BIOGRAFIA E GEOGRAFIA DA CIÊNCIA: Um estudo a partir da série Geographers -
Biobibliographical Studies
Rafael Augusto Andrade Gomes
INTRODUÇÃO
A ideia deste trabalho foi construída a partir do encontro de dois elementos aparentemente
desconexos na literatura geográfica de língua inglesa: o cânone geográfico e a escrita biográfica
como fonte para a história do pensamento geográfico e para a geografia histórica. É na
convergência desses elementos e dos debates nos quais estão envolvidos que pretendemos situar a
série Geographers: Biobibliographical Studies - GBS.1 O percurso da argumentação tem como
finalidade identificar e discutir mudanças na composição da série GBS que não são necessariamente
conscientes, mas que refletem diretamente na estrutura editorial do projeto biobibliográfico. Ao
mesmo tempo em que apresenta escritos sobre a história da geografia, a publicação faz parte dessa
história e nossa hipótese é que a riqueza dessa dualidade define os seus contornos.
Nosso caminho na análise da série GBS começará com uma discussão do cânone geográfico
e de como distintas concepções de canonicidade informam a escrita da história da disciplina e suas
múltiplas narrativas. Este tema tem ganhado visibilidade na geografia de língua inglesa, contando
com números especiais em dois importantes periódicos: Dialogues in Human Geography (2012) e
Journal of Historical Geography (2015). A série GBS, como um empreendimento narrativo da
história da geografia, também possui uma imagem da herança intelectual que atribui identidade a
uma disciplina, principal aspecto da discussão do cânone geográfico.
Em segundo lugar, sintetizaremos fóruns de debates em torno de duas publicações
biográficas, que são editadas completa ou parcialmente por geógrafos: a plataforma de ensaios do
Oxford Dictionary of National Biography (BAIGENT, 1994; BAIGENT, 2004; JOHNSTON, 2005;
JOHNSTON, 2007; DRIVER & BAIGENT, 2007) e o livro Key Thinkers on Space and Place
(BOYLE, 2005). Esses dois projetos historiográficos são ilustrativos para reforçar o argumento
central deste trabalho, o de que os discursos da história da geografia são representados pela escolha
de diferentes sujeitos representativos da disciplina – geógrafos ou não – e também por diferentes
periodizações. Os historiadores e suas narrativas da história da disciplina estão estruturados,
1 Daqui em diante, optou-se por utilizar “GBS” como a forma abreviada do nome da série Geographers:
Biobibliographical Studies.
portanto, em padrões gerais; a última parte do texto, então, conterá a análise da série GBS com base
em uma descrição mais ampla da série e correlações de variáveis institucionais, nacionais e
cronológicas de figuras da publicação – biógrafos, biografados, editores, entre outros. Cabe reter,
ainda, que a análise do referido projeto historiográfico se desenvolverá em torno dos padrões gerais
e de suas mudanças segundo as variáveis escolhidas.
O CÂNONE E A ESCRITA DA HISTÓRIA DA GEOGRAFIA
Um fórum publicado no periódico Dialogues in Human Geography (2012) congrega autores
que, com o objetivo de apreciar o artigo On canonical geographies (KEIGHREN et al., 2012a),
discutem a noção de cânone na geografia e as implicações das diversas noções de canonicidade na
escrita da história da geografia. Sendo a história da geografia inerentemente seletiva, os pensadores,
conceitos, práticas e períodos valorizados que são lembrados em uma publicação caracterizam a
maneira como a identidade da disciplina é construída (JOHNSTON & SIDAWAY, 2015). A SÉRIE
GBS é uma narrativa da história da geografia por meio de ensaios biográficos e, portanto, possui
uma concepção de quais são seus fundamentos intelectuais; a escolha destes é fundamental para
definir a narrativa historiográfica resultante na publicação.
Ao tomar conhecimento de um debate acerca da canonicidade em geografia – ou seja, sobre
os modos como a disciplina é imaginada e sua história é narrada e sobre o papel de determinados
textos no desenrolar desta história –, não poderíamos deixar de considerá-lo em um artigo que tem o
objetivo de investigar os contornos gerais de uma publicação com quase quarenta anos de
existência. Segundo Keighren et al. (2012a), há um modo predominante de narrar a história da
geografia, que se constitui de mecanismos de diferenciação entre períodos relevantes e irrelevantes.
Da mesma forma que as discussões sobre canonicidade na narrativa do desenvolvimento da
geografia destacam a importância dos textos nesse processo, não poderíamos deixar de ressaltar a
necessidade de discutir como os nomes dos indivíduos considerados “geógrafos” são gravados na
cultura textual da disciplina. Certamente, as concepções de canonicidade podem ser excludentes e
ideologicamente manipuladoras, principalmente quando o cânone é um dispositivo para legitimar a
comunidade constitutiva, como ressaltou Keighren et al. (2012a) na seguinte assertiva:
comunidades designam cânones e cânones reproduzem comunidades.
O texto de Keighren et al. (2012a), que será a base da discussão, contém três partes
interligadas: i) diferenciação entre clássico e canônico; ii) como as concepções de canonicidade
importam na narrativa da história da geografia e na sua pedagogia; iii) e, finalmente, como o
engajamento com textos canônicos pode ser uma forma de beneficiar a consciência disciplinar.
