
soube que tinha de gravar um disco novo.
Estava perdida no meio de um deserto onde a areia
escaldada me batia nos tornozelos ao ritmo do vento.
Deixei-me ficar quieta, com uma sensação de solidão,
mas não de desamparo, que pacientemente aceitava
sem me afligir. Ouvi chamar o meu nome. Olhei em
volta à procura daquela voz mas no horizonte havia
somente areia. A repetição do meu nome. E mais
uma vez. E outra — Rita! Ouve!
O meu coração batia agora a uma velocidade que
doía e o meu corpo pesava o triplo. Olhei para cima e
o céu pareceu-me muito perto, demasiado perto, e
tinha a sensação de que poderia tocar-lhe. Estiquei o
braço e fui sugada de imediato. Apareci numa sala
onde o meu avô se encontrava no palco e eu na
plateia. Ele gesticulava como se estivesse a dar uma
palestra. Apercebi-me de que falava de bandas
sonoras. Alguém no público resolveu perguntar-lhe:
— Qual foi a que mais gostou de compor? Não fazia
ideia de que o meu avô tinha sido compositor — Six
Cars — respondeu ele. — Foi a música mais bonita que
já escrevi, desde o tema principal às passagens
nocturnas… foi um sopro ao meu ouvido e de
repente estava tudo escrito na partitura.
Abri os olhos incrédula! Senti de repente um
enorme embaraço por nunca ter visto o tal Six Cars.
A palestra terminou pouco depois com uma ovação
de pé! Deixei a sala esvaziar e fui até à boca do palco.
— Avô! — lancei eu baixinho. — Avô!
Olhou para mim, sorriu e disse: — Olha a minha
queridinha!
Subi as escadas laterais e fui ter com ele
emocionada.
— Avô, como é que eu nunca soube disto? Nunca
me contaste!
— Não podes saber tudo sobre mim. Levas-me a
casa?
E lá fomos no meu carro por uma estrada que me
era estranha pondo a conversa em dia. À medida que
o tempo passava o céu ia-se tornando cada vez mais
escuro, carregado e outra vez mais próximo.
— Vem aí tempestade! Estas nuvens são de trovoada
— disse ele.
A paisagem tornou-se novamente inóspita, com a
estrada transformada em areia, o mar cada vez mais
próximo e uns montes que faziam lembrar o formato
de gengibre. A chuva começou a cair, deixando-me a
visão muito condicionada. Num segundo, apercebi-
me que o mar estava a invadir a estrada por onde
íamos passar e nesse momento uma onda gigante
passou por cima de nós. — Pronto, queridinha, isto é
semelhante ao fim do mundo. É assim. Repara nas
algas, nos peixes, naquelas sereias e nos calhaus
marítimos! São de uma beleza incomparável!
— Avô, acho que vamos morrer!
— É bem provável mas ao menos desvendámos o
mistério das sereias. Existem!
— Avô, estou com medo.
— Não tenhas medo, minha queridinha, um dia
voltaremos tal qual como os dinossauros e tudo
começará outra vez, mas antes canta-me as tuas
novas canções.
Editora convidada
No meu deserto há canções
Rita Redshoes
26 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
compositor, mas desta feita à frente
da Orquestra Gulbenkian e
contando com dois dos cantores do
elenco original.
Quem optar pela versão em CD
(a opção DVD surge mais apelativa,
é certo) tem como bónus a peça
Duet, para piano e orquestra
(2008), com Pierre-Laurent Aimard
ao piano. Obra fabulosamente bem
escrita, com um sentido
encantatório nas sonoridades que
produz, coloca o piano a par da
orquestra, criando um verdadeiro
dueto entre estes dois
instrumentos. R.P.
Pop
Estado de graçaO hiato dos The Oh Sees foi
um não-hiato: estão de volta
com a sua marca de sempre,
o som feito excesso.
Mário Lopes
The Oh Sees
DropCastle Face
mmmmm
O momento de
pânico foi breve.
Os Thee Oh Sees,
provavelmente a
mais excitante
banda rock’n’roll
A integridade de Michael Jackson nunca é posta em causa, graças aos produtores
Veja os videoclips na edição do ípsilon para tablets
O libreto de Martin Crimp (já
havia escrito o texto da primeira
ópera de Benjamin) é brilhante e
cria um enredo intemporal em
torno de um triângulo amoroso no
contexto histórico da Idade Média,
questionando o papel da mulher na
sociedade. Amor, sedução, poder,
ciúme, medo e crime seriam
palavras a explorar num tabloide
ou num cartaz, mas a ópera de
Benjamin é muito mais do que isso
e permite uma reflexão sobre a
tradição judaico-cristã e sobre
questões éticas e religiosas que se
perpetuam. O título, esse, prende-
se com a técnica de iluminura nos
pergaminhos medievais.
Se as reações à estreia poderão ter
suscitado comentários mediáticos
do tipo “o melhor que se escreveu
desde Ravel”, certo é que a ópera
resiste ao passar do tempo e se
vislumbra como obra de repertório.
A escrita de George Benjamin é
assertiva, tem carácter e encontra
constantemente soluções eficazes,
como as sempre difíceis alusões
musicais a períodos históricos,
neste caso o mundo medieval, ou a
expressão de um leque de emoções
muito variado. As partes vocais são
expressivas e claras, a história é bem
contada e toda a música serve o
drama na perfeição. Na gravação ao
vivo, que captou todo o sentido de
teatralidade, nota-se o bom
desempenho do elenco original e da
Mahler Chamber Orchestra. Cabe
informar que em Lisboa a ópera
será dirigida pelo próprio
a pisar o planeta neste momento,
anunciaram em Dezembro pela
voz do seu criador, John Dwyer,
que iriam entrar num hiato por
tempo indeterminado. Que
faríamos nós com esta ausência,
sem aquele habitual álbum
incrível por ano, ainda para mais
quando nos nossos ouvidos ainda
zumbia essa obra-prima intitulada
Floating Coffin, disco de 2013 da
banda de São Francisco? Não
tivemos de aprender
dolorosamente a lidar com a
ausência.
