UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
CAIO DE SOUZA GOMES
Quando um muro separa, uma ponte une: conexes transnacionais na
cano engajada na Amrica Latina (anos 1960/70)
(verso corrigida)
So Paulo
2013
CAIO DE SOUZA GOMES
Quando um muro separa, uma ponte une: conexes transnacionais na
cano engajada na Amrica Latina (anos 1960/70)
(verso corrigida)
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de mestre em Histria.
rea de concentrao: Histria Social
De acordo:__________________________________________
Orientadora: Profa. Dra. Maria Helena Rolim Capelato
So Paulo
2013
Nome: Caio de Souza Gomes
Ttulo: Quando um muro separa, uma ponte une: conexes transnacionais na
cano engajada na Amrica Latina (anos 1960/70)
Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de mestre em Histria.
Aprovado em: 25 de abril de 2013
Banca Examinadora
Profa. Dra. Maria Helena Rolim Capelato (orientadora) Instituio: FFLCH/USP
Julgamento: ______________________ Assinatura: _______________________
Prof. Dr. Marcos Francisco Napolitano de Eugenio Instituio: FFLCH/USP
Julgamento: ______________________ Assinatura: _______________________
Profa. Dra. Tnia da Costa Garcia Instituio: UNESP/Franca
Julgamento: ______________________ Assinatura: _______________________
AGRADECIMENTOS
Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pelo apoio
financeiro fundamental para a concretizao deste projeto.
orientadora desta pesquisa, professora Maria Helena R. Capelato, pela confiana
em mim e neste trabalho, pela enorme generosidade e carinho com que sempre me
acolheu e pela grande amizade nestes anos de convvio.
professora Maria Lgia Coelho Prado, pelo incentivo e apoio, por acreditar nas
possibilidades desta pesquisa, pela convivncia sempre to afetiva e agradvel.
Aos professores Marcos Napolitano e Tnia da Costa Garcia, que acompanharam a
pesquisa desde o incio com muito interesse e trouxeram contribuies fundamentais
no exame de qualificao.
professora Mary Anne Junqueira, sempre to receptiva e atenciosa, fundamental
para desvendar os caminhos do transnacional.
A todos os professores e colegas participantes do Projeto Temtico FAPESP
Cultura e poltica nas Amricas e do Laboratrio de Estudos de Histria das
Amricas (LEHA). Os encontros do grupo, todas as discusses ali desenvolvidas, e
a oportunidade de apresentar essa pesquisa e receber crticas e contribuies foram
muito importantes para o amadurecimento do trabalho.
Ao grupo de orientandos da professora Maria Helena Capelato, com quem um
prazer compartilhar os caminhos da pesquisa.
Ao professor Aldo Marchesi, do Centro de Estudios Interdisciplinarios Uruguayos da
Universidad de la Repblica (UDELAR), que me abriu caminhos no Uruguai.
A Patricio Manns, personagem fundamental da histria aqui contada, que to
gentilmente respondeu aos meus contatos.
ngela, Carine e Maria Antnia, por terem me acolhido com tanto carinho desde o
incio, pelo apoio fundamental em todos os momentos. uma enorme alegria poder
compartilhar cada momento com vocs.
Annelise, que acompanha esta pesquisa desde antes de ela existir.
Vera, que est na origem de tudo, incentivadora fundamental desde o primeiro
momento e que alm de grande referncia se tornou querida amiga.
Aos amigos, avs, tios e primos, que sempre trouxeram momentos de alegria e
descontrao em meio ao caminho s vezes rido e solitrio da pesquisa.
Tnia e Renato, meus pais, e Nicoly, minha irm, que sempre acreditaram em mim
e me apoiaram incondicionalmente em todas as minhas escolhas. Esse trabalho s
existe graas ao amor de vocs.
RESUMO
GOMES, Caio S. Quando um muro separa, uma ponte une: conexes
transnacionais na cano engajada na Amrica Latina (anos 1960/70). 2013.
227 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
da Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.
O objetivo desta pesquisa analisar como, ao longo das dcadas de 1960 e 70,
artistas ligados cano engajada conceberam projetos de integrao da Amrica
Latina por meio da cano, e como esses projetos resultaram no estabelecimento de
uma srie de conexes transnacionais. Neste perodo, os impactos da Guerra Fria
tiveram como consequncia um contexto poltico fortemente polarizado, o que afetou
diretamente o campo cultural e, especialmente, o campo artstico. As experincias
polticas comuns favoreceram as trocas de ideias e a intensa circulao de artistas
por todo o continente, permitindo o estabelecimento de uma srie de contatos e
dilogos. Utilizando como fonte principal a discografia dos mais destacados artistas
de cada pas, o objetivo analisar essa histria de conexes transnacionais na
cano engajada latino-americana focalizando trs fases distintas: a) a primeira,
entre 1963 e 1966, momento de formao e consolidao dos movimentos de nueva
cancin no Cone Sul, em que o engajamento se manifestou fundamentalmente por
meio da crtica social; b) a segunda, entre 1967 e 1969, marcada pelos impactos do I
Encuentro de la Cancin Protesta, realizado em Cuba, que resultou no destaque de
dois temas importantes: a revoluo e o anti-imperialismo; c) a terceira, que
compreende a dcada de 1970, perodo marcado pela radicalizao dos discursos
polticos, pela intensificao das conexes e tambm pelas tentativas de insero
dos artistas brasileiros nos circuitos da cano engajada latino-americana.
Palavras-chave: cano engajada / cultura e poltica na Amrica Latina / conexes
transnacionais
ABSTRACT
GOMES, Caio S. When a wall separates, a bridge unites: transnational
connections in the Latin America protest song (1960/70). 2013. 227 f.
Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.
The objective of this research is to analyze the Latin America integration project
conceived by the artists involved with the protest song in the 1960s and 1970s. In
this period, the impact of Cold War resulted in a polarized debate that affected the
cultural field, and especially the artistic field. The common political experiences
favored the exchange of ideas and the intense movement of artists across the
continent. Using the most prominent artists discography as source, the purpose is to
analyze three moments of the history of "transnational connections" in the protest
song in Latin American: a) the first, between 1963 and 1966, time of development
and consolidation of nueva cancin movement in the Southern Cone, when the
engagement was manifested fundamentally by social criticism; b) the second,
between 1967 and 1969, marked by the impact of the I Encuentro de la Cancin
Protesta held in Cuba, that highlighted two important themes: revolution and anti-
imperialism; c) the third, which comprises the 1970s, a period marked by the
radicalization of political discourse and by the intensification of connections.
Especially in this third phase, I analyze the Brazilian artists efforts to integrate the
circuits of Latin American protest song.
Keywords: protest song / culture and politics in Latin America / transnational
connections
SUMRIO
INTRODUO: TANTA DISTANCIA Y CAMINO, TAN DIFERENTES BANDERAS: AS
CONEXES TRANSNACIONAIS E A CANO NA AMRICA LATINA............................. 8
Entre muros e pontes.............................................................................................................. 8
Histrias Conectadas............................................................................................................. 11
Histrias Transnacionais....................................................................................................... 15
Conexes transnacionais e a cano engajada.................................................................... 20
1. CAPTULO 1 SI SOMOS AMERICANOS, NO MIRAREMOS FRONTERAS. A
INVENO DA NUEVA CANCIN E O PROJETO DE UNIDADE LATINO-AMERICANA:
FOLCLORE, INOVAO E COMPROMISSO POLTICO (1963-1966)............................... 28
1.1. 1963 e o incio da nueva cancin na Amrica Latina..................................................... 29
1.1.1. As origens do nuevo cancionero argentino................... 29
1.1.2. Primeiros marcos da cancin protesta uruguaia............................................ 39
1.2. Os anos 1965 e 1966 e as primeiras bases da nueva cancin...................................... 45
2.2.1 A produo discogrfica da cancin protesta uruguaia.................................. 47
2.2.2 Os primeiros passos discogrficos do nuevo cancioneiro argentino.............. 51
2.2.3. La pea de los Parra e o inicio da nueva cancin chilena... 57
2. CAPTULO 2 YO QUIERO ROMPER MI MAPA, FORMAR EL MAPA DE TODOS: O
I ENCUENTRO DE LA CANCIN PROTESTA E A CANO COMO ARMA DA
REVOLUO. 75
2.1. I Encuentro de la Cancin Protesta, latino-americanismo e a importncia da cultura no
projeto revolucionrio. 77
2.2. Os impactos do I Encuentro de la Cancin Protesta na produo discogrfica dos
cantautores latino-americanos .............................................................................................. 91
2.2.1. A aproximao entre Cuba e a cancin protesta uruguaia............................ 91
2.2.2. A nueva cancin chilena e a radicalizao do engajamento......................... 99
2.2.3. Desdobramentos do nuevo cancionero argentino no final dos anos 1960.. 124
3. CAPTULO 3. BUSQUEMOS LA UNIDAD, ES TAREA DE TODOS LA NUEVA
SOCIEDAD: A CANO ENGAJADA LATINO-AMERICANA NA DCADA DE 1970 E O
AUGE DAS CONEXES TRANSNACIONAIS................................................................... 127
3.1. A militncia dos artistas pela eleio de Salvador Allende e sua atuao no governo da
Unidade Popular.................................................................................................................. 127
3.2. Conexes entre Chile e Cuba ao longo do governo da Unidade Popular.................... 141
3.3. Encuentro de Msica Latinoamericana: afirmao de Cuba como polo da cultura
revolucionaria do continente................................................................................................ 148
3.4. Dilogos entre o GESI e a cancin protesta uruguaia.................................................. 153
3.5. O nuevo cancionero argentino no incio dos anos 1970............................................... 156
3.6. Golpes militares e a crise do projeto da nueva cancin............................................... 165
3.7. A produo discogrfica do GESI e o projeto de unidade latino-americana................ 168
4. CAPTULO 4. EL CANTO DE USTEDES QUE S EL MISMO CANTO: A INSERO
DO BRASIL NO UNIVERSO DA CANO ENGAJADA LATINO-AMERICANA............. 172
4.1. A radicalizao do discurso poltico na dcada de 1960 e a aproximao com a nueva
cancin................................................................................................................................ 172
4.2. Conexes entre o Brasil e nueva cancin no incio da dcada de 1970...................... 180
4.3. A insero do Brasil nos circuitos da cano engajada latino-americana na segunda
metade da dcada de 1970................................................................................................. 186
4.3.1 Elis Regina e a Amrica Latina em Falso Brilhante...................................... 186
4.3.2. Chico Buarque e a nueva trova cubana....................................................... 188
4.3.3. A divulgao da msica latino-americana no Brasil.................................... 191
5. CONSIDERAES FINAIS............................................................................................ 195
DISCOGRAFIA.................................................................................................................... 199
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, 206
ANEXO LETRAS DAS CANES... 218
8
INTRODUO: TANTA DISTANCIA Y CAMINO, TAN DIFERENTES
BANDERAS: AS CONEXES TRANSNACIONAIS E A CANO NA AMRICA
LATINA
Entre muros e pontes
Quando um muro separa, uma ponte une. O verso que escolhi como ttulo
desta pesquisa, da cano Pesadelo de Maurcio Tapajs e Paulo Csar Pinheiro,
coloca um dilema: de um lado, o muro que separa; de outro, a ponte que une. a
partir deste jogo entre muros e pontes, entre separao e unio, que pretendo
pensar a cano engajada na Amrica Latina nas dcadas de 1960 e 1970.
