Capítulo Oitavo
A imagem popular de Jânio Quadros - O inicio de sua gestão presidencial - Os principais problemas ao tempo - O ministério: as pastas civis e as militares - O qüinqüênio anterior na versão do primeiro discurso presidencial à nação - A oposição parlamentar - Os bilhetes de Jânio Quadros - As instruções 204 e 208 da SuMoc - A refo(ma da codificação e a lei de remessa de lucros - O ponto de vista do CONCLAP - As reuniões com os governadores - As comissões de inquérito - A política externa - A gestão Afonso Arinos - A posição brasileira ante o problema cubano - A renúncia: seus m6veis e objetivos.
719 . Ao empossar-se na presidência da República, a imagem que dêle preponderava na opinião pública era a seguinte: Jânio Quadros contava quarenta e quatro anos de idade; môço ainda, conquistava a suprema magistratura do país na base de suas qualidades pessoais, já que não se fizera, no curso de rápida vida pública, nem catalisador de tendências político-partidárias definidas, nem defensor, ostensivo ou velado, de grupos de pressão poderosos, visto como, ao contrário, ousara apresentar-se sempre com ampla mobilidade crítica, verberando - através de pregação moral e de externados anseios de justiça social - partidos, tendências. instituições, correntes e indivíduos.
720. A imagem tinha outros lineamentos: bacharel em direito em 1939 - nascera em 1917 -, pela Universidade de São Paulo, em que apontara como poeta algo avêsso às lides políticas estudantis, o mato-grossense radicado e formado na capital bandeirante viria a exercer a advocacia e o magistério de português em alguns colégios da grande cidade, só in-
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gressando na ação política como vereador em 194 7. Três anos depois, fazia-se deputado estadual; e nessa qualidade se realçava em breve, com tal crédito perante a opinião pública municipal, que lograva eleger-se, em 1953, prefeito da cidade de São Paulo- já então o centro urbano industrial, · comercial, econômico e financeiro, por excelência, não apenas do Estado mais próspero do Brasil, senão do subcontinente.
721. Sua gestão, como prefeito, viria abrir-lhe as portas de tôdas as possibilidades políticas no plano nacional. É que, graças à sua personalidade e a uma administração vigilante, pela execução de um programa de moralização dos serviços, pela lisura nos gastos dos dinheiros públicos e pelo incremento dos recursos materiais e espirituais da cidade, conseguindo uma produtividade sem precedentes na gestão dos seus negócios, se sagrava, em curto lap11o de tempo, esperança coletiva tal, que um ano depois podia apresentar-se com uma bagagem que o autorizava a aspirar à governança do Estado - rompendo, destarte, interêsses e carreiras assentados em longa sedimentação prévia, que também sonhavam com aquela investidura.
722. Entrava nessa liça sem grandes recursos materiais ou partidários organizados, opondo-se a figuras e correntes poderosas e radicadas em todos os pontos do território do Estado. Sua vitória foi, entretanto, assegurada por pregação direta ao eleitorado em que, pelo inusitado de sua oratória política - a um tempo franca e sibilina, persuasiva e colorida, elaborada e pitoresca -, oferecia, mormente às aspirações das classes médias e dos desiludidos ·dos corrilhos políticos, uma bandeira de austeridade, honestidade, trabalho - afinal, para as grandes massas do Estado, os fundamentos mesmos de uma boa governança.
723 . Com métodos severos de govêrno, pode presidir à restauração das finanças e do crédito do Estado, comprometidos pelo seu préantecessor e a cujo sucessor, Lucas Garcez, coubera a penosa tarefa de liberar-se dessa tutela, para poder realizar govêrno útil ao Estado. Remodelando a máquina administrativa estadual, Jânio Quadros atacou, ato contínuo, obras fundamentais para o desenvolvimento material e espiritual de São Paulo, tomando-se, com essa gestão, figura emergente de projeção nacional e símbolo carismático das classes urbanas pobres e médias de todo o país.
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724. Abria-se-lhe, findando o govêrno de São Paulo, o ensejo de candidatar-se à presidência da República.
725 . Não o fêz, porém. Vimos em capítulo anterior como se desenvolveram os acontecimentos, de tal modo que Jânio Quadros teve de diferir essa possibilidade, limitando-se a ser um dos patrocinadores, na primeira fase, da candidatura Juarez Távora contra Juscelino Kubitschek, e um dos sustentadores da mesma, na segunda e definitiva, mas malograda, fase. Não obstante o prestígio que pudera angariar, com votos, ao candidato do Partido Democrata Cristão, a candidatura do mineiro saiu vencedora.
726. A Jânio Quadros, entretanto, cumpria-lhe prosseguir na sua carreira pública e política, já que então não lhe escapava a antevisão do seu coroamento; razão por que, fundando o govêrno do Estado, se candidatou a deputado federal pelo Paraná, pelo qual foi eleito: seu nome já era uma legenda, senão que lenda nacional. Timbrou, então, em não gastar-se, preservando-se longe das lides parlamentares.
727. Ao término da gestão Kubitschek na presidência da República, era consenso nacional a viabilidade da candidatura Jânio Quadros, independentemente dos conchavos partidários e das decisões de cúpulas dirigentes. A estas, ao contrário, animava sôfrega ansiedade de acolhê-lo sob sua guarida, aproveitando-se, por êsse passe de mágica, de uma vitória que se augurava certa. Jânio Quradros, porém, antes impôs suas condições que aceitou alheias, pois que tratações, que houve, tiveram caráter genérico, que o deixariam ser como pudesse e quisesse, se eleito. Vimos no capítulo anterior como se desdobraram os acontecimentos da campanha eleitoral, em que obteve uma vitória sustentada por mais de seis milhões de votos, assinalando na história do país a segunda - antes fôra Getúlio contra Cristiano Machado - vez em que um candidato oficial saía derrotado, mercê de uma votação maciça que exprimia inequívoca a maioria como que absoluta de uma nação, naquêles meios de que dispunha ela para exprimir a sua vontade.
728. Tais os elementos que configuraram, pessoalmente, o presidente ante o país, no dia 31 de janeiro de 1961, quando, em Brasília, acompanhado do vice-presidente com êle eleito, João Belchior Goulart,
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Jurou seu mandato perante o parlamento nacional e recebeu do seu antecessor, Juscelino Kubitschek de Oliveira, a faixa presidencial.
729 . RasgaV!a-se para o pais, aparentemente, uma estrada límpida: um presidente civil sucedia a um presidente civil, em pleito cuja valid-ade a ninguém era lícito pôr dúvida, oferecendo-se, com essa sucessão, após os primeiros atropelos militares da fase inicial do período anterior, a oportunidade ao país de aos poucos poder consolidar o império da lei por forma e tempo perdurantes.
730. Três componentes mam - e como tal continuam até os nossos dias - condicionar o bom êxito da administração J'ânio Quadros e, com êle, a viabilidade do desenvolvimento nacional até a plenitude das possibilidades intrínsecas ao sistema, tal como definido na Constituição da República - sistema baseado, em última análise, na livre iniciativa, em que a criação das riquezas materiais e espirituais se faz através das relações entre empregadores, detentores dos meios de produção, e assalariados, mas sistema, acrescentemos, cujas possibilidadas práticas e teóricas de expansão não se esgotam, são antes quaisquer, desde que não afetada aquela relação básica, não entrando, por conseguinte, em jôgo, nesse sistema, e exeqüibilidade de mudanças quantitativas ou qualitativas mesmo na estrutura, distribuiçã::> e relações dos detentores dos meios de produção entre si, caminho para a remoção dos seus elementos arcaicos, o mesmo ocorrendo no outro pólo.
731 . Mas, dizíamos, três componentes iriam condicionar o bom êxito prospectivo da administração Jânio Quadros: primeiro, um substancial incremento da eficácia da própria administração, habilitando-a, com funcionários e instrumentos, às novas necessidades que repontavam num país já entrado nos seus oitenta milhões de habitantes e saído de um qüinqüênio em que, sob êsse aspecto, pouco se fizera; segundo, uma poderosa sustentação das fôrças econômicas e financeiras produtivas nacionais, capazes, a um tempo, de manter uma taxa média de incremento do produto nacional bruto igual ou superior ao do qüinqüênio anterior, e de ampliar as possibilidades de emprêgo de uma população crescente a alta taxa média, com progressiva qualificação das mesmas possibilidades; terceiro, uma politização ou doutrinação dos grupos particularistas ou seções da classe dirigente e dos altos escalões das fôrças armadas, que se baseasse ou resul-
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tasse na convicção de que o desenvolvimento nacional devia ser essencialmente autógeno, auto-sustentado e, no limite do possível, auto-suficiente, e a de que, par:a tanto, o exercício da soberania nacional deveria desprender-se de quaisquer peias exógenas, diplomáticas, ideológicas ou financeiras, e o exercício do poder civil deveria liberar-se do imobilismo já radicado então em grande parte da classe dirigente, que tendia a ver nas mudanças das relações estruturais entre os detentores privados dos meios de produção o equivalente da subversão dos próprios princípios da propriedade privada ou do capitalismo no país.
