37
Inversão–subversão de sentidos da imagem fotográfica:
intersemiose e ditadura militar brasileira
Adriana Fernandes da Silva1
Resumo: O trabalho apresenta uma análise sobre a apropriação, uso e manipulação pela
polícia de fotografias de vítimas da repressão, como prova de acusação contra os considerados
“subversivos”, modificando o sentido da imagem; eos caminhos da apropriação artística de
processos criminais no âmbito da repressão política. Ainda serão apontados exemplos de
trabalhos artísticos, nos diversos campos, como potenciais reconstrutores da memória e
elaboração de novos significados através da intersemiose.
Palavras-chave: Fotografia. Ditadura Militar. Manipulação de imagem. Incriminação.
Intersemiose.
Abstract: The paper presents an analysis about appropriation, use and manipulation of photos
of persecuted people by the police as evidence for subversives prosecution, modifying the
meaning of the image, and the possibilities artistic appropriation of criminal processes in the
sphere of political repression . We will still point out samples of artistic works in sundry
fields, as potential reconstructors in the memory, elaborating new meanings through
intersemiosis.
Keywords: Photography. Military dictatorship. Imagemanipulation. Injunction. Intersemiosis.
1. Introdução
A presente proposta de análise foi elaborada a partir da atuação como pesquisadora
colaboradora da Comissão Municipal da Verdade de Petrópolis.
Em 2016, a exposição itinerante “Petrópolis: Ditadura e resistência (1964-1985)”,
idealizada para a Semana da Memória, Verdade e Justiça, que faz parte do calendário da
cidade com a lei nº 7398 de 26 de fevereiro de 2016, apresentava um mural dedicado aos
torturados na Casa da Morte, que chamava a atenção pela reapresentação das fotos com uma
simples, mas expressiva, interferência: cada retrato continha um fio vermelho sobre a imagem
simbolizando o “sangue derramado”.
1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGAV-UFRJ).
38
Fig. 1- Exposição “Petrópolis: Ditadura e Resistência (1964-1985)”, realizada de abril a outubro de 2016
nos Centros de Cultura da Fundação de Cultura e Turismo de Petrópolis e no Palácio do Itaboraí/Fiocruz.
Essas experiências suscitaram o interesse em estudar a relação entre a fotografia de
registro policial e a arte, tendo em vista as imagens como formas de memória de diversos
sentidos.
Para além do caso da exposição supracitado, o foco desta pesquisa recai sobre a
apropriação, uso e manipulação pela polícia de fotografias de vítimas da repressão, como
prova de acusação contra os considerados “subversivos”.
As imagens eram retiradas de jornais, de registros de eventos sociais e até mesmo de
arquivos pessoais, na intenção de incriminar o indivíduo preso a partir de sondagens de sua
rede de relações, a fim de corroborar suas atividades insurretas pregressas inscritas em fichas
criminais. A imagem, que em si não teria relevância fora do contexto que fora construído pelo
observador, ou pelos interesses específicos de quem a retinha, era usada como prova cabal.
Um levantamento preliminar de prontuários político-policiais de pessoas presas, com
base na Lei de Segurança Nacional, em Petrópolis, realizado no Arquivo Público do Estado
do Rio de Janeiro (APERJ), aponta as fontes disponíveis. O estudo sobre utilização
tendenciosa de fotografias pela polícia basea-se em ocorrências registradas em Petrópolis,
entre o Golpe Militar de 1964 e o Ato Institucional nº5 de 1968. A exemplificar,
transcrevemos aqui, as palavras de Rubens de Castro Bomtempo em seu livro ‘Estação
Petrópolis: Memórias de um médico que não perdeu o trem da História’, na passagem das
páginas 111 a 112: “Pessoas conhecidas que freqüentavam o 1o. Batalhão de Caçadores me
disseram que, vasculhando a casa do ferroviário, a Polícia Civil encontrou fotos em que eu
também aparecia, mas nunca tive a oportunidade de vê-las."
