UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
UNIFESP/EFLCH
Adauto Douglas Parr
Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de
Matemtica na Dcada de 1940
Mestrado acadmico em Educao e Sade na Infncia e na Adolescncia
Guarulhos
2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO PAULO
ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
UNIFESP/EFLCH
Adauto Douglas Parr
Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de
Matemtica na Dcada de 1940
Dissertao apresentada Banca Examinadora da Universidade
Federal de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do
ttulo de MESTRE EM CINCIAS: EDUCAO E SADE, sob a
orientao da
Prof. Dr. Maria Clia Leme da Silva
Guarulhos
2013
Parr, Adauto Douglas.
Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de
Matemtica na Dcada de 1940 / Adauto Douglas Parr. Guarulhos, 2013.
Com DVD anexo.
90 p.
Dissertao de Mestrado (Mestrado em Educao e Sade na
Infncia e na Adolescncia) Universidade Federal de So Paulo, Escola de
Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 2013.
Orientadora: Maria Clia Leme da Silva.
Ttulo em ingls: New School, Escola Normal Caetano de Campos
and Mathematics Teaching in the 1940s
1. Educao. 2. Histria da Educao Matemtica. 3. Educao
Matemtica. I. LEME da SILVA, Maria Clia. II. Ttulo.
Adauto Douglas Parr
Escola Nova, Escola Normal Caetano de Campos e o Ensino de Matemtica na
Dcada de 1940
Dissertao apresentada ao Programa de Ps - Graduao
em Educao e Sade na Infncia e na Adolescncia da
Universidade Federal de So Paulo como requisito parcial
para obteno do ttulo de Mestre em Cincias
Orientador: Maria Clia Leme da Silva
Aprovado em: 09 de setembro de 2013.
Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica
UNESP- RIO CLARO
Prof. Dr. Ivanete Batista dos Santos
UFS - SERGIPE
Prof. Dr. Marcos Cezar de Freitas
UNIFESP - GUARULHOS
Francisco Antonio Parr
In memoriam
Agradecimentos
A aquisio de conhecimentos tericos, a anlise de fontes e a escrita de
um texto so saberes que no surgem de maneira espontnea, necessrio muito
trabalho para que se produza uma dissertao no perodo de dois anos. Por essa
razo, deixo meu primeiro agradecimento para minha orientadora, a prof. Dr. Maria
Clia Leme da Silva, por toda a preocupao que dispensou com a nossa formao
enquanto pesquisadores.
Agradeo a toda a famlia pela pacincia e por se fazerem presentes
durante todo o percurso deste estudo, e, em especial, minha me, Susana Silvia
Parr, pois, alm de todo o incentivo e de todo o apoio financeiro, sempre compreendeu
os finais de semana perdidos.
Agradeo CAPES - Reuni pela Bolsa, parte indispensvel para que o
trabalho pudesse ser construdo, e ao CNPq, pelo financiamento que custeou nossas
visitas s antigas Escolas Normais do interior.
Trabalhar em grupo diminui nossas dificuldades de pesquisa, assim,
agradeo ao Prof. Dr. Wagner, por ter sido mentor do trabalho do nosso grupo;
agradecimentos especiais tambm ao amigo Denis, pois, alm das vrias discusses,
presenciais e por Skype, conselhos e sugestes, foi quem primeiro encontrou as fontes
privilegiadas que utilizamos em nossas anlises e desde o incio as socializou.
A busca pelas fontes nos levou a diversos lugares, entre eles ao Acervo
da Assembleia Legislativa do Estado de So Paulo e ao Acervo Histrico da Escola
Caetano de Campos/Centro de Referncia em Educao Mrio Covas. Agradecemos a
todos os que nos atenderam aqui representados pelos Srs. Digenes e Felipe.
Muitos so os agradecimentos ainda necessrios, e, para viabilizar que
ningum seja esquecido, agradeceremos a todos os profissionais que nos receberam e
colaboraram em cada uma das instituies que visitamos em 2012 para coletar fontes,
que integraro a base de dados na qual trabalhamos. Agradecemos, assim, s Escolas
Estaduais Baro de Suru, no municpio de Tatu; Sud Menucci, no municpio de
Pirassununga; Peixoto Gomide, no municpio de Itapetininga.
Resumo
As primeiras dcadas do sculo XX foram marcadas por uma nova vaga pedaggica entre os educadores brasileiros, conhecida como Escola Nova, cuja proposta era a de renovar o ensino. Simultaneamente, na dcada de 1940, uma srie de mudanas ocorrem na estrutura do Curso Normal Paulista. Esta pesquisa busca compreender em que medida as apropriaes desse movimento e as mudanas na formao de professores alteraram o ensino da matemtica na Escola Normal Caetano de Campos, mais especificamente na disciplina de Metodologia e Prtica do Ensino Primrio, responsvel pela formao pedaggica dos futuros professores. Nossas anlises foram sustentadas pelos estudos da chamada Histria Cultural, dos quais destacamos o ferramental elaborado por Michel de Certeau e Roger Chartier. As fontes privilegiadas na investigao so avaliaes finais realizadas pelos alunos, cotejadas com leis, livros, revistas e textos de autores que circularam no perodo estudado. Essas avaliaes indicam a presena marcante dos planos globalizados como instrumento de avaliao, os quais eram produzidos a partir de um tema retirado de um recorte de jornal. Em relao ao ensino de matemtica, evidenciou-se uma mudana nas finalidades da disciplina presente nessas avaliaes, que passou a atender a realidade almejada pelos planos globalizados, em vez de seus contedos e habilidades prprios. As mudanas estruturais no Curso Normal Paulista no so perceptveis no ensino de matemtica na disciplina de Metodologia e Prtica do Ensino Primrio na dcada de 1940. Palavras-chave: Metodologia e Prtica do Ensino Primrio, Escola Caetano de Campos, Escola Nova, Histria da Educao Matemtica
Abstract
The first decades of the twentieth century were marked by a new wave pedagogical between Brazilian educators, known as New School, whose purpose was to renew the teaching. Simultaneously, in the 1940s, a number of changes occurs in the structure of the Curso Normal. This research tries to understand to what extent the appropriations of this movement and changes in teacher training have changed the teaching of mathematics at the Escola Normal Caetano de Campos, more specifically in the discipline of Methodology and Practice of Primary Education, responsible for pedagogical training of future teachers. Our analyses were supported by the studies of Cultural History, of which we highlight the tooling by Michel de Certeau and Roger Chartier. The sources in the investigation are the final evaluations carried out by students collated with laws, books, magazines and texts of authors that circulated in the studied period. These evaluations indicate the strong presence of globalized plans as instruments of evaluation, which were produced from a theme taken from a newspaper clipping. Regarding the teaching of mathematics, there was a change in the purpose of this discipline on these assessments, we happened to meet the reality desired by globalized plans instead of their own content and skills. Structural changes in the Normal Course Paulista are not noticeable in mathematics teaching in the discipline of Methodology and Practice of Primary Education in the 1940s. Key Words: Methodology and Practice of Primary, New School, History of Mathematics Education.
9
SUMRIO
1 INTRODUO .......................................................................................................... 10
1.1 Sobre a trajetria pessoal do pesquisador .................................................... 11
1.2 O Projeto Guarda-Chuva .............................................................................. 12
1.3 A Elaborao do Recorte .............................................................................. 14
2 AS FERRAMENTAS METODOLGICAS ................................................................. 15
2.1 A possibilidade de construo de uma questo ............................................ 15
2.2 Das ferramentas utilizadas............................................................................ 21
2.3 O trabalho com as fontes .............................................................................. 25
3 ENTRE O CONHECIDO E O DESCONHECIDO ...................................................... 29
3.1 Uma nova forma de pensamento: A Escola Nova ........................................ 29
3.2 Alguns pensadores do escolanovismo .......................................................... 31
3.3 O Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova ............................................. 34
3.4 Uma nova racionalizao, os conhecimentos biopsicolgicos ...................... 35
3.5 O Ensino Normal ........................................................................................... 37
3.6 A Lei Orgnica do Ensino Normal ................................................................. 39
3.7 O programa do curso Pr-Normal ................................................................. 44
3.8 O programa do Curso Normal ....................................................................... 46
4 A MATEMTICA NA FORMAO DO NORMALISTA.............................................. 49
4.1 Nossas Fontes .............................................................................................. 50
4.2 Metodologia e Prtica de Ensino Primrio: o corpo docente......................... 52
4.3 As professoras de Metodologia e Prtica do Ensino Primrio ...................... 53
4.4 As avaliaes de Metodologia e Prtica do Ensino Primrio ........................ 60
4.5 A escolha dos temas ..................................................................................... 62
4.6 Sobre os Planos de Aula............................................................................... 65
4.6.1 Vamos fazer uma festa? ............................................................. 70
4.6.2 Erros nas avaliaes .................................................................. 74
5 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 81
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................... 84
10
1 INTRODUO
A introduo deste texto um convite, que muito respeitosamente deixamos,
para que nosso leitor participe da produo de significados sobre o ensino de
Matemtica em tempos passados, fabricao assim que Certeau (2008) denomina
essas produes que s de longe parecem ser passivas. A leitura uma ao de
esperteza, uma ttica da qual lanam mo aqueles que esto em um lugar que no lhes
prprio e que permite explorar as fraquezas das estruturas.
A fabricao aqui chamada para iniciar os trabalhos resultado de um jogo
entre os conhecimentos que o texto carrega e aqueles que seu receptor j possui. O
confronto entre o rol desses saberes resultar em uma nova elaborao de
conhecimentos, razo pela qual cada nova fabricao leitora nica e original, e muitas
vezes no receber um registro merecido.
O texto que se apresenta agora propriedade daquele que o l. Podendo
sofrer crticas, ampliaes ou mesmo o esquecimento, a produo acadmica que se
prope tem como ponto de partida uma produo solidria, em que o autor doa a
matria-prima e colaborativa e o leitor, seu trabalho de reconstruo dessa matria.
Para colaborar com a insero do leitor, nesta pesquisa, o captulo intitulado
como introduo pretende apresentar o processo de elaborao, passos e decises
tomadas a fim de construir a narrativa histrica.
O texto inicia-se com a construo de um problema a ser compreendido, o
que causa a situao de desconforto e inquietude que motiva a procura pelas
respostas. O captulo dois tratar de nos situar frente a um conjunto de ferramentas
tericas e metodolgicas para a anlise realizada durante a produo do texto, tomadas
de emprstimo de um conjunto maior convencionalmente denominado por Histria
Cultural.