732. Para fazer face a êsse complexo, Jânio Quadros assumia a presidência da República com as características pessoais c·om que desempenhara até então seu papel público na arena política nacional. Isso confirinar-se-ia desde logo na formação do seu ministério, muito mais expressão de qualificações personalistas e de jôgo inteligente de concessões aparentes a partidos e a correntes, do que resultante efetiva das fôrças que o haviam conduzido ao poder.
733. É que, não sendo, a rigor, homem de partido, podendo, por isso, louvar em cada um, ao sabor das circunstâncias e do aliciamento de seus votos, já a vo~ação legalista da U.D.N., já os objetivos de valorização da massa trabalhadora do P.T.B., já a representatividade nacional do P.S.D., conglomerando antes que fundindo sua real atuação-, não sendo homem de partido e não tendo nunca cogitado de formar um - o que talvez lhe tivesse sido possível, se sua carreira política tivesse corrido menos vertiginosa -, não querendo ou já não podendo conformar-se com uma orientação programática ou operacional como presidente da República, ~~u gavêrno passaria desde o início a ser uma resultante natural dessa carência de estruturação, que só iria tentar já no curso mesmo de sua gestão. Acenando em sua bandeira de candidato com princípios puramente moralísticos, mas por isso mesmo levado à necessidade de sua presença pessoal nesse sentido em todos os setores, quadrantes, aspectos e feições da realidade nacional, a que iria presidir, Jânio Quadros exceleria logo por sua vigilância quanto ao mais díspares assuntos - desde concurso de beleza, o horário de trabalho dos funcionários, dos atrasos de trem, dos jogos clandestinos, da indumentária pública, das atividades das boites, até os mais relevantes assuntos da esfera pública - e num assistemático tal, que era fácil compreender que isso só se faria sentir como fator efetivo nos mores
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públicos após a multiplicação de tais providências desarticuladas por mil: em suma, vi:a-se que a direção seguida, para ser frutífera, teria que ser produto de uma atuação estruturada, em que ao presidente da República deveria caber a ordenação geral.
734. Seu ministério era, destarte, integrado por homens provindos de quase todos os partidos nacionais, sem que, a rigor, nenhum tivesse um mandato positivo da parte dêstes: eram homens escolhidos a critério do presidente, mas homens apenas aos quais os respectivos partidos não haviam oposto objeção a que aceitassem o encargo. Tais homens eram os senhores Clemente Mariani Bittencourt, para a Fazenda; Afonso Arinos de Melo Franco, para as Relações Exteriores; Oscar Pedroso Horta, para a Justiça e Negócios Interiores; Francisco Carlos de Castro Neves, para o Trabalho; Romero Cabral da Costa, para a Agricultura; João Agripino Filho, para Minas e Energia; Artur Bernardes Filho, para a Indústria e Comércio; Brígido Tinoco, para a Educação e Cultura; Clóvis Pestana, para a Viação; Eduardo Catete Pinheiro, para a Saúde- além de três militares para -as fôrças armadas - Odílio Denys, para a Guerra, Sílvio Heck para a Marinha e Grum Moss, para a Aeronáutica.
735. A pasta da Fazenda, recaindo em Clemente Mariani, ia para um prócer do udenismo baiano. Constituinte em 1946, ministro da Educação durante parte do govêrno Eurico Dutra, fôra, em sua última gestão pública proeminente, presidente do Banco do Brasil, ao tempo em que, sob o govêrno Café Filho, entre 1954 e 1955, Eugênio Gudin fôra ministro da Fazenda. Homem rico, de longa atuação parlamentar, autor de trabalhos de vária natureza, advogado, jorrralista, professor catedrático, tinha interêsse e tendências financeiras pessoalmente definidas, ligadas a um tempo a atividades bancárias, à lavoura e exportação do cacau e aos altos vínculos sócio-econômicos dos grandes grupos nacionais e estrangeiros que controlavam a riqueza pública do país. Sob tal aspecto, poderia ser um continuador da administração do qüinqüênio anterior até onde a nova conjuntura nacional o comportasse: e esta, para os problemas de sua pasta, trazia em seu bôjo um problema capital, que tendia cada vez mais a aguçar-se, a saber, uma progressiva inflação, acompanhada de dois crescentes descontentamentos: primeiro, dos exportadores nacionais pela contrapartida em cruzeiros dos dólares arrecadados pelo Estado; segundo, dos setores importadores que viam acintoso preferencialismo no fato de que certos pro-
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dutos podiam ser objetos de subsídio governamental. :{;: que, na medida em que se estancasse a inflação, poder-se--ia, eventualmente, fazer face à implícita valorização dos cruzeiros obtidos pelos exportadores ou à eliminação do subsídio; mas a inflação, por sua vez, far-se-ia, se progressivamente estancada, sentir na quantidade exportável, o que iria reduzir a arrecadação global dos exportadores; de outro lado, a majoração da contrapartida em cruzeiros a cada dólar obtido com exportação seria mera fôrça propagadora do próprio ritmo inflacionário, ao mesmo tempo que a eliminação do subsídio iria ser compensada pelo aumento do custo de vida. Tudo isso o conduziria, em boa perspectiva, a enfrentar o problema global não apenas nos seus aspectos financeiros , mas também econômicos, em que as questões de custos, a da intensificação quantitativa da produção, a qualificação da mesma, os mercados por atingir, a valorização da mão de obra produtora nacional e a sua produtividade deveriam ser levadas em conta, exigindo, talvez, uma nova estruturação da propriedade privada dos meios de produção no país, em seu conjunto. O passado do senhor Clemente Mariani não presumia ser êle homem capaz de enfrentar a complexa problemática de sua pasta com uma visão de conjunto nacionalmente viável. De outro lado, Jânio Quadros, em seu passado público, revelara antes contenção e lisura no trato com o dinheiro público do que a visão de economista que tivesse dedicado um sentido mais profundo a êsse tão relevante aspecto da realidade nacional, sobretudo em face da nova conjuntura - em que o problema do desenvolvimento nacional, se não equacionado, era pelo menos uma tomada de consciência inarredável, cuja formulação sistemática teria de vir, mais cedo ou mais tarde.
736. A pasta das Relações Exteriores cabia também a um udenista de primeira água - Afonso Arinos de Melo Franco -, experimentado homem público e parlamentar, então senador pelo Estado da Guanabara, com um cabedal muito expressivo de obras publicadas, desde trabalhos de natureza predominantemente literária, até estudos, monografias e tratados em que o direito, em seus múltiplos aspectos, a história, a sociologia, a administração e a ciência política eram componentes ou predominantes. Homem de opiniões e convicções definidas, com relação ao mesmo o que se colocava como problemático era saber até onde seria êle o executor da política externa de Jânio Quadros. :{;: que êste, enquanto fôra em seu passado e na sua pregação de candidato omisso quanto à explicitação dos problemas econômicos e financeiros do país, com relação à política externa,
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ao contrário, abundara em pronunciamentos, quase todos muito audaciosos não só em relação à prática da política externa que se realizara no govêrno anterior de Juscelino Kubitschek, senão que também audaciosos em relação aos sentimentos das classes médias e conservadoras, que viam em Jânio Quadros a esperança de uma gestão fecunda. Sob êsse aspecto, Jânio Quadros correspondia, muito mais, às aspirações generalizadas da inteligência brasileira, de regra esquerdizante, que via, a um tempo, na emergência dos novos Estados soberanos do chamado terceiro mundo, nas relações com os dois pólos principais do poder mundial e na prática de uma política externa de equidistância com êstes e de adesão para com aquêles a expressão do que mais legítimo e autêntico seria para o Brasil. O contraste para com o govêrno anterior era, a tal respeito, gritante, porque, salvo a resistência que opusera aos ditames financeiros do Fundo Monetário Internacional, o período de Juscelino Kubitschek fôra de espectativismo e de conservadorismo, só quebrado, e assim mesmo em forma de apêlo, com o lançamento da chamada Operação Pan-Americana, cuja execução dependeria, essencialmente, do grau de boa vontade da administração norte-americana.