O hiato dos Thee Oh Sees foi um
não-hiato. Tão rápido quanto este
foi anunciado, chegou o aviso de
que não só as notícias do fim eram
manifestamente exageradas como
não havia sequer lugar a uma
pausa. Entre um álbum a solo de
John Dwyer enquanto Damaged
Bug e o regresso de uma banda
sua do passado, os Coachwhips,
havia, isso sim, um novo disco a
caminho, Drop. Nove canções, 32
minutos. Os Thee Oh Sees, ou seja,
John Dwyer, a convocar um amigo
de São Francisco, o
recomendadíssimo Mikal Cronin,
para compor uma canção e tocar
um par de instrumentos, Brigid
Dawson, a teclista de voz sacarina
desta vez de fora, e, tudo reunido,
mais uma peça a juntar a uma
discografia que, nos últimos
tempos, tem sido nada menos do
que imaculada — com canções de
corpo inteiro a acolherem aquela
torrente de electricidade em roda
livre que é assinatura sónica da
banda.
Drop anuncia-se com uma linha
de sintetizador que poderíamos
encontrar nos cósmicos alemães da
década de 1970, mas a ilusão não
perdura: 20 segundos depois, cai-
nos um riff distorcido ao colo, a voz
alucina sobre o fuzz das guitarras e
o theremin silva em fundo. São os
Thee Oh Sees tratando o rock’n’roll
como matéria incandescente e a
tocá-lo com uma urgência a que é
impossível ficar indiferente. A
sensação mantém-se depois dessa
Penetrating eye: Encrypted bounce,
composta com Mikal Cronin, cruza
o lado sinistro dos Pere Ubu com o
desejo de fuga espaço fora de Syd
Barrett e é um portento, com as
guitarras que chocam e se
entrecruzam, incapazes de serenar,
duas baterias a trabalharem o ritmo
infatigavelmente e a voz a pairar
com descontracção sobre todo o
som.
Ao longo da meia hora de
duração, há espaço para
novidades no catálogo Thee Oh
Sees, como essa Put some reverb
on my brother que chama sopros e
guitarras acústicas para arriscar
um pedaço de pop barroca para
salão de chá inglês, ou essa
Transparent world, guiada por voz
robótica e secção rítmica que
ondula com precisão mecânica,
levitando até às altitudes de uns
Broadcast. Entre elas, o mellotron
de King’s nose, psicadelismo pop
de som saturado, como se não
procurasse o conforto de um novo
mundo sonhado, antes corroer
essa ideia de sonho, e, em Drop, a
imagem de uns Kinks que
aterravam em plena época punk,
zangados, certamente, mas
sempre em busca da melodia
perfeita. Em tudo, a marca Thee
Oh Sees no som feito excesso (de
volume, de agressividade no
ataque às cordas, na recusa de
limar arestas para que tudo soe
mais confortável).
Despedem-se com The lens,
canção admirável de uma
majestosidade pop comovente (a
doçura das vozes, o sopro do
clarinete no final). “You looked
through the lens/ all is cracked and
hazy”, canta John Dwyer. À
despedida, os The Oh Sees em
auto-descrição. Olhamos
novamente. Está tudo
escaqueirado e nublado. Está tudo
absolutamente correcto.
Um disco justo
Michael Jackson
Xscape Epic; distri. Sony
mmmmm
Já se sabe,
cantores como
Michael Jackson
não morrem. E
nem sequer é
preciso ter o seu
estatuto para que isso aconteça.
Qualquer músico que, na
actualidade, tenha gravado dois
ou três discos deixa atrás de si
uma fatia considerável de material
que não foi finalizado, que não foi
produzido, ou que não foi
aprovado na hora de escolher o
que se dá a conhecer.
Já depois da sua morte, havia
sido lançado um álbum póstumo.
E agora aí está o segundo,
especulando-se já com um
terceiro. Naturalmente que
ninguém espera nada de
surpreendente destes
lançamentos. Quando muito
aguarda-se que sejam edições que
mantenham a chama da memória
acesa, ao mesmo tempo que
alimentem a curiosidade dos
admiradores mais empenhados. O
que não se deseja, como é
evidente, é que este tipo de
lançamentos ponha em causa a
recordação do cantor.
Nesse campo em particular,
Xscape cumpre com as
expectativas mais positivas. Isto é,
não deslustra em relação a
anteriores lançamentos de
Michael Jackson, sendo muito
melhor do que o anterior disco
póstumo. Para isso acontecer, em
muito contribui a selecção dos
temas (as oito canções reportam-
se ao intervalo compreendido
entre 1983 e 1999) e o trabalho do
produtor-executivo Timbaland, e
respectivos cúmplices (Rodney
‘Darkchild’ Jerkins, Jerome
Harmon, Stargate e John
McClane). Foram eles que
compreenderam o que estava em
jogo, tentando um equilíbrio entre
manter as características
nucleares do som do cantor,
introduzindo-lhe ao mesmo
tempo ligeiras nuances
contemporâneas. Nunca
saberemos o que pensaria o
próprio Michael Jackson do
trabalho aqui encetado, mas a sua
integridade nunca é posta em
causa, num disco que acaba por
resultar justo, preciso e até
homogéneo, apesar de haver
canções que apontam direcções
diferentes, entre o movimento
dançante assente em dinâmicas
rítmicas disco de Love never felt so
good e a balada digitalizada na
linha do R&B que constituiu o
tema final, Xscape.
Numa altura em que Justin
Timberlake ou Pharrell Williams
são muitas vezes apontados como
os sucessores naturais de Michael
Jackson, apesar de já não
habitarmos na mesma época das
celebridades duráveis e globais, o
melhor louvor que se pode
atribuir a este álbum é dizer que
não fica nada atrás dos mais
recentes discos daqueles dois
cantores americanos.
Vítor Belanciano
Liderados por John Dwyer, os Thee Os Sees continuam admiráveis
DAVID MCNEW/ AFP
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 27
Expo
siçõ
esOportunidade perdidaA grande antológica
de Rui Chafes falha na
montagem — e prejudica a
excelente obra do escultor.
Luísa Soares de Oliveira
O Peso do Paraíso
De Rui Chafes.
Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian —
Centro de Arte Moderna. R. Dr. Nicolau de
Bettencourt. Tel.: 217823474/83. 3ª a Dom.,
das 10h às 17h45. Até 18/05.