Faremos uma brevíssima exposição de cada um deles e dos debates que ora nos interessam. Em
primeiro lugar, os autores fazem uma diferenciação simples entre clássico e canônico: os textos
clássicos são aqueles que têm papel central na disciplina e possuem um caráter intelectual ou
pedagógico independente de quando e onde foram escritos; já os textos canônicos, ainda que
centrais na formação da disciplina, perderam sua capacidade de fornecer contribuições para a
pesquisa geográfica do presente. Como existe a discussão dos textos canônicos, por que não haveria
também a discussão acerca de indivíduos canônicos? Essa é nossa inspiração para a análise da série
GBS.
Somente há legado textual se existir paralelamente um grupo de pensadores responsável por
ele, sendo que qualquer compêndio desses pensadores, consciente ou inconscientemente, produz
uma narrativa disciplinar. Há diferentes guias disciplinares em cada publicação que se propõe a
retomar o legado intelectual da geografia; os autores lembrados e o modo como estão organizados
produzem uma narrativa historiográfica. Muitas coleções, principalmente de estudos biográficos,
como o Key Thinkers on Space and Place (HUBBARD et al., 2004), são criticadas por suas
dimensões espaciais e temporais limitadas (KEIGHREN et al., 2012a). A SÉRIE GBS é uma
exceção, pois representa uma série variada em termos de nacionalidade, ocupação, posição na
disciplina, conceitos e procedimentos privilegiados pelos indivíduos contemplados na publicação.
Examinar uma publicação como a série GBS e as maneiras como a geografia representa a si
mesma e a sua história pode indicar transformações na história da publicação (variações editoriais e
institucionais) e na história das ciências (mudanças de perspectiva e abordagens de pesquisa). Não
pretendemos discutir as minúcias da distinção entre cânone e clássico; o que importa reter aqui é o
papel das narrativas fundadoras da disciplina na construção de uma visão própria do que a
caracteriza. O cânone geográfico é utilizado recorrentemente para definir fundadores de sub-
disciplinas e entendimentos de escopo, natureza e propósito da geografia (MAYHEW, 2012); tal
processo já foi denominado “canonização estratégica” (BARNES, 2015). Depreende-se disso que o
cânone não é apenas a delimitação de uma coletânea de textos, mas um conjunto de práticas
institucionais (MADDRELL, 2015). Em contraposição aos esforços historiográficos de geógrafos
no reconhecimento das práticas geográficas vinculadas às características intelectuais de sua época e
lugar, a veneração do cânone geográfico pode resultar em uma narrativa da disciplina que consiste
na derrubada do trabalho anterior, considerado sem valor, e na tentativa de estabelecer uma
identidade única da geografia (KWAN, 2004).
O argumento de Keighren et al. (2012a; 2012b) não é pela unificação da história da
geografia ou de seu currículo, mas por um engajamento e envolvimento crítico com o legado textual
geográfico – em outras palavras, como as ideias e práticas geográficas podem ser discutidas no
contexto de espaço e tempo que lhes é pertinente. Segundo os autores, esse envolvimento com os
textos canônicos pode nos levar à descoberta de redes esquecidas, com historiografias e modos de
narrar alternativamente a história da geografia. A metáfora utilizada é a da “comunidade
imaginada”; sendo assim, a geografia como comunidade imaginada possui histórias que variam ao
longo do tempo e nos diferentes lugares. Afinal, o cânone geográfico é moldado por públicos
distintos, que variam conforme as redes institucionais, nacionais e linguísticas. Um cânone
geográfico brasileiro não é o mesmo, certamente, que um britânico; no entanto, em outra escala de
apreensão, o cânone brasileiro da geografia urbana não é o mesmo que o da geografia cultural. A
lembrança e o esquecimento em geografia não são uma dimensão simples de sua historiografia –
pelo contrário, são um campo de disputa e contestação, sujeito a variadas narrativas.
Temos uma certa restrição quanto à afirmação de Agnew (2012) de que textos passados têm
pouca ou nenhuma contribuição para pensarmos os problemas atuais; esta noção de contribuição
direta, que se refere inclusive à definição de clássico que citamos acima, parece desencarnada em
termos históricos e geográficos. Somente podemos olhar para trás e avaliar os pensadores que se
tornaram centrais em determinadas condições da história da disciplina (HUBBARD, 2012). O
engajamento pedagógico e historiográfico com os cânones, nesse sentido, seria o estudo das obras
consideradas marcos da história da disciplina em um determinado contexto intelectual, histórico e
geográfico. Para algumas autoras (MADDRELL, 2012; MONK, 2012; MADDRELL, 2015), por
exemplo, o engajamento crítico diante da herança textual de geógrafas anglo-americanas é limitado
e indica um resultado da seletividade do cânone geográfico.
Os cânones não são dados a priori, mas são, como qualquer processo que identifica impacto
em uma disciplina, seletivos e indicativos de relações de poder (MADDRELL, 2012). A definição
de trabalhos de excelência do legado textual da disciplina deveria ser independente das
concordâncias teóricas, atitude que significa uma imparcialidade quase impossível, pois são essas
afinidades que modulam nosso julgamento de textos clássicos e indivíduos representativos. Disso
resulta o esquecimento de determinadas figuras, um elemento comum na historiografia de todas as
disciplinas (SCHEIN, 2012; WITHERS, 2012; MAYHEW, 2012) e não particular à geografia.