737. O ministério político, o da Justiça e Negócios Interiores, caberia a um homem até então, estritamente, de São Paulo, sem a experiência das lides políticas federais, com ainda escassa circulação entre os dirigentes dos partidos políticos organizados e do parlamento nacional. Advogado culto, prestigioso nos meios forenses paulistas, fôra secretário da Justiça do senhor Jânio Quadros, em São Paulo. Até onde o ex-secretário corresponderia ao ministro do presidente, essa teria sido a indagação que mais de um brasileiro e mais de um político experimentado teria feito , quando de sua posse, posto de lado o fato notório de que entre presidente: e ministro já existiam, àquela altura, vínculos amistosos evidentes, provindol> de um lapso de tempo já longo de convívio, para que ambos soubessem com relação ao outro o que pedir e dar.
738 . O caráter híbrido do Ministério era conferido, sem dúvida, pelas pastas que lidavam com o principal da riqueza pública. Na da Indústria e Comérc1o era provido Artur Bernardes Filho, na qualidade de presidente do Partido Republicano, que se enfileirara entre os partidos nacionais que haviam dado irrestrito apoio à candidatura Jânio Quadros. Bernardes Filho, porém, que já tinha em seu largo passado público sido
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deputado, senador e vic~govemador do Estado de Minas Gerais, representava um tipo de vinculação capitalística e industrial, em que os interesses nacionais não eram predominantes, sendo, destarte, de esperar que viesse a ser conselheiro que até certo ponto refletisse sua própria condição pessoal.
739. O ministério da Agricultura cabia a um ainda jovem usineiro de açúcar, Romero Costa, que, em última análise, deveria trazer certa representatividade a um dos setores agrícolas brasileiros mais gravosos, menos eficientes, mas mais representativos dos interêsses arcaicos e retardatários da estrutura produtiva nacional. Até onde essa escolha fôra mera concessão do presidente a êsse setor e até onde se nutria ela da esperança de uma revitalização da área nordestina no particular da sua estrutura agrícola, atendida a circunstância de que o recém-nomeado era considerado figura progressista para o meio, só o tempo viria a positivar.
740. A pasta de Minas e Energia, cujo estímulo era ponto de honra do govêrno Jânio Quadros, cabia a um político experimentado da área udenista nordestina, João Agripino Filho, deputado federal, de formação jurídica, professor e prestigioso homem público, que já tivera oportunidade de enfileirar-se em posições de defesa do monopólio estatal do petróleo, garantia de que o mesmo não iria sofrer mossa, atendida a posição que, como candidato, assumira Jânio Quadros.
741. Uma das pastas que provocaram maior estranheza foi a do Trabalho. Jânio Quadros acenara com melhores dias para os trabalhadores. Essa vinha sendo, desde sua criação pouco depois de 1930, a past2 por excelência em que os chamados problemas trabalhistas eram ventilados e manobrados, fonte, inclusive, do oficialismo peleguista, graças ao qual o Estado paternalista ora criava a mitologia dos avanços sociais no papel, ora tinha o instrumento para desorganizar ou desviar as reivindicações dos trabalhadores dos seus objetivos próprios. Nomeando para a mesma a Castro Neves, de projeção apenas nos meios paulistas, Jânio Quadros de nôvo deixava os analistas de primeira hora do seu Ministério desorientados. Não se lhe desconhrciam as qualidades de advogado e conhecedor de questões trabalhistas, nem sua capacidade de administrador, demonstrada tanto na gestão Lucas Garcez como na Jânio Quadros na governança do Estado de São Paulo. Mas, tratava-se, de outro lado, de político que despolitizava a pasta do Trabalho, pairando, por conseguinte, a expectativa de que nessa pasta
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também Jânio Quadros quisera ter interferência mais direta, conformando a sua gestão a diretrizes pessoais.
742. A nomeação para a pasta da Viação foi logo compreendida como ato de dupla inteligência: era escolhido para ela quem tinha larga experiência dos seus problemas - havendo-a inclusive ocupado na gestão Eurico Dutra -, ao mesmo tempo em que o escolhido, Clóvis Pestana, trazia um gaúcho e pessedista para o Ministério.
743. Por fim a pasta da Saúde cabia ao deputado, médico, com relativa experiência de político e administrador, Eduardo Catete Pinheiro, que exercera a secretaria da Saúde em seu Estado natal, o Pará, ao tempo do govêmo Zacarias Assunção. Pasta não política, à escolha nenhuma expressão maior cabia, além da representatividade e adequação técnica.
744. Era nas pastas militares, porém, que um dos fundamentos do qüinqüênio inaugurante se firmava. Jânio Quadros foi para elas procurar os hierarcas mais representativos das três armas, mas não o fêz sem que da escolha não emergisse, clara, a indicação de que visava a compür as diferenças acaso existentes entre elas e entre as fôrças armadas e tendências civis. Na verdade, mantendo o marechal Odílio Denys na pasta da Guerra, Quadros beneficiava-se da ação que êste exercera durante o qüinqüênio findante, quando pudera manter coesas as tendências do exército, impedindo que repontassem com maior freqüência insubordinações udenomilitaristas, que em mais de uma oportunidade haviam pôsto à prova a estabilidade e viabilidade do govêrno Kubitschek. Na pasta da Marinha, com a escolha do almirante Sílvio Heck, Jânio Quadros fazia uma ostensiva concessão ao espírito legalista que presidira a aventura do cruzador Tamandaré, quando, após 11 de novembro de 1955, ao chamado golpe preventivo do marechal Lott, o então presidente em exercício Carlos Luz, em companhia de próceres udenistas inconformes, inclusive Carlos Lacerda, se fizera ao largo, precisamente sob o comando do dito almirante. :Bste, ademais, não encobria suas veleidades políticas de homem forte, autoritário, disciplinador com tinturas de vocação casemalista para a gestão da coisa pública. Muito afim de Sílvio Heck, o brigadeiro Grum Moss, a que se ligavam os oficiais da aventura de Aragarças, na Aeronáutica, era garantia de que a arma se pautaria por disciplina nos moldes de sua penetração udenista à imagem da vocação política de Eduardo Gomes.
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745. Nessa altura as pastas militares eram representadas por homens que viriam a moldar, nas fôrças armadas, ou colalxlrar para a moldagem, do espírito do imobilismo, a saber, o respeito formal das leis, se impedidas quaisquer modificações que pudessem alterar os dispositivos constítucionais mesmo por via constitucional. A doutrinação político-militar preponderante já podia revelar-se em duas tendências que, no futuro não remoto, iriam admitir a inserção, no oficialato, da convicção de que no plano externo o mundo se encaminhava para uma defrontação sem remédio, em que, de um lado, se enfileirariam as fôrças do bem, identificadas com a política interna e externa norte-americana, cabendo, de outro lado, na frente interna, às fôrças armadas a tarefa de preservar a inalterabilidade do quadro estrutural graças ao qual o enfileiramento do Brasil com as fôrças do bem se faria sem dúvida nem tropeços, cumprindo destarte a essa~ fôrças vigilância integral contra o repontar de tudo o que significasse mudança, pois que isso, em última análise, era ostensiva ou latente brecha à inundação do país por elementos paracomunistas ou comunistas.
7 46. Logo nos primeiros pronunciamt:ntos públicos do presidente Jânio Quadros se definiram, inequívocas, certas características e certos problemas que se avolumariam a curto prazo.
747. Na cerimônia da transmissão da faixa presidencial falaram o presidente egresso e o presidente entrante. Aquêle desejou, essencialmente, a êste, uma administração fecunda. Nem mais poderia fazer. A êste, porém, caberia uma definição do qüinqüênio findo. Não foi, porém, onde tôda a opinião pública poderia esperar seu principal traço que Jânio Quadros o foi encontrar - no chamado esfôrço desenvolvimentista, que, afinal de contas, fôra a só constante do govêrno Kubitschek. A fórmula de Jânio Quadros, extremamente expressiva, foi a seguinte: "O Govêrno de Vossa Excelência, que ora se finda, terá marcado na história a sua passagem, principalmente porque, através de sua meta política, logrou consolidar em têrmos definitivos, no país, os princípios do regime democrático." A originalidade do pensamento e da análise de Jânio Quadros estava aí: agradecia-se, ou caracterizava-se, no qüinqüênio findante, não o que nêle se buscara à viva fôrça, mas o que se conseguira aparentemente em definitivo, a instauração do poder civil, o estabelecimento do império da lei, a observância desta, inclusive na campanha eleitoral e na transmissão do poder, - prova a que sempre sucumbira a democracia brasileira, e prova de
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que saía, naquele contexto, ilesa, mormente quando se devia ter em mira que o presidente eleito o era contra o oficialismo, quando não presidencial, pelo menos do partido e das fôrças ditas majoritárias.
