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Globalização, empresas transnacionais e Estado nacional: ensaio sobre
questões candentes da atualidade considerando o
setor agroalimentar e o Brasil
Hoyêdo Nunes Lins
UFSC – e-mail: [email protected]
Resumo
Um dos assuntos recorrentes no debate sobre a globalização, considerada fonte de desafios e
mesmo de ameaças para setores de atividades, territórios e grupos sociais, sobretudo para os
trabalhadores, refere-se à situação do Estado nacional. Diferentes autores argumentam que,
frente ao aprofundamento do caráter mundial dos fluxos econômicos, tendo como aspecto
básico a grande mobilidade do capital, também perante as influências culturais transnacionais
facilitadas pelo desenvolvimento tecnológico e, do mesmo modo, em face do crescente peso
político de instituições supranacionais, o Estado nacional perdeu capacidade de agir
eficazmente em termos regulatórios e de promoção do desenvolvimento, devendo ser
colocado, portanto, em segundo plano como paradigma para o estudo da vida social. Outros
autores argumentam no sentido contrário, assinalando que o capitalismo global funciona sob a
influência normativa de Estados nacionais representativos de diferentes ambientes
regulatórios e socioculturais, tanto que cadeias ou redes globais de produção e comércio
estariam a refletir, na sua forma de proceder e no seu perfil organizacional, o “peso” da
referida esfera de atuação institucional. Também sobre questões políticas e culturais esses
autores indicam escassez de evidência sobre uma pretensa erosão inapelável do Estado
nacional, dizendo que a realidade exibe processos de fortalecimento dessa esfera e do
transnacionalismo, simultaneamente, dependendo das questões consideradas e das
experiências observadas. Este estudo se inspira no aludido debate e procura problematizar a
idéia de que o Estado nacional foi enfraquecido, ampla e inexoravelmente, pela globalização.
Após uma discussão calcada na literatura, explora-se o assunto observando a situação do
Brasil a partir da década de 1990, com as abrangentes mudanças registradas no país,
particularmente as de marco regulatório. O foco se concentra no setor agroalimentar, cujos
movimentos em escala mundial permitem assimilação com o que de mais frequentemente se
costuma referir utilizando o termo “globalização”. A experiência específica abordada refere-
se à Parmalat, multinacional de origem italiana que tem o segmento de lácteos como carro
chefe das suas atividades e que ostentou particular desenvoltura em termos de
internacionalização nas últimas décadas, até ser abatida, em 2003, por uma crise que, de tão
profunda e geradora de consequências mundo afora, garantiu-lhe destaque durante algum
tempo entre manchetes sobre questões de polícia e justiça.
Palavras chaves: Estado nacional na globalização, setor agroalimentar, Parmalat Brasil
Introdução
Tornou-se lugar comum, principalmente no meio acadêmico, considerar a
globalização como fonte de desafios e ameaças para setores de atividades e trabalhadores.
Geralmente assimilada ao aprofundamento sem atenuantes da internacionalização econômica,
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nas suas faces produtiva, comercial e financeira, ela representa acirramento da concorrência e
fortes pressões por reestruturação, com reflexos socioeconômicos de várias ordens.
É recorrente a vinculação analítica das consequências da globalização à dinâmica do
capital privado, tido como amplamente desvencilhado, na atualidade, de quase todas as
“rugosidades” aptas a dificultar o seu desenvolvimento. Nesse tipo de abordagem, chega a ser
quase trivial assinalar que a capacidade de influência do Estado nacional sofreu considerável
erosão, sendo este um dos fatores do desembaraço ostentado (e usufruído) pelo capital.
Este artigo, idealizado como um ensaio, tem como assunto geral as relações entre a
globalização, com seus efeitos, e o Estado nacional. A intenção é problematizar a ideia de que
este último teve corroídas, sob o signo da globalização e na esteira desta, a sua capacidade de
intervenção e sua efetiva influência em vários aspectos, entre eles aqueles relativos à
economia. O assunto é explorado observando-se a situação do Brasil a partir da década de
1990, com as mudanças testemunhadas no país, sobressaindo as de marco regulatório. O foco
recai no setor agroalimentar, atribuindo-se destaque aos processos dizendo respeito à
Parmalat, importante empresa multinacional cujo core business reside no segmento de lácteos
(que inclui leite in natura e igualmente derivados como iogurte e queijo, entre outros).
Inicia-se com algumas breves colocações sobre o debate em torno do papel do Estado
nacional na globalização.
1 O Estado nacional em face da globalização
Um dos tópicos mais intensamente debatidos sobre a globalização contemporânea diz
respeito à situação do Estado nacional. A discussão gira amplamente em torno de questões
econômicas, referindo aos desdobramentos – ou à sua expressão nestes termos – produtivos,
comerciais e financeiros desse processo. Aspectos políticos também têm lugar, pois a
paisagem política passou a exibir fortes movimentos até mesmo acima e abaixo da esfera
nacional. Tampouco a temática cultural passa ao largo, pelo reconhecimento, entre outras
coisas, de que os avanços nas comunicações lubrificaram a aproximação entre hábitos e
formas de comportamento em nível mundial.
Frente ao que se designa, em distintas abordagens, como tendência geral à
desterritorialização (cf., p. ex., Ianni, 1992), alguns autores avaliam negativamente a situação
do Estado nacional no contexto caracterizado anteriormente. Avaliar negativamente, frise-se,
significa basicamente admitir incontornável perda de importância da respectiva esfera de
atuação.
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Em termos mais propriamente econômicos, argumenta-se que a força produtiva,
tecnológica e financeira concentrada nas empresas multinacionais tende a “vassalizar” o
Estado-nação, por conta, entre outros aspectos, da permanente possibilidade de deslocalização
produtiva, com seus resultados (DECORNOY, 1993; HOLLOWAY, 1994). A organização
dos negócios em redes globais, com segmentos produtivos e outras atividades de grandes
empresas salpicando numerosas localizações em diferentes regiões mundiais e países,
representa potencial de mobilidade do capital que inibe e dificulta as ações do Estado
(CHESNAY, 1996). Assim, este resultaria fragilizado na sua capacidade reguladora e de
promoção do desenvolvimento (IANNI, 1992; MICHALET, 1994).
Essa suposta fragilização é tanto mais problemática, argumenta-se, tendo em vista que
a globalização afeta, geralmente no sentido do agravamento, os contrastes socioeconômicos
entre países e entre regiões subnacionais (PALMA, 2006; VELTZ, 1996). Esse tipo de
repercussão espelha e traduz, vale assinalar, diferentes formas de envolvimento na dinâmica
da globalização.
Na atividade industrial, por exemplo, a divisão espacial do trabalho – fruto da
estratégia de grandes empresas que consiste na instalação de unidades especializadas em
localizações geograficamente separadas – representa atribuição de funções distintas, em
termos técnicos e tecnológicos (refletindo nos padrões dos empregos e remunerações), a
países e/ou regiões envolvidos em estruturas produtivas integradas (LIPIETZ, 1983;
MASSEY, 1984). Análises que exploram as noções de cadeia ou rede global sugerem
imagens semelhantes, como se pode ver em Dicken et al. (2001).
Em termos políticos, o funcionamento de instituições supranacionais de abrangência
mundial (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Nações Unidas) ou regional (União
Europeia, Organização dos Estados Americanos), embora de escopo e sentido variáveis,
estaria a restringir a importância da esfera de atuação correspondente ao Estado nacional
(JACOBSON, 1997). O mesmo caberia dizer considerando-se a descentralização das
iniciativas do Estado central para níveis menores de gestão pública, uma tendência observada
em vários países nas últimas décadas (BOISIER et al., 1992; COE et al.,2004).