Da mesma maneira que o cânone pode ser definido por textos, ele também pode ser o
reconhecimento de práticas, noções e conceitos específicos do legado textual da geografia
(WITHERS, 2012), ou mesmo de indivíduos com algum impacto na disciplina, que é o critério da
série GBS. Não cabe aqui a tarefa de definir se a geografia é apegada aos modismos intelectuais das
ciências sociais ou se é particularmente desapegada do legado histórico da disciplina; busca-se
apenas investigar os padrões amplos da narrativa historiográfica da série GBS, que constitui uma
publicação necessariamente seletiva da memória disciplinar.
PARALELOS ENTRE BIOGRAFIA E HISTÓRIA DA GEOGRAFIA
Biografia e geografia podem se encontrar em uma variedade de circunstâncias. Neste
trabalho, a perspectiva que nos interessa diz respeito aos modos de construção e análise de projetos
historiográficos da geografia. Consideraremos o projeto historiográfico como um sistema intelectual
coerente de organização da história da geografia, geralmente configurado por uma instituição ou
respaldado por qualquer outro formato de comunicação do conhecimento científico – publicações
periódicas, livros, eventos, entre outros formatos. Vale destacar que estamos cientes da literatura
geográfica que trata da escrita biográfica em si na história da geografia, mas nosso objetivo é tratar
da organização de projetos historiográficos que têm como base a biografia. Em outras palavras, a
organização das biografias em um sistema nos interessa, nesta ocasião específica, mais do que a
escrita biográfica propriamente dita. Os exemplos discutidos serão duas publicações de caráter
diferenciado: o Oxford Dictionary of National Biography (2004-atualmente) e o livro Key Thinkers
on Space and Place (2004).
O exemplo do Oxford Dictionary of National Biography
Na literatura geográfica, desde meados dos anos 1990, as relações entre geógrafos, geografia
e publicações biográficas, ainda que timidamente, são colocadas em relevo. A primeira referência
direta trata-se dos estudos sobre a edição do dicionário que agrupa o registro biográfico da vida e
memória britânica (BAIGENT, 1993; BAIGENT, 2004; JOHNSTON, 2005), o New Dictionary of
National Biography, como fora chamado inicialmente tal empreendimento, ou Oxford Dictionary of
National Biography - ODNB, como é chamado o projeto biográfico atualmente. Baigent (1993)
praticamente conclama os geógrafos a contribuírem com o projeto do ODNB, que, organizado pela
Oxford University, com apoio da British Academy e da Oxford University Press, daria continuidade
ao antigo Dictionary of National Biography – DNB, publicado inicialmente entre 1885 e 1901 sob
edição de Leslie Stephen (1832-1904) e Sidney Lee (1859-1926).
Com a mudança do projeto editorial e do contexto da publicação do ODNB, não é nada
surpreendente que Baigent (1993; 2004) estivesse atenta às redefinições da história da nação entre o
DNB e o ODNB, além da repercussão dessa compreensão da vida nacional na seleção das figuras
que tiveram biografias publicadas no antigo dicionário. A autora define, portanto, uma característica
editorial, certamente coerente com seu contexto histórico, para identificar a exclusão e inclusão de
sujeitos biografados. Afinal, em um dicionário da biografia nacional, nada mais lógico do que
interpretar o padrão de inclusão de biografias segundo uma compreensão da ideia de nação da
publicação. Dois pontos nos interessam na discussão do remodelamento do DNB no final do século
XX, que culminou com a publicação do ODNB em 2004: o critério para inclusão das biografias e
como os geógrafos aparecem na publicação. Em primeiro lugar, vale ressaltar que o único critério
definitivo para inclusão no ODNB é que o biografado não esteja vivo. Diferentemente do DNB, o
ODNB pretendia incluir sistematicamente mulheres, até então sub-representadas na série
(BAIGENT, 1994), e pessoas que fizeram algo importante nas ilhas britânicas, mesmo não tendo
nascido nelas.
Uma das primeiras constatações nas observações de Baigent (1993) sobre os geógrafos
incluídos no DNB foi a necessidade de revisão ou reescrita de biografias para o ODNB. Afinal, nas
biografias de muitos geógrafos incluídos no antigo dicionário raramente aparecem suas
contribuições à geografia. Mesmo com uma definição ampla de geografia, abrangendo diversas
ocupações que integravam a geografia em outros contextos históricos, entre elas o naturalismo e a
engenharia, Baigent (1993) conclui que o número de figuras históricas que contribuíram com a
geografia no novo dicionário deveria ser maior. Caberia aos geógrafos, então, reavaliar a
contribuição de indivíduos para a vida da nação.
Em outro texto, no Journal of Historical Geography, Baigent (2004) discute a reescrita da
biografia nacional pelo ODNB. Enquanto o DNB apresentava um conceito de nação materializado
em biografias masculinas, metropolitanas e de celebridades, o ODNB produziria uma narrativa da
história nacional que se estenderia da metrópole para a periferia, do público ao privado, do
subalterno à celebridade. Para Baigent (2004), as características geográficas do antigo dicionário
dizem respeito a dois aspectos principais: a nação era compreendida como reflexo de Londres e as
histórias locais de figuras importantes para as ilhas britânicas eram excluídas; o privilégio atribuído
aos homens indicava que as realizações destes eram pertinentes à esfera pública e as das mulheres
pertenciam à esfera privada, outra distinção geográfica do projeto historiográfico. Esta análise de
Baigent (2004) representa a geografia da escrita biográfica do dicionário e se distingue daquela de
Johnston (2005), que investiga os ensaios biográficos de geógrafos.