A imagem do muro traz em si uma ambiguidade. Pois ao mesmo tempo em
que o muro protege, defende, ele limita, divisa, fronteira, comunicao cortada. O
muro ao mesmo tempo segurana e sufocao, defesa e priso. Mas o signo
maior da ideia do muro a separao: separao entre o interno e o externo, entre
os que ficaram e os que saram, entre naes, entre o eu e o outro.
A imagem que se contrape ao muro a ponte. Ponte que liga pessoas ou
coisas. Ponte passagem, que permite ir de um lado a outro, de uma margem a outra,
que estabelece a comunicao. A ponte, assim, tem como signo maior a ideia de
ligao, de conexo entre dois lados, entre dois polos que, de outro modo, restariam
separados. E ainda carrega em si uma outra imagem: a da mediao. O mediador
aquele que, ao mesmo tempo, e constri pontes.
O jogo entre muros e pontes , assim, o jogo entre a separao e a ligao,
entre a comunicao cortada e a comunicao restabelecida, entre os limites e as
passagens, entre as fronteiras e as mediaes.
No estudo proposto, abordo o universo da cano engajada latino-americana
tentando pens-lo para alm dos muros que separam as experincias de cada pas,
em busca de possveis pontes que conectem essa produo musical. Parto do
pressuposto de que ao abrir os olhos (ou os ouvidos) para o que esta alm dos
limites nacionais, novas alternativas de abordagem se colocam e novos olhares
sobre o que j parecia conhecido comeam a se tornar possibilidades.
9
Dentre tantos elementos que compem aquele universo de canes
incrivelmente rico, as constantes referncias Amrica, ao continente, aos
hermanos, a identidades que transbordam o nacional, se destacam de tal forma
que acabam por colocar uma srie de questes: Qual o lugar da Amrica Latina
nessa produo engajada to numerosa das dcadas de 1960 e 1970? Como
identidades como latino-americano (ou sul-americano, ou ainda simplesmente
americano) fazem parte da construo dos discursos desse universo cancional?
possvel falar em uma identidade transnacional a partir desse universo artstico?
Como essas canes articulam a identidade continental com outras identidades
nacionais, regionais, locais?
As tenses que se colocam diante do complexo jogo entre muros e pontes,
diante das tentativas de aproximao entre as experincias musicais dos diferentes
pases, tambm se refletem nas tentativas de formao de laos identitrios. O tema
das identidades, sejam elas culturais, raciais, polticas, de gnero, nacionais ou
coletivas, tem sido muito debatido nas ltimas dcadas. Os estudiosos do tema
entendem as identidades como construes do discurso que constituem o real e
integram o jogo conflituoso dos imaginrios e das representaes. Ao mesmo
tempo, tocam os coraes e despertam a sensao de pertencimento do indivduo a
uma coletividade. Os indivduos que se sentem identificados afirmam suas
particularidades para diferenciar-se dos que no pertencem ao grupo. As
identidades envolvem razo e sentimento, produzem paixes polticas ligadas s
emoes coletivas.
Como lembra Stuart Hall 1, um dos principais estudiosos do tema, as
identidades coletivas no so imunes a mudanas, readaptaes e resignificaes.
As identidades esto sempre em movimento, em contnua transformao e as
referncias simblicas relacionadas a elas tambm ganham significados distintos
nesse processo de mudanas. Segundo Maria Lgia Coelho Prado:
(...) a anlise das identidades supe acompanhar o intrincado e contraditrio movimento de incluso e excluso, de lembrana e esquecimento, de semelhana e diferena, de harmonia e tenso, atravessado por relaes de poder. 2
1 O autor aborda a questo das identidades em Stuart HALL. A identidade cultural na ps-
modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
2 Maria Ligia Coelho PRADO. Uma introduo ao conceito de identidade. Cadernos de Seminrio.
Cultura e Poltica nas Amricas, vol. 1, 2009, p. 68.
10
Enfrentar essa problemtica de pesquisa, no entanto, esbarra em uma srie
de limites e desafios. s vezes, o excesso de informaes e o proliferar de fontes
colocam dilemas to ou mais complexos quanto o cenrio inverso. Como lidar com
um tema que ultrapassa e muito as fronteiras nacionais, e propor um esquema de
investigao que d conta de percorrer diferentes universos cancionais, diferentes
contextos polticos, mas ao mesmo tempo no pretenda uma histria da msica na
Amrica Latina impraticvel? Como perseguir o tema e ao mesmo tempo escapar
das armadilhas de uma histria totalizante, e por isso mesmo inevitavelmente
superficial? A pesquisa aqui apresentada uma tentativa de enfrentar essas
dificuldades.
Os muros nacionais sempre se impuseram histria que, afinal, se organizou
como disciplina e instituio para justificar essas ideias de nao em construo.
Se os muros tenderam a prevalecer, no foram poucas as tentativas de construir
pontes. Pontes que conectassem a histria com as demais disciplinas (disciplinas
estas tambm cercadas por muros), pontes que transcendessem os limites
nacionais. As tentativas de ir alm do nacional, no campo historiogrfico, no so de
modo algum uma novidade. Basta atentar, por exemplo, para a longa e slida
trajetria das histrias comparadas, ou para as propostas construdas em vrias
pocas para pensar a Amrica Latina. No entanto, principalmente a partir do fim do
sculo XX, diante da percepo crescente da fragilidade das construes nacionais,
essa necessidade de transpor os muros, de suplantar os limites, cresceu de maneira
incontestvel. De modo que, neste incio de sculo XXI, nos vemos inevitavelmente
s voltas com um desafio transnacional.
Para enfrentar esse desafio, procurei utilizar a ideia de conexes
transnacionais, na tentativa de aproximar duas propostas de abordagem que vem
sendo discutidas recentemente: as histrias conectadas, desenvolvidas
principalmente por autores franceses ou radicados na Frana 3, e as histrias
transnacionais, parte de um amplo debate desenvolvido principalmente nos Estados
Unidos. Considero importante apresentar alguns breves elementos dessas reflexes
tericas, de modo a situar a discusso que proponho a seguir.
3 Para um balano das discusses sobre histrias conectadas ver Maria Ligia Coelho PRADO.
Repensando a Histria Comparada da Amrica Latina. Revista de Histria, So Paulo, n 153, p. 11-33, 2005.
11
Histrias Conectadas
Em volume de janeiro de 2001, o tradicional peridico francs Annales.
Histoire, Sciences Sociales organizou o dossi Une histoire lchelle globale
(Uma histria em escala global) 4, em que publicou artigos resultantes da jornada
de estudos Penser le monde, ocorrida em 10 de maio de 2000 na cole des
Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS) por iniciativa de Serge Gruzinski e
Sanjay Subrahmanyam. O principal objetivo do dossi era discutir as possibilidades
e limites do que seria uma histria em escala global. Segundo o editorial que abre
o volume, o diferencial fundamental dessas abordagens seria o destaque dado:
(...) a isso que eles chamam de conexes e s circulaes, pois a histria global que eles propem no somente um programa de anlise com certo nvel de generalidade; ela sobretudo uma tentativa de ultrapassar os limites habituais das pesquisas, circunscritas a uma rea cultural ou uma entidade poltica particular.5
Deste modo, a novidade trazida pelos novos enfoques histricos ali
apresentados estaria justamente na ateno dada s conexes e circulao,
trazendo para o primeiro plano das anlises a questo dos atores, dos vetores, dos
passeurs, e do impacto dessas transferncias e de sua recepo. 6
O artigo de Subrahmanyam que compe o dossi, intitulado Du Tage au
Gange au XVIe sicle: une conjoncture millnariste l'chelle eurasiatique, abre
com a seguinte pergunta:
4 Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 1, 2001. O dossi se divide em duas partes. Num primeiro
bloco, intitulado Une histoire lchelle globale. Braudel et lAsie (Uma histria em escala global. Braudel e a sia), composto pelos artigos de R. BIN WONG, Entre monde et nation : les rgions braudliennes en Asie e de Maurice AYMARD, De la Mditerrane l'Asie : une comparaison ncessaire (commentaire), se busca retomar a herana braudeliana e estabelecer seus limites e aproximaes com as novas propostas de histria global. A segunda parte do dossi, intitulada Temps croiss, mondes mls (Tempos cruzados, mundos misturados), composta pelos atigos de Sanjay SUBRAHMANYAM, Du Tage au Gange au XVIe sicle: une conjoncture millnariste l'chelle eurasiatique, de Serge GRUZINSKI, Les mondes mls de la Monarchie catholique et autres connected histories, e de Roger CHARTIER, La conscience de la globalit (commentaire), a que nos interessa mais diretamente aqui.
5 Une histoire l'chelle globale. Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 1, 2001, p. 3. (Os trechos
citados de textos originalmente em outras lnguas so tradues minhas. Manterei na lngua original apenas as citaes de letras de canes).