Conduz também a conclusões desse tipo a proliferação, no interior dos Estados
nacionais, de movimentos políticos de base territorial e de instâncias de reivindicação com
recortes étnicos ou socioculturais, nutridas inclusive por processos migratórios ou diásporas,
que afetam a importância do território nacional como base de definição da identidade de uma
população. Nessa configuração, o tipo de modelo político representado pelo Estado nacional,
cuja forma historicamente específica é tida como representativa de (por incorporá-la) uma
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“vontade geral”, revelar-se-ia cada vez menos apto a acomodar o dinamismo social
(JACOBSON, 1997).
Tudo isso ressoa no plano analítico, sem que isso cause surpresa. Por exemplo, o
sentido de mudança ontológica que Robinson (1998) enxerga na globalização, associada à
crescente e aprofundada transnacionalização da estrutura social, seria bastante marcada pela
obsolescência do Estado-nação como forma básica de organização social. Tal situação estaria
a exigir, como pondera aquele autor, um novo paradigma para o estudo da vida em sociedade:
à aludida mudança ontológica seria necessário conjugar troca epistemológica representando a
superação do paradigma do Estado nacional, de modo que, em vez de privilegiar o
correspondente nível de análise, as indagações se concentrariam em fenômenos e processos
transnacionais.
Mas está longe de ser consensual a ideia de que, em face da globalização, o Estado
nacional perde importância. Talvez bastasse considerar, para sustentar a posição contrária,
que “[o] capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado”
(BRAUDEL, 1987, p. 55). Todavia, argumentos específicos podem ser encontrados na
literatura.
Em relação à problemática do crescimento e disseminação de estruturas produtivas em
redes ou cadeias transfronteiriças de grande abrangência territorial, uma irrecusável tendência
na organização produtiva industrial nas últimas décadas – e frequentemente assimilada à
contração da esfera de ação do Estado – , é importante ressaltar o ponto de vista de Dicken et
al. (2001), como segue.
Um vínculo de rede que atravessa fronteiras internacionais não é somente um
exemplo a mais de “ação a distância”, podendo também representar uma
disjunção qualitativa entre ambientes regulatórios e socioculturais diferentes (...).
Regimes nacionais de regulação continuam a criar um padrão de “regiões
limitadas”, e redes de atividade econômica não são simplesmente superpostas a
esse mosaico, nem é o Estado apenas mais um ator em redes econômicas. (...)
O ambiente regulatório criado por diferentes Estados ainda é (...) uma
imensa influência normativa no desenvolvimento de redes (...). Em outras
palavras, mesmo firmas operando em setores altamente internacionalizados
tendem a manter distintas formas e práticas organizacionais que refletem
largamente o ambiente regulatório (...). (DICKEN et al., op cit., p. 96-97 – itálico
no original)
Referindo-se a um âmbito que se poderia designar como mais propriamente político,
Rapoport (1997) trata do “debilitamento generalizado do Estado-Nação como consequência
do processo de globalização” (p. 167), assinalando que o avanço das políticas neoliberais,
marcante nas últimas décadas, pode ter reduzido o tamanho do Estado em vários países, mas
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não necessariamente o enfraqueceu. Mais ainda, se a, por assim dizer, “face social da ação do
Estado” foi duramente afetada no turbilhão neoliberal dos anos 1980-1990 (ANDRÉ, 1995), a
esfera de intervenção referente à promoção da competitividade foi mais do que preservada,
quer se fale de políticas de inovação ou de infraestruturas, entre outros aspectos (AMABLE;
PETIT, 1998).
Vários processos normalmente evocados para argumentar pela contração das ações do
Estado nacional constituiriam, a rigor, evidências em sentido oposto. Diversas decisões
estratégicas, ligadas, por exemplo, aos problemas ambientais em escala global ou ao
envolvimento em esquemas de integração regional (Nafta, Mercosul), necessariamente
requerem “Estados nacionais fortes e economias poderosas e integradas nos níveis locais,
nacionais e regionais” (SANTOS, 1993, p. 38). Assim, não obstante a proliferação ou
intensificação de movimentos integracionistas entre países, além de outros aspectos da
globalização, “os Estados nacionais continuam a ser a unidade econômica, política e cultural
essencial (...). É pouco provável que estes processos pudessem ocorrer sem a mediação de um
organizador coletivo da dimensão dos Estados nacionais” (op cit., p. 57).
Mann (1997), de sua parte, propõe-se a examinar de maneira conjunta blocos de
supostas ameaças ao Estado nacional frequentemente referidas na literatura como vinculadas à
globalização. Uma dessas ameaças é representada pelo capitalismo alçado a dimensões
efetivamente globais, escapando dos controles estatais. Outra se refere ao agravamento de
problemas com alcance planetário, como os ambientais, demasiadamente amplos e profundos
para tentativas de equacionamento restritas à escala do Estado-nação. A diversificação das
identidades e os novos movimentos sociais, não coincidentes com “sociedades nacionais”,
formariam uma terceira ameaça, encapsulada na ideia de “sociedade civil transnacional”. O
pós-nuclearismo ou pós-militarismo, implicando redução (ao menos no centro do capitalismo)
no engajamento dos países em ações de guerra – envolvimento historicamente constitutivo do
Estado-nação – , seria igualmente uma ameaça.
O autor conclui como segue a sua abordagem, que se escora na distinção entre redes
de interações sociais operando em diferentes escalas: local, nacional, internacional,
transnacional e global; observe-se que o Estado-nação, com o seu âmbito de funcionamento,
influencia fortemente o desenho e as operações das redes nacionais e internacionais.
Devemos ter cuidado com os globalistas e transnacionalistas mais entusiastas.
Com pouco senso de história, eles exageram a força pretérita dos Estados
nacionais; com pouco senso de variedade global, eles exageram o seu declínio
contemporâneo; com pouco senso de sua pluraridade, eles minimizam a
importância das relações internacionais. Em todas as quatro esferas de “ameaça”
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devemos distinguir: a) impactos diferenciais em diferentes tipos de Estado em
diferentes regiões; b) tendências que enfraquecem e algumas tendências que
fortalecem os Estados-nações; c) tendências que deslocam a regulação nacional
para redes internacionais e também transnacionais; d) tendências que fortalecem
simultaneamente os Estados nacionais e o transnacionalismo. (MANN, 1997, p.
494 – itálico no original)
Cabe igualmente assinalar, na abordagem desse autor, que
[a]s redes de interações globais estão realmente se fortalecendo. Mas elas
entrelaçam três elementos principais. Primeiramente, parte da sua força deriva da
escala mais global de relações transnacionais que se originam principalmente da
tecnologia e das relações sociais do capitalismo. Mas estas não têm o poder de
impor um universalismo único às redes globais. Portanto, em segundo lugar, as
redes globais são também parcialmente segmentadas pelas particularidades dos
Estados nacionais, especialmente dos mais poderosos do norte. Terceiro, essa
segmentação é mediada por relações internacionais. (op cit., p. 495)
2 Estado nacional: “refém” e “protagonista” da globalização
O período que se convencionou associar à globalização permite observar
internacionalmente, como assinala Baumann (1996), uma “convergência dos requisitos de
regulação em diversas áreas (...)” (p. 35). Esse processo não se apresentou dissociado da
entronização e atuação, nos staffs governamentais de diferentes países, “de equipes
econômicas comprometidas com a desregulamentação e redução do grau de intervencionismo
nos mercados” (p. 38).