Sem dúvida, como a geografia foi essencial na manutenção e expansão imperial britânica,
muitos membros de sociedades científicas e oficiais do exército apareciam no DNB. No entanto, sua
narrativa não é comprometida com o desenvolvimento disciplinar (BAIGENT, 2004), mas é uma
história contada para não-geógrafos – por mais que, agora, seja escrita também por geógrafos.
Dessa maneira, geógrafos podem desenvolver um modo de escrever sobre as geografias e histórias
de vida de geógrafos e não-geógrafos. Do mesmo jeito, outros podem escrever sobre geógrafos e
relativizar visões teleológicas da escrita biográfica, como se uma vida fosse destinada a um fim
profissional único.
Há todo um debate, acerca da relação entre as biografias do ODNB e a história do
pensamento, que se inicia na investigação de Johnston (2005) nos arquivos de biografias do referido
dicionário sobre os indivíduos pioneiros da formação da geografia acadêmica no Reino Unido,
passa por uma contundente crítica de Driver e Baigent (2007) e repousa em uma elucidativa tréplica
de Johnston (2007). Partiremos, portanto, de como os padrões gerais de biografias publicadas
oferecem uma base para a percepção desse tipo de material como estruturante de tipos de narrativa
da história da geografia. Em outras palavras, a ideia de conhecer e descrever o conteúdo de um
projeto historiográfico seria um passo possível para compreender como as escolhas “do que deve
ser lembrado” formatam imagens do que seria a geografia.
Para Johnston (2005), a geografia no Reino Unido, como disciplina acadêmica
fundamentalmente criada no século XX, tem uma trajetória intelectual e institucional dirigida por
um número reduzido de pioneiros, que eram geógrafos acadêmicos com uma considerável
influência sobre a pedagogia e a pesquisa geográfica nascentes. A constatação do autor é de que
quase nada tem sido feito para identificar, caracterizar e mapear as origens da geografia acadêmica,
com exceção da série GBS. Johnston (2005) faz uma revisão das entradas do ODNB sobre os
geógrafos que forneceram a base para a geografia acadêmica britânica e delineia, com a análise das
biografias incluídas e ausentes, um panorama do material disponível para historiadores da
disciplina. Sua síntese estatística das biografias do ODNB perpassa grandes categorias que também
serão executadas em nossa análise da série GBS: datas de morte e nascimento, ocupação,
instituições de origem, nacionalidade e ocupação dos sujeitos biografados.
O ODNB oferece a oportunidade de melhorar a representação da pioneira geografia
acadêmica do Reino Unido: a presença de Elizabeth Baigent (University of Oxford) com biografias
assinadas no ODNB persiste, mas ela não permanece a única contribuinte da geografia profissional,
já que o geógrafo Felix Driver (Royal Holloway/University of London) tem contribuído
frequentemente com entradas de geógrafos e exploradores. Se considerarmos as histórias
disciplinares como amálgamas de histórias menores e individuais, como o faz Johnston (2005), a
análise de um projeto historiográfico como a série GBS, que se estrutura a partir de ensaios
independentes, justifica uma apreciação panorâmica da série. Isso não quer dizer que as partes, ou
ensaios biográficos, estarão sempre submetidas a um todo imutável.
O artigo de Johnston (2005), apesar de ser exaltado como uma reflexão que contribui para
situar o lugar da escrita biográfica nas narrativas historiográficas do pensamento geográfico,
também foi questionado em aspectos fundamentais de sua estrutura argumentativa por Driver e
Baigent (2007). Uma das críticas é o fato de muitos pioneiros terem sido esquecidos porque sua
contribuição fundamental para a geografia não foi textual, pois, em um período de consolidação
acadêmica, as atividades de muitos indivíduos consistiam na organização pedagógica e
administrativa dos departamentos de geografia. Nesse sentido, muitas histórias da geografia hão de
ser contadas pelos geógrafos; um artigo de Johnston e Withers (2008), com o apoio da Royal
Geographical Society-Institute of British Geographers, sintetiza bem como fontes documentais de
instituições auxiliam no levantamento de contribuições individuais.
Em segundo lugar, Driver e Baigent (2007) criticam a interpretação da natureza do projeto
do ODNB por Johnston (2005) e vislumbrarm como consequência a redução da riqueza do
dicionário como fonte de pesquisa. Segundo os autores, a visão do que constitui a geografia como
campo para Johnston (2005) é essencialmente conservadora, pois privilegia grupos particulares e
desconsidera a contribuição de naturalistas, viajantes, exploradores, cartógrafos e topógrafos, cujos
esforços foram fundamentais para a constituição da geografia na vida intelectual britânica. O
resultado seria a marginalidade da contribuição de mulheres e sujeitos que não estavam vinculados
formalmente a nenhuma instituição responsável pela formação da geografia acadêmica britânica.