39
A questão da fotografia numa documentação policial é a da prova de acusação contra
presos políticos, base material de medidas de repressão. Mas tem uma dimensão relacionada à
verdade, apreendidacomo uma correspondência entre imagens e fatos. Contudo, tal
entendimento supõe uma reinterpretação do passado à luz do presente. Trata-se, por assim
dizer, do ponto de vista histórico, de um "anacronismo". Quer dizer, a fotografia de eventos
passados anteriormente ao golpe de 1964 e à legislação repressiva (atos institucionais)
instaurada a partir desse golpe é utilizada pela polícia política como prova de que as greves, as
manifestações políticas, a ideologia nacionalista dos manifestos, entre outras eram vistas
como atividades "subversivas" e que os presos, por serem lideranças ou terem participado
delas, são "comunistas". Segundo o sistema policial, dessa forma ficava "provado" pelos
antecedentes criminais ou pela "folha corrida" que integra o prontuário de cada um deles. A
imputação e a condenação anterior são provas que justificam a prisão.
Quanto à arte sob a ditadura militar, Sheila Kaplan em estudo sobre a visualidade nos
anos 70 assinala que era comum tratar aquela como uma década de “vazio cultural”,
expressão muito mais vinculada ao poder institucional da ditadura militar para conjurar o
fantasma da vanguarda e da crítica. Adiante, no texto, a autora afirma que a arte dessa década,
na realidade, desenvolveu a problemática artística precedente, na qual o próprio conceito de
obra explode: “O artista não é mais o que realiza obras, dadas à contemplação, mas o que
propõe situações, que devem ser vividas, experimentadas.” 2
Dado o contexto de repressão, censura e autoritarismo vigente, a experimentação e a
crítica iam de mãos dadas. É um dos traços da Expoesia 1973. A convocação dos estudantes
do curso de pós-graduação em literatura da PUC_RJ feita por Affonso Romano de Sant’Anna
propondo estudar a poesia que estava sendo produzida no Brasil, desconhecida tanto por
causa da ditadura como do sistema literário acadêmico e cultural, também encarado como
repressivo, tinha a intenção de transcender a idéia de linguagens artísticas fechadas, como se
pode constatar nos termos da convocação: "Mandem poemas visuais, poemas corporais,
poemas em super-8, poemas orais, escritos, dramáticos, enfim, o que estão produzindo sob o
nome de poesia." E acrescenta o resultado alcançado: “mais de 600 poetas saíram de suas
tocas.” 3
A perspectiva da exposição foi assim definida por ele, em texto republicado mais tarde
pelo blog do Nassif em 23/01/2014: “Vários significados: exposição do que é, do que não é
2 KAPLAN, Sheila. “Visualidade, anos 70”. In: 20 anos de Resistência: Alternativas da cultura no Regime
Militar (org. Maria Amélia Mello). Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1986, p. 122. 3 Sant’Anna, Affonso Romano. “Um movimento subversivo”. In: Nassif Online. O Encontro de Expoesia em
1973. 23/01/2014. Disponível em http://jornalggn.com.br/noticia/o-encontro-do-expoesia-em-1973
40
(ex) e do pretende ser poesia.” 4 Eis aí a intersemiose, brotando da livre experimentação
artística.
Muitas vezes o punho cerrava-se em protesto, inclusive nas obras da Expoesia, como
se verifica abaixo:
Fig. 2- Fonte: Brito e Holanda, 1974, pág. 91.
A mesma perspectiva aparece nas obras de Claudia Calirman5 e de Valencia de
Cayses6, com destaque para os trabalhos de Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meireles.
Um pesquisador de relevância a ser mencionado sobre o objeto da memória dos
torturados pela ditadura é Maurício Lissovsky, que em sua séria de artigos
“Desmonumentalizar a ditadura” 7, aborda a questão da reivindicação da memória das vítimas
para além dos agentes da resistência, invocando registros dos métodos de tortura, como o pau-
de-arara, desde os tempos do Brasil colonial.
Um exemplo mais recente é a instalação de uma exposição temporária no Memorial da
Resistência de São Paulo, que aborda o tema ditaduras e reflexões através da arte. Intitulada
“Hiatus: A memória da violência ditatorial na América Latina”, sob curadoria de Marcio
Seligmann- Silva, exibe obras de oito artistas, desenvolvendo questões sobre a memória em
regimes repressivos, trazendo contribuições das Comissões da Verdade e os ecos dos traumas
nos dias atuais.