6 Une histoire l'chelle globale. Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 1, 2001, p. 4.
12
Quais eram os grandes fenmenos que unificaram o mundo no incio do perodo moderno, permitindo aos habitantes de diversas partes do globo, apesar de sua disperso, imaginar pela primeira vez a existncia de eventos se produzindo realmente em escala mundial? 7
A preocupao de Subrahmanyam com o que ele chama de early modern.
Em artigo anterior, publicado em 1997 8, o autor j abordava as histrias
conectadas ao trabalhar com esse perodo que ele estende de meados do sculo
XIV a meados do sculo XVIII. Diante da amplitude do perodo abordado e das
dificuldades que sua proposta envolve, Subrahmanyam se coloca o seguinte
questionamento: H uma alternativa metodolgica realista, que no requeira que
nos tornemos especialista em tudo? 9. A resposta que ele encontra justamente
propor o que define como histrias conectadas, que enfatizam, principalmente, os
fluxos estabelecidos no campo cultural. Neste sentido, afirma:
(...) ideias e construes mentais tambm fluram atravs das fronteiras polticas neste mundo e mesmo se encontraram expresso local especfica nos permitem ver que ns estamos lidando no com histrias separadas e comparveis, mas com histrias conectadas. 10
Deste modo, o objetivo fundamental seria perseguir, de perto, essa intensa
circulao para alm das fronteiras polticas, sem, no entanto, perder de vista as
especificidades que as ideias que circularam assumiram nos contextos locais. O
apelo seria para que:
(...) no apenas comparemos a partir de dentro de nossas caixas, mas gastemos algum tempo e esforo para transcend-las, no por
7 Sanjay SUBRAHMANYAM. Du Tage au Gange au XVIe sicle : une conjoncture millnariste
l'chelle eurasiatique. Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 1, 2001, p. 51.
8 Sanjay SUBRAHMANYAM. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern
Eurasia. Modern Asian Studies, 31, 3 (1997). Subrahmanyam tem abordado sistematicamente a histria da Eursia a partir da proposta das histrias conectadas. Ver, por exemplo, Explorations in Connected History. From the Tagus to the Ganges. New York: Oxford University Press, 2005. Explorations in Connected History. Mughals and Franks. New York: Oxford University Press, 2005. Holding the World in Balance. The Connected Histories of the Iberian Overseas Empires, 1500-1640.The American Historical Review, vol. 112, n. 5, December 2007.
9 Sanjay SUBRAHMANYAM. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern
Eurasia. Modern Asian Studies, 31, 3 (1997), pp. 744-5.
10 Ibid., p. 748.
13
comparao apenas, mas buscando os s vezes frgeis tpicos que conectam o globo. 11
para essa mesma direo que aponta Serge Gruzinski em seu artigo 12, em
que utiliza a ideia das histrias conectadas para analisar o perodo da unio das
coroas ibricas, entre 1580 e 1649, quando a construo de um imprio de
dimenses monumentais possibilitou uma intensa circulao de homens pelas
vastas possesses imperiais. Remetendo-se diretamente s proposies de
Subrahmanyam, e especificamente ao artigo j citado de 1997, Gruzinski afirma:
Parece-me que a tarefa do historiador pode ser a de exumar as ligaes histricas ou, antes, para ser mais exato, de explorar as connected histories, se adotarmos a expresso proposta pelo historiador do imprio portugus, Sanjay Subrahmanyam, o que implica que as histrias s podem ser mltiplas ao invs de falar de uma histria nica e unificada com h maisculo. Esta perspectiva significa que estas histrias esto ligadas, conectadas, e que se comunicam entre si. Diante de realidades que convm estudar a partir de mltiplas escalas, o historiador tem de converter-se em uma espcie de eletricista encarregado de restabelecer as conexes internacionais e intercontinentais que as historiografias nacionais desligaram ou esconderam, bloqueando as suas respectivas fronteiras. 13
Gruzinski aponta para a necessidade de explorar as conexes, de enxergar
as ligaes que conectam as histrias para alm das fronteiras nacionais, de
restabelecer as conexes internacionais e intercontinentais. E a alternativa que
prope para alcanar tal objetivo , justamente, recorrer s histrias conectadas,
que fariam aparecer as continuidades, as conexes ou as simples passagens
muitas vezes minimizadas (quando no so excludas da anlise) 14 e enfatizariam
a circulao dos indivduos, desses agentes que atuam como passeurs e que
permitem por em circulao as ideias.
11
Sanjay SUBRAHMANYAM. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia. Modern Asian Studies, 31, 3 (1997), pp. 761-2.
12 O artigo Les mondes mls de la Monarchie catholique et autres connected histories, publicado
em Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 1, 2001, ganhou uma verso em portugus intitulada Os mundos misturados da monarquia catlica e outras connected histories, publicada em Topoi, Rio de Janeiro, maro de 2001. Utilizarei para as citaes o texto publicado em portugus.
13 Serge GRUZINSKI. Os mundos misturados da monarquia catlica e outras connected histories.
Topoi. Rio de Janeiro: maro de 2001, p. 176.
14 Ibid., p. 177.
14
O dossi dos Annales encerra com um comentrio do clebre historiador
Roger Chartier a respeito dos ensaios de Gruzinski e Subrahmanyam. Chartier
aponta para o que chama de recusas dos dois autores:
(...) recusa do quadro do Estado-nao como se ele prprio pudesse delimitar, retrospectivamente, uma entidade social e cultural j presente antes mesmo de seu advento poltico; recusa dos recortes tradicionais da monografia histrica explorando as especificidades de uma provncia, de um pas, de uma vila; recusa, enfim, da abordagem micro-histrica que, segundo S. Gruzinski, fez negligenciar a distncia. 15
Partindo dessas recusas do estado-nao como limite, dos recortes
tradicionais em escalas nacionais ou locais e da abordagem micro-histrica, e
defendendo uma histria que considere as distncias, a importncia das
contribuies como a de Gruzinski e Subrahmanyam estaria, segundo Chartier, na
tentativa de encontrar sadas para os dilemas que cercam a construo de uma
histria em escala mundial:
A originalidade dos recortes escolhidos por S. Gruzinski e S. Subrahmanyam trazida pela recusa, simultaneamente, de uma histria global, entendida como uma figura moderna da histria universal, e de uma histria comparada, entendida como puramente morfolgica. O que importa a eleio de um quadro de estudos capaz de tornar visveis as connected histories que puseram em relao populaes, culturas, economias e poderes. 16
Deste modo, o grande diferencial trazido pela proposta das histrias
conectadas seria, fugindo de abordagens globais ou universais, que aspiram a
uma impraticvel histria total, e se distanciando tambm das abordagens clssicas
da histria comparada, propor uma nfase radical nas conexes. Essa ateno s
conexes e circulao est na base tambm das discusses desenvolvidas
principalmente nos Estados Unidos em torno da proposta das histrias
transnacionais.
15
Roger CHARTIER. La conscience de la globalit (commentaire). Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 1, 2001, p. 119.
16 Ibid., p. 121.
15
Histrias Transnacionais
Uma primeira dificuldade por que passa a adoo do termo transnacional
a definio do que se pretende abordar sob tal denominao e quais os limites e
possibilidades que o termo coloca. O prefixo trans remete ideia de alm. Significa
o ato de ir alm, transposio, travessia, transferncia e, portanto, insere-se no
mesmo universo semntico das pontes. Deste modo, uma primeira significao
bvia do termo a ideia de ir alm das naes. Os fenmenos transnacionais
seriam aqueles que, de algum modo, transcendem as fronteiras dos Estados-nao.
E, portanto, a histria transnacional seria aquela que se debrua sobre esses
fenmenos. Maurcio Tenrio Trillo aponta para as dificuldades desse desafio:
Ser que podemos imaginar uma escrita da histria que, ainda que imersa no cenrio do Estado-nao, ainda que utilizando o Estado-nao como unidade bsica de anlise, relativize o peso da nao? Podemos conceber histrias culturais, sociais ou econmicas que relatem o devir das experincias modernas, das quais uma das caractersticas ainda que no a mais importante que ocorrem em diferentes contextos nacionais? possvel escrever histrias intercruzadas entre naes sem ter em mente nenhuma nao em particular, ou seja, escrever histrias para nenhuma nao? 17
Para pensar esse desafio, a edio de dezembro de 2006 da American
Historical Review promoveu uma conversa (a seo se chama AHR
Conversation) entre um grupo de historiadores18 a respeito da Histria
17
Mauricio Tenorio TRILLO, em dilogo com Thomas Bender e David Thelen. Caminhando para a desestadunizao da histria dos Estados Unidos: um dilogo. Estudos Histricos. Rio de Janeiro, n. 27, 2001, pp. 12-13. Thomas Bender e David Thelen so dois dos principais autores norte-americanos preocupados com a questo do transnacional. De Thelen ver, por exemplo, The Nation and Beyond. Transnational Perspectives on United States History. The Journal of American History, vol. 86, n. 3, December 1999. Replanteamiento de la historia desde una perspectiva transnacional. In: AZUELA, Alicia; PALACIOS, Guillermo (orgs.) La mirada mirada: Transculturalidad e imaginarios del Mxico revolucionario, 1910-1945. Mxico: El Colegio del Mxico, 2009. De Bender, ver A nation among nations: Americas place in world history. New York: Hill and Wang, 2006. Rethinking American history in a global age. California: University of California Press, 2002.
18 C. A. Bayly, da University of Cambridge; Sven Beckert, da Harvard University; Matthew Connelly,
da Columbia University; Isabel Hofmeyr, professora de Literatura Africana na University of the Witwatersrand, em Johanesburgo, frica do Sul; Wendy Kozol, do Oberlin College; e Patricia Seed, da University of California-Irvine
16
Transnacional. Lembrando que o tema no exatamente uma novidade 19, a
conversa tinha como propsito refletir sobre as amplas possibilidades e as
especificidades de abordagem relativa ao estudo das transnacionalidades.
