1
CRIADOR E CRIATURA: DISCURSOS DOS FÃS SOBRE A IDENTIDADE
DE H. P. LOVECRAFT ENQUANTO GÊNIO
Carlos Augusto Falcão Filho
Universidade Luterana do Brasil - Canoas
Neste artigo, pretendo analisar os discursos construídos sobre a identidade de H. P.
Lovecraf enquanto gênio, a partir do referencial teórico sobre discurso e autor concebido por
Michel Foucault. Farei algumas considerações sobre o medo, emoção bastante explorada por
Lovecraft em sua obra. Também levantarei alguns pontos sobre cultura da convergência,
cultura de fãs e universos transmidiáticos, utilizando as discussões de Henry Jenkins para
pensar a propagação desta identidade. E para finalizar analisarei uma fotografia do mestre do
horror e três ilustrações que o representam em uma ampla rede divulgada por fãs em sites e
comunidades virtuais que constroem e deslocam a identidade do autor.
Segundo S. T. Joshi (2014, p.39), atualmente, considerado um dos mais importantes
biógrafos de H. P. Lovecraft, o primeiro trabalho de prosa ficcional do autor é datado de 1897
e identificado como O nobre bisbilhoteiro, que “diz respeito a um menino que escuta mais do
que devia sobre um terrível conclave de seres subterrâneos em uma caverna”. Esta
informação, segundo Joshi, seria do próprio Lovecraft, visto que o trabalho não foi editado e
não sobreviveu ao tempo. Na época o futuro escritor era um menino de apenas sete anos que
nascera na cidade de Providence, nos Estados Unidos, em 1890.
É importante destacar que, na juventude, ele gostava de pesquisar astronomia – fato que
será importante na engenharia de suas próprias histórias – e escrever poesia. Também atuou
como jornalista amador. Teve seus primeiros trabalhos publicados nas revistas The United
Amateur e The Vagrant. Na The United Amateur, número 4, em 1916, publicou The
Alchemist. Na The Vagrant, número 7, em 1918, publicou The Beast in the cave, texto escrito
pela primeira vez em 1905, um dos seus primeiros contos. Na famosa revista pulp Weird
Tales, Lovecraft publicou, pela primeira vez, em 1923 o conto Dagon. Depois disto, suas
histórias continuaram aparecendo nas páginas da revista.
2
Na Weird Tales, em 1924, foi publicado o conto The Hound. Narrativa curta importante,
na medida em que apresenta, ao leitor, a primeira aparição do famoso livro fictício
Necronomicon (fig.1). O protagonista do conto em questão se refere ao livro como tendo sido
escrito pelo insano árabe Abdul Alhazred. Outro conto de extrema importância para a obra do
autor é O chamado de Cthulhu (fig.2), publicado em 1928 pela mesma revista. Na narrativa,
um culto misterioso é investigado. No clímax, uma gigantesca, horrível e indescritível criatura
milenar emerge imponente das profundezas do Oceano Pacífico.
Fig.1 – Necronomicon de Marc Simonetti. Fig.2 – Cover for the art book The Art of H.P. Lovecraft's Cthulhu Mythos de Michael Komarck.
Lovecraft não atingiu a fama enquanto era vivo. Após a sua morte, seus textos foram
republicados pelo também escritor Augusth Derleth, que criou uma editora chamada Arkham
House, com Donald Wandrei, para publicar e preservar a obra do amigo. Derleth, ao organizar
a obra de Lovecraft, batizou alguns de seus textos como fazendo parte de um ciclo. Diversos
contos foram incluídos no que ele denominou Mitos de Cthulhu.
Com a divulgação da obra de Lovecraft, a partir da Arkham House, na segunda metade
do século XX, o cinema americano também começou a beber na vertente do horror deixada
pelo autor. A partir dos anos noventa, até nossos dias, a literatura, o cinema, os quadrinhos, os
jogos de representação, analógicos e digitais, começaram a investir nos Mitos de Cthulhu e no
Necronomicon se utilizando deles para a realização de novas narrativas que exploram o
universo criado por Lovecraft e os seus arquétipos de personagens. É na Internet, nas
comunidades virtuais e nos sites, que o universo do autor mais se expande, a partir da
divulgação e de discussões sobre toda a produção que a ele se relaciona.
