Universidade de So Paulo USP
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas FFLCH
Departamento de Cincia Poltica
Conrado Hbner Mendes
Direitos fundamentais, separao de
poderes e deliberao
So Paulo
2008
2
Universidade de So Paulo USP
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas FFLCH
Departamento de Cincia Poltica
Direitos fundamentais, separao de
poderes e deliberao
Conrado Hbner Mendes
Tese apresentada ao
Departamento de Cincia Poltica
da Faculdade de Filosofia, Letras
e Cincias Humanas da Universidade
de So Paulo, para a obteno do
ttulo de Doutor em Cincia Poltica.
Orientador: Prof. lvaro de Vita
So Paulo
2008
3
Ningum tem a ltima palavra porque no h ltima palavra.
Hanna Pitkin1
1 No one has the last word because there is no last word. (Obligation and ConsentII, p. 52)
4
Resumo
O controle de constitucionalidade de leis sempre foi objeto de desconfiana da teoria
democrtica. Sob qual justificativa juzes no eleitos podem ter a ltima palavra
sobre o significado de direitos fundamentais? assim que a questo costumou ser
formulada pela tradio. Alguns a responderam em favor desse arranjo, outros em
defesa da supremacia do parlamento. Essa seria uma encruzilhada da separao de
poderes e as teorias da ltima palavra se enfrentam nesses termos. A tese investiga
uma sada alternativa para esse dilema, oferecida pelas teorias do dilogo
institucional. Segundo essa corrente, a ltima palavra, na democracia, no existe. O
trabalho defende que ambas as perspectivas, ltima palavra e dilogo, tm papel
analtico importante a cumprir. Prope que uma interao de carter deliberativo, e
no somente adversarial, entre os poderes, tem maiores possibilidades de, ao longo do
tempo, produzir boas respostas sobre os direitos fundamentais. Torna a separao de
poderes sensvel ao bom argumento.
Abstract
The judicial review of legislation has always been under the distrust of democratic
theory. Under what justification can unelected judges have the last word upon
fundamental rights? Thats the way the question has been formulated by the tradition.
Some are favourable to this institutional arrangement, whereas others defend the
supremacy of parliament. This would be the crossroads of the separation of powers
and theories of last word face the dispute on the basis of these terms. The thesis
investigates an alternative response to this dilemma, offered by theories of
institutional dialogue. According to it, there is no last word in a democracy. The
dissertation defends that both perspectives last word and dialogue have an
important analytical role to play. It proposes that an interaction of a deliberative kind
rather than adversarial is more likely, in the long term, to produce better answers
about rights. It turns separation of powers sensitive to the quality of argument.
5
NDICE Captulo 1 6
O mesmo velho problema
Captulo 2 61
A inclinao por juzes e cortes constitucionais
Captulo 3 85
A inclinao por legisladores e parlamentos
Captulo 4 104
A inclinao por ambos: dilogo sem ltima palavra
Captulo 5 169
Auto-governo e direito ao erro
Capitulo 6 176
Separao de poderes e os tempos da poltica: dilogo ou ltima palavra?
Captulo 7 198
Separao de poderes e legitimidade: deliberao inter-institucional
Captulo 8 224
Constitucionalismo brasileiro: entre a retrica do guardio entrincheirado e a
prtica do guardio acanhado
Concluses 256
6
Captulo 1
O mesmo velho problema
1. Introduo
Certo senso comum costuma supor que parlamentos seriam a expresso mais
direta da democracia, enquanto que constituies e declaraes de direitos, somados
reviso judicial,2 a manifestao auto-explicativa do constitucionalismo.3
Controvrsias sobre quem deveria ter a ltima palavra em conflitos sobre direitos
fundamentais, dessa maneira, so percebidas como uma tenso no apenas entre duas
instituies parlamentos e cortes mas tambm entre dois ideais polticos
respectivamente, democracia e constitucionalismo. Se o primeiro se prope a realizar
algum tipo de governo do povo, o segundo busca assegurar que o poder tenha
limites.4-5 Por trs da interao entre aquelas duas instituies, portanto, encontra-se o
problema do balanceamento das demandas procedimentais e substantivas desses dois
ideais.6
Vrias dificuldades conceituais, morais e institucionais decorrem desses
slogans abstratos, particularmente se o mesmo sistema poltico persegue a
combinao dos dois ideais como fundamento de sua legitimidade e da cobrana
justificada de obedincia. Essa combinao foi a escolha da maioria dos regimes
polticos ocidentais durante o sc. XX, e a expresso democracia constitucional o
2 Pela simplicidade, opto pela expresso reviso judicial para referir-me ao controle judicial de constitucionalidade. 3 Abordei essa associao entre, de um lado, democracia e parlamento, e, de outro, constitucionalismo e corte constitucional, no cap. 1 de minha dissertao de mestrado (cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 10). 4 Frank Michelman resume melhor essa tenso: Democracy appears to mean something like this: popular political self-government the people of a country deciding for themselves the content () of the laws that organize and regulate their political association. Constitutionalism appears to mean something like this: the containment of popular political decision-making by a basic law, the Constitution a law of lawmaking, we shall sometimes call it designed to control which further laws can be made, by whom, and by what procedures (cf. Brennan and Democracy, p. 5). 5 Cf. os argumentos de Dworkin sobre a interdependncia, ao invs de tenso, entre esses dois ideais e tambm a tese sobre a unidade do valor e a inseparabilidade entre os conceitos polticos. Freedoms Law, Introduction; Harts Postcript and the Character of Political Philosophy; e Justice for Hedgehogs. 6 Os problemas oriundos de se conceber demandas procedimentais e substantivas, tanto da democracia quanto do constitucionalismo, sero melhor abordados no tpico 5 abaixo, onde tento sistematizar alguns dos principais nveis tericos em que essa discusso da teoria poltica geralmente ocorre, e tambm no captulo 7.
7
nome convencionado para se referir a eles. Apesar das diferenas, esses regimes
compartilham alguns denominadores comuns do ponto de vista institucional. Para os
propsitos desse trabalho, suficiente observar que quase todos possuem uma
constituio escrita, um poder legislativo eleito e uma corte constitucional que exerce
o controle de constitucionalidade.7
Uma explicao hegemnica da diviso de trabalho entre essas duas
instituies dada por Ronald Dworkin, que enxerga a defesa de direitos
fundamentais como a tarefa central das cortes o frum do princpio e a
deliberao sobre polticas pblicas (policies) o papel principal de parlamentos eleitos
que poderamos chamar de frum da utilidade. Para ele, a objeo democrtica
contra a legitimidade da reviso judicial confunde o que a democracia efetivamente
significa. De acordo com sua concepo constitucional de democracia,8 esse regime
tem alguns requisitos morais substantivos que no so atendidos necessariamente por
um procedimento majoritrio, mas pela resposta certa sobre direitos fundamentais.9
O procedimento decisrio, nesse caso, pouco importa para a legitimidade da deciso.
Tal resposta certa sobre direitos fundamentais inspirada pelo ideal da igual
considerao e respeito, e ajuda a promover a filiao moral de cada pessoa
comunidade poltica. Sem essa filiao moral prvia, procedimentos majoritrios (ou
quaisquer outros) no teriam absolutamente nenhum valor e no satisfariam um
padro minimamente desejvel de igualdade.10 Em resumo, democracia, quando esto
7 Obviamente, esse retrato simplifica as variaes institucionais encontradas nas democracias contemporneas. Tais variaes passam de modelos fortes de reviso judicial (o modelo difuso norte-americano e o modelo concentrado germnico so os dois tipos puros encontrados na literatura comparada) para modelos fracos de reviso judicial (encontrados em inovaes recentes dentro do constitucionalismo do commonwealth, especialmente no Canad, Nova Zelndia e Reino Unido), ou mesmo para modelos no judiciais, como o francs. As preocupaes tericas apontadas aqui, contudo, so mais abrangentes e no precisam se restringir a um nico arranjo institucional. Esse captulo abordar mais adiante o isolamento das variveis institucionais (cf. Stephen Gardbaum, The New Commonwealth Model of Constitutionalism). 8 Dworkin, em mais uma confirmao de sua versatilidade terminolgica para um mesmo conceito, tambm chamou sua concepo de democracia de communal conception ou partnership conception em outras oportunidades. 9 Para Waldron, Dworkin tambm comete o erro de inferir um arranjo institucional a partir de uma considerao substantiva, o que confundiria as duas tarefas principais da filosofia poltica. Um procedimento decisrio, de acordo com ele, no pode ser justificado em termos de substncia (cf. Freeman's Defense of Judicial Review). 10 Trata-se da distino que, em outro texto, Dworkin faz entre legitimate majority rule e mere majoritarianism (cf. Constitutionalism and Democracy, p. 1).
8
em jogo direitos fundamentais, uma questo de output substantivo, no de input
procedimental.11
A maioria das democracias constitucionais contemporneas apresenta, como
filosofia poltica de base, alguma verso dessa explicao dworkiniana.
Independentemente de variaes no detalhe, a prtica da reviso judicial
freqentemente associada a promessas mais ou menos ambiciosas de proteo de
direitos e das minorias.12 Pretendo testar essa justificativa tradicional luz de recentes
crticas e outros tipos de defesa da reviso judicial.
Nesse longo captulo de abertura, resumo o argumento desenvolvido em
minha dissertao de mestrado, mostro os alvos atacados, os passos conquistados e os
problemas ainda no resolvidos (tpico 2). Naquela oportunidade, esbocei um modelo
de reviso judicial como contra-poder e operador de veto, no como reserva de
justia da democracia. No terceiro tpico, explico o percurso argumentativo desta
tese, em estrita continuidade com a dissertao, e a sua estrutura de captulos. No
quarto, fao algumas digresses metodolgicas que clareiam questes subjacentes
tese. Finalmente, articulo uma estrutura analtica para teorizar sobre a separao de
poderes. A inteno ilustrar como as discusses sobre o papel da reviso judicial na
democracia no podem ignorar a pergunta complexa que a teoria da separao de
poderes deve enfrentar: quem decide o que e como e quando e por que numa
democracia?13 Diferentes abordagens da reviso judicial do respostas alternativas a
essa questo, mesmo quando no assim estruturadas ou no explicitem todos os seus
elementos. Mostro, ainda nesse tpico, os nveis de anlise em que os desacordos
dessas teorias ocorrem e como tal pergunta ajuda a suscitar o problema de maneira
mais produtiva. Encerro o captulo com um prembulo dos trs captulos seguintes.