Escultura, Instalação.
mmmmm
É verdade que é difícil dar conta
deste espaço. A grande nave do
Centro de Arte Moderna (CAM)
possui informação mais do que
suficiente para tornar qualquer
montagem difícil. As janelas para o
jardim, a abertura para as galerias
superior e inferior, os elevadores,
varandins e outras infraestruturas
necessárias numa sala de museu —
foi para essa finalidade que o
espaço foi pensado — interferem
com a apreciação de uma
exposição. Desde que o CAM
apostou, há alguns anos, nas
grandes exposições individuais, em
detrimento da apresentação da sua
riquíssima colecção de arte
moderna e contemporânea
portuguesa, contam-se pelos dedos
de uma mão as montagens bem
feitas que temos podido aí ver.
Recordamos alguns momentos
gratos, como a Plegaria Muda de
Doris Salcedo, em 2012. E outros,
menos gratos, de que falámos em
seu devido tempo.
À partida, a grande antológica
de Rui Chafes, O Peso do Paraíso,
tinha tudo para se tornar numa
das melhores exposições dos
últimos anos. O artista, que aqui
celebra também 25 anos de
carreira, possui uma obra
consistente, original e,
globalmente, de grande
qualidade. Na escultura e no
desenho, mas também na
tradução e na escrita, a sua
actividade desdobra-se por várias
disciplinas sem se deixar nunca
definir exactamente. Admira, e
não o esconde, o Romantismo
alemão, o que enforma o seu
pensamento plástico: há sempre,
na sua obra e no seu discurso,
uma renitência à explicação, ao
conteúdo, à racionalidade, ao
classicismo.
Todas as suas esculturas, e isto
desde as peças mais antigas,
convocam um vazio que preenche
formas em ferro pintadas de
negro. Chame-se-lhes o que se
quiser: armaduras, instrumentos
de tortura, casacos, sapatos,
pássaros sem cabeça, bolas
apoiadas em finas tiras moles, Rui
Chafes sorrirá sempre e
responderá com um dos seus
aforismos. No fundo, toda a sua
escultura é uma imensa
anamorfose em torno do vazio, da
fleuma, da alma das coisas — uma
nostalgia do sublime e do génio,
conceitos que, como sabemos,
estão hoje inelutavelmente ligados
ao Romantismo que os criou e
que, também, os destruiu. Já não
há génios. Toda a sua obra, por
fim, é uma viagem sem chegada ao
sol negro da melancolia, da morte.
E como é que o público vê isto
no CAM? É muito simples, não vê.
Rui Chafes domina totalmente as
montagens em espaços que
convocam essa ideia romântica de
sublime: lembre-se a magnífica
exposição individual na Galeria
Filomena Soares, Tranquila ferida
do sim, faca do não, em que o
visitante tinha de adaptar o olhar à
escuridão quase total do espaço,
ou a montagem já antiga no Jardim
da Sereia, em Coimbra, ou ainda a
peça Aproxima-te, ouve-me, no
Palácio da Inquisição da mesma
cidade, em 2002. Aqui, num
espaço de características
modernas que se prolonga num
jardim que nada deve à herança
romântica, as suas esculturas
perdem-se na imensidão da nave,
convivem umas com as outras sem
suscitar qualquer interrogação no
espectador e até, num dos casos,
parecem prolongar-se
pateticamente em direcção a um
tanque com patos. Não houve,
excepto no hall e na grande
escultura de formas orgânicas
junto à entrada, domínio do lugar
ou diálogo possível com o cubo
branco asséptico que o CAM não é,
mas ao qual todo o museu aspira.
E se, no jardim, as coisas se
passam melhor — afinal, é um
jardim de esculturas —, isto que
aqui dizemos tem uma
consequência imediata: é que toda
a obra de Rui Chafes, mais do que
escultura ou desenho, é
instalação. Esse diálogo necessário
com o lugar que aqui se logrou,
essa contribuição do público que
avançava com receio na galeria de
Lisboa, ou que ficava estupefacto
em Coimbra, não funcionou aqui.
É pena, porque a obra de Chafes
possui uma qualidade ímpar. E
também porque, queira-se ou não,
“a” exposição individual na
Gulbenkian é sempre a marca do
reconhecimento no nosso país.
Apesar de tudo, é no jardim do Centro de Arte Moderna que a obra de Rui Chafes melhor acontece
DANIEL ROCHA
COLECÇÃO CHARLIE CHAPLIN
Hoje, 16 de Maio, Livro Inédito+DVDHoje, 16 de Maio, Livro Inédito+DVD
Charlie Chaplinpor: Alice Vieira
LLembra-se do primeiro fi lme do Charlot que viu?embra-se do primeiro fi lme do Charlot que viu?
Não me lembro, eu era muito pequena, era criada por tios velhos que me levavam
para tudo onde iam: cinema no Capitólio, teatro no Nacional, revista no Parque Mayer...
Essas coisas confundem-se todas na minha cabeça. Mas as primeiras imagens que
recordo dos fi lmes do Charlot trazem sempre com elas o Jackie Coogan.
Por isso “O Garoto” pode ter sido o primeiro.
Chaplin era um perfeccionista. Acha que ele desenvolvia um humor mais profundo nas Chaplin era um perfeccionista. Acha que ele desenvolvia um humor mais profundo nas
suas histórias?suas histórias?
Para mim o Charlot tem uma carga demasiado afectiva e emocional que me torna
incapaz de abordagens técnicas dos fi lmes. Mas claro que o seu humor era profundo,
e ia muito para lá do simples esgar, ou trejeito, ou escada em que se tropeça, ou o
grandalhão de que se foge. E sei que era um perfeccionista, que repetia as cenas
vezes sem conta. Lembro-me sempre de um dos tios um dia me ter contado, em
relação às cenas em que o Garoto chorava desalmadamente , “sabes por que é que
ele chora assim? É porque o Charlot lhe disse que, se ele não fi zesse tudo o que ele
mandava neste fi lme, ia direitinho para o orfanato”. Acho que aí fui eu que desatei a
berrar...
Chaplin era uma pessoa de extremos, nas opiniões, na crítica à sociedade americana, Chaplin era uma pessoa de extremos, nas opiniões, na crítica à sociedade americana,
até num certo papel político. Conhecia essa faceta do artista?até num certo papel político. Conhecia essa faceta do artista?