No terceiro captulo, trataremos de apresentar um pouco sobre o que se
sabe da vaga pedaggica que se instala no Brasil na primeira metade do sculo XX,
bem como a compreenso do funcionamento do Curso Normal Paulista.
11
Para o quarto captulo, cabem as invenes do cotidiano, no sentido de
reconstruir as mil prticas pelas quais usurios se reapropriam do espao organizado
pelas tcnicas da produo scio-cultural (CERTEAU, 2008, p. 41); a contribuio
deste trabalho se encontrar concentrada nesse captulo, ao produzir uma narrativa
utilizando aquilo que pode ser lido pela problematizao das fontes.
As fontes escolhidas para a realizao desta anlise constituem vestgios
produzidos no passado e que permitem a investigao a que nos propomos. Trata-se
de um conjunto de leis, programas e outros documentos presentes nos arquivos
escolares das antigas Escolas Normais. Ao final deste texto, esperamos fazer uma
leitura crtica dessas fontes para compreender como a vaga pedaggica Escola Novista
foi apropriada pelas Escolas Normais paulistas no que diz respeito ao ensino de
Matemtica ou de uma educao matemtica1.
1.1 Sobre a trajetria pessoal do pesquisador
Minha primeira formao ocorreu na ltima iniciativa de ensino normal em
2005 pelo CEFAM (Centro Especfico de Formao e Aperfeioamento do Magistrio)
de Itapetininga, no interior do Estado de So Paulo; posteriormente, graduado como
Pedagogo (2009), pela UNOPAR (Universidade Norte do Paran), e especialista em
Psicopedagogia (2011), pela Faculdade Anhanguera de Jundia. Ao longo dessa
formao, sempre lanamos questes referentes ao processo de ensino da Matemtica,
que motivaram a escolha por um programa de ps-graduao stricto-sensu, a fim de
buscar novas maneiras de compreender os problemas que se evidenciam em relao
ao ensino da disciplina de Matemtica. Tendo encontrado na UNIFESP, em 2011, um
1 Por conveno, os pesquisadores que integram o GHEMAT vm utilizando-se de uma distino entre Educao Matemtica de educao matemtica, a primeira expresso refere-se a um campo de pesquisa, a segunda trata do ensino e aprendizagem de matemtica em diferentes perodos de tempo (LEME da SILVA; VALENTE, 2009, p. 11).
12
programa que possibilita a busca por essas respostas, entramos em contato nesse ano
com o GHEMAT2.
nesse grupo, criado em 2000, que pesquisando, como orientando da
professora Dr. Maria Clia Leme da Silva, entro em contato com um grande projeto,
ainda em andamento denominado A Matemtica na Formao do Professor do Ensino
Primrio em Tempos do Escolanovismo, 1930 19603 e constato que muitos dos
problemas que so investigados no presente no podem ser compreendidos antes de
se compreender que intrinsecamente a eles existe uma historicidade.
Compreendendo que a existncia dos problemas se faz permeada pela
cultura escolar, surge um primeiro interesse pelo estudo da histria dessa disciplina, por
meio da formao matemtica dos professores em uma das mais antigas escolas
normais do Estado de So Paulo, a Caetano de Campos.
1.2 O Projeto Guarda-Chuva
Em uma das pesquisas desenvolvidas no mbito do GHEMAT, discutiu-se a
formao matemtica do professor primrio at finais da dcada de 19204. No perodo
em que essa investigao se encerrou, encontra-se a emergncia de um iderio que
comea a se difundir pelos discursos dos educadores, o Escolanovismo. Como
resultado desse encontro, surge a questo: quais seriam as transformaes que a
Matemtica, na formao dos professores para o ensino primrio, sofreria com a
chegada das ideias escolanovistas?
A formao na modalidade Normal avanou pela dcada de 1930 sofrendo
alteraes, como a proposta elaborada por Fernando de Azevedo e Ansio Teixeira e
2 Mais informaes sobre o GHEMAT Grupo de Pesquisa de Histria da Educao Matemtica no Brasil podem ser obtidas no site: http://www.unifesp.br/centros/ghemat/. 3 O projeto conta com financiamento do CNPQ. 4 Mais conhecimentos sobre o trabalho pode ser visto em VALENTE, Wagner Rodrigues. A Matemtica na formao do professor do ensino primrio em So Paulo (1875-1930). 2010 p. 121. Tese (Livre Docncia). So Paulo: Departamento de Educao da UNIFESP.
13
que culmina na criao do Instituto de Educao do Distrito Federal e do Instituto de
Educao de So Paulo (VALENTE, 2011, p. 4), elevando a formao de professores
do nvel secundrio para o nvel superior.
Ao final da existncia dos Institutos de Educao de So Paulo, o curso de
Pedagogia foi criado na Universidade de So Paulo, em 1939, contudo voltado para a
formao de especialistas do ensino e profissionais para atuarem no Ministrio de
Educao. Alguns anos mais adiante, a Lei Orgnica do Ensino Normal, publicada em
1946, legitimou docncia como papel do normalista. Diante de tantas
transformaes, apresenta-se a questo que busca compreender o que ocorre com a
Matemtica presente na formao dos professores nesse perodo.
O projeto A Matemtica na Formao do Professor do Ensino Primrio em
Tempos de Escolanovismo, 1930-1960 engloba sete subprojetos com investigaes
especficas acerca dos temas: a Matemtica nos Institutos de Educao na dcada de
1930; a Matemtica presente no curso de Pedagogia; as mudanas sofridas no
conceito de nmero; as discusses presentes nos manuais pedaggicos; o uso de
situaes-problema no ensino da Matemtica; as orientaes contidas nos peridicos
pedaggicos. Cada um dos assuntos apresentados est sendo desenvolvido por um
pesquisador, no mbito de subprojetos de mestrado e de iniciao cientfica
Alm dos trabalhos em andamento recm-apresentados, integra o projeto
guarda-chuva a presente pesquisa, em que buscamos conhecer e compreender a
Matemtica presente na formao dos normalistas da pela escola Caetano de Campos,
nos anos que circunscrevem a criao da Lei Orgnica do Ensino Normal. A presena
desta lei e de outros documentos oficiais utilizados em nossa investigao podem
colaborar para melhor compreender as mudanas ocorridas no funcionamento dessas
escolas, mais especificamente no Estado de So Paulo. Junto com esses documentos,
utilizaremos aqueles encontrados no arquivo da escola Caetano de Campos, tendo em
vista as importantes transformaes ocorridas nesse lcus de formao docente.
14
1.3 A Elaborao do Recorte
Sendo esta pesquisa parte de um projeto maior e coletivo, o primeiro recorte
a ser elaborado na construo do objeto trata da escolha pela corrente de pensamento
a ser investigada: O Escolanovismo. Esse movimento vigorou durante um grande
perodo na educao brasileira, no sendo possvel marcar-lhe uma data de incio e
uma de trmino, j que diversas pequenas mudanas e permanncias sempre se fazem
presentes. De maneira geral, podemos afirmar que o iderio do movimento teve grande
fora pelas proximidades do incio da dcada de 1930 (SAVIANI, 2008; ROSA, 2009;
VALENTE, 2010), especialmente atravs da ao de educadores que reformaram o
ensino e colaboraram para a propagao das ideias, avanando para as dcadas
seguintes.
O segundo recorte elaborado quanto formao de professores, elemento
indispensvel na compreenso da histria das disciplinas escolares, j que so estes
que em ltima instncia atuaro na elaborao dos currculos, os profissionais que
produziro prticas envolvendo os saberes disciplinares, e aqui, especificamente, em
Matemtica.
Por fim, cabe determinar que a investigao se ocupar de uma escola
normal, a Caetano de Campos, pela importncia que essa escola tem ao longo de sua
existncia, enquanto espao de formao de professores. Assim, a disciplina
privilegiada nessa investigao ser aquela de carter mais didtico, denominada
Metodologia e Prtica de Ensino Primrio5.
Diante disso, surge a questo de investigao, que pode ser definida, grosso
modo, por: como a matemtica se faz presente na formao dos normalistas que
frequentaram o curso de formao de professores ao longo da dcada de 1940 na
escola Caetano de Campos?
5 Verifica-se, em alguns documentos produzidos pelos normalistas, o nome da disciplina como Metodologia do Ensino Primrio; pelas nossas investigaes, referem-se mesma disciplina registrada de modo conciso.
15
2 AS FERRAMENTAS METODOLGICAS
Aps a construo do nosso recorte, apresentamos nas prximas pginas as
ferramentas metodolgicas utilizadas na construo de respostas para a questo de
investigao que se busca compreender. Dessa forma, passa-se, neste momento, a
discutir essas opes que atuam como suporte para as anlises elaboradas
posteriormente.
2.1 A possibilidade de construo de uma questo
Nas primeiras dcadas do sculo passado, dois historiadores se destacaram
como lderes do movimento dos Annales, Lucian Febvre e Marc Bloch. Apesar de
possurem personalidades muito diferentes, os dois trabalharam juntos por um perodo
de vinte anos entre as duas grandes Guerras Mundiais (BURKE, 1992 p. 16).
Este trabalho no tem como objetivo discutir a trajetria desses historiadores
ou do movimento que lideraram, mas utilizar profundamente diversos trabalhos que
foram elaborados a partir desse movimento e por autores que ampliaram as discusses
por eles iniciadas, especialmente pelas contribuies da chamada Histria Cultural, de
onde sero retirados diversos conceitos e mtodos de investigao.
devido s discusses do incio do sculo XX elaboradas sobre a escrita da
Histria que um leque de novos objetos passveis de serem estudados se abre, dentre
eles a cultura escolar, permitindo assim a construo da pergunta de pesquisa a que se
pretende responder.
Para comear a caracterizar a pesquisa, um bom ponto de partida pode ser
situ-la no mbito da produo cientfica, que, por mais elementar que possa parecer,
no pode ser desconhecida. Entre as diferentes finalidades da produo acadmica,
destacamos duas, uma primeira que busca solucionar, inovar e resolver os problemas
vivenciados pelas pessoas no cotidiano; a outra
tem por motivao preencher uma lacuna nos conhecimentos: melhor conhecer e compreender (...) Trata-se ento de um tipo de pesquisa destinado, em princpio, a aumentar a soma dos saberes disponveis, mas que podero em algum momento, ser utilizados com a finalidade de
16
contribuir para a soluo de problemas postos pelo meio social. (LAVILLE; DIONNE, 1999, p. 86)
nessa perspectiva de pesquisa que o GHEMAT, Grupo de Histria da
Educao Matemtica no Brasil (GHEMAT) mobiliza esforos, na produo de novos
conhecimentos sobre a Histria da Educao Matemtica.