Discutindo as razes da opo pelo termo transnacional, e a ideia do
transnacional significar a superao dos limites nacionais, ou seja, ir alm das
fronteiras, Chris Bayly argumenta que a definio no to evidente quanto parece:
(...) muito importante ressaltar que as naes embutidas no termo transnacional no eram elementos originais a serem transcendidos pelas foras que estamos discutindo. Ao contrrio, elas foram os produtos muitas vezes produtos tardios desses verdadeiros processos. No devemos cair novamente numa wider world history constituda simplesmente por naes e nacionalismo e as foras que as transcendem 20
Deste modo, a histria transnacional no simplesmente aquela que
transcende as naes, ao contrrio, h um jogo recproco entre as naes e essas
foras que as transcendem. Mas o que a distinguiria de outras tantas abordagens
que se propem superar as perspectivas nacionais ou nacionalistas? A conversa
toma como ponto de partida a discusso acerca das delimitaes do que seria a
histria transnacional, uma vez que ela se insere num conjunto de abordagens que
envolvem a histria comparada (comparative history), a histria internacional
(international history), a histria mundial (world history) e a histria global (global
history), todas elas caracterizadas pelo desejo de romper com o estado-nao
como categoria de anlise e com o etnocentrismo que teria caracterizado a escrita
da histria no Ocidente. Como observa Sven Beckert:
(...) a histria global, mundial, e transnacional tem muito em comum. Elas so todas engajadas em um projeto de reconstruo de aspectos do passado humano que transcendem qualquer estado-nao, imprio, ou outro territrio poltico definido. Isso define estas abordagens separadas da maioria da histria que foi escrita na maior parte do mundo durante os ltimos cem anos. Porque a histria como uma disciplina acadmica cresceu ao lado do estado-nao e se
19
A questo transnacional vem sendo amplamente discutida nas publicaes acadmicas norte-americanas. A prpria American Historical Review publicou o frum American Exceptionalism in an Age of International History, vol. 96, n. 4, Oct. 1991, e o frum Borders and Borderlands, vol. 104, n. 3, June 1999. E o Journal of American History publicou, entre outros, Toward the International of American History: A Round Table, vol. 79, n. 2, September 1992, e a edio especial The Nation and Beyond, vol. 86, n. 3, December 1999.
20 On Transnational History. American Historical Review, dezembro de 2006, p. 1449.
17
tornou um dos seus principais pilares ideolgicos, permitindo historiadores atuando em fortes estados-nao a concentrar-se excessivamente em suas prprias histrias nacionais isoladas do resto do mundo. Histrias Global, mundial, transnacional e internacional so todas a seu prprio modo crticas de tais limites. 21
A partir dessa constatao, os autores passam a discutir as delimitaes
conceituais de cada uma dessas categorias, na tentativa de definir o que
diferenciaria a perspectiva transnacional de todas essas outras abordagens. Seigel
aponta para um elemento crucial na definio do transnacional:
Talvez o ncleo da histria transnacional seja o desafio que ela coloca para a preeminncia da hermenutica das naes. Sem perder de vista as poderosas foras que as naes se tornaram, ela as entende como frgeis, construdas, imaginadas. A histria transnacional trata a nao como um entre uma srie de fenmenos sociais a serem estudados, ao invs de trat-la como o quadro de estudo em si. 22
Seigel considera, assim, o transnacional como uma perspectiva, um modo de
ver que, ao adotar um outro olhar, desloca as anlises da tradicional abordagem que
toma a nao como quadro de estudos. Quem tambm aponta nesta direo Sven
Beckert:
(...) eu percebo a histria transnacional em grande parte como um modo de ver aberto a vrias preferncias metodolgicas. E a vrias questes diferentes. Leva em seu ponto de partida a interconexo da histria humana como um todo, e embora reconhecendo a extraordinria importncia de estados, imprios, e assim por diante, ela presta ateno nas redes, processos, crenas e instituies que transcendem estes espaos polticos definidos. 23
Assim, prope que as histrias transnacionais sejam entendidas no como
uma proposta terica ou um mtodo, mas sim como um modo de ver, que poderia
ser utilizado a partir de diversas questes e posturas metodolgicas diferentes.
Quem tambm salienta este ponto Wendy Kosol:
21
On Transnational History. American Historical Review, dezembro de 2006, pp. 1445-6.
22 Micol SEIGEL. Beyond Compare: Comparative Method after the Transnational Turn. Radical
History Review, n. 91, winter 2005, p. 63.
23 On Transnational History. American Historical Review, dezembro de 2006, p. 1459.
18
(...) a histria transnacional no est vinculada a nenhuma abordagem metodolgica em particular. A histria poltica pode ser transnacional, assim como a histria cultural, a histria intelectual, a histria empresarial, entre outras. Este um dos pontos fortes da histria transnacional: abraar esta diversidade metodolgica. Deste modo no diferente da, digamos, histria local. As abordagens particulares empregadas so provavelmente melhor determinadas pelo tipo de perguntas que gostaramos de responder. Idealmente, a histria transnacional uma maneira de ver. Grande parte da escrita da histria tem sido limitada pela sua explcita ou implcita viso nacionalista. A histria transnacional centra-se em descobrir conexes entre unidades polticas particulares. 24
Mas ento quais seriam as peculiaridades deste outro olhar? Para C. Bayly,
o termo transnacional traria um senso de movimentao e interpenetrao, e
segundo Patricia Seed a mais importante contribuio [das histrias transnacionais]
a capacidade de seguir pessoas (onde quer que elas se movam) 25.
Deste modo, um dos elementos distintivos das abordagens transnacionais
seria a nfase na questo dos movimentos, ou, em outros termos, da circulao.
Neste sentido, a proposta se aproxima muito do que prope Subrahmanyam e
Gruzinski para as histrias conectadas. Essa ideia reforada por Isabel Hofmeyr,
que agrega questo dos movimentos e da circulao a ideia de fluxos:
A reivindicao chave de qualquer abordagem transnacional sua preocupao central com os movimentos, fluxos, e circulao, no simplesmente como tema ou motivo, mas como um conjunto analtico de mtodos que define a tentativa em si. Posto de outra maneira, a preocupao com o transnacionalismo dirige a ateno ao espao dos fluxos. 26
Esses elementos marcam, assim, uma importante diferenciao das
perspectivas transnacionais em relao s demais abordagens globais: mais do
que pretender ir alm das fronteiras, ou de propor que os processos histricos
ultrapassam esses limites, o que a histria transnacional prope seguir esses
fluxos, esses movimentos. Como lembra Chris Bayly, a histria transnacional tem a
vantagem de incluir trabalhos que levantam questes crticas sobre os fluxos
24
On Transnational History. American Historical Review, dezembro de 2006, p. 1454.
25 Ibid., p. 1443.
26 Ibid., p. 1444.
19
transnacionais, mas no tem a pretenso de abraar o mundo todo 27. E Como
aponta Hofmeyr:
A reivindicao dos mtodos transnacionais no simplesmente que os processos histricos so feitos em lugares diferentes, mas que eles so construdos no movimento entre lugares, espaos e regies28
Sven Beckert, tambm buscando delimitar as abordagens transnacionais, d
nfase justamente ideia das conexes, se aproximando mais uma vez do que
propem as histrias conectadas de Gruzinski e Subrahmanyam. A seu ver, a
histria transnacional seria:
(...) uma abordagem da histria que se concentra em uma srie de conexes que transcendem territrios politicamente delimitados e conecta vrias partes do mundo a outras. Redes, instituies, ideias, e processos constituem essas conexes, e ainda que governantes, imprios e estados sejam importantes na sua estruturao, eles transcendem territrios politicamente delimitados. 29
Deste modo, as propostas de abordagem histrica denominadas conectada
ou transnacional, apresentam como referncia comum a nfase nos movimentos,
nas circulaes, nos fluxos e conexes que transcendem os limites impostos pelas
fronteiras nacionais. E, ao destacar esses elementos, pe em destaque a figura dos
mediadores 30, aqueles que, ao circularem, servem como ponte para que tambm
obras e ideias circulem.
27
On Transnational History. American Historical Review, dezembro de 2006, p. 1448.
28 Ibid., p. 1444.
29 Ibid., p. 1446.
30 Para uma introduo sobre a questo dos mediadores culturais, ver Gabriela Pellegrino SOARES.
Histria das Ideias e mediaes culturais: breves apontamentos. In: Mary Anne JUNQUEIRA; Stella Maris Scatena FRANCO (orgs.). Cadernos de Seminrios de Pesquisa. So Paulo: Departamento de Histria, FFLCH-USP / Humanitas, 2011.
20
Conexes transnacionais e a cano engajada
O desafio proposto analisar, a partir destas reflexes colocadas pelas
histrias conectadas e histrias transnacionais, de que forma os artistas ligados
cano engajada, nas dcadas de 1960 e 1970, estabeleceram uma srie de
conexes transnacionais que resultaram na constituio de uma complexa rede de
dilogos e intercmbios que aproximaram as experincias artsticas que vinham se
desenvolvendo simultaneamente em diferentes pases do continente.
Longe de pretender uma histria da cano engajada no continente, ou de
ambicionar analisar o significado que ela assumiu nos diferentes pases, o que
proponho entender como foram se articulando, desde incios da dcada de 1960
at fins dos anos 1970, ainda que de maneira fragmentaria e descontnua, propostas
de unio da Amrica Latina em torno da cano, projetos esses que visavam
construir pontes que permitissem a aproximao de artistas de diferentes pases no
sentido do fortalecimento dos movimentos artsticos e de suas propostas de
renovao esttica, mas tambm que objetivavam fortalecer as lutas polticas. E, a
partir da anlise destes projetos, outro objetivo perseguir como ele foi tomando
forma e se materializando por meio da efetiva circulao dos artistas e de suas
obras pelos diferentes pases, construindo uma rede de contatos que foi se
estabelecendo em espaos diversos como os festivais de cano, as viagens e
turns dos artistas, a unio de artistas em torno de projetos comuns, a circulao de
discos e canes.