Supor que o caráter geográfico da publicação fosse somente aquele definido pelo corpo
editorial seria a maior fraqueza do trabalho de Johnston (2005), na concepção dos críticos. Afinal, a
preocupação do ODNB é com o caráter nacional da contribuição do sujeito biografado e não com a
geografia como disciplina acadêmica. Ademais, considerar a geografia acadêmica como uma
unidade rígida levantaria questões sobre suas relações com uma dimensão mais ampla do
conhecimento e prática geográficos. As contribuições dos indivíduos para a geografia dependeriam,
segundo o autor, dos setores e contextos institucionais nos quais esses sujeitos se posicionam. Um
ponto comum entre todos esses debatedores do ODNB é que tal dicionário é uma fonte de
investigações sobre o conhecimento geográfico, seja em sua forma acadêmica ou não.
O exemplo do Key Thinkers on Space and Place
Editada pelos geógrafos Phil Hubbard (University of Kent) e Rob Kitchin (Maynooth
University) e pela geógrafa Gill Valentine (University of Sheffield), outra publicação biográfica que
merece atenção é o livro Key Thinkers on Space and Place (2004)2. Esse livro também possui uma
segunda edição, que foi publicada em 2011, mas não conta com a geógrafa Gill Valentine no corpo
editorial. Toda a nossa discussão será pautada na primeira edição do livro, que apresenta cinquenta
e dois ensaios sobre figuras-chave da geografia e discorre sobre a biografia do autor no contexto
histórico, sua contribuição para o debate sobre espaço e lugar e, finalmente, a respeito das
controvérsias e contribuições de destaque do seu trabalho.
Publicou-se no periódico Environment and Planning, no ano de 2005, um conjunto de
ensaios de geógrafos reagindo à publicação do Key Thinkers, seguido de uma resposta dos autores
do livro aos comentários críticos. Segundo Boyle (2005), organizador dos ensaios críticos, revisitar
as biografias e os trabalhos da vida de geógrafos e teóricos sociais com sensibilidade geográfica, no
2 Daqui em diante, utilizaremos o termo Key Thinkers para abreviar o nome da publicação.
âmbito do ensino e pesquisa em história do pensamento geográfico, funciona como uma alternativa
às abordagens hegemônicas (paradigmáticas, contextualistas, temáticas, sub-disciplinares) da
história da geografia. A escrita biográfica, portanto, abriria novas possibilidades de narrar histórias
e filosofias da geografia, que não demandariam conceitos amplos como paradigmas, tradições,
programas ou escolas de pensamento.
Peet (2005) discute os aspectos biográfico e paradigmático e problematiza a maneira como
os autores do livro levam a cabo a publicação. Em primeiro lugar, tendo em conta que os autores do
Key Thinkers consideram o desenrolar da vida do sujeito como fundamental para o
desenvolvimento intelectual, Peet (2005) também reconhece a pertinência das influências do lugar e
da experiência no desenvolvimento do pensamento, mas argumenta que a análise das trajetórias
deveria se estruturar de maneira muito mais sutil do que a partir da mera constatação de que
pensadores são produzidos pelo contexto intelectual e político de sua época. Diríamos que, muito
pelo contrário, a biografia contextualiza muitas das aparentes causalidades do desenvolvimento
intelectual, inclusive aquelas políticas e intelectuais.
O elemento mais destacado da publicação é o resultado da seleção dos cinquenta e dois
pensadores com contribuições à geografia humana: homens, brancos e anglo-americanos. Tal
critério não é editorial, esse é um padrão identificado pelos comentaristas do livro no conjunto de
ensaios supracitado (BOYLE, 2005; SAMERS, 2005; PEET, 2005; MINCA, 2005; SIMONSEN,
2005; GRAHAM, 2005). Para alguns, esse modo de inclusão de autores é arbitrário (PEET, 2005) e
não possui uma justificativa intelectual coerente, pois os autores dos comentários justificam a
abordagem biográfica em contraposição a uma caricatura das abordagens paradigmáticas,
considerada como se cada autor se enquadrasse em um paradigma ou escola de pensamento. Kirsten
Simonsen (2005), por sua vez, alerta para que não compreendamos a história e filosofia geográficas
como questões impulsionadas por indivíduos.
Para outros, os editores do Key Thinkers apenas poderiam assumir mais claramente o
contexto político-cultural da publicação, que são as escolhas não declaradas que fazem a conexão
entre poder e conhecimento nessa publicação específica (MINCA, 2005) e que resultam no
esquecimento da tradição geográfica europeia, da geografia anglo-americana anterior ao período da
Segunda Guerra Mundial e da periferia intelectual. Parece quase consensual entre os críticos que a
lista que embasa o livro é resultado de uma narrativa particular, posicionada e excludente
(PURCELL, 2005), como seriam qualquer outra lista e a narrativa que segundo ela tomasse forma.
O que se torna problemático é a apresentação editorial do livro: enquadrá-lo como guia abrangente
e não deixar claras sua posicionalidade e limitação.