4 Uma apresentação da Expoesia encontra-se em Brito e Holanda (1974). Ver em Referências bibliográficas.
5 CALIRMAN, Claudia. Arte brasileira na ditadura militar: Antonio Manuel, Artur Barrio, Cildo Meireles. Rio
de Janeiro: Reptil Editora, 2014. 6 VALENCIA DE CAYSES, Julia Buenaventura. Isto não é uma obra: Arte e ditadura. Ver link de acesso nas
Referências bibliográficas. 7 Ver link de acesso nas Referências bibliográficas.
41
2. Problematização
Quanto à fotografia, trazemosalgumas referências importantes. Marcio Seligman-
Silva8 destaca a relação entre a fotografia e o trauma no contexto das ditaduras militares na
América Latina, marcada pelo desaparecimento dos corpos dos presos políticos assassinados.
Maior contribuição advém do estudo “De algoz a guardiã: fotografias da Polícia Política no
acervo do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro”, de Teresa Bastos, no qual se torna
relevante citar o seguinte trecho:
Se a memória é vista mais como uma confluência de tempos, acessadavoluntária ou
involuntariamente e presume um jogo constante entre imaginação, lembranças,
esquecimentos; a fotografia, como memória, carregaseus lapsos, sua invenção, seus mistérios
e suas marcas.9
Considera-se a arte como potencialidade de reelaboração de memórias, tendo em vista
a reatribuição de sentido das fotografias de presos e as marcas deixadas por essa estratégia
policial nas vítimas e atingidos pela ditadura militar no país.
Assim, desenvolve-seduas principais questões:
1- Por que e como a apropriação de fotografias pela polícia implicava em uma
manipulação de sentido?
2- Como a arte pode reconstruir a memória através da fotografia valendo-se do
signo original e do alterado?
Para tentar responder a estas questões, o estudo desenvolve-se com base em dois
pressupostos:
3. Pressuposto historiográfico
A fotografia é captação de um instante e perpassa por diversas interpretações: o ângulo
e a intenção do fotógrafo, o olhar de quem a vê, o meio no qual é veiculada, a legenda e
informações. A mesma imagem pode contemplar diferentes significâncias. Em outros termos:
“a fotografia não é autoexplicativa”. Como nos diz Soulages: ”A própria fotografia é enigma;
8 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Fotografia como arte do trauma e imagem-ação: jogo de espectros na
fotografia de desaparecidos das ditaduras na América Latina. Resgate – revista interdisciplinar de cultura. Vol.
18, n. 19 – Fotografia e Memória, jan./jul. 2010, p.46-66. Ver link de acesso nas Referências bibliográficas. 9 Bastos, Teresa. De algoz a guardiã: fotografias da Polícia Política no acervo do Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro. In: RESGATE - Vol. XVIII, No. 19 - jan./jul. 2010, p.67-86. Ver link de acesso nas Referências
bibliográficas.
42
incita o receptor a interpretar, a questionar, a criticar, em resumo, a criar e a pensar, mas de
maneira inacabável”.10
Daí que Benjamin11
formule esta pergunta que se aplica ao uso político-policial da
fotografia: “Não se tornará a legenda parte mais essencial da fotografia?”.
A fotografia na criminologia tem um importante papel nesse aspecto como objeto de
legitimação da transgressão.12
No estudo em pauta, o pressuposto orientador pode ser assim formulado: A imagem
fotográfica insere-se numa cadeia de sentidos dada pelo prontuário dos acusados de subversão
corroborada sob a forma de uma legenda.
4. Pressuposto artístico
A tradução intersemiótica é a expressão de signos de um meio para outro. Roman
Jakobson foi um dos primeiros estudiosos que delinearam o conceito de intersemiótica,
classificando as traduções em três formatos: intralingual (transcrição de um texto em outros
signos dentro de uma mesma língua); interlingual (a tradução propriamente dita); e a
intersemiótica (a transmutação de dados em outros signos de planos diferentes).
Segundo Jakobson, a tradução intersemiótica “consiste na interpretação dos signos
verbais por meio de sistemas de signos não verbais’, ou ‘de um sistema de signos para outro,
por exemplo, da arte verbal para a música, a dança, o cinema ou a pintura’, ou vice-versa”.13
O pensamento ou ideia, para ser comunicado, necessita ser traduzido em signo. O
signo é uma mediação comunicativa entre seres sociais, e como tal, sujeito à interpretação e
compreensão do receptor. Plaza14
, citando Maria Lúcia Santaella, nos coloca que: “o símbolo
é inevitavelmente incompleto. Sua ação é própria é a de crescer, desenvolvendo-se num outro
signo”.