A questo fundamental que se coloca compreender qual o lugar da Amrica
Latina nessa produo engajada das dcadas de 1960/70, tanto como identidade
que se coloca nos projetos artsticos e nas prprias obras quanto como espao de
circulao e de articulao de uma rede de contatos e conexes. Isso porque neste
perodo abordado a Amrica Latina adquiriu enorme centralidade nos projetos
polticos e tambm no universo cultural e artstico, por conta do contexto poltico
fortemente polarizado da Guerra Fria e do papel estratgico que a regio
representava nessa disputa, o que fazia do continente rea de interesse
fundamental para ambos os blocos do conflito. Como mostra Claudia Gilman, autora
de um estudo sobre os escritores e a literatura latino-americana deste perodo das
21
dcadas de 1960/70 cuja perspectiva e abordagem se aproximam do que proponho
aqui para pensar a cano engajada:
A deciso de considerar como objeto de reflexo a Amrica Latina me parece conceitual e metodologicamente relevante. A ampliao dos marcos nacionais, a eliminao dessas fronteiras abstratas para a anlise cultural, imprescindvel. Se bem certo que a entidade Amrica Latina , em termos de homogeneidade cultural, mais um horizonte problemtico que um dado da realidade, no menos certo que no perodo a estudar se configura (...) uma ideia (ou a necessidade de uma ideia) de Amrica Latina, em cuja conformao colaboraram tambm certas conjunturas de ordem histrico poltico, matrizes ideolgicas e o peso de certas instituies, como partidos, governos, instituies culturais e at mercantis. 31
Neste sentido, um marco fundamental neste processo de fortalecimento da
identidade latino-americana na dcada de 1960 e 1970 sem dvida a Revoluo
Cubana, em 1959. Com a Revoluo Cubana, principalmente a partir do momento
em que esta se declarou oficialmente socialista, em 1961, a Amrica Latina foi
alada a uma condio de extremo destaque na complexa disputa por espao e
poder das duas potncias mundiais em conflito. A vitria dos guerrilheiros na
pequena ilha do Caribe imediatamente provocou alarme generalizado nos Estados
Unidos, que assistia ao surgimento de uma sociedade socialista naquilo que
considerava seu prprio quintal. Mas Cuba tambm chamou a ateno do bloco
sovitico, que vislumbrou potencialidades revolucionrias naquela parte do globo. E,
nos contextos nacionais, a Revoluo Cubana significou um enorme fortalecimento
das esquerdas, que agora podiam falar da possibilidade real de um processo
revolucionrio na Amrica Latina, e tambm uma reao intensa da direita, que
redobrava sua ateno e acirrava seu anticomunismo.
Deste modo, uma das marcas mais fundamentais deste perodo, marco
definidor e distintivo, a centralidade que ganha a ideia de revoluo. Como
salienta Claudia Gilman:
A pedra de toque desta histria, a palavra, foi sem nenhuma dvida revoluo, a realidade da revoluo, o conceito de revoluo e os atributos da revoluo como garantia necessria de legitimidade dos
31
Claudia GILMAN. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionario en Amrica Latina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012, pp. 26-27.
22
escritores, dos crticos, das obras, das ideias e dos comportamentos.32
A revoluo passa a ser o grande tema da poltica e tambm da
intelectualidade. A esquerda dos vrios pases fortalece a crena nas possibilidades
de mudanas radicais nas formas de organizao poltica, e a direita passa a falar
em contra-revoluo e a conceber uma srie de estratgias para combater a
possibilidade de que se espalhasse a onda que fora gestada em Cuba.
Esse complexo universo de conexes transnacionais que pretendo abordar
nesta pesquisa se esboa, articula, ganha fora e depois entra em declnio dentro do
espao de duas dcadas, num arco que se insere no que podemos denominar
genericamente de os anos 1960/70. Segundo Claudia Gilman, a existncia desse
solo comum, de elementos compartilhados e da intensa circulao de ideias nesse
perodo definiriam uma poca, um perodo historicamente determinado, com
caractersticas prprias, com elementos que o distinguiriam do que o precedeu e
tambm do que veio depois, e fortemente marcado por um desejo de transformao,
desejo esse que impregnou os diferentes setores da sociedade.
Marcos como a Revoluo Cubana, a descolonizao dos pases africanos, a
guerra do Vietnam, os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos, faziam
crer que o mundo estava inevitavelmente se transformando, que mudanas radicais
nas estruturas polticas, econmicas, sociais e culturais eram no s possveis, mas
iminentes, e que intelectuais e artistas teriam um papel fundamental neste processo.
No caso latino-americano, o arco temporal que vai do triunfo da Revoluo Cubana
ao fechamento causado pelas perseguies, represso, censura e violncia
implantadas pelos regimes autoritrios constitui uma poca muito fervilhante
intelectualmente, quando se acreditou efetivamente na possibilidade de mudanas e
na existncia de um papel para cada um dos indivduos como artfices desta
mudana.
Neste contexto, muitos compositores e intrpretes de cano popular
acreditaram que por meio de suas canes, que tinham potencial de chegar a
pblicos amplos, poderiam ter um papel de destaque na propagao de ideais
revolucionrios, atuando como participantes fundamentais no processo de
32
Claudia GILMAN. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionario en Amrica Latina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012, p. 26.
23
conscientizao das massas. A poltica transbordava para todas as esferas da vida,
e a cano popular apareceu como uma possibilidade efetiva de interveno poltica
e de participao no processo de transformao social, j que seu carter
polissmico permitiria que ela se adequasse transmisso de ideologias. Segundo
Arnaldo Contier:
Os sentidos enigmticos e polissmicos dos signos musicais favorecem os mais diversos tipos de escuta ou interpretaes verbalizadas, ou no de um pblico ou de intelectuais envolvidos pelos valores culturais e mentais, altamente matizados e aceitos por uma comunidade ou sociedade. A partir dessas concepes, a execuo de uma mesma pea musical pode provocar mltiplas escutas (conflitantes, ou no) 33
justamente esse universo de canes produzidas por artistas que
acreditaram ter um lugar nas transformaes pelas quais o mundo passava e que
fizeram de suas obras instrumentos de interveno social que pretendo abordar
nesta pesquisa. No sentido de estabelecer limites e recortes, dividimos a pesquisa
em duas etapas fundamentais. Um primeiro objetivo pensar como desde a dcada
de 1960 os artistas ligados cano engajada conceberam um projeto de integrao
da Amrica Latina a partir da cano, projeto que foi se esboando, de maneira
assistemtica e fragmentaria, a partir do posicionamento dos artistas, que se
expressavam por meios diversos como a imprensa ou atravs da divulgao de
manifestos, e que se cristalizou fundamentalmente a partir das prprias canes,
tanto no campo estritamente musical, a partir do cruzamento de referncias sonoras
de distintas partes do continente, no sentido da construo de um repertrio comum
capaz de expressar uma sonoridade latino-americana, quanto nas letras, que
trataram de, a partir de caminhos variados, propor a unidade continental e reafirmar
a identidade latino-americana.
Um segundo objetivo perseguir as tentativas de materializao desse
projeto, a partir da intensa conexo dos artistas e de suas obras, ao longo das
dcadas de 1960/70. Optei por estabelecer trs eixos fundamentais de anlise na
tentativa de organizar o catico e complexo emaranhado que constitui essas redes.
Um primeiro eixo seriam as conexes que pem em dilogo o universo da nueva
33
Arnaldo D. CONTIER. Msica no Brasil: Histria e Interdisciplinaridade algumas interpretaes (1926-80). In: Histria em Debate: Problemas, Temas e Perspectivas. Anais do XVI Simpsio da ANPUH. Rio de Janeiro: CNPQ, 1991, p. 151.
24
cancin que comea a se estabelecer no Cone Sul, fundamentalmente em
Argentina, Chile e Uruguai, na primeira metade de dcada de 1960. Um segundo
eixo dessas conexes se estabelece na relao entre esse universo da nueva
cancin e as experincias de cano engajada desenvolvidas na revolucionaria ilha
de Cuba. Por fim, um ltimo eixo o que busca perseguir as tentativas de
aproximao do Brasil com esses dois universos sonoros.
Para atingir esses objetivos, tomei como fonte bsica a prpria discografia
dos mais destacados artistas de cada pas. Considerando os discos como meio de
expresso de ideias, a proposta analisar o papel que tiveram na formao de uma
ampla e complexa rede transnacional. Atravs deles foi possvel a divulgao e
circulao das obras para alm das fronteiras nacionais, alm de terem sido tambm
espaos privilegiados de encontro de artistas, ao permitirem a realizao de projetos
coletivos e o encontro de msicos de diferentes nacionalidades.
Os discos so, assim, a fonte e objeto fundamental dessa pesquisa 34. Mas
tambm fundamental que se atente para outros meios que jogaram papel crucial na
articulao e divulgao desses discursos de construo de identidades continentais
compartilhadas, como os textos e manifestos escritos por artistas e intelectuais
ligados aos movimentos de cano engajada, ou ainda para espaos que permitiram
a promoo de encontros, intercmbios, dilogos, tais como os festivais de cano e
as turns e viagens internacionais dos artistas. Todos esses espaos completam o
complexo quadro de conexes transnacionais, e para poder persegui-los a fonte
fundamental a que recorri foi a imprensa, que se ocupou largamente da produo
musical engajada. A partir das pesquisas realizadas em So Paulo, que ganharam
amplitude com a realizao de viagens para Santiago, Buenos Aires e Montevidu,
foi possvel consultar o material de alguns veculos bastante representativos de cada
pas analisado: Folklore (Argentina); El Musiquero e Onda (Chile); Marcha (Uruguai);
Casa de las Amricas (Cuba); Revista Civilizao Brasileira e Veja (Brasil). A partir
desse material, foi possvel recolher informaes preciosas a respeito dos artistas,
depoimentos e entrevistas, reconstituir turns e viagens internacionais, acessar a
cobertura de festivais e encontros musicais, etc.
34
Diante da amplitude do material coletado e das dificuldades de acesso e levantamento de informaes discogrficas, trabalhei somente os LPs (long plays) dos principais artistas ligados aos movimentos de cano engajada de cada pas, deixando de lado outras mdias como os discos singles e compactos.