Esse realce cumpre função de preâmbulo à indicação de que, neste trabalho, assume-se
que o Estado nacional está longe de ter perdido importância em face da globalização, em que
pese a assinalada disseminação do comprometimento institucional com a desregulamentação e
com o menor intervencionismo. Reconhece-se ser difícil refutar, concentrando a observação
no terreno econômico (principal foco de interesse no estudo), que a grande mobilidade do
capital suprimiu graus de liberdade à ação do Estado. Mas a capacidade reguladora que,
apesar de tudo, este detém e (potencialmente) pratica interfere nas decisões de investimento e
de localização mesmo de empresas multinacionais, condicionando-as em grande medida.
O próprio desenho das cadeias e redes globais não deixa de sugerir esse tipo de
influência, em diferentes setores e circunstâncias. Isso é percebido, por exemplo, quando se
volta a atenção para uma experiência como a da China, onde grandes reformas e as famosas
Zonas Econômicas Especiais, materialização de vigorosas estratégias governamentais,
ajudaram a “modelar” estruturas produtivas globalizadas (GEREFFI, 2007).
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Com efeito, a grande mobilidade do capital e a maior intensidade do comércio externo,
importantes sintomas da globalização, mostram-se fortemente ligadas a ações levadas a efeito
na esfera estatal. Não é de outra coisa que se trata no surto de desregulamentações observadas
em distintos países, principalmente na década de 1990. Em outras palavras, opções de política
constituem vetores da globalização, pavimentando o caminho para a grande fluidez dos
movimentos e fluxos que lhe determinam o perfil e – por via de consequência – definindo a
maneira como os países participam do respectivo processo.
O Estado nacional constitui, portanto, um sujeito ativo da globalização. Ativo mesmo
quando as escolhas políticas resultam em diminuição da intervenção pública em vários
aspectos, no marco, por exemplo, do que tem sido referido com o termo “neoliberalismo”,
fortalecendo dessa forma a capacidade de barganha do grande capital globalizado. Afinal,
segundo Bourdieu (1998), o neoliberalismo – ao qual a globalização contemporânea é
geralmente associada – desnuda-se a um só tempo como uma teoria, um programa científico e
– remetendo particularmente aos processos na esfera do Estado – um projeto político.
Em boa parte dos anos 1980 e na década de 1990, o Brasil não representou exceção
nesse quadro geral, que refletia, cabe assinalar, as indicações do chamado Consenso de
Washington. De fato, no governo Sarney promoveu-se redução tarifária que fez o país
convergir para situação de abertura comercial já exibida naquele momento por outros países
latinoamericanos. Esse processo foi depois amplificado pela política de câmbio do Plano Real
(criado no governo Itamar Franco), mantida até a maxidesvalorização efetuada pelo Brasil no
início de 1999.
Importações em avalanche e dificuldades para exportar foram a tônica naquele
cenário, correspondente à primeira gestão de Fernando Henrique Cardoso na presidência,
impondo reestruturação que em muitas empresas envolveu modernização tecnológica e
gerencial e focalização das atividades (CASTRO, 2001). Registraram-se mudanças na
geografia da produção que resultaram em maior diversidade em termos de localização
industrial, como na produção de artigos de vestuário e de calçados e na agroindústria. Os
reflexos no mundo do trabalho não se fizeram esperar, com repercussões sociais que
praticamente impuseram a recorrência do termo “precarização” nos debates (DEDECCA,
2005).
Privatizações em profusão também caracterizaram o período. A intensidade foi
crescente desde o breve governo Collor, atravessando o período de Itamar Franco e ganhando
particular vigor sob Fernando Henrique Cardoso. Os setores siderúrgico, petroquímico e de
fertilizantes despontaram nos primeiros movimentos, e os de transportes, telecomunicações e
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eletricidade foram especialmente implicados na segunda metade dos anos 1990 (PINHEIRO,
1999). Dessa forma, uma importante mudança patrimonial operou-se no país, inclusive
representando aumento da presença estrangeira em atividades estratégicas.
Não foi pequeno, nesse período, o dinamismo no front dos investimentos no Brasil, em
especial os originados no exterior, atraídos pelas mudanças em curso. Não se tratou somente
de investimentos em papeis, seduzidos pelos altos juros praticados, ou dos ligados às
privatizações, fluxo que foi também registrado na Argentina na esteira das suas próprias
reformas.
Os investimentos produtivos com origem externa ganharam intensidade já em meados
dos anos 1990, refletindo os primeiros movimentos do Plano Real (LAPLANE; SARTI,
1997). A figura 1 informa sobre isso, permitindo observar que a segunda metade daquela
década abrigou uma notável progressão dos fluxos líquidos de investimentos externos diretos
no país. Ocorreu reversão somente em 2001, com aprofundamento até 2003, em ambiente de
incertezas sobre a situação econômica do país e também sobre o futuro do Mercosul,
principalmente devido à deterioração das condições na Argentina.
Figura 1 – Brasil: fluxos líquidos de investimento externo direto – 1994-2004 (US$ bilhões)
-5.000
0
5.000
10.000
15.000
20.000
25.000
30.000
35.000
1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
US
$ bi
lhõe
s
Fonte: elaborado pelo autor com base em CEPAL (2005) – Quadro II.2, p. 92
Cabe particular destaque, em termos de incidência desses investimentos, ao setor
automotivo, que apresentou aumento no número de fábricas pertencentes a produtores já em
atuação no país e também entrada de novos fabricantes, quer se fale de veículos ou de
autopeças e componentes. Em ambas situações, esse movimento representou disseminação
geográfica dessa indústria, com incorporação de novos estados e municípios à sua dinâmica
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(SANTOS; PINHÃO, 2000). Deve-se assinalar que uma importante iniciativa institucional
influenciou essa trajetória da indústria automotiva no país – a relativa ao Regime Automotivo
Brasileiro, de 1995 (BEDÊ, 1997).
3 O Brasil na mira do grande capital agroalimentar
O setor automotivo não foi o único reduto de dinamização produtiva no Brasil a
reboque das transformações que tiveram lugar nos anos 1990. Outro setor em que é possível
detectar movimentos importantes naquele período é o agroalimentar. O pano de fundo, em
escala mundial, exibe o entrelaçamento de alterações nos hábitos alimentares – refletindo
processos mais gerais ligados, por exemplo, à urbanização e ao funcionamento do mercado de
trabalho – e importantes desenvolvimentos nos planos tecnológico e organizacional,
principalmente entre as empresas maiores.
No bojo das referidas mudanças observou-se aumento da concentração e da
internacionalização na oferta de alimentos. Figuraram como subjacentes a esse processo os já
aludidos avanços tecnológicos, possibilitando inovações na gestão (com disseminação no uso
da informática) e melhores condições em matéria de logística. O predomínio da grande
distribuição no setor de produtos alimentares, incontestavelmente instalado, é uma espécie de
corolário dessas transformações (WILKINSON, 2002).
As repercussões em nível de cadeia produtiva incluíram um marcado incremento na
produtividade da agropecuária. Os resultados nessa direção decorreram amplamente das
alterações na base técnica em meio à já mencionada reestruturação geral do setor. Essas
modificações enfeixaram-se numa tendência à uniformização técnica e dos padrões de
eficiência na esfera da produção. Condiz com isso a testemunhada aceleração no surgimento
de novos produtos, um reflexo dos amplos e já referidos movimentos no plano do consumo
alimentar, e processo exigente tanto de mais qualidade das matérias primas como de avanços
na padronização destas.