Para lá de me levarem ao cinema, ao teatro e à revista, os meus tios (velhos
republicanos que tinham lutado pela República no Rossio) sempre fi zeram questão de
me politizar muito cedo... Chaplin não fugiu à regra. Mas aí eu já era um pouco mais
velha, andaria pelos meus 9 ou 10 anos. Lembro-me de me terem contado que ele
tinha sido expulso da América pelas suas ideias, e acusado de ser comunista, e aí eu
percebi que não era só o Salazar que fazia essas coisas. Depois vi o “Grande Ditador” e
ainda percebi melhor.
O cinema seria diferente sem Chaplin?O cinema seria diferente sem Chaplin?
Claro. A grande maioria dos grandes cómicos é nos seus fi lmes que vai beber.
Como autora (e espectadora de cinema) como se percebe, em seu entender, a Como autora (e espectadora de cinema) como se percebe, em seu entender, a
intemporalidade das criações de Chaplin e a sua personagem Charlot?intemporalidade das criações de Chaplin e a sua personagem Charlot?
Os fi lmes do Chaplin e a sua personagem lidam muito mais com o interior de cada
um de nós do que com o exterior. Digamos que os adereços têm pouca importância
comparados com os sentimentos e as emoções. O amor, a bondade, a tristeza, a
alegria, a injustiça são intemporais. Só muda o que está por fora.
Alice Vieira
Alice Vieira é uma das mais respeitadas
jornalistas e notável escritora com vasta obra
publicada e traduzida em várias línguas. É uma
das mais importantes autoras da literatura
infanto-juvenil.
Licenciou-se em Filologia Germânica na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
mas cedo se dedicou ao jornalismo deixando
marca em jornais como Diário de Lisboa, Diário
Popular e Diário de Notícias.
Trabalhou ainda como autora em vários
programas infantis para a televisão.
Colecção de 10 volumes. Preço unitário 6,95. Preço total da colecção 69,50. Todas as sextas, de 2 de Maio a 4 de Julho de 2014.
Limitado ao stock existente. A compra do produto implica a aquisição do jornal.
DR
28 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
Livr
osPoesia
Nada do outro mundoOs livrinhos que Rui
Caeiro vem discretamente
publicando encontram o
seu lugar como escrita, para
lá dos moldes. Hugo Pinto
Santos
Travessa dos
Remolares
Rui CaeiroParalelo W
mmmmm
No Martim
Moniz com
o Meu Pai
Rui CaeiroEdições 100
Cabeças/
Landscapes
d’Antanho
mmmmm
Um Gato
no Inferno
Rui CaeiroEdição do Autor
mmmmm
Acabamentos
de Primeira
Rui CaeiroEclusa
mmmmm
Falar de topografias poéticas a
propósito de alguns dos livrinhos
que Rui Caeiro vem publicando,
sempre com uma discrição que
parece pedir licença para se afirmar
— pela elegância de um cuidado e
de um respeito raros, nunca por
pose estudada —, seria errar
clamorosamente. Não se trata, em
qualquer dos casos, da obediente
platitude de um mapa, nem do
entendimento da poesia como beco
estreito para a forma. Porque é
sobretudo como escrita, para lá de
moldes, que as publicações de
Caeiro encontram o seu lugar.
Aquilo que o autor tem divulgado,
quase sempre em plaquetes de
circulação restrita, não poetiza os
lugares, nem congela o poema
numa cartografia estreita. Os
espaços têm, pelo contrário, o dom
da necessidade, como se
emanassem de qualquer destino
que os implicasse, como uma
artéria no corpo, na constituição da
própria escrita. E ambos os símiles
são roubados a Caeiro —
nomeadamente a Travessa dos
Remolares, onde os fados se
convocam e se desmentem com a
mesma hipótese de verdade, e onde
o vocábulo “artéria” circula num
pêndulo entre a acepção biológica e
a geográfica. Assim, o espaço não
contribui como paisagem mas como
nutriente da própria escrita.
Lendo plaquetes como No
Martim Moniz com o Meu Pai ou
Travessa dos Remolares, talvez se
duvide destas tentativas de
entendimento. Uma desconfiança
bem-vinda, por exemplo, depois da
leitura da brevíssima brochura Um
Momento na Noite (Edição do Autor,
2011) — “Esse momento podia
também acontecer ao ar livre da
noite da cidade, pelas suas ruas,
becos, praças e esquinas mais
esquinadas, da Almirante Reis ao
Bairro Alto, sem esquecer o Cais de
Sodré, Intendente, Alfama,
Mouraria, Alto do Pina e Poço do
Borratém”. Mas já em Poesia em
Verso (Livraria Letra Livre, 2007,
com Afonso Cautela e Vítor Silva
Tavares), Rui Caeiro metia pela
Travessa dos Remolares — “No parco
mostruário da Travessa esqueci-me
de alguma coisa?/ Sim e por sinal do
mais importante: a montra com
frangos torturados no espeto,/
possível antevisão do inferno (como
se a própria rua já não bastasse)/ ou
então resquício dos tempos da
Santa Inquisição” —, sem que a
concentração naquele poiso
impedisse uma leitura tudo menos
literal. Seja como for, a importância
dos lugares parece assegurar-se
menos como deriva da divagação
do que por acção da já parafraseada
“simples necessidade ou, ao fim e
ao cabo, uma fatalidade” —
“acabamos sempre por ter que
escolher um mal menor”, responde
No Martim Moniz com o Meu Pai (p.
20); sendo que, em Travessa dos
Remolares, a rua se agarra “à sola
dos sapatos, à laia de algo que se
pisou sem querer” (p. 18).
A simples atenção a tais passos
autorizaria a ver nestes opúsculos
nada como um guia turístico para
uso poético. O que estas páginas
dizem é totalmente alheio a esse
descaminho. E note-se que o verbo
“dizer” se usa deliberadamente.
Porque estes textos, antes de mais,
dizem. Daí que os vestígios de uma
fraseologia franca e recta, sem
marca de afectação, não sejam
estratagema mas (de novo)
inevitabilidade. Não que o fatalismo
embale esta escrita. Podia dizer-se
do seu sujeito aquilo que as suas
palavras estendem: qualquer um se
mostra “atento à regularidade
enganosa do piso” (Travessa dos
Remolares, p. 21). O que permite
uma visão tão limpa de lágrimas de
lirismo serôdio como de ramelas de
uma secura descritiva — “Na
Travessa dos Remolares bebe-se
para esquecer que a Travessa dos
Remolares é o que é” (Travessa dos
Remolares, p. 15); “O Largo do
Martim Moniz não é, pois, sítio
onde eu goste de estar, ou por onde
goste de passar, nunca foi.” (No
Martim Moniz com o Meu Pai, p. 9). É
nesse sentido que a frase é
idiomática e padronizada: sem
elevações deslocadas, nem
paternalismos detestáveis. Ou não
terminassem No Martim Moniz com
o Meu Pai com um peremptório mas
conciso “Mete-te na tua vida!”