11 Dworkin desenvolve diferentes partes desse argumento amplo em diferentes lugares. Suas principais referncias no assunto so Freedoms Law, Introduction, Sovereign Virtue, captulos 1 e 2, Equality, democracy and Constitution: we the people in court, e The Partnership Conception of Democracy. 12 H tambm outras justiticativas para a reviso judicial, como a supremacia da constituio, o estado de direito e o federalismo. No sero, porm objeto desse trabalho, exceto incidentalmente. 13 Omito a dimenso de onde para evitar outras discusses intrincadas sobre espao politico, soberania estatal, instituies internacionais etc., que no se aplicam a essa tese.
9
2. Controle de constitucionalidade: reserva de justia ou contrapoder?
lvaro de Vita, em prefcio ao livro derivado de minha dissertao de
mestrado,14 resume o argumento l presente: Se recusamos a justificao mais
ambiciosa para o instituto do controle de constitucionalidade a de que o tribunal, por
ser o frum do princpio, estaria mais apto do que a legislatura para garantir direitos
e liberdades fundamentais protegidos constitucionalmente , haveria alguma outra
forma de justific-lo? Possivelmente, sim. Mas uma justificao menos ambiciosa
provavelmente tambm leva a um entendimento mais circunspecto e prudente da
autoridade de realizar o controle jurisdicional de constitucionalidade. Apesar de o
argumento de teor negativo ser o forte deste livro, h tambm algumas pistas (que,
quem sabe, poderiam ser objeto de reflexo mais forte do autor em outro trabalho)
para pensar o problema nessa direo.15
Nesse resumo, procurarei descrever o ponto de chegada da pesquisa de
mestrado que, de alguma maneira, o ponto de partida para essa tese. As pistas a
respeito de argumentos positivos sobre o papel da reviso judicial l presentes sero
objeto de desenvolvimento mais cuidadoso. Aquele texto promoveu algumas
realizaes importantes: afastou justificativas apressadas do controle de
constitucionalidade, as quais, em geral, tendem a dar um cheque em branco ao
tribunal e a lhes conferir uma credencial especial; relativizou duas inferncias
consolidadas e pouco tematizadas na literatura constitucional brasileira: (i) se
democracia no s vontade da maioria, uma instituio anti-majoritria desejvel e
necessria,16 e (ii) se a constituio suprema e deve ser obedecida inclusive pelo
legislador, deve existir um agente controlador externo que fiscalize tal obedincia;17
reafirmou a incerteza e a falibilidade da poltica em face das promessas arriscadas da
14 Controle de Constitucionalidade e Democracia, dissertao de mestrado defendida em janeiro de 2004. 15 Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. XXI. 16 Esta inferncia decorreria do vcio de se derivar um determinado contedo a partir de uma certa forma, um resultado a partir de certo procedimento decisrio. Defendi que a reserva de justia no depende do controle de constitucionalidade e que isso corresponderia a confundir, nos termos de Waldron, teoria da justia com teoria da autoridade. 17 Veremos novamente essa discusso nos captulos 2 e 3, e tambm como Carlos Santiago Nino trata do tema (cf. The constitution of deliberative democracy, p. 189-196).
10
teoria constitucional em nome da efetivao de direitos;18 reduziu expectativas em
relao ao tribunal constitucional, que no tem como carregar o nus de nos proteger
contra as intempries da poltica;19 apresentou, ainda de forma embrionria, um papel
a ser desempenhado pela reviso judicial: a corte como um contrapeso poltica
majoritria e, mais do que isso, como instituio com a oportunidade de inserir um
argumento moral na agenda, que chamei de processo de interlocuo institucional. As
idias de desacelerao da poltica majoritria e de interlocuo institucional so
as pistas que essa tese procurar dissecar.
A dissertao formulou um argumento negativo contra uma forma tradicional
de se pensar a reviso judicial. No somou a isso um argumento positivo em favor do
legislador, deduo equivocada que eventualmente se faz em face de objees contra
a reviso judicial. Criticar a reviso no equivale, portanto, a defender
necessariamente o legislador eleito. Ataquei uma certa justificativa, no a existncia
do controle. No se trata de exerccio trivial, pois a forma de justificar determina
como entendemos o papel dessa instituio, como depositamos expectativas sobre o
seu desempenho e como efetivamente ela opera essa funo.
Sustentei que essa forma convencional de olhar para o controle de
constitucionalidade superestima seu papel e sua responsabilidade, ao mesmo tempo
que atrofia os dos outros poderes. A constituio, assim, passa a ter um nico centro
de gravidade, um nico guardio. Os outros atores polticos vo testando
impunemente os seus limites. Nenhuma condenao moral recai sobre eles porque,
afinal, no tm a responsabilidade de promover os valores constitucionais, mas apenas
de tomar decises polticas ordinrias. Deferem, comodamente, o escrutnio
18 Dilemas constitucionais, como todo dilema moral, nem sempre terminam ou mesmo permitem finais felizes (expresso famosa de Dworkin, que disse ser o objetivo da interpretao jurdica terminar em happy endings). Freqentemente, envolvem tragdias, solues no timas, s vezes encobertas por trs da cortina de fumaa de uma retrica constitucional contemporizadora. Isso no produto apenas de eventual erro judicial, mas da essncia mesma da interpretao constitucional. Trs referncias interessantes a respeito so: Rebecca Brown, Constitutional Tragedies, em Constitutional Stupidities and Constitutional Tragedies, p. 39; James E. Fleming, Securing Constitutional Democracy (em especial o cap. 10, Constitutional Imperfections and the Pursuit of Happy Endings, p. 210); e Lorenzo Zucca, Constitutional Dilemmas. 19 Louis Fisher, em referncia deciso do caso Dred Scott, que culminou na Guerra Civil americana, afirmou: The belief in judicial supremacy imposes a burden that a Court cannot carry. It sets up expectations that invite disappointment if not disaster. Em outra passagem, enfatizou a mesma idia: The habit of looking automatically to the courts to protect constitutional liberties is ill-advised (cf. Constitutional Dialogues, p. xx).
11
constitucional ao tribunal e abdicam da tarefa de formular um argumento
constitucional consistente e sincero.
Claro que dificilmente algum verbaliza isso. Nenhum livro de direito
constitucional diz que os poderes tm carta branca para violar a constituio e que
podemos nos tranqilizar pois, em ltima instncia, o tribunal recompor a ordem
poltico-constitucional. Eventualmente, chegam at a mencionar o papel dos outros
poderes. Na prtica, porm, as implicaes de certas nfases no papel messinico do
tribunal continuam a produzir uma cultura jurdica centrada nas cortes judiciais e
excessivamente apegada ao guardio da constituio, o que acaba por empobrecer a
experincia democrtica.
Muitas das concluses da dissertao so meras aplicaes, quela questo
especfica, de certas mximas da sabedoria poltica: no h procedimento que garanta
resultados justos; no h instituio infalvel, por melhor que seja desenhada; de uma
determinada concepo de justia substantiva no advm um desenho institucional.
Opor-se a certas justificativas da reviso judicial no significa abdicar do debate
substantivo. Em outras palavras, atacar seu lastro terico convencional no implica
curvar-se a qualquer deciso majoritria, ou a ser obrigado a permanecer em silncio
quanto justia das decises legislativas quem e como decide uma questo
diferente de o que decide. Saber quem deve decidir, portanto, no questo de
hermenutica constitucional, mas de desenho institucional boas tcnicas de
interpretao constitucional no resolvem qualquer objeo democrtica a qualquer
instituio, no indicam quem deve decidir.20
Argumentei que uma descrio fantasiosa da misso do controle de
constitucionalidade se acomoda a uma postura complacente que no interpela a
legitimidade do STF quando este declara a inconstitucionalidade de uma lei ou
emenda constitucional.
Uma crtica suscitada contra meu argumento cogitou que ele promoveria uma
defesa ingnua e purista da democracia representativa por desconsiderar um
20 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 12-13.
12
importante frum de oposio democrtica e por, supostamente, fazer vistas grossas
ao papel fundamental que o judicirio tem cumprido no perodo de redemocratizao.
Purista e ingnua, ou mesmo idealista e utpica so adjetivos por meio dos
quais se costuma criticar a teoria poltica normativa, sem compreender o seu papel de
fixar valores e parmetros que auxiliam no julgamento e na reforma das instituies
reais. Por trs dessa crtica, tambm pode haver uma ingenuidade ainda mais
alarmante: supe que o tribunal pode fazer o que as instituies representativas no
tm feito. Por fim, essa crtica revela tambm uma incompreenso: apresentar uma
objeo aos modos de justificar o controle de constitucionalidade no tem nenhuma
relao com uma crtica geral ao papel do judicirio na democracia, e tampouco
idealiza o legislador representativo.
Minha dissertao tratou do tema pela lente de dois autores contemporneos
que protagonizam este debate, Ronald Dworkin e Jeremy Waldron, e tentou transpor
esta matriz de anlise para o regime constitucional brasileiro.
Para Dworkin, a democracia, na sua verso mais genuna e desejvel, no
apenas um regime em que indivduos se juntam para tomar decises coletivas,
processar seus interesses individuais e convert-los em poltica pblica por intermdio
da regra de maioria. Democracia tambm isso, mas, antes, precisa conquistar a
filiao moral de seus membros na comunidade poltica. Portanto, para que todos
possam se juntar, agregar seus interesses e conferir qual ser o produto final, preciso
que se sintam pertencentes a essa comunidade. Este lao moral se forma somente por
meio de requisitos substantivos, traduzidos pela sntese da igual considerao e
respeito.