As mudanças observadas internacionalmente também implicaram notável escalada das
fusões e aquisições de empresas. Registradas em diferentes países e cadeias produtivas, essas
ações tiveram consequências no funcionamento dos mercados, repercutindo em termos de
aprofundamento da concorrência (RODRÍGUEZ ZUÑIGA; SORIA, 1991). Socialmente
falando, foram sobretudo os resultados na esfera do emprego que espelharam a intensidade
das transformações, ainda que, sem que isto surpreenda por se tratar de capitalismo, tenham
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sido pronunciadas as desigualdades socioespaciais na incidência, seja entre países ou entre
regiões.
Aspecto merecedor de especial realce nessa dinâmica – ainda mais considerando-se o
foco de interesse deste artigo – diz respeito à internacionalização das grandes empresas
agroalimentares originárias dos países mais ricos. Esse processo ganhou velocidade e se
aprofundou a partir dos anos 1980, vincando fortemente o cenário econômico mundial desde
então.
Em estudo sobre a reestruturação do chamado agronegócio no passado recente, Benetti
(2004a) aponta dois grandes vetores dessa internacionalização em grande escala.
De um lado encontra-se o fortalecimento da tendência à liberalização do comércio
mundial, embalada pelas negociações protagonizadas no âmbito do GATT, substituído em
meados dos anos 1990 pela Organização Mundial do Comércio (OMC). As possibilidades que
tal liberalização representa em matéria de, entre outros aspectos, complementação produtiva e
ampliação e diversificação no leque de oferta de produtos finais, não só favoreceram, mas
parecem ter igualmente incentivado, a internacionalização, encorajando a constituição de
oligopólios com alcance (quase) planetário.
De outro lado, cabe assinalar um aparente esgotamento, nas zonas centrais do
capitalismo mundial, da estratégia de segmentação dos mercados colocada em prática
naqueles países pelas grandes empresas. Essa estratégia evoluiu em sintonia com o
aparecimento e generalização dos já referidos novos hábitos alimentares e ganhou tradução
na também já aludida maior velocidade no processo de lançamento de novos produtos.
Prospectar e explorar outros mercados no cenário mundial, com dimensões e dinamismo que
acenassem positivamente às empresas, tornaram-se iniciativas incontornáveis e prementes no
contexto dos anos 1990.
Observou-se na seção 2 que o Brasil se apresentava atraente para o capital globalizado
na década de 1990, como evidenciado pela escalada dos fluxos líquidos de investimento
externo direto no país. Na base dessa ascensão figurava, sem dúvida, o potencial de mercado
representado pelo tamanho da população brasileira, amplificado pelas possibilidades
incrustadas no processo de integração regional ligado ao Mercosul. Todavia, foi quando novas
e mais favoráveis condições para a realização de negócios passaram a caracterizar o país,
advindas do controle da inflação e da ampla desregulamentação da economia, que esses traços
se tornaram quase irresistíveis. Vale destacar especialmente as possibilidades associadas, na
perspectiva de alguns setores, à abertura comercial (exacerbada pelo regime de câmbio que
vigorou até o começo de 1999) e também à liberalização financeira.
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O capital que se valorizava internacionalmente nas atividades do setor agroalimentar
não escapou à sedução brasileira. Os respectivos investimentos com origem no exterior
ganharam magnitude e velocidade, um dinamismo que fez a internacionalização desse setor
exibir elevação de patamar no país. A tabela 1, que recobre período desdobrado entre meados
dos anos 1990 e dos anos 2000, permite observar a sua participação como destino daqueles
investimentos. O segmento de alimentos e bebidas aparece entre os três mais importantes da
indústria de transformação, ao lado dos produtos químicos e dos automóveis, reboques e
carrocerias, devendo-se também assinalar, de todo modo, a proeminência dos serviços.
Tabela 1 – Brasil: estoque e fluxo do investimento externo direto por setores de atividades –
1995-2004 (%)
Setores/segmentos
Estoque Fluxo
(média anual)
1995 2000 1996-2000 2001-2004
Agricultura, pecuária e extração
mineral
2,2 2,3 1,8 6,8
Indústria de transformação
Destacando-se:
- Alimentos e bebidas
- Produtos químicos
- Veículos, reboq. e carrocerias
66,9
6,8
12,8
11,6
33,7
4,5
5,9
6,2
18,0
2,6
3,0
3,9
40,3
10,6
7,4
7,1
Serviços
Destacando-se:
- Eletricidade, gás e água quente
- Comércio
- Serviços prestados às empresas
- Correio e telecomunicações
- Intermediação financeira
30,9
0,0
6,9
11,9
1,0
3,9
64,0
6,9
9,9
10,7
18,2
10,4
80,2
14,9
9,9
20,3
18,1
13,6
52,9
6,7
7,2
4,6
19,6
5,8
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 Fonte: extraído de CEPAL (2005) – Quadro II.3, p. 94
O mecanismo básico da referida internacionalização tomou a forma de uma
verdadeira escalada de aquisições de empresas nacionais por empresas estrangeiras. Portanto,
o processo envolveu majoritariamente transferência e incorporação de ativos já existentes,
num processo de mudança patrimonial cujo significado maior não foi outro senão, como
ressalta Benetti (2004a), uma verdadeira desnacionalização. Assinale-se que essa
internacionalização aprofundada atingiu igualmente o comércio, pois ocorreu crescimento na
participação da produção brasileira nas trocas mundiais (BENETTI, 2004b).
A forte entrada no Brasil de empresas agroalimentares de alcance mundial teve
repercussões importantes no país. Como já se indicou, a internacionalização assim
impulsionada abrangeu maior presença de produtos brasileiros em mercados internacionais, a
melhor tradução residindo, provavelmente, no crescimento das exportações na área de soja.
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Mas, refletindo processos em curso em termos globais, ocorreu igualmente transferência de
tecnologia. Uma ilustração refere-se à entrada e disseminação, no marco de parceria
institucional em território brasileiro, do uso de sementes transgênicas fornecidas pela
Monsanto, uma empresa multinacional de origem estadunidense.
Especialmente digno de nota é que esse surto de penetração de grandes empresas
agroalimentares estrangeiras promoveu rompimento do padrão histórico de funcionamento
desse setor no Brasil, vigente até as mudanças de marco regulatório efetuadas nos anos 1990.
Com efeito,
[a] entrada inusitada das firmas internacionais no País, na década de 90, aumentou
dramaticamente a competição, rompendo, por assim dizer, o equilíbrio com que se
repartia o mercado interno entre a tríade das empresas então operantes, obrigando-
as a revisarem suas estratégias e a mudarem seu comportamento de atuação. As
filiais das empresas estrangeiras aqui já instaladas se reestruturaram e
promoveram novos investimentos; as nacionais de grande porte, visando garantir
suas posições no mercado, aceitaram as novas regras do jogo, transitando
bruscamente para o padrão de crescimento baseado na diferenciação acelerada da
produção (...). (...). As pequenas e as médias empresas, por seu lado, viveram um
período de dificuldades dramáticas, ao sofrerem a concorrência direta e
intensificada dos grandes grupos nacionais e internacionais – os já instalados e os
latecomers –, sem que tivessem, como os grandes brasileiros, as mínimas
condições de acompanhar o novo jogo vigorando no mercado. (BENETTI, 2004a,
p. 23 – itálico no original)
Uma experiência plena de ensinamentos, sobre o significado da entrada em grande
escala de investimentos estrangeiros no setor agroalimentar em território brasileiro, concerne
à Parmalat. É disso que se ocupa a próxima seção do estudo.