Na arte, a tradução intersemiótica atua como forma de diálogo e transição das questões
sociais e políticas para um novo campo signíco, a des-recontruir a memória relativa a estes
pontos, colocando o interlocutor (o público) numa posição de identificação e estranhamento
dentro desse contexto, possibilitando novas interpretações sobre os fatos. Ainda em Plaza:
10
SOULAGES, François. Estética da Fotografia: perda e permanência. Tradução de Iraci D. Poleti e Regina
Salgado Campos. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2010. p. 346. 11
BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia”. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:
Brasiliense, 1985. p. 107. 12
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (APERJ) - Secretaria de Estado de Justiça: Dops
– A lógica da desconfiança, 1993 - 57 páginas. 13
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. 14
PLAZA, op. cit. p. 20.
43
A Tradução Intersemiótica de cunho poético pode ser contextualizada de duas formas:
primeira, face ao contexto da contemporaneidade da arte, isto é, como política; segunda,
como prática artística dentro dessa contemporaneidade, isto é, como poética. 15
O semioticista Flávio Kothe, ao abordar a questão em seu livro Literaturas e Sistemas
Intersemióticos, nos traz uma interessante declaração: “A poesia não é apenas oscilação entre
som e sentido (como afirmou Valéry), mas som e sentido se configuram nela em função do
silêncio que os permeia e contra o qual se afirma.” 16
A título de ilustração citamos as obras de Richter e Don Delillo sobre a experiência
trágica do grupo Baader-Meinhoff. Richter, motivado por este caso, cria uma série de pinturas
a partir de registros fotográficos dos membros do grupo considerado terrorista: as prisões e
mortes.
Já Don Delillo17
retoma o assunto e escreve um conto com o mesmo título tendo a
exposição dos trabalhos do artista como pano de fundo.
No Brasil, há uma referência importante na obra “Primeiro de Abril”, no campo da
literatura, de Salim Miguel18
, onde o autor recria, por meio da ficcionalização, a experiência
da própria prisão nos primeiros dias do Golpe Militar de 64. Outro exemplo encontra-se no
artigo de Nina Velasco19
a respeito do trabalho da artista visual Rosangela Rennó, na série
Vulgo, realizada com base em imagens de uma penitenciária.
Interessa-nos aqui situar a posição de Julio Plaza que, ao assumir a tradução de cunho
intersemiótico como forma de arte e prática artística medular da contemporaneidade20
destaca
o caráter crítico desta no período anterior, na segunda metade do século XX, quando a arte era
marcada pelos seus poderes de negação. A propósito, cita Octavio Paz (Hijos Del Limo)que
aqui transcrevemos:
Hoje somos testemunhas de outra mutação: a arte moderna começa a perder seus poderes de
negação. Já faz anos que suas negações são repetições; a rebeldia convertida em
procedimento, a crítica em retórica, a transgressão em cerimônia. A negação deixou de ser
criadora. Não digo que vivemos o fim da arte: vivemos o fim da idéia da arte moderna.21
Para falar das negações, temos, assim, de retornar ao campo da tradução intersemiótica
tal como foi praticado no passado, mais claramente no Brasil, no que tange à poesia, na
15
PLAZA, op. cit. 16
KOTHE, Flavio R. Literatura e sistemas intersemióticos. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1981. 17
DELILLO, Don. “Baader-Meinhof”. In: O Anjo Esmeralda – nove contos. São Paulo: Companhia das Letras,
2013, p. 111- 124. 18
MIGUEL, Salim. Primeiro de Abril – narrativas da cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. 19
Velasco, Nina. A série Vulgo de Rosangela Rennó: Fotografia, documento e estética. Ver link de acesso nas
Referências bibliográficas. 20
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. 21
PAZ, apud PLAZA, 2003, op. cit., p. 205-206.