748. Se o curto pronunciamento de Jânio Qullldros foi, na cenmonia de transmissão da faixa presidencial, no palácio do Planalto, de síntese feliz e não contundente, o mesmo não se poderá dizer do discurso que, ainda nesse dia 31 de jàneito de 1961, pronunciou à noite, através do rádio, viajando já para Paris, desde a tarde do mesmo dia, o presidente egresso. Já agora a fala presidencial era de côres sombrias: o balanço da situação financeira era catastrófico, ordenando-se as cifras de forma calamitosa, mas de forma, quando não subjetiva, pelo menos polemizável, a ponto de certos jornais, ao dia seguinte, ponderarem quanto ao rigor da análise e quanto ao cabimento da carga, já que desacompanhada de qualquer referência ao que se construíra no país durante o qilinqüênio anterior, refletindo-se o todo como um despender a fundos perdidos, subtraído o elemento básico da aferição, que, em última análise, era a taxa de incremento do produto nacional bruto durante cinco anns sustentado a um nível sem precedentes na história da República. O discurso, de outro lado, não poupava referências a desmandos, filhotismos. e corrupção com os dinheiros públicos; fazia-se acompanhar de um tom ameaçador, quase vindicativo. Era, em suma, um balanço em que se refletiam azedumes e desaprovações, além de se prometerem, ademais de rigor no govêrno encetante, rigor para o govêrno egresso.
749 . O mais grave, porém, em todo êsse discurso é que com êle, desde o início, o presidente Jânio Quadros fechava as portas de composição com o parlamento nacional. Que tivesse dêsse parlamento, êle que o superara em sua campanha eleitoral, já vencendo-lhe a maioria arregimentada contra si, já aliciando de todos os partidos aderentes sequiosos de ficarem ao lado do vencedor, que tivesse dêsse parlamento uma opinião não muito lisonjeira, isso só depunha em favor do presidente - afinal, saber com quem lidava era um trunfo que não podia dispensar, ante a perspectiva que se lhe abria, quando, de outro lado, contava por certo com o apoio maciç.o da maioria fragorosa da nação.
750. Mas ao romper de forma incisiva com tôda uma situação radicada majoritàriamente no país, que tinha tôdas as razões para se supor representativa também do país no meio insütucionalizado para essa repre-
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~>entação - o próprio voto - não pareceria a forma mais eficaz de iniciar uma gestão governamental. O fato é, entretanto, que já na sua reunião regular subseqüente a Câmara dos Deputados se fazia eco de acerbas críticas ao presidente da República por essa peça, no que havia consonância com mais de um órgão de imprensa do país, mesmo os mais conservadores ou antijuscelinistas.
751. Viu-se que, então, em verdade, um homem se propusera a governar um país de 80 milhões de habitantes levando ao pé da letra sua investidura constitucional - a de presidente da República detentor de uma soma nominal de podêres incontrastável, opondo êsse poder a todos os sistemas de c9ligações, partidárias, de opinião, de direção da opinião, do poder econômieo, de interêsses criados.
752. Desde o início os seus bilhetes, personalissimamente endereçados, tinham acolhida, irônica ou pitores~a, nas colunas dos jornais, e eram recebidos pelo povo com misto de admiração, reverência, de credulidade e de pilhéria. O funcionalismo público desde logo foi alvo das verrinas moralizadoras, através de decretos que dispunham quanto ao horário de funcionamento das repartições públicas, quanto à exoneração ou à dispensa dos que tivessem sido nomeados ou admitidos a partir de 1.0 de Setembro de 1960 (vale dizer, através do "testamento" do senhor Juscelino Kubitschek), quanto à vedação de nomeações e admissões no serviço público por um ano, quanto à assinatura do ponto, inclusive para os ocupantes de cargo em comissão ou funções gratificadas - em suma, a máquina burocrática deveria ser qualificada e produtiva, sem alteração de sua estrutura e métodos, através de medidas de moralização e bons costumes.
753. A característica intrínseca às sociedades carentes, vale dizer, em que o produto social é, ademais de desigualmente distribuído, insuficiente para as necessidades médias per capita, tentava-se corrigir, em consonância com a pregação moral, através de atos de moral, omitindo-se a circunstância de que as sociedades abundantistas haviam atravessado igual mazela e só a haviam, quando haviam, superado através ou da aceitação tácita da imoralidade ou através de compensações materiais e espirituais que tomassem contraproducente o recurso aos expedientes fáceis da esperteza, da sonegação, do aproveitamento ou de golpe ou jeito.
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754. A onipresença moralizante fazia-se, porém, também aguda em setores mais privilegiados. Viu-se, assim, o govêrno da República, tendo à frente o próprio presidente, esforçar-se pela erradicação ou pelo menoS combate do contrabando, de dentro para fora como de fora para dentro das fronteiras nacionais, em todos os pontos do território nacional -instituição que desde sempre afligira a nação e que contava com a conivência, tácita ou explícita, de amplos setores da opinião, beneficiária ou não do processo. Instituía-se para tanto um grupo de trabalho, de representação expressiva dos ministérios interessados, com âmbito nacional.
755. Atacava-se concomitantemente o jôgo em suas múltiplas modalidades, regulando-se aquelas atividades afins que os bons costumes haviam inserido como consentâneas com as normas sociais - tal, inclusive, o turfe. Os bons costumes eram o princípio invocado também para a regulamentação dos espetáculos públicos, para a qualidade dos programas radiofônicos, de televisão, de cinema, de teatro, de casas quaisquer de espetáculo, de diversões noturnas e afins. A própria propaganda comercial recebia limitações, conforme as definições morais e dos bons costumes.
756 . Dois meses e meio depois de empossado, entretanto, é que Jânio Quadros se lançaria no primeiro grande ato presidencial, cuja seqüela marcaria os restantes meses de seu govêrno: a instrução 204, do ministério da Fazenda, através da qual se processaria a reforma cambial. Perante os órgãos de divulgação de massa, o presidente, pessoalmente, fêz uma detida exposição dos motivos que levaram o seu govêrno a tomar o grave !'asso, definindo então o que reput.ava artificial no funcionamento das nossas finanças, no funcionamento do câmbio de importação e de exportação, propondo-se, através de sua correção, dois objetivos sucessivos: primeiro, tornando reais os câmbios em causa, os custos iriam sofrer aumento, não só em gêneros de primeira necessidade, diretamente, como o pão (mercê do fato de que o chamado subsídio à importação do trigo seria retirado), mas também indiretamente, pelo aumento dos fretes (suspensão dos subsídios ao petróleo e afins); após o que o govêrno ficaria habilitado a exercer 1eal inspeção dos preços cobrados à população, objeto de especulação desenfreada do poder econômico.
757. Nessa altura ficaJ~a manifesto, primeiro, que setores poderosíssimos da vida econômica e financeira do país reagiam de forma vâria,
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mas quase sempre desfavorável, à medida governamental, e, segundo, que o govêrno parecia propender a um tipo de ação eminentemente empírica, ~em uma visão global das medidas que deveriam ser, orgânicamente ou, pelo menos, estruturadamente, empreendidas para enfrentar os reais problemas da produção, circulação e distribuição das riquezas.
758. O povo recebeu com assombro e tristeza, dir-se-ia sobretudo decepção, a medida, que esperava do govêrno no sentido da diminuição do custo de vida: esta vinha às avessas. Mas tamanho era o cr&lito que o presidente angariara, que um largo lastro de esperança ainda continuava a luzir na massa popular, que aceitava o compasso de espera como anunciador de melhores dias por vir. Expressivamente, porém, um elemento que até então parecera suspeito à opinião popular, o Fundo Monetário Internacional, expedira nota apoiando a reforma cambial, como conducente ao saneamento das finanças públicas.
759. Medidas conexas para o contrôle dos estoques de mercadorias várias do país, sobremaneira as do trigo, eram tomadas, com recurso a oficiais do exército para serem executores das mesmas. O govêrno Jânio Quadros principiava a institucionalizar a associação dos oficiais das fôrças armadas na execução de todas as medidas que implicassem fiscalização da coisa pública - o que levaria, em breve, no parlamento, a que vozes se levantassem para verberar a distinção implícita entre a honestidade de todos os oficiais das fôrças armadas e a desonestidade indiscriminada dos civis.