Ainda se utilizando das orientaes de Laville e Dionne sobre a elaborao
da questo de pesquisa, possvel saber que encontrar um bom problema de
pesquisa no e fcil para um iniciante (...) os pesquisadores se distinguem uns dos
outros pela qualidade de sua intuio, a perspiccia de suas observaes, sua
curiosidade crtica (1999, p. 100-101), mas asseguram ainda que essas capacidades
podem ser desenvolvidas com a prtica, certamente com as trocas possveis de serem
realizadas com pesquisadores mais experientes, leituras e debates.
Retomando um dos recortes elaborados, o Escolanovismo (tambm
conhecido como Escola Nova e cujos princpios sero tratados em um captulo prprio),
deparou-se com um perodo amplamente explorado pela Histria da Educao em que
se destacaram trabalhos de diversos autores, entre eles, Carlos Monarcha (1999;
2009), Martha Maria Chagas de Carvalho (2002), Rosa Ftima Souza (2009), Otaza de
Oliveira Romanelli (2010), Dermeval Saviani (2011), Leonor Tanuri (2011).
Em relao a essa vaga pedaggica da educao brasileira, a pesquisadora
Rosa Ftima de Souza, em seu trabalho intitulado Alicerces da ptria: Histria da
Escola primria no Estado de So Paulo (1890-1976), fruto de sua tese de Livre
Docncia defendida na UNESP, afirma que:
Esse perodo merece ateno especial dos historiadores da educao, tendo em vista os novos padres de racionalizao escolar institudos e as rupturas e continuidades operadas em relao aos processos pedaggicos, isto , a forma pela qual as formulaes doutrinrias da escola nova foram apropriadas e incorporadas na cultura escolar (SOUZA, 2009, p. 182).
Ao realizar seu trabalho, Souza (2009) reconheceu que ainda necessrio
direcionar atenes s novas apropriaes que passam a integrar a cultura escolar no
Escolanovismo brasileiro.
17
Nesse sentido, Andr Chervel (1990) apontou para o surgimento do interesse
dos pesquisadores sobre as diferentes disciplinas escolares ao afirmar que:
tem-se manifestado uma tendncia, entre os docentes, em favor de uma histria de sua prpria disciplina. Dos contedos do ensino, tais como so dados nos programas, o interesse ento evoluiu sensivelmente para uma viso mais global do problema, associando-se as ordens do legislador ou das autoridades ministeriais ou hierrquicas realidade concreta do ensino nos estabelecimentos, e algumas vezes, at mesmo s produes dos alunos (CHERVEL, 1990, p. 177).
A compreenso a ser desenvolvida nesta dissertao, em virtude da
construo de um subprojeto, trata de analisar como a Matemtica desenvolvida na
formao do aluno que frequentava o curso normal da escola Caetano de Campos na
dcada de 1940, tendo em vista as assimetrias existentes na vaga pedaggica que se
instalou no Brasil durante grande parte do sculo passado.
Nessa dcada, em escala federal, Gustavo Capanema, frente do Ministrio
de Educao e Sade, promulgava um conjunto de decretos-lei, com o ttulo de leis
orgnicas, que reformariam todo o sistema educacional e que, em sua totalidade,
ficariam conhecidas como a Reforma Capanema6. Uma delas, denominada como Lei
Orgnica do Ensino Normal, com data de dois de janeiro de 1946, por tratar
especificamente da formao do normalista, tida como um dos pontos de partida para
a pesquisa.
Busca-se- compreender como o conjunto de leis e, principalmente, o
pensamento Escolanovista foi, ou no, apropriado pelas Escolas Normais, em especial
a Caetano de Campos, no que diz respeito ao ensino de matemtica. Qual disciplina foi
central na formao do normalista no que tange a tal questo? Quais referncias so
6 Decreto-Lei n 4.048, de 22/01/1942 Cria o SENAI (Servio Nacional de Aprendizagem Industrial); Decreto-Lei n 4.073, de 30/01/1942 Lei Orgnica do Ensino Industrial; Decreto-Lei n 4.244, de 09/04/1942 Lei Orgnica do Ensino Secundrio; Decreto-Lei n 6.141, de 28/12/1943 Lei Orgnica do Ensino Comercial; Decreto-Lei n 8.529, de 02/01/1946 Lei Orgnica do Ensino Primrio; Decreto-Lei n 8.530, de 02/01/1946 Lei Orgnica do Ensino Normal; Decretos-Lei n 8.621 e 8.622, de 10/01/1946 Criam o SENAC (Servio Nacional de Aprendizagem Comercial); Decreto-Lei n 9.613, de 20/08/1946 Lei Orgnica do Ensino Agrcola. (HISTEDBR. Glossrio: Leis Orgnicas do ensino. Disponvel em: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/ Acesso em 07/11/11).
18
chamadas para discutir o ensino da Matemtica nessas escolas? Como eram as
atividades produzidas pelos alunos normalistas tendo em vista o ensino da
matemtica? Essas so perguntas que norteiam a questo de pesquisa.
Entre os trabalhos com foco na educao matemtica, destacamos as
investigaes produzidas por Valente (2010), Santos (2006), Souza (2011) e Garnica e
Souza (2012). Nossa investigao tem como foco a formao de professores em uma
escola normal, e dialoga com os trabalhos acima citados, pela proximidade dos objetos
de estudo, que de modo geral abarcam temas em relao ao ensino de matemtica em
tempos de escolanovismo.
Na investigao de Valente (2010), com o objetivo de compreender a
presena da matemtica na formao dos professores paulistas, o autor destaca que
Aritmtica, lgebra e Geometria constituem contedos de referncia, que parecem
permanecer imutveis na formao do magistrio primrio em So Paulo, pelo menos
at a dcada de 1930, e que o como ensinar aparta-se do o qu ensinar nos cursos
normais. Prima-se pela formao geral do professor, com um currculo enciclopdico,
que v capacit-lo aos ensinos atravs de estgios prticos (VALENTE, 2010, p. 114).
Ao mesmo tempo,
matrizes metodolgicas como o ensino intuitivo, o mtodo analtico, o mtodo analtico intuitivo etc. tm apropriao diferenciada no caso do ensino de aritmtica. Todas elas, no entanto, elegem um contraponto comum para se afirmarem: o ensino verbalstico, especialmente tratado com as tabuadas e sua memorizao, cunhado como ensino tradicional. E, mais: as Cartas de Parker constituem a grande referncia para descontruir essa representao do passado do ensino de matemtica nas escolas primrias. De qualquer forma, a educao paulista nutre-se dos Estados Unidos para organizar os seus discursos e prticas nas reformas do ensino (VALENTE, 2010, p. 115).
Valente evidenciou, portanto, que algumas das influncias presentes na
formao de professores paulistas, at o ano de 1930, tiveram origem norte-americana;
dentre elas, destacou a utilizao das Cartas de Parker e a forte presena dos
contedos matemticos de formao geral no curso normal, representados por
Aritmtica, lgebra e Geometria.
19
A tese de doutorado, defendida em 2006, de Ivanete Batista Santos, cujo
objetivo foi de compreender a produo de Edward Lee Thorndike referente ao ensino
de Aritmtica, lgebra e Geometria, aponta, nesse autor:
a defesa de problemas com enunciados semelhantes s situaes do cotidiano do aluno representa, no caso de Thorndike, um diferencial em relao aos seus contemporneos. Sua justificativa no est baseada nem na teoria da disciplina mental, nem em uma suposta necessidade interna dos contedos matemticos; est sustentada na tese de que aprendizagem conexo; da a indispensvel presena de elementos idnticos para garantir a efetiva aprendizagem. Fundamental, tambm, a relevncia por ele atribuda utilizao de situaes para o desenvolvimento do raciocnio, entendido como organizao e controle de hbitos. Por isso, Thorndike conferiu equivalente importncia seleo dos problemas e hierarquia de conexes mentais ou hbitos a serem formados (SANTOS, 2006, p.237).
Para Thorndike os problemas que tm como ponto de partida a vida levam
em conta a psicologia e permitem que o aluno estabelea conexes para que a
aprendizagem ocorra. Alm disso, destaque-se, ainda, a constatao de que, por meio
dos seus manuais de Aritmtica e lgebra, Thorndike procurou alterar, de modo
controlado, as formas de atuar do professor e as de aprender do aluno (SANTOS,
2006, p. 237).
Ao investigar o Grupo Escolar Eliazar Braga, a pesquisadora Luzia Aparecida
de Souza analisou, entre outros documentos, atas das reunies pedaggicas em que
verificou, entre os assuntos, sobre a Escola Nova e suas propostas de projetos; sobre
centros de interesse (que determinavam um tema a ser explorado por todas as
disciplinas durante o ano) (SOUZA, 2011, p. 27). Afirma ainda que :
A escola Nova envolvia um projeto de aulas globalizadas sobre as quais o inspetor Luiz Amrico Iutroini deu orientaes na reunio de 14/03/1933. Das frases primordiais (a observao, a associao e a expresso), apontadas anteriormente, a associao foi exposta como sendo a articulao de diversas disciplinas em torno de um ponto de partida, de um centro de interesse. [...] Quatro meses aps a palestra de Luiz Amrico, o diretor Brtas apresenta como imprescindvel, no sistema de aulas globalizadas, o uso de cartazes construdos com a colaborao dos educandos (SOUZA, 2011, p. 189) [...] Sintetizando palestras de inspetores de ensino sobre as propostas da Escola Nova segundo Decroly, o diretor do grupo Eliazar Braga, em 1933, apresenta como imprescindvel o sistema de aulas globalizadas,
20
bem como a utilizao de cartazes construdos com a colaborao direta dos educandos. Quanto s prticas de ensino de matemtica, possvel apontar alguns indicativos a partir dos registros encontrados como, por exemplo, aquele relativo ao aumento gradual no nvel de dificuldade dos problemas propostos a cada ano do ensino primrio e a constncia na exigncia de que cada resoluo garantisse a apresentao do enunciado, da resposta, da soluo e das operaes. Pelos registros da dcada de 1930, percebe-se que no apenas as atividades e o trabalho manual eram enfatizados, mas tambm o clculo mental (SOUZA, 2011, p. 388).