(p.25), e Travessa dos Remolares com
um trocadilho que comprova essa
trabalhosa acessibilidade das
palavras — “e eu com a Travessa dos
Remolares à perna, não querem lá
ver? Não querem lá ir ver?” (p. 22)
Como sucedera antes — “É no
inferno que penso, mas devo/
reconhecer, em abono da verdade,
que não era/ no inferno que nós
estávamos, era a dois passos/dele e
se queres mesmo saber era
agradável” (Do Inferno — Cinco
Aproximações, do número 12 da
revista Telhados de vidro) —, é ao
Inferno que ruma certo felídeo
ciclicamente recuperado por Caeiro.
O Gato no Inferno recupera essa
figura — “Gostar muito de um gato.
Com tanta força quanto a do seu
desdém.” (49 Espinhas para Um
gato, Edição de Autor, 1997). O gato
volta a não ser motivo literário,
como não o é a paisagem
rudemente urbana dos livrinhos
antes mencionados. Nem
Baudelaire, nem Poe nem outros
cultores do gato aqui figuram:
embora Pessoa, em registo quase
displicente, compareça,
involuntário, ao chamado —
“Brincam na rua e na cama/ e
também com o Fernando Pessoa/ e
mais o resto”. O mesmo poeta que
surgia em No Martim Moniz com o
Meu Pai: ora explícito (“se o Pessoa
descobriu mundo da Rua dos
Douradores, também havia de o
desencantar aqui”), ora espécie de
ruído de fundo do texto (“Há para
mim mais metafísica, isto é, mais
fonte de perplexidade, nestas três
perguntinhas”) ou de eco estilístico
fixado num paradoxo de matriz
inevitavelmente pessoana (“não
sabes o que perdes — para além, é
claro, de não perderes coisa
alguma”). Ao contrário do gato
epónimo, esta poesia “cura/ de
minudências”. No sentido em que
concentra as suas energias nas mais
pequenas incidências, nas mais
delicadas e crepitantes. Estas
podem revelar-se numa primeira
pessoa que poderia parecer
inesperada (tanto mais que se
esquiva sempre que pode:
“Cabriolando à porta do inferno/ em
vez de mim/ o gato”), não fosse ela a
consequência da sua implicação
numa escrita que nunca perde a sua
natural sobriedade mais contida do
que derramada (“quando me vê mia
ao de leve/ como se eu fosse ainda
eu/ e a casa a casa antiga”). Neste
conjunto, as repetições e as
analogias (de palavras e sons, como
de estruturas) criam um casulo
coerente para uma relação de
aproximação e afastamento, de
afirmação e questionação, de um eu
que afirma no fugidio gato o próprio
fugitivo do seu ser. Talvez não muito
distante do cão de O’Neill, este gato
é um animal-condição, uma
afirmação, por interposto animal,
da ondulante condição humana.
O espaço comparece na poesia de Rui Caeiro como uma necessidade da própria escrita — como uma artéria no corpo
INÊS DIAS
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 29
Condição, essa, que estará
igualmente em questão em
Acabamentos de Primeira. Como
sucedia em títulos como Mamas
(Tea For One, 2011), ou Baba de
caracol (Língua Morta, 2012), o
derrisório é apenas um dos
caminhos da escrita, porque Caeiro
se posiciona entre os sentidos mais
comezinhos e os mais promissores
— “os meus desfechos — os meus
acabamentos” (p. 8). Tal como em
Travessa dos Remolares e No Martim
Moniz com o Meu Pai, não era de
mapas que se tratava, em
Acabamentos de Primeiranão
estamos perante o apagado registo
de uma cronologia. Neste opúsculo,
o passado, o presente, ou os
circuitos entre ambos os pólos, são
apenas o pretexto gentilmente
tomado à biografia — e à simulação
recriada dela — para revelar o corpo
e o espírito aos acabamentos das
construções erguidas pelo afecto e
pelo erotismo. Porque estes
“acabamentos” são o rematar de
enredos que se transformam e
interrompem sem verdadeiramente
se concluírem — “as histórias
acabam e não acabam” (p. 21) —, por
serem resgatadas pela memória e
preservadas pela escrita — “Amores
para um mesmo final, um mesmo
discreto acabamento. De primeira
qualidade (admitamos resignados).”