Democracia, assim, para que merea o lugar de eptome da justia poltica, no
pode se restringir satisfao do bem-estar geral (questes de policy), mas deve
respeitar direitos individuais (questes de princpio). As decises sobre a primeira
dimenso se legitimam pelo critrio de quem e como decide: um parlamento
representativo por meio do mtodo puramente estatstico da regra de maioria, que
promove a igualdade de impacto um homem, um voto (legitimao ex ante). As
decises sobre a segunda, no entanto, legitimam-se apenas por seu contedo, pela
resposta certa, independentemente de quem decida (legitimao ex post). Se ao
13
tribunal couber essa misso, no h que se questionar sua falta de legitimidade por
no ter sido eleito, pois esta no seria a forma de mensurar a legitimidade do frum
do princpio.
Jeremy Waldron rejeita esta justificativa. Ela desprezaria, afinal, o desacordo
moral reinante numa sociedade pluralista, circunstncia fundamental da poltica
contempornea. Atribuir a juzes a deciso sobre questes moralmente controversas,
retirando dos cidados a possibilidade de emitir seu juzo moral num procedimento
majoritrio, desrespeitaria o que a democracia teria de mais valioso: a inexistncia de
hierarquia entre os cidados, que decidem em igualdade de condies seus problemas
coletivos. Como no h acordo possvel sobre contedo, h que se fazer um acordo
procedimental para decidir tal contedo: sua proposta a maximizao do direito de
participao, o direito dos direitos, que permite a todos se realizarem igualitariamente
como sujeitos autnomos em votao pblica.
Segundo ele, quando a teoria poltica se prope a construir um arranjo
institucional, a pergunta decisiva a se fazer quem deve decidir?, jamais o que
decidir?. Dado que as instituies so falveis e que sempre haver desacordo sobre a
correo ou a verdade de suas decises, a promessa substantivista de que dada
instituio legtima porque respeita direitos no pode ser cumprida. O dever de
obedincia s suas decises no pode depender do seu acerto.21 A reviso judicial,
neste sentido, deve ser descrita de forma mais realista e sincera, na perspectiva
exclusivamente procedimental: quando legislador e corte discordam, a vontade da
ltima prevalece. a isso, e a nada mais, que corresponde este arranjo institucional.
Vista dessa perspectiva, a reviso judicial perde o lastro simblico sedutor que
tradicionalmente vem a reboque de sua descrio: a promessa de proteo dos direitos
fundamentais.
Isso no significa, para Waldron, que a teoria poltica no possa enfrentar o
problema da justia. Este estaria, todavia, em outro plano cognitivo, diferente do
21 Essa discusso aparece em profuso, obviamente, na teoria do direito. Neil MacCormick, por exemplo, traduz esse mesmo problema por meio da distino entre a validade da deciso judicial (e, portanto, o dever de obedec-la), de sua correo. A possibilidade de conceber um juiz falvel depende da possibilidade de julgar a correo de sua deciso independentemente de sua validade (cf. Rhetoric and the Rule of Law, cap. 13).
14
institucional, que somente pode ser definido em termos formais, por meio da
indicao de quem decide. Saber o que o contedo da democracia continuaria na
pauta da teoria poltica, como fonte de argumentao e convencimento, mas no
poderia interferir no desenho das instituies democrticas. O erro da teoria
constitucional teria sido misturar os dois planos.
Comparei os argumentos de Dworkin e Waldron por dois ngulos. Pelo prisma
da igualdade poltica,22 Waldron aponta para a conquista moral que a regra da maioria
representa. Dworkin, por sua vez, busca uma verso mais autntica de igualdade, que
no se limite noo modesta por trs do voto majoritrio a igualdade de
considerao e respeito. Em segundo lugar, indiquei como ambos se posicionam em
relao epistemologia moral e suas implicaes. Para Waldron, a eventual existncia
de resposta certa para os dilemas morais irrelevante para os fins de se pensar em
instituies, uma vez que o desacordo moral em sociedades pluralistas resiste aos
melhores argumentos. Do desacordo inexorvel, resta apenas adotar um procedimento
que d a cada indivduo o mesmo valor. Para Dworkin, mesmo que no seja possvel
demonstrar a resposta certa e que cortes possam errar, estas estariam melhor
posicionadas e teriam uma expertise para encontrar tal resposta.
Argumentei, aderindo a uma parcela dos argumentos de Waldron, que a defesa
da reviso judicial naqueles termos dependeria de uma presuno da infalibilidade
judicial e do egosmo legislativo (ou ao menos da menor falibilidade judicial).23
Considerando, conforme prope o prprio Dworkin, que a interpretao das clusulas
abstratas da constituio ato criativo de manifestao de convices morais, e no
um juzo tcnico de derivao lgica, torna-se ainda menos plausvel aquele tipo de
construo terica. Com base num sofisma (da supremacia da constituio decorre o
controle de constitucionalidade), nasceu uma larga corrente do direito constitucional
que esfumaou o papel que essa instituio pode efetivamente cumprir numa
democracia. Esta descrio edulcorada da democracia no cumpre o dever terico e
emprico de analisar se tribunais constitucionais reais efetivamente realizam as
promessas do constitucionalismo. Satisfaz-se com uma legitimao ex ante e abstrata.
22 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 115. 23 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 121.
15
Entretanto, se no pode haver resposta terico-normativa para questo
emprico-descritiva, e se respeitar direitos, condio de legitimidade da reviso
judicial nesta corrente, questo emprica (substantiva, no meramente
procedimental), a teoria constitucional tem o nus de demonstrar que o judicirio
respeita direitos.24 Mesmo que perseguisse este propsito e lanasse mo de
anlises de jurisprudncia para avaliar a correo das decises, como o fez Dworkin,
esta busca seria pouco frutfera para justificar a reviso judicial, uma vez que o
respeito a direitos no se prova de maneira incontroversa.25 Alm disso, para fins das
escolhas de desenho institucional, um exame do mrito comparativo de parlamentos e
cortes no poderia ser caso a caso.
A dissertao lanou mo de outro fundamento para justificar a reviso
judicial. Olhando para a constituio como mquina procedimental que dilui as
funes da soberania para que elas se controlem mutuamente, e no para que tenham
misses substantivas, a reviso judicial pode receber explicao mais convincente. Se
a separao de poderes uma cadeia decisria que distribui faculdades de vetar e de
estatuir, caberia ao judicirio, quando dotado de um bom argumento, vetar decises
legislativas com a finalidade de qualificar a interlocuo institucional com
argumentos moralmente densos.
Esse veto se justifica no pelo seu contedo, que ser necessariamente
controverso, mas pela razo prudencial de acautelar o sistema poltico contra
sobressaltos majoritrios. O que ele faz, portanto, no assegurar o mnimo tico do
regime democrtico, mas retardar o processo decisrio, esperando que o tempo possa
contribuir para uma deciso de maior densidade deliberativa. Portanto, dentre os
vrios tipos de fundamentos existentes para a reviso judicial, cada um deles com
implicaes prticas distintas, a dissertao opta por aquele que desidealiza o papel
deste arranjo, eximindo-o da responsabilidade de salvar a democracia dos perigos da
poltica. Trata a corte com a mesma desconfiana tradicionalmente dispensada ao
legislador, e confere as implicaes tericas dessa atitude.26
24 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 27 e 127-128. 25 A natureza da argumentao jurdica, conforme Neil MacCormick, persuasiva, no demonstrativa. (cf. Rhetoric and the Rule of Law, p. 2). 26 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 133.
16
No lugar de justificar a reviso judicial com base na necessidade de proteo
de direitos fundamentais, sustentei que a separao de poderes e seu potencial para a
limitao da autoridade poltica propiciam uma base mais slida para este arranjo.27
Em vez de uma razo messinica, temos uma razo prudencial. Mais do que isso,
propus uma razo prudencial ambiciosa: um veto qualificado pela linguagem dos
direitos.28 Essa a principal pista da dissertao que tentarei decifrar nessa tese. A
reviso judicial, alm de um mero contrapeso ou um veto a mais, legitima-se por
seu potencial de enriquecer a qualidade argumentativa da democracia, por propiciar
uma interlocuo institucional.29-30
No sistema constitucional brasileiro promulgado em 1988, uma adeso
unnime justificativa idealista do controle de constitucionalidade conduziu-o ao
paroxismo. A escolha da reviso judicial, contudo, no pode vir no mesmo pacote da
validade moral das clusulas ptreas.31 Em virtude da existncia dessas clusulas, no
s o legislador ordinrio, mas tambm o reformador constitucional esto sujeitos
reviso judicial, que exercida em dois nveis (contra leis ordinrias e contra emendas
constitucionais).32 Assim, desenha-se um sistema no qual o circuito decisrio termina
na instituio desprovida do lastro representativo, dotada de capacidade de vetar, no
a de estatuir.33 Para suplantar uma deciso do STF que discorde do reformador
constitucional, somente uma ruptura ou uma convocao constituinte.
27 Para localizar essas diferenas na tradio da teoria constitucional, poderamos dizer que a fundamentao da reviso judicial com base na separao de poderes corresponde perspectiva madisoniana, enquanto que aquela com base em direitos fundamentais, perspectiva dworkiniana (alguns diriam lockeana, mas, conforme demonstrado por Waldron, Locke defendeu restries substantivas ao poder poltico baseadas em direitos, jamais um controle institucional sobre o legislador). 28 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 133. 29 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 132. A idia de interlocuo e interlocutor institucional tambm aparece em outras partes do livro. Cf. p. 23, 166, 171. 30 Esses dois componentes da defesa positiva da reviso judicial ([i] contrapoder / veto e [ii] articulao de uma nova linguagem interlocuo institucional) sero desenvolvidos, respectivamente, nos captulos 6 e 7 dessa tese. 31 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 166 e 169. 32 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 166. 33 hoje pouco plausvel afirmar que o controle de constitucionalidade se limita a vetar e no a estatuir, ou, em outros termos, a ser apenas um legislador negativo, no positivo. H diferentes formas de exercer essa faculdade criativa. Uma mais atual refere-se aos mtodos interpretativos que aceitam a constitucionalidade de leis desde que interpretadas em sentidos especficos. Essa caracterstica apenas refora o carter problemtico deste arranjo, em particular no desenho brasileiro.