3
De acordo com Michel Foucault (2006, p.31), “a ausência é o lugar primeiro do
discurso (...)”. H. P. Lovecraft morreu em 1937 como bem sabemos. O escritor não caminha
mais entre os vivos. Foi sepultado em Providence, no Swan Point Cemetery. A morte pode ser
encarada como a sua ausência, mas o discurso produzido sobre ele posteriormente mantêm o
seu nome de autor vivo.
Em O que é um autor?, Foucault (2006, p.35) fala da escrita como prática e composta
de dois grandes temas. No primeiro, a escrita teria se libertado da expressão identificando-se
com sua exterioridade manifesta. No segundo, desdobra-se como um jogo que vai além das
regras e o extravasa. Neste sentido, os dois temas abririam espaço para que o sujeito da escrita
esteja sempre a desaparecer. Ou seja, a escrita guarda um parentesco com a morte. As
narrativas antigas glorificavam e consagravam o herói pela morte, com a intenção de
perpetuar, pela memória de seu feito, a imortalidade. Segundo Foucault (2006, p.36):
“A nossa cultura metamorfoseou este tema da narrativa ou da
escrita destinadas a conjurar a morte; a escrita está agora ligada ao
sacrifício da própria vida; apagamento voluntário que não tem de ser
representado nos livros, já que se cumpre na própria existência do
escritor. A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a
ter o direito de matar, de ser assassina do seu autor”.
Desta forma, haveria um apagamento dos caracteres individuais do escritor, uma perda
de sua individualidade; neste sentido, a singularidade da ausência seria a marca do escritor, a
representação do papel do morto no jogo da escrita, como coloca Foucault.
Foucault garante que a teoria da obra não existe. Aqueles que empreendem a edição de
obras completas logo esbarram no problema de definir o que é a obra entre os milhões de
vestígios deixados por alguém depois da morte. Não é possível, para Foucault, abandonar o
escritor e estudar a obra em si mesma. A unidade que a palavra obra designa é tão
problemática quanto o autor e a sua individualidade.
A escrita, segundo Foucault (2006, p.39), “(...) de algum modo retém o pensamento no
limiar dessa supressão; com subtileza, ela preserva ainda a existência do autor”. O autor
mantém os seus privilégios sob o salvaguarda do “a priori”. Desde Mallarmé, no século XIX,
o desaparecimento do autor é um acontecimento posto em discussão. Para Foucault (2006,
4
p.41), o que importa é encontrar “o espaço deixado vazio pelo desaparecimento do autor (...)”.
Os espaços vazios se encontram em um limiar, entre lacunas e fissuras que se deixam
descobertos.
Foucault (2006, p.42) afirma que “O nome de autor é um nome próprio; põe os mesmos
problemas que todos os nomes próprios (...)”. Desta maneira, é como uma indicação e
equivale a uma descrição. Foucault aponta o exemplo de Aristóteles. Em relação ao filósofo
grego podemos perceber o equivalente a uma série de descrições definidas, tais como “o autor
dos Analíticos” ou o “fundador da ontologia”. No entanto, isto não é tudo, pois segundo
Foucault (2006, p.42) “um nome próprio não tem uma significação pura e simples (...)”. Tanto
o nome próprio quanto o de autor situam-se nos polos da descrição e da designação. Possuem
ligação com algo que os nomeia. Segundo Foucault (2006, p.45):
“(...) um nome de autor não é simplesmente um elemento de
um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser
substituído por um pronome, etc.); ele exerce relativamente aos
discursos um certo papel: assegura uma função classificativa; um tal
nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los,
seleccioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o nome de autor
faz com que os textos se relacionem entre si; (...) o facto de vários
textos terem sido agrupados sob o mesmo nome indica que se
estabeleceu entre eles uma relação seja de homogeneidade, de filiação,
de mútua autentificação, de explicação recíproca ou de utilização
concomitante. Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um
certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome de
autor, o facto de se poder dizer ‘isto foi escrito por fulano’ ou ‘tal
indivíduo é o autor’, indica que esse discurso não é um discurso
cotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro,
imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve
ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura,
receber um certo estatuto”.