(p. 23)
(Entretanto, Rui Caeiro
reeditou Sobre a Nossa Morte bem
muito Obrigado, Alambique [1.ª
ed. &etc, 1989])
Viagens
Álbum pessoalNuma prosa admirável, o
argentino Ernesto Schoo
tece uma cartografia
sentimental da cidade que
foi descobrindo ao longo de
décadas. José Riço Direitinho
Mi Buenos Aires Querido
Ernesto Schoo
(Trad. Carlos Vaz Marques)Tinta-da-China
mmmmm
À maneira
meticulosa de um
arqueólogo que
vai desvendando
diferentes níveis
de uma cidade
antiga, o jornalista
e escritor
argentino Ernesto
Schoo (1925-2013) leva-nos por uma
Buenos Aires de histórias, de
memórias de décadas e de sombras,
uma cidade em que o passado
parece ocultar-se a cada esquina na
sumptuosidade arquitectónica de
muitos edifícios do centro e dos
bairros burgueses. O descrito neste
livro de Schoo, agora publicado na
colecção de literatura de viagens
dirigida por Carlos Vaz Marques
para a editora Tinta-da-China, está
bem longe daquela Buenos Aires
A palavra mais forte, mais verdadeira, que toca
no seu próprio fim, na sua matéria mais
densa e profunda, pode não ser a palavra dita
“literária” (muito embora, paradoxalmente,
consiga fazer-nos acreditar na existência da
literatura), não ter a assinatura de um
escritor, nem realizar o esforço de se apresentar sob a
forma de poema, de romance, de texto em prosa, de
livro. Aliás, os livros, cujo regime de apresentação na
cena da literatura é, em geral, o da idade do
narcisismo, da regressão a uma infantilidade que leva
as pessoas a quererem “exprimir-se” e a introduzir o
odioso “eu” por todas as frestas e em todos os salões
de festa a que acedem (a estupidez, diz algures
Deleuze, nunca é muda nem cega), raramente têm um
lugar diferencial, uma função de negatividade, no
meio do ruído. Palavras fortes, capazes de nos fazer
perceber que fomos expropriados sem remorso e
estamos imersos na pobreza das palavras que
escandem a nossa jornada, são as que podemos ouvir
em Vidros Partidos, o filme com que Víctor Erice
respondeu a uma encomenda de Guimarães 2012 —
Capital Europeia da Cultura. Nesse filme/
documentário, ouvimos o testemunho de homens e
mulheres que trabalharam na Fábrica de Fiação e
Tecidos do Rio Vizela, na região do Vale do Ave,
fundada em 1845 e encerrada em 2002. Eles contam a
sua experiência na fábrica e comentam uma foto
antiga, que parece ter sido feita numa ocasião festiva,
onde aparecem, reunidos ao longo de mesas de
cantina, os operários de então. A foto é inquietante,
pelo modo como todos aqueles homens e mulheres,
sujeitos de uma história que chegou há muito ao seu
fim e que nós já só conhecemos da historiografia,
olham para nós e nos interpelam. Víctor Erice pôs
alguns ex-trabalhadores da fábrica encerrada a recitar,
de cor, diante da câmara, o texto com que prestaram o
seu testemunho. Isto é: a versão inicial do texto foi
arranjada, montada, cortada (mas não reescrita com
outras palavras), e depois dita pelos seus autores, que
passaram assim a ser também actores da sua própria
história. Uma mulher, velha e debilitada, aproveita a
ocasião para ler um poema que leva consigo, de uma
prima que “escrevia muito bem, desde muito nova”. E
esse poema, que não interrompe nada e apenas
prolonga o fluxo das palavras daquela mulher como
um fluxo poético (como aliás, o de todos os outros ex-
trabalhadores da fábrica que testemunham no filme
de Erice), soa-nos como algo capaz de dar a ver a
vacuidade da literatura e os seus abjectos artifícios —
aquela que chega até nós mediada pelos protocolos
canónicos da instituição literária. Tal poema é um
antídoto contra a saturação intrínseca à indústria
literária, essa coisa ignóbil que dissimula a nossa
própria morte. O que as palavras daquela mulher nos
fazem perceber (assim como as de todos os outros
trabalhadores que comparecem no filme, sem poemas
para ler, mas com palavras próprias para dizer), muito
especialmente quando recita o poema da sua prima, é
que nós chegámos demasiado tarde à literatura,
quando ela já chegou ao seu fim. Nós, leitores, vós,
escritores, jamais conseguiremos atingir, perante a
palavra literária, aquele estado de encantamento, que
não se confunde com nenhuma espécie de
ingenuidade. Para aquela trabalhadora, a tragédia da
história redime-se através de um poema que nunca
tinha encontrado o seu público; para nós, tudo o resto
é literatura. Aquele poema resplandece sem
assinatura; nós só raramente conhecemos um escritor
que não seja ao mesmo tempo jornalista, escritor-
jornalista com uma missão de reportagem de si
próprio e da sua obra.
Estação Meteorológica
E tudo o resto é literatura
António Guerreiro
QUER VERO SEU CONTOPUBLICADO?
CONSULTE O REGULAMENTO E PARTICIPE EMwww.culturafnac.pt
NOVOS TALENTOS FNACLITERATURA 2014
30 | ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014
Opin
ião
No início da década de 1970, o
escritor italiano Umberto Eco fez
uma longa viagem pelos EUA de
que resultou um conjunto de
artigos que depois seriam
publicados sob o título genérico
Viagem da Irrealidade Quotidiana
(a edição portuguesa da Difel é de
1986).
Nessa análise, Eco — europeu de
sólida formação clássica,
medievalista e autor de vários
ensaios sobre estética — afirma
estar a América na vanguarda da
tecnologia. Refere os grandes
avanços feitos pela NASA na
holografia, refere a “pátria dos
arranha-céus de vidro e aço e do
expressionismo abstracto” e
considera a baixa de Manhattan
“uma obra prima de arquitectura
viva onde o gótico e o neo-clássico
não aparecem (...) como efeito de
um raciocínio frio, mas realizam a
consciência revivalista da época
em que foram construídos”.
Atento ao hiper-realismo, Eco fala
de uma “América da hiper-
realidade desvairada” que não é
Hollywood nem a América pop
mas a da real thing, do more, onde
as fronteiras entre o jogo e a ilusão
se confundem, tal como o museu
de arte se confunde com a tenda
das maravilhas.
Essa América é a expressão do
falso absoluto, “filho da
consciência infeliz do presente
sem espessura”, que tem na
opulência e no kitsch a sua
expressão mais eficaz: os castelos
barrocos na Florida, o museu de
cera com imitações da Vénus de
Milo, a espectacularidade das
casas, das festas, do Dallas e dos
aviões privados dos milionários.
Entretanto, a América, mantendo-
se um país de enormes
desigualdades, elegeu um
Presidente negro e democrata, e
revela alguma transparência
política. Esta América actual vai
ocupando o espaço que, na
descrição de Eco, estava
inteiramente tomado pelo show-off
dos milionários.
Agora, estamos no Dubai, em
2014, à sombra de uma bomba de
gasolina. É Março, mas o sol
queima nesta cidade construída
no meio do deserto e que é um
dos sete Emirados Árabes Unidos
(EAU) — o país com a sexta maior
reserva de petróleo do mundo e,
portanto, um dos países mais ricos
do mundo, com um PIB nominal
per capita acima dos 54 mil
dólares. Em frente à bomba de
gasolina, um grande armazém, tão
grande que impressiona pelo
Política cultural António Pinto Ribeiro
Do Dubai a Abu Dhabi, a opulência domina
— uma opulência que se serve do passado
cultural do Ocidente, comprado a peso
de ouro e transplantado para o deserto.