17
A dissertao, ao rejeitar a premissa substantivista em geral invocada para
defender tal enrijecimento do processo decisrio, tenta mostrar que a reviso judicial
de emendas constitucionais carece de justificativa mais convincente. Se as instituies
so falveis, e se os casos de interpretao de direitos fundamentais so controversos,
caberia indagar qual delas deveria ter o direito de errar por ltimo. O erro da
instituio majoritria pode insuflar maior responsabilidade coletiva do que o erro de
uma instituio no representativa, e a oportunidade de errar inerente ao auto-
governo democrtico. Assim, ao aplicar o argumento geral ao desenho constitucional
brasileiro, sustento duas proposies negativas: as razes conhecidas (proteo de
direitos) no so aceitveis; as razes residuais (contrapeso institucional) no podem
levar to longe.34
Robert Dahl, em passagem na qual equipara o papel do tribunal ao regime de
quase guardies (quasi-guardianship), indica preocupao parecida. A aposta nesse
tipo de arranjo institucional precisa lidar, no plano emprico, com nus da prova
argumentativa, isto , at que se demonstre a existncia de certas circunstncias
excepcionadoras (a tirania da maioria, p. ex.), presume-se que o legislador eleito a
autoridade legtima para dirigir as escolhas morais da democracia:35
A heavy burden of proof should therefore be required before the
democratic process is displaced by quasi guardianship. It should be
necessary to demonstrate that the democratic process fails to give equal
consideration to the interests of some who are subjects to its laws; that the
quasi-guardians would do so; and that the injury inflicted on the right to
equal consideration outweighs the injury done to the right of a people to
govern itself.36
O autor reconhece a dificuldade de se provar cada uma dessas pr-condies e
a importncia de se dar ao povo oportunidade de errar e de acertar. Quanto mais dele
se retira a possibilidade de atuar autonomamente, atribuindo decises fundamentais a
guardies, menor ser a possibilidade de desenvolver um senso de responsabilidade
34 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, pp. 25 e 129. 35 Argumentei de forma semelhante na dissertao (Ibid, p. 128 e p. 156) 36 Decison-Making in a Democracy, p. xx.
18
pelas aes coletivas. Essa opo decorreria de uma infantilizao paternalista do
povo, que abdica de sua autonomia para tomar decises morais relevantes.
A defesa substantiva da reviso judicial aproxima-a do que seria um regime de
guardies. Assume que o indivduo, no ambiente majoritrio, tende a decidir
irracionalmente e, para proteg-lo, retira dele essa competncia. Desconfia da
capacidade do cidado passar por um procedimento majoritrio. Para decidir sobre o
contedo de tais direitos, juzes estariam em melhor condio do que indivduos
autnomos num foro eleitoral-majoritrio.
Dahl demonstra empiricamente que a Corte americana s conseguiu impor
alguns poucos empecilhos deciso legislativa, os quais somente adiaram a vitria de
uma maioria estvel, ou impediram a vitria de uma maioria frgil e episdica.37 Essa
informao emprica traz a medida de realismo com o qual a teoria constitucional
deve tratar da capacidade que tem a reviso judicial, por si s, de proteger a
democracia contra os perigos da poltica.
Esta tese d continuidade ao projeto terico iniciado no mestrado e dialoga
com ele. Continua girando em torno de um mesmo problema e compartilha de sua
perplexidade inicial: alguns lugares comuns evocados para explicar nosso modelo de
estado merecem ser postos em xeque, pois so menos auto-evidentes do que a
narrativa constitucional sugere. Desconfiar desses pressupostos nos ajuda a ter
percepo mais acurada sobre a dinmica da separao de poderes e da proteo de
direitos numa democracia. O fato de sequer tematizar esses problemas mostra o grau
de artificialidade de boa parte da teoria constitucional brasileira. Acolhidas ou
rejeitadas, as objees reviso judicial devem ser tratadas de maneira franca e
transparente, e no escondidas por argumentos que dissimulam o problema e pintam
um quadro cor-de-rosa.38
A tese aceita o argumento central da dissertao, mas, ao ampliar o horizonte
temporal em que pensa a poltica, complementa-o e, sobretudo, relativiza-o,
37 Esta considerao clssica de Dahl cumprir papel importante no captulo 4, quando discutirei o prisma do dilogo para entender o papel da reviso judicial. 38 Uma rosy picture, nas palavras de Waldron (cf. Law and Disagreement, p. xx).
19
desenvolvendo algumas intuies l presentes. Entre duas perspectivas temporais para
a anlise da poltica, pode-se dizer que a dissertao ilumina a de curto prazo, e os
problemas da definio da ltima palavra em cada rodada procedimental.39 A tese,
por sua vez, aponta para a perspectiva de longo prazo e para a continuidade de tais
rodadas procedimentais. Indica a inevitvel provisoriedade da ltima palavra, a
permanncia da comunidade poltica no tempo, o seu carter de empreendimento
coletivo que se estende, inclusive, para alm de cada gerao, tanto prospectiva
quanto retrospectivamente.40
A tarefa que continua a ser perseguida a formulao de um discurso de
legitimidade que d reviso judicial o lugar mais adequado dentro da democracia.
Seu desafio encontrar um modelo normativo ambicioso e exigente, que sirva como
guia tanto para orientar a atuao da corte quanto para avaliar seu desempenho. Alm
da necessidade de criticar decises individuais que, isoladamente, podem ser boas ou
ms, precisamos de uma noo clara e consistente de qual a misso da corte nesse tipo
de regime.
3. Plano da tese
Os trs captulos seguintes descrevem e interpretam trs tipos de resposta
presentes na literatura da teoria constitucional. Os dois primeiros (captulos 2 e 3)
correspondem a teorias preocupadas em apontar quem deve ter a ltima palavra41
sobre direitos fundamentais. Classifico essas teorias como mais inclinadas por
cortes constitucionais e juzes ou como mais inclinadas por parlamentos e
legisladores. A inclinao por juzes, no raro, baseada no que poderamos chamar
de presuno da infalibilidade judicial (ou da menor falibilidade judicial). A
39 O conceito de rodada procedimental ser melhor desenvolvido nos captulos 5 a 7. Refere-se ao circuito decisrio entre os poderes at chegar a uma deciso final. Este carter final, porm, tambm relativo e no escapa de uma inevitvel provisoriedade, pois o mesmo tema pode renascer no domnio da deliberao poltica posteriormente, em intervalos maiores ou menores. 40 *Geraes passadas e geraes futuras, nossos antepassados e nossos descendentes, tambm contam numa democracia. V. Cecile Fabre, Rights and Non-Existence, e Jeb Rubenfeld, Freedom and Time. 41 No sei se, dentro das classificaes convencionais da relao entre parlamentos e cortes, j foi utilizada a expresso teorias da ltima palavra. Considero essa denominao adequada para os fins da classificao que proponho. Ela deriva do uso abundante de expresses como last word, last say, ultimate authority, supreme authority, ou simplesmente supremacy na literatura a respeito.
20
inclinao por legisladores, por sua vez, baseada na combinao de dois elementos
usualmente associados com democracia e igualdade: regra de maioria e representao
eleitoral. Teorias da ltima palavra, a rigor, no rejeitam algum tipo de dilogo ou
interao, mas defendem que o circuito decisrio possui um ponto final dotado de
autoridade por meio de uma deciso soberana.
O terceiro tipo de resposta (captulo 4) dado por teorias do dilogo
institucional. Basicamente, essas teorias defendem que no deve haver competio
ou conflito pela ltima palavra, mas um dilogo permanente e cooperativo entre
instituies que, por meio de suas singulares expertises e contextos decisrios, so
parceiros na busca do melhor significado constitucional. Assim, no haveria
prioridade, hierarquia ou verticalidade entre instituies lutando pelo monoplio
decisrio sobre direitos fundamentais. Haveria, ao contrrio, uma cadeia de
contribuies horizontais que ajudariam a refinar, com a passagem do tempo, boas
respostas para questes coletivas. Separao de poderes, nesse sentido, envolveria
circularidade e complementaridade infinitas.42
Os captulos 2 a 4 encerram um primeiro bloco da tese. Correspondem a um
determinado modo de classificar as teorias da reviso judicial e decorrem da adoo
de um critrio que considero elucidativo. Trata-se, obviamente, de uma opo entre
outras vlidas, as quais gerariam agrupamentos diferentes.43 Como em toda
42 ltima palavra e dilogo encerram uma forma conveniente de se referir ao debate para os meus propsitos argumentativos. Pe em evidncia, afinal, a dimenso temporal (a tenso entre o ltimo e o contnuo) da poltica. No entanto, mais comum a literatura constitucional referir-se, respectivamente, s expresses supremacia (seja judicial ou legislativa) ou constituio fora das cortes (que destaca o exerccio da interpretao constitucional nos outros poderes). 43 Alguns notaro nessa estratgia expositiva dos captulos 2 a 4 alguma semelhana com a estruturao de Wil Waluchow para discutir a objeo democrtica reviso judicial (cf. A Common Law Theory of Judicial Review, p. 10-11). Neste livro, o autor tambm conduz seu argumento em trs passos: dentro do que chamou de standard conception das cartas de direitos, distingue entre os Advocates e os Critics, e avalia o mrito relativo de cada um. Em seguida, para responder aos argumentos remanescentes dos Critics e resgatar os Advocates, ele formula a alternative common law conception. Apresenta, assim, duas verses de uma abordagem standard que faria suposies problemticas, e prope uma sada por meio de uma nova suposio. A seqncia, portanto, similar com a desta tese: ope duas posies essenciais e acha uma terceira via. A oposio inicial (conforme Waluchow, entre Critics e Advocates, e, conforme esta tese, entre os inclinados pela ltima palavra judicial e pela ltima palavra legislativa) particularmente parecida. Meu critrio classificatrio, todavia, distinto, alm de adotar uma licena potica para radicalizar a polarizao, combinando argumentos que, no conjunto, no correspondem precisamente ao que nenhum autor disse. So, portanto, posies estilizadas. A terceira via, apresentada no captulo 4 e depois melhor desenvolvida nos captulos 6 e 7, tem diferenas mais marcantes. No proponho superar as teorias da ltima palavra, mas sim integr-las perspectiva do dilogo.