No caso de Lovecraft, o escritor e editor Augusth Derleth criou uma editora exatamente
para reunir e agrupar os textos do autor, reeditando-os pela Arkham House. Mais do que isso,
classificou certos textos do autor como pertencentes a um ciclo, chamado de Mitos de
Cthulhu. A relação de unidade e filiação a que se refere Foucault foi organizada por Derleth,
5
que produziu, assim, o efeito “nome do autor”. Os textos reunidos eram de Lovecraft e não de
outro. A autenticação necessária se deu em função do nome. Conforme assegura Foucault
(2006, p.46), o nome de autor “bordeja os textos, recortando-os, delimitando-os, tornando-
lhes manifesto o seu modo de ser ou, pelo menos, caracterizando-lho”. Assim instaura um
conjunto de discursos os quais estão no “interior de uma sociedade e de uma cultura
(Foucault, 2006, p.46)”.
Lovecraft criou um gênero próprio. É reconhecido como o inaugurador do horror
cósmico que se propaga por inúmeras edições de seus textos ou em imitações realizadas por
outros autores. Além disso, é seguido por um sem número de fãs ardorosos capazes de
reconhecer o universo dos Mitos de Cthulhu, não somente na literatura, mas em intertextos
que povoam o cinema, os quadrinhos, a música, as artes e os games, além de algumas
produções transmidiáticas. O horror cósmico como discursividade define o homem como
finito diante da infinitude do universo e de seus mistérios inesgotáveis. A possibilidade de
investigar o espaço e o avanço da ciência, já no século XIX, mostra o quanto somos pequenos
diante do macrocosmo. O horror está neste medo de saber. De saber que não podemos
conhecer tudo ou abraçar a imensidão. De saber que não conhecemos o outro em sua
plenitude, de reconhecer que temos medo do estranho, do não familiar, do estrangeiro e da
noite.
O medo, conforme o próprio Lovecraft dita, em seu ensaio literário O horror
sobrenatural em literatura, é “A emoção mais antiga e mais forte da humanidade”.
Certamente, o autor, além de observar a sua própria época, olhou também para o passado. O
historiador Jean Delumeau (1989, p.21), por exemplo, conta que os antigos gregos entendiam
o medo como uma punição dos deuses. Os irmãos Fobos (Medo) e Deimos (Temor) foram
divinizados em um esforço dos antigos para se conciliar com eles em tempos de guerra.
Alexandre, o Grande, por sua vez, teria oferecido um importante sacrifício a Fobos antes da
batalha de Arbelos. Em Roma, Pallor e Pavor, substitutos dos deuses gregos, foram
presenteados com santuários para que exércitos estrangeiros fossem expulsos de terras
romanas.
6
Na Idade Média, o medo não se dissipa e ganha novos contornos. Na cidade de
Augsburgo, no século XVI, não se entrava facilmente à noite. Certas precauções revelavam
um verdadeiro clima de insegurança:
“(...) quatro grossas portas sucessivas, uma ponte sobre um
fosso, uma ponte levadiça não pareciam excessivas para proteger
contra qualquer surpresa uma cidade de 60 mil habitantes que é, na
época, a mais povoada e a mais rica da Alemanha. Num país
atormentado por querelas religiosas e enquanto os turcos rondam as
fronteiras do império, todo estrangeiro é suspeito, sobretudo à noite”.
(DELUMEAU, 1989, p.12).