44
segunda metade do século XX. Nesse sentido, Plaza destaca a Poesia Concreta, os fenômenos
de multimídia e intermídia como formas precursoras da tradução intersemiótica que, contudo,
não se confundem com ela. São mais:
[...] fenômenos de interação semiótica entre as diversas linguagens, a colagem, a montagem,
a interferência, as apropriações, integrações, fusões e re-fluxos interlinguagens [que] dizem
respeito às relações tradutoras intersemióticas, mas não se confundem com elas. Trazem, por
assim dizer, o gérmen dessas relações, mas não as realizam, via de regra, intencionalmente.
Nessa medida, para nós, o fenômeno da TI estaria na linha de continuidade desses processos
artísticos, distinguindo-se eles, porém, pela atividade intencional e explícita de tradução. 22
É o que conduz a pensar os caminhos da arte, acima examinados, como fundamento do
pressuposto a ser desenvolvido no presente projeto e que pode ser assim expresso: A
reivindicação e reconstrução crítica da memória dos atingidos pela repressão política do ponto
de vista artístico pode se dar por meio de intervenções sobre as imagens fotográficas numa
perspectiva intersemiótica.
5. Procedimentos metódicos
a) Histórico:
Aceita-se o ponto de vista teórico de historiadores como Paulo Knauss que trabalham
com o conceito de “cultura visual” em diálogo com a história da arte.23
Ana Maria Mauad, na apresentação de obra sobre o tema, com base naquele autor,
propõe a “construção de uma leitura histórica que valorize o processo contínuo de produção
de representações pelas sociedades humanas.” 24
Outro autor, Kossoy ainda nos traz que:
Será somente através da sensibilidade, do constante esforço de compreensão dos documentos e
do conhecimento multidisciplinar do momento histórico fragmentariamente (ou seja, através
da fotografia) retratado que poderemos ultrapassar o plano iconográfico: o outro lado da
imagem além do registro fotográfico 25
A valorização do processo de produção de representações deve considerar, no caso da
polícia política, como se estruturou, de acordo com uma “filosofia política de defesa do
Estado” (o anti-comunismo), os órgãos e os métodos repressivos em suas diferentes fases
(investigação, prisão, julgamento).
22
PLAZA, 2003, op. cit., p. 12 23
KNAUSS, Paulo, O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual, ArtCultura, Uberlândia,
vol.8, n.12, jan-jun. 2006, p.97-115. 24
MAUAD, Ana Maria. Apresentação. In: Charles Monteiro (Org.) Fotografia, história e cultura visual:
pesquisas recentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. p.6. Ver link de acesso nas Referências bibliográficas. 25
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002. p. 83.
45
A instauração da ditadura militar aprofunda um processo político repressivo anterior
que remonta ao Estado Novo e que se mantém após a redemocratização desse regime.26
Para
maior conhecimento se faz necessário entender a lógica policial tal como nos é revelada pelos
seus próprios agentes, a exemplo de Cecil Borer no caso da polícia política do Rio de
Janeiro.27
A análise fotográfica deve, portanto, considerar esses processos como condição de
produção da representação do “criminoso ideológico” (uma tipificação aqui formulada com
base no depoimento de Cecil Borer,28
e na observação de boletins de presos integrantes no
acervo do APERJ) e, simultaneamente enquanto “narrativa visual” elaborada por atores
sociais, como afirma Camera29
, no caso, por agentes policiais que compõem os procedimentos
de incriminação. Maria Teresa Bastos, em seu artigo sobre Fotografia e Comunismo30
, diz que
“a fotografia era um instrumento de controle, espionagem e enfatizava o estado de vigilância e
suspeição que pairava sobre a população”. Em contraponto a esta posição/perspectiva, no caso
de Petrópolis, o estudo deve lançar mão dos testemunhos das próprias vítimas e de seus
familiares e amigos, prestados à Comissão Municipal da Verdade, bem como da análise dos
jornais da época disponíveis no Arquivo Municipal.
