UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Thiago José Costa Pininga
Entre Pasárgada e Suméria: Fronteiras da lírica em Manuel Bandeira e Fernando Monteiro
RECIFE
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Thiago José Costa Pininga
Entre Pasárgada e Suméria: Fronteiras da lírica em Manuel
Bandeira e Fernando Monteiro
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco para obtenção do grau de Mestre em Teoria da Literatura, linha Literatura Comparada.
Orientador: Profa. Dra. Lucila Nogueira Rodrigues
RECIFE
2015
Catalogação na fonte Bibliotecário Jonas Lucas Vieira, CRB4-1204
P654e Pininga, Thiago José Costa
Entre a Pásargada e Suméria: fronteiras da lírica em Manuel Bandeira e Fernando Monteiro / Thiago José Costa Pininga. – Recife: O Autor, 2015.
125 f.
Orientador: Lucila Nogueira Rodrigues.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Letras, 2015.
Inclui referências e anexos.
1. Literatura brasileira. 2. Poesia lírica. 3. Poetas brasileiros. 4. Literatura comparada.I. Rodrigues, Lucila Nogueira (Orientador). II. Título.
807 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2015-62)
Para M. B., pelo Castelo Interior
AGRADECIMENTOS
A Lucila Nogueira, pela Poesia
Ao Fernando Monteiro, pelo Diálogo
A Myriam Brindeiro, pela Raridade
Ao Francisco Brennnand, pelo Acaso
Ao Anco Marcio Tenório Vieira, pela Alegria
Ao José Carlos Targino, pelo Testemunho
A minha família,
Valdézio, Rosa Helena, Rubiane e Milena.
Aos amigos,
Josias Teófilo, Ryo Miyairi, Danielle Marinho e Cecília Gallindo Cornélio.
Aos amigos do mestrado,
Érika, Mirella, Hudson, Vinicius e Ingrid.
À Coordenação e funcionários do PPGL-UFPE e à CAPES, pelo Apoio.
Só há paraíso no mais fundo de nosso ser, e como que no
eu do eu; ainda é preciso, para encontrá-lo aí, ter recorrido
a todos os paraísos, desaparecidos e possíveis, tê-los
amados e detestado com a rudeza do fanatismo, tê-los
escrutado e rejeitado depois com a competência da
decepção.
E. Cioran
Resumo
O tema do lugar idílico ou ameno (E. R. CURTIUS) apresenta uma diferença
específica no gênero lírico para outros. Buscando compreender esta diferença entre
as obras onde contata-se a presença do tema na antiguidade, medievo, renascimento
até sua chegada na contemporaneidade o trabalho discorre sobre a intertextualidade,
imitatio e a méthexis (de origem platônica) para oferecer uma alternativa ao espaço
privilegiado que a mímesis tem na teoria da literatura. Os poemas Vou-me embora
para Pasárgada, de Manuel Bandeira, e Gerión e a Suméria, de Fernando Monteiro,
passam a ser compreendidos a partir daquele horizonte temático onde a equivalência
de um espaço imaginado é a afirmação de um sujeito privilegiado (o poeta) em seu
mundo interior representando um estado da alma (BOUSOÑO).
Palavras-chave: poesia lírica; locus amoenus; literatura brasileira; tematologia.
Resumen
El tema de lo espacio idílico (E.R. CURTIUS) tiene una diferencia específica en el
género lírico a los demás. Al tratar de entender esta diferencia entre las obras donde
el contacto con el tema existe desde el período antiguo, medieval, renacentista a su
llegada en edad contemporánea discutimos la intertextualidad, imitatio y méthexis
(origen platónico) para ofrecer una alternativa al espacio privilegiado de la mimesis en
la teoría de la literatura. Los poemas Vou-me embora para Pasárgada, de Manuel
Bandeira, y Gerión e a Suméria, de Fernando Monteiro, quedan entendidos desde ese
horizonte temático donde la equivalencia de un espacio imaginado es la afirmación de
un sujeto privilegiado (el poeta) en su mundo interior representando un estado de alma
(BOUSOÑO).
Palabras-clave: poesía lírica; locus amoenus; literatura brasileña; tematologia.
Sumário Introdução ............................................................................................................................................. 11
Babel e as vozes líricas .......................................................................................................................... 11
Capítulo 1 .............................................................................................................................................. 16
Noção de Tema ..................................................................................................................................... 16
........................................................................... 16
.......................................................... 18
................................................................ 20
............................................................................ 22
............................................................... 25
Capítulo 2 .............................................................................................................................................. 31
O Tema do Lugar Ameno ou Ideal ......................................................................................................... 31
2.1. Sobre a Méthexis: República e Atlântida ................................................................................... 33
2.2. Sobre a Imitatio: Locus Amoenus ............................................................................................... 46
2.3. Na idade média: Cocanha Medieval ........................................................................................... 58
2.4. No renascimento: Utopias Modernas ........................................................................................ 62
Capítulo 3 .............................................................................................................................................. 70
Manuel Bandeira em Pasárgada ........................................................................................................... 70
.................................................................................................................... 73
3.2. Lirismo dos clowns ..................................................................................................................... 78
3.3. Amigo do rei ............................................................................................................................... 83
3.4. Cocanha moderna ...................................................................................................................... 85
3.5. Outra civilização ......................................................................................................................... 86
Capítulo 4 .............................................................................................................................................. 91
Fernando Monteiro e a Suméria ........................................................................................................... 91
4.1. Mar Sublevado: Memória .......................................................................................................... 94
4.2. Caminho da Suméria: Sonho .................................................................................................... 100
Locus Amoenus ................................................................................... 105
Conclusão ............................................................................................................................................ 109
Mundo Interior: Expressão da lírica em Manuel Bandeira e Fernando Monteiro .............................. 109
Anexos ................................................................................................................................................. 114
Anexo I ............................................................................................................................................. 114
Anexo II ............................................................................................................................................ 115
Anexo III ........................................................................................................................................... 116
Anexo IV .......................................................................................................................................... 117
Anexo V ........................................................................................................................................... 118
Anexo VI .......................................................................................................................................... 119
Anexo VII ......................................................................................................................................... 120
Anexo VIII ........................................................................................................................................ 121
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 122
11
Introdução
Babel e as vozes líricas
1, assim o relato
da Torre de Babel se inicia. Ao tentarem construir uma torre imensa com o intuito de
chegar ao Céu os homens sofreram um grande castigo de Deus: suas línguas
multiplicaram-se, o que tornou impossível o empreendimento. No entanto, as buscas
por alcançá-lo persistiram sob diversas formas, entre elas a Cocanha medieval ou a
Utopia moderna. Na lírica a construção desse edifício desde já se encontra
- e não o coletivo - que busca alcançar aquele lugar
ideal e assim, talvez, tenham encontrado em um lugar improvável: em si mesmos.
A explicação do locus amoenus (lugar ameno, ideal, idílico) na literatura e em
especial na lírica revela uma problematização aos termos tradicionais que
permanecem ligados (ainda hoje) ao âmbito da teoria da literatura no que se refere à
localização enquanto fundamentos poéticos.
Costa Lima ao rever e valorizar o conceito mímesis buscando analisar o suposto
equivoco da interpretação latina por imitatio (a nosso ver os latinos utilizaram
conscientemente o termo mais próximo da Retórica que da Poética aristotélica quando
traduzem efeito literário advindo de um texto a outro por
coerências internas, isto é, como provas artísticas (técnicas), do que uma relação mais
estreita com a realidade (provas não-artísticas)2), tornou o teórico brasileiro apto a
compreender - em especial - a ficção.
Porém a poesia lírica, quanto ao plano temático do locus, necessita voltar aos
termos marginalizados, entre eles, o conceito platônico de méthexis onde se explicava
como o real (o ideal) poderia ser referência das cópias do mundo e consequentemente
da arte, uma vez que o acesso a esses graus de visões de contemplação se daria por
rememoração individual da/na alma.
1 ANÔNIMO, 2012, p. 24. 2 ARISTOTELES, 2005, p.96.
12
O retorno da compreensão da imitatio sob um ponto de vista retórico aproxima-
se da compreensão da própria poesia, pois esta se fundamenta por coerências
internas que não raro abdica de explicar via representação o mundo: lírica vem de lira,
indicando musicalidade, ritmo, rima, ou seja, formas intrínsecas da língua tornada
poética ou artística. Dito de outro modo, o poder ou magia da linguagem atua sob uma
força maior tal como na retórica do que a representação metamorfoseada do
mundo ou da realidade. Em segundo lugar, porque lírica foi convencionada a ser um
gênero que explora a subjetividade, o estaria carregado de uma imago mundi
(visão de mundo). Merquior, por exemplo, notou que a poesia atuava sobre uma
mímesis , onde o particular ganhava expressão universal. O modo que
interpretamos esta dinâmica se dá, pelo contrário, no caso de existir uma
méthexis , tanto por isso Platão
não censura a poesia lírica mas a mimética (ligada às estruturas do mundo empírico
onde o universal não poderia ser captado em si nas coisas).
Se se verificamos uma correlação de conteúdos na forma da intertextualidade
(como um aspecto da imitatio), então a méthexis vincula o
sujeito-demiurgo à obra nutrida por aqueles temas intersubjetivos (porque
intertextuais) ao mesmo tempo que faz conhecer propositadamente sua psique ou um
sua escolha e organização
da matéria literária e temas. O que existe na poesia seria uma experiência de estar-
no-mundo, portanto, sem a necessidade de duplicar o mundo como na ficção ou
teatro. Este estar-no-mundo é linguagem, ou seja, um modo de compreender-se e
apresentar-se enquanto linguagem: poesia.
Assim o poeta oferece uma visão de mundo que não se encontrava no mesmo
como evidência até sua experiência poder expressá-la, encontrando, desse modo, o
II
Entre os procedimentos da linguagem artística, o entendimento da imitatio sem
recorrer à noção moderna de intertextualidade (desenvolvida na teoria literária a partir
13
da noção de dialogismo de Bakhtin) sofreria um grande empobrecimento. No caso de
um tópos ou lugar-comum da antiguidade se repetir a exemplo do locus amoenus na
contemporaneidade, já não desempenha a exata função com que fora inserido na
literatura pela primeira vez após os mitos perderem vitalidade. Assim o locus amoenus
de Teócrito (em Idílios), e antes dele na Epopeia de Gilgamesh ou, se quisermos
estabelecer uma relação cultural mais direta e próxima, em Homero (Ilíada e
Odisseia), surge sob outra função para Virgílio (em Bucólica) e, no período
renascentista, Sannazaro (em Arcádia) dava por sua vez nova interpretação (o
bucolismo, vale lembrar, longe de ser estéril e estanque, foi estudado como um
paradigma da ficcionalidade3 e daí sua importância ainda hoje). No momento em que
o locus é deslocado para outro contexto literário, verificam-se funções que, se em suas
fontes eram secundárias, logo passariam a ser cada vez mais fundamentais nas novas
atualizações (em especial quando compreendeu-se nele a característica retórica),
tanto assim que formou o gênero bucólico, onde o locus é elemento indispensável
porque não representa ou transforma necessariamente uma sociedade real (pela
mímesis) em ficcional, porém uma sociedade perdida em ideal (pela imitatio e
méthexis) na medida em que o retrato do locus amoenus foi preservado nas
descrições dos antigos atividades estilísticas. Por fim,
é pela méthexis que o lugar ameno tornou-se interioridade e onde o leitor pode
conhece-lo através da alma do poeta, fazendo com que este sujeito (o poeta) também
seja conhecido, o que ocorre especialmente no poema longo renascentista Arcádia,
de Sannazaro, embora poderíamos avaliar o procedimento pelo menos deste a Divina
Comédia, de Dante.
Na poesia moderna e início das vanguardas brasileiras Manuel Bandeira
escrevia Vou-me Embora para Pasárgada utilizando-se do locus amoenus para
localizar uma Pasárgada entre o tema medieval da cocanha e das utopias
renascentistas, sendo capaz de revelar a si mesmo.
Mesmo na poesia contemporânea o locus ainda poderá ser encontrado,
exemplo disto é o poema longo Gerión e a Suméria, de Fernando Monteiro, que faz
da Suméria um lugar interior em confronto com a violência do mundo externo, seja ele
antigo ou moderno, ou seja, um refúgio subjetivo (e daí seu lirismo) em uma nova
3 Função que foi analisada por W. Iser em A bucólica da Renascença como paradigma da ficcionalidade literária (In: O Fictício e o Imaginário, 1996).
14
mímesis, uma vez que
como uma inimiga da poesia lírica a exterioridade - existe em razão de ser vista a
partir de uma psique. Desse modo a representação tem um peso menor, não necessita
sem compromissos objetivos.
A fantasia na ficção é diversa da encontrada na lírica, enquanto no primeiro caso é
ficcional na medida que confronta o real, no segundo afirma o real enquanto subjetivo.
Vistos à distância os autores modernos e antigos, descobre-se que
comparativamente foram responsáveis em, servindo-se do modelo textual ao invés do
tradição comum, isto é, uma linhagem. A imitatio por ser uma espécie de adequação
de um modelo textual preexistente teria por utilidade responder onde determinada
obra se insere ou não dentro de uma classificação enquanto gênero textual artístico
formalmente, gerando assim critérios de valor
e filiação. Nas obras vanguardistas se pensarmos nos Manifestos do século XX como
uma espécie de poética com normas, técnicas ou orientações predefinidas, parecem
tornar igualmente fácil uma classificação. Para se inserir no surrealismo, por exemplo,
devíamos seguir determinadas filosofias que surgiram com a exploração do conceito
de inconsciente. Contudo, há uma quebra na maneira com que estas obras eram
valorizadas porque buscam rupturas radicais com o passado. Buscam escrever aquilo
que ninguém escreveu por não ter ainda acontecido, isto é, o futuro.
Tal inovação radical das vanguardas impõe para as formas literárias tradicionais
relações complexas entre teatro e lírica, lírica e romance, lírica e cinema, romance e
ensaio entre outras combinações imprevisíveis. Aqui novamente se faz necessário
recorrer à intertextualidade temática para falar menos dos gêneros enquanto formas
textuais predefinidas pela tradição para entender a lírica na luz da méthexis: um poeta-
demiurgo organizador de temas e conteúdos que não existem ex nihilo contudo
espalhados na tradição literária e que visualizando a Forma ou Essência busca
assemelhar sua obra nessa imago mundi como em sonho, pois apenas ao poeta seria
permitido vê-las/sonhá-las e transmitir assim àqueles que contentando-se com as
formas das sombras na caverna estão cegos quanto as revelações da poesia.
III
15
No capítulo 1 mostramos que a noção de tema está ligada a uma dinâmica que
é tanto a construção do conteúdo literário quanto a orientação que este conteúdo
oferece e dá unidade a uma leitura, nela não há necessidade de explicar a mímesis
porque o tema é, desde já, um componente da retórica. Assim, no plano do
comparativismo, buscamos nos inserir nos debates da tematologia, oferecendo um
resumo das teorias mais relevantes e suas proximidades quanto ao entendimento da
noção de tema para nosso trabalho.
No capítulo 2 apresentamos o tema recorrente na literatura do lugar ideal. Não
obstante, tema que marca presença na antiguidade, medievo e renascimento e atende
sob o nome de um tópos, o locus amoenus. Como o trabalho não pretende ser apenas
um inventário ou estudo de fontes, problematizamos o tema apresentando os
conceitos de imitatio e méthexis por argumentarmos que são componentes da poesia
lírica que oferece, no segundo termo, sua originalidade, isso porque ao definir-se por
expressão dos estados de alma a poesia lírica necessita organizar a matéria/conteúdo
em uma unidade de sentido em que em última instância todos seus temas tornam-se
ou retornam a faz dos temas da tradição uma expressão do indivíduo
criador e doador de sentido universal.
No capítulo 3 e 4 verificamos que o locus ainda é um modo de proceder artístico
que não caducou na modernidade e contemporaneidade entre os poetas Manuel
Bandeira e Fernando Monteiro. Isso porque a descrição de um local ideal na poesia
lírica atende ao desejo recorrente de fantasia e evasão que a humanidade tem pelas
utopias e idades de ouro. Tais construções em busca do lugar ideal, como uma Torre
Babel, formam tornadas possíveis porque fragmentadas em línguas poéticas de
expressão individual, ou seja, quando descobrimos que para cada poeta há um Céu.
16
Capítulo 1
Noção de Tema
Uma das experiências de ler um texto literário qualquer é a de captar seu tema.
Assim também quem escreve deve trabalhar não apenas o modo de se expressar
como também e principalmente -
No entanto várias orientações teóricas ao longo do tempo
quiseram dar a este termo uma fundamentação que, se por um lado, nem sempre
ajudou a estabelecê-lo inequivocamente, por outro lado seria possível ver um
consenso mínimo de que o tema está na apreensão ou extração de um conteúdo
literário, ou seja, que desvela à obra um sentido concreto - nem sempre unitário - de
interpretação para a obra. Pode ocorrer que as obras estejam expressando um
conteúdo semelhante, embora sob formas diversas, quando o leitor compara e capta
um tema recorrente entre elas. Isso não significa que as interpretações sejam
idênticas, antes que traduz ao mesmo horizonte de significado as leituras.
1.1. No formalismo russo aquilo de que se fala
Textos literários que buscam se dirigir antes a sensações e sentimentos
abstratos não fogem da tarefa de estabelecer um tema. Um poema romântico que fale
a respeito do amor perdido é justamente este seu 4. Mesmo
naquelas obras de expressão autorreferencial porque seu tema torna-se com isso o
próprio poema, romance, etc. Se existe alguma obra incapaz de tema classifica o
teórico do formalismo russo, Boris Tomachevski, por obra transracional (Zaum) que
TOMACHEVKI, 1978, p.169), para ele:
No decorrer do processo artístico, as frases combinam entre si segundo seu sentido
e realizam uma certa construção na qual se unem através de uma ideia ou tema
comum. As significações dos elementos particulares da obra constituem uma
4 E etc.
17
unidade que é o tema (aquilo de que se fala). Podemos também falar do tema de
toda a obra ou do tema de suas partes. Cada obra escrita numa língua provida de
sentido possui um tema. (TOMACHEVSKI,1978, p.169)
Um pouco do contexto histórico ajuda-nos a entender porque este artigo que
escreveu em 1925 (Temática) é relevante. Manuel Asensi Pérez, em sua História de
la Teoría de la Literatura, situa o movimento do formalismo no momento histórico em
que na Rússia
PÉREZ, 2003, p.61). Até então a forma
seria apenas instrumento e meio para se chegar ao conteúdo e este será um dos
debates mais importantes entre os russos. Surge também tentando explicar a própria
vanguarda artística que começava neste período onde os significantes (formas)
tinham prioridade sobre o significado (conteúdo). Dividido em duas etapas por Asendi
(primeira de 1916 a 1920 e segunda de 1920 a 1930) caracterizar-se-ia no início por
uma radical para, em um
momento mais maduro, se dar conta de uma dimensão significativa5 e assim podemos
entender a posição crítica de Tomachevski ao falar das obras transracionais uma vez
que quer retomar o debate sobre o conteúdo literário.
Ao resultado das significações ele identifica tema a uma unidade de sentido:
aquilo de que se fala. Após constatar isso afirma existirem dois momentos importantes
para elucidar este processo: escolha e elaboração do tema.
Na escolha atribui ao tema uma função retórica, torna-se sinônimo de assunto.
Assim a escolha do tema deve ser orientada antes para ser atraente a quem lê, ou
seja, despertar um interesse atual pelo assunto. Pelo que será (ou foi) dito, explica a
razão de obras literárias passadas se aproximarem e motivarem um leitor em outro
contexto histórico.
Quanto mais o tema for importante e de um interesse durável, mais a vitalidade da
obra será assegurada. Repelindo assim os limites da atualidade, podemos chegar
aos interesses universais (os problemas de amor, da morte) que, no fundo,
permanecem os mesmos ao longo de toda história humana. Entretanto, estes temas
5 PÉREZ, 2003,P.64
18
universais devem ser nutridos por uma matéria concreta e se esta matéria não está
ligada à atualidade, colocar estes problemas é um trabalho destituído de interesse.
(TOMACHEVSKI, 1978, p.171)
Os temas, no âmbito da teoria literária, foram julgados marginais (pelo desprezo
ao conteúdo), no advento do formalismo russo a busca pela literariedade não os
incluía entre aqueles elementos específicos da literatura. De fato, pensar que temas
sobre amor, morte, política ou sociedade podem estar presentes tanto em um poema
quando um tratado de filosofia, psicologia, sociologia, etc., parece ser motivo razoável
de não incluí-los no que a literatura teria de objeto diferenciador para sua ciência6. O
No entanto Tomachevski oferece a concepção de tema como uma qualidade
interna - elaborada - do texto artístico, isto é, que um escritor constrói seus temas de
modo diverso de outras disciplinas e assim passaria a ser objeto de estudo na
literatura. A partir do momento em que se apresentam literariamente são também
elementos literários e tem função tão necessária quanto a forma. René Wellek diz que
WELLEK, 2011, p.130), enquanto Amado Alonso em Materia y Forma en
Poesia nos dá a noção de que se se Cervantes quisesse apresentar apenas temas
religiosos, sociais, históricos, (ou
materiales atendidos por sí mismos, como maderas, mámoles o hierros, sino
ALONSO, 1955, p.109).
1.2
6
amón, o de la concepción del abismo em Stevens, pero eso se encargan la filosofía, la historia o la teosofia. Para hacer ciencia literaria, según los teóricos vanguardistas, hay que fijarse em los rasgos formales que hacen de esos poemas obras literárias y PÉREZ, 2003, p.66)
19
A possibilidade de compreender um tema (ou vários) advindo da literatura a
frente da filosofia, da sociologia, da história, psicologia, entre outras, é a própria
possibilidade de entender o que um poema, um romance, uma peça, dizem de modo
inaugural, uma vez que nunca fora dito antes pelo menos daquela maneira (artística)
- por ninguém.
Mas existe a possibilidade de um tema, na experiência do leitor em apreendê-lo,
não corresponder ao que o escritor queria dizer exatamente, isto é, intencionalmente.
Wolfgang Iser abarcando esta questão definia:
Tudo que [o leitor] vê, ou seja, em q
converte-se em tema. Esse tema, no entanto, sempre se põe perante o horizonte
qual abarca e encerra o que é visível a partir de um cer
em que se insere o leitor, não é arbitrário; ele se constitui a partir dos segmentos
que foram tema nas fases anteriores da leitura. (ISER,1996, p.181)
Note-se com isso que os temas são formados a partir dos horizontes antes
função de diminuir a distância entre visões de mundo de autor e leitor onde este, no
entanto, tem a possibilidade e liberdade de escolher caminhos diferentes dos
horizontes apresentados por aquele. A proximidade entre tema e visão de mundo
(weltanschauung em alemão) é reveladora se temos em mente que Don Juan, Fausto,
entre outros, surgem a partir da literatura enquanto modos de explicar o mundo e
apresentar visões dele como outrora o mito. Os mitos gregos (Édipo, Prometeu, Sísifo,
etc), por exemplo, persistem em nossa leitura enquanto temas recorrentes (tema do
incesto, da rebeldia, do castigo, entre outros) uma vez que não compartilhamos as
crenças antigas gregas, isto é, não fazemos parte daquela sociedade extinta e
portanto sequer podemos apreendê-los em seu significado social-religioso mas
apenas nos temas cristalizados pelo que sobreviveu na literatura. Confirma isto o que
B. Tomachevski aponta quanto eresses d
dura não são os mitos enquanto forma simples, porém uma forma atualizada na
literatura: seus temas.
20
1.3. F.D.E. Schleiermacher:
A estrutura que W. Iser explica se aproximara muito da hermenêutica de F.D.E.
Schleiermacher (em uma diferença de quase cem anos), onde podemos vincular a
noção de tema com a de interpretação da obra:
Consideremos agora, a partir disso, a inteira operação da interpretação: então nós
deveríamos dizer que progredindo pouco a pouco desde o início de uma obra, a
compreensão gradual, de cada particular e das partes do todo que se organiza a
partir delas, sempre é apenas provisória; um pouco mais completa, se nós podemos
abarcar com a vista uma parte mais extensa, mas também começando com novas
incertezas [e como no crepúsculo], quando nós passamos a uma outra parte [porque
então] temos diante de nós um novo começo, embora subordinado; no entanto,
quanto mais nós avançamos, tanto mais tudo que precede é esclarecido pelo que
segue, até que no final então cada particular como que recebe de um golpe deu
plena luz e se apresenta com contornos puros e determinados (colchetes do próprio
autor, SCHLEIERMACHER,1999, p.49)
(SCHLEIERMACHER) em que
(TOMACHEVSKI), isto é, ao que o autor
e leitores estabeleceriam na obra: um tema. Convém, contudo, marcar as diferenças
entre os três teóricos. Se eles estão de acordo com o processo de acumulações
parciais e cada vez maiores de sentido, para W. Iser não existe uma culminação final
de todo o sentido (tanto que podemos reler um livro tempo depois e captar outros
elementos, assumindo outras perspectivas e horizontes). Se teve o mérito de
aperfeiçoar o que F.D.E. Schleiermacher havia falado, em parte graças ao advento da
fenomenologia de Husserl que procurava entender os eventos em sua dinâmica e
menos em sua fixação (daí as aspas dele na citação anterior) como na filosofia
positivista, B. Tomachevski acreditara
particulares da obra constituem uma unidade enquanto um elemento
que, terminada a leitura, é fixo na ordem de um interesse universal.