760. Complementando a instrução 204, em principios de julho de 1961 o ministro Clemente Mariani anunciava ao país a instrução 208, que procurava beneficiar o intercâmbio com os países integrantes da Associação Latino-Americana de Livre Comércio. Um mês depois o presidente da República reunia o Ministério, para acertar as medidas de interêsse nacional que deveriam ser tomadas, sucessivamente. Mencione-se, dentre elas, a decisão de promover a reforma, pela atualização, do Direito Privado Brasileiro, que ficou sob a supervisão do ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta. ~ste nomeou para êsse fim comissões de juristas, escolhendo-os de maneira impessoal entre os luminares das letras jurídicas. o plano respectivo, dada a sua magnitude, foi levado por aquêle titular a uma reunião plena do Ministério, e aprovado unânimemente. Iniciava-se, as-
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sim, o reexame de nossa codificação, desde a de menores até a civil e a penal, com os conseqüentes processos, a comercial, a das obrigações, esta destacada do Direito Civil. O trabalho de algum modo demonstrava a urgente necessidade de adequar-se a estrutura jurídica nacional à realidade dos tempos, denunciando a dicotomia sentida por todos com funções de govêrno entre o chamado "Brasil real" e o "Brasil legal", fazendo a administração quase impossível. Coincidentemente, cogitava-se de lei de limitação dos lucros remetidos pelas emprêsas estrangeiras para o exterior.
761. O govêmo começava a tomar posições nos problemas substantivos. Saído de uma ausência, pelo menos ostensiva, de programação, impondo-se, de início, pelo moralismo das providências, sobretudo em áreas limitadas como a do funcionalismo público, aos poucos se ia endereçando aos problemas reais, mas de forma sempre assistemática. Um plano faltava, global.
762 . Em breve, dêle viria a encarregar-se o economista Celso Furtado; mas, na intimidade, não escondia êle a convicção de que o plano, por injunção política, jamais viria a ser seguido.
763. Durante a campanha, o Conselho Superior das Classes Produroras - o CoNCLAP - se julgou no direito de antecipar-se oferecendo um documento extenso em que propunha um como que plano nacional de desenvolvimento. Foi em março que se fêz a entrega do que se intitulava Sugestões para uma política nacional de desenvolvimento. Que o documento era uma visão parcial d.o problema nacional do desenvolvimento, parcial e unilateral, sobretudo, é ponto pacífico; pelo menos, é ponto pacífico que Jânio Quadros assim o interpretou, ante as críticas que, a título genérico, aí se faziam a quaisquer ações estatais que não levassem em conta tais ou quais princípios preconizados pelo CoNCLAP. O tom era, por certo, não apenas doutrinai, senão que magistral. A oração com que o presidente da República reagiu ao memorial das classes produtoras é sintomática das pres:;ões que se anuviavam no seu horizonte. Retenhamos, tão sàmente, um parágrafo: "Homens poderosos já me procuraram para expressar sua dessatisfação com o meu govêrno. Expliquei-lhes que s6 haveria dois meios de tolher os meus passos: depor-me ou assassinar-me, o que não me parece fácil." O que, no depoimento autorizado de pessoas que puderam ouvir as reações do presidente à leitura das Sugestões, mais o irritara é que estas, co-
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onestando todos os pontos de vistas dessas classes produtoras, eram absolutamente omissas em relação aos problemas estruturais do país, sem referência sequer remota aos problemas da reforma agrária, ao destino das emprêsas estatais onerosas e entretanto indispensáveis ao funcionamento do Estado, à miséria da grande maioria da nação, aos problemas da educação nacional e sobretudo ao caráter do próprio desenvolvimento nacional anterior e o preconizado, que se limitava a reivindicar um aumento do produto nacional bruto, sem atender às questões relevantes de sua distribuição pelas faixas da população, sem postular nenhuma retificação da tendência que fazia que ricos fôssem cada vez mais ricos embora proporcionalmente menos numerosos e os pobres cada vez mais pobres embora proporcionalmente mais numerosos. Em suma, eram Sugestões que não lhe pareciam nacionais, senão que expressão pura dos interêsses de um grupo poderoso, mas minoritário.
7 64. A imagem do presidente devia. entretanto, ser preservada. Governar, na conjuntura, se vinha revelando cada vez mais difícil. Os desacordÓs com o parlamento e a situação minoritária do govêrno eram uma realidade que tendia a aumentar, enquanto não houvesse novas eleições longínquas ainda no calendário político.
765. Cumpria tomar providências compensatórias. De duas ordens eram elas. Através das chamadas reuniões dos governadores, em que Jânio Quadros se deslocava para um ponto do território nacional, quase sempre acompanhado de parte de seu Ministério, e se encontrava com os governadores de determinadas regiões do país: uma primeira, a 24 de março de 1961, com os governadores do Rio Grande do Sul (Leonel Brizola), de Santa Catarina (Celso Ramos) e do Paraná (N e i Braga) ; uma segunda, um mês deoois, com os governadores de Mato Grosso (Fernando Correia da Costa), Goiás (Mauro Borges), Rondônia (Abelardo de Alvarenga Mafra) e Acre (José Altino Machado); uma terceira, a 26 de maio, com os governadores da Paraíba (Pedro Gondim) e Pernambuco (Cid Sampaio); e uma quarta, com os governadores da Guanabara (Carlos Lacerda), São Paulo (Carvalho Pinto) e Estado do Rio de Janeiro (Celso Peçanha) -reuniões de que saíram decisões de interêsse imediato para os Estados em causa, que foram reconhecidas como de grande importância por todos os participantes. Paralelamente, as famosas comissões de inquérito, instituídas em comissões de sindicância, vinham a público com resultados. O prí-
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meiro relacionava-se com a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (NoVACAP), tornado público a 14 de março, em que se alegavam irregularidades da ordem de 60 milhões de cruzeiros. Nessa altura, já funcionavam trinta e três comissões de sindicâncias, cobrindo os mais variados setores da administração. A 17 de agôsto, vinha a público o resultado da comissão de inquérito administrativo para apurar as irregularidades na Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (S.P.V.E.A.), quando se tomava conhecimento do chamado emprêgo irregular de 350 milhões de cruzeiros, na gestão do superintendente daquela entidade e do presidente da Fundação Brasil-Central.
7 66 . A história dessas sindicâncias ficará por largo tempo como objeto de polêmica, pois seu valor foi essencialmente controversível. É incontestável que, se se apurou irregularidade em muito setor, não menos verdade é o fato de que o ânimo apurador supervalorizava os pormenores, transformando, vindicativamente, rotinas intrínsecas ao poder público em todos os tempos da história brasileira em alarmantes excepcionalidades. O fundamental, entretanto, escapava aos observadores em geral: Jânio Quadros presidia a uma santa inquisição, em nome da moral e da pureza aiÍministrativas, cujos sacerdotes eram de regra os militares designados pua presidirem ou intP.grarem tais comissões, no exercício de uma polícia e milícia de que sairiam cada vez mais convencidos de que uma corja de trêfegos assaltantes civis enlameava a puridade nacional, impedindo que o Estado e a sociedade civil como um todo pudessem ser eficazes e realizar os objetivos de felicidade e riqueza sociais. A divisão da sociedade civil en-.. limpos e sujos, a ilusão de que através da limpeza a eficácia do progresso poderia ser atingida, uma compreensão anedótica, em suma, da problemática nacional, e ademais vingadora, se ia, destarte, radicando em setores responsáveis, que, além disso, por natureza profissional, eram fortemente arregimentados: a pobreza do subdesenvolvimento, o lado social carente, isso não era levado em aprêço.
767. No parlamento, os debates suscitados em tôrno dessas comissões aprofundavam o hiato crescente entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Mas se isso ocorria em função daqueles fatos, acirrando os protestos de certos setores parlamentares mais identificados com o qüinqüênio anterior, ocorria também em função da política externa, aí acirrándo os protestos das alas e correntes mais reacionárias do parlamento - es-
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pecialmente do partido a que pertencia o ministro de Estado da imprensa, de certos setores do clero brasileiro.