Viagem na irrealidade quotidiana
A Feira de Arte do Dubai é organizada por empresas inglesas e norte-americanas especializadas no negócio
KARIM SAHIB/ AFP
Leia excertos dos livros na edição do ípsilon para tablets
mitificada em muitos guias
turísticos, que dela destacam o
tango e Carlos Gardel, Jorge Luís
Borges e o café Tortoni, o colorido
bairro La Boca ou a modernidade de
Porto Madero, diante do Rio da
Prata (esse “braço de mar disfarçado
de rio”), onde todos “os armazéns
foram convertidos em lojas
caríssimas, em restaurantes de
luxo”. Ernesto Schoo assume este
livro como uma espécie de álbum
pessoal, de crónica da cidade que
conheceu ao longo de décadas de
caminhadas, longe do trânsito e dos
turistas, em que a memória e as
histórias ouvidas se confundem. É,
escreve, uma cartografia culta das
suas “andanças portenhas”: “O
bairro Norte, a Recoleta, Palermo,
um pouco do centro, um pouco dos
bairros de prestígio, como Belgrano
ou Flores. Pouco mais: há zonas
inteiras da cidade que me são
estranhas, e lamento-o. Mas quero
ser fiel aos cenários que conheço em
vez de fingir uma cidade ecuménica,
essa espécie de condição absoluta
de portenho a que aspiram
imaginariamente alguns vates
antiquados.”
Desde o primeiro capítulo,
dedicado a toda a zona costeira do
Rio da Prata até ao Delta do Tigre,
Schoo dá o mote para uma cidade
de mudanças vertiginosas e
frequentemente contraditórias,
aberta a muitas influências,
sobretudo europeias. Os exemplos
começam com o edifício do antigo
restaurante Munique (nome que se
tornou genérico para restaurantes
de comida alemã) no passeio
costeiro, uma “obra-prima datada
de 1929”, uma mistura de “art
déco” e de fantasia orientalista,
para quase de seguida recordar
uma conversa com Walter Gropius
(o lendário fundador da Bauhaus,
“a escola de desenho que mudou a
vida ocidental na era moderna”).
Mas os exemplos de influências
urbanísticas e arquitectónicas não
se ficam por aqui: “Nos seus
bairros mais senhoriais, Buenos
Aires quer fazer-nos crer que é
Paris, até que a copa de uma
palmeira ou a floração dos
jacarandás nos devolve à
realidade.” E quase no fim do livro
— no capítulo intitulado
Romantismo Alemão —, Schoo
conta-nos a história de como numa
noite de lua cheia descobriu um
dos prédios mais singulares “de
uma cidade cheia deles”, o
imponente Otto Wulf, melancólica
estampa romântica a que a Lua
emprestava um efeito teatral,
assemelhando-o a um castelo nas
margens do Reno.
Por entre as descrições do Verão
portenho, “pegajoso e insuportável”
— Ortega y Gasset dizia que no Verão
é impossível pensar em Buenos
Aires —, Ernesto Schoo vai
caminhando pelas avenidas da
cidade, falando das árvores (aquelas
cujos ramos no Inverno se curvam
“numa caligrafia trágica”), da
ornitologia fantástica, dos jardins,
das estátuas mais ou menos
escondidas na paisagem urbana,
dos pintores, da herança britânica,
das opiniões de visitantes famosos,
do jardim botânico, do zoológico
(essa “apoteose do simulacro”),
desfazendo mitos (como o da cidade
plana), e sobretudo contando
histórias como a que evoca a
propósito do célebre cemitério da
Recoleta: “Um casal de apelido
sonante deu-se mal em vida,
sobretudo — dizem — pela avareza
do marido. Quando ele morreu, a
viúva não só se dedicou a gastar sem
freio, mas também determinou que,
erguendo-se o jazigo entre duas ruas
paralelas, os bustos de ambos
estivessem de costas voltadas,
olhando um para cada lado.”
Quer o leitor conheça ou não
Buenos Aires, uma das maiores
virtudes do livro é sem dúvida a
prosa admirável de Ernesto Schoo,
simples e límpida como deve ser a
dos grandes cronistas, sem
pretensões estilísticas porque são
desnecessárias. Mi Buenos Aires
Querido (o nome de um tango de
Gardel) é um daqueles livros que
nos fazem perceber que para
conhecer uma cidade é preciso a
vida toda.
Ernesto Schoo faz-nos perceber que para conhecer verdadeiramente uma cidade é preciso a vida toda
ípsilon | Sexta-feira 16 Maio 2014 | 31
bem como de associação e de
religião. Os EUA não assinaram
tratados internacionais de direitos
humanos e de direitos dos
trabalhadores e têm sido acusados
de violação de direitos humanos.
Do Dubai a Abu Dhabi, a capital,
distam 100 quilómetros e a
opulência continua. A Grande
Mesquita Xeque Zayed é toda em
mármore branco importado da
Macedónia e tem capacidade para
40 mil pessoas. No interior,
resplandece o painel onde estão
os 99 nomes de Alá, resplandece o
lustre central que pesa 12
toneladas, coberto de ouro e
cristais Svarowski, resplandece o
tapete, o maior, em peça única, do
mundo, que consumiu um ano de
trabalho intenso de 1.200 artesãs
iranianas. Todo este luxo terá
custado 1.500 milhões de dólares.
Mesdar, o centro tecnológico
desenhado pelo arquitecto
A linha do horizonte é
impressionante, com tantos
reflexos de vidro e alumínio, e
com a inscrição dos nomes de
tantos notáveis da arquitectura
nas placas dos arranha-céus. A
arquitectura, aqui, quer-se
espectacular: cada vez maior, cada
vez mais alto, cada vez mais caro,
cada vez mais e mais.
Mais de 50% dos habitantes são
imigrantes filipinos, indianos,
paquistaneses, iranianos,
tailandeses. O taxista indiano que
faz a viagem para o aeroporto
trabalha todos os dias da semana
das 5h às 17h e... “no day off!” A
riqueza e o luxo esmagam-nos. Nos
hotéis há um evidente excesso de
comida, um consumo imparável.
As ruas estão limpas e ali existe a
crença no futuro que é a auto-
confiança presente nas orações do
muezzin. Originalmente, estes
eram povos que que viviam no
deserto, seguindo camelos e
ocupando rotas do comércio (e
sim, há um talento para o comércio
em cada um deles…), sem cultura
escrita, sem monumentos, sem
teatros, tendo apenas de seu o
Corão, a poesia e os contos da
tradição oral.