O levantamento documental será realizado no acervo do Polícia Política que consta no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. O estudo abrangerá a análise de
aproximadamente 20 prontuários de presos políticos em Petrópolis, no período de 1964 a
1966, e de acervo fotográfico correspondente aos nomes desses presos.
b) Artístico:
O procedimento metódico da observação tem validade no campo da arte na medida em
que se trata de perceber o objeto (a fotografia como memória) no interior do sistema
simbólico que lhe confere significado.31
Resgata-se, para a arte, os processos concretos, de
26
NEGRO, Antonio Luigi e FONTES, Paulo. A história como processo: revelando aspectos da prática policial
no período democrático brasileiro. Ver link de acesso nas Referências bibliográficas. 27
DUARTE, Leila Menezes e ARAÚJO, Paulo Roberto de (orgs.). A contradita: Polícia Política e comunismo
no Brasil: 1945-1964/Entrevistas com Cecil Borer, Hércules Corrêa dos Reis, José Moraes, Nilson Venâncio.
Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2013. 28
DUARTE e ARAÚJO, op. cit. 29
CAMERA, Patricia. A dimensão histórica em “Mujeres presas”: aproximações teóricas entre fotografia-
expressão e ator social. In: Charles Monteiro (org.) Fotografia, história e cultura visual: pesquisas recentes. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2012. p.117-131. Ver link de acesso nas Referências bibliográficas. 30
BASTOS, Maria Teresa Ferreira. Fotografia e Comunismo: imagens da Polícia Política no Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro. In: ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. 31
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte – um paralelo entre arte e ciência. 3ª ed. rev. Campinas, SP: Autores
Associados, 2006.
46
caráter histórico, mas entendidos como parte de um sistema simbólico específico (a
“criminalização ideológica” de cunho político).
É necessário, então, estudar os diversos caminhos da arte apropriar-se das memórias
registradas em fotografias nos contextos de ditaduras como as do Brasil e do Cone Sul
(Uruguai, Argentina e Chile) sob a perspectiva acima apontada.
Quanto às possíveis intervenções sobre as fotografias como memórias disputadas entre
processos vividos e políticos, adota-se o entendimento de Chklóvski sobre a relevância da
categoria de estranhamento, referido por Flavio Kothe, para a renovação do olhar, para a
desfamiliarização da realidade vivida por meio da arte, conduzindo à formulação de uma
mudança de significação desta realidade.
A obra de arte atuaria, assim, como uma supra realidade que alude à realidade, mas a
altera, estranhando-a e transpondo-a para outro plano. Para concluir vale citar esta
interpretação com as palavras de Kothe:
“O estranhamento e a transposição afastam o objeto do modo habitual de ele ser visto
(porque habitualmente ele não é visto como ele é, ou como ele é para determinado sujeito
individual ou grupal). De fato constituem é um novo objeto, um signo.” 32
Referências bibliográficas
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (APERJ) - Secretaria de Estado
de Justiça: Dops – A lógica da desconfiança, 1993 - 57 páginas.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad.: Júlio Castañon
Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BASTOS, Maria Teresa Ferreira. Fotografia e Comunismo: imagens da Polícia Política no
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. In: ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL
DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009.
http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.1465.pdf
Acesso em 23/05/2017.
BASTOS, Teresa. De algoz a guardiã: fotografias da Polícia Política no acervo do Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro. In: RESGATE - Vol. XVIII, No. 19 - jan./jul. 2010,
p.67-86
http://www.cmu.unicamp.br/seer/index.php/resgate/article/view/288/287
Acesso em 19/03/2017.
BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia”. In: Magia e Técnica, Arte e Política.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
BOMTEMPO, Rubens de Castro. Estação Petrópolis – Memórias de um médico que não
perdeu o trem da história. Rio de Janeiro: Desiderata, 2006.
BRITO,Antonio Carlos e HOLANDA, Heloíza Buarque de. "Nosso verso de pé quebrado".
Argumento - Revista mensal de cultura, Rio de Janeiro, Ano 1(3) : janeiro de 1974.
32
KOTHE, Flavio R. Literatura e sistemas intersemióticos. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1981. p. 170.
47
CALIRMAN, Claudia. Arte brasileira na ditadura militar: Antonio Manuel, Artur Barrio,
Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Reptil Editora, 2014.
CAMERA, Patricia. A dimensão histórica em “Mujeres presas”: aproximações teóricas entre
fotografia-expressão e ator social. In: Charles Monteiro (org.) Fotografia, história e cultura
visual: pesquisas recentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. p.117-131.
http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/fotografia.pdf.
Acesso em 20/03/2017.
DELILLO, Don. “Baader-Meinhof”. In: O Anjo Esmeralda – nove contos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013, p. 111- 124.