25
A partir deste amplo levantamento de fontes tanto discogrficas quanto
impressas, foi possvel estabelecer uma periodizao para abordar este processo de
construo de projetos de unidade latino-americana pela cano e de conexes
transnacionais ao longo das dcadas de 1960 e 1970, que acabou por definir a
diviso de captulos que organiza o texto.
O primeiro captulo tem como marco inicial o ano de 1963, em razo de dois
fatos que podem ser considerados como os primeiros passos dos movimentos de
nueva cancin no continente: o lanamento do movimento do nuevo cancionero
argentino, a partir da divulgao do Manifiesto del Nuevo Cancionero, e a edio do
primeiro LP do compositor e intrprete uruguaio Daniel Viglietti. Neste momento
tinha incio a constituio de movimentos de renovao do cancioneiro folclrico que
encontraro amplo desenvolvimento ao longo dos anos de 1965 e 1966, com a
incorporao de vrios artistas aos projetos defendidos e o lanamento de seus
primeiros discos; foi tambm neste perodo que comeou a se estruturar no Chile um
movimento de renovao da cano folclrica, que teve como marco inicial a
fundao da Pea de los Parra.
Se o perodo 1963-1966 pode ser considerado o momento de formao e
consolidao dos movimentos de nueva cancin no Cone Sul, 1967 um ano de
ruptura fundamental, por conta da realizao em Cuba do I Encuentro de la Cancin
Protesta, evento que reuniu artistas de diversas partes da Amrica Latina e do
mundo para discutir o que definiria essa nova onda de canes engajadas que
tomava o continente, e que, ao promover o encontro das diversas experincias que
vinham se desenvolvendo em diferentes pases e permitir dilogos entre artistas de
vrias nacionalidades, acabou por ser um marco fundamental no estabelecimento de
redes de conexo dos artistas engajados e na incorporao da defesa da identidade
latino-americana como tema e bandeira. A importncia deste encontro pode ser
medida pelo impacto que teve na obra dos principais compositores e intrpretes da
nueva cancin de cada um dos pases nestes anos finais da dcada de 1960,
marcando uma nova fase caracterizada, principalmente, pelo destaque de dois
novos temas, que passam a assumir centralidade, concorrendo com a crtica social
que dera o tom das canes at ento: a revoluo e o anti-imperialismo. Este
perodo, entre a realizao do I Encuentro de la Cancin Protesta, em 1967, e 1969,
momento de intensificao e redimensionamento da presena do discurso pela
unidade latino-americana nas canes, ser abordado no segundo captulo.
26
A entrada da dcada de 1970, por fim, marca o incio do terceiro momento
destas conexes transnacionais na cano engajada, que ser abordado no
terceiro captulo, perodo de redimensionamento das experincias da nueva cancin
na Amrica Latina marcado principalmente pela radicalizao dos discursos
polticos. Uma primeira etapa fundamental dessa nova fase o perodo entre 1970 e
1973, em que a experincia da Unidade Popular no Chile marca o incio de uma
nova relao dos msicos engajados com o poder, momento de intensa militncia
dos artistas chilenos na campanha pela eleio de Salvador Allende e, depois, de
participao ativa no governo da Unidade Popular. Os trs anos do governo Allende
foram ainda marcados pelo forte estreitamento das relaes dos msicos cubanos
com os artistas ligados nueva cancin no Cone Sul, conexo marcada tanto pelas
viagens de cubanos ao Chile e de chilenos a Cuba quanto pela realizao de discos
que envolveram artistas cubanos e sul-americanos. O ano de 1973 marca nova
ruptura, corte efetivo na trajetria da cano engajada na Amrica do Sul, que foi
violentamente atingida pelos golpes militares no Chile e no Uruguai. Por fim, no
perodo entre 1973 e 1976, se por um lado os msicos chilenos e uruguaios
comeam a sentir os impactos da violncia, censura e represso, por outro se
verifica uma significativa atuao dos msicos argentinos, que vivem um hiato entre
duas experincias autoritrias, e as primeiras manifestaes discogrficas dos
msicos ligados ao Grupo de Experimentao Sonora em Cuba, que trazem novas
propostas e abordagens para a cano engajada latino-americana, apontando novos
caminhos. 1976 o ano final dessa histria, quando o golpe militar na argentina
fecha definitivamente o cerco de violncia e represso sobre os artistas da nueva
cancin, e inicia-se uma nova etapa da cano engajada marcada pelo exlio, que
coloca novas e complexas questes que extrapolam os limites desta pesquisa.
Agora, o percorrer de toda esta longa trajetria dos movimentos de cano
engajada na Amrica Latina levanta inevitavelmente uma questo: qual o lugar do
Brasil nesta histria? Apesar de todas as barreiras e limites que teimam em negar o
pertencimento do Brasil a esse universo latino-americano, houve algum tipo de
insero do Brasil nestas complexas redes que puseram em dilogo as experincias
de cano engajada na Amrica Latina? Estas questes sero enfrentadas no
quarto e ltimo captulo, que pretende perseguir justamente as tentativas do Brasil
sim, elas existiram de dialogar com os movimentos de cano engajada que
27
vinham se desenvolvendo nos pases vizinhos e de se inserir nessas redes de
contatos e dilogos to ativas ao longo das dcadas de 1960 e 1970.
Percorrendo esse longo percurso de encontros e desencontros, de dilogos e
silncios, de muros e pontes que marcaram as tentativas de tantos compositores e
intrpretes ao longo das dcadas de 1960 e 1970 de usar a cano como
instrumento de crtica social, de interveno poltica, de expresso de ideias, de
construo de identidades, espero contribuir, em primeiro lugar, para a ainda
nascente histria da cano popular na Amrica Latina, experimentando caminhos
que permitam uma compreenso mais ampla dessa histria. Mas espero,
principalmente, reafirmar a necessidade de se construir pontes que conectem e
permitam o dilogo entre os vrios pases que conformam essa nossa Amrica
Latina, acreditando, como afirmam duas das tantas canes que compem esse
universo sonoro que estou enfrentando, que los muros son slo viento que el viento
se llevar 35 e, nesse sentido, todas as contribuies para sua superao so
importantes, uma vez que una gota con ser poco con otra se hace aguacero 36.
35
Versos de Coplera del viento, dos compositores argentinos scar Matus e Armando Tejada Gmez.
36 Versos de Milonga de andar lejos, do compositor uruguaio Daniel Viglietti.
28
1. CAPTULO 1 SI SOMOS AMERICANOS, NO MIRAREMOS FRONTERAS. A
INVENO DA NUEVA CANCIN E O PROJETO DE UNIDADE LATINO-
AMERICANA: FOLCLORE, INOVAO E COMPROMISSO POLTICO (1963-
1966)
No incio da dcada de 1960, a crena nas possibilidades de mudana e,
principalmente, a discusso sobre a revoluo, que circulava de maneira intensa
por toda a Amrica Latina e estava localizada inicialmente no campo da poltica,
acabou transbordando para outros campos: a cultura, e especialmente as artes, no
ficaram imunes e se deu uma impressionante articulao entre arte e poltica,
gerando uma ampla produo de arte engajada.
No campo da cano popular, foi nesse momento que propostas de
atualizao e renovao do repertrio folclrico a partir de criaes que, ainda que
mantivessem como base fundamental os ritmos tidos como tradicionais, tratavam
de renov-los por meio do cruzamento com referncias musicais modernas, se
intensificaram, incorporando um novo aspecto: a abordagem de temas sociais, a
denncia das dificuldades dos trabalhadores, dos homens simples do interior,
questes que em pouco tempo ganharam centralidade e abriram caminho para
produes cada vez mais politizadas.
Neste captulo, o objetivo acompanhar como, ao longo da primeira metade
da dcada de 1960, mais especificamente entre os anos de 1963 e 1966, se
estruturou no Cone Sul (Argentina, Chile e Uruguai) um movimento de cano
engajada, que acabou se celebrizando sob o rtulo de nueva cancin latino-
americana, atentando para como sua produo teve como caracterstica marcante
um olhar para a Amrica Latina e a tentativa de construo de um projeto de
integrao continental. Para pensar essa questo, dividimos o processo em dois
perodos. Em primeiro lugar, o ano de 1963, marco inicial das primeiras tentativas de
articulao de movimentos de nueva cancin na Argentina e no Uruguai. Um
segundo momento compreende os anos de 1965 e 1966, quando saem os primeiros
discos dos artistas argentinos e uruguaios ligados nueva cancin e quando esses
projetos que vinham circulando ganham espao tambm na produo de cano
popular no Chile.
29
1.1. 1963 e o incio da nueva cancin na Amrica Latina
La copla no tiene dueo
Patrones no ms mandar
La guitarra americana
peleando aprendi a cantar
(Cancin para mi Amrica, Daniel Viglietti)
Ao longo das dcadas de 1940 e 1950, Argentina, Chile e Uruguai viveram
processos de intenso crescimento e fortalecimento da pesquisa e divulgao do
folclore, a ponto de se falar em um boom folclrico na virada da dcada de 1950
para a de 1960. Foi esse desenvolvimento que criou as bases para que nos anos
1960 se vivesse um novo perodo da projeo folclrica marcado pela incorporao
da crtica social, base do que, ao longo das dcadas de 1960 e 1970, se consagrou
sob o rtulo de nueva cancin latino-americana.
O ano de 1963 central no processo de construo desses movimentos de
nueva cancin no Cone Sul, principalmente por conta de dois marcos fundamentais:
a) o lanamento oficial do movimento do nuevo cancionero argentino, a partir da
divulgao do Manifiesto del Nuevo Cancionero; b) a edio do primeiro disco do
cantautor uruguaio Daniel Viglietti, intitulado Canciones folklricas y seis impresiones
para canto y guitarra.