Delumeau (1989, p.19) percebe a segurança como uma necessidade que estaria na base
da afetividade e da moral humana. Desta maneira, representaria um esforço de preservação da
vida. Já a insegurança, por outro lado, corresponderia à morte. O medo seria ambíguo e
inerente à natureza, “(...) uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável que
permite ao organismo escapar provisoriamente à morte (Delumeau, 1989, p.19)”.
Quando pensamos no século passado, nos lembramos do fascismo, do nazismo, do
comunismo e do capitalismo. Pessoas investidas destes “ismos” operaram guerras, conflitos,
atribulações sociais e inúmeros embates ideológicos. Após os horrores da Segunda Guerra
Mundial, uma onda de pessimismo invadiu o mundo. A Guerra Fria dominou os lares das
pessoas em uma atmosfera de medo constante, o medo que revelava nossa incapacidade de
sobreviver a nós mesmos. O perigo de uma guerra nuclear se manteve preservado durante
décadas. Por alguns anos, com a queda do muro de Berlim e aberturas políticas ao redor do
mundo, tivemos a impressão de que as relações entre as nações e as pessoas poderiam
melhorar. No entanto, no século XXI, as incertezas voltam a nos assombrar. Os políticos
populistas estão renascendo das cinzas, a intolerância se tornando mais forte, guerras ainda
acontecem no Oriente, na África, em favelas do Brasil, o medo do outro, aquele que não é
supostamente igual a nós persiste, o medo do estrangeiro nos ronda em maior ou menor
medida.
Lovecraft morreu antes do início da Segunda Guerra Mundial. No entanto, os horrores
da Primeira Guerra já haviam sido mais do que suficientes para ele dialogar com o medo. Em
Dagon, o protagonista do conto é um comissário de bordo. O navio em que ele estava fora
7
capturado por um navio de guerra alemão. Quando o protagonista, no clímax da narrativa, se
depara com uma criatura gigantesca e repugnante, ocorre o choque violento que arrasa de vez
a sua sanidade. Nem mesmo toda a tecnologia contemporânea ou a racionalidade de nosso
tempo poderia competir com o desconhecido, com o antigo Deus-Peixe que habitava o mar. O
horror literário se mescla com a realidade, evocando nossos medos mais profundos e míticos.
Os medos narrados por Lovecraft, quase um século atrás, continuam servindo de
inspiração para outros autores, para roteiristas, cineastas, game designers e artistas. Criadores
de conteúdo produzem e atualizam as narrativas de horror lovecraftiana, gerando novas
histórias a partir do horror cósmico.
Lovecraft, em vida, teve muita dificuldade para publicar os seus trabalhos. Os seus
contos eram impressos separadamente em revistas pulp. Somente após a sua morte, foram
publicadas antologias, pela Arkham House, que reuniram a sua obra. Nos anos oitenta, a obra
de Lovecraft começa a ser conhecida por um número maior de leitores, que entram em
contato com suas criações não somente pelos seus livros, mas também por outras produções,
como o role play game: O Chamado de Cthulhu e filmes de horror, como Re-Animator: a
hora dos mortos-vivos do diretor Stuart Gordon e Necronomicon: o livro proibido dos mortos
dos diretores Brian Yuzna, Christophe Gans e Shu Kaneko.
A partir dos anos noventa, surge a Internet, que possibilita a expansão e a discussão de
toda sorte de conteúdos. Conforme Henry Jenkins (2009, p.29), com o advento da Internet e a
sua consolidação, as mídias velhas e novas entram em colisão, a “mídia coorporativa e a
alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem
de maneiras imprevisíveis”. Assim, o que o pesquisador chama de cultura da convergência,
possibilitou novas formas de propagar a informação e decisão do que deveria ser produzido. O
consumidor torna-se mais ativo e participante em relação ao que deseja consumir. Jenkins
(2009, p.29) também entende por convergência transformações “tecnológicas,
mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam
estar falando”.