768. ~ preciso ressaltar, contudo, que o chanceler Afonso Arinoi logo de início se revelava o homem capaz de explicitar as tendências da política externa do govêmo. Dotado de grande conhecimento da hist6ria diplomática brasileira, ao contrário de certos setores que viam na implantação da nova política externa uma inovação extemporânea, acreditava êle que a mesma era a expressão mais genuína das necessidades nacionais -expressão que tivera seus primeiros e substantivos lineamentos ao tempo dos Andradas, no processo da Independência, e que fôra a tônica da diplomacia brasileira sempre que esta pudera ser mobilizada para uma prática dinâmica, que a subtraísse da mera rotina da representação externa e a levara ao encaminhamento de providências que marcassem, a um tempo, uma posição internacional brasileira realmente motivada por nossas condições objetivas de grande potência subdesenvolvida, capaz de exercer poderosa influência no cenário internacional - o que lhe impunha, desde logo, o lndeclináve_l dever de liberar-se de pautas que fôssem ditadas por interêsses alheios, mesmo que de aliados poderosos. Ao chanceler, conhecedor do ltamarati e dos funcionários, não escapava, tampouco, a consciência das dificuldades que para tanto teriam que ser superadas, já que êsse funcionalismo, embora em maioria cultural e profissionalmente qualificado, se caracterizava por uma prudente e timorata atuação que não viesse jamais comprometer os acessos na carreira, visto como os presidentes passavam e a carreira era longa, pois na sua normalidade durava o equivalente a seis qüinqüênios presidenciais, num país em que, ainda quando houvesse continuidade de classe dirigente, havia sempre pendularidade de tendências, preferências e confiança: buscar um meio têrmo não engajado de servir era o cânon da casa, a que se furtavam uns poucos, capazes de se empenharem funcionalmente fundo, quaisquer viessem a ser as sanções futuras das reversões.
769. Na mensagem presidencial ao Congresso Nacional, datada de 15 de março de 1961, a política externa brasileira era considerada em vários parágrafos, em que, dentre outros, os seguintes princípios se afirmavam: 1) A necessidade do estabelecimento de contactos de várias naturezas, sobretudo comerciais e diplomáticos, com países de ideologias divergentes, no reconhecimento tácito de que existem no mundo em que vive-
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mos e sua remoção ou modificação não se deve operar pela via catastrófica da guerra, hoje impensável, porque escalável à condição de guerra total atômica, repugnante para a humanidade no seu conjunto e nas suas partes; 2) tais contactos, por conseguinte, eram a via empírica expedita para distender as relações internacionais e tornar possível a manutenção da paz; 3) as Nações Unidas não haviam sido criadas para serem fôro manipulável por um grupo de países de ideologias afins; cada país devia aí representar-se em função exclusiva dos seus interêsses, desde que respeitando o princípio básico que estrutura o organismo internacional, a saber, o decidido apoio à causa da preservação da paz, através da certeza de que todos os diferendos internacionais podiam encontrar sua solução por via pacífica e jurídica. Ademais, a mensagem referia-se, dentro dessas coordenadas, a determinadas áreas e países, trazendo para definição de nossas relações com tais áreas e países a mesma soberana independência de perspectivas: para com os países socialistas, além da questão do prospectivo reconhecimento de certos governos (da Hungria e da República Popular da China), aludia-se à conveniência da ampliação de nossos mercados; com relação às duas Alemanhas, a mensagem era inequívoca: Bonn era a verdadeira expressão política da Alemanha, sua unidade era desejável, o que, entretanto, não viria a excluir o princípio da generalidade de contatos para a ampliação das relações comerciais com quaisquer países, inclusive a República Democrática da Alemanha; com respeito à Africa, a fórmula era profundamente audaciosa, pois se afirmava que o Brasil não aceitaria qualquer modalidade de colonialismo ou imperialismo, o que, na prática, iria constituir um difícil ponto de superação em nossa política externa, pois que sob êsse enunciado se escondia, também, o problema das chamadas "províncias ultramarinas" portuguêsas, vale dizer, dentre outras, Goa, Damão, Timor e Macau (na Ásia), e a Guiné, Angola e Moçambique, na África, cujas populações equivaliam à de Portugal e onde o espírito de independência nacional e suas expressões eram objeto de repressão metropolitana. A mensagem externava real satisfação pelo próximo advento da Argélia à condição de país soberano e, com respeito ao Congo, então dilacerado por lutas em que o neocolonialismo desempenhava um papel que só não via quem não quisesse, a mensagem era incisiva: era preciso impedir que os acontecimentos no Congo servissem de instrumento para que qualquer país ou grupo de países obtivessem vantagens para a sua posição internacional específica.
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770. Entrava, por fim, a mensagem na consideração do continente americano: "A evolução histórica recente de algumas nações irmãs estaria mais inclinada para a esquerda ou para a direita do que pareceria desejável, a juízo de alguns. Pouco importa, embora convenha manter aberto, de Norte a Sul, amigável e cooperativo, o diálogo sôbre as recíprocas experiências e necessidades. O que importa, todavia, é a afirmação, por t~do país latino-americano, de sua autodeterminação, preservada de qualquer intervenção alheia nos próprios negócios e resguardada de qualquer intervenção própria nos negócios alheios." Peça muito mais expressiva ainda seria elaborada pelo presidente Jânio Quadros sôbre sua política externa, a qual só sairia na revista a que se destinara, a norte-americana Foreign Affairs, em seu número de setembro de 1961, vale dizer, após a renúncia. Mas lá estava todo um código de princípios que guiavam a política externa brasileira de forma a melhor servir aos interêsses nacionais de país soberano desejoso de levar à arena internacional uma ação dinâmica que pudesse servir a um mundo em transição, num trânsitq, se possível, pacífico - dispondo-se, ao serviço da paz em última análise, tôda a atuação diplomática brasileira, na convicção de que a serviço da paz o império da lei internacional viria a permitir a solução de todos os diferendos internacionais.
771 . Retrospectivamente, fluídos alguns anos já dos acontecimentos, é lícito reconhecer que no conjunto a política externa inaugurada com o presidente Jânio Quadros e continuada, com algumas pequenas alterações, até a deposição do presidente João Goulart, se caracterizou: a) pela relativa inalterabilidade das mesmas relações com todos os países capitalistas, inclusive os Estados Unidos da América, salvo, neste particular, com relação a Cuba; b) pelo encetamento e intensificação das relações diplomáticas e comerciais com os países socialistas, aspecto positivo, tanto que desde então o país o vem mantendo e sustentando, quaisquer que tenham sido as modificações internas, pois o presumido se positivou, a saber, que pelo menos as relações comerciais seriam reciprocamente benéficas - ressalvado o não encaminhamento da questão das relações com a China Po-pular e a ruptura de relações com Cuba. Sob êsse ângulo, o saldo foi duradouro. Outra é a questão de saber se o país estava em condições de tomar aquelas medidas.
772. Formulada assim, a questão assume caráter polêmico. E foi o que aconteceu. Poucos chanceleres terão tido a necessidade de en-
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frentar tamanha onda de objeções no seio do parlamento nacional quanto o teve Afonso Arinos. Dos debates, entretanto, ressalta clara a visão maniqueísta e retardatária dos objetores: as relações com a União Soviética, por exemplo, foram prenunciadas como a ponta de lança aberta no seio da comunidade nacional para o atropêlo do comunismo e a derrocada das instituições. Nos quase seis anos de relações, porém, aquêle país se manteve nos mais estritos limites de conveniências diplomáticas e políticas, ao mesmo tempo que se incrementavam relações comerciais que hoje, ainda pequenas embora, representam um contingente apreciável do nosso comércio exterior, com potencialidades que, quaisquer que sejam os temores, tendem a se realizar, o mesmo podendo-se dizer dos demais países socialistas.
773. A chamada missão João Dantas coubera a função exploratória no planejar, in loco, acôrdos comerciais do Brasil com a Bulgária, a Hungria, a Romênia, a Iugoslávia e a Albânia.
77 4 . Concomitantemente, novas embaixadas brasileiras eram abertas em vários países do Terceiro Mundo, inclusive na África, no Senegal, em Gana, na Nigéria, no Congo (Kinshasa).
775. Tôdas essas medidas, porém, que em quaisquer circunstâncias de normalidade teriam tramitado como rotinas de país soberano, eram, em verdade, recebidas pelo parlamento e pela grande maioria da imprensa brasileira como excentricidades e audácias periculosas, para as quais o país não estava estruturalmente preparado. Negava-se ao Brasil o que um sem-número de países mu~to menos expressivos podiam realizar de forma a mais natural ou lógica.
776. A invasão de Cuba, entretanto, a 16 de abril de 1961, por contingentes anticastristas sediados nos Estados Unidos da América e na América Central, com conivência de setores econômicos e militares norte-americanos, que pressionavam o presidente John F. Kennedy, foi um dos pontos de precipitação da divisão ideológica interna do Brasil. E, nessa divisão, duas figuras passaram a cristalizar os pólos de opiniões: o próprio presidente Jânio Quadros, através de cujo chanceler o Brasil se alinhava contra qualquer tipo de intervencionismo, ostensivo, ou à socapa, e de outro o seu ex-entusiasta, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, que se declarava totalmente em apoio dos invasores. A cisão entre o govêrno da
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Guanabara e o govêrno federal seria, daí por diante, um dos elementos que Jriam emocionalizar a gestão da coisa pública no Brasil.