O estudo indica que princpios escolanovistas, dos quais destacamos as
aulas globalizadas, com forte influncia do pensamento de Decroly, esto presentes
nos discursos sobre prticas pedaggicas desenvolvidas no Grupo Escolar Eliazar
Braga, na dcada de 1930.
Outra anlise obtida a partir das investigaes de Garnica e Souza a
existncia de assimetrias no movimento Escolanovista, no citado grupo escolar,
marcado pela existncia de permanncias de algumas prticas: as propostas da
Escola Nova explicitamente conviviam com a defesa da necessidade de memorizao e
treino. Isso refora nossa percepo de que iderio algum ser detectado, em nenhuma
situao e em tempo algum, numa forma pura, apartada de prticas que se mantm em
meio a expectativas de superao (GARNICA; SOUZA, 2012, p.8). Alm disso, os
pesquisadores constatam ainda a presena da circulao do pensamento de Decroly,
por meio dos mtodos dos centros de interesses e de aulas globalizadas (GARNICA;
SOUZA, 2012, p. 11-16).
Outro estudo, a dissertao de mestrado de Carlos Souza Pardim, cujo
objetivo foi compreender, a partir dos manuais pedaggicos, as orientaes que
estruturaram a formao de professores na Escola Normal em Campo Grande (Mato
Grosso), aponta que A Lei Orgnica do Ensino Normal (1946) influenciou o ensino
nessas escolas a partir do ano de 1948, quando o governador do estado, Arnaldo
Estvo de Figueiredo, regulamenta novamente o Ensino Normal (PARDIM, 2013, p.
117) dividindo-o em dois ciclos.
Pardim destaca ainda a importncia que os manuais pedaggicos tiveram na
formao desses professores, dentre eles o de Theobaldo de Miranda Santos,
21
Metodologia do Ensino Primrio, pois procurou atender s especificaes da Lei
Orgnica do Ensino Normal (PARDIM, 2013, p. 119):
diante das argumentaes de Santos sobre os mtodos ativos, aquilo que possivelmente concebe como sendo um bom mtodo. Dentro daquilo que foi apontado, o autor deixa transparecer que o mtodo deve proporcionar a participao ativa do aluno (estmulo investigao, autonomia e experimentao), proporcionar regularidade e continuidade no trabalho em sala de aula, trabalhar com problemas que envolvam situaes reais, alm das necessrias repeties de exerccios para a fixao da atividade (PARDIM, 2013, p.99).
Como se percebe, o foco de nossa investigao um perodo conturbado,
marcado por diversos princpios renovadores. Buscaremos compreender melhor a
disciplina, responsvel pela formao pedaggica do professor, no que diz respeito ao
ensino da matemtica nesse perodo. O nosso inqurito se dirige para a maneira pela
qual os normalistas aprendiam a ensinar a referida disciplina, investigando a
apropriao presente nessa cultura em relao quilo que se propunha a lhes ser
ensinado e, para isso, lanamos mo das ferramentas metodolgicas que
apresentaremos em seguida.
2.2 Das ferramentas utilizadas
Tendo como referncia pesquisas anteriores, o GHEMAT produz novos
conhecimentos para a rea da Educao Matemtica com um ferramental metodolgico
que vem sendo usado pelos historiadores da educao. Em sntese, esses profissionais
vm utilizando a chamada Histria Cultural para a produo de tais trabalhos, tendo
como um de seus representantes Roger Chartier.
Para colaborar na seleo das ferramentas utilizadas para esta pesquisa
recordamo-nos de alguns pensamentos de Marc Bloch presentes na obra chamada
Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador, uma obra que infelizmente no foi
acabada, pois o autor foi executado pelos nazistas em 16 de junho de 1944.
Um dos elementos a se atentar o ttulo desse trabalho, especificamente a
palavra ofcio, que carrega o sentido de trabalho realizado por algum, uma profisso
22
que detm um conjunto de conhecimentos especficos para a sua execuo. Tendo
claro que o que o ttulo no diz, mas o texto sim, que Marc Bloch no se contenta em
definir a histria e o ofcio de historiador, mas quer tambm assinalar o que deve ser a
histria e como deve trabalhar o historiador (LE GOFF apud BLOCH, 2001, p16)7.
A primeira das ideias de Bloch adotada para a elaborao dessa
investigao que o historiador trabalhando sozinho jamais compreender nada seno
pela metade, mesmo em seu prprio campo de estudos; e a nica histria verdadeira,
que s pode ser feita atravs da ajuda mtua, a histria universal (BLOCH, 2001, p.
68) demonstrando assim a importncia do dilogo entre diversos campos de
conhecimentos. Nesse sentido o que se pode produzir pelo dilogo entre o
conhecimento da educao matemtica e os procedimentos historiogrficos tende a ser
mais relevante no sentido de conhecimento cientificamente elaborado.
Alm disso, Bloch ensina que a incompreenso do presente nasce
fatalmente da ignorncia do passado (BLOCH, 2001, p. 65), demonstrando a relao
dialgica entre passado e presente, presente e passado. Sabendo-se, ento, da
importncia do conhecimento acerca do passado, foi possvel escolher as ferramentas
adequadas para este estudo, que passaro a ser apresentadas a seguir, buscando
demonstrar a sua articulao com o objeto estudado.
A escrita da histria requer a tomada de conscincia sobre a brecha
existente entre o passado e sua representao, entre o que foi e o que no mais e as
construes narrativas que se propem a ocupar o lugar desse passado (CHARTIER,
2010, p. 12) o passado j aconteceu e no est mais integrando o presente, dessa
forma ser possvel apenas conceber uma representao dessa realidade a partir das
fontes que estiverem disponveis.
Para isso, foi necessrio compreender o conceito de representao de Roger
Chartier, apresentado pela tenso entre duas famlias: na primeira, a representao
como dando a ver uma coisa ausente, o que supe uma distanciao radical entre
7 A citao do prefcio do livro escrita por Jacques Le Goff.
23
aquilo que representa e aquilo que representado; na segunda, a exibio de uma
presena, como apresentao pblica de algo ou de algum, ficando claro que no
primeiro sentido a representao uma construo capaz de figurar pela coisa ausente
sem o ser (CHARTIER, 2002, p. 20).
Compreendido o conceito de representao, foi possvel tomar a escrita da
histria como uma narrativa, em que entraram em jogo figuras retricas e estruturas
que tambm so da fico, sem, entretanto negar a legitimidade dessa produo
enquanto conhecimento, pois
a histria um discurso que produz enunciados cientficos, se se define com esse termo a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitam controlar operaes proporcionais produo de objetos determinados (DE CERTEAU, 1975, p. 64, nota 5). Todas as palavras dessa citao so importantes: produo de objetos determinados remete construo do objeto histrico pelo historiador, j que o passado nunca um objeto que j est ali; operaes designa as prticas prprias da tarefa do historiador (recorte e processamento das fontes, mobilizao de tcnicas de anlise especficas, construo de hiptese, procedimentos de verificao); regras e controles inscrevem a histria em um regime de saber compartilhado, definido por critrios de prova dotados de uma validade universal (CHARTIER, 2010, p. 16).
O que, com efeito, diferencia a narrativa historiogrfica das demais narrativas
o compromisso com o procedimento historiogrfico do qual depende o ofcio do
historiador. A produo desse tipo de narrativa est sujeita verificabilidade e
intensamente comprometida com a veracidade em toda a sua construo.
Novamente, vale retomar a ideia de representao de Roger Chartier (2002)
tendo em vista a importncia que esse conceito confere escrita da histria por permitir
articular trs modalidades de relao com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificao e de delimitao que produz as configuraes intelectuais mltiplas, atravs das quais a realidade contraditoriamente construda pelos diferentes grupos; seguidamente, as prticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira prpria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posio, por fim as formas institucionalizadas e objectivadas graas as quais uns representantes (instncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visvel e perturbada a existncia do grupo, da classe ou da comunidade (CHARTIER, 2002, p. 23).
A partir dessa definio, foi possvel realizar anlises acerca das disputas
marcadas entre as legislaes e as prticas que tratam da formao do normalista, j
24
que no so simplesmente reproduzidas e aceitas por aqueles a quem elas visam ao
regular as prticas. Michel de Certeau afirma que a relao de consumo dessas
representaes que circulam (nesse caso, as leis escritas, j que o texto em si a
representao de normas e procedimentos que no esto materialmente presentes)
no passiva, e no indicam de modo algum o que ela para seus usurios
(CERTEAU, 2008, p. 40)
Existe entre a representao e a prtica uma apropriao ou uma
reapropriao em que as maneiras de fazer constituem as mil prticas pelas quais
usurios se reapropriam do espao organizado pelas tcnicas da produo scio-
cultural (CERTEAU, 2008, p. 41). O estudo dessas maneiras de fazer permitiu
perceber a existncia de permanncias (que demonstram resistncia em relao quilo
que imposto) e rupturas (que podem demonstrar apropriaes das representaes
que se encontram em circulao).
Aes cotidianas como falar, ler, circular so entendidas por Certeau como
aes do tipo tticas, o que equivale a dizer que so realizadas por aqueles que no
detm o poder, tratam-se de um clculo que no pode contar com um prprio, nem
portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visvel. A ttica s tem
por lugar o do outro (CERTEAU, 2008, p. 46), em oposio a estratgia postula um
lugar suscetvel de ser circunscrito como algo prprio e ser a base de onde se podem
gerir as relaes com uma exterioridade de alvos ou ameaas (CERTEAU, 2008, p.
99).
As aulas da disciplina Prtica de Ensino encontram-se na categoria de
tticas, em relao s leis e orientaes. Assim, interessou investigar as apropriaes
realizadas nessas prticas e compreender em que medida elas representavam uma
produo em relao aos documentos legais em circulao e vaga pedaggica
escolanovista.
25
2.3 O trabalho com as fontes
As legislaes, os programas e as prticas realizadas nas antigas escolas
normais fazem parte de um conjunto de documentos que sero explorados em nossas
anlises. Os elementos citados integram a cultura escolar de um tempo que ficou
conhecido como Escolanovismo. De tal modo, a pesquisa elabora uma representao
sobre o que se pode ler a respeito da matemtica presente na formao dos
professores.