21
classificao, simplificam-se argumentos e se os renem debaixo de um mesmo rtulo
abstrato. Utilizo-me de uma combinao livre de diversos argumentos para construir
posies estilizadas. No proponho, necessariamente, que cada autor acomode-se
integralmente s posies que concebi para fins de argumentao. Classificaes no
conseguem fazer justia ao detalhe de cada teoria. No raro, traem-na por salientar
algum componente isolado e fornecendo uma idia errada de seu ponto de chegada.
Cumprem, entretanto, um determinado propsito. O meu iluminar um aspecto
particular que suponho ainda no ter sido bem explorado na discusso.
Os captulos 2 e 3 reformulam, grosso modo, as posies gerais por trs da
interface entre Dworkin e Waldron da dissertao. Esses dois autores continuam a ser
os personagens-smbolo das duas posies antagnicas, ainda que a oposio esteja
mais robusta e o argumento de cada lado mais abrangente. Do lado das teorias do
dilogo, no captulo 4, Alexander Bickel mereceria tal ttulo, no tanto por ter
articulado todo um argumento a respeito, mas por haver inaugurado essa percepo
sobre o papel da corte. A teia de argumentos tornou-se mais variada. Em vez do
cotejo entre poucos autores, tento promover a interpretao e sistematizao de
grandes posies. Pretendo, assim, montar as peas de um edifcio mais completo e
que propicie uma viso de mais longo alcance.
O captulo 5 far um breve desvio para analisar como esses trs tipos de
resposta lidam com uma afirmao convencional da sabedoria poltica sobre desenho
institucional (tambm j explorada na dissertao). Segundo essa afirmao,
instituies so falveis. Mesmo os melhores e mais cautelosos procedimentos esto
sujeitos ao erro. Rawls chamou essa fatalidade da poltica de justia procedimental
imperfeita.44 Se isso verdade, supe-se que a disputa pela ltima palavra uma
disputa em torno do direito de errar por ltimo. Como um auto-governo autntico
envolveria o direito do povo de aprender e assumir responsabilidade pelos prprios
erros, a teoria democrtica teria a responsabilidade especial de demonstrar que a
instituio encarregada da ltima palavra promove esse efeito. A perspectiva
dialgica, por outro lado, diluiria essa preocupao por meio de uma cadeia de
diferentes decises distribudas no tempo. A preocupao com a ltima palavra, nesse
44 Cf. Rawls, A Theory of Justice, p. 85.
22
sentido, seria equivocada e a idia de um direito de errar por ltimo um nonsense, ou,
no mnimo, uma viso limitada e de curto prazo.
O captulo 6 avaliar o quanto h de complementariedade entre a perspectiva
do dilogo e as teorias orientadas pelo foco na ltima palavra, e o quanto esse
prisma adicional ajuda a resolver a objeo do dficit democrtico da reviso judicial.
O argumento da tese prope que o dilogo, per se, pode ser uma resposta fcil que
subestima os crticos da reviso judicial por meio de uma imagem que, apesar do
mrito de colocar a discusso num prisma mais aberto e flexvel, no resolve todas as
preocupaes por trs daquelas objees. Alm disso, a imagem do dilogo
esconderia a dimenso do conflito e da necessidade de deciso nas circunstncias de
desacordo. Esse olhar conciliatrio e contemporizador sobre a poltica traria o risco de
obscurecer um elemento importante que uma teoria consistente da separao de
poderes precisa levar em conta.
Em outras palavras, dizer que a reviso judicial no tem a ltima palavra, j
que as instituies esto dialogando e a histria continua, no enfrenta a constatao
bvia de que nem todos os tipos de dilogo so aceitveis na democracia e que cada
deciso coletiva tem custos e efeitos que precisam de justificativa adequada. Entre tais
custos, algumas teorias do dilogo subestimam especialmente o custo temporal de
novas rodadas procedimentais. Apesar da importncia do prisma do dilogo para
colocar a separao de poderes numa perspectiva diacrnica e dinmica, e alm de
lanar luzes na deliberao inter-institucional que, de um modo ou de outro, ocorre, a
preocupao subjacente s teorias da ltima palavra mesmo que ltima palavra
seja uma expresso que induz a mal-entendidos ainda fornece um dos princpios
operativos pelo qual podemos pensar em modelos de dilogo que sejam
normativamente mais desejveis na democracia.
H um momento em que a deliberao precisa se encerrar e abrir espao para
uma deciso em face de um desacordo persistente. Dentro do processo legislativo (ou
mesmo num tribunal), isso se resolve pelo voto. Quando um desacordo persistente
ocorre entre diferentes instituies, parece importante encontrar um caminho que o
resolva, ainda que temporariamente. Por trs dessa preocupao, h um imperativo do
estado de direito (rule of law). Assim, uma teoria que no esconda o desacordo e tente
23
decompor analiticamente tipos de conflito institucional, tipos de dilogo
correspondentes e maneiras de encontrar solues temporrias legtimas, seria uma
forma mais frutfera de teorizar sobre separao de poderes.
O captulo 7 cumprir a tarefa de conceituar padres normativos para modelos
mais desejveis de dilogo. Num nvel mais abstrato, dilogo ecoa o tema clssico da
deliberao no pensamento poltico, ou do mtodo decisrio por meio do argumento
e do debate, explorado recentemente por teorias da democracia deliberativa. Essas
teorias oferecem uma orientao sobre como conceber condies da deliberao. O
foco da tese ser a deliberao inter-institucional (entre parlamentos e cortes) ao invs
da deliberao intra-institucional (dentro de parlamentos e cortes). As condies
deliberativas dentro de cada instituio so recursos importantes de legitimao, mas
a perspectiva inter-institucional me parece ter uma relevncia prpria ainda sub-
explorada.
Os captulos 6 e 7 articulam-se para problematizar e qualificar a pergunta
sobre a medida e os termos nos quais a ltima palavra sobre direitos fundamentais
um dilema da teoria democrtica. Argumento que, ao frasear o problema numa lgica
do tudo ou nada, a pergunta no capta a dinmica da poltica. Alm disso, proponho
que o dilema real e mais importante da teoria democrtica, em relao a esse aspecto,
no a escolha de uma ou outra instituio como a ltima autoridade legtima. Em
vez disso, o desafio desenhar um dilogo que maximize a capacidade da democracia
de produzir respostas melhores em direitos fundamentais ou, em outras palavras, de
levar o potencial epistmico da deliberao inter-institucional a srio, sem
desconsiderar a necessidade do estado de direito por decises estveis, ainda que
provisrias.
O captulo 8 buscar aplicar essa reflexo prtica constitucional brasileira.
Por meio da descrio de alguns episdios constitucionais exemplificativos, tentarei
analisar o modelo de dilogo engendrado pela Constituio brasileira de 1988.
Conforme sustento, o padro de interao, ou de dilogo institucional, produto de
dois fatores complementares: (i) o desenho procedimental especfico, delineado na
constituio e em outras normas jurdicas, e (ii) a cultura poltica que informa e
movimenta esses processos decisrios, a qual pode estimular tanto a deferncia
24
quanto o ativismo de cada instituio em face da outra. No caso brasileiro, considero
que uma certa cultura do guardio entrincheirado promove um padro de interao
indesejvel, baseado mais na deferncia incondicional ao detentor da ltima palavra
do que no bom argumento.
Em suma, a tese continua tendo, tanto quanto a dissertao, uma natureza
exploratria. Possui uma parte interpretativa, que tenta descrever e sistematizar as
principais caractersticas das teorias da ltima palavra e do dilogo, e uma parte mais
construtiva e ensastica, que visualizo em trs passos conectados: a articulao entre
ltima palavra e dilogo dentro da separao de poderes (captulo 6); a demonstrao
do papel potencial da deliberao entre instituies como critrio normativo que
qualifica este arranjo (captulo 7); o diagnstico da prtica constitucional brasileira
em vista de tudo isso (captulo 8). Promove um mapeamento de uma multiplicidade
de problemas e argumentos e tenta caminhar para algumas solues. Procura desenhar
o quadro geral do debate e oferecer a moldura macroscpica do que est em jogo
quando se discute o papel do legislador e do controle de constitucionalidade na
democracia. Passa por uma srie extensa de autores, mas o argumento e seu percurso
no se confundem com nenhum deles.
Tento contribuir para o desenvolvimento de uma teoria normativa da interao
entre parlamentos e cortes na busca da proteo de direitos numa democracia
constitucional. Como qualquer teoria poltica normativa, seu desafio prescrever
princpios mais desejveis de desenho e comportamento institucional, e oferecer
critrios para a crtica e a reforma polticas. Ao prescrever princpios desejveis,
precisa encontrar o equilbrio apropriado entre realismo e idealismo. Precisa ser
idealista para imaginar aquilo que ainda no necessariamente existe, de modo a
cumprir sua misso crtica e transformadora. Mas precisa ser realista para que a
realidade poltica imaginada seja alcanvel. No est ao alcance dessa teoria
perceber, a priori, a factibilidade e a viabilidade de suas ambies normativas. A
calibrao dessa realidade imaginada e alcanvel, apesar de ainda no existente
inevitavelmente uma aposta, a ser testada pelo intercmbio intelectual e pela histria
(teste que, porm, nunca ser peremptrio).