"777. Tudo culminaria quando da passagem pelo território na·cional de Ernesto Guevara, na qualidade, vindo da reunião de Punta del Este, no Uruguai, de ministro da Economia da República de Cuba. Che
,gando a Brasília no dia 18 de agôsto, a 19 recebia das mãos do presidente .Jânio Quadros a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. O governador Carlos Lacerda, na véspera, e~tivera com o presidente Jânio Qua-dros e com o seu ministro da Justiça, Pedroso Horta, e obtemperara a ambos sua discordância para com a política externa que vinha sendo seguida pelo govêrno federal. Essa divergência assumiria, ato contínuo, caráter acintoso, pois o governador da Guanabara recebia em palácio, poucas horas depois de Guevara ter sido condecorado, ao líder anticastrista Manoel Antonio de Verona, a quem também conferia prebenda estadual.
778. Parlamento, imprensa, opinião pública, fôrças armadas entraram todos na discussão do mérito de ambas as atitudes. Na prática, nin~uém podia, já naquela altura, ter dúvidas de que a prova da viabilidade .da presidência Jânio Quadros acabava de ser tentada. Era uma gôta d'água que justificava o extravasamento de discordâncias e discrepâncias para com
.a condução dos negócios públicos. Tôdas as fôrças reacionárias tomavam ,consciência da insubmissão do presidente da República. f:ste, nos estritos têrmos dos seus poderes constitucionais, timbrava em exercê-los, enfrentando tôdas as objeções. A partir daí ver-se-ia se poderia continuar como o presidente que quisera ser ou como o presidente que queriam fôsse.
779. Duas linhas de ação se desenvolvem paralelamente, em tôrno do eixo da política externa brasileira, a partir daí: de um lado, o go
·vernador da Guanabara procura incendiar os ânimos, chegando a motivar, mo dia 21 de agôsto, sessão secreta da Assembléia Legislativa da Guanabara, para pedir sua renúncia, ato de que recua logo em seguida, conti-nuando sua pregação contra a política externa e os seus condutores; de
.outro lado, o presidente da República continua sua ação, tomando providências administrativas dos mais variados tipos, como se o seu govêrno não sofresse o menor risco de continuidade: recomenda ao Itamarati e ao Ministério da Indústria e Comércio a negociação de um acôrdo econômico com Cuba; institui o plano de mobilização nacional contra o analfabe-
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tismo, e delineia os problemas fundamentais que o Brasil deveria suscitar e discutir durante a Assembléia Geral das Nações Unidas, que encetava sua XYII sessão a partir da terceira têrça-feira do mês de setembro entrante.
780. Entrementes, ainda no dia 21 de agôsto, o governador Carlos Lacerda recebia, dentre outros visitantes, vários militares das três armas, dos altos escalões.
781. Na noite de 24, o governador Carlos Lacerda, como o fizera na noite anterior em São Paulo, em longa palestra pelas televisões cariocas, denunciava conversações com que teria sido entretido pelo ministro da Justiça, Pedroso Horta, conducentes, inequivocamente, a um golpe de Es•ado branco, segundo o qual o Congresso Nacional teria seu recessu decretado, com apoio das Fôrças Armadas, enquanto o Executivo, sob a direção de Jânio Quadros, promoveria uma série de reformas, que seriam posteriormente submetidas a referendo popular. Em hipótese de o governador não aceitar ser um dos intermediários qualificados para a forjicação, JlinJc Quadros não relutaria em guinar para a esquerda, fazendo apêlo ao povo para a consecução daqueles objetivos.
782 o As primeiras horas do dia 25, por iniciativa de vários políticos, dentre os quais sobressaíam o governador Carlos Lacerda e o deputado Armando Falcão, reunia-se a Câmara, convertida, por iniciativa dos deputados José Maria Alkmim e Paulo Lauro, em Comissão Geral de Inquérito, figura desconhecida no Direito Constitucional do país, e convocava para depor, em plenário, e na mesma data, o ministro Oscar Pedroso Horta. Fazia-o ao arrepio da lei constitucional, isto é, sem que àquele titular fôsse dada ciência prévia das questões que seriam propostas ou marcasse êle o dia do próprio comparecimento.
783. Simultâneamente, circulava a notícia de que outras convocações seriam feitas, inclusive a da própria espôsa do presidente, o que mostrava o propósito de quebrar a autoridade do govêmo, desprestigiando-o ou desmoralizando-o.
784 o Certo, a crise deflagrada fôra inevitável. Entendia o presidente, e com êle os ministros mais diretamente ligados às instituições, que a administração pública se fazia cada vez mais difícil, senão impossível. O govêrno encontrava-se desaparelhado para a obra a que se propusera, tam-
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bém porque lhe faltava a indispensável sustentação parlamentar. O mais grave era a discrepância entre as exigências político-administrativas e sócioeconômicas do país, de um lado, e a débil estrutura político-jurídica, constitucional e legal, por outro. Havia tempos, o presidente, o ministro Pedroso Horta, da Justiça, e o ministro da Guerra, marechal Odílio Deny, cujo prestígio no exército era incontestado, convencidos dessa verdade, examinavam fórmulas ou soluções tendentes a fortalecer a autoridade governamental, sem o sacrifício dos aspectos fundamentais da mecânica democrática. O que aconteceu, então, foi frustrarem-se êsses anseios de reforma institucional, ficando o govêrno à frente do seguinte dilema: permitir seu aviltamento pela Câmara, que não se achava em consonância com o pensamento político do país, nem queria ser o instrumento hábil para as reformas, até porque interessada em manter a estrutura e os privilégios vigentes, ou implantar a ditadura. À ditadura recusou-se o presidente.
785. Na manhã do referido dia 25 de agôsto de 1961, Jânio Quadros madrugava no palácio, em Brasília. Unânimes são os depoimentos dos seus auxiliares diretos quanto à serenidade de que se achava penetrado. Em longa conversa com os colaboradores mais achegados, disse-lhes da determinação de renunciar e deu-lhes o texto autógrafo da sua renúncia, ordenando, irretorquivelmente, que preparassem a mensagem ao Congresso N acionai. A parte substantiva rezava assim:
Fui vencido pela reação e, assim, deixo o govêrno. Nestes sete meses, cumpri o meu dever. Tenho-o cumprido dia e noite, trabalhando infatigàvelmente, sem prevenções nem rancores . Mas, baldaram-se os meus esforços para conduzir esta Nação pelo caminho da sua verdadeira libertação política e econômica, o único que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social, a que tem direito seu generoso Povo.
Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a corrupção, a mentira e a covardia, que subordinam os interêsses gerais aos apetites e às ambições de grupos ou indivíduos, inclusive, do exterior.
Sinto-me, porém, esmagado. Fôrças terríveis levantam-se contra mim, e me intrigam ou infamam, até com a desculpa da colaboração. Se permanecesse, não manteria a confiança e a
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tranqüilidade, ora quebradas, e indispensáveis ao exerc1cto da minha autoridade. Creio, mesmo, que não manteria a própria paz pública. Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os estudantes e para os operários, para a grande família do País, esta página de minha vida, e da vida nacional. A mim, não falta a coragem da renúncia.
Saio com um agradecimento, e um apêlo. O agradecimento ~
é aos companheiros que, comigo, lutaram, e me sustentaram, dentro e fora do govêrno, e, de forma especial, às Fôrças Armadas, cuja conduta exemplar, em todos os instantes, proclamo, nesta oportunidade.
O apêlo, é no sentido da ordefil, do congraçamento, do. respeito e da estima de cada um dos meus patrícios para todos;. de todos para cada um.
Somente, assim, seremos dignos dêste País, e do mundo.
Somente, assim, seremos dignos da nossa herança e da nossa predestinação cristã.
tria.
Retorno, agora, a meu trabalho de advogado e professor.
Trabalhemos, todos. Há muitas formas de servir nossa Pá-
Brasília, 25-8-61.
O teor da peça encaminhadora era vazado nestes têrmos :
"Ao Congresso Nacional:
Nesta data e por êste instrumento, deixando com o Ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de
Presidente da República.
Brasília, 25 de agôsto de 1961.
(a) Jânio Quadros."
787. No tumulto que foi a sessão que tomou conhecimento da peça, prevaleceu a tese de que a única atitude que cabia ao parlamento era tomar conhecimento do fato, provindo de um ato unilateral e irretratável do presidente da República, seguindo-se-lhe a aplicação pura e simples da
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Constituição: <' vice-presidente devia assumir o govêrno pelo resto do Pf!
ríodo e, com sua ausência, enquanto retomava, devia assumi-lo o presidente da Câmara dos Deputados.