Para melhor definir o conceito de cultura escolar e, portanto, desenvolver a
anlise aqui proposta, usou-se a elaborao de Julia em que:
Para ser breve, poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de prticas que permitem a transmisso desses conhecimentos e a incorporao desses comportamentos; normas e prticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as pocas (2001, p. 10)
Essas finalidades referidas por Julia podem ser lidas, segundo Chervel, em
parte pela histria das disciplinas, j que em diferentes pocas os contedos de
instruo so colocados a servio das diferentes finalidades que vo surgindo e sendo
impostas escola como sua funo educativa (1990, p. 187-188). Tais finalidades se
fazem presentes no conjunto normativo, nos programas escolares, nos mtodos etc.,
entretanto o mesmo autor alerta que as finalidades de ensino no esto todas
forosamente inscritas nos textos (CHERVEL, 1990, p. 189). Por essa razo, as fontes,
leis e programas utilizados na nossa investigao so colocadas em posio de
desconfiana, uma vez que representam apenas uma parte dos elementos constituintes
da cultura escolar em questo, e submetidos a processos de crtica para a construo
de fatos histricos almejando a comprovao de sua veracidade.
Pode-se afirmar que o que sobrevive no o conjunto daquilo que existiu no
passado, mas uma escolha efetuada quer pelas foras que operam no desenvolvimento
temporal do mundo e da humanidade, ou seja, aquilo que permite que documentos
sobrevivam ao tempo e continuem existindo nos arquivos, podendo ser utilizados para
26
evocar o passado, quer pelos que se dedicam cincia do passado e do tempo que
passa, os historiadores (LE GOFF, 2003, p. 525).
Podemos ampliar a afirmativa de Le Goff se tomarmos outros pesquisadores
que tm como objeto a educao e que, ao longo do tempo, deixaram para a
humanidade um legado de escolhas. Pode-se ainda ter como responsveis pela
sobrevivncia de conjuntos de representaes, entendendo como aquilo que pode ser
tomado para a compreenso de significados de outros tempos, a ao de legisladores e
reformadores que, atravs de suas obras, forneceram um conjunto de significados que
podem ser interpretados.
devido a movimentos que rompem paradigmas, como os Annales, que
o interesse da memria coletiva e da histria j no se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a histria que avana depressa, a histria poltica, diplomtica, militar. Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos implcita dos documentos (LE GOFF, 2003, p. 531).
Nosso interesse neste trabalho suscita um conjunto de documentos que fez
parte da vida de homens que no podem ser chamados de grandes e de
acontecimentos que no ficaram conhecidos mundialmente; so pessoas que
ensinam e aprendem, que vivem em situaes de aulas e que um dia foram professores
que ensinaram Matemtica.
nesse ponto que podemos nos certificar do valor institudo na escolha dos
documentos utilizados para nosso trabalho e afirmar que se tornam verdadeiros
documentos/monumentos:
o documento no qualquer coisa que fica por conta do passado, um produto da sociedade que o fabricou segundo as relaes de foras que a detinham o poder. S a anlise do documento enquanto monumento permite memria coletiva recuper-lo e ao historiador us-lo cientificamente, isto , com pleno conhecimento de causa (LE GOFF, 2003, p. 536)
As mais importantes leis de uma nao at atividades utilizadas no cotidiano
de uma sala de aula demonstram relaes em que os jogos de poder decidem o que
fica registrado e constitudo, para que no futuro possa evocar a memria daqueles que
o acessam de maneira ativa, j que reconstroem os significados destes. Por essa
27
razo, no se pode acreditar ingenuamente naquilo que encontrado sem a devida
submisso crtica. Partilhando desse entendimento, um segundo conjunto de escolha
reconhecido, o do historiador:
A interveno do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto de dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua prpria posio na sociedade da sua poca e da sua organizao mental, insere-se numa situao inicial que ainda menos neutra do que a sua interveno. O documento no incuo. , antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da histria da poca, da sociedade que o produziram, mas tambm das pocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silncio (LE GOFF, 2003, p. 537-538).
Tomado dessa maneira, o documento, produzido por uma sociedade e
preservado por esta e por outras, passa a ser entendido como monumento, j que se
trata de um objeto produzido pela cultura de um tempo. Para que melhor possa ser
compreendido o documento/monumento, pode-se tomar o conceito de cultura de Geertz
como
essencialmente semitico. Acreditando, como Max Weber, que o homem um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua anlise; portanto, no como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa, procura do significado (GEERTZ, 1989, p. 15)
A partir do prximo captulo, buscaremos utilizar os documentos, entendidos
agora como monumentos, para a construo de significados acerca do ensino de
Matemtica no Curso Normal. Como transformar em monumentos os documentos?
Para isso, a busca em arquivos escolares imprescindvel, uma vez que neles
encontra-se uma diversidade de materiais
que podem permitir compor um quadro da educao matemtica em outros tempos... dirios de classe, exames, provas, livros de atas, fichas de alunos e toda uma srie de documentos esto nas escolas para serem interrogados e permitir a construo de uma histria da educao matemtica... parte a esses documentos, existe toda uma documentao oficial normativa e legislativa do funcionamento do ensino. Decretos, normas, leis e reformas da educao, constituem material precioso para a anlise de como a educao pensada em diferentes momentos histricos e de que modo se busca ordenar sua prtica (VALENTE, 2007, p. 39)
28
No texto Arquivos escolares virtuais, consideraes sobre uma prtica de
pesquisa (Valente, 2005), o autor indica que a existncia de uma srie de valiosos
documentos que resistem ao tempo aqui e ali, contando com acasos e circunstncias
que resultaram na preservao de exames e provas8, possvel compor conjuntos
desses documentos para fins de estudo da cultura escolar (2005, p. 179). Esses
acasos consistem substancialmente em situaes de poder atuando sobre os arquivos
e decidindo sobre o que preservado ou no. Entre os documentos produzidos no
passado e que podem ser acessados nos arquivos escolares, encontram-se aqueles
que foram utilizados como avaliaes, que muito contribuem na elaborao da histria
das Disciplinas Escolares, pois nos permitem a
anlise dos contedos selecionados pelos professores como mais significativos de seu trabalho pedaggico com os alunos;... podem ainda, atravs da anlise dos enunciados dos exerccios e questes, possibilitar a leitura que o cotidiano escolar realiza de uma determinada poca histrica, ... Em realidade, os exames e provas concentram sobre a forma de exerccios e questes todos os objetivos explcitos do processo de ensino-aprendizagem de uma determinada disciplina (VALENTE, 2005, p. 179).
Dessa maneira, a busca nos arquivos escolares consistiu em parte
fundamental da presente investigao, pois foi a partir dela que detectamos e
selecionamos os documentos submetidos crtica, usados como fontes, especialmente
os documentos que auxiliaram a responder s questes sobre os processos de ensino
e aprendizagem da Matemtica.
8 Em nossa investigao, utilizaremos como fontes privilegiadas um conjunto de avaliaes encontradas na Escola Caetano de Campos.
29
3 ENTRE O CONHECIDO E O DESCONHECIDO
Com a chegada da dcada de 1930, o novo governo tomaria como uma de
suas primeiras medidas a criao do Ministrio da Educao e Sade Pblica, sendo
dirigido por Francisco Campos, que promoveu a primeira reforma desse governo
(SAVIANI, 2011, p. 195). Foram criados ainda o Instituto de Educao Caetano de
Campos e o curso de Pedagogia.
Esses so alguns dos acontecimentos que evidenciam a ao de propostas
reformadoras, um perodo marcado por conhecimentos de ordem biopsicolgica, que
em alguma medida influenciaram a estrutura do Curso Normal. Verificou-se a criao de
mais um ano no curso de formao de professores paulistas e a promulgao da Lei
Orgnica do Ensino Normal.
3.1 Uma nova forma de pensamento: A Escola Nova
O perodo no qual o estudo direcionou a investigao conhecido na
literatura por uma diversidade de denominaes, mas todas se referem ao movimento
educacional que estava em processo de estabelecimento: escola nova, escola ativa,
educao nova, escola do trabalho, entre outras que, de forma geral, recusavam a
pedagogia clssica, tendo como referncia central a obra de Johann Friedrich Herbart
(1776-1841) e que se apoiavam principalmente nas recentes descobertas que a
psicologia fornecia sobre o desenvolvimento da criana e de sua aprendizagem
(MONARCHA, 2009, p.23).
Desde a dcada de 1920, possvel encontrar vestgios da influncia do
pensamento Escolanovista no Brasil, mas tais influncias tornaram-se mais evidentes
na dcada seguinte. Um indcio da presena dos princpios da Escola Nova o
30
Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova9, publicado um pouco depois da criao do
Ministrio de Educao e Sade. O grupo de signatrios visualizava, naquele momento,
uma inorganizao no aparelho escolar, pois para eles faltavam dois elementos
indispensveis no sistema escolar brasileiro: o esprito cientfico e o esprito filosfico.
Essa ausncia os fazia concluir que nunca chegamos a possuir uma cultura prpria,
nem mesmo uma cultura geral que nos convencesse da existncia de um problema
sobre objetivos e fins da educao (AZEVEDO, 2006, p.188).
Aps a publicao desse documento, contendo alguns dos princpios do
movimento renovador, alguns dos educadores que o assinaram tomariam importantes
cargos pblicos.
Foi nesse perodo que Loureno Filho10, como integrante do movimento da
Escola Nova, trouxe o esprito cientfico solicitado para a educao, frente do
laboratrio de Psicologia Experimental da Escola Normal de So Paulo. Esse educador
acreditava que a medida psicolgica deve ser efetuada rapidamente e em condies
simples, por meio de testes que permitam a verificao do valor individual, para
posterior classificao racional dos escolares (MONARCHA, 1999, p. 303).