25
4. Algumas digresses metodolgicas
Explicito e comento alguns princpios de trabalho. Eles tocam em problemas
que muitas obras de teoria poltica articulam tacitamente. Esse exerccio facilita,
talvez, a leitura crtica da tese, ao indicar alguns critrios a partir dos quais ela pode
ser testada. Mais do que isso, fornece ao prprio autor um guia ao qual pode recorrer
na elaborao do texto.
No comum falar em metodologia quando da elaborao de argumentos de
teoria poltica normativa. Afinal, fazemos simplesmente isso elaborar argumentos
sobre modelos racionalmente mais defensveis de organizao poltica. Nesse
exerccio, no nos dirigimos ao mundo real com um conjunto de procedimentos
tcnicos e quantitativos rigorosamente predefinidos (mesmo que informados por
categorias normativas) para descobrir como ele est funcionando e a partir da lanar
generalizaes, explicaes causais etc. No entanto, escolhas de mtodo, mesmo que
menos aparentes, obviamente ocorrem e condicionam a construo de qualquer
argumento normativo, cuja qualidade depender, entre outras coisas, de sua coerncia
com tais escolhas.
4.1 Suposies e implicaes: o que est nas entrelinhas?
Saber se a reviso judicial compatvel, e, se for, em que medida, com o ideal
democrtico uma das questes mais debatidas da teoria constitucional no sculo
XX. Seria legtimo, em nome da constituio, que juzes no eleitos e no sujeitos
responsabilizao poltica revoguem legislao editada por um parlamento eleito pelo
povo, especialmente se aceitamos que a interpretao constitucional aberta ao
julgamento moral e ao desacordo? Qualquer resposta necessariamente carregar um
estoque de suposies. Elas estaro conectadas, entre outras coisas, com: os
significados e valores da democracia e do constitucionalismo; o papel da
representao eleitoral; o esquema de prioridades entre procedimentos decisrios
eqitativos e resultados justos; as capacidades decisrias de juzes e legisladores e os
valores por trs da legislao e da adjudicao; e os arranjos concretos sob discusso.
26
Podemos certamente escavar mais camadas e alcanar questes mais
fundantes da tica e da poltica, de onde derivam as acima enumeradas. A no ser que
fosse possvel uma teoria abrangente e completa da moral, da poltica e do direito, que
costurasse e exaurisse todos os nveis, entre as fundaes primeiras at as implicaes
ltimas de cada argumento, h que se escolher uma porta de entrada, uma de sada e
um determinado caminho para enfrentar essa rede de conexes conceituais. Com o
que estamos comprometidos no ponto de partida? O que comprometemos no ponto de
chegada? Essa uma das inquietaes recorrentes que perturbam qualquer terico,
por mais que tente delimitar o objeto com clareza e de modo consciente. O ato de
demarcar o terreno , em si, problemtico e sujeito a crticas, tanto internas quanto
externas. No h como evitar, por tudo isso, que muito permanea implcito num
argumento terico, que muito fique no dito para trs, e muito a ser dito para a frente.
Essas colocaes, provavelmente triviais, so ilustrativas para lidar com o
debate desta tese. A literatura sobre reviso judicial particularmente recheada de
suposies silenciosas e mal percebidas, sejam elas inconscientes, sejam elas
deliberadamente escondidas ou ignoradas. Duas das mais perigosas, talvez, decorrem
de um passo que embute numa instituio um determinado ideal poltico.
Particularmente, o que fundiu democracia, ou mesmo povo, a parlamento
representativo, e constitucionalismo e proteo de direitos a mecanismos anti-
majoritrios, especialmente o judicial. Esta segunda inferncia foi bastante discutida
na dissertao. A primeira permaneceu intocada. Se, de um lado, o pequeno segredo
sujo45 por trs da defesa do papel da corte constitucional foi l denunciado, de outro,
o discurso equivalente que sobrepe vontade do povo ou auto-governo vontade
da maioria no parlamento representativo no foi l enfrentado, mesmo porque o texto
no pretendeu fazer uma defesa positiva do rgo legislativo como conseqncia
daquela denncia.
O tpico 5 abaixo, ao propor um modo de estruturar o pensamento sobre a
separao de poderes, organiza alguns dos nveis em que essa discusso
tradicionalmente se situa, e, assim, tentar abrir mais um pouco a couraa dentro da
qual os argumentos s vezes permanecem. O que supem as teorias da ltima palavra,
45 Expresso de Unger citada por Waldron na introduo de Law and Disagrement.
27
seja a inclinada por legisladores e parlamentos, seja a inclinada por juzes e cortes? O
que supem as teorias do dilogo? Quais as implicaes que ambas produzem para o
desenho institucional? possvel concili-las? Estas perguntas orientam o caminho da
tese.
H, ainda, outra cautela relevante. A maioria dos autores com os quais lidarei
participa de um debate geograficamente localizado, que faz suposies particulares.
Para lidar com isso, delineio algumas estratgias nos dois tpicos seguintes.
4.2 A hegemonia da literatura norte-americana
Literatura sobre reviso judicial, at poucos anos atrs, praticamente se
confundia com a literatura norte-americana. Consistia numa bateria de solues
para a dificuldade contra-majoritria, contraposta a reformulaes peridicas da
objeo democrtica. Apesar da aparncia de haver atingido o estgio da exausto
argumentativa, renovaes constantes dos dois lados continuam a surgir. Ao menos
no que diz respeito teoria normativa, a quantidade de argumentos alcanou um grau
considervel de complexidade e diversidade. A maioria dessas ondas tericas que
periodicamente reinterpretaram o problema teve um atvico carter paroquial: com
freqncia, pressupuseram o modelo americano de reviso judicial.46 Reduziam-se a
discursos que conferiam ou retiravam legitimidade da Suprema Corte americana. Isso
compreensvel, uma vez que boa parte estava preocupada, de fato, com tal sistema
particular.
Uma rpida compilao das expresses que compem a retrica anti-reviso
judicial mostra o acento norte-americano: grupo de guardies platnicos, reis-
filsofos (bevy of Platonic Guardians, philosopher kings), orculo
constitucional (constitutional oracle), orculos do direito (oracles of law),
censores morais da escolha democrtica (moral censors of democratic choice),
46 Waluchow, por exemplo, tambm observou essa caracterstica: Oftentimes discussions of judicial review under a Charter presuppose the American paradigm and proceed as though this example defines the wider phenomenon. It is often assumed, for example, that the decision of a supreme court to overturn legislative decisions is absolute, thus raising and colouring our attempts to answer questions about the consistency of judicial review with democratic principles. Yet as Section 33 of the Canadian Charter illustrates, there is no necessity here. It is possible to have judicial review without granting judges the final say (cf. A Common Law Theory of Judicial Review, p. 12).
28
idelogo da democracia americana (ideologue of the American democracy),
confraria de guardies da verdade moral, conselho sbio de tutores na verdade
moral (coterie of guardians of the moral truth, wise council of tutors in moral
truth), profeta moral (moral prophet), oligarquia judicial (judicial
oligarchy), juristocracia (juristocracy)47 etc. Do outro lado, para enfrentar o
volume e a eloqncia desses ataques, Dworkin imps o herico Hrcules, capaz de
deliberaes exemplares no frum do princpio.
O paroquialismo, portanto, uma das principais marcas de parte dessa
literatura. Christopher Zurn percebeu algumas de suas peculiaridades. Segundo ele,
ela teria que obedecer uma srie de limites argumentativos. Quem no os respeitar
estaria fadado ao limbo acadmico e poltico. Entre tais limites, est o que chamou de
panglossianismo institucional (institutional panglossianism), um amlgama
entre fato e valor, a avaliao de que a reviso judicial um dado imutvel da
histria e representa o melhor mundo possvel.48 A existncia mesma da instituio,
nos Estados Unidos, no est em disputa, mas apenas o como oper-la.49
Esse debate, por mais plural que seja, teria, portanto, um ponto de partida
razoavelmente empobrecido. Quando os seu termos comeam a influenciar outras
jurisdies sem as devidas adaptaes, como se fossem de validade universal tout
court, esse anacronismo analtico pode debilitar a possibilidade de uma reflexo
contextualizada que sustente comparaes e importaes construtivas. Nas ltimas
dcadas, devido ao fato de que esse arranjo institucional foi exportado para vrias
democracias constitucionais, e que o poder judicirio ocupou um papel poltico mais
proeminente enquanto frum central para demandas coletivas, a questo americana
tornou-se mais universal. A tentativa de resolver a dificuldade contramajoritria
influenciou at mesmo o prprio desenho de alguns novos regimes constitucionais.
Alguns pases criaram o que se convencionou chamar de formas fracas de reviso
47 Essas expresses so encontradas, na seqncia, nos seguintes autores: Learned Hand, Dawson, Stephen Perry, Antonin Scalia, Robert Cover, Christopher Zurn, Rainer Knopf, Wil Waluchow e Ran Hirschl. Os ltimos quatro, verdade, no so norte-americanos, mas participam do mesmo debate. 48 Cf. Deliberative Democracy and the Institutions of Judicial Review, p. 9-10 (voltarei a essa passagem no captulo 6). 49 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 111-114.
29
judicial, como Canad, Reino Unido e Nova Zelndia.50 Em paralelo a esse processo
poltico, o debate acadmico constantemente se reinventou.
A crtica segundo a qual a literatura americana no se aplica a qualquer
contexto, portanto, chama a ateno para aspecto importante. Tal literatura pode,
eventualmente, ofuscar, direcionar e distorcer os termos do problema. Justamente por
esses riscos, no deve ser apropriada sem os devidos cuidados e mediaes, mas
tampouco rejeitada sumariamente. quase inevitvel passar por ela: eles inventaram a
instituio, formularam a pergunta e elaboraram as principais respostas. Mesmo pelo
seu imenso volume, essa literatura s vezes desencoraja um ponto de vista diferente.
Seria muito custoso demonstrar que todo esse colossal esforo estava simplesmente
fazendo a pergunta errada. Mas no se trata, obviamente, de volume.