4 Parmalat, um sugestivo affair em tempos de globalização
No Brasil, a dinâmica da globalização manifestada em processos dizendo respeito ao
setor agroalimentar teve na Parmalat um protagonista de grande expressão. Sua escolha neste
estudo, para especificar a abordagem sobre as relações entre globalização e Estado nacional,
deve-se ao referido destaque, que exprime experiência pedagógica em diferentes sentidos.
4.1 Aspectos da internacionalização de uma multinacional de lácteos
A Parmalat é uma empresa multinacional criada na Itália e que tem como carro chefe o
segmento de lácteos, embora também opere com suco de frutas. Suas atividades foram
iniciadas em 1961, segundo o histórico disponível na respectiva página na Internet
(www.parmalat.com), mas o processo de internacionalização seria desencadeado só nos anos
13
1970, após expansão e fortalecimento dos negócios no interior das fronteiras nacionais. Esse
confinamento foi rompido em 1974, quando a empresa passou a se fazer presente também no
Brasil, primeiro destino no trilhado percurso de internacionalização.
Desde então, o caráter multinacional da Parmalat ganhou vigor e velocidade na sua
conformação. Benetti (2004c) identifica nessa trajetória os seguintes períodos: entre 1977 e
1990, quando o processo tomou a direção da Europa Ocidental (implicando Alemanha,
França, Espanha e Portugal); década de 1990, com marcada aceleração da tendência de
internacionalização, tanto que, ao final daqueles anos, nada menos que 24 países registravam
a presença da empresa, entre eles Estados Unidos, Canadá e Austrália, mercados
reconhecidamente exigentes e competitivos; começo dos anos 2000 – até a eclosão da grave
crise sobre a qual se falará posteriormente –, com orientação das atenções para mercados
asiáticos.
Na América Latina, essa expansão acabou resultando em presença dessa multinacional
em oito países. A estrutura de filiais instaladas no subcontinente chegou a representar, no seu
conjunto, ¼ do faturamento e cerca de 40% do pessoal empregado, considerando-se o grupo
Parmalat em termos globais (BENETTI, 2004c).
O instrumento básico utilizado nesse crescimento em escala mundial foi a compra de
empresas locais. As aquisições foram, de fato, numerosas, um tipo de procedimento que
permeou a política de segmentação de mercados colocada em prática por essa multinacional.
Nesse processo, foi iniciativa recorrente a substituição de marcas antes existentes nos novos
espaços de atuação por marcas pertencentes à Parmalat.
Assinale-se que essa estratégia de substituição exibe ampla sintonia com uma das
linhas de atuação que a empresa segue ainda hoje (após a reestruturação promovida em 2005,
sobre a qual se falará depois), conforme observado na sua página na Internet. De fato, um dos
seus eixos de comportamento implica “[p]romover marcas com alto valor agregado e seguir
implementando, progressiva e efetivamente, o processo de ‘Parmalatização’ em todos os
países em que o Grupo opera, mediante: - a gradual racionalização do portfólio de produto,
substituindo pequenas marcas locais sempre que possível (...)” (www.parmalat.com).
O modus operandi da Parmalat, que provavelmente também caracteriza a organização
produtiva de outras empresas com semelhantes dimensões e alcance espacial, pode ser
captado na descrição a seguir.
[A] empresa montou uma rede de filiais em nível internacional, operando de
forma integrada, de modo que unidades industriais instaladas em um país
fornecem a matéria-prima – ou com pouca elaboração – para as de outros países,
14
onde passam pela fase de processamento final junto aos mercados consumidores.
Nesse esquema, as unidades industriais, em cada região, não ficam dependentes
da oferta agrícola local, que, como se sabe, apresenta a característica de
sazonalidade. (...) Além do mais, possuir rede de fornecedores em várias regiões e
países permite às transnacionais manipular os preços pagos aos produtores pela
matéria-prima.
Trata-se, portanto, de um caso de estruturas empresariais flexíveis, dada a
possibilidade sempre presente de fechamento e de abertura de plantas industriais
em regiões (estados ou países), em função do redesenho das estratégias
mercadológicas que visam ao bom desempenho futuro do grupo como um todo.
A empresa italiana instalou-se nos blocos regionais com o propósito de
aproveitar as vantagens daí decorrentes no que diz respeito à livre circulação das
mercadorias finais e dos recursos produtivos entre as plantas industriais instaladas
nos países integrantes dos mercados comuns. (BENETTI, 2004a, p. 39-40)
4.2 A Parmalat no Brasil: o frenesi dos anos 1990 e seus reflexos
Se o percurso expansivo global da Parmalat nos anos 1990 chama a atenção pela
amplitude e rapidez, sua incidência no Brasil é nada menos que assombrosa. Antes desse
período, a empresa já tinha alcançado o segundo lugar no mercado nacional de lácteos,
chegando a canalizar cerca de um bilhão de litros de leite por ano, superada apenas pela
Nestlé. Afinal, suas atividades no país haviam começado já em 1974, numa associação com a
Laticínios Mococa S.A., e em 1977 ocorreu a inauguração da primeira unidade industrial da
empresa em solo brasileiro, em Itamonte (MG).
Entre 1991 e 2001, o surto presenciado significou 24 aquisições no país, representando
pouco menos de 40% de todas as empresas que processavam produtos agropecuários no Brasil
e que foram compradas por empresas estrangeiras. Considerando-se somente o segmento de
lácteos, onde se concentrou a grande maioria das operações, as compras da Parmalat
totalizaram mais de 80% do total adquirido (Tabela 2), um número que sugere a agressividade
da investida dessa empresa no país. As operações da multinacional passaram a incidir, desse
modo, em diferentes regiões e estados brasileiros, sendo que a Parmalat Brasil tornou-se
também responsável pela coordenação do crescimento da marca na América Latina como um
todo.
Conforme assinalado na introdução, este estudo se ocupa das relações entre a
globalização e seus efeitos e o Estado nacional, objetivando problematizar a ideia de que este
teve substancialmente erodida a sua capacidade de intervenção e sua influência em vários
aspectos, uma posição defendida por distintos autores (ver seção 1). Assim, é importante
destacar, sobre o processo de internacionalização do setor agroalimentar em operação no
Brasil – notadamente o segmento de lácteos –, que iniciativas protagonizadas na esfera estatal
15
figuraram entre as razões da referida escalada de compras de empresas operando no Brasil por
capitais estrangeiros, entre estes o relativo à Parmalat.