Uma das obras elaboradas e defendidas por Loureno Filho foi o manual
Testes ABC11, que supostamente deveria conferir ao trabalho escolar uma maneira de
classificar os alunos a partir de seus desempenhos. Em 1928, Loureno Filho e seus
9 O Manifesto dos Pioneiros da Educao um documento publicado originalmente no ano de 1932, tendo como ttulo A reconstruo educacional no Brasil ao povo e ao governo com o objetivo de indicar os caminhos pelos quais a escola pblica deveria seguir, sendo assinado por um grupo composto por 26 educadores, o primeiro signatrio foi Fernando de Azevedo, seguido por M. Bergstrm Loureno Filho, A. de Sampaio Dria, Ansio Spinola Teixeira (AZEVEDO, 2006). Trataremos do Manifesto dos Pioneiros em um captulo prprio, mais adiante. 10 Loureno Filho (1897-1970) estudou na Escola Normal de Pirassununga e, posteriormente, na Escola Normal Secundria da Praa da Repblica, em So Paulo. Foi responsvel por reformas em sistemas educacionais, das quais a primeira aconteceu entre 1922 e 1923 no Cear (FVERO; BRITO, 1999, p. 365- 373). 11 Instrumentos de uma nova psicometria articulada ao tratamento estatstico que visa a identificar lgica e objetivamente a variedade mental, os testes ABC contm oito provas destinadas a medir os atributos particulares do aluno, a fim de assinalar as deficincias particulares de cada criana, objetivando a consequente organizao racional das classes escolares. As provas psicolgicas medem: coordenao visivo-motora (sic.), memria imediata, memria motora, memria auditiva, memria lgica, prolao, coordenao motora e mnimo de ateno e fatigabilidade (MONARCHA, 1999, p. 308)
31
colaboradores aplicariam exames psicolgicos a 814 alunos matriculados no Jardim de
Infncia, instituio anexa Escola Normal da Praa (MONARCHA, 1999, p. 307),
demonstrando, de tal modo, a possibilidade de seu uso em grande nmero de alunos.
De certa forma, podese afirmar que o uso desses testes possibilitaria a
concretizao do sonho dourado da pedagogia: formao de classes homogneas,
classes especiais de retardados e de bem-dotados de inteligncia (MONARCHA, 1999,
p. 304). a pedagogia experimental de Loureno Filho conquistando cada vez mais
evidncia num ambiente em que se desejava a construo de um modelo educacional
moderno. dessa maneira que os normalistas colocam-se na posio de especialistas,
prontos para atuar na organizao e direo da sociedade (MONARCHA, 1999, p. 312).
3.2 Alguns pensadores do escolanovismo
Alm do trabalho acima citado, Loureno Filho voltou-se para questes que
envolviam a avaliao e o ensino, alm de elaborar os famosos Testes ABC. Ele
publicou cartilhas, textos didticos e livros a serem utilizados nas escolas elementares,
operou ao longo de sua vida como administrador, pesquisador e docente de Psicologia,
o que lhe permitiu um grande nmero de publicaes especializadas que por mais de
cinquenta anos circularam no ambiente educacional. Saviani afirma que Loureno Filho
foi uma figura-chave no processo de desenvolvimento e divulgao das ideias
pedaggicas da Escola Nova no Brasil (SAVIANI, 2011, p. 206).
Segundo Carvalho (2002, p. 387), ao trocar cartas com o diretor da Escola
Normal do Cear, Loureno filho estimulava a adoo do mtodo de Decroly, um dos
diversos sistemas de pedagogia que poderia ser entendido como parte do movimento
renovador.
Entre os trabalhos desse educador, destaca-se o livro Introduo ao Estudo
da Escola Nova, de 1930, pois foi
amplamente o livro que mais eficazmente compendiou e difundiu os saberes e as crenas que deram forma verso triunfante dessa nova pedagogia. Vale a pena l-lo, aqui, como dispositivo de interveno nessa disputa e como pea de uma estratgia editorial interessada em
32
transformar a escola brasileira, promovendo uma nova cultura pedaggica do professorado (CARVALHO, 2002, p. 393)
Ao longo de seu percurso, Loureno Filho interagiu com outros educadores;
um de seus colegas na Escola Normal de So Paulo foi Fernando de Azevedo12. Em
1927, a pedido do presidente da Repblica, Washington Luiz, e do prefeito Antnio
Prado Jnior, Fernando de Azevedo assumiu a funo de diretor geral da Instruo
Pblica do Distrito Federal, perodo em que realizou uma reforma que para Saviani
(2011) seria a primeira concatenada ao iderio renovador da Escola Nova. Azevedo
ocuparia esse cargo at 1930, ano em que o ento presidente e o prefeito foram
depostos.
A atuao de Fernando de Azevedo no campo da Educao ocorreu devido
a relaes profissionais que mantinha com figuras importantes, pelas reformas
realizadas e diversas publicaes em jornais e livros. Participou da fundao da USP,
onde foi regente da cadeira de Sociologia, disciplina pela qual j manifestava interesse
desde sua atuao na Escola Normal.
Saviani (2011, p. 210) atribuiu a Fernando de Azevedo o reconhecimento
como o principal divulgador e apologeta do movimento. Sua formao, diferente de
Loureno Filho, no foi no mbito pedaggico: recebeu uma formao clssica do tipo
jesutico, tendo como primeira ao no campo educacional a elaborao de um projeto
introduzindo a cadeira de educao fsica em carter obrigatrio.
Outro educador que discutiu princpios escolanovistas foi Ansio Teixeira13,
que, durante sua vida profissional, manteve contato com Fernando de Azevedo e
Loureno Filho. A carreira educacional sempre foi a escolha de Ansio Teixeira, tendo
prevalecido sobre a possibilidade de tornar-se jesuta e poltico, uma vez que dispunha
12 Nascido em Minas Gerais, Fernando de Azevedo (1894-1974) concluiu o curso de Direito em 1918. Ocupou diversos cargos educacionais, entre eles o de professor de Latim e Psicologia; tambm foi diretor do Instituto de Educao Caetano de Campos e da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da USP e Secretrio da Educao de So Paulo. 13 Nascido em Caetit, (1900 1971), atuou em diversos cargos pblicos e visitou a Europa e os Estados Unidos, onde pde observar diversos sistemas escolares. Faleceu no Rio de Janeiro (FVERO; BRITO, 1999, p. 56-73).
33
da presena de sua famlia na poltica baiana. Saviani (2011, p. 218) lembra as
dificuldades que essa escolha encerrava: no final da dcada de 1920, a educao no
estava ainda caracterizada profissionalmente e, assim como hoje, gozava de muito
pouco reconhecimento social.
Entre as ideias renovadoras de Ansio Teixeira, merecem destaque as que
situaram-se no mbito da formao docente, sendo ele o responsvel pela criao do
Instituto de Educao e transformando a Escola Normal de Professores. Atuou na
gesto da Educao do Distrito Federal de 1931 at 1935, quando, devido ao golpe do
Estado Novo, teve que se demitir da funo que exercia. Discordava dos rumos
autoritrios que a educao no pas seguia (SAVIANI, 2011, p. 218-119).
Com o fim do Estado Novo, Ansio Teixeira assumiu a funo de Secretrio
da Educao a pedido do novo governador, Otvio Mangabeira. Ficou nessa funo no
perodo compreendido entre 1947 e 1951. Ocupou o cargo de secretrio geral da
CAPES e, no ano seguinte, adquiriu tambm a funo de diretor do INEP. Sobre esse
assunto, Saviani informa que Ansio Teixeira:
permaneceu em ambos os postos at 1964, quando, em decorrncia da ditadura militar, teve seus direitos polticos cassados e foi afastado da vida pblica, perdendo todos os seus cargos, com exceo da condio de membro do Conselho Federal de Educao (CFE), cujo mandato se encerraria em 1968. (SAVIANI, 2011, p. 220)
O educador Ansio Teixeira entendia que a educao no poderia ser tratada
como um privilgio para poucos, pois era um direito de todos, e o espao pblico
deveria se ocupar em defesa dele ao invs de assegurar a defesa dos interesses
privados (SAVIANI, 2011, p. 222).
Dessa forma, Teixeira empenhou-se na organizao e administrao do
sistema escolar, introduzindo servios de matrcula, frequncia e obrigatoriedade
escolar, alm de avaliar a aprendizagem com o uso de testes escolares por intermdio
de um servio central especializado, removendo essa responsabilidade das escolas que
tratavam desses assuntos de maneira isolada. Ansio Teixeira trabalhou ainda na
construo de um sistema educacional em que as diferentes etapas possussem
articulao (SAVIANI, 2011, p. 226).
34
Admirador da pedagogia de John Dewey, durante sua vida Ansio Teixeira
realizou duas viagens decisivas em sua formao aos Estados Unidos, em 1927 e
posteriormente em 1929, onde obteve o ttulo de Master of Arts na Universidade de
Columbia, perodo em que realizou estudos com John Dewey (1859-1952). Seu
falecimento ocorreu em condies obscuras: foi encontrado morto no poo de um
elevador no ano de 1971 (SAVIANI, 2011, p. 221).
3.3 O Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova
Uma das interaes desses trs pensadores escolanovistas pode ser
entendida como a participao na elaborao do Manifesto dos Pioneiros da Educao
Nova: atribuda a Fernando de Azevedo a tarefa de elaborar um documento que
apresentasse solues para os problemas educacionais vividos no Brasil, 26
signatrios apresentaram, em 1932, o documento que ficaria conhecido como o
Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova (SAVIANI, 2011, p. 234-235)
Fernando de Azevedo argumentava que resolver os problemas da educao
nacional tratava-se de uma responsabilidade histrica, defendendo que, em 43 anos de
repblica, no ocorrera ainda uma reforma associada aos problemas econmicos e
educacionais. Apresentava ainda a importncia do esprito cientfico e do uso das
tcnicas desenvolvidas cientificamente. Pregava uma reforma dotada de
fundamentao filosfica e de abrangncia social (SAVIANI, 2011, p.242).
Nesse documento, l-se a defesa de uma escola acessvel a todos os
cidados, independentemente de suas condies econmicas e sociais; alm disso, os
princpios de laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e coeducao se faziam presentes
(SAVIANI, 2011, p. 245).
Na voz de Saviani:
Em termos polticos, o Manifesto expressa a posio de uma corrente de educadores que busca firmar-se pela coeso interna e pela conquista da hegemonia educacional diante do conjunto da sociedade capacitando-se, consequentemente, ao exerccio dos cargos de direo da educao pblica tanto no mbito do governo central como dos Estados federados. (SAVIANI, 2011, p. 254).
35
Cargos importantes seriam ocupados, frente da educao, por diversos
desses educadores ao longo das dcadas seguintes. Os trs representantes do
movimento Escolanovista, Loureno Filho, Fernando de Azevedo e Ansio Teixeira,
merecem destaque nesta pesquisa por terem exercido papis junto escola Caetano
de Campos e em relao formao de professores.
3.4 Uma nova racionalizao, os conhecimentos biopsicolgicos
O sculo XX desponta novo em folha, propondo uma nova experincia de
tempo e de espao urbanos (MONARCHA, 1999, p. 291). Pensar no futuro se torna a
urgncia desse tempo, e os reformadores, ex-normalistas, tomaram para si a
responsabilidade pela composio das mudanas que se estabeleceriam no pas e
na Escola Normal os espritos se mobilizavam para uma ofensiva renovadora. Antes de educar a criana, mister [...] conhecer-lhe a alma: donde a necessidade de uma psicologia infantil. Mas esse conhecimento reclamava previamente que se olhe e estude o corpo [...] (ALMEIDA JNIOR apud MONARCHA, 1999, p. 293).