1.1.1. As origens do nuevo cancionero argentino
Com a derrubada do governo de Juan Domingos Pern, em 1955, abriu-se na
Argentina um longo perodo de instabilidade poltica. Aps um governo provisrio
liderado pelos militares, em 1958 se realizaram eleies, das quais saiu vitorioso
Arturo Frondizi, da Unin Cvica Radical Intransigente (UCRI), que apresentava um
discurso moderno e se tornou um candidato atrativo tanto para as foras
30
progressistas quanto para setores da esquerda. No entanto, o novo governo em
pouco tempo perdeu o apoio dos setores da esquerda que haviam aderido a sua
campanha, decepcionados com sua aproximao crescente de um liberalismo
desenvolvimentista, alm de enfrentar forte resistncia e presso por parte dos
militares, que viam com desconfiana a aproximao do governo com os peronistas
e condenavam sua postura diplomtica ambgua, que buscava uma aproximao
dos EUA, mas ao mesmo tempo se negava a condenar a experincia cubana.
Esse cenrio culminou, em 1962, na deposio de Frondizi pelos militares,
que conduziram o governo at a realizao, em julho de 1963, de novas eleies,
das quais saiu vitorioso Arturo Illia, candidato da Unin Cvica Radical del Pueblo
(UCRP), diviso da UCR contrria a Frondizi. Consolidava-se, assim, a segunda
experincia constitucional depois da derrocada do peronismo, governo que se
estendeu at junho de 1966, quando ocorreu novo golpe militar.
Foi, portanto, no instvel perodo da interveno militar que separou as
experincias constitucionais dos governos de Arturo Frondizi e Arturo Illia, que se
deu uma das primeiras tentativas de articulao de artistas argentinos em torno de
um projeto que propunha novas diretrizes para a cano popular, o movimento do
nuevo cancionero argentino, que se formou por iniciativa de um grupo de intelectuais
na cidade argentina de Mendoza, que nesse momento vivia uma grande
efervescncia cultural 37. O fato de o movimento ter se articulado fora de Buenos
Aires significativo, pois uma das propostas do grupo era questionar a existncia de
um eixo articulador da cultura nacional centralizado na capital do pas, enfatizando a
necessidade de incorporar ao nacional a produo cultural das demais provncias.
O movimento foi lanado oficialmente com um concerto realizado em 11 de
fevereiro de 1963 no Crculo de Periodistas de Mendoza, que contou com a
participao dos msicos Tito Francia, Juan Carlos Sedero e scar Matus, os
poetas Armando Tejada Gmez e Pedro Horacio Tusoli, a cantora Mercedes Sosa e
o bailarino Victor Nieto. Nesse mesmo dia foi publicada no dirio mendocino Los
37
A respeito da vida cultural em Mendoza e de sua efervescncia particular neste incio dos anos 1960, ver Mara Ins GARCA. Tito Francia y la msica en Mendoza, de la radio al Nuevo Cancionero. Buenos Aires: Gourmet Musical Ediciones, 2009, especialmente o 1. Captulo, intitulado Sociedad, cultura y msica en Mendoza.
31
Andes uma entrevista com os participantes do evento, com o objetivo de divulgar o
acontecimento. 38
Para alm da apresentao de nmeros artsticos, a noite foi marcada pela
primeira leitura pblica do Manifiesto del Nuevo Cancionero, redigido pelo escritor,
poeta e radialista mendocino Armando Tejada Gmez e assinado por uma srie de
artistas e intelectuais 39. O documento congregava os princpios defendidos pelo
movimento a partir da discusso sobre o panorama da msica popular argentina de
ento.
O Manifiesto um documento importante para detectar as bases
fundamentais sobre as quais se assentou o movimento do nuevo cancionero
argentino, mas as ideias ali apresentadas tambm influenciaram fortemente os
movimentos surgidos posteriormente em outros pases da Amrica Latina. Como
observa a historiadora Tnia da Costa Garcia, embora o documento se atenha ao
caso da Argentina, possvel tomar o Manifesto como referncia para a
compreenso do surgimento e desenvolvimento da Nova Cano em outros pases
da Amrica Latina, como o Chile e o Uruguai. 40.
O Manifiesto anuncia como proposta fundamental do movimento a busca de
uma msica nacional de contedo popular. A construo dessa msica nacional
pressupunha uma renovao no mbito da cano popular argentina, o que conferia
centralidade necessidade de superao de elementos que eram entendidos como
impeditivos da evoluo do cancioneiro popular. Assim, trs pontos fundamentais de
superao estavam na base das ideias apresentadas: a) a superao da dicotomia
entre a msica da cidade, principalmente o tango de Buenos Aires, e a msica
provinciana de raiz folclrica, falso dilema que ocultaria a verdadeira oposio
existente entre a produo popular nacional e as formas musicais estrangeiras; b) a
superao dos regionalismos, atravs da incorporao de diversos gneros e
manifestaes de diferentes regies do pas; c) a superao do cancioneiro
38
Rodolfo BRACELI. Mercedes Sosa, la negra. Buenos Aires: Sudamericana, 2010, p. 100. O evento de inaugurao do Nuevo Cancionero tambm descrito em Mara Ins GARCA. Tito Francia y la msica en Mendoza, de la radio al Nuevo Cancionero. Buenos Aires: Gourmet Musical Ediciones, 2009, p. 75.
39 Assinaram o Manifesto os seguintes artistas: Tito Francia, scar Matus, Armando Tejada Gmez,
Mercedes Sosa, Vctor Gabriel Nieto, Martin Ochoa, David Caballero, Horacio Tusoli, Perla Barta, Chango Leal, Graciela Lucero, Clide Villegas, Emilio Crosetti e Eduardo Aragn.
40 Tnia da Costa GARCIA. Nova Cano: manifesto e manifestaes latino-americanas no cenrio
poltico mundial dos anos 60. In: Actas del VI Congreso de Msica Popular IASPM/AL. Buenos Aires, 2005.
32
tradicionalista, do folclore que se prendia essncia e rejeitava qualquer tentativa
de inovao.
O tango, gnero fundamental da cano portenha, segundo a leitura proposta
no Manifiesto, teria nascido da interao genuna entre os artistas populares e o
povo destinatrio das canes, mas acabou sendo deturpado pelo mercado, se
tornando divisa para exportao turstica. Essa msica artificial acabou imposta
como a cano popular argentina por excelncia, devido proeminncia poltica,
social e econmica de Buenos Aires sobre o resto do pas, processo esse que teve
como consequncia principal a excluso do cancioneiro provinciano na construo
da identidade sonora nacional. Assim, um dos objetivos fundamentais para se
alcanar a renovao da cano popular seria a superao dessa dicotomia. Carlos
Gardel apontado como um grande pioneiro, como um dos primeiros autores
nacionais a buscar romper essas barreiras entre gneros, interpretando tanto os
gneros nativos quanto o gnero tpico citadino.
Essa diviso artificial entre tango e folclore encobriria outra, a real oposio
no mbito do cancioneiro popular, entre o repertrio nacional e os hbridos
estrangeiros. Os artistas nacionais, ao invs de disputarem entre si, enfraquecendo
a cano nacional como um todo, deveriam na verdade se unir em prol da criao
de um cancioneiro nacional forte o suficiente para combater a invaso das formas
decadentes vindas de fora.
Outro elemento que deveria ser superado nesse processo de renovao
proposto no documento era o regionalismo, que at ento marcava profundamente a
produo musical folclrica argentina. Segundo o Manifiesto:
(...) a questo principal que agora est colocada com mais fora do que nunca; a busca de uma msica nacional de raiz popular, que expresse o pas em sua totalidade humana e regional. No por via de um gnero nico, que seria absurdo, mas pela concorrncia de suas variadas manifestaes, quanto mais formas de expresso tiver uma arte, mais rica ser a sensibilidade do povo a que se dirige. 41
A proposta seria a criao de uma msica que expressasse ao mesmo tempo
o popular e o nacional, agregando a variedade de gneros, ritmos, formas que a
cano encontrava em cada regio. Se antes prevalecia uma srie de divises no
41
Manifiesto del Nuevo Cancionero Argentino.
33
interior da cano popular, que impediam que os artistas compusessem e
interpretassem diferentes gneros, o movimento rechaa a todo regionalismo
cerrado e busca expressar o pas todo na ampla gama de suas formas musicais.
Essa proposta explicita-se na mxima apresentada no Manifiesto: Ha pas para todo
o cancioneiro. S falta integrar um cancioneiro para todo o pas.
Um ltimo elemento de superao explicitado no texto se relaciona s vises
apontadas como mais tradicionalistas a respeito do folclore, que recusariam
qualquer tipo de inovao e criao no campo da produo de raiz folclrica,
defendendo a coleta e preservao do repertrio annimo nativo, tido como original
e autntico. O nuevo cancionero se apresentava como uma ciso no mbito dos
estudos e da produo folclrica, como aponta Mara Ins Garca:
Se expressam assim duas posies opostas: por um lado, a de tentar construir uma identidade atravs de um culto de prticas do passado as que se atribuem valores de verdade, de autenticidade e de identidade. Por outro, o intento de renovao destas velhas prticas, adaptando as razes a um mundo moderno e cosmopolita e constituindo-se em expresso de novos modos de pensamento. 42
H no Manifiesto uma constatao de que se vivia ento um ressurgimento
da msica popular nativa, que seria decorrente da intensa migrao do campo para
a cidade, causada pelo processo de modernizao industrial que solicitava,
continuamente, mo de obra. Os trabalhadores do campo que chegavam cidade
acabaram sendo responsveis pela criao de um mercado que exigiria cada dia
mais msica nacional nativa.
O ressurgimento da msica popular nativa era interpretado como um
momento de tomada de conscincia por parte do povo argentino, de descoberta da
prpria nacionalidade, o que implicaria em mudanas profundas no destino histrico
do pas, mudanas entre as quais o cancioneiro nativo representava apenas uma
forma mais visvel. Este seria, portanto, o momento oportuno para reinventar a
relao estabelecida entre o povo e esse repertrio musical, buscando superar as
formas mais tradicionais da pesquisa folclrica, que acabaram por transformar o
cancioneiro popular nativo em um solene cadver. Mesmo reconhecendo a
importncia fundamental dos folcloristas mais tradicionais, cujo trabalho teve uma
42
Mara Ins GARCA. Tito Francia y la msica en Mendoza, de la radio al Nuevo Cancionero. Buenos Aires: Gourmet Musical Ediciones, 2009, pp. 24-5.