21
Em contato com a fenomenologia, a noção de tema se expressa em um verbo:
tematizar, ou seja, tem como função um interpretar. O leitor toma uma obra em que
certa particularidade é escolhida entre várias a seu gosto ou conhecimento ou
sentimento resultando em um sentido final e unitário que nem sempre é o mesmo para
todos porque podem levar em conta outras particularidades (possivelmente muitas
delas sequer as que autor havia previsto); em suma, que o leitor é responsável,
também, em significar.
Uma parte do artigo de Claude Bremond, Concepto y Tema, refere-se a estrutura
de W. Iser e ajuda a compreender melhor esta dinâmica:
El autor há podido proponer um deciframiento temático de su texto mediante el
juego de los indicios semiológicos, o dar renda suelta al lector, o hacer que se
debata entre sugerencias contradictorias: o puede hacer que el lector no sea, em
última instancia, libre de aceptar de subvertir, de rechaza las interpretaciones
temáticas que se le proponen. (...) cuando decido decir que la líada es también la
muerte de Héctor, tengo que saber que Homero comezó anunciando algo diferente
y que contruyo mi tema de la ilíada poniendo en duda aquello que Homero me había
propuesto en el primer verso de su poema épico. (NAUPERT, 2003, p.177)
Aquilo que Homero fala no início da ilíada
propõe uma orientação temática (a fúria) que no entanto o leitor pode recusar e na
sua perspectiva achar que a epopeia está falando sobre (a morte de) Heitor ou sobre
(a traição de) Helena, etc. Mas quando encontramos Dante sendo guiado por Virgílio
na Divina Comédia podemos ou não ignorar o significado que este tem na obra, que
vai além de uma escolha simples. Saber que se trata de um grande poeta antigo que
realmente existiu faz o leitor tematizar esta ação de modo diverso, aludindo às
epopeias escritas pelo antecessor. Em suma: o leitor necessita sair da Divina Comédia
por um momento para captar a intertextualidade, caso queria ter igualmente como
guia o próprio Virgílio e, depois, a Dante. Neste caso as particularidades com que o
leitor forma o t passa a tematizá-lo dispondo de
informações (portanto horizontes) anteriores de leituras que nem sempre são
exclusivamente literárias, podendo ser alusões históricas, etc -, e portanto aproximar-
22
se-ia de uma atividade sempre em construção aos textos lidos: o que daria mais - ou
menos sentido a uma obra.
1.4
A próxima noção quem
no es todo el contenido. No es lo que dice el poema, sino aquello con lo cual o desde
GUILLÉN, 2013, p.231), e se tem o mérito de não vinculá-lo
diretamente à interpretação da obra que acarretaria pelos primeiros entendimentos
acima, tampouco foi retrocesso uma vez que afirme os textos artísticos não podendo
ser compreendidos somente pela via da formação temática. Em outras palavras: o
leitor ou crítico sequer é capaz de formar ou extrair um tema sem acarretar um prejuízo
aos outros elementos de interpretação e significação, ele já não é capaz de dizer algo
com segurança porque tema é apenas algo entre outros com o qual se diz. Como
vimos acima, depende de escolhas por quais particularidades seguir a construção de
uma unidade, por mais provisória que seja esta. Guillén parou onde Tomachevski e
os outros teóricos já haviam superado: um tema é formado pela soma de temas ou
horizontes, que dão certa unidade e onde todos os outros elementos, inclusive os
formais, passam a ter sentido e ganham uma dimensão significativa (por exemplo: se
escreve de determinada maneira porque fala de algo que só poderia ser expresso
daquela maneira, mas precisamos saber que algo é este antes de determinar seu
poder de expressá-lo). Um horizonte aberto permite não fechar-se porque a
constatação dele de modo algum se esgota nele.
Concepções que às primeiras tentativas de estabelecer o tema positivamente,
isto é, onde a influência da filosofia positiva quis estabelecer identidades entre as
obras na finalidade de compará-las de modo fechado e vertical não se deu conta
porque a unidade de sentido não era vista como uma construção dinâmica, porém,
estável pela tradição comparativista.
Quando a tematologia no período positivista pretendeu assumir esta filosofia
como fundamento existiu um empobrecimento dos pressupostos da literatura
comparada. A noção de tema interessava na medida em que poderia constatar
um longo debate nada humanista pelos
23
comparatistas que buscaram afirmar suas literaturas nacionais frente a outras 7. No Curso de Filosofia Positiva (1830-1842) será dito:
Cada um sabe que, em nossas explicações positivas, até mesmo as mais perfeitas, não temos de modo algum a pretensão de expor as causas geradoras dos fenômenos, posto que nada mais faríamos então além de recuar a dificuldade. Pretendemos somente analisar com exatidão as circunstâncias de sua produção e vinculá-las umas às outras, mediante relações normais de sucessão e de similitude. (COMTE, 1978, P. 7. Itálico do autor.)
A crítica ao estudo de temas (que surgirão por ocasião de René Wellek,
Benedetto Croce ou Paul Van Tieghem) dizia respeito tanto a impotência por
que estas ideias teriam para a
Literatura C
método de pensar relações pelo vínculo causal refletido em fontes e influências - sem
explicar o fenômeno da literatura para além da constatação de um tema de um autor
em outro. Assim, esquematicamente, constatava-se uma recorrência de um tema, por
exemplo, de Édipo (tema do incesto)
literárias ao longo do tempo, imaginando com isso uma tradição literária dele mas
também um círculo vicioso ancorado na ideia da tradição bastava para legitimar o
empreendimento como estudo literário e comparativo.
Se havia grandes defeitos, contudo, tiveram a eficácia de constatar que temas -
ou aspectos deles - não se formavam ex nihilo, ou seja, catalogaram muitas versões
antecedentes de certos temas a de
1988, P.28), mas atribuíam valor na
Trabalhariam melhor caso conhecessem as intertextualidades como um sistema
(porque a noção só vai surgir com Julia Kristeva8 e através da teoria de Mikhail Bakhtin
7 René Wellek no seu polêmico A Crise da Literatura Comparadamuitos estudos de literatura comparada na França, Alemanha, Itália, e em outros países, levou a um estranho sistema de contabilidade cultural, a um desejo de se acumular créditos para seu próprio país, provando o maior número de influências possível sobre outras nações ou, sutilmente, provando que sua própria nação assimilou e
8 O termo intertextualidade designa esta transposição de um (ou de vários) sistema (s) de signos em um outro, mas já que esse termo tem sido frequentemente epreferimos a ele o de transposição, que tem a vantagem de precisar que a passagem de um sistema significante a um outro exige uma nova articulação do tético posicionamento enunciativo e denotativo. (KIRSTEVA apud SOMOYAULT, 2008, p.17)
24
metáforas, líquidas, da fluidez, do contínuo e do escoamento, propõe-se substituir a
ideia de um sistema de relação, cujas metáforas se situam mais do lado da rede, do
2008, p.17). Desse modo
compreendeu- da dinâmica própria da literatura,
inclusive o entrelaçamento temas, que não podem ser - positivamente iguais, porém
Considerado uma referência na tematologia, R. Trousson buscando definir tema
oferecia estes exemplos:
O que é um tema? Estabelecemos denominar assim a expressão particular de um
motivo, a sua individualização ou, se se quiser, a passagem do geral ao particular.
Dir-se-á que o motivo da sedução encarna, se individualiza e se concretiza na
personagem de Don Juan; o motivo da criação artística no tema de Pigmalião; o
motivo da consciência individual a razão de Estado no tema de Antígona; o motivo
da oposição entre consciência da ignorância religiosa e filosófica no tema de
Sócrates. (TROUSSON, 1988, p.20)
Assim motivo se aproxima do que se entende em geral por conceito9 (sedução)
ou problema (consciência individual e razão de Estado) mas que tratado literariamente
assume a forma de tema (Don Juan/Antígona) - e a partir daí uma tradição. Portanto,
do nosso exemplo acima, um poema sobre o amor perdido (tendo como tema
justamente o amor perdido) não passaria na verdade da condição de motivo. Trousson
está mais preocupado em encontrar uma equação para se encaixar em classificações
positivas quando quer afirmar o primado do mito e sua forma (seja ele antigo ou
moderno) que sobre o tema. Desse modo o que entende por tema se expressa
perfeitamente em narrativas (uma vez que o mito é expressado assim), porém é
curioso não ter notado que na poesia também existem temas, tal como Tomachevski
9 Ver o excelente artigo de Claude Bremond, Concepto y Tema, onde mostra que a relação é mais complexa e
e ideias asosiadas (por analogia, contraste, contigüedad...), que inicialmente no se consideran parte de dicha definición, pero que podrán luego volverse esenciales para dominar el tema construído sobre este concepto, y que acabarán posiblemente volvendo s NAUPERT, 2003, p.169).
25
havia argumentado. Inclusive porque poemas sobre Penélope, Édipo ou Narciso
podem ser encontrados tematizados na forma lírica.
Assim convém notar para nosso trabalho
individuação (e não por menos, pois cada poeta tem um interior próprio, seja Arcádia,
Pasárgada ou Suméria ideal e estruturado através
dos conteúdos e temas já conhecidos do leitor (utopias, idades de ouro, etc), portanto
horizontes, visões de mundo compartilhadas.
Apesar de discordar do teórico belga podemos abrir com sua definição uma
questão para nosso trabalho: verifica-se pela presença da ficção na expressão
particular da lírica, isto é, a passagem de um motivo ficcional para um tema lírico (para
usar os termos de R. Trousson). Se se entende que quando Manuel Bandeira cria sua
Pasárgada quer com isso indicar um lugar imaginário, então estaria filiado à tradição
da Utopia (gênero de ficção cristalizado por Thomas Morus), mas caso aceitemos uma
paisagem interior (isto é, da alma) iremos tratá-la dentro da tradição lírica de um
tempo, senão que, durante o processo de leitura, ele toca nos diversos segmentos
-181), aqui entenda-
se: represe
o leitor estrutura sua leitura e interpreta seu significado.
É justamente a explicação da passagem de um lugar imaginário (ficcional) para um
lírico (mundo interior) que nosso trabalho procura encontrar respostas.
1.5 Platão e Aristóteles: sombreado vago e
Se a teoria literária persistia neste debate entre forma e conteúdo nos séculos
XX e XXI, no entanto, é na antiguidade clássica que encontramos as primeiras
reflexões sobre literatura buscando estabelecer de qual modo um conteúdo ou ideia
perpassa uma obra de arte. Os problemas aqui não são pequenos porque fazem parte
de sistemas filosóficos, ou seja, o ângulo de visão não consiste em estabelecer uma
ciência da literatura limitando seu objeto de estudo mas em refletir a literatura dentro
de um sistema integrado.
26
Se recuarmos no tempo veremos que Aristóteles teria deixado margem para
que o conteúdo pudesse ser abstraído sem nenhum problema grave, na
Poética se posiciona desta maneira:
Se a vista das imagens proporciona prazer é porque acontece a quem as contempla
o,
a gente não o viu antes, não será como representação que dará prazer, senão pela
execução, ou pelo colorido, ou por alguma outra causa semelhante.
(ARISTOTELES, 2005, p.22.)
Desse modo existem dois tipos de prazeres que podem ser advindos da arte: um
pelo reconhecimen
e outro que vem a partir da ignorância dele na formação de um
, p.ex., a formação de um
tema literário que pode ser o mesmo com que interpretamos a realidade. Ao deixar de
tomar a arte como um meio (tese platônica), interpretava como um fim, isto é, na
intenção do artista em construí-la (causa final) por modo e objetivos diferentes com
que se constrói uma cadeira. Liberava a reflexão e hierarquia da méthexis
(participação) com o mundo empírico e Ideal de Platão (que só conhecia duas causas:
material e formal e por isso a emergência de afirmar uma participação de um no outro)
oferecendo a teoria das quatro causas (material, formal, eficiente e final10) por onde a
mímesis aristotélica dá seu acréscimo filosófico ao problema da arte e o
funcionamento do mundo. Que uma obra interessasse ao público por conter algo
reconhecível a priori então a percepção disto encobriria os demais elementos que
compunham a obra. Assim a execução, o colorido, (e os teóricos russos
acrescentariam à literatura: grafia e som) - por si só - faz percebê-los em sua qualidade
material e formal, despertando outro tipo de prazer especifico (cuja causa vem
mediada pela obra, não mais pela pura realidade11). Se as formas são valoradas por
si, seus temas (conteúdos) perpassam tanto o mundo concreto quanto o mundo
artístico: o tema do incesto poderia ser encontrado na esquina quanto no teatro. Assim
10 ARISTÓTELES, 2014, p. 54. 11 imagem quanto mais perfeita; por exemplo, as formas (ARISTÓTELES, 2005, p. 22)
27
importa menos conhecer quem cometeu o incesto do que saber que este problema
existe, independente do meio com o qual se toma conhecimento do problema. Caso
-se-ia pensar que aquilo só ocorreu
com Édipo e que isso não ocorreria com os demais, em suma, que são temas
diferentes. Ora, é precisamente porque são apresentados como idênticos que a
mímesis não é uma imitação apenas da realidade, contudo, no plano inteligível, de
temas de onde poderíamos constatar sua universalidade.
Era uma resposta direta a seu mestre Platão que no diálogo Crítias, sobre a
história lendária de Atlântida, havia estabelecido:
Tudo o que é objeto de nossos discursos por força terá de ser imitação ou
representação. Se atentarmos na arte do pintor, no preparo de imagens dos corpos
dos deuses ou dos homens, tendo em mira a dificuldade ou prazer ao espectador,
verificamos que, se na representação de montanhas, rios, florestas, todo o céu com
tudo o que nele se encontra e se movimenta, alguém alcança alguma semelhança,
embora mínima, com seu trabalho, declaramo-nos imediatamente satisfeitos. E
mais: como não temos conhecimento preciso dessas coisas, não examinamos com
rigor as pinturas nem julgamos com excessivo rigor, contentando-nos com um
sombreado vago e ilusório. Mas, se alguém se abalança a reproduzir a forma
humana, de pronto percebemos os defeitos do desenho, pois nosso conhecimento
familiar de nós mesmos nos transforma em juízes severos, com relação a quem não
conseguiu nesse ponto a semelhança necessária. (PLATÃO, 2001, p156)
(montanha, rios, etc) tem importância para conhecer a
condição (mínima/máxima) da imitação (mímesis) e assim oferecer um prazer. Se este
conteúdo conhecemos a verdade ou familiaridade julgamos melhor que aquele que
ignoramos, isto é, temos um prazer maior quando conhecemos determinado rio do
que outro que nunca foi visto. Platão assumira a posição oposta ao que Aristóteles
havia assumido na citação acima. Para aquele o grau de indeterminação do conteúdo
diferente, porém não um prazer menor.
de
suas ações interessam mais que a relação de fulano com a realidade. São as sombras
que oferecem um prazer, não o conhecimento dessas sombras.
28
A satisfação, no caso da filosofia platônica, é maior ou menor pelo que existe de
méthexis entre a empiria e o ideal. Esta familiaridade não existe na empiria senão em
razão de ser uma cópia da estrutura do mundo Ideal onde é permitido ver a
permanência das Formas (eidos), do contrário o conhecimento das coisas não
possuiria estabilidade para ser suficientemente captada (uma vez que as Formas são
eternas e o empírico sempre muda), para isso precisa afirmar uma participação
(méthexis) do mundo ideal no mundo empírico, esta garante que entre um e outro
exista uma correlação indispensável e uma vez que a arte estaria afastada três graus
da verdade (Ideia->empiria->arte) seria a méthexis aquela que garantiria um prazer
maior para as obras artísticas.
Cabe aqui expressar melhor a diferença entre mímesis e méthexis: enquanto a
primeira está comprometida em retirar seus possíveis moldes da realidade empírica
(embora se afaste dela no seu produto final), a segunda retiraria seus moldes desde
já na Essência, ou seja, no mundo inteligível, das Ideias, por isso sua superioridade.
Porém mesmo o vago e ilusório de um sombreado justifica-se como útil porque
a verdade não pode ver vista diretamente, como olhar para o sol, senão que deve
existir graduações do escuro para o claro para acostumar o olho (intelecto). Os poetas
miméticos falam aquilo que desconhecem, ou seja, o bem, a verdade e o belo pela
méthexis chegariam a eles -, daí a censura na República da mímesis que repete
estruturas da realidade: corrupção, incesto, assassinatos. Platão foi um dos primeiros
a fazer uma crítica temática da literatura e sua censura existe em razão dos temas da
época não estarem de acordo com sua visão de mundo, isto é, de mundo ideal; ele
mesmo enquanto filósofo traria à luz, superando os textos miméticos composto
apenas de
Aristóteles, como vimos, não necessitou fazer uma crítica aos temas do mundo
real porque para ele a arte operava uma catarse e ensinava que o incesto poderia
acabar em castigos terríveis. Nesta tarefa tornada educativa, longe de censurar os
poetas, compreendia que o poder da arte estava em ser uma virtualidade cuja
explicação correspondia às quatro causas, por isso a arte não deveria se esgotar nas
duas primeiras (material e formal), porém incluir a intenção do artista (causa final) e o
efeito da arte nos espectadores (causa eficiente). O acréscimo destas outras duas
causas permite a ele uma explicação sobre os efeitos psicológicos nos espectadores
e as intenções desses efeitos pelo artista, ou seja, efeitos sensíveis, sentimentais
29
(temor e pena) e não somente intelectuais como fez Platão (que, sob este ponto de
vista estritamente racional, não compreendia porque se chorava por uma ação que
não era real).
Porém o âmbito do tema também foi tratado na retórica aristotélica. Sobre a
adequação do estilo (da forma) ao assunto (tema) ele escreveu
com os assuntos es ARISTÓTELES, 2005, p. 257), e nem precisávamos
ir tão longe, na Poética os gêneros da comédia e da tragédia tratam de diferir por seus
temas (superiores nesta e inferiores naquela); o esboço disso é a continuidade da
importantes, nem solenemente de assuntos de pouca monta, nem se colocarem
idem, p. 257). O conteúdo, tema ou assunto tem
importância para a construção da obra poética (não como queria Platão para instalar
uma censura dos temas), mas porque ajudava no convencimento da plateia a respeito
do que se falava.
Assim, das ideias platônicas e aristotélicas às de Tomachevski, Schleiermacher,
Schleiermacher Iser e Guillén a noção de tema pôde ser vista nas mais diversas
funções. Em resumo, do sombreado ilusório, gradualmente , chega-
se a uma unidade de sentido que perpassa por sua vez todas as partes de uma obra.
Para Platão uma unidade de sentido existe previamente no Mundo das Ideias;
Tomachevski erária se conquista
gradualmente; Schleiermacher, antes dele, entendia que a formulação do tema estava
ligada à própria interpretação da obra , mas que também
se dava gradualmente; Iser aproveitou as ideias e sintetizou que a dinâmica do tema
está na organização do dizer por parte do leitor, que o estrutura a partir de seus
horizontes; por fim, Guillén entende que são ou seja, é
um dos modos da obra que deve incluir a forma, entre outros, para extrair seu sentido
total. Porém as correspondências existem senão que seu tema uma unidade de
sentido - possa ser captada e oferecer seu direcionamento. Isso porque, como em
Aristóteles, o tema não deve ser colocado de qualquer forma sob o risco de não
convencer.
30
Ao captá-lo descobre porque ele é descrito sob determinada forma e os
fundamentos com os quais funciona melhor ou pior. Em outras palavras: à extração
do tema por parte do leitor como atividade imediata da experiência com a obra segue-
se a pergunta de como foi extraído o tema, isto é, como a leitura foi realizada e como
de chegou a afirmar um tema em detrimento de outros que poderiam também existir,
em suma, de como foi interpretado ou significado: de que forma.
Em nosso trabalho, os poetas quiseram mostrar a possibilidade de conhecer um
mundo novo, que é novo menos porque seus temas são utópicos e inovadores e sim
porque este mundo são eles mesmos. Para chegar até esta conclusão devemos traçar
em seguida os significados que foram assumidos ao longo da história o tema do lugar
ideal e porque chegamos a tal constatação.
31
Capítulo 2
O Tema do Lugar Ameno ou Ideal
O início da reflexão sobre o tema do lugar ameno ou ideal na poesia se confunde
com as narrativas utópicas que existem desde a 12, afirma
Trousson. Isso ocorre porque sua República, onde torna problemática a convivência
com os poetas servirá de modelo para que os autores do Renascimento - notadamente
Thomas Morus com seu livro Utopia, onde o gênero recebe batismo -, possam
contrastar a condição das cidades urbanas e degradadas (sendo a modernidade - por
si - um mal, porém também uma esperança) com sociedades perfeitas em um espaço-
tempo paralelo. Paralelismo que Platão havia estabelecido quando descreve Atlântida
e Proto-Atenas para contratar a Atenas de seu tempo e a urgência do projeto da
República.
Nestas narrativas filosóficas existe sempre a
vinculada à contemporaneidade dos autores e equivalendo a degradação social pela
ingerência dos recursos materiais e humanos e mesmo quando isso não ocorre a
corrupção se dá pela dinâmica do tempo, ou seja, que existiu ou existirá um tempo
bom porém a época atual é ruim. A ideologia católica que prevaleceu na idade média,
por exemplo, apostava na promessa de um Paraíso para seus crentes, porém não se
realizava no plano emp importância em caracterizar
a contemporaneidade medieva como processo de degradação que teria chegado a
um limite extremo. A presença de um novo mundo se anunciava pelo grau de
devassidão e corrupção que teria chegado ao máximo para os cristãos. O mesmo
Platão argumentara sobre Atenas de seu tempo e Morus, naquele instante, oferecia
diagnostico igual da Inglaterra moderna, ou seja, viviam em tempos de crise e à beira
da falência, contudo com a esperança de um mundo futuro melhor.
O período renascentista, no entanto, difere dos precedentes porque apresenta-
se otimista: o homem é o centro do universo. Havia chagado a hora de realizar a idade
de ouro com vistas a uma possibilidade histórica, um paraíso terreno em algum lugar
12 TROUSSON, 1988, P. 3
32
no presente, porque isso só dependeria da capacidade imaginativa e racional do
homem em realizar uma sociedade perfeita.
As guerras de início de século transformam utopia em distopia, ou seja,
revelaram o perigo daqueles progressos técnico-científicos que seriam a solução do
futuro. Assim tanto presente quanto futuro serão vistos de maneira negativa aos
poetas que vivem nosso período, resta a eles voltarem aos mitos da idade de ouro
revelando uma nostalgia profunda ou exilar-se em si mesmo como o desprezo árcade
pela cidade urbana. Destruída a possibilidade e esgotamento de realização mais
concretas das utopias se realizarem em um espaço e um tempo contemporâneo e
concreto, a sociedade perfeita é uma sociedade eminentemente de valor literário,
poético, fantasioso.
A caracterização desse espaço ideal dentro da tradição temática do lugar ideal
(de paz, fartura) existe na literatura ocidental desde Homero e nas mais variadas
culturas antigas com um tópos poético bem definido, o locus amoenus. As mudanças
que sofreu desde seu surgimento nas epopeias e textos religiosos até sua
configuração propriamente lírica de mundo interior na modernidade chegam
justamente no período do Renascimento com a Arcádia de Sannazaro como uma
imagem interior que o poeta fantasia para tratar de uma dor de caráter biográfico.
Voltar a Platão torna-se necessário para entender as bases filosóficas do mundo
ideal dos poetas líricos quando passarem a representar um interior que não encontra
paralelo com o recurso da mímesis (paradigma responsável pela degradação social,
segundo o filósofo) e quando a imitatio também não se referirá apenas a uma questão
de estilo. Mundo interior equivale à participação do sujeito na fantasia poética, ou seja,
ao próprio sujeito que se revela na criação de seu mundo, na equivalência entre sujeito
e mundo. Já não se fala nem em um passado e nem em um futuro que sejam bons
por si, contudo em algum lugar contemporâneo do poeta, a busca começa e termina
em algum lugar de seu conhecimento: sua alma.
Nosso itinerário começa com Atlântida e Republica para mostrar que o
fundamento dos poemas analisados tem no tema do uma tradição que
sobrevive mesmo com os radicalismos e inovações das vanguardas literárias e
desprezo pelo passado, ou, para usar um termo de A. Jolles, como um
recorrente na/da literatura.
33
2.1. Sobre a Méthexis: República e Atlântida
Muito conhecida é a teoria de Platão (aprox..428 a. C. 346 a. C.) quando
estabelece a literatura como imitação (mímesis) do mundo. A eficácia da mímesis
homérica, entre outras, residia no fato de existir
República era fruto da
concepção de que no universo grego essa eficácia, no entanto, deveria se orientar por
perspectiva mais elevada, a produção desse estágio deveria se dar pelo logos, pelo
conhecimento das Ideias (Formas). Sua cidade ideal já não cometeria o mesmo
equívoco de Homero, não se apoiaria no caráter mimético tendo em vista que o mundo
empírico-social era injusto, corrupto, impuro, e, como consequência dessas somas,
indesejável. Sua cidade, pelo contrário, seguia um modelo ideal porque racional, sem
Se recuarmos um pouco veremos no diálogo íon o interlocutor de Sócrates, um
rapsodo, admitir que a literatura espelha o mundo e aquilo que o poeta diz serve
também para a realidade sem qualquer suspeita do contrário, até chegar à conclusão
de que poderia, quixotescamente, com os conhecimentos da poesia de Homero,
comandar uma batalha real13.