Lemos nas palavras de Almeida Jnior14 (1882-1971) a presena do
conhecimento de algo que at agora no era foco no processo educativo, o corpo, o
conhecimento do funcionamento humano. Prope-se, ento, uma educao que se
baseasse em processos cientficos, especialmente aqueles validados por cincias como
a psicologia e a fisiologia.
Os normalistas aos quais o autor se refere eram tambm frutos de uma nova
maneira de pensar a educao, e, em alguma medida, as posies dos educadores
republicanos perdem espao para aqueles que exaltavam a imagem da mquina; v-
14 Segundo o Dicionrio de Educadores do Brasil Antnio Ferreira de Almeida Jnior atuou como professor, diretor, auxiliou Sampaio Dria no cargo de auxiliar do Diretor-Geral do Ensino da Secretaria de Educao do Estado de So Paulo, Chefe do Servio Mdico Escolar do Estado de So Paulo, entre outros, formou-se em medicina e posteriormente obteve ttulo de Doutor com grande distino. Alm de interagir com Sampaio Dria, foi professor de Loureno Filho, colaborou com Fernando de Azevedo e Gustavo Capanema. Nascido em Joanpolis, So Paulo, em 1892, faleceu em 1971, em So Paulo, Capital (FVERO; BRITO, 1999, p. 82-98).
36
se nos normalistas dissidentes a disposio de herdar o mundo na construo de um
futuro moderno, pela educao. Dentre esses normalistas, destacam-se os j citados
Fernando de Azevedo e Loureno Filho, dispostos a construir um futuro a partir da
sociologia, da biologia e da psicologia. Dessa forma:
Reformadores que no rompem de fato com a cultura acadmica oficial, os dissidentes improvisam uma ruptura com o passado, assumindo-se como cultores da biologia tributria das teses eugenistas, da sociologia positivista atualizada por mile Durkheim e de uma determinada forma de psicologia objetiva ou cientfica que ultrapassa os limites da psicofsica clssica (MONARCHA, 1999, p. 297).
O movimento Renovador, liderado por normalistas, aos poucos vai
solidificando suas ideias nos diversos sistemas utilizando-se das reformas que
promovem pelo pas:
O novo florilgio retrico exalta: a tcnica, a eficincia, o rendimento e a organizao e, sobretudo, a mquina, representada como poder humano sobre a natureza, instrumento emancipador e signo de um elevado patamar civilizatrio (MONARCHA, 1999, p. 297).
A palavra de ordem em um movimento educacional permeado pela
psicologia o de buscar novas maneiras de entender o ensino. Dessa maneira, o
esprito renovador atua politicamente sobre a educao. (MONARCHA, 1999, p. 299).
Assim seriam as reformas pretendidas por Loureno Filho, que, ao assumir as cadeiras
de Psicologia e Pedagogia na Escola Normal de So Paulo, direcionou todos os seus
esforos no desenvolvimento desses saberes.
Foi ainda na Escola Normal de So Paulo que Loureno Filho, frente do
laboratrio de Psicologia Experimental, exerceu uma grande influncia sobre um grupo
de professores que colaboraram no debate que se organizava na poca: coesos e
sintonizados, defendiam a psicotcnica como uma das maneiras de articular a
pedagogia com o rendimento dos alunos.
O uso dos testes ABC, elaborados por Loureno Filho, demonstra um ponto
de vista em que a organizao social um fenmeno que pode ser dominado por meio
de tcnicas cientficas e, nesse caso, as relacionadas biologia; separa os alunos em
37
fortes e fracos e determina a velocidade com que aprendem, sem levar em conta outros
fatores que possam vir a resultar na aprendizagem.
Algumas vezes, a racionalizao dos testes na organizao das classes
ofereceu avano nas taxas de aprovao do primeiro para o segundo ano de cerca de
50% a 60%, e a pedagogia experimental de Loureno Filho vai elevando essa
porcentagem, num momento de busca pela escola sob medida defendida por
Claparde15 (MONARCHA, 1999, p. 331).
3.5 O Ensino Normal
Na primeira metade do sculo XX, uma das principais maneiras de se formar
professores para o ensino primrio no Brasil era o Curso Normal, uma modalidade de
ensino que foi se espalhando para atender o sistema educacional em constante
expanso, sendo que os estados organizaram independentemente, ao sabor de seus
reformadores, os seus respectivos sistemas (TANURI, 2000, p. 68 - 69). Dessa forma,
uma diversidade de iniciativas quanto formao dos professores surgiu nos diferentes
estados brasileiros.
A primeira Escola Normal fundada no Brasil de 1830, em Niteri RJ. A
de So Paulo, como segunda ou terceira tentativa, em 1875/1878, chegando em 1949
a um total de 540 escolas espalhadas pelo pas (ROMANELLI, 2010, p. 168). Essas
escolas formaram professores por mais de um sculo.
Mais adiante, neste texto, veremos como tais escolas passaram a funcionar
na dcada de 1940 diante da promulgao da Lei Orgnica do Ensino Normal, mas
desde j importante esclarecer o funcionamento da escola Caetano de Campos, pois
confuses podem ocorrer devido ao nome da escola.
15 Claparde acreditava que: preciso levar em conta as diferenas de aptides, porque ir contra o tipo individual ir contra a natureza (CLAPARDE, 1973, p. 177) (CLAPARDE, E. A Escola Sob Medida. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1973
38
Um dos primeiros diretores dessa escola foi o mdico Antnio Caetano de
Campos, que, com auxlio de Miss Mrcia Priscilla Browne, executou a reforma da
Escola Normal da Praa16 (MONARCHA, 1999, p. 174). Essa reforma foi centrada no
trabalho de Heinrich Pestalozzi e nas lies de coisas, proposta de N. A. Calkins
(MONARCHA, 1999, p. 179):
O professor ideal a encarnao do mtodo oficial de ensino: o mtodo intuitivo fundamentado na biologia e na psicologia da infncia e ao associacionismo. O emprego do mtodo intuitivo percepo e viso das coisas sensveis e formulao de conceitos exatos objetiva a obteno de conhecimento direto ou imediato do mundo (MONARCHA, 1999, p. 180)
segundo esse esprito que a Escola Normal da Praa iniciou o sculo de
1900. O Curso Normal passa por diversas alteraes, incluindo e excluindo anos,
trocando cadeiras e as remanejando at que
o novo regulamento da Instruo Pblica do Estado de So Paulo, aprovado e posto em vigor por Cesrio Motta Jnior, consolidava a legislao do que deveria ser a estrutura do ensino de novembro em diante e que, no seu aspecto tcnico-pedaggico, vigorou em suas linhas gerais at 1920 (REIS FILHO apud MONARCHA, 1999, p. 205).
A partir da, a emergncia do novo pensamento possibilita que as questes
psicobiolgicas preconizadas pelo Escolanovismo ganhem espao nos laboratrios de
psicologia, considerando esta uma atividade cientfica superior (MONARCHA, 1999, p.
299).
Com a chegada da dcada de 1930, foi criado o Instituto de Educao
Caetano de Campos, com a inteno de formar professores primrios em nvel superior.
Durante o perodo de funcionamento desse Instituto, o diretor foi Fernando de Azevedo.
Na maior parte da dcada de 1930, a formao oferecida na Escola Normal
era realizada em nvel superior, e seguiu um modelo internacional de formao
baseado na concepo de Ansio Teixeira. Esse funcionamento encerrou-se com a
incorporao do curso Universidade de So Paulo, e o curso normal voltou a ser
16 Um dos primeiros nomes da Escola Caetano de Campos.
39
oferecido em nvel secundrio. Com o fechamento do Instituto, o nome Escola Caetano
de Campos adotado novamente.
Com a implantao da Lei Orgnica do Ensino Normal, os estabelecimentos
que ofereciam, alm desse curso normal, os de especializao e aperfeioamento
passaram a se chamar Institutos de Educao. Foi o que aconteceu com a Escola
Caetano de Campos, a partir de 1947. Entretanto, importante atentar para a questo
do nome da instituio; apesar de ser mantida a nomenclatura, ela, no correr dos anos,
refere-se a estruturas educacionais diferentes, j que, no Instituto de Educao
Caetano de Campos (1947), a formao Normal era realizada em nvel secundrio,
marcando a sua diferena com o Instituto de Educao da dcada de 1930.
Em nosso texto utilizaremos, para melhor restringir o curso, o nome escola
normal Caetano de Campos e quando nos referirmos ao Instituto de Educao Caetano
de Campos trata-se do perodo que segue dos anos 1947 adiante.
3.6 A Lei Orgnica do Ensino Normal
No Estado de So Paulo, foco de nossa investigao, at a dcada de 1940,
poderiam ser alunos normalistas aqueles que tivessem concludo o curso ginasial.
Entretanto, no ano de 1944, uma mudana foi introduzida nessa formao: para poder
frequentar o curso profissional de formao de professores, tambm conhecido por
Curso Normal, alm de concluir o curso ginasial, o aluno deveria ser aprovado no
recm-criado curso pr-normal17.
Com durao de um ano, o curso pr-normal, realizado aps a concluso do
curso ginasial, era composto por nove disciplinas18, contando com um regime de
17 Decreto-Lei n. 14.002, de 25 de maio de 1944. Dispe sobre a criao do curso pr-normal e d outras providncias. 18 Determinado pelo Art. 2 do Decreto-Lei n. 14.002, de 25 de maio de 1944: Portugus; Histria da Civilizao Brasileira; Matemtica e Noes de Estatstica; Cincias Fsicas e Naturais; Anatomia e Fisiologia Humanas e Noes de Higiene; Msica e Canto Orfenico; Desenho; Trabalhos Manuais; Educao Fsica.
40
exames idntico ao do curso de formao de professores. Ao concluir tal curso, o aluno
recebia um certificado de aprovao que lhe assegurava o direito de ingressar no
primeiro ano do curso de formao profissional das Escolas Normais, todavia, no
poderia lecionar apenas concluindo esse ano.