34
inegvel justificativa e merece alto respeito, o momento exigia a libertao dessa
perspectiva engessada, baseada em formas estritamente tradicionalistas e
recopilativas, o que degenerou em um folclorismo de carto postal. A renovao
radical do cancioneiro de raiz folclrica deveria incorporar toda a informao mais
moderna da linguagem da cano. A propsito desta questo, Tnia da Costa
Garcia afirma:
O Novo Cancioneiro pretendia ser a msica nacional, sintonizando o cancioneiro popular argentino s transformaes impostas pela modernidade. Nesse sentido sua proposta era bastante diversa dos setores mais conservadores da sociedade que, ao contrrio, viam na preservao do folclore tradicional um meio para resistir a tais mudanas, salvaguardando o status quo. 43
Neste sentido da busca de inovao do folclore, duas figuras so apontadas
como precursores fundamentais do movimento: Buenaventura Luna e Atahualpa
Yupanqui, aqueles que, sem serem os nicos, so os mais representativos
precursores pela qualidade e a extenso de suas obras e em sua vocao de
expressar renovadamente a cano popular nativa 44. Com Luna e Yupanqui teria
tido incio um movimento de renovao do cancioneiro tradicional, um impulso
renovador que amplia seu contedo sem ressentir a raiz autctone, que deveria ser
seguido pelas novas geraes de autores e intrpretes reunidos em torno do
movimento do nuevo cancionero, entendido como sada possvel para a evoluo do
cancioneiro popular. Na definio do Manifiesto:
O Nuevo Cancionero um movimento literrio-musical, dentro do mbito da msica popular argentina. No nasce por ou como oposio a nenhuma manifestao artstica popular, mas sim como consequncia do desenvolvimento esttico e cultural do povo e sua inteno defender e aprofundar esse desenvolvimento. Tentar assimilar todas as formas modernas de expresso que ponderem e ampliem a msica popular e seu propsito defender a plena liberdade de expresso e criao dos artistas argentinos. Aspira a renovar, em forma e contedo, nossa msica, para adequa-la ao ser e ao sentir do pas de hoje. O Nuevo Cancionero no desdenha as expresses tradicionais ou de fonte folclrica da msica popular nativa, pelo contrrio, se inspira nelas e cria a partir de seu contedo,
43
Tnia da Costa GARCIA. Nova Cano: manifesto e manifestaes latino-americanas no cenrio poltico mundial dos anos 60. In: Actas del VI Congreso de Msica Popular IASPM/AL. Buenos Aires, 2005.
44 Manifiesto del Nuevo Cancionero Argentino.
35
mas no para furtar o tesouro do povo, mas sim para desenvolver esse patrimnio, o tributo criador das novas geraes. 45
Ressaltando ideias como a de desenvolvimento, assimilao, ampliao,
criao, renovao, o nuevo cancionero, ainda que com a ressalva de no
desconsiderar as expresses tradicionais, aponta, fundamentalmente, para a
criao de algo novo no mbito da cano popular. O movimento mira no para o
passado, mas sim para o futuro. Segundo Carlos Molinero:
Para a validao da criao pe implicitamente o acento no futuro, mais que no passado. E esta sua verdadeira revoluo. O popular se encontra no povo por seu destino, obviamente aberto ento a uma evoluo histrica e poltica ainda no determinada, mais que por suas tradies. Em analogia, o folclore no s deve mostrar de outra forma e a outro pblico o que j folclore, mas propor e no s s comunidades folclricas, o que vai ser folclore, no sentido de canto popular e subalterno. 46
Dentro das propostas do movimento para intervir no panorama musical e
promover mudanas, particularmente importante a ideia de que os artistas
deveriam promover o dilogo do movimento argentino com propostas similares que
se desenvolvessem em outros pases. Conforme se afirma no Manifiesto:
O Nuevo Cancionero acolhe em seus princpios a todos os artistas identificados com seus anseios de valorizar, aprofundar, criar e desenvolver a arte popular e nesse sentido buscar a comunicao, o dilogo e o intercmbio com todos os artistas e movimentos similares do resto da Amrica. 47
Esse trecho do documento fundamental pois, em primeiro lugar, afirma a
existncia de movimentos similares no resto da Amrica, reconhecendo que o que
est se propondo para o cancioneiro argentino no nico e se insere em um
movimento mais amplo de dimenses continentais. E, neste sentido, ganha
importncia central a necessidade de buscar conexes com as manifestaes
musicais de outros pases. Como lembra Tnia da Costa Garcia:
45
Manifiesto del Nuevo Cancionero Argentino.
46 Carlos MOLINERO. Militancia de la cancin: poltica en el canto folklrico de la Argentina 1944-
1975. Buenos Aires: De Aqu a la Vuelta, 2011, pp. 190-191.
47 Manifiesto del Nuevo Cancionero Argentino.
36
O Novo Cancionero pretende ser um movimento agregador, unindo diferentes naes a partir da arte popular e daqueles que com ela se identificam. Nessa perspectiva admite a existncia de movimentos similares no resto da Amrica, afirmando o carter transnacional da nova cano e de seus antecedentes. 48
O nuevo cancionero colocava desde o momento de sua criao a
possibilidade de buscar dilogos que superassem os limites nacionais, que
superassem fronteiras e pusessem a cano argentina em contato com as demais
produes do continente, de modo a no s receber influncias, mas tambm a
influenciar o desenvolvimento de propostas de renovao da cano popular em
outros pases. O movimento surge, assim, com uma proposta latino-americanista,
apontando para a possibilidade de construo de um movimento com caractersticas
transnacionais.
O nuevo cancionero tinha a ambio de provocar uma ruptura no processo de
desenvolvimento da cano popular argentina, e de certa forma tambm da cano
latino-americana. Alm disso, o movimento apresenta mais um aspecto inovador ao
incorporar uma preocupao com os temas sociais, trazendo, de uma maneira ainda
bastante difusa neste primeiro momento, a poltica para o mbito da produo
musical.
Em relao aos participantes do novo projeto, a concepo e articulao do
movimento dependeram, em grande parte, da atuao de duas figuras: Armando
Tejada Gmez e scar Matus. A ideia inicial tributada, em vrios depoimentos, a
Matus, e sua cristalizao e concretizao a Tejada Gmez, responsvel pela
redao do Manifiesto.
Para alm dessa atuao na gnese do movimento, a dupla tambm teve
papel central na sua produo musical, j que suas parcerias (Matus como
melodista e Tejada Gmez como letrista) constituram o ncleo fundamental da
produo inicial do grupo. As canes de Matus e Tejada Gomez foram a base
fundamental do repertrio dos primeiros discos de Mercedes Sosa, que se tornou,
nos anos seguintes, a figura mais emblemtica do movimento. A prpria Mercedes
apontou, em depoimentos, a importncia da dupla Matus (a poca seu marido) e
Tejada Gmez na concepo do movimento:
48
Tnia da Costa GARCIA. Nova Cano: manifesto e manifestaes latino-americanas no cenrio poltico mundial dos anos 60. In: Actas del VI Congreso de Msica Popular IASPM/AL. Buenos Aires, 2005.
37
At onde me lembro Matus foi o primeiro que disse: a isso do Nuevo Cancioneiro preciso dar forma. a hora de o lanarmos de uma vez. Matus era muuuito inteligente, tinha intuies muito fortes, mas quase no sabia escrever (...) Por isso um dia me fez escrever uma carta a Armado Tejada Gmez, lhe dizendo que j era hora de nos encarregarmos da nueva cancin e de que nos soltssemos, no das razes mas sim do folclore barato e adormecido de tantos anos. Armando indubitavelmente era dos dois o que estava preparado intelectualmente para desenvolver isso. 49
Tejada Gmez tambm foi, em grande medida, o responsvel pela
aproximao do movimento com a poltica. Em 1958, participou ativamente da
campanha vitoriosa de Arturo Frondizi para a presidncia da Repblica, e acabou se
elegendo deputado provincial pela Unin Cvica Radical Intransigente (UCRI). No
entanto, ao longo da legislatura se desiludiu com o distanciamento de seu partido
das propostas de centro-esquerda defendidas originalmente, e acabou se afastando
do bloco governista e formando um bloco independente, acompanhando um
movimento geral das esquerdas no perodo, pois, como afirma Luis Alberto Romero:
A atrao que Frondizi exerceu sobre os progressistas independentes e tambm entre militantes dos partidos tradicionais de esquerda devia-se proposta de abertura ao peronismo sem renunciar prpria identidade; devia-se tambm ao tom anti-imperialista enrgico um valor em alta na poca e, principalmente, modernidade e eficcia anunciadas por seu estilo poltico, que combinava as iluses da poca com as tentaes, mais prprias dos intelectuais, de se aproximar do poder sem passar pelos filtros dos partidos. A desiluso que veio logo em seguida deu incio a uma fase de reflexo, crtica e discusso que culminou na formao da nova esquerda. 50
A experincia de Tejada Gmez como deputado e a frustrao com os rumos
da UCRI o levaram a se afastar definitivamente do partido. Em 1959, depois de uma
viagem China e Rssia, acabou se filiando ao Partido Comunista, no qual militou
por meio de sua atuao intelectual e artstica.
49
Rodolfo BRACELI. Mercedes Sosa, la negra. Buenos Aires: Sudamericana, 2010, p. 99, citado tambm por Mara Ins GARCA. Tito Francia y la msica en Mendoza, de la radio al Nuevo Cancionero. Buenos Aires: Gourmet Musical Ediciones, 2009, p. 79.
50 Luis Alberto ROMERO. Histria contempornea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.
155.
38
Apesar da importante contribuio de Matus e Tejada Gmez para a criao
do nuevo cancionero, inegvel que muito da projeo que o movimento conquistou
se deveu ao sucesso de Mercedes Sosa51, que acabou se tornando a figura mais
expressiva do nuevo cancionero e, com o tempo, tambm a grande figura simblica
da cano engajada latino-americana, construindo a imagem de voz da cano de
protesto e de voz da Amrica Latina.
O projeto da nuev
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