788. João Goulart, o vice-presidente, estava em missão de boa vontade na República Popular da China. O presidente da Câmara era o deputado Ranieri Mazzilli, que pouco depois assumia o mandato, enquanto João Goulart se fazia indesejável a muitos setores influentes do sistema do poder.
789. A renúncia tem sido objeto de interpretações as mais controversas segundo perspectivas as mais variadas: desde as de tipo psicologizante - Jânio Quadros, um instável e emocional, exasperado ante as resistências, preferia capitular; Jânio Quadros, provinciano e desaparelhado, tomava consciência de sua incapacidade; Jânio Quadros, pusilânime e timorato, abandonava o barco antes que o afundassem -; passando pelas de tipo condicionante - Brasília, a isolada e isolante, era a fonte da ingovcrnabilidade do país ao mesmo tempo que causa da emocionalidade dos dirigentes -; até as do tipo maquiavélico - Jânio Quadros, em verdade, como de duas vêzes anteriores, manobrava com o espectro da renúncia para poder retomar, na crista da onda da reação popular, com a soma de podêres sem os quais não via a possibilidade de gerir o país, podêres que o sagrariam como ditador.
790. A mente humana comporta, mesmo quando obsessivamente a povoa uma linha mestra de raciocínio, concomitâncias emocionais ou fantasias periféricas e paralelas. Tudo pode ter passado pela mente do homem em quem, num dado momento, seis milhões de eleitores haviam depositado sua confiança e um sistema de lei deferira, nominalmente, uma soma ·definida, mas enorme, de podêres.
791. Dentro dessas coordenadas, Jânio Quadros procurou corresponder a si mesmo, correspondendo ao que presumia ser a expressão da vontade popular e ao mandato que recebera.
792. No curto lapso de tempo em que presidiu ao país, transitou, ràpidamente, de medidas esparsas moralizantes, para os lineamentos de um conjunto de providências que se feiçoariam num corpo conseqüente, que deveria desembocar em sucessivas medidas de reforma estrutural.
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793. Já se compenetrara êle de que não podia haver dicotomia entre o plano externo e o interno. E o arcaico era o interno. O Brasil se apresentava como uma sociedade em plena expansão demográfica, cujo modêlo subdesenvolvido cumpria superar: uma taxa de incremento demográfico no mínimo de 3% ; uma taxa de incremento do produto nacional bruto que, em momentos áureos, não superara a média de 5% ; e, verossimilmente, uma taxa de incremento da riqueza dos ricos superior à dos pobres, de tal modo que, não obstante o potencial incremento global per capita, na prática os ricos tendiam a ser mais ricos e os pobres mais pobres. A saída ou seria catastrófica ou, para evitá-la, cumpria dirigir no interêsse nacional algumas dessas tendências. Uma das formas de dinamização nacional de~ veria · ser pela tomada de consciência da problemática. Através do debate do fôro internacional far-se-ia, porque apaixonadamente conspícuo, a educação política coletiva, pois um dos maiores males dos brasileiros, do comum como sobretudo das chamadas elites, era . a _ignorância geral do que se passava no grande mundo, o que lhes fazia supor sermos uma grande nação, quando éramos, em verdade, uma nação que tendia a quantificar-se, pauperizando-se e multiplicando-se em problemas sociais cada vez mais graves.
794. As resistências que encontrou - precisamente as mesmas para as quais não estava aparelhado, porque não chegara à presidência como expressão de fôrças sociais coerentes corporificadas numa doutrina ou plano de ação global- lhe ofereceram sempre uma oportunidade: é que seu govêrno, dicotômico, no plano interno oferecia as perspectivas de superar a inflação galopante que tenQia a instituir-se no país: o próprio Fundo Monetário Internacional e os mais inf!uentes orgãos das finanças capitalísticas internacionais viam equilíbrio na sua gestão da vida financeira nacional. Sob tal aspecto, essas resistências não se manifestariam, porque poderiam compadecer-se com o seu govêrno. Faltar-lhe-ia, tão só, um ato de acomodamento: que se acomodasse nas suas veleidades com relação à política externa;. que se comportasse nas suas intenções de olhar para as grandes massas populares; que planejasse, para o futuro, as chamadas reformas estruturais, quando o país, naturalmente, viesse a poder recebê-las. Ora, precisamente o futuro era o sombrio para Jânio Quadros. O presente era, se enfrentado com coragem, decisão e prgê~cia, exatamente o componente que iria permitir à nação ter um futuro diferente daquele para o qual, "naturalmente", se estava e~caminhando.
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795 . Já então, em verdade, se compenetrara Jânio Quadros de que lavrava uma fundamental contradição no sistema institucional: de um lado, havia o curso à presidência da República, de outro lado, a organização do Poder Legislativo expressa pelos partidos políticos. Presidente da República, que aspirasse a ser efetivamente vinculado ao seu povo, tinha que necessàriamente dirigir-se, em verdadeiro plebiscito, a êsse mesmo povo, acima dos partidos, fragmentados por sua impotência de galvanizar as grandes necessidades políticas e sociais, e por isso mesmo destituídos de programação. Em contato com o povo, o presidente da República tendia a prometer-lhe aquilo que eram as mais profundas aspirações populares, promessa, entretanto, que se frustrava. É que, enquanto a eleição presidencial era plebiscitária, universal, direta e secreta, ainda que viciada pelo chamado poder econômico, paralelamente o Poder Legislativo se pulverizava na representação do voto proporcional partidário, carente de programação nacional. Nessas condições, quando, empossado, o presidente quisesse propor legislação reformista profunda, encontraria, fatalmente, um legislativo subdividido em partidos teOricamente nacionais, na prática multiplicados ou esfarinhados nas suas expressões regionais, estaduais ou municipais - em que timbrariam as reivindições de tipo personalista.
796. O vício, politicamente, era estrutural. Seria, para vencê-lo, mister uma grande modificação no próprio sistema do poder. E o ideal, a seu ver, no Ocidente Moderno, era representado pela constituição francesa arrancada aos franceses pelo presidente De Gaulle, modêlo que iria permitir, no Brasil, que a mesma fôrça popular que consagrasse um presidente da República elegesse também a maioria parlamentar que o acompanhasse nas reforÍnas estruturais. A aspiração era, em princípio, legítima: mas a impotência de realizá-la era óbvia.
797. Nessa altura, Jânio Quadros não viu como malograr nos seus objetivos, ainda que com sacrifício próprio. Pôsto em movimento o esquema, compenetrados e ajustados os ministros militares quanto a êsse objetivo essencial, a sua consecução não poderia falhar.
798. Seu raciocínio foi o seguinte: primeiro, operar-se-ia a renúncia; segundo, abrir-se-ia o vazio sucessório- visto que a João Goulart, distante na China, não permitiriam as fôrças militares a posse, e destarte, ficaria o país acéfalo; terceiro, ou bem se passaria a uma fórmula, em conse-
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qüência da qual êle mesmo emergisse como primeiro mandatário, mas já dentro do nôvo regime institucional, ou bem, sem êle, as fôrças armadas se encarregariam de montar êsse nôvo regime, cabendo, em conseqüência, depois a um outro cidadão - escolhido por qualquer via - presidir ao país sob o nôvo esquema viável e operativo: como, em tudo, o que importava era a reforma institucional, não o indivíduo ou os indivíduos que a promovessem, sacrificando-se êle, ou não se sacrificando, o essencial iria ser atingido.
799. O plano, porém, falhou exatamente na vacilação dos che-fes militares.
800. João Goulart, compadecendo-se com a reforma parlamen-tarista, desfez, talvez sem sabê-lo, todo o plano concertado.
801. De tudo, dois saldos negativos ficariam a pesar no futuro : primeiro, o país continuaria inviável como sistema de poder, incapaz de promover por via pacífica as reformas de que necessitava; segundo, já agora era certo que o centro do poder se deslocara, por um longo período, para a alçada militar - que esperaria maior ou menor tempo mas viria à tona, como a só alternativa para aquela inviabilidade.
802 . A renúncia foi, assim, expressão de uma coerência de tipo heróico, no sentido carlyliano; Jânio Quadros acreditou que os destinos nacionais, num dado momento, dependiam de sua coragem de sacrificar sua carreira pessoal.
803. Faltou-lhe, porque disso não proviera, o sistema de fôrças políticas que o amparassem nessa direção.
804 . Faltou-lhe, porque não quis trair a própria imagem, a von-tade de querer continuar a ser presidente, ao preço da acomodação.
805 . Para êle, dirá sempre, a política não é a arte do possível, se o possível é condicionado pelo caduco; é, sim, a arte do possível dentro das necessidades globais - algumas das quais estavam clamando por urger.tes decisões, que o sistema de fôrças vigentes rejeitava.
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