A aprovao no curso pr-normal permitia que o aluno continuasse seus
estudos no curso de formao de professores, e a reprovao o impedia de se
matricular em tal curso. Se o aluno fosse inabilitado em dois anos consecutivos, sua
matrcula no poderia ser readmitida19 nas escolas normais oficiais.
Aps a concluso do curso pr-normal, o aluno seguia para o de formao
profissional de professores, com durao de dois anos e composto por disciplinas
agrupadas em quatro sees: Educao; Biologia Educacional; Sociologia; Artes. Ao
concluir os trs anos de formao (o pr-normal mais dois de formao de professores),
o aluno tornava-se professor primrio.
Instituindo assim o curso pr-normal na dcada de 1940, o governo do
Estado de So Paulo mudou um pouco a organizao do Ensino Normal, entretanto
manteve essa formao realizada em um nico ciclo, em nvel secundrio. O ciclo nico
vigorava no Estado de So Paulo desde 1920 e continuaria assim mesmo aps a
diviso em dois ciclos estabelecida na Lei Orgnica do Ensino Normal no ano de 1946
(TANURI, 2000, p. 69).
Ainda na dcada de 1940, em nvel federal, Gustavo Capanema, frente do
Ministrio de Educao e Sade, promulgou um conjunto de leis orgnicas que
reformaria todo o sistema educacional. Essas leis ficariam conhecidas como a Reforma
Capanema, e a ltima delas ficaria conhecida como Lei Orgnica do Ensino Normal,
sendo promulgada em dois de janeiro de 1946.
Para Tanuri,
A Lei Orgnica do Ensino Normal, embora assinada logo aps o final da ditadura Vargas, havia sido gestada sob a mesma inspirao anterior, apresentando, entretanto, uma orientao menos centralizadora do que
19 Artigo 5 Decreto-Lei n. 14.002, de 25 de maio de 1944.
41
aquela que havia presidido elaborao dos anteprojetos originais. Na avaliao de Mascaro (1956, p. 16), de orgnico para o ensino normal (ela) trouxe exclusivamente o sentido que ao termo foi emprestado pelo longo perodo ditatorial, durante o qual organicidade foi, vastas vezes, confundida com uniformidade (MASCARO apud TANURI, 2000, p. 75)
Geralmente, as legislaes que recebem esse nome, Lei Orgnica, visam a
organizar, mas sempre tm como origem os princpios que se encontram na
Constituio. Cabe ainda lembrar que a palavra orgnica carrega um peso biolgico,
ou seja, trata-se de uma palavra que diz respeito aos rgos, ao organismo, ao
funcionamento do ser vivo e, nesse momento histrico, ideias de fundo biolgico
permeavam a educao, principalmente a das cincias psicobiolgicas.
A proposta da Lei Orgnica do Ensino Normal dividiu a formao do
professor em dois ciclos20. O primeiro deles equivalia ao estudo realizado em nvel
ginasial com durao de quatro anos; era responsvel pela formao do professor
regente primrio e permitia a continuidade de estudos no Curso Normal. Era ministrado
nas Escolas Normais Regionais com carter eminentemente rural e, para poder
frequent-lo, o aluno deveria comprovar ter concludo o ensino primrio.
O segundo ciclo, chamado de curso de formao de professores, tinha
durao de trs anos e poderia ser realizado pelos alunos que conclussem o curso
ginasial ou o primeiro ciclo do Curso Normal. Realizado nas Escolas Normais e nos
Institutos de Educao, habilitava o professor primrio e dava acesso a alguns cursos
superiores, desde que no houvesse ressalvas para a matrcula. Aps a concluso do
segundo ciclo, o normalista tambm poderia realizar os cursos de especializao
oferecidos pelos Institutos de Educao.
O quadro 1 ilustra a articulao estabelecida entre o Curso Normal e os
demais segmentos do curso secundrio.
20 Art. 2 do Decreto-Lei 8.530 de 2 de janeiro de 1946. Lei Orgnica do Ensino Normal.
42
Quadro 1 - Ensino Normal
Lei Orgnica do Ensino
Normal - 1946
Curso Secundrio Leis Paulistas do Curso
Normal
Fonte: Compndio de Legislao do Ensino Normal
Pela organizao do Curso Normal, presente na Lei Orgnica do Ensino
Normal, aps concluir o curso primrio o aluno poderia ingressar no primeiro ciclo desse
curso. Para realizar o segundo, o normalista deveria ter concludo o anterior ou o
Ginasial.
J a legislao paulista se apresentava de forma diferenciada, ou seja, para
poder realizar o Curso Normal, o aluno deveria ter concludo o Ginasial; para poder
conclu-lo, deveria realizar o primeiro ano, denominado curso pr-normal, e obter a
aprovao neste, e, depois disso, realizar os dois anos denominados Curso profissional
de formao de professores.
Nos dois conjuntos21 de leis do Estado de So Paulo publicados aps a Lei
Orgnica, nenhuma mudana no Curso Normal foi realizada, ou seja, sua organizao
continuou sendo a de um ano de curso pr-normal e dois anos de curso de formao de
professores. Alm das legislaes atuarem na organizao das escolas normais, como
os regimentos internos e os programas publicados para esse curso, um compndio com
essa documentao foi publicado no ano de 1953.
21 Em 1947, publicada a Consolidao das Leis do Ensino, e em 1953, o Compndio de Legislao do Ensino Normal.
Ginasial Ginasial
Clssico ou
Cientfico
1 Ciclo: Formao de professores regentes -
4 anos
2 Ciclo: Formao de professores
primrios 3 anos
Pr-normal
Curso profissional de formao de
professores
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De maneira geral, o escolanovismo se ope pedagogia considerada
tradicional, como visto anteriormente, e foi possvel verificar uma apropriao da
legislao quanto oposio, uma vez que a Lei Orgnica do Ensino Normal orientava
no sentido de que as aulas de formao do normalista22 deveriam adotar os processos
pedaggicos ativos na composio e execuo de seus programas.
Conceber, ento, uma Escola como Ativa, no que diz respeito s prticas,
deveria levar em conta que a prtica da escola ativa, como se v, exige
preliminarmente o conhecimento terico e prtico da psicologia gentica [...], do
domnio concreto do real: a alma da criana e o mundo, no seio do qual elas esto
mergulhadas [...] demonstrando assim um imbricamento entre a pedagogia e a
psicologia. O professor deve direcionar suas aes levando o aluno atividade
pessoal e, para esse fim, despertar o interesse da classe para certo objetivo, com o
que se consegue trabalho ativo (DVILA, 1954, p. 331).
Esse princpio escolanovista, o ensino ativo, presente na formao de
professores realizada nas Escolas Normais, tinha como pressuposto colocar o aluno em
atividade pessoal. Por essa razo, o conhecimento psicolgico era posto como parte da
formao dos professores, concebido como necessrio para despertar os interesses
dos alunos nas aulas. No curso normal, caberia Metodologia e Prtica de Ensino
Primrio a tarefa de formar nos normalistas a habilidade de colocar o aluno em
atividade a partir de seus interesses.
22 Art. 14. Atender-se- na composio e na execuo dos programas aos seguintes pontos: a) adoo de processos pedaggicos ativos.
44
3.7 O programa do curso Pr-Normal
Apesar de ser publicado em maro de 1953 pelo governo do Estado de So
Paulo atravs da Secretaria de Estado dos Negcios da Educao, no Compndio de
Legislao do Ensino Normal23 consta que
a publicao desse material em volume de fcil manuseio e agradvel disposio grfica constitua, sem dvida, providencia que se impunha, maxim tendo-se em conta a escassez dos folhetos distribudos pela Secretaria da Educao, em 1944, relativos a tais decretos e atos, de consulta diria (SECRETARIA DE ESTADO DOS NEGCIOS DA EDUCAO, 1953, p. 3)
Em sua totalidade, o Compndio era formado pelos programas do Curso Pr-
Normal, Programas das Escolas Normais do Estado de So Paulo, regimentos internos,
Lei Orgnica do Ensino Normal e atos que dispunham sobre a acumulao de cargos.
importante destacar que nenhum outro programa foi encontrado de 1944 at 1953.
Na Revista do Ensino (1947), h indicao de que os programas seriam
publicados anexos edio seguinte do peridico. Entretanto, verificado o documento,
foi constatada a inexistncia dessa publicao, o que corrobora a suposio de que os
programas encontrados em 1953 tenham vigorado desde a dcada anterior.
Vale destacar que nesse Compndio paulista constam a Lei Orgnica do
Ensino Normal e o programa do curso pr-normal. Porm, esse ano inicial no est
presente na legislao federal, sendo caracterstico apenas da legislao estadual.
Uma questo se abre: esses programas foram utilizados como referncia nos
currculos do Instituto de Educao Caetano de Campos? Compreendendo que as
mudanas na cultura escolar no so marcadas por rupturas imediatas e tratam de
processos construdos em grande medida pela ao interna (CHERVEL, 1990),
podemos supor disputas na construo do currculo em que entram em jogo o
pensamento externo e o interno das instituies. Como demonstra Certeau (2008), nem
23 Esse documento foi encontrado no Acervo Histrico Caetano de Campos e consta em sua pgina de rosto com um carimbo da E.E.P.S.G. Caetano de Campos, Biblioteca Paulo Bourroul, Reg. sob n 2582, So Paulo, 31-08-1981.
45
sempre a deciso que emana daquele que ocupa um lugar prprio cumprida em cada
detalhe, pois todas as estruturas esto sujeitas a falhas, das quais se aproveitam os
que no so prprios, pelo intermdio de tticas.
A construo do currculo executado nas escolas , acima de tudo, uma nova
produo daquilo que pode ser lido fora do ambiente escolar, demonstrando uma
apropriao do pensamento exterior e no uma incorporao fiel. Essa nova fabricao
deixa vestgios que podem ser confrontados na tentativa de representar como a disputa
ocorreu.
Analisando o documento direcionado para o curso Pr-Normal, o programa
em vigor desde o segundo semestre de 1944 determinava duas aulas semanais para a
disciplina de Matemtica e Noes de Estatstica, ou seja, h uma diferena no nmero
de aulas presentes na Consolidao das Leis do Ensino de 1947 que aumentou a carga
horria em uma aula semanal. Essa disciplina estava organizada, pelo programa, em
dezesseis itens, cada um representando diversos contedos matemticos e estatsticos
a serem trabalhados durante o ano letivo.
Entre esses contedos listados para a disciplina de Matemtica e Noes de
Estatstica encontram-se:
sistema mtrico; grandezas e unidades; resoluo analtica de quest
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