DUARTE, Leila Menezes e ARAÚJO, Paulo Roberto de (orgs.). A contradita: Polícia
Política e comunismo no Brasil: 1945-1964/Entrevistas com Cecil Borer, Hércules Corrêa
dos Reis, José Moraes, Nilson Venâncio. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio
de Janeiro, 2013. 224 p.
KAPLAN, Sheila. “Visualidade, anos 70”. In: 20 anos de Resistência: Alternativas da cultura
no Regime Militar (org. Maria Amélia Mello). Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1986, p. 121-
135.
KNAUSS, Paulo, O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual, ArtCultura,
Uberlândia, vol.8, n.12, jan-jun. 2006, p.97-115.
KOSSOY, Boris. Fotografia e História. 2. ed. Rev. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
_________. Realidades e ficções na trama fotográfica. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002.
http://www.artcultura.inhis.ufu.br/PDF12/ArtCultura%2012_knauss.pdf
Acesso em 20/03/2017.
KOTHE, Flavio R. Literatura e sistemas intersemióticos. São Paulo: Cortez, Autores
Associados, 1981.
LISSOVSKY, Maurício. Desmonumentalizar a ditadura. Artigos de fevereiro de 2015.
http://www.iconica.com.br/site/desmonumentalizar-a-ditadura-1-e-2/
Acesso em 17/03/2017.
MAUAD, Ana Maria. Fotografia e história – possibilidades de análise. In: CIAVATTA,
Maria; ALVES, Nilda (Orgs.). A leitura de imagens na pesquisa social: história, comunicação
e educação. São Paulo: Cortez, 2004.
_________________. Apresentação. In: Charles Monteiro (Org.) Fotografia, história e
cultura visual: pesquisas recentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. Disponível em
http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/fotografia.pdfp. 6-7.
Acesso em 20/03/2017.
_________________. Através da imagem: fotografia e História interfaces. Tempo, Rio de
Janeiro, vol. 1, n °. 2, 1996, p. 73-98. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg2-4.pdf
Acesso em 20/03/2017.
MIGUEL, Salim. Primeiro de Abril – narrativas da cadeia. Rio de Janeiro: José Olympio,
1994.
NEGRO, Antonio Luigi e FONTES, Paulo. A história como processo: revelando aspectos da
prática policial no período democrático brasileiro. Em Bohoslavsky, Ernesto, Caimari, Lila y
Schettini, Cristiana (org.), La policía en perspectiva histórica. Argentina y Brasil (del siglo
XIX a la actualidad), CD-Rom, Buenos Aires, 2009. Disponível em:
http://www.crimenysociedad.com.ar/files/submenu5-item4.html
Acesso em 05/03/2017.
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Trad.:
ConstanciaEgrejas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.
48
SANT’ANNA, Affonso Romano. “Um movimento subversivo”. In: Nassif Online. O
Encontro de Expoesia em 1973. 23/01/2014. Disponível em
http://jornalggn.com.br/noticia/o-encontro-do-expoesia-em-1973
Acesso em 18/01/2017.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Fotografia como arte do trauma e imagem-ação: jogo de
espectros na fotografia de desaparecidos das ditaduras na América Latina. Resgate – revista
interdisciplinar de cultura. Vol. 18, n. 19 – Fotografia e Memória, jan./jul. 2010, p.46-66
http://www.cmu.unicamp.br/seer/index.php/resgate/article/view/287
Acesso em 15/03/2017.
SOULAGES, François. Estética da Fotografia: perda e permanência. Tradução de Iraci D.
Poleti e Regina Salgado Campos. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2010.
VALENCIA DE CAYSES, Julia Buenaventura. Isto não é uma obra: Arte e ditadura.
Estudos avançados 28 (80), 2014: 115-128.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142014000100011
Acesso em 11/02/2017.
VELASCO, Nina. A série Vulgo de Rosangela Rennó:Fotografia, documento e estética.
Disponível em: http://www.cult.ufba.br/enecult2007/NinaVelasco.pdf
Acesso em 13/02/2017.
ZAMBONI, Silvio. A pesquisa em arte – um paralelo entre arte e ciência. 3ª ed. rev.
Campinas, SP: Autores Associados, 2006.
Top Related