As transformações tecnológicas podem ser vistas na utilização da própria Internet como
ferramenta de comunicação e na produção de produtos que atendam a demanda apontada
pelos consumidores. As transformações mercadológicas, por sua vez, podem ser notadas em
8
diversos setores da economia. O surgimento de uma franquia, por exemplo, não chega a ser
uma inovação, mas a partir do momento em que a Internet se consolida, as franquias se
reinventam mercadologicamente, investindo com mais força em seus universos narrativos
para ampliar a venda de produtos de uma mesma linha. São alguns modelos economicamente
bem sucedidos e idolatrados por legiões de fãs: Star Wars, Star Trek, Lord of the Rings e
Doctor Who. O horror cósmico de Lovecraft também ganha espaço ao ser dissecado, exposto,
explorado, imitado e reinventado pela Fantasy Flight Games no universo Arkham Horror
Files. As transformações culturais e sociais se dão na interação, na procura de novas
informações, na discussão, na realização de conexões dispersas em meio a conteúdos de mídia
e nos comentários que consumidores e fãs realizam em seus sites, em seus blogs, em seus
canais no youtube ou em redes sociais, como o Facebook.
Jenkins (2009, p.29) afirma que, “No mundo da convergência das mídias, toda a história
importante é contada, toda marca é vendida e todo o consumidor é cortejado por múltiplas
plataformas de mídia”. Não por acaso, os produtores de conteúdo – empresas que contratam
uma série de profissionais: ilustradores, games designers, roteiristas, escultores de miniaturas,
entre outros – investem em diversas plataformas para contar histórias diferentes em um
mesmo universo. Esta estratégia é chamada por Jenkins de transmídia. Os universos devem
comportam muitas histórias, muitos personagens, muitos cenários diferentes capazes de
manter o fã consumindo narrativas, sem a necessidade de que sejam somente narrativas
literárias. Ocorre um deslocamento do leitor da utilização de um suporte que era o livro
(impresso ou digital) para a experiência de consumir uma história em outro suporte que não o
livro. Neste momento, interagimos de maneiras diferentes com as histórias que “lemos”. As
narrativas se ampliaram nas plataformas de games com jogos digitais, nos jogos analógicos
cooperativos ou competitivos que contam histórias de personagens que precisam resolver
certos conflitos, em jogos de interpretação em que podemos até mesmo decidir qual ou quais
os caminhos nosso personagem deverá trilhar.
A cultura participativa contrasta com a passividade dos espectadores das velhas mídias.
Hoje, os consumidores ocupam um papel mais amplo na participação e na interação com os
produtores de mídia. Os fãs nos interessam, pois são uma parte importante desta cultura que
se organiza em torno de um produto ou de diversos produtos midiáticos. Com a utilização de
redes sociais, compartilhamento, conexão e propagação de conteúdos pode-se observar a
9
ocorrência de uma produção coletiva de significados – uma inteligência coletiva, conforme
aponta Jenkins (2006, p.30), e que pode mudar “(...) o funcionamento das religiões, da
educação, do direito, da política, da publicidade e mesmo do setor militar”.
No livro Cultura da conexão, Jenkins (2014, p.26) se refere à propagabilidade como o
“potencial – técnico e cultural – de os públicos compartilharem conteúdos por motivos
próprios, às vezes com a permissão dos detentores dos direitos autorais, às vezes contra o
direito deles”. O mercado em transformação (Jenkins, 2006, p.39) exige novas formas de se
contar histórias, de educadores conhecerem “comunidades informais de aprendizagem” e de
comunidades de fãs utilizarem criativamente as mídias emergentes. Segundo Jenkins (2006,
p.40), os fãs se deslocaram das margens invisíveis da cultura popular “para o centro das
reflexões atuais sobre produção e consumo de mídia”.
Em relação a H. P. Lovecraft, existem, no Brasil, alguns sites de fãs que apresentam sua
biografia e classificam a sua obra. Em comunidades no facebook são realizadas diariamente
postagens que divulgam e discutem produções relacionadas aos Mitos de Cthulhu. Também
em canais de youtubers de literatura, vídeo game e de jogos analógicos é possível conferir
resenhas de livros de Lovecraft ou de produtos que se vinculam ao horror cósmico do autor.