As aquisições maciças na cadeia do leite estão relacionadas ao fim da
interferência estatal no mercado do produto, no início da década de 90. Isto
envolvia tanto a fixação dos preços, pois os mesmos eram tabelados pelo
Governo, quanto a quantidade demandada, em função da perda de importância dos
programas sociais oficiais de distribuição do leite. Não bastasse isso, o incentivo
às importações, devido à liberalização comercial e à apreciação cambial, levou os
grandes grupos nacionais e internacionais situados na ponta da cadeia de
processamento a importarem matéria-prima. (BENETTI, 2004a, p. 40)
Tabela 2 – Brasil: número de empresas processadoras de produtos agropecuários compradas
por multinacionais de 1991 a 2001
Empresas
multinacionais
Número de empresas compradas (por segmentos)
Total
Lati-
cínios
Trigo
Soja
Doces e
alim.
em geral
Café
Suínos
e
aves
Sucos
Parmalat 24 19 2 0 3 0 0 0
Bunge e Born 8 0 3 4 0 0 1 0
Macri 7 0 5 0 0 0 2 0
Louis Dreyfus 4 0 0 2 0 0 0 2
ADM 3 0 0 3 0 0 0 0
Sara Lee 3 0 0 0 0 3 0 0
Danone 2 2 0 0 0 0 0 0
Milkaut 2 2 0 0 0 0 0 0
Total 53 23 10 9 3 3 3 2 Fonte: BENETTI (2004c) – Quadro 3, p. 135
A forte entrada do capital globalizado nesse setor no Brasil (como em outros setores)
não deve ser tomada como sintoma de fragilidade do Estado nacional perante a desenvoltura e
a enorme capacidade de barganha das empresas multinacionais, como certamente consideram
as posições analíticas que salientam ter o Estado se tornado refém dos grandes interesses
econômicos internacionais no período contemporâneo. O frenesi de aquisições estaria a
representar, muito mais, consequência de opção governamental pela desregulamentação –
refletindo modo de compreender como o país deveria se relacionar internacionalmente e de
apoiar e estímular esse tipo de “diálogo” – e pela atrofia de certas funções do Estado. No
processo em tela, este se apresentaria, assim, como um sujeito ativo – tão ativo quanto o
próprio interesse da Parmalat – no envolvimento do Brasil e do segmento lácteo presente em
seu território no processo de globalização.
Portanto, o Estado nacional não pode se eximir – alegando impossibilidade ou
fragilização determinada pela “força das coisas” – de responsabilidade sobre os
desdobramentos dessa internacionalização, um processo que significou aprofundamento da
16
desnacionalização em setor de alimentação básica – o leite – que, sobretudo por conta disso,
haveria de merecer maior cuidado governamental mediante procedimentos regulatórios.
A entrada de empresas multinacionais em qualquer setor produtivo pode refletir
positivamente em nível setorial e de cadeia produtiva, e até mais amplamente. O que se
observou no setor agroalimentar em território brasileiro foi, de fato, um processo
acompanhado de benefícios enfeixados em “racionalização dos processos de trabalho e de
gestão, novos canais de comercialização, internos e externos, novas fontes de financiamento e
novos produtos” (BENETTI, 2004a, p. 54).
Com efeito, a expansão da Parmalat representou aumento de produtividade na
produção primária efetuada em propriedades rurais integrantes de diferentes bacias leiteiras
do país. Representou também elevação da concorrência, principalmente devido a fatores
tecnológicos, traço que se pode considerar como um eco distante do pioneirismo da empresa,
ainda na década de 1960, quanto ao uso de embalagem capaz de permitir longa conservação
(embalagem Tetra Pak) e quanto ao lançamento do leite longa vida, resultado de ação
inovadora no processo de esterilização. No Brasil, a empresa assumiu a liderança em leite
longa vida, em leite pasteurizado e em creme de leite.
Mas o surto de aquisições, com disseminação da presença da multinacional em
diferentes regiões e estados, provocou o desaparecimento de empresas de menor porte
(pequenos e médios laticínios) que atuavam em mercados regionais, com suas respectivas
marcas. O motivo, basicamente, foi o posterior fechamento de vários laticínios adquiridos,
afetando a estrutura até então vigente, de produção repartida entre bacias leiteiras regionais
que forneciam para centros de consumo próximos.
Esse movimento traduziu-se, sem que isto cause espécie, em aumento de concentração
no segmento de lácteos, com aprofundamento do controle patrimonial e industrial unificado.
Pode-se dizer que essa concentração teve alcance amplo, pois, embora a grande maioria das
compras se concentrasse no segmento lácteo, carro chefe da Parmalat desde a sua fundação,
também outros segmentos (massas, biscoitos) entraram na dinâmica de expansão observada
nos anos 1990, evidenciando o que Benetti (2004c) classificou de “estratégia de crescimento
horizontal multiprodutos” (p. 135). Com efeito, a multinacional exibiu espantosa desenvoltura
em compras generalizadas na indústria de alimentos, como sucedeu com as fábricas da Etti e
da Neugebauer.
4.3 Desnacionalização, crise corporativa e resultados locais
A forte entrada de interesses externos em setores de atividades operando
nacionalmente é capaz de produzir resultados ainda mais amplos e agudos do que os
17
anteriormente referidos. De fato, “a alienação das empresas nacionais significa que o controle
da produção passa a ser exercido pelas matrizes dos grupos transnacionais, localizadas no
Exterior, e em função de interesses gerais da empresa, os quais podem vir a não coincidir com
os do país hospedeiro” (BENETTI, 2004a, p. 53). Reside nisso um dos maiores problemas de
processos de internacionalização cujo sentido é, fundamentalmente, a desnacionalização de
frações importantes de atividades produtivas. A experiência da Parmalat no Brasil representa
uma instrutiva ilustração sobre esse assunto.
No final de 2003, o mundo dos grandes negócios registrou um abalo sísmico de
proporções transcontinentais. A Parmalat ocupou as manchetes por meio de bombásticas
notícias sobre a explosão de uma grave crise, uma turbulência tão profunda que acabou por
levar a matriz da empresa a pedir concordata. O quadro era tanto mais surpreendente na
medida em que os resultados financeiros até então divulgados apontavam uma situação sob
controle, de um modo geral. As indicações de débito da Parmalat tinham no acúmulo de
aquisições de empresas mundo afora o seu componente principal, mas informações dadas pela
multinacional induziram auditores de reconhecida competência a considerar que sua gestão
financeira apresentava-se moderada.
A surpresa com a eclosão da crise, todavia, derivava de um engodo, como se viu
depois. Não permite equívoco sobre isso o fato da cúpula da Parmalat ter sido acusada de
apropriação indébita, desvio de dinheiro, fraude e falsificação de contabilidade. O fundador,
pivô do buraco financeiro detectado, acabou preso, ao mesmo tempo em que o grupo
empresarial – com presença em cerca de 30 países e empregador, naquele momento, de mais
ou menos 36 mil pessoas – teve o seu mais importante braço operacional declarado
insolvente.
No Brasil, o acontecimento foi motivo de inquietação em importantes esferas
institucionais, e não só no âmbito do Ministério da Agricultura, na Câmara Setorial do Leite e
Derivados. É que em outubro de 2003, três meses antes do assinalado pedido de concordata, o
BNDES havia concedido um empréstimo de mais ou menos R$ 26 milhões à empresa. Mas a
preocupação não rondava só esse banco. Por exemplo, o mencionado empréstimo teria sido
liberado mediante apresentação, pela Parmalat (a título de garantia), de uma carta de fiança do
Banco Itaú (Balbi, 2004a). Outros importantes bancos com presença no país também eram
credores da empresa e, assim como as instituições mencionadas, certamente passaram a
vivenciar grande inquietação.