Íon não percebe (ou o filósofo propositadamente não o faz perceber) que as
passagens no qual Homero fala sobre a guerra ou sobre a medicina são válidas não
para o mundo concreto 14 do poeta, daí a desqualificação
do rapsodo (e consequentemente de Homero), que perguntado sobre onde sua arte é
melhor se um médico fala melhor de medicina ou um comandante da navegação não
resta dúvida em optar pelos discursos especializados dos profissionais da cada área
13 PLATÃO, 2008, p.50. 14 gente viva, a los escenarios imaginários em sitios reales, a las historias inventadas em acontecimentos de la vida real. La lectura mimética, practicada por los lectores ingênuos y fortalecida por los críticos de los periódicos, es uma de la operaciones más reducionistas de las que la mente humana es capaz: el vasto, aberto y tentador
34
Logo se vê que o papel principal em Íon é minar e desprestigiar a poesia
mimética fazendo com que, na falta de uma explicação melhor, o filósofo possa
provisoriamente assumir-se como capaz de explicar aquilo que seus próprios
praticantes não davam conta - a sua arte (tanto do rapsodo quanto indiretamente de
Homero) -, e a explicação de como o mundo funcionava, com ou sem arte literária.
Sendo guiado pelo filósofo a solução foi consensual entre Sócrates e Íon para
explicar, senão sua arte, sua prática. Assim como a pedra magnética (ou imã) atrai
um elemento ao outro formando uma cadeia articulada, os poetas através das musas
formariam o primeiro elo o mais forte enquanto os rapsodo atraídos por sua vez
pelos poetas faziam atrair seu público pela força dos primeiros elos, ligando também
à fonte dessa dinâmica que não é outra senão divina e inspirada15. A atividade do
e não pode poetar até que se torne
PLATÃO, 2008, p.33).
Ao fundar sua República, torna marginais à cidade ideal aqueles que são
incapazes de dizer e fazer algo diferente da verdade, do bem e da justiça, entre eles
os poetas miméticos. Estes devem ser censurados16 porque o mundo que informam
não favorece conhecimentos sobre a verdade, logo, que são responsáveis pela
própria ruína de seu tempo. No entanto, não vejamos esta operação filosófica como
gregos na própria literatura a partir da produção lírica da época.
O poeta Píndaro nono do cânone lírico grego -, estabelecia uma diferença entre
mito e logos exemplificando o segundo modo de forma simples do mito, uma
de si mesmo, compara-os ao aprisionamento de Tifon, coloca-os em ligação com o
mito, descobre a existência de um vínculo entre eles com o que fracassa,
JOLLES, 1976, p.95). Mais do que
isso, o teórico estabelece que é precisamente esta operação que permite uma 17 da passagem de uma forma simples a outra com vistas a
15 pp. 32-35, ÍON. 16 Adimanto, neste momento, nem eu, nem tu, somos poetas, mas fundadores de cidade; ora, a fundadores compete conhecer os modelos a que os poetas devem obedecer em suas histórias e proibir que alguém se afaste deles; mas não lhes compete compor fábulas (República, p.89) 17 ntação mental, uma espécie de conversão em que se opera um desvio da forma para tentar abordar o fenômeno a partir de si mesmo, constituindo-se por si mesmo um
35
explicar o fenômeno por si mesmo e enquanto uma visão pessoal18 sobre os
acontecimentos, processo em que a lírica em geral se identifica. As associações de
Píndaro transformavam o mito em subordinação ao logos, apresentando uma criação
mito-lógica: existe em vista de uma derivação, isto é, na demonstração de
propriedades do mito em comparação com o fato histórico.
Em suma, o mito é apenas uma referência, lhe serve para acrescer informações
que não existiam no relato. Assim na Ode Olímpica 1 descreve um vencedor da corrida
2013,p.244) do mito de Pélops. Seu valor é metafórico, o que Hierão imita nem é todo
o mito de Pálops nem tão somente descreve o fato histórico da vitória, porém aquilo
que pode convergir aos dois na explicação dos feitos no mito e na história,
completando-os de sentido novo. Em que baste-se este exemplo mais evidente ao
cânone grego, um caminho fora aberto pelos poetas líricos, o caminho do mito ao
logos.
Poderia a República estar apoiada apenas no logos sem que se apresente
correlações ao mito? Ao sair da Caverna19, onde seus habitantes se enganavam por
acreditarem somente no conhecimento dos sentidos, o filósofo retorna para lhes
apresentar o mundo real (i. é, das Ideias), mas deve fazê-lo, segundo indicação da
própria alegoria, de forma gradual, pois o sol não deve ser visto diretamente.
A continuação da República aparece no Crítias e no Timeu, neste é revelado
que o personagem Crítias ao conhecer a sociedade descrita por Sócrates encontra
nela um motivo de comparação com uma história que conhecia através de seu avô.
Ontem, ao te ouvir discorrer daquele modo a respeito da cidade [República] e de
seus moradores, lembrei-me do que acabei de expor-te e fiquei altamente surpreso
ao verificar que o teu relato coincidia, por um acaso surpreendente, em muitos
pontos, com o que Solão havia dito. (PLATÃO, 2001, p. 62)
julgamento sobre tal fenômeno e produzindo-se, de si mesmo, o objeto que essas condições propiciaram. A conversão é a passagem do mythos ao logos . (JOLLES, 1976, p.94) 18
p.241). 19 Livro VII da República.
36
A exposição de Crítias no Timeu e mais tarde com mais profundidade no Crítias
foi da mítica (Ilha) Atlântida. Mas ela não é encarada como mito, porém como
história20. Todos nós conhecemos em menor ou menor riqueza de detalhes o relato:
uma cidade paradisíaca onde tudo existe em fartura, sua natureza tudo lhe dá em
quantidade e diversidade, possui plantas de todas as localidades do mundo, animais
(até elefantes!) e minerais (entre eles um inventado: oticalco), tem grande
desenvolvimento urbanístico para a época, conhecimento de navegação e militar (este
plenamente desenvolvido), quando ocorria alguma injustiça seu código de justiça era
eficiente, e por fim, seus habitantes viviam em harmonia. Contudo foi totalmente
destruída e tornou-se submersa por um grande dilúvio porque eles começaram a
O intuito de Platão também leva a descrever a Atenas daquele período porque,
segundo o relato, entraram em guerra embora não explica como se deu o confronto,
pois nunca chegou a terminar o diálogo. A antiga Atenas também é descrita de um
modo paradisíaco, e no entanto, comparativamente inferior ao que tinha em Atlântida.
Enquanto esta tinha um poderio militar enorme, aquela tinha apenas a virtude e, por
isso, sobreviveu ao tempo. Assim entendemos que
o esclarecimento da origem da sociedade política e da constituição e a demonstração
da superioridade de um determinado modelo político, no caso o de Atenas proto-
histórica. (idem, P.149). Superioridade que também teria a República aos outros
sistemas de organização. Mas esse vínculo com a proto-Atenas, demonstra a
possibilidade histórica do programa da cidade ideal, isto é, mostrar que sua
organização havia, em algum momento, existido21.
Não por acaso coloca como responsabilidade do poeta Solão, o
que descrevia Atlântida, tanto por ser um importante
legislador quanto por não se apoiar em características da mímesis. Escolhe este em
detrimento dos demais porque seus poemas de cunho moral-filosófico são o tom dos
20 por sua própria relação com a divindade, máxime por não se tratar de uma ficção poética, mas de uma história verdadeira e de transcendental impo 21 nada em particular, por considerarem que tudo era comum entre todos, não aceitando dos outros cidadãos senão o estritamente necessário para viver, sobre exercerem todas as funções que mencionamos ontem [na
37
próprios escritos platônicos, não obstante o poeta viveu em um momento conturbado
da política22 ia vivenciado sua crise. A moral
consiste em apresentar aos atenienses que uma vida corrupta leva à destruição total
da sociedade o que para Platão estava ocorrendo na sua contemporaneidade.
Em verdade, Amínandro, se ele [Solão] não houvesse composto poesias por mero
passatempo, mas cultivasse como fazem tantos, e tivesse concluído a história que
trouxera do Egito [a lenda de Atlântida], sem ser forçado a abandoná-la por causa
das sedições e outras calamidades que aqui veio encontrar quando de seu
regresso, a meu parecer nenhum poeta, nem Hesíodo nem Homero, houvera
alcançado maior fama que a dele. (PLATÃO, 2001, p56)
A antiga Atena e a submersa Atlântida, deixam margem para que, mesmo não
sendo imagens claras possam ainda fazer algum sentido. Há esse sentido porque é
possível que a cidade tenha existido (o evento ocorreu a 9.000 anos, quando a
preocupação com a memória recém existia) mas isso em nada difere que o mundo
de Homero também tenha existido, entre outros, pela mesma lógica. A diferença está
no modo como os eventos são rememorados, o primeiro por meio de uma lembrança
de infância de Crítias via relato de Solão (que por sua vez ouviu a história dos
egípcios), enquanto os poetas miméticos pela evocação das musas (de onde
receberiam sua objetividade mimética). Ambos poderiam
depende de que critérios são aceitos previamente: o esforço humano de preservar
uma memória ou apenas a evocação do divino para tanto. Mais tarde, aparecerá outro
critério entre estes dois: o artístico, tendo em vista que o acréscimo de Aristóteles será
da coerência interna da obra, o mythos; logo, do mérito intrinsicamente artístico e não
mais do exterior, aquilo que Jolles diria ser a terceira etapa da Forma Simples do mito:
a forma Relativa ou Análoga.
22 ores decorrente da conturbação político-social de fins do século VII e inícios do VI a.C., período em que diversas pólis helênicas foram assoladas pelo surgimento de i , a qual propiciou uma reação, por parte da sociedade, a privilégios e valores aristocráticos, como a eugenia e o apreço ao luxo excessivo, considerados causas do desequilíbrio das relações
38
Aristóteles desenvolveu e alterou a significação de um conceito, que originalmente
significava cópia fiel de coisas preexistentes, de modo a fazê-lo significar criação de
cópias que nunca existiram ou cuja existência, se realmente existiram, é acidental
no processo poético. O acto de copiar é posterior ao facto; a mimese aristotélica
cria o facto (ELSE apud DOLEZEL, 1999, p.58-59)
Em Platão, explica-
seus habitantes (os gregos) eram ainda iletrados e preocupados com assuntos
corriqueiros e necessidades da sobrevivência. O surgimento da memória
dos fatos pretéritos surgem nas cidades juntamente com o ócio, quando os homens
já estão prov 2001,
p.159). Daí que a história só pôde ser preservada pelos egípcios, civilização mais
platônica: 23).
Contudo questionávamos se devíamos compreender a República apenas como
uma expressão do logos. Deixemos que o próprio Platão nos responda:
E agora, Sócrates, para chegarmos ao ponto a que tende meu discurso, declaro-me
disposto a relatar-te essa história, não em linhas gerais, simplesmente, mas com
minúcias, tal como a ouvi em pequeno. Vamos transferir para a realidade dos fatos
os cidadãos e a cidade que ontem [Na ocasião de explicar a República] nos
descreveste como uma espécie de mito, admitindo que a cidade seja esta mesma,
e seus moradores, como os imaginaste, nossos verdadeiros antepassados a que o
sacerdote [o que contou a lenda de Atlântida] se referiu. Harmonizam-se
perfeitamente, não havendo a menor inconsistência de nossa parte em considerar
os homens de hoje como os que verdadeiramente existiram naquele tempo.
(PLATÃO, 2001, p.62-63)
Crítias oferece uma interpretação da cidade ideal que era o ponto de vista da
própr
23 Idem.
39
República teria considerado tão a sério a censura que se preocupou em relacionar a
2001, p.23). Mesmo na República ele já se preocupara em não se fazer passar pela
-
extremamente fértil e onde habitam os mortos bem- 24. E, no entanto, é
uma mito-
A partir do instante em que Sócrates, no Protágoras, deixa a critério de seus
ouvintes por leviandade, acreditar-se-ia, e como que por gracejo -, a escolha entre
o Mitos e o Logos, para responder à pergunta sobre se a virtude pode ser ensinada,
vê-se constantemente, e até nos últimos diálogos, que são os mais sérios, a luta
travada entre a mentalidade de que resulta o Mito a forma capaz de criar objetos
a partir de uma pergunta e de uma resposta e, por outro lado, a vontade de
conhecer pelo esclarecimento mental (JOLLES,1976, P. 98)
Se não logra êxito nem somente através do logos nem somente através do mito
é porque necessitou localizar
antepassados e de Atlântida, ou seja, em uma Idade de Ouro. Sua mito-logia existe,
com relação a seus mundos ideais, porque são perguntas que não tinham ainda uma
-Atenas)
e . Tanto uma quanto outra são derivações
da pergunta primordial do mito em sua forma simples:
Mesmo esta Platão tenta resolver no Timeu apresentando sua estrutura de
criação de universo relacionando à cidade ideal porque esta por sua vez era
organizada segundo as distinções da alma. Assim comportariam uma mímesis bem
específica (ou melhor, uma méthexis25) que perpassa os três (universo, cidade e alma
individual), uma cosmovisão onde a alma é apenas um microcosmo.
24 GUINSBURG, p. 271 25 a mesma circunstância; mas é claramente perceptível que méthexis tem um sinal positivo, pois ressalta a relação da coisa real com a peculiaridade de sua ideia, enquanto mímesis antes acentua a negatividade da diferença entre o protótipo e a cópia, o defeit -100)
40
É nesse paralelismo entre macrocosmo e microcosmo, que então se define e
aperfeiçoa e que não deixará de estar presente na cultura ocidental, que se
fundamentará mais radicalmente a pólis ideal, também ela estruturada sobre a
harmonia e portanto sobre a justiça (na acepção platônica), que constituirá assim o
eixo principal a ligar o indivíduo, a pólis e o universo. (negrito nosso, PLATÃO,
2001, p.24-25)
O diálogo Timeu justifica a República, que se torna apenas o meio entre dois
polos. Ela não surge como fruto de uma alma senão que esta mesma alma seja
espelho do universo e da cidade ao mesmo tempo. Em outras palavras, a República
na qual a resposta pela origem do
universo teria sido encontrada. Daí a importância de ter um conhecimento claro do
mundo antes de imitá-lo.
Tudo o que é objeto de nossos discursos por força terá de ser imitação ou
representação. Se atentarmos na arte do pintor, no preparo de imagens dos corpos
dos deuses ou dos homens, tendo em mira a dificuldade ou prazer ao espectador,
verificamos que, se na representação de montanhas, rios, florestas, todo o céu com
tudo o que nele se encontra e se movimenta, alguém alcança alguma semelhança,
embora mínima, com seu trabalho, declaramo-nos imediatamente satisfeitos. E
mais: como não temos conhecimento preciso dessas coisas, não examinamos com
rigor as pinturas nem julgamos com excessivo rigor, contentando-nos com um
sombreado vago e ilusório. Mas, se alguém se abalança a reproduzir a forma
humana, de pronto percebemos os defeitos do desenho, pois nosso conhecimento familiar de nós mesmos nos transforma em juízes severos, com relação a quem
não conseguiu nesse ponto a semelhança necessária. (negrito nosso, PLATÃO,
2001, p156)
Para Jean-Pierre Vernant ao falar sobre o conceito de imagem em Platão,
inconstâncias, sua relativi LIMA, 2010, p. 62). O que
permanece é o conhecimento que teoricamente possuía o filósofo, pois saiu da
C
41
dos objetos e dizer o que era falso e verdadeiro. O que ele contemplou? As Formas
do conteúdo, o Ser ou Ideia, cujo acesso está em cada alma individual.
Este elemento é suficiente para afirmar uma função parecida ao da lírica
(moderna) apoiada numa relação entre mundo interior e exterior, isto é, a mesma
dis . Mundo exterior, tal como via o filósofo e vê o
lírico romântico e moderno, é corrompido, injusto, imperfeito. Pela reminiscência,
alcançada por um esforço da alma individual (do sujeito), lhe dá a conhecer um
interior, uma Forma.
Ele abriu caminho a uma mentalidade que passou a ter fundamento a partir não
do simulacro mas do modelo, isto é, do Ideal (exigência de seu sistema filosófico). O
poeta como quem vislumbra um sair da Caverna (i.é, do exterior, do aparente) e quer
contar o que teria visto (e apenas ele teria visto, porque dentro dele), através da sua
alma (subjetividade) antes ser copista do mundo real, é criador de seus modelos, de
suas Formas, isto é, da fantasia; poderiam apresentar um novo modo de enxergar o
mundo que não é outro senão pelo suje
a se transformar a si própria [a assimilação] do interior
mímesis que Platão havia configurado segundo Jean-Pierre Vernant:
Poder-se-ia dizer, talvez, que a mímesis ilusionista daqueles que Platão chama
outros. A mímesis filosófica consiste em uma assimilação íntima de si àquilo que é outro e radicalmente estranho ao parecer, de modo a se transformar a
si própria do interior. Assim, quando se passa da mímesis do parecer à
assimilação ao ser, o jogo do mesmo e do outro se inverte: no primeiro caso, a
imagem apoia sua semelhança com o modelo nisso que, nesse modelo, nunca
permanece semelhante a si; no segundo caso, a imitação inclui o reconhecimento
da alteridade do modelo, colocando-o como outro até em seu apetite de semblância,
precisamente porque o modelo é isso que permanece sempre o mesmo que ele
mesmo. (LIMA, 2012, p83-84)
Enquanto o mundo empírico é corrupto e mutável, na alma imutável encontraria
eîdos) é o mesmo que
Formas, ou seja, aquilo cuja presença fornece condições para que o mundo seja
42
conhecido em sua permanência e não mais a partir de uma base mimética. Aquilo
que permanece apesar das mudanças é a Forma que está antes mesmo de sua
presença e participação (méthexis) nas coisas - os objetos da imitação.
Nesse estado mental o poeta lírico não necessitaria mimetizar o mundo em sua
totalidade objetiva como o épico, entre outros; pode, no entanto, apresentar o mundo
objetivo subordinado à sua fantasia subjetiva, um mundo que só pode existir a partir
dele. Mas aquilo que permanece sempre o mesmo, na lírica, é o sujeito (o ), isto
é, aquilo que motiva a busca por este mundo interior, e que precisa se dar a conhecer
através de um suporte que não é mímesis, mas méthexis, sua participação constante,
nas palavras, nos versos, no ritmo, em suma, no poema. O poeta não representa o
mundo: participa do mundo. E não necessita ser objetivo (e portanto se relacionar com
mimetismos), basta, na sua relação, apresentar uma visão de mundo ou imago mundi
que sustenta sua subjetividade frente ao real ou o que seja convencionado por
realidade.
Desde a Grécia antiga a poesia mimética foi a mais debatida entres seus
filósofos e a poesia lírica, no entanto, foi tratada em menor grau nos seus sistemas e
uma das razões disso ocorrer se encontra no motivo de a primeira transparecer o
mundo em sua totalidade e objetividade, tarefa que os filósofos tomaram para si e daí
seu interesse. Por outro lado, a poesia lírica tratava, desde seus maiores
representantes gregos, de um estar-no-mundo (uma subjetividade, embora este termo
não existisse na antiguidade), isto é, de uma relação cada vez mais pessoal com
mundo, onde a explicação não se dá por si mesma objetivamente - na forma simples
do mito26, entre outros, contudo pelos singulares relacionamentos consigo e com o
mundo, no caso, o mundo antigo. Sobre os líricos gregos acredita-se que:
Tais temas estão prevalentemente ancorados na contemporaneidade, articulados,
de algum modo, ao cotidiano da vida na pólis, a eventos de um passado recente e
a situações próprias da experiência humana, e são colocados em direta relação com
26 perguntas e respostas, tem lugar a Forma a que
sposta e a realidade objetiva cria-
e a rigor apenas os seus poemas são epopeias decorre do fato de ele ter encontrado a resposta antes que a marcha do espírito na história permitisse
43
a voz poética geralmente em 1* pessoa do singular a persona -, que, nas canções,
e de resto na poesia grega como um todo, sempre se endereça a alguém
, 2013, p. 20)
Em outras palavras, a lírica ainda que aceitando a existência dos mitos gregos
necessitava menos do fundamento objetivo com o qual os poetas épicos eram
autorizados a dizer algo sobre o mundo: a imitação. Por sua vez, ela se fazia presente
no coletivo. Esta voz não almejava
explicar todo o mundo porque sua função não permitia vê-lo com afastamento
necessário, pelo contrário, aproximava o mundo de si, a fim de dizer com isso a
verdade sobre eventos particulares e mesmo nos coletivos, pois estava neles e não
fora deles.
Este estar-no-mundo cada vez é mais sentido na medida em que o mundo vai
aos poucos se afastando do indivíduo (e vice-versa) em suas relações de vivência e
significação coletivas (saindo de seu primitivo estágio para um
-se inteiramente
foi ignorada pelos grandes
sistemas filosóficos da antiguidade preocupados mais com os problemas universais e
astúcia da mímesis, a representação do singular logra
1972, p.8). Ou melhor: por uma astúcia da
méthexis, que vislumbra o
Mundo da Ideias, isto é, sua visão de mundo.
A lírica como expressão de um interior é uma herança da teoria hegeliana. Ao
estabelecer em seu Cursos de Estética as diferenças entre épica e lírica, esta seria
em comparação com aquela (objetiva) realizada segundo os domínios do sujeito. Este
domínio revela que o mundo e as coisas já não devem ser representados como em si
e passam a ser para si. A lírica teria sua força e legitimidade no sujeito que se deixaria
propositalmente aparecer na produção. O exterior se recorta pelo interior, ele está
nesse limite entre os dois (pois é ele quem recorta) mas se posicionaria dentro do
processo. Dito de outro modo, o para si depois de tomar consciência do processo
é reorientado em si, isto é, no processo que leva mundo exterior e objetividade de
representação, entre outros, ao ensimesmamento por um sujeito que passa a
44
representá-lo (o mundo) mesmo que este representar não corresponda à realidade
por isso mesmo.
O todo toma, por conseguinte, o seu começo no coração e no ânimo e, mais
precisamente, na disposição e na situação particular do poeta, de modo que o
Conteúdo e a conexão dos lados particulares, para os quais o conteúdo se
desenvolve, não permanecem sustentados objetivamente por si mesmos como
conteúdo substancial ou pela sua aparição exterior como ocorrência individual
fechada em si mesma, mas pelo sujeito. Por isso, o indivíduo deve aparecer em si
mesmo de modo poético, rico em fantasia, pleno de sentimento ou grandioso e
profundo em considerações e pensamentos, e sobretudo aparecer autonomamente
em si mesmo como um mundo interior fechado por si mesmo, do qual estão
eliminados a dependência e o mero arbítrio da prosa. (negrito nosso, HEGEL, 2004,
p. 160)
Eliminado uma dependência com o mundo externo, o sujeito teria liberdade de
fazer conexões que não seguem um ordenamento natural. Nem o próprio sujeito não
deve aparecer de modo empírico. Se é possível criar a si mesmo quando modela seu
mundo fora da norma e de padrões exteriores é porque estes já existem a priori no
cotidiano, na ciência, no mito, no social, no real, que sendo considerados legitimados
correspondem a uma totalidade e um paradigma na qual ele encontrar-se-ia integrado
e participante; resta, para sua afirmação (i.é, a afirmação de um interior pela
diferença), sempre a quebra desses esquemas e a consequente marginalidade de
visão que, conquanto não seja harmônica com a sociedade em que vive, no entanto,
é sua. Deve mostrar-se como um mundo (interior) fechado .
Se a obra de arte lírica não deve, todavia, se tornar dependente da oportunidade
exterior e dos fins, os quais residem na mesma, mas estar aí como um todo
autônomo por si mesmo, então pertence a isso essencialmente que o poeta utilize
a ocasião apenas como oportunidade, a fim de expressar em geral a si mesmo, sua
disposição, sua alegria, sua tristeza ou modo de pensar e o ponto de vista sobre a
vida. A principal condição para a subjetividade lírica consiste, por
conseguinte, no fato de assumir em si mesma inteiramente o conteúdo real e torná-lo seu. Pois o poeta lírico autêntico vive em si mesmo. (negrito nosso,
HEGEL,2004, p163)
45
Isso ocorre porque foi a única forma de viver e ver do que pouco restou de um
sentido que era coletivo. Dado que o início da modernidade propiciara a fragmentação
transcendental de suas vidas rompeu-se para nós; não podemos mais respirar num
2009, p.30), tal mundo fechado deixou de ser uma
evidência objetiva ou essência transcendental; agora é o poeta, em sua subjetividade
- -, quem deve construí- as unidades, em contradição
Eis porque o mundo antigo - homogêneo - não conheceu um exterior: nunca
conheceu um interior. Ao conhecê-lo deixou de existir tão facilmente quanto surgiu.
Depois de abertas, as culturas fechadas, como uma caixa de Pandora, deixaram
dentro de si apenas a esperança de seus tempos áureos, mitos da idade de ouro. Isso
explica a tentativa de mantê-las fechadas. Isso também explica os mergulhos em um
oceano interior na tentativa de emergir uma Atlântida de considerações pessoais.