Em termos pedagógicos, os críticos parecem atribuir ao caráter condensado dos ensaios seus
limites e suas possibilidades (PEET, 2005; SAMERS, 2005): ao mesmo tempo em que podem ser
fontes resumidas de pensadores fundamentais, seus trabalhos e seu contexto histórico, também
poderiam assumir o papel de facilitadores e distanciar os alunos da leitura original dos autores
tratados nos volumes. Essa parece ser uma dualidade inerente ao caráter enciclopédico do Key
Thinkers. Segundo os autores do Key Thinkers, inclusive, um dos principais objetivos do livro era
fornecer um guia pedagógico para alunos de graduação trafegarem com maior segurança pelos
“ismos” de uma história paradigmática da geografia (HUBBARD et al., 2005). Algumas críticas ao
encadeamento do livro dão tom ao termo “projeto historiográfico” que tantas vezes utilizamos até
aqui. Segundo os críticos do Key Thinkers, as menções a diferentes entradas do livro funcionam
como uma estratégia comercial para a publicação (PEET, 2005) e o resultado historiográfico é uma
“genealogia áspera de ideias” (GRAHAM, 2005), termo que se refere a uma intertextualidade
forçada entre os diferentes ensaios para dar ordem à narrativa do livro.
Ainda nesse sentido, segundo Purcell (2005), a narrativa do livro é teleológica, simplista e
leva inevitavelmente a um percurso que se inicia na geografia quantitativa, passa pela crítica
marxista e humanista e, em seguida, alcança as abordagens pós-estruturalistas. Cada pensador-
chave, portanto, teria tomado uma posição em uma das viradas (turns) da ciência até chegar à
última combinação entre pós-estruturalismo, pós-colonialismo ou pós-modernidade. Numa
perspectiva historiográfica de vencedores, segundo o autor, a inclusão e exclusão de autores seria
informada por essa narrativa. Por mais que os autores do Key Thinkers não concordem com esse
aspecto da análise de Purcell (2005), é importante ressaltar que todo projeto historiográfico possui
uma imagem mais ou menos coerente, dando contornos a uma visão da história da geografia.
A SÉRIE GEOGRAPHERS
A série Geographers: Biobibliographical Studies é uma publicação organizada pela
Comissão sobre História do Pensamento Geográfico da União Geográfica Internacional (UGI)
desde 1977. Tal comissão, nomeada em Nova Déli no ano de 1968, reuniu-se em Paris nos dois
anos seguintes e, sob orientação do geógrafo francês Philippe Pinchemel, até então presidente da
UGI, foram solicitadas listas de geógrafos essenciais da história da geografia aos membros
correspondentes da comissão. No ano de 1969, a figura da “biobibliografia” foi proposta pela
primeira vez e, segundo os editores de parte da história da publicação, a biobibliografia funcionaria
como uma engrenagem da vida científica do indivíduo com sua contribuição à ciência,
principalmente avaliada segundo as publicações do sujeito biografado (ARMSTRONG &
MARTIN, 2000)3.
Considerando até o volume 35 da série, e tendo em conta que nos anos de 1989, 1990, 1997
e 1999 nenhum volume foi publicado, a publicação congrega 459 ensaios biobibliográficos de
indivíduos e de grupos de diversas nacionalidades, períodos históricos, práticas geográficas e
posições institucionais. As seções dos ensaios indicam a dimensão temporal cronológica da
biografia e, durante um longo tempo, permaneceram praticamente sem alteração: 1) “Educação,
vida e obra”; 2) “Ideias científicas e pensamento geográfico”; 3) “Influências e disseminação de
ideias”; 4) Tabela cronológica de publicações e gráfico de grandes eventos da vida do sujeito.
Segundo Armstrong e Martin (2000), as realizações científicas são o resultado cumulativo do
trabalho de um número imenso de autores desconhecidos na cadeia do conhecimento ao longo do
tempo.
Os ensaios introdutórios de cada volume são representativos do modo como as partes, ou os
ensaios individuais, estão ligados uns aos outros. De forma mais ou menos direta, a série GBS tem
uma geografia e nem sempre é moldada por circunstâncias de própria escolha (JOHNSTON, 2009),
fator que reitera a importância da análise da série. Um aspecto da série que é digno de nota e
também foi ressaltado por Finnegan (2013) foi uma modificação editorial das seções anteriormente
citadas da estrutura do ensaio no volume 29. Está certo que somente dois ensaios foram
consideravelmente modificados, a biobibliografia de Denis Cosgrove (1948-2008) e a de Allan Pred
(1936-2007), mas esse afrouxamento do formato textual liga os atuais editores (Charles
Withers/University of Edinburgh e Hayden Lorimer/University of Glasgow) às tendências atuais da
historiografia da geografia. Dessa maneira, a divisão anteriormente citada privilegia um padrão
temporal da biografia do autor (educação básica, pensamento científico e geográfico maduro e
3 Johnston (2009), Barnes (2010) e Sidaway (2010) parecem concordar com esta definição do estudo biobibliográfico.
No entanto, segundo os autores, a dificuldade de integrar a vida do indivíduo ao contexto mais amplo pode resultar em
uma hagiografia, ou seja, uma biografia excessivamente elogiosa e sem valor histórico e filosófico.
disseminação de suas ideias, caminho que começa no nascimento e termina na morte) e, ao menos
em dois ensaios do volume 29, a divisão das seções leva em consideração também o padrão espacial
da vida do autor (os departamentos, os lugares de vida e os seus deslocamentos). As histórias de
vida são, cada vez mais, também geografias de vida.
Gráfico 1 - Porcentagem de volumes editados por composição editorial e presidência da UGI
Fonte: Autoria própria.