Curioso é que o alarme não tenha soado no Brasil antes da eclosão da crise, já que as
atividades da Parmalat vinham acumulando prejuízos nos cinco anos anteriores. Não teria
18
como passar despercebida, com efeito, uma progressão desses resultados com cifras que
evoluíram de R$ 33,6 milhões em 1998 para R$ 183,3 milhões em 2002 (MATTOS, 2004a),
em que pese a trajetória oscilante. A rapidez e intensidade da reorganização posta em marcha
pela Parmalat Brasil também era indicativa de que a situação tornava-se crescentemente
adversa, já que
os responsáveis pela reestruturação alienavam ativos do grupo a uma velocidade
maior do que haviam sido adquiridos, tanto através de vendas como do
fechamento de plantas industriais e de centros de distribuição ou, ainda, da
devolução dos mesmos aos seus antigos proprietários. Das 33 plantas industriais
que possuía, 25 foram fechadas no período 2000-02 (...). (BENETTI, 2004c, p.
138-139)
Assinale-se que as operações da multinacional no mundo todo foram afetadas pela
crise. As atividades desenvolvidas em outros países da América do Sul não foram poupadas,
tanto que o braço brasileiro – a quem fora designada, como se falou, a tarefa de coordenar a
expansão da marca em escala de América Latina – teria enviado milhões de reais ao exterior
(R$ 198 milhões só em 2003) para auxiliar, além da matriz na Itália, empresas vinculadas que
operavam no subcontinente (Balbi, 2004b).
O estridente surgimento da crise esteve longe de preocupar, em território brasileiro,
somente o setor bancário mais diretamente atingido. No período em que o assunto ganhou as
manchetes, a empresa marcava importante presença no cenário lácteo do Brasil, não obstante
a acelerada alienação de ativos referida anteriormente. Essa incidência mostrava-se, no início
de 2004, na forma de oito fábricas que, instaladas em sete estados, ocupavam pouco mais de
60% do total de seis mil funcionários registrados pela Parmalat Brasil S.A. (Tabela 3), assim
como na forma de sete centros de distribuição.
Com a avassaladora penetração da Parmalat no mercado de leite no Brasil, muitos
produtores tinham passado a fornecer à empresa de forma praticamente exclusiva. Portanto,
foi principalmente junto a tais produtores primários, mas também em fornecedores de
embalagens e matérias primas, que recaiu o principal das dificuldades provocadas ou
ampliadas pela crise. Os produtores de leite implicados, geralmente organizados em
cooperativas, tiveram os seus pagamentos sustados ou consideravelmente atrasados, com
efeitos dramáticos em várias regiões, principalmente nos estados de Pernambuco, Paraná e
Rio Grande do Sul. Estes efeitos manifestaram-se também em desligamentos de trabalhadores
em diferentes unidades produtivas, principalmente nas fábricas em que a entrega de leite foi
interrompida.
19
Tabela 3 – Estrutura produtiva da Parmalat no Brasil no início de 2004
Estado
Localização
das
fábricas
Produtos
Nº de
empre-
gados
Rio Grande
do Sul
Carazinho Leite longa vida; leite condensado; leite natura
premium; creme de leite
331
Paraná Carambeí Leite longa vida; leite fermentado; petit suisse;
iogurtes; produtos aromatizados; sobremesas; queijos
1.100
São Paulo
Jundiaí Leite longa vida; sucos; chás; creme de leite;
biscoitos; bolinhos
1.100
Araçatuba Conservas; produtos atomatados; condimentos; doces 532
Rio de
Janeiro
Itaperuna Leite em pó; leite condensado; creme de leite;
produtos da linha Festa!
231
Goiás Santa Helena Leite longa vida; creme de leite; molhos lácteos;
produtos aromatizados
227
Pernambuco Garanhuns Leite longa vida; creme de leite; iogurtes 151
Rondônia Ouro Preto d’Oeste Leite longa vida; manteiga; produtos aromatizados 34
Total 3.706 Fonte: MATTOS (2004b)
Nos locais onde não havia alternativas adequadas para venda de leite por parte dos
produtores – inexistência que também resultava das próprias investidas da Parmalat, que
contribuíram decisivamente para desorganizar o setor lácteo em diferentes locais –, os
problemas revelaram-se profundos, ensejando até a venda de parte dos plantéis de vacas
leiteiras em algumas propriedades. Isso cocorreu, por exemplo, em Garanhuns (PE), onde a
fábrica da Parmalat (inaugurada em 1994) absorvia o leite de mais ou menos 400 pequenos
produtores. Cabe ressaltar que nessa área a Parmalat representava problemas para os
produtores antes mesmo das turbulências ligadas à crise, haja vista ter incentivado
os produtores a adquirir resfriadores e ordenhadeiras mecânicas, mas não cumpriu
a promessa de elevar o preço pago pela melhoria da qualidade do leite. (...) [Além
disso,] a empresa nem sequer mantém contratos com os fornecedores individuais
(...). A falta de contratos permite (...) alterar a qualquer momento seus preços,
clientes e volume a ser adquirido. Os fornecedores são obrigados a entregar o leite
à fábrica por 30 dias consecutivos antes de receber a primeira quinzena. Os outros
15 dias só são pagos após mais duas semanas. Uma eventual interrupção da
entrega por opção do produtor implica a retomada de todo o processo. A estratégia
reduz as chances de o pecuarista procurar melhor preço para o seu produto.
(GUIBU; TORTATO, 2004, p. B5).
4.4 O Estado nacional e a “questão Parmalat”
O episódio da débâcle da Parmalat, com suas dramáticas consequências, é repleto de
ensinamentos não só sobre o quanto as estruturas locais e regionais são vulneráveis aos
processos em curso em esferas amplas de determinação, mas também sobre os perigos que
rondam a desnacionalização de setores chaves da economia. É também sugestivo de que,
20
perante os movimentos associados à globalização – e não raramente em sintonia com tais
movimentos –, o Estado nacional cumpre papéis que contribuem para que certos resultados se
produzam nas condições observadas. No caso narrado na subseção anterior, o Estado
nacional, em vez de âmbito inerte ou sujeito passivo, figurou de corpo inteiro no centro do
problema.
Esse aspecto perpassa as contundentes observações do então presidente do BNDES,
Carlos Lessa, diante da “questão Parmalat”, principalmente as emitidas no calor dos
acontecimentos. Frente aos riscos de um efeito dominó de grandes consequências em toda a
cadeia de lácteos, Lessa julgou ser nada menos que uma irresponsabilidade permitir a
concentração de segmentos importantes do setor de alimentos básicos nas mãos de interesses
estrangeiros (Soares, 2004). O contexto da manifestação foi um seminário realizado no Rio de
Janeiro (intitulado “BNDES – Um sonho do Desenvolvimento”) em janeiro de 2004, ocasião
em que o presidente declarou ter-se sempre preocupado “com a excessiva concentração,
principalmente em setores essenciais para o país, como o de alimentos” (LESSA..., 2004. s/p).
Nas suas próprias palavras, “‘[o] episódio Parmalat demonstra o risco [que se corre] quando
se permite uma concentração dessa maneira’” (ibid.).
Em artigo publicado no jornal Gazeta Mercantil no ano da crise, transcrito no Jornal
da Ciência, Ferrari (2004) salientou o mesmo tipo de posição de Lessa, verbalizada
posteriormente (em agosto), sobre a penetração de investimentos estrangeiros em setores
como os de matérias primas: “‘[e]sses setores têm de ter a presença do capital nacional. Não
podem ser totalmente dominados por interesses externos, que podem perfeitamente se
articular e transferir potencialidades nacionais para fora do país’” (s/p).