Mas
se tocam. Onde eles se interpenetram 27.
Um sintoma de cisão entre alma e corpo, eu e mundo, não pode pender apenas para
um interior que se isole e se configure sem que todas formas assumam seus espaços
delimitadores. Do fracasso em ser apenas interior está a sede da alma.
Consciente das ruínas do mundo moderno ou
contrário, livra-se desta prosa já dada [do mundo] e cria a partir da fantasia tornada
subjetiva de modo autônomo um novo mundo poético da consideração e do
sent p.172), ou apresenta na obra ao mesmo
tempo aquilo que fundamenta essa busca: a realidade. Já não estamos mais em uma
evasão acarrete pequenos problemas, ao criar uma lei onde acredita que para voar
não necessite de atrito. É justo desse atrito que os poetas fazem um movimento entre
interior e exterior. Lembremos: a alma não existe por si só, ela é ânimo, dinâmica28.
27 NOVALIS, 1988, p.45 28 -se a si mesma, o movimento será atribuído a ela
46
O poeta nem quer renunciar a si mesmo, nem quer renunciar ao mundo real e
fragmentado que permite o si mesmo, mostrando ou afirmando um mundo o seu -
dentro de outro, o mundo real (social).
2.2. Sobre a Imitatio: Locus Amoenus
Nas grandes narrativas utópicas da modernidade (Thomas Morus, Francis
Bacon, Tommaso Campanella e mesmo na distopia de Bradbury) a função da poesia
está sob um controle rígido - uma censura -, que tem origem a partir do modelo
platônico encontrado no livro da República. Isso se justifica por serem sociedades
racionais e austeras onde a poesia como sinônimo de desvio, expressão individual e
inspirada que não pode ser tolerada, pois perturba a ordem do Logos e põe em risco
toda aquela arquitetura ideal e comedida proveniente da reflexão política.
Porém a busca por um lugar utópico não é uma característica encontrada
somente na literatura filosófica plus ou moins romancée29. Também a poesia lírica
buscou lugares onde a felicidade, a harmonia e o bem pudessem coexistir, ainda que
em uma configuração subjetiva, isto é, na situação de um mundo interior. Se na Bíblia
a Torre de Babel nos informa que a busca coletiva por alcançar um céu foi inútil e
fracassada, no entanto, como resultado e castigo, as vozes se multiplicaram e
podemos verificar as várias tentativas solitárias - que são as vozes singulares da lírica
- na medida que se afastem cada vez mais em deixar a terra inteira com uma só língua
e usando as mesmas palavras30. O que se verifica ser uma dádiva e não uma maldição
- ao menos para a riqueza da literatura no tema -, que depois de Babel cada poeta
possa ainda almejar o céu para edificar sua voz. Descrevendo da melhor maneira
possível a experiência, inicia Dante a última parte da Divina Comédia:
No Céu que mais a sua luz favorece
estive, e coisas vi que redizer
nem sabe ou pode quem que de lá ora desce31
29 TROUSSON, 1988, p.31. 30 BIBLIA, 2012, P. 24 31 DANTE, 2010, 13.
47
E no entanto escreveu seu Paraíso
pôde escrevê-lo, além disso ninguém pode dizer que o Paraíso que descreve é outro
senão o dele - por ter vislumbrado pela sua alma. A dificuldade de fazer descrições
para os habitantes da caverna , como queria Platão, têm os poetas em mostrar novos
mundos sem que as referências mesmas estejam no mundo concreto. Falam já uma
língua estranha, um idioma diferente do usado comumente: a poesia, pois é ela quem
pode e sabe dizer aquilo que foge ao cotidiano.
Não raro os textos da antiguidade (as epopeias ou poesia mimética, os textos
religiosos, etc) apresentam aspectos relacionados ao tema do lugar idílico (de
felicidade, de paz, de serenidade) com origem histórico-literária definida a partir de um
tópos específico catalogado por E. R. Curtius - o locus amoeuns -, e antecipa as
reflexões filosóficas sobre sociedades ideais advindas do debate político grego (e
moderno), a utopia. Para Paul
lugares propicios ZUMTOR, 1994, p.55) e fica claro que em
grande parte dessas culturas antigas o locus amoenus e seu oposto, locus horrendus
(ou terribilis), poderão ser encontrados sem dificuldade. São estas as fontes que os
utopistas, romancistas e poetas - miméticos ou não - irão buscar para desenvolverem
sua imago mundi.
Na Epopeia de Gilgamesh, um dos textos mais antigos da civilização, há uma
imagem de lugar ideal, sendo o dilúvio a promessa de reconfigurar o mundo corrupto,
pois 32 provocados pelos
humanos, desejava-se a volta a um estágio idílico, ou seja, uma Idade de Ouro.
Também está na Bíblia a história de Noé remetendo justamente a um castigo pela
corrupção humana e a solução divina pelo mesmo método33. Em outras palavras,
sempre se verifica uma transgressão à Lei ou norma: isso vale ainda no Paraíso,
quando Adão e Eva descumprem o juramento de não provar do fruto do conhecimento
32 -se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoro
33 as pessoas na terra e como todos os projetos de seus corações tendiam unicamente para o mal. Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o ser humano na terra e
criei e, com
2012, p. 20)
48
do bem e do mal34 e Pandora na cultura grega ao abrir o jarro selado ao espalhar o
mal pelo mundo. Entende-se assim a Idade de Ouro como um sentimento de perda,
de uma nostalgia. Os sonhos que fazem Utnapishtim e Noé (modelos de
comportamento moral e fidelidade religiosa) construírem uma embarcação é resultado
da busca pelo locus amoeuns, ou seja, pelo espaço diferenciado do cotidiano e da
realidade que vivem, buscam-no na esperança colhida no fundo do jarro de Pandora,
livre do mal, da violência, da morte, entre outros, embora sabendo-se apenas
mensagem de esperança àqueles que não comungam a mesma aprovação divina e
onírica. O estágio sustentado pela possibilidade de ter existido em uma época remota
uma sociedade harmônica, um mito, no seio da própria religião (e na filosofia política)
em período do renascimento, é também uma promessa de dias melhores no futuro: a
Utopia.
Este mito da Idade de Ouro (localizado tanto no pretérito quanto no futuro) foi
explorado pelos mais diversos gêneros literários. Raymond Trousson, por exemplo,
entendia como genres apparentés da utopia desde a Ilha dos bem aventurados35
encontrada em Hesíodo e Píndaro até a Arcádia de Virgílio e em especial de
Sannazaro, passando pela Cocagne criada na Idade Média. Todos eles relacionados
ao mito antes de se tornarem um projeto futurista, portanto, moderno.
E. R. Curtius ao investigar a importância da retórica no sistema literário, chamava
atenção para a recorrência do locus durante uma longa etapa histórica em paralelo ao
modo de vida ideológico das sociedades antigas e medieval.
Os sistemas da tópica laudatória serviram de veículo e revestimento aos
ideais de classe e de vida no fim da Antiguidade, na Idade Média, na Renascença
e no século XVII. A retórica elaborou a imagem do homem ideal e determinou, por
milênios, a paisagem ideal da poesia. (CURTIUS, 2013, p.239)
34
35 provável, e necessário depois do que afirmamos, que nem as pessoas sem educação e sem conhecimento da verdade, nem as que cdeixamos passar a vida toda no estudo, são próprias para o governo da cidade, umas porque não dispõem de ideal ao qual possam referir tudo quanto praticam na vida particular ou na vida pública e as outras porque não aceitarão o seu encargo, crendo-se já transportadas, em vida, às ilhas dos Bem-aventurados. , p. 271)
49
A presença do locus no ocidente está em Homero onde as epopeias Ilíada e
Odisseia são compostas por paisagens naturais e agradáveis ao homem antigo, ou
seja, lugares onde ele se encontra integrado com o divino. Também em um dos textos
mais influentes do ocidente a Bíblia - é identificado aos jardins, entre eles, o Paraíso,
constituindo outra fonte literária. Sua recorrência dá mostra de sua importância36.
Estes locais são ideias na medida em que querem se estabelecer como o melhor
possível, mas não são fixos em sua caracterização.
Prova disso é que muda em cada época histórica. Gradativamente certas
características darão lugar a outras no que se refere ao espaço que caracteriza a
felicidade. As descrições primarias surgem nas culturas em que a natureza é
valorizada ou pelo menos não é desprezada -, são espaços em que não se vê nela
um grande cultivo ou trabalho humano como ocorre na religião cristã na qual o homem
é criado para ter domínio sobre ela e na modernidade, com filósofo Francis Bacon,
entre outros, a natureza dá lugar à técnica através das utopias modernas. O locus se
converte em espaços de conforto tecnológico e científico. No arcadismo voltam as
descrições da natureza porque agora é sinônimo de fuga dos centros urbanos
(tratados agora como locus horrendus).
Em geral, nessa primeira etapa de desenvolvimento nas sociedades primitivas,
2013, p.242) e encontra-se também a presença da sombra, lugar
de descanso sob as árvores, bem como as frutas oferecidas pelas mesmas, sejam
romãs, maças, figos, peras, azeitonas e uvas. Lugares onde vivem as ninfas, entre
outras entidades, que outorgam características religiosas tendo em vista que os
relatos são baseados no mito.
Em Homero, ocorre com mais frequência na Odisseia que na Ilíada pela
motivação da primeira de narrar uma viagem. Descreve uma natureza intocada e pura,
sendo cultivada apenas pelo espírito objetivo do poeta. Assim, no canto V da Odisseia
36 lhures, ou que de algum modo o precedeu como resposta a uma pergunta, isso apenas provará que o gesto verbal apreendeu corretamente o elemento de constância e de repetição regular; que o apreendeu tão bem, inclusive, que ele continua a ser considerado a ligação válida e coerente entre pergunta e resposta, ainda que num tempo 1976, p.103)
50
quando Hermes chega na ilha de Calipso com uma mensagem de Zeus para libertar
Ulisses, encontramos este:
Em torno da gruta crescia um bosque frondoso
de álamos, choupos e ciprestes perfumados,
onde aves de longas asas faziam os seus ninhos:
corujas, falcões e tagarelas corvos marinhos,
aves que mergulham no mar em demanda de sustento.
E em redor da côncava gruta estendia-se uma vinha:
uma trepadeira no auge do seu viço, cheia de cachos.
Fluíam ali perto quatro nascentes de água límpida,
juntas umas das outras, correndo por toda a parte;
e floriam suaves pradarias de aipo e de violeta.
Até um imortal, que ali chegasse, se quedaria,
só para dar prazer ao seu espírito com tal visão.
(HOMERO, 2005, p.92-93)
Extraída de seu contexto original a paisagem parece oferecer apenas um relato
mimético, mas a moldura é envolvida em mito, o que confere um caráter especial e
prepara o ouvinte para
informar que Ulisses vivia muito bem onde estava (apesar de aprisionado por Calipso);
a ilha em que se encontrava, percebe-se, era um lugar de fartura e prazer que
contrasta com a tristeza do personagem. Seu pensamento não é outro senão voltar
para casa onde tem filho e esposa que passam por dificuldades. A epopeia cumpre o
papel de revelar os valores coletivos gregos, neste caso, o valor da família. Daí a
impossibilidade de ficar ali.
No entanto, depois que Ulisses chega em Ítaca e tudo se resolve ficaram ainda
aquelas belas imagens presas na imaginação dos ouvintes. Como seria viver
naquelas ilhas maravilhosas e desejada até pelos deuses?
desejarem fixar a imaginação nela com um interesse permanente pelo melhor lugar
51
existente. É justo este interesse que faz com que os locais sejam acrescidos de
fantasia até se s
inteiramente ideais. Os poetas ao descreverem um local no qual já era aceito como
melhor possível acrescentam sempre um elemento a mais, acabam oferecendo uma
função diferente ao locus descrito anteriormente, o tópos passa a oferecer também
uma imago mundi heterogênea e subjetiva: o mito não representa mais uma visão
comum. Aquilo que era aceito consensualmente como o melhor lugar é posto em
função de uma visão e busca pessoal. O melhor lugar para um não é o mesmo para
outro, isto é, não tem um significado coletivo. O locus amoeuns passou a servir de
modelo na busca por felicidade individual. Este já não pode ser encontrado
objetivamente (nunca pôde, uma vez que é fantasia), ele se encontra em um interior,
em algum lugar da alma. Daí sua característica ter-se tornado essencialmente lírica.
A retórica clássica reservava para este tópos uma função que encontramos em
textos cujo mérito estava em revelar verdade e falsidade. E, no entanto, serviu em dá
margem para a criação de espaços
querer mimetizar algo mas, por recurso estilístico, querer exagerar e detalhar com
finalidade de dar veracidade para paisagens que nunca foram vistas, senão por
recursos da criação poética tão somente.
Para dar um exemplo da função sobre a verdade e a falsidade vemos na Bíblia
cristã o caso de dois homens interessados em uma moça atraente serem
desmascarados. A História de Susana (ANÔNIMO, 2012, p.1127-1129), presente no
livro de Daniel. Dois anciãos costumavam espreitar uma moça casada que tinha
costume de tomar banho sozinha. Certo dia, resolveram criar uma embocada e
possuí-la. Mas o plano não deu certo e a moça foi denunciá-los. Como não havia
testemunhas, decidiram inventar uma história quando chegassem. Seria esta: ela
estaria se encontrando com um rapaz, justo ali, e por ser casada deveria sofrer uma
punição mortal. Aqueles dois anciãos teriam pego ela e o suposto amante em flagra.
Apesar da moça oferecer seu testemunho de que aqueles dois queriam estuprá-la e
por isso mentiram, o povo em assembleia preferiu acreditar nos dois. Mas Daniel,
recebendo uma mensagem divina, resolveu intervir. Separou os dois anciãos cada
qual para um lado e perguntou onde cada um se encontrava na ocasião. Um teria dito
Assim a população voltou atrás, pois percebeu a contradição dos dois e os
52
condenaram por estarem mentindo. Abstraindo a moral religiosa da história, o locus
amoenus (o evento ocorreu em um jardim) assumira uma função retórica importante,
pois revelou discursos falsos e verdadeiros.
A descrição de cenário é uma prova que Aristóteles chamaria artística (isto é,
técnica ou metódica), na impossibilidade da história não ter contado com outras
testemunhas:
Chamo provas inartísticas a todas as que não são produzidas por nós, antes já
existem: provas como testemunhos, confissões sob tortura, documentos escritos e
outras semelhantes; e provas artísticas, todas as que podem preparar pelo método
e por nós próprios. De sorte que é necessário utilizar as primeiras, mas inventar as
segundas. (ARISTOTELES, 2005, p.96)
Se a descrição não corresponde com a realidade ou se não é possível oferecer
detalhes de onde ocorreu certa situação ou ainda se houver contradição a veracidade
do discurso é comprometida. Cabe ao poeta, servindo-se do conhecimento da
referente empírico (mimético) onvencimento com as palavras,
isto é, a organização e as estratégias internas do texto.
Vejamos o caso da poesia pastoril (ou bucólica) que tem em Teócrito na primeira
metade do século III a. C. sua fundação, onde coloca as descrições do locus amoenus
em um nível mais notório de importância, nível ao qual vamos comentar brevemente.
Quando no primeiro canto de Idílios Tírsis sugere um local para uma disputa de canto,
recebe outra sugestão do cabreiro:
TÍRSIS:
Valham-me as Ninfas: gostavas, cabreiro, gostavas de aqui,
onde é íngreme o monte, onde há tamarindos, sentar e
tocar a siringe? Tuas cabras, no entanto, eu hei de guardar.
CABREIRO:
(...)
53
Tu, por teu turno, ó Tírsis, que as dores de Dáfnis entoas,
e ao suprassumo, decerto, chegaste da musa bucólica,
vem, sentemo-nos cá, debaixo do olmo e diante
das fontes e Priapo onde um rústico assento (aquele
lá) e os carvalhos estão. (...)
(TEOCRITO apud NOGUEIRA,2012, p.136)
O apontamento para um elemento rústico corresponde à própria visão de poesia
pastoril, que evitava a erudição em troca da simplicidade campestre. Note-se que a
atividade de compor propõe exige um local específico, o melhor locus propício ao
canto. Ele é essencial para que o poeta se inspire e faça ou não - o melhor canto,
tendo em vista a aposta. Assim, por conta da disputa toda a estrutura dos Idílios
envolve disputa -, os concorrentes tendem a fazer todo tipo de acréscimos e
desestabilizar o outro canto (o vencedor comumente era conhecido quando um deles
concordava em ser o discurso do outro insuperável, isto é, em reconhecer aquele
como melhor). Trata de um superar por diversificar37
e o cabreiro soube escolher o lugar mais
apropriado para se cantar.
Vê-se então que no Idílios de Teócrito o locus é colocado em disputa entre todos
os outros elementos que compõe o relato poético. Este tem no dinamismo e na
variação seu fundamento, ou seja, ele existe em função de uma incorporação de um
discurso para então apresentar seu ponto de vista específico por acréscimo, isto é,
pelo método de convencimento uma vez que o leitor não tem acesso ao local real das
descrições, ou seja, fica sabendo o porquê um lugar é melhor que o outro (sem
conhecer nenhum dos dois) através das próprias informações e valoração dos
personagens.
37
1996, p. 43).
54
(a possibilidade do leitor
perceber um fingimento, uma artificialidade38) foi um dos degraus para o que viria a
caracterizar como um paradigma da ficcionalidade.
À medida que Teócrito imita em seu Idílio o jogo da vida real dos pastores, modifica
a ideia da mímesis: é artificialidade, em vez de natureza, que se torna o objeto da
mímesis; a imitação visa àquilo que se separou da natureza. O jogo como
encenação permite a repetição, que em princípio pode se estender a tudo, incluindo
até mesmo a própria natureza: no locus amoenus a natureza já é encenada como
ambiente prazenteiro ao homem. (ISER, 1996, p44).
Presta-se melhor ao conceito de jogo o quinto idílio, que surgia com vistas a
disputa entre dois pastores que se encenam e se problematizam como poetas. No
idílio os pastores existem enquanto tal (são pastores
cantos bucólicos e, no entanto, tanto uma função quanto a outra são as mesmas, não
há diferenças porque o fazem dentro de uma poesia já bucólica (a de Teócrito). Dito
de outra maneira, os pastores já vinham executando a disputa poética antes de
criarem o jogo de disputa poética39. Note-se por fim: prazenteiro ao homem, pois saiu
da sua moldura heroica da epopeia, o locus não é mais uma descrição mítica porém
agora seu prazer decorre de cenas cotidianas, encontrara sua ilha de Calipso
precisar configurar um mito, tão somente pelo canto pastorial (e cada canto é
individual) poderiam ter acesso ao locus.
Bastante influenciado por Teócrito foi o poeta romano Virgílio ao compor
Bucólicas (Écloga).
a arcádia40 41. Alguns discordam desse termo preferindo acreditar
38 ade literária, ao demonstrar sua
40.) 39 o
40 post regione
41
55
que a arcádia remeteria à Idade de Ouro, aos sonhos, à nostalgia42. Isso se deve à
Écloga IV, onde o poeta inicia com esta referência:
Sicilianas musas, o meu canto
elevo aos bosques a exaltar os feitos
mais sublimes à Idade de Ouro. A ordem
dos séculos está para retornar
(VIRGÍLIO,2008, p.51)
Na continuação do relato descreve um lugar com bastante gado, cabras, vasos
repletos de leite, flores ao invés de ervas venenosas, configurando o locus clássico e
faz referência à Orfeu Calíope, Lino Apolo e Pan, mitos relacionados ao dom da poesia
e à Arcádia como cenário dos embates poéticos43. No entanto, o escapismo (que viria
a ser característica romântica) não é uma característica desse poeta. Seu vínculo está
em retomar o mito ao torná-lo de seu tempo
1996, p.47). Na Écloga o locus
reflete os anseios de mu
locus amoenus se torna espelho, em que a desgraça causada pelo político se reflete
A causa política é a mesma que
acompanhas as utopias do renascimento e as construções sociais de Platão.
O tópos continuou tendo grande importância durante a época seguinte, pois
locus amoeuns é registrado pelos
lex CURTIUS, 2013, p.254).
Isso também é válido no tema da Cocanha.
Identificado o locus nos cenários compostos por árvores, flores, fontes, entre
outros. E.R. Curtius observava que muitas vezes não apresentavam naturezas
endêmicas dos autores; por exemplo, o poeta avistar uma oliveira quando se sabe
que as oliveiras sequer existiam em certas regiões da Europa44, o que revela serem
42 ISER, P. 44 43 nto de vista geográfico, à região que ocupa a área central da península do Peloponeso, prolongando-se para nordeste. Nas estruturas antropológicas do imaginário [Durand 1960], o seu nome simboliza o lugar mítico onde o homem vive em plena harmonia com a natureza. A mitologia e a tradição literária, por sua vez, associam- 44 p. 240.
56
ou pelas
idem, p.241), não se trata
mais da mímesis, porém da imitatio. Esta comprovação faz com que o autor remeta a
sua função poética à função retórica45 que dizíamos acima, mostrando não a verdade
É na poesia do renascimento, onde existe uma valoração dos textos antigos, que
Teócrito e Virgílio são reencontrados. O nome que Jacopo Sannazaro (1457-1530) dá
ao seu poema longo é precisamente Arcádia. Inicia o poema em Nápoles onde
descreve uma ilusão amorosa, assim decide ir para Arcádia lugar imaginário onde
encontraria a paz no locus amoenus dos pastores e poetas. Não por acaso remete à
X Écloga de Virgílio que nessa passagem descreve uma desilusão amorosa tendo o
mesmo lugar como destino46.
O poema de Sannazaro
as obras- ter alcançado uma grande
recepção na Europa. A trajetória de Sincero, personagem que faz a viajem à Arcádia,
é uma projeção autobiográfica do autor, de onde percebemos que o locus encontra
terreno para a lírica, isto é, já não é um espaço mítico da epopeia, nem somente um
lugar campestre para compor um estilo e um método, porém marca presença em um
interior, em uma subjetividade, é testemunha de uma biografia real.
A arcádia, originalmente entendida de forma tipológica, torna-se de forma súbita
uma perspectiva para o mundo da vida real do poeta, cujos aspectos ocultos se
objetivam, à medida que a arcádia é reduzida à correspondência das lembranças
submersas (ISER, 1996, p.65)
Lembranças que são do próprio poeta: um milênio e meio depois de Virgílio o
poeta começa mais uma vez a procurar a mesma arcádia com intenção, segundo
45 2013, p.250) 46 Diz o personagem: da Arcádia arremessar / as setas da Sidônia, qual remédio ao furor, como este que é o mal / de amor que todo homem torna frágil / e os Deuses não conseguem 2008, p. 107)
57
ele, de fugir da recordação de um amor infeliz, mas na verdade para dedicar-se melhor
à su , 1996, P.63). Assim a Arcádia de Sannazaro
representa uma mudança no locus amoenus, quer se remeter aos lugares pastoris
não apenas para cantar sua dor mas como forma imaginativa de curar e de ser curado.
No romance bucólico de Sannazaro, é concedida uma grande importância à
procura pela felicidade. Os pastores anseiam poder viver em harmonia com a
natureza, consigo próprios, e com aqueles que rodeiam. A paisagem arcádica é
constituída por elementos míticos, primordiais montes, árvores, cursos de água -,
e as personagens executam gestos ancestrais, milenários conduzir o gado,
descansar à sombra, entoar canções. Os seus actos não tem por consequência,
conforme já notamos, avanços óbvios na evolução da fábula. Desta feita, a matéria
narrativa assume, no seu todo, um significado interiorista, que tem tanto de profundo
como de sibilino. (MARNOTO,1996, p.129)
A Arcádia é uma fuga e no entanto mesmo entrando nela ainda não é possível
esquecer a vida real pois a arcádia não é um país, para o qual se poderia emigrar, e
todos que são estimulados a procurá-la serão incapazes de se separar do mundo que
abandonaram, muito menos serão incapazes de deixar se ser o que são ISER, 1996,
p64). Desse modo representa o sujeito lírico, sua motivação de fuga e sua
possibilidade de recuperação de equilíbrio emocional
uma atitude catártica de seus sentimentos na elaboração da obra.
No ambiente brasileiro, Antonio Candido situa justamente o arcadismo como o
movimento inicial da formação da literatura brasileira (convencionada a partir dos
trabalhos de Claudio Manuel da Costa em 1750). Aceitando os pressupostos de seu
sistema:
A poesia pastoral como tema, talvez esteja vinculada ao desenvolvimento da
cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem natural,
transforma o campo num bem perdido, que encarna facilmente os sentimentos de
frustração. Os desajustamentos da convivência social se explicam pela perda da
vida anterior, e o campo surge como cenário de uma perdida euforia. A sua
evocação equilibra idealmente a angustia de viver, associada à vida presente,
dando acesso aos mitos retrospectivos da idade do ouro. Em pleno prestígio da
58
existência citadina os homens sonham om ele à maneira de uma felicidade passada,
forjando a convenção da naturalidade como forma ideal de relação humana.
(CANDIDO, 2006, p. 62)
O que tem como consequência a reflexão mínima sobre a realidade do país (não
o retrata documentalmente), mas coinc desenvolvimento da cultura
urbana na relação entre campo-cidade47 e que mais tarde no romantismo será
valorizada a figura do índio como aquele que encarna os valores dessa naturalidade
perdida. É sobretudo nesta segunda escola que o escapismo estará presente na
famosa obra de Gonçalves Dias, A Canção do Exílio, construída entre o aqui e o lá.