Seis foram as composições editoriais da série GBS até o ano de 2016: 1) Thomas Walter
Freeman (University of Manchester), Marguerita Oughton (University of Manchester) e Philippe
Pinchemel (Universitè de Paris), no ano de 1977; 2) Thomas Walter Freeman e Philippe Pinchemel,
entre 1978 e 1980; 3) Thomas Walter Freeman, entre 1981 e 1988; 4) Geoffrey Martin (Southern
Connecticut State University), entre 1991 e 1995; 5) Geoffrey Martin e Patrick Armstrong
(University of Western Australia), entre 1996 e 2006; 6) Charles Withers e Hayden Lorimer, de
2007 a atualmente. De todas as composições editoriais (Gráfico 1), a última foi aquela que mais
organizou volumes (em termos percentuais, e respectivamente, os valores correspondem a: 2,86;
8,57; 22,86; 11,43; 25,71; 28,57); no entanto, o maior número de ensaios está concentrado nas três
primeiras composições, o que se deve à variação na quantidade de textos publicados por volume –
até a terceira composição, a média de ensaios era em torno de 20 por volume, mas, da quarta
composição até o corpo editorial atual, tal número raramente passa de 10.
Com o intuito de traçar uma conexão institucional entre os editores da série GBS e a
presidência da UGI, buscou-se investigar a existência de uma associação entre a mudança da
cadeira principal da UGI e a variação das composições editoriais da série. Praticamente toda
mudança de presidência da UGI corresponde, em aproximadamente dois anos, a uma modificação
na estrutura editorial principal da série. Não há necessariamente a troca dos editores, mas ao menos
uma inserção ou retirada de editor ocorre. Entre 1977 e 2016, cinco foram os presidentes da UGI:
Philippe Pinchemel (1977-1980), David Hooson (1981-1987), Keiichi Takeuchi (1988-1995),
Vincent Berdoulay (1996-2008) e Jacobo García-Álvarez (2009-2016). Os contextos institucionais,
nacionais, linguísticos e históricos são aspectos imprescindíveis na definição dos cânones
disciplinares e esse panorama pode indicar padrões da série GBS; como em qualquer processo de
canonização, as histórias mudam ao longo do tempo e essas variáveis indicam caminhos para a
análise de tais variações.
Tendo como referência o universo de 459 indivíduos, aproximadamente 96,5% dos ensaios
biobibliográficos da série GBS são sobre pensadores do sexo masculino e, dos 3,5% referentes aos
ensaios a respeito de mulheres, exatos 50% foram publicados sob organização do corpo editorial
atual. Cabe registrar, segundo esse dado, que Charles Withers e Hayden Lorimer (2007) visavam a
correção da sub-representação das mulheres nos volumes da série quando assumiram a chefia
editorial da GBS. Esse aspecto corrobora a análise, empreendida por Maddrell (2012), da sub-
representação das mulheres no cânone geográfico; afinal, não somente a ausência marca o lugar dos
trabalhos de geógrafas na história disciplinar, mas também a falta do envolvimento crítico que é
fundamental para perpetuar a excelência do passado textual. Apesar de ter organizado o maior
número de volumes, o corpo editorial atual publicou apenas 79 ensaios, dos 459 que totalizam os 35
volumes, e a densidade de mulheres biografadas é a maior apresentada na série.
Nessa mesma linha, o número de biobibliógrafos do sexo feminino que contribuem com
ensaios para a série GBS difere substancialmente daquele de mulheres biografadas. Cerca de 15%
de ensaios da série são de autoria ou coautoria de pesquisadoras. Se cada tempo e lugar possuem
hierarquias de gênero distintas, e o cânone disciplinar é fruto de determinadas preferências sociais e
temporais (MADDRELL, 2015), não nos surpreende que o número de mulheres entre os
contribuintes de um projeto historiográfico do final do século XX seja superior àquele das
pensadoras representadas nos ensaios. A canonização, nesse caso, como um conjunto de práticas
institucionais e epistemológicas, apresenta como reflexo a manutenção de processos sociais de
distinção intelectual. O interesse em olhar para o passado é, também, informado pelo contexto do
período em que olhamos, pelos nossos próprios processos de valorização e envolvimento com o
trabalho anterior.
Em termos históricos, a série GBS possui apenas 0,6% dos seus ensaios destinados a
pensadores da Antiguidade e o restante está distribuído entre pensadores dos séculos IX e XX. No
entanto, ainda que se distribua por esse amplo espectro temporal, somente os séculos XIX e XX
congregam pouco mais de 87% de todos os ensaios da série. Como nem sempre o período de vida
dos autores está incluso em apenas um século, e diante da impossibilidade de analisar a obra magna
de mais de 450 pensadores para definir o século representativo do indivíduo, adotou-se como
critério a definição do século no qual o pensador viveu mais de metade da sua vida. Dessa maneira,
o século XXI não se configura como uma categoria, por mais que pensadores tenham falecido neste
século. Como os séculos XIX e XX são os mais representativos, outro critério foi utilizado para
refinar ainda mais o levantamento dos dados: 1) a difusão das cátedras de geografia na Europa a
partir de 1870 (CAPEL, 1981) para seccionar o século XIX; 2) o pós-guerra e as tendências da
geografia a partir dos anos de 1950 para classificar os pensadores do século XX.