Sobretudo por se tratar de setor estratégico, tendo em vista o caráter de alimento
básico representado pelo leite e, também, o fato de que os movimentos na etapa de
processamento afetam distintos elos da cadeia produtiva, envolvendo produtores primários e
outros fornecedores distribuídos em diferentes locais e implicando várias comunidades, uma
ação rigorosa e bem dirigida do Estado nacional mostrar-se-ia necessária. Atuar
preventivamente contra abalos do tipo observado e, portanto, encarnando tipo de agente
interessado no “bem comum”, envolveria, por exemplo, controlar o próprio processo de
desnacionalização incrustado no ingresso de interesses estrangeiros. Sem que isso
representasse qualquer descabida aversão à presença estrangeira, e sim tentativa de diminuir
os riscos, o disciplinamento poderia ocorrer mediante incentivos às parcerias ou associações
entre empresas estrangeiras e nacionais, possivelmente inibindo escalada de compras capazes
21
de representar, como se deu no segmento lácteo, desaparecimento de unidades produtivas
devido ao fechamento ou desativação.
Na esteira da crise, com os acenos de resultados catastróficos em diferentes latitudes –
em março de 2004, o jornal Valor Econômico trazia esta manchete: “Crise na Parmalat do
Brasil acentuou crise na pecuária de leite, nota CNA” (CRISE..., 2004, s/p), citando o
presidente da Comissão Nacional de Pecuária de Leite, pertencente à Confederação da
Agricultura e Pecuária do Brasil –, o Estado brasileiro se mobilizou. O BNDES sinalizou
positivamente, divulgando que estava disposto a ajudar os afetados pela crise, já que “‘[a]s
bacias leiteiras brasileiras não podem ser afetadas, nem destruídas’”, nas palavras do próprio
presidente do banco (LESSA..., 2004, s/p). Na Câmara dos Deputados, criou-se uma comissão
especial da Parmalat, que realizou audiências públicas e anunciou, por meio do seu
presidente, que logo seria instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a
crise na empresa (CPI..., 2004, s/p).
A aprovação da Lei n. 11.101, em fevereiro de 2005 – dita “Nova Lei de Falências” –
facilitou o ingresso da Parmalat Brasil em processo de recuperação judicial, com plano de
soerguimento aprovado. A continuidade das operações da Parmalat no Brasil teve nesse
processo de recuperação um mecanismo fundamental. Cabe assinalar que, ao mesmo tempo, a
matriz italiana trilhava o que no seu site é indicado como etapa de “administração
extraordinária” (cf. www.parmalat.com), em vigor de janeiro de 2004 a setembro de 2005 e
ao cabo da qual surgiu, em 1º de outubro, o “novo Grupo Parmalat”, tendo a Parmalat S.p.A.
como empresa principal [Parent Company] e inaugurando o que aparece referido como
terceiro período principal na história dessa multinacional. Fato de indiscutível proeminência
nesse período foi a obtenção do controle acionário da Parmalat pela francesa Lactalis: em
julho de 2011, esta passou a concentrar 83,3% do capital daquela, galgando a posição de líder
mundial em lácteos (LACTALIS..., 2011).
No Brasil, a reboque da recuperação judicial, o turbilhão de acontecimentos incluiu a
tomada do controle acionário da Parmalat Brasil pelo Grupo Laep Investiments em 2006. Em
2010 a LBR – Lácteos Brasil, resultado de fusão entre os laticínios Leitbom e Bom Gosto,
emergiu como empresa de produtos lácteos com enorme presença no país e usufruindo de
exclusividade no emprego da marca Parmalat em território nacional, incidente em leites e
derivados. Cabe notar que, em todo o período após a recuperação judicial, a Parmalat
manteve-se atuante no front dos lançamentos de novos produtos e de novas versões de
produtos já integrantes do seu portfolio, e igualmente protagonizou importantes investidas
publicitárias, assim como patrocínios a eventos.
22
Assim, ao que parece, as condições de atuação da empresa no Brasil foram
recompostas. Mas não se tratou de recuperação desvinculada de movimentos mais gerais,
segundo estudos técnicos realizados recentemente.
De um lado, como informam Zocal, Alves e Gasques (2011), ocorreu um crescimento
constante do consumo per capita de leite no país desde 2003, com aceleração desde 2007.
Trata-se de processo que, certamente, guarda estreita relação com as políticas sociais
executadas no Brasil na correspondente década.
De outro lado, ganhou velocidade a concentração no setor de laticínios por meio de
fusões e aquisições, de visibilidade crescente desde a segunda metade dos anos 1990. Essa
dinâmica, segundo Carvalho et al. (2010), incidiu primeiramente no comércio varejista
(supermercados) e depois na indústria de laticínios. Junto com isso, representando, de algum
modo, reflexo da Instrução Normativa Nº 51, emitida em setembro de 2002 pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento – aprovando os regulamentos técnicos de produção,
identidade e qualidade do leite, assim como de coleta e transporte a granel –, observaram-se
importantes mudanças na captação do leite, na escala industrial, na distribuição e no consumo
do produto, entre outras (CARVALHO, 2010).
Se as áreas de distribuição e de processamento exibiram avanços, não se pode dizer
que movimento equivalente ocorreu no âmbito da produção primária. A maior concentração
na esfera industrial ampliou ainda mais o seu poder no diálogo com os produtores, que
permaneceram na condição, e, aparentemente, de forma cada vez mais acentuada, de
tomadores de preços. De fato,
os laticínios têm buscado constantemente ganhos de eficiência. Isso tem levado a
uma redução no número de fornecedores sem que haja queda no volume de
captação, o que proporciona redução no custo de captação de leite. Essa política
adotada pelas grandes empresas, na realidade, é uma tendência mundial.
(CARVALHO, 2010, p. 4)
Considerações finais
A globalização não se apresenta, necessariamente, em situação de trade-off com o
Estado-nacional, como se a maior presença de um implicasse, sem qualificações, a menor
presença do outro. Na globalização, conforme as diferentes situações e circunstâncias, e
também os aspectos observados, o Estado nacional é a um só tempo fortalecido e fragilizado.
É importante, todavia, destacar que, sobretudo com respeito à economia, ações
protagonizadas em escala de Estado-nação costumam representar “vetores” de dinamismos
globais. Mudanças regulatórias abrangendo liberalização comercial e desregulamentação
23
financeira nas relações entre os países e a esfera internacional representam ilustrações nessa
direção. Em relação a tais aspectos, globalização e Estado nacional não configuram um par
antagônico, e sim o contrário: o caráter internacional dos fluxos se aprofunda também porque
iniciativas em escala nacional contribuem – até induzindo, talvez – para isso.
A movimentação do grande capital globalizado ligado ao setor agroalimentar,
exemplificada pela desenvoltura da Parmalat em termos mundiais e, como explorado
analiticamente no artigo, particularmente no Brasil, é um caso em questão nessa maneira de
encarar as relações entre globalização e Estado nacional. As mudanças macroeconômicas e
regulatórias efetuadas no país nos anos 1990 favoreceram decisivamente o tipo de
comportamento privilegiado por essa multinacional do segmento de lácteos.
Indissociável, na perspectiva deste estudo, da ação do Estado nacional, essa conduta
materializou-se para o bem e para o mal. Para o bem, tendo em vista o impulso em termos de
competitividade, com modernização tecnológica e atualização organizacional, imprimido na
cadeia do leite. Para o mal, pelo fato da internacionalização desse setor ter rimado com
concentração e desnacionalização, envolvendo a transferência para o exterior do âmbito de
tomada de decisões sobre fração importante de uma cadeia produtiva estratégica, visto que
ligada a alimento básico. Foi possível aquilatar o significado disso por ocasião da grave crise
financeira em que mergulhou o grupo Parmalat em 2003.
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