Substancialmente, o que vem a reboque da importao desse debate? Quais so os tais
cuidados e mediaes? Eles fornecem a pergunta certa para o caso brasileiro?51
A transposio de tais lentes hegemnicas para o Brasil requer, no mnimo,
que se leve em conta os seus pressupostos e que se verifique sua compatibilidade com
a democracia constitucional brasileira. Quais so esses pressupostos? Um deles,
obviamente, o especfico desenho institucional em que a Suprema Corte se insere.
Para lidar com ele, proponho o isolamento das variveis institucionais, estratgia
explicada no prximo tpico. Mas no somente isso. O desenho institucional
precedido por determinada teoria e histria polticas que provocaram seu nascimento
e influenciaram seu desenvolvimento por mais de dois sculos. Histria e teoria
singulares no impedem, todavia, que aquela experincia seja exportada, como de fato
o foi na transio republicana brasileira no final do sculo XIX.52
4.3 Isolamento das variveis institucionais
Retomo aqui algumas cautelas j esboadas na dissertao. Tento perceber,
dentro da variedade de argumentos, quais so dependentes do contexto, quais so 50 Cf. Stephen Gardbaum, The New Commonwealth Model of Constitutionalism. 51 A literatura de cincia poltica comparada parece sofrer tambm dessa miopia analtica, ao adotar como principal categoria classificatria a distino entre parlamentarismo e presidencialismo. Fernando Limongi mostra o erro dessa estratgia (cf. A Democracia no Brasil). 52 Vrias consideraes a respeito tambm foram feitas na dissertao (cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, pp. 27-28, 111-112 e 191).
30
locais e quais universais. O mnimo denominador comum de todos os sistemas de
controle de constitucionalidade, nos quais faz algum sentido debater a legitimidade
democrtica, um fato cru53: um arranjo institucional que permite ao poder
judicirio, em algum momento e com alguma intensidade, revogar, a ttulo de
incompatibilidade com a constituio, uma lei editada pelo parlamento
representativo.54 O STF, bom lembrar, tem competncia para exercer dezenas de
funes, enumeradas no art. 102 da Constituio Federal. Estou discutindo, porm,
somente aquela que politicamente mais impactante (art. 102, I, a).55-56
Essa seria a essncia da inveno americana, independentemente das mltiplas
variaes que sofreu no processo de transplante para outros pases. Transcender
detalhes institucionais e eliminar argumentos particulares o primeiro passo para que
essa literatura possa circular de modo mais desenvolto por outras jurisdies, para que
tenha maior versatilidade e evite qualquer miopia ou anacronismo terico. desejvel
construir artificialmente um terreno no qual a discusso se torne universal? Qual o
valor ou efeito dessa simplificao? No tornaria os argumentos to abstratos que
fariam o objeto concreto perder sua identidade e cair num vcuo? No seria um
esforo estril?
53 Cf. Controle de Constitucionalidade e Democracia, p. 19-21. No captulo 8, farei alguns comentrios adicionais aplicabilidade do debate no Brasil em face de nossas particularidades institucionais. As cautelas exaustivamente enumeradas na dissertao no sero aqui repetidas, mas aplicam-se igualmente. 54 Wil Waluchow, por exemplo, promoveu delimitao semelhante: To that end, the analysis purports to be relevant to any democratic country or jurisdiction in which one finds some form of Charter limitation on government action that is, in which governments are in some way, and to some extent, required or expected, when exercising their (typically legislative) powers, not to infringe on a constitutionally specified set of moral rights (cf. A Common Law Theory of Judicial Review, p. 12). 55 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituio, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ao direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ao declaratria de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. 56 Zurn faz comentrio parecido: Like other exercises in normative theory, this book will assume certain simplifications of the workings of actual constitutional democracies in order to focus on underlying ideals of constitutional democracy and their competing conceptualizations. One of the most important of these simplifications is to focus the arguments around the question of only one of the functions captured in the phrase judicial review. In the U.S. judicial system, for example, the Supreme Court has many different roles and carries out many different functions. At least five can be analytically distinguished. () Finally, fifth, the Supreme Court has the authority to review national ordinary law () When I refer throughout this book to judicial review, I am referring most centrally only to the fifth category of functions (). For it is in carrying out this fifth function that the tensions between judicial review and democracy are felt to arise most acutely (cf. Judicial Review and the Institutions of Deliberative Democracy, p. 26-27).
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A reduo do objeto a um fato cru perde, de fato, as nuances institucionais
que configuram desafios diferentes para a legitimidade democrtica das cortes de cada
pas. A discriminao e classificao dessas variaes so, sem dvida, importantes.
Apesar dessas perdas, esse um corte necessrio se pretendemos nos beneficiar da
riqueza da literatura estrangeira.
4.4 Binarismo e gradualismo na teoria poltica e jurdica
H duas maneiras de se pensar em conceitos polticos e jurdicos que se
manifestam em diversas partes desse texto. Poderamos chamar esses dois estilos
analticos de binarismo e gradualismo. Binrio o raciocnio estruturado a partir de
dicotomias abrangentes e rgidas, isto , limita-se a verificar se um objeto tem ou no
determinada qualidade (por exemplo: se um regime democrtico ou autoritrio, se
algum de esquerda ou de direita, se uma lei constitucional ou inconstitucional).
Gradualista, por sua vez, o raciocnio que nos permite avaliar a medida de certa
qualidade, o grau de realizao de determinado ideal. No se preocupa em dizer se
algo ou no , mas em que medida algo ou no , o quanto se aproxima ou se
distancia desse ideal (da democracia, da esquerda e assim por diante). No se
acomoda, nesse sentido, definio do modelo ideal, mas desenvolve parmetros de
mensurao e defende que pontos mais prximos do ideal so, obviamente, mais
desejveis.57 Verbos como maximizar e minimizar, aproximar e distanciar, aumentar e
diminuir, favorecer e desfavorecer, aperfeioar e piorar, progredir e retroceder so os
mais apropriados para uma anlise gradualista.
57 O gradualismo metodologia recorrente em modelos empricos da cincia poltica. A estratgia argumentativa de conceber dois extremos e indicar que situaes reais se localizam em algum ponto intermedirio do espectro bastante freqente. Grficos e tabelas so tambm instrumentos comuns para representar espacial ou quantitativamente os graus, as mltiplas dimenses etc. Que servio o gradualismo pode prestar teoria normativa? Remeto-me aqui a uma observao de Virglio Afonso da Silva feita no exame de qualificao (18.07.2007). Numa parfrase: Para ser normativo, no h como escapar do binarismo. O gradualismo mais efetivo no exerccio descritivo. Essa afirmao merece ser qualificada. A teoria normativa tem que ser sensvel a gradaes justamente para mostrar que um ponto mais prximo do ideal melhor do que o mais distante. O normativo, por isso, deve no apenas modelar o ideal (e nesse sentido, imagina os dois extremos do espectro), mas tambm imaginar os graus de aproximao. necessrio, por exemplo, ter um argumento normativo para defender a democracia que temos, a qual, apesar de longe do ideal, provavelmente melhor do que as alternativas vistas na histria brasileira. Esse contnuo, com graus crescentes de qualidade, fornecido pela teoria normativa.
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Formulado dessa maneira, parece certo que o gradualismo uma forma mais
produtiva de se apresentar perguntas, problemas e respostas na anlise poltica.58
Teria maior potencial explicativo e aderncia diversidade dos objetos no mundo
real. Permitiria pensar na qualidade da democracia, em mais e menos, em melhor e
pior, em pontos intermedirios de um contnuo. Seria mais sensvel e atento a sutis
mudanas de grau, a transformaes incrementais na qualidade de determinado
objeto. O binarismo, por outro lado, nos prenderia a uma camisa-de-fora cognitiva,
armadilha maniquesta do tudo ou nada, que ope preto e branco sem notar zonas
cinzentas intermedirias.59
Antes de se rejeitar o binarismo, pura e simplesmente, certas nuances devem
ser levadas em conta. Costuma haver, no gradualismo, um elemento binrio sem o
qual ele no consegue operar. Ele no abre mo, na maioria das vezes, de dicotomias,
mas as submete a um tratamento diferente: em vez de girar em torno de duas
categorias estanques, pega-as emprestada e as trata como tipos-puros, que jamais se
realizam por inteiro na realidade, mas em diferentes graus.60 Alm disso, a estratgia
gradualista precisa postular e convencionar alguma fronteira, algum limiar a partir do
58 Ian Shapiro apontou para a mesma tenso no campo da poltica: Conceiving democracy as a means for limiting domination offers several advantages. First, it poses normative questions about democracy in a compared to what? framework, because democracy is now judged not by the either/or question whether it produces social welfare functions or lead to agreement, but rather by how well it enables people to manage power relations as measured by the yardstick of minimizing domination. Second, this approach invites us to avoid another kind of binary thinking: about democracy itself. Ways of managing power relations can be more or less democratic. It is one of the singular contributions of Dahls idea of poliarchy that it turns questions about democracy into more-or-less questions rather than whether-or-not questions (cf. The State of Democratic Theory, p. 51). 59 Vrios autores importantes podem exemplificar o que estou dizendo, alm de Robert Dahl e seu conceito de poliarquia, j mencionado por Ian Shapiro em nota acima. Lon Fuller, por exemplo, em The Morality of Law, tem em mente exatamente essa idia quando prope que o estado de direito um empreendimento teleolgico (purposive enterprise), uma questo de grau, uma busca incessante pela otimizao dos princpios inerentes moralidade interna do direito (inner morality of law). Max Weber consagrou a metodologia de propor tipos ideais ao se analisar as modalidades de legitimidade (legal-racional, tradicional e carismtica). Ronald Dworkin e Robert Alexy introduziram tambm metodologia parecida para se pensar na normatividade dos princpios jurdicos. A racionalidade jurdica, em si, estaria presa a essa camisa-de-fora maniquesta: legal e ilegal, vlido e invlido, constitucional e inconstitucional. Essas categorias no estariam sujeitas a consideraes de mais ou menos. Dworkin e Alexy, porm, em suas teorias sobre princpios, ponderao e balanceamento, abalaram um pouco esse esquema mental. Por fim, mencionaria tambm a obra organizada por Neil MacCormick e Robert Summers, que desenvolveram uma forma de comparar a normatividade de precedentes judiciais em diversos pases (bindingness as matter of degree). 60 O gradualismo torna-se, verdade, mais complexo e multi-dimensional quando entram na anlise diversos valores (cada um deles, por sua vez, traduzido em jogos binrios num nvel mais elementar). Nesse plano multi-dimensional, recorre-se ao balanceamento entre os diversos valores, que no se realizam em grau mximo se no custa de outros tambm importantes. Esse acrscimo de complexidade exigiria outras consideraes. Para os fins desse tpico, porm, basta a percepo do carter gradualista ou esttico na anlise de antinomias nos conceitos polticos e jurdicos.