Antes de avançar para etapas posteriores da nossa literatura (isto é, de Manuel
Bandeira) que mingua cada vez mais o debate nacional na medida que as vanguardas
surgem48 (embora o modernismo brasileiro é sui generis uma vez que os manifestos
em contraste com o
internacionalismo comum a quase todas as vanguardas o modernismo brasileiro por
1972, p.153), convém dá um passo atrás e falar de um
tema que surge no período medieval por ser uma presença notória no poema Vou-me
embora pra Pasárgada.
2.3. Na idade média: Cocanha Medieval
No século XIII d.C na França, antes mesmo dos principais livros utópicos
modernos, surge pela primeira vez em fabliau49 a denominação em âmbito literário
Cognane (em português, Cocanha) para designar um lugar cheio de prazer, conforto,
ócio, onde tudo dá-se e não é necessário o trabalho nem o cultivo da virtude: com
abundância mas sem esforço
FRANCO JUNIOR, 1998, p. 22). Esse poema burlesco e
47 CANDIDO, P. 64 48 ou foram os dois lemas mais evidentes da vanguarda europeia. O primeiro implica o segundo. E reciprocamente. Internacionalismo não na obra em si, mas na extensão ecumênica do espírito, de certas normas. E daí, reflexamente, o desdém pelo particularismo, a abominação das heranças e dos rituais, tanto no que se refere aos motivos inspiradores como
972, P.25). 49
59
aparentemente despretensioso foi responsável por criar uma tradição temática
verificada em vários países e épocas50.
Entretanto, não devemos confundir com a Cocanha com os outros lugares até
agora descritos. Apesar dessas descrições revelarem um lugar agradável, moderado,
equilibrado, desdobrando-se em visões do Paraíso, agora o locus muda de forma
significativa. Já não representa a natureza senão que esta se apresente como cultura,
isto é, como trabalho. Os elementos que a compõe envolvem menos figos que aves
assadas. Isso porque acompanha um desejo, nas sociedades medievais era comum
a escassez de alimentos e viam na fome a maior ameaça à sobrevivência, porém
deveriam trabalhar, segundo o castigo de terem sidos expulsos do Éden.
Cocanha é um país imaginário criado para
suprir as necessidades de um determinado tempo e sob um determinado ponto de
vista BERND, 2007, p. 121), deve ter em conta, no entanto, o que um especialista
siglos XII y XV, presenta, em todos idiomas, la despreocupación, la alegria, la picardia
ZUMTHOR, 1994, p73). Não
existe um tom sério. Em uma das versões da Cocanha, chega-se mesmo a satirizar o
Paraíso e os elementos do locus amoenus da poesia pastoral, como neste exemplo:
O que existe no Paraíso
Além de gramas, flores e ramos?
Ali [na Cocanha] há alegria e grande prazer
(...) (negrito nosso, FRANCO JUNIOR, 1998, p. 35)
A sátira é sentida em relação à representação do locus amoenus, neles só havia
Construído de forma antética, o tema do quem-mais-dorme-ganha (quem menos
trabalha recebe mais os frutos de um trabalho) encontra em Cocanha um aspecto
ideologicamente contra a construção de mundo que encontramos na República, bem
50 FRANCO JUNIOR, 1998, p.9.
60
como do Paraíso cristão51. Nestes, como sabemos, o vício é proibido; naquela um
vício (e um pecado) acentua outro sem que haja uma punição divina ou humana.
Campanella, o escritor mais erudito do gênero utópico, conhece a objeção de
Aristóteles na Política onde discutia a hipótese: se um tipo de sociedade adotasse
apenas o bem comum, haveria uma parcela da população que não trabalharia ou
trabalharia menos a fim de receber pelo trabalho de outrem, garantidos pela
distribuição igualitária52. No entanto, as regras da Cocanha permitem que todos sejam
iguais e ao mesmo tempo ociosos.
Se Cocanha representa esta despreocupação, esta anarquia de valores, sua
força está ligada ao jogo livre da criação, capaz de oferecer ao leitor suas próprias leis
à parte.
Embora o conceito se aplique melhor à ficção, nela as regras (quem mais dorme
ganha) também não podem ser avaliadas como verdadeiras ou falsas, mas antes
criações poéticas dionisíacas.
Este estado mítico valorizado por Friedrich Nietzsche no Nascimento da
Tragédia
da arte, encontra no primeiro uma liberdade e uma verdade incapaz de serem ditas
pelo segundo, ligado ao aparente, ilusório e falso. Dionísio é, justamente, um deus de
culto ligado ao período de fartura, de liberdade sexual, de embriaguez é o mito no qual
ligamos à Cocanha em contraste com o apolíneo Paraíso. Podemos ligar a Cocanha
à um período histórico concreto (o carnaval), também característico do mito de
Dionísio (origem das homenagens na qual o próprio carnaval é devedor). Antes que
se possa interpretar a Cocanha somente no âmbito social e um documento histórico,
deve-se ter em conta que é vinculada a um mito e daí seu poder de reprodução.
O Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas, sobre o verbete, dirá:
(...) Cocanha é um país imaginário criado para suprir as necessidades de um
determinado tempo e sob um determinado ponto de vista; um lugar que, se
alcançado, premiará o viajante com todo tipo de benesses, sobretudo fartura
alimentar, fortuna, ócio, juventude eterna e liberdade sexual (essas são as
51 O fabliau se encontra antes mesmo de Dante Alighieri escrever a Divina Comédia no século XIV, onde os pecadores estão nos devidos lugares, Inferno e Purgatório. 52 Pág. 279.
61
representações mais comuns da Cocanha, podendo haver variações). (BERND,
2007, p.121).
Enquanto o Dicionário de lugares imaginários de Manguel e Guadalupi é mais
ilustrativo sobre o mesmo:
País de localização desconhecida, confundido às vezes com CUCCAGNA, famoso
por sua comida requintada, que não é cozida, mas cresce como flores. Doces e
chocolates nascem na borda das florestas, pombos assados voam pelo ar, vinho
perfumado jorra de fontes e bolinhos chovem do céu. (MANGUEL e GUADALUPI,
2003, p.110)
De modo irrestrito e desmedido, a Coconha é um local sem qualquer vínculo com
a razão, sem preocupações de ordenamento: u
Na lírica moderna encontramos em Charles Baudelaire a utilização do tema para
compor um dos poemas de Flores do Mal intitulado Convite à Viagem e título
homônimo aparece em Pequenos Poemas em Prosa (Spleen de Paris), com mais
Cocagne, dit-on, que je rêve
BAUDELAIRE, 2009, p.92). Nele o local
vem a significar aquilo que está dentro da própria amiga, isto é, localizado em uma
alma, um sujeito 53) e além de desvincular com a
natureza, liga-o agora ao sonho apolíneo
é a Arte superior à Natureza, quando esta é reformada pelo sonho, é corrigida,
Idem, p. 95).
No país que participa uma imagem da amiga, com isso Baudelaire não quer
estabelecer um mimetismo da amiga: não é uma representação da amiga porém é a
amiga mesma. A cocanha faz parte de uma méthexis que a alma da amiga
corresponde.
53 BAUDELAIRE, P. 225. 2006.
62
Porém o início modernidade insistiu em apresentar de modo objetivo o locus
amoenus, através das utopias, que entretanto mantém ainda relações com a filosofia
platônica.
2.4. No renascimento: Utopias Modernas
O filme Fahrenheit 451 de François Truffaut, uma adaptação do romance
homônimo de Ray Bradbury, nos informa de uma sociedade inimiga dos livros, em
especial de literatura e filosofia. O que motiva a queima deles é um argumento
simples, provocam tristeza. No entanto, retira-se este argumento - sem que aquela
rígida sociedade o saiba de um antigo livro: A República, de Platão. Que a
contradição não seja sentida pelos censores e espectadores menos atentos isso se
consideras que o elemento da alma que em nossos próprios infortúnios, contemos à
força, que tem sede de lágrimas e gostaria de saciar-se à vontade com lamúrias, (...) 54. Se os
55, por tornar grande
coisas pequenas ou tornar pequenas coisas grandes, corrompendo uma ordem fixada,
devem ser banidos de qualquer sociedade ideal.
Também na sociedade imaginada por Bradbury e mostrada por Truffaut sequer
a tristeza pessoal, onde ocorra em condições naturais, deve ser satisfeita. Assim
sendo, é a felicidade um dos elementos que estão em jogo nas ditas distopias tanto
quanto nas utopias, diferindo seus efeitos de acordo com o ponto de vista assumido
pelos narradores e personagens: em ambos os casos denunciam situações
incômodas - atuais ou futuras - para ser feliz. Nelas a influência da poesia será
inevitavelmente desvalorizada, censurada e até banida.
O livro Utopia, de Thomas Morus, publicado 1516, no período do Renascimento,
e, portanto, em um clima de otimismo em relação ao homem, é o marco conceitual
das produções posteriores. Dividido em duas partes, consiste a primeira em uma
crítica à sociedade inglesa e europeia a partir de mudanças negativas (pobreza, vício,
54 PLATÃO, p. 393, 2006. 55 Idem, Ibdem.
63
etc) observadas nestas para então propor uma organização fundada no bem-estar
coletivo onde os problemas estão resolvidos pelo controle racional de recursos
humanos e naturais. Não existindo um tirano, ela passa a ser regida por um príncipe
eleito a partir de votações cada vez mais restritas onde são escolhidos os
representantes propostos pelo povo. Sendo uma sociedade baseada em consenso,
não há grandes diferenças de opinião, de ação, regra, ou qualquer elemento que
ponha em dúvida seu modo de vida, em suma, não há liberdade individual, e
consequentemente, espontaneidade.
A literatura chega tardiamente aos habitantes da Utopia, quando o narrador leva
seus livros de Homero, Eurípides, Sófocles, Aristófanes, entre outros (todos eles ainda
desconhecidos, apesar do progresso em todas as outras áreas).
O tipo de artista que compõe a Utopia não é descrito por Morus, nem o que seria
permitido a ele, no entanto, supomos que teria uma atividade fraca, pois seus
habitantes não podem se ausentar do trabalho na agricultura, sendo ainda o
artesanato, isto é, a confecção de produtos para o uso cotidiano, uma segunda
ocupação. Os poucos ausentes desse regime, responsáveis pelo cultivo do espírito,
teriam uma obra recreativa, pois seu trabalho seria consumido somente em intervalos
de horas de descanso e/ou uma obra moralista uma vez que prazer e ócio são
elementos mal vistos nesta sociedade porque considerados causas dos piores males
sociais e sempre são reiteradas as vantagens da virtude. Não há, por exemplo,
construções de teatro como não há prostíbulos. De todas a artes, a música é a arte
preferida, e mesmo assim como entretenimento. O motivo da ignorância na literatura
é desconhecido, mas explica-se: a utopia é regida mais pela razão que pela
imaginação e para seus autores é antes uma comparação proposital capaz de explicar
o estágio de degradação moral pela situação de crescimento econômico da Europa,
utilizando a mesma estratégia de Platão ao contrastar Atenas à Atlântida.
Nota-se ainda que Platão se faz presente em pelo menos duas passagens
argumentativas do livro: 1) A menção do personagem Rafael Hitlodeu para o conceito
de rei-filósofo fazendo questão de se referir no fracasso pessoal de Platão em relação
ao ocorrido em Siracusa quando quis colocar em prática seu projeto de sociedade56;
2) A tarefa do próprio personagem, que consiste em mostrar aos presentes, que
56 MORUS, 1972, p. 191.
64
57. Que o
fracasso de pôr em prática uma sociedade idealizada seja lembrada por Morus isso
se reflete e se conscientiza no próprio título do livro Utopia, neologismo cujo
significado se traduz por não-lugar (do grego - ) enquanto estratégia para
afirmar que as ideias contidas ali são inócuas, isto é, produtos supostos da
imaginação, para amenizar o objetivo do livro: as fortes críticas sociais da primeira
parte e que ainda atravessam a segunda. Sobre esta característica estrutural híbrida
(ora ficcional e ora teórica) da Utopia, mostra-se como fruto do que se formatou desde
suas origens. Trousson no livro Voyages aux pays de nulle parte, dirá:
ganisation politique apparaît en Occident dès le V siècle av. J.-C. et, comme en autres domaine sommes redevables. Le traité théorique a précédé la mise en forme plus ou moins romancée, qui se multipliera surtout à partir du IV siècle. (TROUSSON, 1975, p31)
dra-de-
literatura para o problema da relação entre literatura e mundo. Embora os exemplos
do livro Heterocósmica: fición y mundos posibiles, não tratem das utopias, Lubomír
Dole el, um dos estudiosos mais interessados no problema, vai introduzir o conceito
mundos ficcionais, todos seus elementos inclusive nomes e referencias reais
fazem parte da ficção, isto é, daquele mundo específico e não do nosso, pois atende
DOLEZEL, 1999,
p.52) e estas podem ser tanto uma máxima, quanto aspectos que vão desde uma
reflexão até ensaio.
romance de Defoe, Robinson Crusoe, quando o personagem começa a escrever suas
meditações, que são enunciados sobre o mundo concreto e, portanto, permitidos de
57 Vossa imaginação não poderia fazer ideia de uma tal república, ou dela tem apenas uma ideia falsa. Se tivésseis assistido ao espetáculo de suas instituições e de seus costumes, como eu, que lá passei cinco anos de minha vida, e que não me decidi a sair senão para revelar esse novo mundo ao antigo, confessareis que em
65
(idem, p49).
No jogo entre faculdade racional de organizar nosso mundo e faculdade
imaginativa de organizar um mundo ficcional comumente são entendidas as utopias
literárias como grandes ensaios filosóficos, e, no entanto, estes ensaios não têm
referências empíricas (são u-topias), uma vez que isto ocorra não se pode falar que
são nem verdadeiros nem falsos. Em Defoe os enunciados que podem ser verificados,
surgem com um personagem que medita o mundo concreto deste dentro do ficcional;
em Morus ocorre que estando dividida em duas
efeito é procurado porque sendo um gênero híbrido que surge com a reflexão filosófica
cristalizada por Platão o empírico é deixado de lado em favor do racional, isto é, do
Ideal. Estas sociedades ideais, embora abstratas, correspondem a uma vontade de
mudança e costumam fazer bons retratos da realidade social através dos tempos
como se percebe desde a antiguidade.
Ora, é exatamente este filósofo grego quem introduz a confusão de encarar a
literatura como mimesis do mundo. Uma breve análise do íon confirma as primeiras
intenções platônicas (não obstante a República deixar clara). Estrategicamente o
diálogo é levado ao interlocutor de Sócrates admitir por reductio ad absurdum que sua
arte e a de Homero são inferiores às outras. No entanto - está é a sutileza - a redução
só é dada se se admite previamente que a literatura espelha o mundo. Premissa
equivocada colocada pelo filósofo grego, a de que literatura é cópia do mundo,
transforma em um só movimento a poesia de Homero em inferior à prosa filosófica,
capaz de explicar efetivamente o funcionamento do mundo.
Morus, na modernidade, aceita passivamente os pressupostos platônicos no que
diz respeito a um lugar que nem é empírico nem ficcional, porém ideal e aceita
igualmente a doutrina cristã, embora há uma tentativa de tornar sua ilha mais tolerante
em religiões; em essência ainda guarda muito resquício
Utopia] catecismo religioso: A alma é imortal: Deus, que é bom, criou-
(MORUS, 1972, p.251). Ora, o conhecimento da sociedade justa se dá por uma
revelação do personagem que não por acaso se chama Rafael, pois no imaginário
cristão contemporâneo do autor e de seus leitores é nome do arcanjo simbolicamente
66
quando a configuração do mundo se modificaria em definitivo. A Utopia se insere na
ideologia do Juízo Final.
É ainda a mesma ideologia religiosa que permite estabelecer uma ponte entre
as ilhas Utopia e Nova Atlântida, de Francis Bacon. Publicado em 1624, o livro Nova
Atlântida narra um local que muitas vezes é confundido com um lugar sagrado58.
Embora desconhecido da civilização, a religião cristã está presente; deixa assim uma
mensagem clara de hegemonia e universalidade da Igreja (tal como em Utopia). Os
tripulantes, incluindo o narrador, são intimados a confessarem se haviam derramado
sangue para então poderem ingressar na ilha, rememorando um dos requisitos para
ingressar no Paraíso.
Por sua vez, o Dicionário de Lugares Imaginários, de Alberto Manguel e Gianni
MANGUEL E GUARDALUPI, 2003, p.39). A sociedade utópica de Francis
Bacon difere de Morus na medida que está em íntima ligação com seu projeto de
filosofia, isto é, com o desenvolvimento da ciência e da técnica. Projeta-se nela estes
dois pilares que, junto com a religião cristã, são os responsáveis pelo seu sucesso e
avanço moral. A Nova Atlântida é um grande laboratório científico e estaria de acordo
com o sonho baconiano: a dominação, sem restrições, da natureza. Tanto assim que
nela se cria artificialmente modos de manipular espécies de plantas e animais59,
produzir luz60, invenções semelhantes a telescópios e microscópios61, entre outras.
Aqui já existe o gérmen da ficção científica, que em grande parte são constituídas as
distopias. No que se refere aos poetas, Bacon afirma a presença e importância, nesta
de quem compôs (pois eles têm excelentes poetas), e cujo tema é sempre a
glorificação de Adão, Noé, Abraão, pois os dois primeiros povoaram o mundo e o
BACON, 1997, p. 240). Como não há outras passagens em
que mostre a função diferente, resume-
vínculo religioso, isto é, um vínculo temático moralista-filosófico. Note-se que Adão faz
58
-nos
59 BACON, 1997, P. 247 60 Idem, p. 250. 61 BACON, 1997, P.250
67
referência ao Éden, enquanto Noé ao Dilúvio: duas configurações de mundo que estão
ligados ao castigo divino por desregramento do homem.
São leis que constituem estas sociedades, considerados avanços sociais:
felicidade; bem-estar coletivo; controle e organização; privação do vício e da
ociosidade. Para isso, deve-se privar a liberdade coletiva e deixar-se guiar somente
pela razão - elas mesmas leis da razão e do bom senso. René Descartes, o fundador
da filosofia moderna, chega mesmo a dizer na segunda parte do Discurso do Método:
(...) vê-se que os edifícios empreendidos e concluídos por um só arquiteto costumam ser mais belos e melhor ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar, fazendo uso de velhas paredes construídas para outros fins. Assim, essas antigas cidades que, tendo sido no começo pequenos burgos, tornaram-se no correr do tempo grandes centros, são ordinariamente tão mal compassadas, em comparação com essas praças regulares, traçadas por um único engenheiro à sua fantasia numa planície, que, embora considerando os seus edifícios cada qual à parte, se encontre neles muitas vezes tanta ou mais arte que nos das outras, todavia, a ver como se acham arranjados, aqui um grande , ali um pequeno, e como tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que foi mais o acaso do que a vontade de alguns homens usando a razão que assim os dispôs. (negrito nosso, DESCARTES, 1983, P.34 )
Esta analogia corresponde à própria atividade do pensamento filosófico
moderno, que abdicava utilizar velhos argumentos e notadamente à prática do
argumento de autoridade apoiados em ruínas dos antigos em favor de uma atividade
demolidora e nova: a revisão crítica dos pressupostos que organizam o pensamento
(ligados, agora, ao cogito ergo sum). Publicado em 1637, o Discurso fundamenta as
construções utópicas por dois motivos: 1) Uso da razão; 2) crítica da organização
social. por um único engenheiro à sua fantasia bem
como o edifício filosófico garantiriam uma ordenação, pois atenderiam a um telos
em que o sujeito moderno poderia previamente definir seu destino de pensar e de agir
com vistas a um bem maior; e uma vez no século XVI, com alguma moral religiosa, já
que a religião católica ainda tinha força.
O livro A Cidade do Sol, de Campanella, publicado em 1623, confirma isto ao
descoberta filosófica e da razão humana para demonstrar que a verdade do
CAMPANELLA, 1973, p.274). Nesta sociedade,
68
Campanella reafirma os ideais da utopia, respondendo a objeções que surgiriam da
leitura dos padres.
Enquanto More procura na medida do possível criticar a Igreja, o italiano
reafirma o caráter utópico da própria Igreja católica, com um acréscimo: o
conhecimento astronômico, que é um diferencial de seu espaço imaginário. Nela os
poetas estão mais presentes que nas outras e em várias situações sociais: serve como
digno da nobre arte de poetar quem, nas suas fantasias, faz entrar a mentira, sendo
esse abuso julgado uma das maiores pestes do CAMPANELLA,
1973, p.264). Novamente, este modelo de sociedade imaginária inibe os poetas e pelo
mesmo motivo, desde Platão. A poesia está restrita e controlada porque a desmedida
não é uma virtude e sim um vício elemento combatido e principal inimigo das utopias.
Para existir precisa estar a serviço de um fim estranho ao seu modo espontâneo e
vital, romper seu elo magnético qualquer que seja a fonte de inspiração ou motivação.
O período moderno, que se segue após a idade média, substitui a onipresença
de Deus pela onipresença da Razão, desse modo substitui também nas narrativas os
locais imaginados da religião (Paraíso cristão e egípcio, Éden, Terra Prometida, entre
outros) pelas utopias, que são espaços terrenos, ou melhor, ambíguos, ao menos no
que se refere às estas três obras pioneiras: Utopia (1516), A Cidade do Sol (1623) e
Nova Atlântida (1624).
que essa república, como o século de ouro, é desejada por todos e ordenada por
Deus, quando pedimos que a sua vontade seja feita assim no céu como na terra(negrito nosso, CAMPANELLA, 1973, p276) Todas elas são locais de virtudes onde a
imaginação está a serviço da razão: combatem o ócio, a preguiça, o prazer fácil e o
vício (justos os elementos que caracterizarão a cocanha)
MORUS, 1972, p.242),
essas folgas em so CAMPANELLA, 1973, p. 257), e finalmente
ou que tomaram
p.238). Desse modo está claro o quanto estas
sociedades ideais expressavam um desejo de co
a causa dos vícios e corrupções.
69
Note, por fim, o locus da epopeia, passando por Virgílio, acaba se transformando
em locus lírico-bucólico e o locus do relato bíblico (Paraíso, Éden), passando pela
cocanha, acaba se transformando na poesia moderna de Baudelaire em locus que
descreve uma personalidade. Tanto partindo da tradição pagã quanto cristã
apresentamos uma evolução do tópico que chega sempre à forma lírica e nela
assumindo as melhores configurações poéticas. O início da modernidade pelas
utopias - também quis narrar um locus e acabou por cedendo matéria e espaço para
a poesia lírica, a exemplo do poema Vou-me embora pra Pasárgada.
70
Capítulo 3
Manuel Bandeira em Pasárgada
Na poesia de Manuel Bandeira confluem várias escolas estilísticas. Demonstra
isso o trabalho de Yudith Rosenbaum (2002) identificando parnasianismo, simbolismo,
penunbrismo, as vanguardas europeias e o nosso modernismo brasileiro. Joaquim-
Francisco Coelho (1982) identificando-as primeiro preferiu acreditar em superação
ismos a que teria chegado o poeta, com isso orienta seu relevante ensaio
Manuel Bandeira Pré-modernista a partir da análise dos temas em relação às formas
que assumem62 (Rosenbaum da mesma maneira63 e também Davi Arrigucci Jr64),
porque a este método foi permitido demonstrar muita da complexidade a que Bandeira
chegou, inclusive dificultando seu lugar específico na literatura brasileira (Mario de
Andrade no entanto o toma 65 pela
capacidade de sair do lugar-comum (e incluímos aqui as escolas e movimentos) para
construir lugares incomuns.
Assim como é importante o reconhecimento do verso-livre, entre outros
procedimentos formais, , em especial do parnasianismo, no
terreno temático também podemos verificar sínteses insuspeitadas porque
escondidas sob diversas maneiras para ganhar em significado, apesar da aparente
simplicidade que buscou por efeito. Do objeto de nossa reflexão, Vou-me embora pra
Pasárgada, presente no livro Libertinagem (1930), o mais caracteristicamente
moderno, é o próprio Bandeira em carta a Mario de Andrade quem vai afirmar:
62 -se, desde o princípio, a exegese conteudística e a análise do estilo, a radiografia da forma interna com a da externa, uma vez que os conteúdos (...) só adquirem sentido pleno e totalizador quando se integram, no limite, a formas fun 63 nela ainda inexploradas, esta pesquisa visa contribuir para a compreensão do poeta, propondo uma leitura temático- 64 Tomando um traço distintivo da forma de expressão madura do poeta a simplicidade natural -, ele [o livro Humildade, Paixão e Morte: a poesia de Manuel Bandeira] investiga as relações desse traço estilístico com a atitude de humilde diante da vida e da poesia, tentando descobrir, (...) sua significação, o que equivale a ler seus significados dentro de um determinado horizonte de sentido, onde a morte surge como limite e sanção enigma
2003, p.15) 65 P.280
71
Libertinagem 66. Esta ironia de
fundo (dos conteúdos, dos temas) é o que veremos a seguir nesta segunda parte da
dissertação.