Em 1971, os sete emirados
ergueram-se como um país e
construíram-se. Tinham
descoberto que eram ricos. Havia
um mar infinito de petróleo
debaixo daquelas areias. Mas o
Dubai, o mais populoso dos sete,
quase não tem petróleo, as suas
receitas são provenientes
tamanho. É a lavandaria Areias
Douradas. Por uma das portas
laterais, um camião-cisterna
transfere água lá para dentro.
Os EAU são um dos maiores
consumidores de água do mundo.
Para tanto, tiveram de construir
engenhos de captação,
dessalinização e transporte de
água do mar. O desperdício, ainda
assim, abunda, pois há muitos
jardins e campos de golfe,
formando como um arquipélago
de pequenos oásis falsos. E é por
aqui que começam a aparecer os
sinais da opulência que mais são
relativizados. Para lá do armazém
e da auto-estrada, há palmeiras,
repuxos, areia, calor, construção,
construção, construção, vias
rápidas e pontes, marinas e hotéis
— dos quais o mais icónico será o
luxuoso Burj Al Arab (Torre das
Arábias), construído sobre uma
ilha artificial e exibindo
decorações a ouro dentro e fora
dos quartos. Projectado por Tom
Wright, este que é considerado o
maior hotel do mundo custou 650
milhões de dólares — “o cliente
queria um edifício que se tornasse
um ícone ou símbolo declarado do
Dubai, que fosse espantosamente
lindo e semelhante à Ópera de
Sydney ou à parisiense Torre
Eiffel”, declarou o arquitecto.
Existem no Dubai outros hotéis
com canais por onde gondoleiros
passeiam os hóspedes que querem
experimentar a Veneza do Médio
Oriente, ou seja, que querem
experimentar o simulacro.
essencialmente do turismo e dos
serviços — espera 20 milhões de
turistas em 2020. O país é
controlado por apenas 10% da
população e os hotéis estão cheios
de russos obesos, enfeitados com
correntes de ouro ao pescoço, e
de chineses ricos que ali chegam
em excursões.
Na Feira de Arte do Dubai, a
organização — comprada a
empresas inglesas e norte-
americanas especializadas no
negócio — é muito profissional,
eficiente e acolhedora. Faz-se, por
exemplo, uma pré-inauguração só
para as mulheres, e em seguida
outra para profissionais, e outra,
privada, para os grandes
coleccionadores dos EAU.
As mulheres que enchem a feira
são lindas e muito elegantes, com
gestos finos e delicados, trajando
negros tecidos finos. Nenhuma usa
burqa, mas todas usam véu — e o
modo como o arranjam, como
abrem as carteiras, revela uma
educação para seduzir sem
nenhum dispêndio de gestos.
Sendo o rosto a única parte visível
do seu corpo, ele é uma montra da
alma, dir-se-ia, e apresenta-se
muito cuidado, expressivo sem ser
teatral. Tudo está nos olhos delas.
Os vestidos de sedas negras
bordados a negro arrastam pelo
chão, muito sofisticados. As
mulheres caminham como para
serem vistas a caminhar. Os seus
direitos são restringidos, bem
como a sua liberdade: liberdade de
expressão e liberdade de imprensa,
Norman Foster — que reclamou
ser esta a cidade perfeita — alberga
523 estudantes e 100 professores
internacionais que fazem
investigação sobre as energias do
futuro (antes que o petróleo
acabe). Sendo na prática um
deserto, os EAU são dos países que
mais água e energia gastam.
Porém, apesar da sua
envergadura, houve em Mesdar
erros de planeamento, como a
construção de caleiras numa
região em que nunca chove. Mas a
cidade não pode ser ideal quando
para servirem os investigadores há
centenas de imigrantes de
baixíssimos salários. Carros sem
condutor transportam os viajantes
e a Siemens já construíu aqui o seu
centro de investigação mais
vanguardista.
Pensada para um turismo de
massas, a ilha de Saadiyat (“Ilha da
Felicidade”), além de áreas
residenciais, disponibiliza
também hotéis de luxo, campos
de golfe, uma marina e um
“parque cultural”. Na verdade,
trata-se já não de uma cópia, da
assumpção do falso, mas sim de
um franchising cultural onde tudo
é verdadeiro embora radicalmente
deslocalizado. Primeiro, a
globalização e o esplendor dos
grandes negócios dos escritórios
dos arquitectos: Norman Foster,
Jean Nouvel, Zaha Hadid, Tadao
Ando, Frank Gehry e tantos outros
fazendo o que o cliente exige,
desenhando segundo o seu gosto
rígido. Depois, o fenómeno a que
poderemos chamar “o rapto do
Ocidente”: o Louvre de Abu
Dhabi, a Universidade de Nova
Iorque, a Biblioteca de França, o
Guggenheim de Abu Dhabi e em
breve também o British Museum.
Um museu nacional de História
conta as proezas destes povos
nómadas, agora monarquias
hereditárias, organizadas em
castas, em que a mais sofisticada
tecnologia convive com laivos de
servilismo. A pergunta impõe-se:
o que os leva a comprarem a peso
de ouro o passado cultural de
outros povos? O que os leva a
quererem ter os museus da
Europa, os arquitectos do
Ocidente, a tecnologia de Silicon
Valley, as universidades
americanas?
Aqui se organizam feiras de arte
e de ciência, aqui se estudam os
modernismos dos outros, se
compram os clássicos dos outros,
se fazem exposições universais. Os
governantes formaram-se em
Cambridge e Harvard, dominam o
inglês. Porquê? Para quê? Será
motivada pela orfandade de uma
cultura ancestral material esta
tentativa de compensação que a
fluidez do capital aparentemente
proporciona? Ou esta aceleração
estará movida pelo próprio
consumo? Trata-se de uma
vocação imperial sofisticada ou
apenas da arrogância dos
milionários? É, de certeza, uma
irrealidade quotidiana do século
XXI que confunde todos os
cânones da Estética europeia.
A compensação proporcionada pela fluidez do capital revela uma vocação imperial sofisticada ou a arrogância dos milionários?
A arquitectura, no Dubai, quer-se espectacular: cada vez maior, cada vez mais alto, cada vez mais caro, cada vez mais e mais, num horizonte devorado pelas silhuetas e pelos reflexos das torres de vidro e de alumínio
STEVE CRISP/ REUTERS
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