As comunidades de fãs aproveitam os recursos disponíveis na Internet, como sites, redes
sociais e canais do youtube, para propagar os discursos sobre o universo lovecraftiano.
O site de Denílson E. Ricci, em homenagem a Lovecraft, está em funcionamento desde
2003. Estimulado pela interação com outros fãs, o administrador do site criou a Editora Clock
Tower para publicar obras de H. P. Lovecraft e de outros autores que tenham escrito sobre os
Mitos de Cthulhu. De acordo com Ricci, seu objetivo era publicar “Livros que têm como
diferencial o ótimo acabamento e o fato de serem feitos com muito cuidado, algo de fã para
fã”. No blog O mundo tentacular: o horror de H. P. Lovecraft e do Mythos de Cthulhu, de
Luciano Paulo Giehl, criado em 2009, encontramos o seguinte texto de apresentação, após a
exaltação de colegas e amigos de Lovecraft que contribuíram para a expansão da sua obra:
“Graças a essa comunidade de autores e fãs, suas criações
continuaram vivas assombrando uma infinidade de fãs ao longo de
décadas. Elas inspiraram filmes, desenhos, quadrinhos, RPGs, séries
10
de televisão e é claro centenas de outros autores interessados em dar a
sua contribuição para detalhar ainda mais a Mythos”.
Percebe-se a circulação do nome de autor de Lovecraft, não somente pela escrita de
novas histórias realizadas por outros autores e novas narrativas criadas por produtores de
conteúdo em diferentes plataformas, mas também da propagação das produções que envolvem
o horror cósmico e o consequentemente os Mitos de Cthulhu, a partir de inciativas individuais
de fãs e de comunidades de fãs em uma cultura participativa.
No site de Donovan K. Loucks, The H. P. Lovecraft Archive, iniciativa de outro fã,
pinçamos uma fotografia de Lovecraft (Fig.3), de 1925, do período em que morou em Nova
York, no Brooklyn. Roland Barthes (1984, p.13) afirma que:
“O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorre uma vez: ela
repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se
existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para
outra coisa: ela reduz sempre o corpus de que tenho necessidade ao
corpo que vejo; ela é o Particular absoluto (...)”.
Fig.3 – Ano de 1925. Lovecraft diante do número 169 da Rua Clinton, no Brooklyn.
De acordo com Barthes (1984, p.116), a fotografia está marcada pelo noema do “Isso
foi”, o que vemos na fotografia encontrou-se lá, em determinado momento esteve presente,
11
mas já está diferido. Lovecraft é o referente da fotografia selecionada. E ser referente de uma
fotografia não é o mesmo que ser referente de uma ilustração. Bartes (1984, p.115) chama de
referente fotográfico “a coisa necessariamente real que foi colocada diante da objetiva, sem a
qual não haveria fotografia”. Enquanto a pintura “pode simular a realidade sem tê-la visto”.
Na fotografia, existe uma posição conjunta de realidade e de passado, que atesta o que existiu
de fato. Nas pinturas que representam Lovecraft com suas criaturas, ocorre uma construção
discursiva a partir do real e do ficcional gerado com base em suas narrativas de horror.
Segundo Barthes (1986, p.115), a intenção em uma fotografia não é a arte ou a comunicação,
mas sim a referência que é a sua ordem fundadora. A fotografia fala com certeza daquilo que
foi sendo um certificado de presença, desprovida de futuro reflui da apresentação para a
retenção. Para Barthes há um esmagamento do tempo na fotografia histórica: “isto está morto
e isso vai morrer”. Já na pintura, ou em montagens, nos parece que Lovecraft é imortalizado
dividindo espaço com Cthulhu e o seu panteão de alienígenas monstruosos ao redor.