Nos situamos ainda na tradição temático-estilística que é a mais precisa para dar
relevo à insuspeita complexidade dos recursos materiais utilizados, oferecendo na
medida do possível uma revisão embasada nos debates da tematologia e procurando
demonstrar quanto um afastamento total ou parcial dessa linha de pesquisa provoca
distorções da crítica literária e consequentemente para o entendimento da literatura e
sua teoria.
A poesia, própria para condensações como falava Ezra Pound, é capaz de dar
novo significado e de renovar de maneira mais profunda a literatura, no entanto, não
prescinde dos temas tradicionais, ainda que em uma configuração jamais
experimentada, oferecendo seu mapa em Pasárgada.
Uma vez que nossa argumentação nem sempre seguiu a ordem cronológica de
apresentação do poema, achamos por bem colocá-lo na íntegra aqui para o leitor
apreender no todo e com uma numeração de todos os versos para referências (o
poema retiramos do livro Poesia Completa e Prosa, da Editora Nova Aguilar, 1986
p.222 e que corresponde, sem alterações, ao publicado em Estrela da Vida Inteira, da
Editora Nova Fronteira, 1993, pp. 143-144):
1 Vou-me embora pra Pasárgada
2 Lá sou amigo do rei
3 Lá tenho a mulher que eu quero
4 Na cama que escolherei
5 Vou-me embora pra Pasárgada
6 Vou-me embora pra Pasárgada
7 Aqui eu não sou feliz
8 Lá a existência é uma aventura
9 De tal modo inconseqüente
10 Que Joana a Louca de Espanha
66 p.415. cartas.
72
11 Rainha e falsa demente
12 Vem a ser contraparente
13 Da nora que nunca tive
14 E como farei ginástica
15 Andarei de bicicleta
16 Montarei em burro brabo
17 Subirei no pau-de-sebo
18 Tomarei banhos de mar!
19 E quando estiver cansado
20 Deito na beira do rio
21 Mando chamar a mãe-d'água
22 Pra me contar as histórias
23 Que no tempo de eu menino
24 Rosa vinha me contar
25 Vou-me embora pra Pasárgada
26 Em Pasárgada tem tudo
27 É outra civilização
28 Tem um processo seguro
29 De impedir a concepção
30 Tem telefone automático
31 Tem alcalóide à vontade
32 Tem prostitutas bonitas
33 Para a gente namorar
34 E quando eu estiver mais triste
35 Mas triste de não ter jeito
36 Quando de noite me der
37 Vontade de me matar
38 Lá sou amigo do rei
39Terei a mulher que eu quero
40 Na cama que escolherei
41 Vou-me embora pra Pasárgada.
73
3.1.
A primeira estrofe do poema Vou-me embora pra Pasárgada possui todos os
manuscrito enviado a Mario de Andrade ao publicado em 1930, Marlene Gomes
Mendes descreve dez mudanças, entre elas as que tornam implícito o sujeito dos
versos 13, 14 e 1967
não teria sido bem sucedido - é ele próprio-, confirma anos depois o título de sua
autobiografia Itinerário de Pasárgada que remete a este poema. Assim inicia o poema:
1 Vou-me embora pra Pasárgada
2 Lá sou amigo do rei
3 Lá tenho a mulher que eu quero
4 Na cama que escolherei
Sabe-
em um certo confessionalismo. Hugo Friedrich em Estrutura da Lírica Moderna dirá a
moderna, pelo menos no sentido que a palavra lírica já não nasce da unidade de
poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos, em contraste com
a líric 68 (p.36). S
há nenhuma só que possa explicar-se em sua própria temática a base de dados
impossível porque o significado integral depende de informações sobre a pessoa
empírica do poeta do contrário ler-se-ia os versos da terceira estrofe (14, 15, 16, 17 e
18) como atividades da infância sem que isto represente algo maior. Desse modo
edora de ações insignificantes para o homem
normal, mas que para Bandeira correspondem à sua aspiração mais profunda de
CARVALHO E SILVA, 1989, p. 449) e Ribeiro Couto entende que
67 p.152, Manuscritos de Bandeira In: Manuel Bandeira, Verso e reverso. 68 Hugo Friedrich ignora a fundamentação hegeliana, uma vez que Hegel observava que a produção lírica não necessitava da pessoa empírica. ver citação da página 17.
74
Pasárgada, somente em Pasárgada, ele iria encontrar a felicidade, satisfazendo
,1980, p.58).
Algum leitor talvez perceberá que se tratam de faltas bem maiores ausências,
para usar termo de Rosenbaum daquela vida inteira que podia ter sido e que não
foi o poema Pneumotórax e não uma mera recordação factual que na
continuidade da estrofe passa a existir a partir da evocação de Rosa (personagem
real) depois do interstício fantasioso, a mãe-d'água (personagem mítica), que lhe
serve de ponte entre um momento e outro sem que se abra outra estrofe - tornada a
mais longa do poema.
Este tipo de ponte cujos enjambement (cavalgamentos) não se abriram para
estrofes tem um motivo. Roberto de Oliveira Brandão ao analisar de perto o poema
Poética - Não quero mais saber do lirismo que não é
(LOPEz, 1987, p.28). Poderia
o poeta, por exemplo, ter separado por um enjambement e formado dois versos com
isso, mas sequer conseguira expressar a fusão simplesmente dizendo; fê-la contudo
em um verso único para oferecer a ideia também de modo visual. Poética idêntica se
faz presente não por menos em Vou-me embora pra Pasárgada criando uma fusão,
agora, entre fantasia e recordação na mesma estrofe.
Mas Bandeira nem deve ser considerado um romântico ainda. Se a autobiografia
fornece elementos factuais sem os quais seus leitores não poderiam compartilhar a
exata visão do poeta, então o tema do lugar ameno serve como catalizador de tudo
aquilo que poderia ser preenchido pelo sonho.
Gosto desse poema porque vejo nele, em escorço, toda minha vida; e
também porque parece que nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e
promessa de minha adolescência essa Pasárgada onde podemos viver pelo
sonho o que a vida madrasta não nos quis dar. (BANDEIRA, 1986, P.80)
em escorço -
procedimento artístico da pintura que consiste em tornar próximo uma imagem ou
75
objeto distante - só existirá caso saibamos um aspecto essencial de sua vida (a
condição de tísico), abstraída no entanto pelo conceito universal de ausência, falta,
impossibilidade, e sintetizadas agora em uma temática única - a um só tempo vida e
obra - em Pasárgada. Para Emil Steiger a biografia também será dispensável para
gênero lírico, partindo da experiência da leitura:
ensejo de muitas de suas poesias. A ele aliam-se na mesma tarefa seus estudiosos,
zelosos em contribuir com o método. Essas canções, porém, dispensam qualquer
fundamentação. E devem dispensá-la, já que o poeta não conscientiza a
procedência de sua inspiração. Além disso podem fazê-lo, pois são de imediato
compreensíveis através do texto. Compreensão imediata e não graças ao
relacionamento feito pelo leitor com fato semelhante de sua existência. (STEIGER,
1972, p.48)
A fundamentação para Manuel Bandeira não é dispensada, pelo contrário, em
Itinerário de Pasárgada ele liga propositadamente vida com obra e se utilizamos estes
dados aqui é menos para confirmar um zelo com o método do que informar que a
relação existe ainda em uma poesia caracteristicamente moderna ao menos no
Brasil.
Um caso exemplar tiramos da primeira fase de Bandeira quando, no primeiro
livro A Cinza das Horas (1917) - ainda não caracteristicamente moderno - declara em
Desencanto
(BANDEIRA,1986,P.119), indicando busca por familiaridade, proximidade, tanto que
-
parente e diante de confissão secreta. Para E. Steiger, com razão, alguns fatos
particulares podem ser abstraídos sem prejuízos na leitura e um fato tão particular de
Bandeira é tornado geral uma vez que todos morrem e todos têm algum motivo para
pranto, nem claramente exige que o motivo seja o mesmo; contudo, somente
ao relacionamento feito pelo leitor com fato semelhante de
Bandeira irá cada vez mais vai construindo suas obras e exemplo disso é o poema
Pneumotórax, do livro Libertinagem. Igualmente Vou-me embora pra Pasárgada
procura fundamentar sua obra na vida.
76
Note-se que há uma diferença entre descobrir aspectos biográficos dentro da
obra para explicá-la como fizeram os críticos naturalistas com Machado de Assis do
constatar que o autor faz uso consciente de sua biografia para transformar em obra
literária - tematizando a si. Desse modo, afirmar que Machado constrói frases curtas
porque seria epilético não é o mesmo que entender naquele mesmo poema o uso dos
soluços e tosses de quem morre. Assim, sobre o livro Libertinagem, Mario de Andrade
(BRAYNER, 1980, p.193).
Logo na abertura do seu primeiro livro, o poema Epígrafe também tem teor
biográfico e expressa-se assim:
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Este trecho remete exatamente àquele primeiro do Vou-me embora pra
Pasárgada. Note-se no entanto a diferença: Em Epígrafe, a infância e juventude
encontram- - já
adulto -
ou
1989, p.45).
Em outras palavras, é menos uma volta a infância para revivê-la exatamente
igual e mais recuperação das atividades normais, da saúde perfeita, tanto assim que
disso, percebe-se o avanço
de tratamento da infância do primeiro livro ao terceiro livro indo de uma simplicidade
do material biográfico apenas a todo tipo de aproveitamento de materiais temáticos e
procedimentos que emergem e submergem sem que haja precisão de seus limites
(cocanha, utopia, locus amoenus
refere na carta a Mário de Andrade.
77
O que se vibra em uníssono e emerge em Vou-me embora pra Pasárgada caso
o leitor desconheça totalmente sua biografia como quer E. Steiger é somente um lugar
imaginário (e utópico/mítico) antes de qualquer exploração da geografia interior (e
biográfica).
E, no entanto, perderá tanto o efeito de ironia cruel que é colocada justamente
pela falta de dados biográficos, quanto a dimensão imaginativa que é aumentada por
esta falta: seu interior é o fundamento mais profundo para a criação deste lugar
imaginário, ao contrário das utopias modernas que buscam fundamentos exteriores:
sociais, políticos. Pode-se, de fato, entrar e sair do poema sentindo apenas um esboço
de utopia, rememorações vagas, e sequer vai perceber um locus amoenus que muda
seu sentido em contato com a temática da cocanha e que não somente está no poema
como é o poema. Senti-lo é perceber seu fundamento.
Se a l
que se pode conhecer o futuro passo da neutralização da pessoa para a
FRIEDRICH, 1987,
p.37), seguindo a trilha deixada pelo filosofo espanhol Ortega y Gasset.
No seu livro A Desumanização da Arte, publicado em 1925, o filósofo observava
ser humano empírico na obra ao
público pelo que havia de humano, de real, na peça; um quadro pelo que o
contemplador reconhecia uma figura familiar; um poeta por seus sentimentos íntimos.
No entanto, a nova arte europeia das vanguardas trazia um elemento radicalmente
diferente. Se afastavam do empírico - do romantismo, do realismo - para focalizar na
arte mesma, nos seus procedimentos, nos seus efeitos per si, ,
chegar-se-á a um ponto em que o conteúdo humano da obra será tão escasso que
, 2001,
afastamento do humano de seu reconhecimento imediato - para afirmação do
-se nesta
constatação de Ortega y Gasset.
78
Sendo Manuel Bandeira referência constante da vanguarda brasileira
(Libertinagem é de 1930), verifica-se que este poeta busca conciliar tradição e
modernidade.
3.2. Lirismo dos clowns
Flávia J. F. Goyanna, por exemplo, no seu trabalho intitulado O lirismo anti-
romântico em Manuel Bandeira mostra alguns aspectos (metapoema,
intertextualidade, experiência com o concretismo, desmitificação) que o desvincula um
pouco d
e subjetivos. Desenvolvemos dois deles cuja presença identificamos também no
poema estudado69 e acrescentamos mais um descrito pelo filosofo espanhol: a ironia.
Comecemos por esta:
A primeira consequência que traz consigo esse reconhecimento da arte sobre si
o caráter grave anexo à vida. Às vezes, pretendia nada menos que salvar a espécie
humana em Schopenhauer e em Wagner. Pois bem, não é de estranhar, a quem
pensa sobre ela, que a nova inspiração é sempre, inexoravelmente cômica.
(ORTEGA, 2001, p.76).
pathos, ou
seja, paixão, sentimento, e assim a identificação destes com seus leitores,
espectadores, criando um sentimento de humanidade, de proximidade; enquanto que
rém o artista de hoje [1925], diz Ortega, nos convida a
ORTEGA, 2001, p.76), isto é,
apresenta uma certa frieza e afastamento ao falar de seus próprios sentimentos,
porque o contato da ironia permite-lhe isso, como observa Henri Bergson:
69 Sobre metapoema ou metalinguagem de Vou-me embora pra Pasárgada
como consequência desses.
79
A indiferença é seu meio natural. O riso não tem maior inimigo que a emoção. Não
quero com isso dizer que não podemos rir de uma pessoa que nos inspire piedade,
por exemplo, ou mesmo afeição: é que então, por alguns instantes será preciso
esquecer essa afeição, calar essa piedade. (BERGSON, 1983, p.3)
A entrada em Pasárgada lhe tiraria (e aos leitores) a gravidade de
pensamento/sentimento para uma felicidade única que desde Poética estava prescrita
clowns
falam de Joana, a Louca (8, 9, 10, 11, 12,13) é justamente fazer rir seu leitor por se
tratar de um absurdo incomensurável, uma heresia monárquica, um desvio de foco
imediato para a zombaria, tanto porque Pasárgada é uma Cocanha.
Muitos críticos já averiguaram o tom de humor em Bandeira ele mesmo admite
esta presença70. Sônia Brayner, por exemplo, ao analisar o Balada das três mulheres
do sabonete Araxá humour que injeta em seus poemas vai corresponder a
uma transformação de óptica frente à razão e à emoção, dispondo-se criticamente a
contemplar e a aceitar essa reconciliação dos contrários tão própria à faculdade de
, 1987, p. 42, ).
São reconciliações de nosso poema: jovem e adulto, fantasia e recordação, amor
e morte, felicidade e tristeza - e t
- os os
CARVALHO E SILVA, 1989, p.89) - possibilitados pela separação
, Bandeira revela sua consciência crítica e especialmente
irônica nos momentos de maior confessionalismo (suicídio e amor, por exemplo)
justamente nesses momentos. Ele inicia o poema com sentimentalismo, mas na
segunda estrofe se afasta para a fantasia (Aqui eu não sou feliz / Lá a existência é
uma aventura) e na estrofe final (34-41) onde volta a ser sentimental, porém finaliza
com o verso da promessa feliz de Pasárgada.
70 -se livremente
1980, p.43).
80
- ao
entrar - se reverte agora no olhar, tanto dele quanto seus leitores, sob aspectos de um
ada
é um aqui no poema, na poesia, onde pode se autodeterminar e possuir coisas que,
Torna-lhe uma ironia pelo que há de quixotismo, de clown71 neste movimento
puramente imaginativo. S. Brayner dirá humour em Manuel Bandeira é uma
estratégia intelectual diminuidora da emoção de herança romântica, em que o topos
BRAYNER, 1980, p.46).
Por este viés de ligação com o humour, e, portanto, de afastamento onde
também pela fantasia o humano é afastado, indica uma função estética, pois
é deformar (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 47). Mas, antes de
resolver a questão, convém aprofundá-la, buscando agora o lugar especifico de
(sentimentos íntimos) de outro modo. Nosso próximo exemplo parte de uma hipótese
que tem como base a ideia geral presente no livro Obra Aberta, quando o teórico
italiano Umberto Eco indica:
Examinemos agora a oração "Aquele homem vem de Baçorá". Endereçada a um habitante do Iraque, ela teria, mais ou menos, o mesmo efeito da frase sobre Milão dita a um italiano. Dita a uma pessoa absolutamente ignorante, que desconheça por completo a geografia, poderá deixá-la indiferente, ou quando muito curiosa, perante este impreciso lugar de proveniência, ouvido pela primeira vez, que provoca em sua mente uma espécie de vácuo, um esquema referencial falho, um mosaico des1991)
ainda que seja um leitor erudito capaz de identificar estes locais do oriente à história
71 Diz Ortega y Gasset sobre o fenômeno da desumanização em relação à menos violenta e correrá desde a franca clowneria 2001, p. 76)
81
mundial não é a ela que o poeta se refere. Assim não é Pasárgada de Ciro72 que se
faz presente, contudo uma verdade maior ao qual indicamos por lugar imaginário,
surgido do sonho e da fantasia. Melhor: é um mundo interior. Importa também notar
aquilo que Maria Julieta observou em Bandeira:
é conhecido, aliás, o fascínio que certas palavras estranhas ou divertidas sempre
ensinando-lhe vocábulos cujo significado o menino desconhecia, mas cujo som,
esvaziado de conteúdo intelectivo, o encantava. Assim, por exemplo, braggadoccio
ou protonotário ambos valorizados por ele em curiosos poemas lúdicos.
(CARVALHO E SILVA, 1989, p.447)
esvaziadas) de conteúdo intelectivo mas plenas de conteúdo emocional e
recordações; estabelece uma ressignificação, que Haroldo de Campo também já
notara em outros poemas73. Assim, ao falar das palavras até então imprecisas, U. Eco
explica como se dá o estético:
O que estabeleceu a passagem ao estético? A tentativa mais decidida de unir um elemento material, o som, a um elemento conceitual, os significados postos em jogo (...). Seja como for, diante dessa mensagem, o receptor é levado não somente a individuar para cada significante um significado, mas a demorar-se sobre o conjunto dos significantes (nesta fase elementar: degustá-los enquanto fatos sonoros, intencioná-los enquanto "matéria agradável"). Os significantes remetem também - se não sobretudo - a si mesmos. A mensagem surge como auto-reflexiva. (ECO,p79, 1991)
72 Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em Xenofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropedia e não encontrei a passagem. O douto Frei Damião Berge Informou-me que Estrabão e Arriano, autores que nunca li, falam na famosa cidade fundada por Ciro, o antigo, no local preciso em que vencera a Astíages. Ficava a sudeste de Persépolis. 73
liberar o objeto que nos é familiar do automatismo perceptivo e vê- BRAYNER, 1980, p.282-283).
82
No caso de
estapafúrdio 74 que acompanhou a gênese do poema. O que existe de lugar histórico,
existe na medida em que lemos em Itinerário de Pasárgada um momento que revela
que é uma palavra rememorada da adolescência; logo, um aspecto pessoal que U.
Eco, entretanto, acredita não ser excludente ao estético. Se Bandeira tem motivos
para ligar Pasárgada a um significado emocional de recordação juvenil, enquanto o
leitor desconheça por completo este aspecto biográfico, no entanto, eles estão
refletidos no poema, isto é, no que ele tematiza (14 -25); por ser uma obra aberta, a
- para
cada receptor: afetivo, histórico, simbólico75, estético, a depender do que o leitor
carregue de bagagem cultural.
Assim, a um leitor que desconheça a biografia e a tradição da Cocanha, ver-se-
á possivelmente uma utopia lato senso, um lugar imaginário tão somente; àquele de
posse do itinerário de Pasárgada uma geografia interior; e ao leitor erudito, de posse
de todas as fontes temáticas pelas referências justapostas completas, o mapa-
palimpsesto s horizontes
de referência de seus próprios leitores dos mais comuns aos mais exigentes.
as diversas conotações que podem ser atribuídas e, por isso mesmo, sejam atributos
do poema. E. Steiger tem razão quando fala que a biografia pode ser irrelevante para
alguns, mas não pode parar aí quem quiser demonstrar a complexidade de
significados e conflitos que surgem com seus temas. Ortega y Gasset ao pretender
explica o fenômeno da
é devedor e assim só fazem repetir uma época precedente apenas invertendo a noção
de Hegel, para quem a lírica atinge seu ápice com seu vínculo subjetivo, a um vínculo
unicamente objetivo. Nos filiamos, portanto, ao U. Eco quando propomos que
74 num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou- -me Embora pra
-lo mas fracassei. , 1986, P80) 75 Beatriz Berrini, por exemplo, observa bem quando diz a respeito de Pasárgada ser geograficamente localizado no oriente, revelando um simbolismoperdido, colocando-o mais ou menos próximo aos espaços familiares, onde se desenvolveram, para depois decaírem, as antigas civilizações mediterrâneas, nas vizinhanças do mare nostrum 1997, p.15).
83
Pasárgada pode ser revisitada quantas vezes um sentido puder ser revelado na
formação de seus temas.
Longe de excluir o conteúdo emotivo que é caro para Bandeira, o leitor pode
reconstruir os passos do mesmo através de sua poética, isto é, pela forma como ele
em escorço).
Repare que a gênese explicada em itinerário de Pasárgada para este poema em
76 77. Aos dois modos extremos - trabalho e
inspiração -, quer indicar e confundir a presença dos dois processos no poema.
Até agora situamos seu lugar entre os debates sobre a lírica moderna e em
,
mostraremos mais de seu virtuosismo formal e de organização de seus temas e
como em Ortega y Gasset, e também do poema inserido na poética modernista.
Qualquer caminho mais radical que se adote é um empobrecimento de seus traçados
no mapa, vamos encontrar Pasárgada sempre mesclada entre mundo exterior e
mundo interior.
3.3. Amigo do rei
ou uma autoreferencialidade, mostram caminhos curiosos. Na tese Tão Brasil, Mara
Ferreira Jardim indica um certo modo de ser brasileiro, que se expressa 78
demonstra certo caráter cordial que outorga privilégios sempre àqueles mais próximo
das autoridades. Mas a própria pesquisadora sente dificuldade em vincular uma tese
sociológica ao que Bandeira está dizendo no todo, pois os privilégios que o poeta
deseja não são de cunho material ou econômico senão amorosos e sentimentais,
76 BANDEIRA, 1986, P.80. 77 idem 78 JARDIM, 2007, p.132
84
além disso como se explicaria isto no contexto do poema? O elemento buscado
(prostitutas bonitas) se justifica por outra temática objetiva mais evidente em
determinada tradição literária: a cocanha.
Quanto a autoreferencialidade, por um esquecimento formal, ignora-
busca rimar - imperfeitamente com escolherei, e depois farei, andarei, montarei, subirei, tomarei, verbos estes todos ligados a ações que Bandeira, por sua condição
de doente, não poderia executar senão imperfeitamente.
-
se, já que não pode fazer isso em sua vida, no tempo verbal do poema, desse modo
- Futuro do presente
conquistado pela rima; em outras palavras, o poeta, na impossibilidade de tísico, se
realiza nas rimas (é amigo delas) e por isso pode de fato executar coisas que não
poderia no cotidiano senão imaginando, realiza-se e sendo poeta.
De todo modo, longe de falsear esta interpretação da autora, para nossa
argumentação demonstra-se a formação de um tema aos diversos leitores e como
podem ser fluidas caso sigam uma trilha ou outra daí a abertura de horizontes. Por
tematizar daquela maneira ou de outra é necessário justificá-las encontrando
evidências que o próprio texto ofereceria, isto é, um sentido. Beatriz Berrini, por
Rei, entretanto, conduz o leitor para um outro universo, o das
histórias ouvidas na infância, relatos povoados por seres misteriosos, dotados de
1997, p.156).
Esta concepção parece se justificar melhor no contexto do poema, pois Bandeira de
fato a tematiza:
21 Mando chamar a mãe-d'água
22 Pra me contar as histórias
23 Que no tempo de eu menino
24 Rosa vinha me contar
Que o tema venha externamente ou internamente, como dizemos na primeira
parte do trabalho, deve ser evidenciada a função artística e estética, caso contrário
seria cômodo e preferível ao poeta escrever um tratado sobre política brasileira e não
85
um poema. Para nós não se trata de um tema político (o da cordialidade), mas de
processos internos e formais da obra em ligação ainda ao subjetivo (biografia).
3.4. Cocanha moderna
Se no tópico anterior, o tema
artístico, a identificação de temas pela intertextualidade exclusivamente linguística
como a de Beatriz Berrini mostra que as partículas á
se relacionaria com o Iá da Canção do Exílio de Goncalves Dias (do
romantismo brasileiro), quando apontam também para o que se está tematizando.
Por um lado, identificamos de fato existirem elementos românticos no poema de
Bandeira ao poeta G. Dias mas
também à tradição do tema da cocanha e utopia. Comecemos pelo primeiro. No
poema de Bandeira, o -de-
está muito bem camuflado entre os outros, é uma chave para a entrada nesse espaço
mítico e irônico de Pasárgada que abriremos agora.