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qual o objeto estudado passa a estar mais prximo de um dos extremos do contnuo (o
limiar a partir do qual, por exemplo, um regime deixa de ser chamado de autoritrio e
passas a ser considerado democrtico).
A prpria dicotomia entre binarismo e gradualismo, se no feitos tais
esclarecimentos, pode transformar-se numa armadilha binria. O objetivo dessa
digresso indicar a forma pela qual a tese procurar escapar de tal armadilha quando
diante das diversas dicotomias que perpassam o problema aqui estudado. Como o
conceito de democracia poltica o subtexto desse trabalho, algumas consideraes
adicionais ajudam a clarear esse ponto.
A idia de democracia o centro de gravidade da imaginao poltica
contempornea. Regimes polticos so avaliados, sobretudo, por referncia s
mltiplas dimenses desse conceito que se decompe, entre outras coisas, em
demandas por igualdade, respeito a direitos, participao e certos arranjos
institucionais estruturados por uma constituio. J lugar comum afirmar que, no
sculo XX, a democracia passou a liderar a competio pelos ndices de legitimidade
da poltica e atingiu, praticamente, consenso quanto ao seu valor abstrato. Esse
consenso em abstrato, contudo, segundo esse mesmo lugar comum, foi conquistado ao
preo de grande desacordo sobre as formas concretas de se implementar esse ideal.
Provavelmente, entre as causas desse fenmeno esto a maleabilidade e o
poder de seduo desse conceito para, em diferentes verses, atrair e incorporar outros
ideais sensveis da histria poltica (como igualdade, liberdade e justia). Todavia,
essa mesma maleabilidade e alta demanda normativa, como anotado acima, gerou um
acordo de superfcie e um grande desacordo de bastidores. Democracia , no plano da
poltica, a expresso mais exemplar de conceito essencialmente contestado, ou seja,
um conceito que no provoca apenas um desacordo perifrico, acidental e marginal,
passvel de soluo aps um processo de investigao racional mais esforado. A
disputa sobre o seu sentido concreto e seu carter escorregadio da sua essncia
mesma. O desacordo infinito e ope posies genunas e defensveis.61
61 Cf. W.B. Gallie, Essentially Contested Concepts.
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Tambm por essa razo, a estratgia gradualista parece ser mais adequada para
lidar com conceitos essencialmente contestados. Trata-se de uma postura
interessante para amenizar desacordos e enxergar complementaridades entre
diferentes abordagens de democracia, em vez de postular uma definio rgida que
exclui as alternativas. Democracia, na perspectiva gradualista, um processo
contnuo, um empreendimento coletivo permanente, que estar sempre incompleto,
sujeito a avanos mas tambm a retrocessos. Pensar em gradaes a partir de um tipo-
puro ideal permite notar o carter inacabado deste projeto poltico, que no se paralisa
com a realizao de eventuais requisitos mnimos (que ultrapassam o limiar do
continuum). A estratgia binria, por outro lado, permanece refm seja do
minimalismo, que induz acomodao diante da realizao de um conceito mnimo
de democracia, seja do maximalismo, que leva resignao diante da impossibilidade
de alcanar um critrio muito exigente.
H muitos exemplos de dicotomias que orientam nosso vocabulrio poltico e
jurdico. Algumas delas permeiam esse projeto. Listo as principais delas, algumas j
mencionadas nesse captulo. Nem todas participam igualmente no argumento central
da tese, mas a apresentao de todo o conjunto consegue provavelmente reunir a
grande maioria dos enfoques propostos pelas teorias da reviso judicial.
A primeira a tenso entre forma e substncia, entre o processo (input) e o
resultado decisrio (output). Diferentes teorias da democracia divergem em relao
aos ingredientes formais e substantivos desse regime. Algumas simplificaram esse
dilema e optaram por um dos lados. Outras tentaram mesclar ambos os elementos:
procedimentalistas que no abrem mo de alguma substncia e substantivistas,
como Dworkin, que no abdicam de algum procedimento.62
62 lvaro de Vita fraseia a dicotomia de forma diferente. A oposio entre forma e substncia, para ele, corresponde oposio entre tica e poltica: O procedimentalismo eqitativo oferece uma interpretao da autoridade poltica legtima, cujas decises tm uma pretenso pelo menos prima facie a reclamar a obedincia dos cidados. J o liberalismo igualitrio tem a ambio de oferecer orientao aos julgamentos dos cidados (e seus representantes) que agem sob uma dada estrutura de autoridade poltica e de oferecer um critrio com base no qual avaliar a justia dos resultados de procedimentos decisrios eqitativos na poltica. E se eles tm ambies distintas, e se aplicam a coisas distintas, tambm no podem ser considerados o procedimentalismo eqitativo e a justia rawlsiana concepes alternativas da mesma coisa. Isso, em meu entender, somente uma das manifestaes de uma distino ainda mais fundamental (tal como a entendo) entre tica e poltica (cf. Sociedade Democrtica e Democracia Poltica).
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A segunda oposio, que se parece e se relaciona intimamente com a anterior,
mas com ela no se confunde, h entre deciso e razo, fora e justificao, coero e
argumento, imposio e persuaso.63-64 Estes so dois plos de uma espinha dorsal da
teoria poltica e jurdica e decorrem de um esforo para entender o dever de
obedincia s normas. Dentro de uma tradio que concebe a poltica e o direito como
empreendimento racional, uma tentativa de cumprir a promessa do governo das leis,
passa a fazer sentido analisar e criticar as razes que acompanham as decises
polticas. As decises, nesse sentido, no so apenas ordens s quais se deve obedecer
calado, mas um conjunto de razes que podem ser discutidas e que constrangem a
discricionariedade do agente decisrio. Um desdobramento dessa dicotomia suscita a
inteface entre o ato de manifestao da vontade poltica (o voto) e o processo de
formao da vontade poltica (o que vem antes e depois do voto, continuamente),
distino importante para teorias da democracia deliberativa, como veremos no
captulo 7.
A terceira, que facilmente se pode derivar da anterior, ocorre entre formal (ou
institucional) e informal (ou no-institucional), imperfeitamente traduzida pelo
paralelo entre explcito e implcito, ou tambm entre o escrito e o no-escrito. Trata-se
de um foco importante para perceber e observar o argumento da tese sobre a
deliberao inter-institucional. No h democracia, ou mesmo poltica, obviamente,
sem dilogo, e esta imagem se aplica s mais diversas instncias formais e informais
de uma comunidade. Nesta tese, quero observar uma espcie formalizada de dilogo,
sem perder de vista ou fechar-se para os elementos informais do processo.
A quarta ocorre entre realismo e idealismo, s vezes associada,
imprecisamente, oposio entre pessimismo e otimismo, e outras tenso entre
teoria positiva e teoria normativa. Essa uma opo metodolgica ainda mais
63 Uma forma sutilmente diferente de formular essa dicotomia, que ser importante para entender uma certa concepo de separao de poderes nos caps. 6 e 7, opor a separao de poderes como, de um lado, uma confrontao uni-direcional e monoltica, um brao de ferro ou um jogo de soma zero, e, de outro, como negociao, acomodao, balanceamento e barganha para alcanar um acordo, um equilbrio. Nessa segunda viso, o produto final resultado da interao, no da prevalncia do mais forte ou do vencedor. O resultado, portanto, diferente da vontade de qualquer das partes. Teorias da ltima palavra destacam a dimenso do conflito na poltica, querem saber quem tem autoridade para decidir em circunstncias de desacordo. Teorias do dilogo, por sua vez, destacam a cooperao. Veremos que no so, necessariamente, abordagens excludentes, mas percebem dimenses diferentes. 64 Lon Fuller, analisando Benjamin Cardozo, nomeou essa antinomia de reason and fiat (cf. Reason and Fiat in Case-Law).
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profunda de certas correntes da teoria poltica que escolhem um dos lados para derivar
suas explicaes e exigncias. Um ponto de partida comum a suposio
antropolgica, a noo de natureza humana. Uma teoria normativa, como j dito,
precisa encontrar algum balano entre essas duas variveis.
A quinta, como componente mais explcito do argumento central da tese, se d
entre as idias de ltima palavra e dilogo. A literatura hegemnica que se preocupou
em discutir a legitimidade democrtica da reviso judicial est inspirada claramente
na ltima palavra, dilema cuja soluo sugere duas opes excludentes: juiz ou
legislador. O foco do dilogo pretende escapar desse cacoete. Nessa tese, porm,
ambos os plos (dilogo e ltima palavra) cumprem algum papel na forma de se
entender a separao de poderes.
A sexta, estritamente associada anterior, estrutura a dimenso temporal da
poltica em perspectivas de curto prazo e longo prazo. Outras formas de se referir a
essa mesma idia seriam as oposies entre sincrnico e diacrnico, esttico e
dinmico. A tese prope que, vista a separao de poderes a partir da primeira
perspectiva, ltimas palavras de fato existem, apesar de sua provisoriedade, percepo
que somente a viso de longo prazo, da poltica como um processo contnuo,
consegue alcanar. As duas perspectivas temporais, dessa maneira, cumprem algum
papel. A primeira para mostrar que ltimas palavr
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