Na figura número 4, postada sem identificação do artista, no grupo do Facebook O
mundo de Lovecraft, King, Poe, etc, um fã escreve um comentário irônico afirmando que
Lovecraft deve sair correndo de onde está, pois a criatura supera o criador. Já na figura
número 5, postada na página do Facebook – H. P. Lovecraft –, vemos a divulgação da venda
de uma camiseta com estampa representando Lovecraft e Cthulhu na panela. Desta vez, a
criatura, sendo cozinhada, é superada pelo autor.
12
Fig. 4 – Postada em março de 2017. Fig. 5 – Postada em julho de 2016.
A figura 6, postada sem identificação do artista, lembra os tradicionais retratos de
família. Foi divulgada no grupo público do Facebook: Culto Lovecraftiano. Em muitas destas
fotografias, as mulheres ficavam em pé ao lado dos homens, que permaneciam sentados. O
autor já não pode mais viver sem o seu principal personagem. A criatura o representa como
em uma união, um casamento. Na figura 7, postada no grupo fechado do Facebook Lovecraft
Brasil, Lovecraft é rodeada por suas criações em uma espécie de simbiose, autor e criaturas,
precisam um do outro em uma eterna dialética.
13
Fig. 6 – Postada em julho de 2016. Fig. 7 – Postada em dezembro de 2015.
Para finalizar, eis uma última figura selecionada, sem identificação de autor. A figura 8
também foi postada no grupo Lovecraft Brasil. A imagem transita entre o real e o ficcional na
medida em que parece muito mais uma fotografia do que uma simples ilustração ou
montagem. Acima da composição encontramos o seguinte cabeçalho: “Vocês acreditam na
possibilidade da mitologia de Lovecraft ser real?”. O questionamento gerou quase duzentos
comentários discutindo o quanto à obra de Lovecraft e os Mitos de Cthulhu poderiam conter
verdades.
Fig. 8 – Postada em março de 2015.
14
Não é incomum encontrar ilustrações de H. P. Lovecraft, espalhadas pela Internet, às
vezes de maneira fragmentada em redes sociais e por outras organizadas em sites. Lovecraft é
representado inúmeras vezes ao lado de suas criaturas. As representações, neste caso, podem
ser compreendidas como construções decorrentes do discurso que eleva Lovecraft ao patamar
de gênio: um autor criador de um discurso fundador – o discurso do horror cósmico. Discurso
este que é propagado por fãs que divulgam o seu universo pela rede em uma cultura
cooperativa e participativa.
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 6a. edição. Lisboa: Nova Vega, 2006.
HARRIGAN, Pat; WOOD, Brian. The art of H. P. Lovecraft: Cthulhu Mythos. Roseville:
Fantasy Flight Publishing, 2006.
JOSHI, S. T. A vida de H. P. Lovecraft. São Paulo: Hedra, 2014.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2a ed. São Paulo: Aleph, 2009.
JENKINS, Henry. Cultura da conexão: criando valor e significado por meio da mídia
propagável. São Paulo: Aleph, 2014.
LOVECRAFT, H. P. Dagon. São Paulo: Iluminuras, 2005.
LOVECRAFT, H. P. O Chamado de Cthulhu. In: O horror em Red Hook. São Paulo:
Iluminuras, 2000.
LOVECRAFT, H. P. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2007.
SITES
15
http://marcsimonetti.deviantart.com/art/The-necronomicon-116865917
http://mundotentacular.blogspot.com.br/
http://www.hplovecraft.com/
http://www.komarckart.com/bk_cov14.html
http://www.sitelovecraft.com/
GRUPOS DO FACEBOOK
Culto Lovecraftiano
https://www.facebook.com/groups/cultolovecraftiano/?fref=ts
Lovecraft Brasil
https://www.facebook.com/groups/Lovecraftbr/?fref=ts
H. P. Lovecraft
https://www.facebook.com/groups/226523014040839/?fref=ts
O mundo de Lovecraft, King, Poe, etc
https://www.facebook.com/groups/702710869839724/?ref=group_cover
Top Related