14 E como farei ginástica
15 Andarei de bicicleta
16 Montarei em burro brabo
17 Subirei no pau-de-sebo
18 Tomarei banhos de mar!
Quando o poeta coloca este verso tem plena consciência que remete ao tema
da cocanha, cuja origem está precisamente no significa -de-
-de-sebo aparece
-de-
à origem do p (BERND, 2007,p.124), e quanto ao significado
denotativo, expõe as fontes:
De acordo com o Dicionario eletrônico aurélio séc. XXI (1999), cocanha origina-se
do italiano cuccagna
86
em cujo topo põem-se alguns prêmios, para quem se aventure a ir busca-los [Tb.
se diz apenas cocanha. Sin, bras: pau-de-sebo.] (Idem, p.121)
Abrindo o poema com esta chave, descobrimos o motivo da zombaria e dos
absurdos presentes, pois são características do tema medieval no qual também é
aspecto a juventude eterna. Ora, é a isto que Bandeira se remete em todo o poema:
a juventude. e gozadas
por seus habitantes graças àquilo que o poeta anônimo parece considerar o bem mais
1998, p.110). Esta juventude
pela fonte da cocanha está ligada à própria estética do modernismo brasileiro, quando
Graça Arranha na conferência de abertura da semana de arte moderna de 22 afirma:
toda a regra, de toda a sanção. O cânon e a lei são substituídos pela liberdade
absoluta que nos revela, por entre mil extravagancias, maravilhas que só a liberdade
p283). Bandeira, assim, se vincula à poética do modernismo, neste
poema, via tema da cocanha. Além disso, dialoga Charles Baudelaire que já havia
transformado a cocanha em tema lírico.
suscitou na imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias como o
(BANDEIRA, 1986, p.80)
Tal viagem não está em um lugar concreto, no poeta francês a cocanha é 79. Pode-se dizer algo
semelhante de Bandeira quando agora o país Pasárgada é ele mesmo, isto é, toda
sua vida.
3.5. Outra civilização
79 BAUDELAIRE, P. 225. 2006.
87
Na estrofe quatro o ritmo muda (26-33). O verbo ter (tem) entra em evidência
pela constante repetição que marca este ritmo. Beatriz Berrini, como acima
encontra esta interpretação:
Que é que Pasárgada tem, afinal? Coisas de adulto: processo seguro de impedir a
concepção, permitindo o amor livre de qualquer responsabilidade; tem alcaloide à
vontade, a favorecer as evasões; tem prostitutas...Por tudo isso quer o poeta partir
para Pasárgada. (BERRINI, 1997, p.158)
Assim sendo Bandeira tematiza algo muito diferente do G. Dias que idealizara a
implicações que a autora expõe são
bastante razoáveis no poema chegaram muito próxima da intertextualidade estilística
é também ideal na medida que
representavam uma utopia. Expliquemos melhor.
No conteúdo do poema a Cocanha se equivale a uma das utopias modernas. A
terceira estrofe explorava Cocanha ao seu aspecto de Fonte da Juventude que
ambos tempos (passado e futuro) convergem para o presente de Pasárgada uma vez
-se, no entanto, de uma intertextualidade mais longínqua.
Destaquemos o trecho do poema:
26 Em Pasárgada tem tudo
27 É outra civilização
28 Tem um processo seguro
29 De impedir a concepção
30 Tem telefone automático
31 Tem alcaloide à vontade
32 Tem prostitutas bonitas
33 Para a gente namorar
88
Este trecho trata da utopia moderna de Francis Bacon, cuja civilização perfeita é
composta pelo desenvolvimento técnico-científico. O filósofo empirista sonhava com
(BACON, 1997, p.17). Podemos verificar a intertextualidade de Manuel Bandeira não
apenas no nível temático, de fonte histórica, de ideias, ela é inclusive textual - o que
reforça nossa opinião. Destaquemos agora enxertos da Nova Atlântida (1627), quando
o representante da Casa de Salomão decide mostrar as maravilhas do local, o primeiro
exemplo é do controle reprodutivo de seres vivos (versos 28 e 29), o segundo é um
aparelho que transmite sons (verso 30) e o terceiro de produtos farmacêuticos (verso
31), respectivamente:
Temos ainda parques e cercados e todos os tipos para animais e pássaros (...)
pelos quais procuramos esclarecer tudo o que pode ser feito no corpo do humano.
(...). Fazemo-los mais fecundos e prolíficos que o normal, ou, ao contrário, estéreis
e infecundos. (Negrito nosso, BACON, 1997, p247)
Temos ainda casas de som, onde são experimentados todas as espécies de som e
seus derivados. (...). Temos ainda instrumentos para conduzir os sons em tubos e
condutos a uma grande distância, mesmo em curvas (negrito nosso, Idem, p.250)
Temos também dispensários ou farmácias. E podeis facilmente imaginar que,
havendo aqui uma maior variedade de plantas e criaturas vivas que na Europa,
tenhamos igualmente uma variedade muito grande de ervas medicinais, de drogas
e de outros ingredientes (negrito nosso, Idem, p.249)
Francis Bacon descreve a cada novo parágrafo as muitas maravilhas do local -
não apenas nos nossos exemplos - iniciando-os pelo verbo ter (temos). Desse modo,
Manuel Bandeira indica não somente as fo também imita
a forma como são apresentadas. Com exceção do verso 32 e 33, quando se fala
novamente de prostitutas, proibidas nesta e característica naquela (enquanto
utopia moderna. Aqui o mapa palimpsesto se expande outra vez.
89
O mesmo princípio é válido quando falávamos de Cocanha: a intertextualidade
aponta para a vida do poeta. Se o conhecimento biográfico era necessário naquela,
agora, o conhecimento histórico-social se faz necessário para entender o que a ironia
bandeiriana indica.
A relação entre o poeta e a modernidade que para Walter Benjamin inicia de
modo indissociável com Charles Baudelaire também está em Bandeira. Caso
concordemos com B. Berrini quando propõe um diálogo com Gonçalves Dias, nosso
poeta trataria do tema do lugar imaginário e ideal, isto é, de um locus amoenus
composto unicamente de natureza e de fato podemos encontrar isto nos versos 18 e
19 Tomarei banhos de mar! Deito na beira do rio
descrição natural, as fontes presentes no locus amoenus. Mas a presença da utopia
moderna onde, especialmente em Francis Bacon, ciência e técnica a modificam e
tornam doméstica ao labor dos homens, indica também que este tipo de visão natural
dá lugar ao artificial e à paisagem humana das cidades urbanas: outra civilização.
Implicações que mostram que os temas e topos se modificam com o tempo: do
filósofo que está distante quase trezentos anos à realização quase literal de seu
projeto de lugar imaginado que chega ao Manuel Bandeira e até nós como realidade
efetiva. Assim, enquanto alguns temas têm significados alterados, outros só podem
surgir a partir de determinada época. Baudelaire e Victor Hugo, por exemplo,
medievo porque o fenômeno sequer existia. A utopia moderna que Bandeira faz
alusão mesclando-se à cocanha aponta para a ideologia de seu próprio tempo
histórico, isto é, a modernidade que também oferece seus lugares imaginários, como
ntra problematizado e
discutido.
Dentro de todos estes contextos e perspectivas o poeta tem na sua Pasárgada,
cuja geografia interior fora antes traçada pelas ruas de sua infância no Recife, um
-palimpsesto onde aproveita de alguns predicados
advindos dos temas já explorados e agora conhecidos para criar suas relações. Na
cocanha existe uma fonte da juventude, cujo predicado ao mesmo instante se liga à
utopia moderna, pois é também uma fonte de maravilhas.
90
Estando estes temas trabalhados uns nos outros isto quer dizer que implicam
um e outro - se associam - para uma síntese de caráter poético (Pasárgada),
entendendo este caráter, portanto, um modo particular de condensar, capaz de
corresponder ainda ao que sentenciou Ezra Pound80
POUND, 2006, p.32). Este significado torna-se novo
e vengan: su plasmación es tan
(ALONSO, 1955, p.124), como diria Damaso
Alonso, e é o motivo de passarmos a compreender este mundo inventado, entre
outros.
80 A definição de Pound parece remeter a Aristóteles. Este falando do motivo de ser a tragédia melhor que a
91
Capítulo 4
Fernando Monteiro e a Suméria
O contexto em que aparece a poesia de Fernando Monteiro é o da chamada
Geração 65 em Pernambuco. Contudo em um momento menos decisivo na
caracterização da mesma, primeiro porque sua produção só se iniciaria a partir de
1973, ou seja, em um momento tardio. Segundo, porque sua produção só tem par na
poesia de César Leal quando podemos perceber que os programas poéticos estão
em íntima relação com um paradigma cientifico que a Geração 65 não se vincularia:
a física moderna. Para ficar em dois exemplos, em Memória do Mar Sublevado,
Fernando Monteiro esclarece em depoimento (ver anexo III) que este poema não
baseia-se na ideia de tempo-espaço . Outrossim, o novo paradigma
científico vem a se confirmar em uma análise crítica de César Leal quando observa
que Gerión e a Suméria possui uma musicalidade que aponta para a confirmação do
universo ser feito de música, se aproximando da tese de um físico nuclear81 ao
desconstruir a ideia do universo ser constituído de matéria.
Vê-se com isso que é uma poesia erudita, complexa, mas não totalmente
hermética. O início da sua produção poética está ligado também à sétima arte,
afastando-se ainda mais da Geração 65, onde, na maior parte daqueles poetas, João
Cabral de Melo Neto apresentava influências. Do diálogo entre cinema e literatura
recorrente em seus trabalhos de ficção (Aspades, Ets, ETc, A Cabeça no Fundo do
Entulho, entre outros romances) o jornalista e crítico literário Schneider Carpeggiani
perguntava sobre esta relação recebendo como reposta este aspecto biográfico do
poeta paralelamente sempre
escrevi) e considero uma sorte se acaso eu introjetei, segundo dizem, uma câmera,
ou vári , enquanto na
81 Cria-se aquela "música das ideias " e põe em suspensão a consciência. E seu lugar passa a ser ocupado por um núcleo emotivo envolto no mito e na magia. O Universo não é feito de matéria, já disse no início deste livro [Dimensões temporais na poesia], lembrando estudos de um físico nuclear. O universo é feito de música. Seria tarefa muito árdua demonstrar o quanto há de verdade e beleza nessas descobertas do espírito humano.2005, p. 340)
92
Nasci em 1949, e minha adolescência foi dividida entre biblioteca e o cinema de bairro,
2010,
p.101). Portanto, pertence a uma geração que tinha o cinema internacional de
vanguarda como contexto cultural para além do localismo da cultura pernambucana e
brasileira. Contudo o cinema é essencialmente imagem externa, superfície, e este
seria um problema a ser resolvido não somente na ficção, porém na poesia enquanto
uma arte ensimesmada, interior, profunda, constituindo assim uma arte total . A
câmera de Fernando Monteiro apresentaria tanto uma imagem externa quanto seria
revirada - como se pudesse revirar as córneas dos olhos - para observar um espaço
interior - introjetado e projetado - na sala escura mente. A câmera mostraria o espírito
do diretor, a lente um espelho transparente da alma.
Guillermo de Torre no sexto volume de História das Literatura de Vanguarda ao
apresentar as características do que chamava escola - a última grande
escola vanguardista de consideração em seu itinerário -, iniciada a partir do
experimentalismo do romance francês da segunda metade do século XX, entendia
através de Robbe- e colaborador com Alain
Resnais do filme da nouvelle vague, L'Année dernière à Marienbad) que
Também no romance aquilo que interessa são os gestos e atitudes dos seres e das
coisas (TORRE, 1972, p.94). Preocupação que não abarcava apenas o romance, a
poesia - desconsiderada até aqui pelo teórico espanhol como consequência dessa
escola também deveria necessariamente rever seus procedimentos. Assim
Cassiano Ricardo em seu Algumas Reflexões sobre o Pensamento de Vanguarda
1964, p. 85). Este diálogo problemático caracteriza boa parte da
produção poética de Fernando Monteiro: são poemas narrativos (poemas longos). Em
entrevista para Albert Lacet mostra o desejo evidente em suas obras de estabelecer
outras bases para que a poesia acompanhasse as mudanças do tempo sem perder
terreno:
A poesia precisa tentar recuperar o que Dámaso Alonso chamava de seu
contenido novelesco. Isso foi responsável pela atraente forma narrativa que vigorou
93
em outros tempos, e desde a Odisseia. A Divina Comédia, o Paraíso Perdido e
outros poemas longos da tra
. (LANCET, 2010)
Assim poema, romance e cinema encontram na arte de narrar um paralelo que
subverte o modelo tradicional de narração do romance balzaquiano e da poesia lírica
. Personagens e tempos (começo, meio e fim) não são bem definidos em
ouveau roman s experiências em
suas possibilidades foram testadas pela lírica de Fernando Monteiro. Atento a esta
que
foi seu primeiro romance não sem antes passar por um estágio na poesia Na
introspecção, isto é, na experiência ensimesmada estava a possibilidade de juntar o
exterior captado pela câmera com o interior do sujeito que escreve, daí o lirismo. O
poeta revela um caminho novo, inaugural, ao menos nesse tipo de formulação do
problema para a relação (ou superação) entre literatura e cinema. Por fim, a imagem
oferecida não deve ser estática se quiser assemelhar-se à sétima arte, necessitaria
ser uma imagem dinâmica. E
ser pura abstração.
No que se refere ao plano de intenções que permeiam sua obra (paradigma da
física moderna e experiência cinematográfica) estas são as bases inicias para
entender o vanguardismo de sua produção.
Se a poesia de Fernando Monteiro é considerada de difícil acesso, sem esta
introdução encontrada em razão da própria consideração biográfica e meio cultural
desconhecidos, poucos foram os que conseguiram dizer algo (mesmos os críticos).
Franco M. Jasiello, ao comentar a produção poética brasileira dos anos 90 entendia o
fenômeno dessa maneira: -se uma preocupação temático-formal em tratar do
quotidiano sempre em seus aspectos imedi JASIELLO, 1986, p.117),
poético que intencionalmente repudia toda concessão ao imediato, evita a
circunstância como pretexto e se declara livre em sua escolha do absoluto em busca
, P. 117). Por sua vez, César Leal,
94
ao comentar Gerión e a Suméria (de 1997), dissera que
poesia de Fernando Monteiro não consegue deter a força das idéias que se infiltram
em seus textos mais recentes. Eles possuem uma natu
p.340). Enigmático, mas sem sombras mistificadoras. Eis uma definição.
E, no entanto, criador de mitos. É ainda em César Leal que podemos dar ainda
Uma natureza simbólica, criadora de mitos, um dom
-
isso torna a poesia tão difícil, tratemos de esclarecer quais são os temas que afastam
e aproximam seu possível leitor.
Como vimos no primeiro capítulo, para o formalista Tomachevski não bastava
uma
O teórico argumentava que a conjuntura quotidiana podia servir para aquele momento
e no seguinte já não despertar mais nada, o - apenas - contemporâneo se esgotava
no contemporâneo. Assim pôde constatar existirem temas duráveis. Também eles
sequer despertavam curiosidade por si só, em seus aspectos o leitor deveria encontrar
nele alguma atualidade.
Memória do Mar Sublevado? Ou a Hileia do
poema Hiléiade? Ou ainda a Suméria em Gerión e a Suméria? Como precisar temas
que aparentemente não interessam e nem são familiares à contemporaneidade
mesmo através lentes cinematográficas e quânticas da sua poesia?
4.1. Mar Sublevado: Memória
Ao iniciar sua trajetória com Memória do Mar Sublevado, em 1973, poema longo
publicado pela Editora Universitária (UFPE), o poeta já tinha consciência que um
capítulo da história do antigo Egito interessava ao nosso tempo não como fonte de
erudição estéril. Amarna, cidade egípcia construída para ser a capital do faraó e poeta
Akhenaton (autor atribuído do hino ao Disco Solar), teve curtíssima existência e logo
foi esquecida pela história. Ela foi erguida de acordo com um desejo íntimo de
modificar radicalmente toda a cultura egípcia baseada no politeísmo para uma espécie
de monoteísmo, ou seja, uma revolução espiritual. Amarna para o poeta guarda uma
95
relação com a busca pelo lugar ideal (desejo de um lugar melhor) e diz muito acerca
do projeto temático-estilístico que o liga até Gerión e a Suméria. Sendo um poema
lírico, ele mesmo deve ser um sintoma dessa busca espiritual e da sua possibilidade
de se realizar em linguagem. Separemos alguns trechos uma vez que o poema é
longo.
chegar a conhecer aquele sentimento primordial que ao final da primeira parte revela
a intenção do poema.
E a voz será perfeita ao seu encontro
na construção das pontes de Silêncio,
se o que eu fizer passar for
o conto de Seu Esplendor,
o entrevisto de Amarna e Akhenaton.
Percebe-se que o encontro entre o sonho (Amarna) e aquele que o sonhou
(Akhenaton) se dá na possibilidade de realização em poema - E a voz será perfeita
ao seu encontro -, em construir o Silêncio. Não é por acaso que está em maiúscula.
eco r da sua cidade ideal. Ela
se dá em uma memória em que há acesso pela alma, como queria Platão ao explicar
seu mundo ideal, uma vez participa (méthexis) ou dá a entender que pode participar
dessa memória.
Fernando Monteiro, em uma mito-logia particular, situa Amarna como uma uma
uro do dourado Aton (deus
sol da revolução egípcia) e que deseja emergir porque seus valores foram perdidos
ou não são mais vistos. Que valores são estes? Não é um locus amoenus que
representa a natureza, ou o progresso cientifico e tecnológico
no limite do impalpável. O que devemos emergir são nossos próprios mundos
interiores.
U-topia, como dito acima, é um não lugar, mas na modernidade ainda era
concebida como possível, algo a ser alcançado no futuro. As cidades (Amarna, Hileia,
96
Suméria) do nosso poeta, pelo contrário, estão no passado. Bem lembrou Jasiello que
antiguidade e na verdade da proposta lembrando de Carlo Levi
JASIELLO, 1986, p. 118). Voltemo-nos, desta vez, ao início de
Memórias.
Quero voltar.
Quero voltar ao silêncio
(que era como o barro cozido,
cor do incenso que reflui no vento,
confortador e inteiriço),
o silêncio quando ofereceu seu ventre
à violência da palavra,
no hino ao Disco Solar.
Era bom pisar com os pés (inúteis)
do corpo cuja alma reconhecia
esse silêncio,
perto ainda,
no silêncio da cidade levantada
(para argamassar sonhá-Lo)
que nunca mais ressoou pelo mundo
e foi tornado o pequeno barulho de um heresia
Assim Fernando Monteiro revela ao nosso tempo que certo tema foi
desvalorizado porque nossa sociedade perdeu a capacidade e o motivo de sonhar,
são heresias as buscas por lugares utópicos. Mais que utópicos, ideais, porque aqui
significa um grau maior de abstração: são reveladoras de seu mundo interior de um
Silêncio à Outro, através do sonho ou da rememoração. A forma condicional com que
expressa esta possiblidade - -, dá ao leitor o poder de
decidir se isto foi realizado ou não.
O próprio leitor deverá construir suas pontes, ou seja, ter em mente (ou melhor:
em sentimento) que isso se dá pelo silêncio, pelo seu íntimo, do leitor ao poeta. Este
seria o modo pelo o qual a poesia em sua pureza deveria ser transmitida. O confronto
com o ruído inevitável fora do poema - é o mundo externo (a sociedade, o âmbito
97
que nunca mais
ressoou pelo mundo evitar que os versos soem diferente do que será dito ao
exteriorizá-lo em palavras vindas do ruído cotidiano? Daí o silêncio buscado querer
o silêncio quando ofereceu seu ventre/ à violência da palavra,/ no hino ao Disco
Solar. , isto é, na poesia o ruído seria desfeito. Se ela retira as palavras do cotidiano
(que não ressoa sonhos), as mesmas não são para o cotidiano ou mundo concreto.
Assim entendemos um fundamento da poesia de Fernando Monteiro. O que
-se de alusões ao
texto antigo, porém ao próprio silêncio que o faraó tinha dentro de si antes de escrever
e, portanto, uma imaterialidade. Tarefa, por suposto, fracassada, a de retornar a um
da ascensão não só está distante, como vazia, uma idealid
(FRIEDRICH,1987, p. 48). Palpável ou não, isso sequer interessa porque seu desejo
sequer está neste âmbito dos
-
No ensaio Akhenaton: Ascese e revolução nosso poeta deixa claro o significado
histórico de Amarna
do triunfo do espírito, cenário de sua paixão e derrota e, se não da morte (...), pelo
MONTEIRO, 1986, p.14). A consciência de
que aquele mundo não mais existe lhe revela tanto uma esperança (a da volta àqueles
tempos), quanto uma frustação (a de que só pode voltar por uma via imaginativa, isto
é, fantasiosa). O lirismo aparece como aquele em que é possível uma volta porque se
dá no íntimo, não no verossímil ou real e este íntimo é encontrado através da alma
que pôde contemplar aquela ação espiritual. Cabe ao poeta - à poesia lírica - fazer
ressoar novamente o sonho sem transparecer o valor de sonho, de ilusão. Embora
antasia era exatamente a concepção de Hegel para definir a poesia lírica: se daria
na capacidade do sujeito em sonhar e fechar-se nesse mundo interior. Com
do mais profundo interior da alma, recolhe e articula as partes (daí resultantes) e cria
1987, p. 55).
Mas o poema não remete apenas ao faraó egípcio, já no título, e como epígrafe,
é apontada outra figura, a do militar T.E. Lawrence (ou Lawrence da Arábia) que tendo
98
escrito Os Sete Pilares da Sabedoria oferece ao poeta a expressão e a concepção do
Criaturas instáveis como a água, como a água, talvez, prevalecerão afinal. Desde
os albores da vida, em ondas sucessivas, arremessaram-se contra os escolhos da
carne. Todas as ondas se quebraram, mas, como as ondas do mar, também elas
foram desgastando, continuamente, uma pequena partícula do granito contra o qual
se desfizeram: - e algum dia, através das idades futuras, é possível que venham a
rolar abertamente por cima do local onde o mundo material existiu, e Deus passeará
sobre a superfície de tais águas. Uma destas ondas (e não a mais insignificante) eu
levantei e fiz rolar à frente do temporal de uma idéia, até atingir o apogeu,
rematando-se e tombando em Damasco. A água desta onda, repelida para trás,
pela resistência das coisas contingentes, fornecerá material para o vagalhão que se
seguir, quando, na maturidade do tempo, o mar for sublevado outra vez. (negrito
nosso, LAWRENCE, 2000, P.48)
Note-se, além do palimpsesto - que será um procedimento contínuo em todas as
obras de Fernando Monteiro -, que o texto também diz respeito a um mundo material
onde fora levantada uma onda (para destruí-lo) e uma vez que o título se coloca como
memória dessa ação (Memória do Mar Sublevado), logo percebemos que o faraó e
sua cidade estão inseridos nessa única corrente espiritual, do mesmo modo o próprio
poeta. O poema apresenta-se como uma síntese dessas figuras enigmáticas (com
primeira parte dedicada ao faraó e segunda ao militar82). A poesia se revela a mais
apta para tratar dessa memória, ela mesma - a poesia uma atividade espiritual capaz
de levantar uma onda ao mundo material. Assim o poeta estaria inse
na tarefa de sublevar o mar outra vez.
Que fique claro o tema principal trabalhado pelo poeta e seus significados, isto
é, o seu programa poético. Amarna fora uma utopia , não pôde se realizar porque ao
buscar concretizar-se a contingência do mundo material a fez perder a força e
82 -se em partes que se equivalem e no entanto, são formalmente distintas e separadas. Pode se pensar nas duas faces de uma moeda ou de um duplo espelho que se apresentam por sua vez, uma e outra (mas são uma unidade total, que se biparte, apenas, na imperfeita contingência espaço-tempo, ainda vigente). Anexo 1
99
desmoronar. Fernando Monteiro retoma a história acrescentando sua própria visão,
isto é, tornando Amarna sua, uma vez que agora ela está ligada à própria possibilidade
de sonhar na contemporaneidade (quando todas as utopias mesmo as sociais -
fracassaram) e que só a lírica permite porque oferece a aproximação dos estados de
alma na contemplação de um mesmo Ideal. Ou nas palavras do poeta ao tema do
lugar ameno que é igualmente antigo e atual:
Porque nada que outro diga
- ou tenha dito
serve inteiramente
para o coração de agora,
que é o coração de sempre,
por mais caminho aberto apenas,
e, no entanto,
de imediato novo e diverso.
Assim compreendemos o motivo de Jasiello
hoje a consciência crítica racional impede que o sonho possa ter alguma validade
como outrora os antigos tiveram. Em Gerión e a Suméria a motivação é idêntica:
Trata-se aqui do futuro
- como nas tabuletas de anúncio
dos préstimos de cartomantes atentas
mas esse futuro desce
ao nível do adobe
do depósito da primeira urbe
onde nada que é humano
era estranho àquelas mentes
100
totalmente, tal como o mito
sobreviveu na literatura menos por seu caráter religioso (mitológico) do que por
expressarem temas duráveis (mito-lógico), André Jolles falaria em atualização da
forma simples. Por isso o poeta recorre à literatura como meio ou tentativa de
preservar um estado que se afasta a cada momento de seu passado, e, no entanto, o
futuro (lógos) só existe em razão do passado (mito), ou seja, aquele apresentando-se
superior no fundo é bastante inferior por produzir menos significação sem ajuda deste.
4.2. Caminho da Suméria: Sonho
O sonho é um motivo poético dos mais antigos. A Epopeia de Gilgamesh, escrita
bem antes das gregas ilíada e Odisseia, estrutura suas ações a partir dos sonhos de
seus personagens. Na passagem mais lembrada - o dilúvio - o sobrevivente recebe
esta mensagem porque veio até ele através de uma revelação onírica. O planejamento
do dilúvio se dá porque os deuses antigos sumérios já não suportavam o barulho dos
homens e por isso decidiram destruir seu mundo.
Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia
como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enilil ouviu o
alvoroço e disse
intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia. Os deuses então
concordaram em exterminar a raça humana. (ANONIMO, 1992, p149)
Iguais aos deuses sumérios, o lírico não se interessa pelos valores sócias dos
(Steiger, 1972, p.48) e revela que este mundo exterior necessita de uma atividade
destrutiva e negativa, isto é, uma atividade de reconstrução como o dilúvio, uma volta
Ao mesmo tempo em que consegue realizar isso os poetas líricos são também os
únicos que contemplando o mundo da Ideias pela alma individual conhecem as
Formas em nada parecidas com o que se apresenta o mundo exterior e o senso
101
comum. Dissemos que eles são os únicos a sobreviverem, logo, seus leitores também
aprofundar.
Não é por acaso que em Gerión e a Suméria (1997) a escolha do local se dê
nessa ambiência de sonho:
Seu rei mandou dizer
que Nabucodonosor tinha receia
dos seus sonhos mais simples:
um pato que o comia
num prato de iguarias
ou um pequena ave
que o rei engolia
as penas que tinha
e isso sufoca seu sono
mas acima de tudo: o que
queria dizer?
O poeta remete ao rei Nabucodonosor em uma passagem bíblica. Mas a
referência não é fiel, o que ela modifica? Na Bíblia83, cujo tom naturalmente é elevado,
o sonho do rei é colocado de forma a ter muita importância religiosa, porque seu
simbolismo, que o rei desconhece, é revelado através do profeta Daniel, depois que
queria dizer? a, o rei
sonhava uma estátua de modo a seu simbolismo significar as etapas de
desenvolvimento do seu império. Ao esvaziar aquela passagem por outra na
talvez não tenha importância
razão do poeta em trocar o conteúdo do sonho original estátua por
efeito de comicidade - ela que já havia surgido no verso em que inicia Gerión e a
83 ANÔNIMO, 1012, p. 1109 a 1111.
102
Suméria Seu rei mandou dizer
nome. Nabucodonosor representa uma criança que brinca com seus súditos.
Este início nos remeteria ao poema de Manuel Bandeira em Vou-me embora
para Pasárgada, no que diz respeito à ironia. E, no entanto, Fern
O que os reis mandam dizer
talvez não tenha importância
mas se deve levar em conta
para onde nos levam
os sonhos que nada contam
de como sempre sonhamos
com um mesmo lugar,
uma mesma coisa, as mesmas
surpresas que já conhecemos
mas logram nos surpreender
de cada vez que penetramos
na terra suméria de todos
os enganos das eras
em que contamos a idade
da esfera em que escorregamos
quando sonhamos
A segunda estrofe remota ao motivo do sonho para dizer que se sabe sonhado.
está atormentada até a neurose pelo impulso de fugir ao real, mas se sente impotente
(FRIEDRICH, 1987, p.49). Como poderíamos estar surpresos com aquilo que já
conhecemos?
Estes enganos são revelados na estrofe
seguinte onde descreve um Éden entre quaisquer outros, compostos
então natu . A alusão que se inicia com o mito bíblico se
103
estende para todos os tipos de locus amoenus, seja antigo como em Homero ou
Gilgamesh ou moderno como as utopias de Francis Bacon ou Thomas Morus: a terra
suméria é de todos.
Do giro que o poeta faz e que vimos acima, ondas que batem na falésia da razão
e voltam para as profundezas da poesia, deve-se entender que:
A unidade e coesão do clima lírico é de suma importância num poema, pois o
contexto lógico, que sempre esperamos de uma manifestação linguística, quase
nunca é elaborado em tais casos, ou o é apenas imprecisamente. A linguagem lírica
parece desprezar as conquistas de um progresso lento em direção à clareza, - da
construção paratática à hipotética, de advérbios a conjunções, de conjunções
temporais a causais. (negrito nosso, STAIGER, 1972, p. 38)
Ao
mensagem passada. O que os reis mandam dizer tem e não tem importância, onde
nos levam conta e não conta, ao sonharmos nos surpreendemos e não nos
surpreendemos; por fim, estamos e não estamos sonhando. A causalidade dá lugar à
outra lei onde cada poeta tem ensejo de tornar seu trabalho mais singular. No caso
de Fernando Monteiro este trabalho com as conexões e operadores lógicos (e, ou,
todo, nenhum, algum) marcam presença ao longo do poema sem que representem a
mesma função em busca de clareza objetiva. unidade e
coesão do clima lírico independente do obscuramento do poema - afirma a
suméria como um tema comum, isto é, como um lugar sonhado coletivamente ou
individualmente que acaba fracassado ao saírem do terreno espiritual com que foram
forjados.
Frye nos informa a relação de uma linguagem sem coesão lógica com a
linguagem do sono:
Nada disso, em si mesmo, parece lidar com o que julgamos ser tipicamente a
criação poética, que é um procedimento retórico associativo, a maior parte do qual
abaixo do limiar da consciência, um caos de paronomásia, ligações de som, ligações
104
de sentido ambíguo, e ligações de memória muito semelhantes à do sono. (FRYE,
1973, p.267)
Novamente estamos diante do sonho. O poeta não rompe sua solidão ao
compartilhá-lo porque mostra apenas como chegou até ele (por associações, sentido
ambíguo, ligações de memória, etc), e assim expressa a atividade de sonhar,
despertando igual capacidade no leitor quando sua alma [do leitor]
está afinada com a do autor. Portanto a poesia lírica manifesta-se como arte da
solidão, que em estado puro é receptada apenas por pessoas que interiorizam essa
1972, p.49), vale dizer, os sonhos eles mesmos são
fenômenos individuais. Tanto assim que o filósofo F. Nietzsche atribuía ao deus grego
Apolo, associado ao impulso do sonho, o principium individuationis (princípio da
individuação).
ele nos mostra, com gestos sublimes, quão necessário é o inteiro mundo do
tormento, a fim de que, por seu intermédio, seja o individual forçado a engendrar a
visão redentora e então, submerso em sua contemplação, remanesça
tranquilamente sentando em sua canoa balouçante, em meio ao mar. (NIETSCHE,
2012, p37)
A atividade de sonhar traz como consequência a solidão (o individual) de seu
locus amoenus. Vejamos o que dizem os mais variados teóricos afirmarem
categoricamente: público;
(STAIGER, 1972, p.48);
volta as co 1973, p.266);
absolutamente solit 2009, p.43); Pois o poeta lírico autêntico
vive em si mesmo. (HEGEL, 2004, p163).
com um mundo exterior (o real, o social, o histórico), isto é, com um público. É pois
um modo de relacionamento com o mundo (interior/exterior) que pende para uma
introspecção, um ensimesmamento. Até para seus leitores. Um caso exemplar é o
105
hypocrite lecteur baudelairiano cuja ligação se dá diretamente de um interior para/pelo
outro (meu igual, meu irmão) onde existe
Não o reflexo do poeta sobre o leitor na perspectiva lâmpada => espelho, em que
o último é um recipiente de uma linguagem que não é sua -, mas sim a criação de
uma imagem onde o leitor reconhece a sua condição histórica ao revolver, para
poder ouvir o que diz o poeta, a linguagem refletida de sua própria experiência.
(BARBOSA, 1986, p.22-23).
sonhadora e mais sonhadora porque interiorizada e isto em qualquer momento
histórico que participe. Pela condição de um estar-no-mundo (dele e de seu leitor),
mundo de sujeitos sem sujeição de um pelo outro, ele (o leitor) não se reconhece com
o sujeito, se reconhece como a linguagem refletida de sua própria
experiência hypocrite lecteur também está aí, ou seja, em não abandona-se
totalmente a si na leitura do poema em troca de uma leitura fiel ao poeta, nisto está
sua hipocrisia. Como consequência a subjetividade de cada qual fica preservada. O
poeta, ao contar sua experiência de sonho, faz dele um sujeito privilegiado e o único
capaz de descrever o conteúdo e forma desta experiência, mas sua inteligibilidade
está assegurada porque faz o leitor sonhar com novos mundos não
necessariamente o do poema -, mundos que não podem ser outros senão àqueles em
que representem o desejo de cada um e, por fim, revelem quem são.
4.3. Locus Amoenus
O aspecto autobiográfico, ao contrário do que ocorre com Manuel Bandeira,
dificilmente será visto em Fernando Monteiro em sua poesia (em seus romances seria
possível encontrar elementos autobiogr
empírico não é fundamento para a construção de um estado da alma, como vimos
anteriormente em Hugo Friedrich e Emil Steiger. Em Gerión e a Suméria, entre outros
poemas do autor, é apresentado desde já
106
Eu não queria somente ter
esse vazio na alma,
esse vácuo que me faz contemporâneo
de um século de nada,
mas ser um sacerdote acádio,
um pastor de carneiros sumeriano
um caldeu voltado para o céu
e todos crentes na imortalidade
de um Deus como podiam contar
com a própria sombra
ao acordar e tomar água no terraço.
O desejo de voltar a uma idade bucólica ou idade de ouro contrasta com a
con vazio n de todos contemporâneos. Eu não queria
somente ter -se àqueles que enxergam nosso tempo de modo otimista,
quando ter um vazio de alma significa não ser preenchido pelo consumo, pela
aparentes.
e sintetizados, mas em temporalidades contraditórias. Carlos Bousoño em Teoría de
la expressión poética havia identificado procedimento semelhante ao tratar da poesia
- 84 quando o espaço produz
a possível simultaneidade de ações em tempos diversos. Se uma ação antiga faz parte
da mesma cena que a contemporânea temos uma superposição desse tipo. No caso,
o mesmo locus amoenus
a Suméria.
Acádio, sumeriano ou caldeu enganavam-se porque ligados ao mito, a
contemporaneidade engana-se porque a razão não produziu modos de vida
superiores ao criar suas utopias.
84 BOUSOÑO, 1985, p. 414
107
as notas que estão caladas
no silêncio da manhã antes
da noites ulterior
das civilizações em marcha,
levando à Nona Sinfonia
ao custo da morte dos meninos cantores
de Nagasaki
Utopias e civilizações modernas que fracassaram no intento de gerar uma
harmonia e paz aos lugares onde são implantadas transformam-se em distopia por
força de realizarem repúblicas ao modo platônico: reprimindo expressões individuais
e inconscientes da sociedade.
A superposição encontrada em Gerión e a Suméria encontrava-se já em
Memória do Mar Sublevado:
Em algum geométrico lugar de Amarna, o Rei ora (nesse quarto final de tarde que
faz retângulo severo com sua alma) sabemos, porque passa uma funda lâmina
(passa por nenhum lugar exatamente) que tenta dilacerar o distraído sentimento do
mundo, e abrir-lhe a chaga do outro coração, que contempla, verdadeiro, oblíquo e
recurvo (a mesma paisagem de dolorosa beleza no semblante do Rei que ora) e
que a fraqueza tanto medica e a complacência, afinal, cicatriza. (MONTEIRO, 1973,
p.24)
Assim o geométrico lugar existe menos em razão de ser um lugar concreto
compreende um lugar interior, desprovido de sentimento do mundo concreto e capaz
outros de que o poeta alcançou o Mundo das Ideias e por isso pode ver a mesma
paisagem do Rei, chega a este efeito e local com a participação (méthexis) da sua
alma. O mesmo se dá com a Hileia, onde o inglês Fawcett imaginava um El dorado
no centro do Brasil. A história realmente existiu e o inglês acabou sumindo na floresta.
108
Mas em Hiléiade o lugar, como nos casos acima, é transformado em símbolo de busca
interior, busca através da alma:
Encerra-se outro segredo
entre mais que latitudes
além dos lenções de bruma,
quando o Pico das Almas chma
ou Sincorá se acende
- serra que não é serra
para o sonho de um estrangeiro
escrito aonde não fomos,
em sepultura nenhuma
no meio da Selva escura.
A história de Fawcett é vista como uma busca espiritual, no meio da Selva
escura. E, no entanto, somente ao poeta esta verdadeira história pôde ser revelada.
Dizemos verdadeira porque em nada quer assemelhar-se à lenda de alguém que
busca um tesouro material, mas antes ao sonho e à vontade de realizá-lo.
descrito por T.E. Lawrence, isto é, significa a escolha de poder sonhar na
rememoração de estados de alma perdidos e por isso pela impossibilidade de
concretizar estes estados - nosso século de nada. No entanto a poesia é um meio
pelo qual o espírito pode carregar um fôlego capaz de dar novo sentido ao mundo. Eis
o que grande parta da obra poética de Fernando Monteiro expressa, desde Amarna,
que não é terrena, porém espiritual, profunda.
109
Conclusão
Mundo Interior: Expressão da lírica em Manuel Bandeira e Fernando Monteiro
A
diversos poetas líricos. No Brasil, isso se dá especialmente entre os pernambucanos,
sendo notada por Carlos Drummond de Andrade quando diz:
Ah! pernambucanos! Tenho por eles uma admiração estupefata. Dessa
província do Nordeste nos vem a poesia menos nordestina possível! Como a
de João Cabral, que ordena seus jogos sábios numa atmosfera isenta de
qualquer localismo...Os mesmos Bandeira e Joaquim Cardozo, que por vezes
se detém a cantar amorosamente o Recife, já superam nesse canto a simples
visão imediata. A terra natal fica sendo ponto de partida para uma viagem aos
países da geografia interior. Assim são os pernambucanos. (BANDEIRA, p.
360, 1986)
Incluir Fernando Monteiro neste grupos de pernambucanos ilustres não seria
exagero. A poesia moderna e a vanguarda se aproximam dessa busca. O livro de
Marcel Raymond, De Baudelaire ao Surrealismo, argumenta
apagam entre o sentimento do subjetivo e do objetivo; o universo é dominado pelo
espírito; o pensamento participa de todas as formas e de todos os seres; os
itálico do
autor, RAYMOND, 1997, p. 13). Essa fusão espiritual entre sujeito e objeto é sentida
nos dois poetas brasileiros.
Em Manuel Bandeira, os conteúdos intersubjetivos (ou objetivos) cocanha,
utopia, locus amoenus presentes nas diversas tradições literárias se mesclam ao
subjetivo (biografia) para formar a lírica de Manuel Bandeira, que considera ver o
poema de Pasárgada toda sua vida. Deve por isso através dele ter conseguido realizar
sua imago mundi da melhor maneira possível e artisticamente (ou pelas suas próprias
escorço Em Fernando Monteiro sua vida biográfica existe em razão
de ser apresentada desde já espiritualizada na biografia de Outros: Akhenaton, T.E.
110
Lawrence, Fawcett, etc.
em convergência espiritual e definindo-se através que quem não é.
Nas poesia - um res cogitans que se descobre sentindo - se
transforma em Dasein poético, ou seja, quando E. Husserl propõe uma volta às coisas
mesmas, ao Lebenswelt (mundo-da-vida)85, esta tarefa tornada existencial seria a do
r um mundo na
1977, p.116). Mas se em Bandeira isso
é possível pela infância concreta do poeta, em Fernando essa vida existe em
recuperação à um passado longínquo e daí a necessidade de uma rememoração
quase platônica de lugares interiores daqueles personagens históricos, uma vez que
eram mais ensimesmados e sonhadores que a média das pessoas de sua época.
surge por via interior. As palavras possuem em si um caráter
mediador (comunicativo) e se por um lado se afastam da vida, por outro são elas que
permitem uma reaproximação porque são também estados da alma. Estes estados se
conquistam por participação (méthexis) do espírito do poeta na obra que realiza em
razão de seu interior. A relação dos poetas com o mundo concreto que tornou-se
problemática a tal ponto que eles já não o cantam sem uma lente do espírito:
necessitam criar outro mundo, uma fantasia ou utopia pessoal. O fato de serem
pessoais indica a presença desse interior.
Do mesmo modo que Georg Lukács demonstra que o romance buscava pela
forma encontra a unidade que era natural à epopeia antiga, aos nossos poetas não
interessa apenas - cantar suas ruinas atuais, pois seu canto na relação direta com
o mundo haveria um esvaziamento radical de sentido e a poesia seria impossível se
fosse apenas um espelho do mundo. Necessitam da faculdade imaginativa para poder
cantar algo, se quiserem cantar algo. Em suma, o poeta não vê mais no mundo um
sentido pleno (como na antiguidade, seja ela na epopeia ou na lírica); sob este ponto
de vista, torna-se também um escritor de ficções
e a poesia seria dotada de poderes capazes de dar sentido a sua vida. Em Monteiro
85 Poesia e Munda-da-vida é um vínculo observado por A. Bosi em O ser e o tempo na poesia, 1977, p. 112.
111
a rejeição é de seu próprio tempo histórico em busca de antigos estados mentais,
entre eles o mito.
Assim, o Dasein poético toma para si a consciência da sua produção de mundo,
que passa ser realizado a partir da compreensão que ele só existe enquanto tal porque
criado para satisfazer suas condições de existência, poeticamente. Em outras
palavras: constrói, ao construir um mundo particular, sua existência enquanto poeta.
Inventar este mundo significa na experiência lírica lançar-se nele enquanto linguagem
e de habitá-lo.
Este deslocamento parece acompanhar uma mudança da perspectiva
existencial embora, como se sabe, alguns poetas compreendem a poesia como um
movimento único de consciência mais geral de existir no mundo concreto (tédio, vazio,
angústia, morte, Deus, etc), o que é o caso de nossos poetas.
explicamos, quer retornar à vida mesma mas só consegue via fabulação utilizando-se
ora da utopia e ora da cocanha. Ele mesmo consciente da impossibilidade de
realização da fábula provo
forma imperfeita com os verbos escolherei, e depois farei, andarei, montarei, subirei, tomarei, podendo com isso executar estas ações poeticamente e se satisfazendo com
isso.
Aquela se tornaria plena em
Pasárga
compreendemos por fim que "O que poderia ter sido e o que foi convergem para um
só fim, que é sempre presente" dos versos do poeta T. S. Eliot em Quatro Quartetos,
isto é, volta
mera determinação de lugar dos entes intramundanos simplesmente dados em
posições espaciais, e sim caracteres da espacialidade originária da pre-sença
HEIDEGGER, 2002, p.171) e assim queremos entender que os advérbios
de lugar usados acompanham - nem poderia ser diferente o poeta em suas
configurações existenciais e, no entanto, são também autorreferentes por se
112
no fazer poético onde se realiza linguisticamente e do mesmo
Pasárgada e Suméria são no todo poemas refletidos em estados da alma.
Onde está a força superior do ser-lá, no ser ou no lá? No lá que seria melhor
chamar de um aqui é necessário em primeira instância procurar meu ser? Ou
antes, no meu ser, vou encontrar em primeiro lugar a certeza da minha fixação num
lá? De qualquer maneira, um dos termos sempre enfraquece o outro.
Frequentemente o lá é dito com tal energia que a fixação geométrica resume
brutalmente os aspectos ontológicos dos problemas. (...) Na tonalidade da língua
francesa, o lá é tão energético que designar o ser por um ser-lá seria uma indicação
vigorosa que colocaria facilmente o ser íntimo num lugar exteriorizado.
(BACHERLARD, 1974, p. 494)
Aqui e lá é o mesmo Ser. Importa menos mimetizar (um objeto) e reproduzir um
local (exterior) e mais imprimir um caráter pessoal de organização pela
weltanschauung (visão de mundo) em uma poética que sequer os fazem esquecer-se
Drummond, pelo
contrário, é a própria consciência de que seu mundo real e empírico está em ruínas e
deve ser preenchido com poesia tal qual sua vida enferma (em Bandeira) ou esvaziada
(Monteiro) que os obriga a terem um duplo trabalho literário: criar um mundo e ao
mesmo tempo habitá-lo poeticamente, ainda que soe, e é não poderia ser diferente,
Portanto, a tentativa de mudança de perspectiva existencial de Bandeira - preso
ao seu tempo -, só pode se dar via imaginação, procurando com isso cambiar seu
Dasein via poesia. Assumir um tema ou outro na experiência do leitor deve levar em
conta estes aspectos: caso escolha ver apenas o tema da utopia encontrará o poeta
realizado e satisfeito; caso escolha tematizar pela biografia, encontrará sob a máscara
cômica um sujeito profundamente infeliz.
Fernando Monteiro tematiza portanto interpreta e significa o locus amoenus
participa antes do mundo ideal,
da beleza perdida que nosso sonho pressente ´sob um céu anterior´ do que do mundo
decaído que nos RAYMOND, 1997, p.27). Há uma
presença de dois mundos (passado e atual) e no entanto a unidade lírica é sentida na
113
compreensão de que a Suméria é um mundo interior, isto é, que representa um
sentimento íntimo de recusa pelo contemporâneo e pela impossibilidade de voltar ao
passado arqueologia,/ aviso aos
onde a ciência arqueológica em nada vai ajudar na localização
da Suméria, uma vez que a literatura (e a arte) em geral e a poesia em especial devem
ser expressões particulares do mundo, ou seja, que apresentam uma imago mundi
onde a alma ou espírito possam habitar enquanto linguagem. Desse modo, ainda que
que, descolado
do seu corpo, participa de um mundo mais elevado e bom (que, como vimos, foi
desejado em várias épocas).
Assim podemos entender melhor as fronteiras com que Manuel Bandeira e
Fernando Monteiro se diferenciam quanto ao tema do locus amoenus que na lírica,
enquanto expressão de estados da alma, é transformado em mundo interior:
Pasárgada é seu poeta representado no poema de sua biografia; Suméria é seu poeta
representando o fundamento com o qual existe uma busca por um lugar melhor: um
sonho antigo (mito-lógico) com o qual a vida pode adquirir algum sentido além do
utilitário e racional. Mas são sonhos que se sabem sonhados os dos nossos poetas,
ricos em fantasia 86 que o fazem diferenciar-se dos demais na consideração de seus
sentimentos e visão de mundo. Aquele interessado em realizar-se pessoalmente na
poesia, este de realizar na poesia seu pessoalmente-Outro como um estado de alma
que reconheceu-se alhures de si mesmo: personificando-se. O que pode parecer
ficcional, no entanto, é lírico, descobre-se o poeta pelo seu encobrimento, porque já
não faz parte da dinâmica da mímesis, porém da méthexis, ou seja, ele participa
daquilo que evoca - a Suméria, a Pasárgada -, ao contrário de torná-la apenas objetiva
por trabalho imaginativo. Antes porque sonham e podem revelar o que sonharam no
limiar da consciência que podemos
expor o mundo interior desses poetas. Como um Mundo das Ideias o Mundo do Sonho
necessita da alma, que, rememorando-o, pode ser revelado: tanto sua Forma (Frye
foi exato em identificar a lírica com as associações do estágio do sono) quanto seu
conteúdo, seus temas, que apenas aos poetas podem ser melhor expressados.
86 HEGEL, 2004, p. 160
114
Anexos
Anexo I
Exemplar raro da primeira publicação do poema Memória do Mar Sublevado que
foi anexado à edição de Janeiro /Março de 1973 da Revista Estudos Universitários da
Universidade Federal de Pernambuco.
115
Anexo II
No mesmo ano de 1973 apareceria em Separata o poema longo Memória do
Mar Sublevado, publicado pela mesma instituição e agora com capa do artista plástico
Paulo Bruscky. Na imagem um trecho de divulgação do livro no Jornal Universitário
de agosto.
116
Anexo III
Notícia do lançamento do livro de estreia de Fernando Monteiro. publicada pelo
Jornal do Commercio em 22 de agosto de 1973. Ao explicar a gênese do poema longo
o autor afirma, entre outras coisas, que: -se em
duas partes que se equivalem e no entanto, são formalmente distintas e separadas.
Pode-se pensar nas duas faces de uma moeda ou de um duplo espelho que se
apresentam por sua vez, uma e outra (mas são uma unidade total, que se biparte
apenas na imperfeita contingência espaço-tempo, ainda vigente).
117
Anexo IV
Recepção do livro Memória do Mar Sublevado em Portugal (Lisboa), em nota
publicada pelo Jornal do Commercio em setembro de 1973. Note-se que Fernando
Monteiro circulava entre diversos setores da cultura daquele país e entre os escritores
Outrossim, o vínculo com outra arte - o cinema -marca presença e o título é
significativo de seu reconhecimento neste outro setor.
118
Anexo V
Catálogo das Edições Pirata de 1984, quando o livro Leilão sem Pena já estava
esgotado (Número 29), apenas quatro anos após seu lançamento em abril de 1980.
O poema também é um roteiro de cinema e ganhou o Prêmio de Melhor Roteiro no
Festival Nacional de Cinema de Aracaju.
119
Anexo VI
Elogio de Camilo José Cela ao livro Ecométrica (Tradução do espanhol por
Fernando Monteiro), entre outras definições diz ser um
120
Anexo VII
Segunda parte da tradução. Convém notar que Camilo José Cela viria a ganhar
o Nobel de Literatura em 1989, seis anos após este elogio. Depois de Ecométrica o
poeta ainda publicaria Hiléiade (por uma editora portuguesa) e Interrogação dos Dias,
ambos em 1984. Após um longo período volta a publicar um livro de poemas, Gerión
e a Suméria (publicação de 1997, contudo consta ter acabado em 1990).
121
Anexo VIII
Notícia do Diário de Pernambuco em 1983 sobre o lançamento de Ecométrica,
texto assinado pelo romancista e escritor Raimundo Carrero. Em 1997 (mesmo ano
de publicação de Gerión e a Suméria), Fernando Monteiro surgiria como outro grande
nome da ficção brasileira com o romance Aspades, Ets, Etc. Apenas em 2009 viria a
publicar novamente um livro de poema longo com Vi uma foto de Anna Akhmátova.
122
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