Tabela 1 - Nacionalidade dos biografados nos ensaios da série GBS (Total absoluto: 459)
NACIONALIDADE VALOR NACIONALIDADE VALOR NACIONALIDADE VALOR
Alemão 9,80% Estadunidense 15,25% Mexicano 1,09%
Árabe 0,65% Estoniano 0,22% Neozelandês 0,65%
Australiano 1,74% Finlandês 0,87% Norueguês 0,44%
Áustria 1,09% Francês 12,64% Persa 0,44%
Belga 0,22% Galês 1,96% Polonês 2,61%
Brasileiro 0,22% Grego 0,22% Português 0,44%
Canadense 0,44% Holandês 0,65% Prussiano 0,87%
Chinês 1,31% Húngaro 0,87% Romeno 1,96%
Coreano 0,44% Indiano 0,65% Russo 6,54%
Cubano 0,22% Inglês 17,21% Sérvio 0,87%
Dinamarquês 0,65% Irlandês 1,31% Sueco 0,65%
Escocês 6,10% Italiano 1,74% Suíço 1,31%
Esloveno 0,44% Japonês 1,96% Tailandês 0,22%
Espanhol 2,83% Malaio 0,22% Total Geral 100,00%
Fonte: Autoria própria.
Conforme dito anteriormente, a série GBS publica ensaios sobre pensadores de todos os
continentes e de diversas nacionalidades (Tabela 1). Em inúmeros editoriais, em artigo publicado
por Armstrong e Martin (2000) e em e-mail que enviamos para Charles Withers, um dos atuais
editores, um problema de linguagem é destacado e reflete nos números da publicação: o envio de
ensaios biobibliográficos por autores da América do Sul e da Ásia parece não ser representativo.
Há, nesse caso, uma questão fundamental que surge: quais seriam os motivos que afastariam
esses dois grandes grupos – asiáticos e sul-americanos – da formação do cânone geográfico? Não
temos aqui a pretensão de responder a tal questão, mas, se a preocupação com a herança intelectual
surge concomitantemente às críticas da prática geográfica marcada pela adesão aos modismos
intelectuais, cabe discutir as práticas (ou ausência delas) de engajamento intelectual com a herança
textual. Os grupos mais representativos de pensadores da série GBS são ingleses (17,21%),
estadunidenses (15,25%), franceses (12,64%), alemães (9,8%), russos (6,54%) e escoceses (6,10%).
A estratégia organizacional da série GBS está vinculada à consolidação da Comissão sobre
História do Pensamento Geográfico na UGI. O então presidente da UGI, Philippe Pinchemel,
solicitou uma lista de geógrafos notáveis aos membros das comissões nacionais e, por esse motivo,
a maior variação de nacionalidades reside nos volumes iniciais. Toda a centralidade da Rússia, com
quase 7% do total de ensaios, foi alcançada nesse intento editorial de abarcar o maior número
possível nacionalidades e períodos históricos.
Gráfico 2 – Séculos dos biografados pela série por composição editorial
Fonte: Autoria própria.
Conforme editorial do volume 11, Thomas Walter Freeman (1987) assevera que a alocação
dos ensaios biobibliográficos em determinadas nacionalidades é discutível, pois, além da
mobilidade interinstitucional dos pensadores em sua nação, o geógrafo pode trabalhar distante de
sua terra natal e diversas são as circunstâncias para a escolha deliberada de outras áreas de estudo.
Nossa escolha neste trabalho é a nacionalidade do pensador, já que qualquer outro critério
demandaria uma análise das 459 biobibliografias para manter um padrão coerente de categorização.
As trajetórias de vida são demasiadamente complexas para serem atendidas por tal critério, mas, na
busca por padrões mais amplos, este pareceu ser o critério mais fixo para a amplitude da base de
dados. A própria organização da trajetória de vida pelo biógrafo, segundo Withers e Lorimer
(2014), possui natureza multifacetada e representa uma composição relacional entre a vida do
sujeito e o modo como tal vida é organizada por um estudioso.
Segundo os dados apresentados no Gráfico 1, a mudança na composição editorial da série
GBS é praticamente paralela às variações de presidência da UGI. Sob essa ótica, questionamos qual
a relação entre a variação dos períodos históricos dos ensaios biobibliográficos e os seis
supracitados grupos editoriais. Os séculos XIX e XX são aqueles que acumulam a maior
porcentagem de ensaios (Gráfico 2); os demais séculos, levando em consideração cada composição
editorial (Gráfico 3) e mesmo somados, não alcançam 20%. A descrição dos dados oferece
indicativos de que a memória valorizada como legado identitário da disciplina na série GBS, com o
desenvolvimento da publicação em direção ao século XXI, é relativa à valorização do século XX e
da geografia institucionalmente formatada pelas universidades.
Gráfico 3 – Séculos abrangidos ao longo dos anos da série
Fonte: Autoria própria.
A redução do século XIX em contraposição à ampliação do século XX nas duas últimas
composições editoriais é elucidativa desse distanciamento entre a geografia “que se institucionaliza
na universidade” e a “geografia institucionalizada e presente nos debates mais amplos das
humanidades na universidade”. Como na discussão sobre o cânone geográfico, questionamo-nos se
esse privilégio à contemporaneidade corresponde a uma prática de esquecimento da herança
intelectual geográfica que não se resume ao rótulo geografia, mas a um conjunto de práticas e
abordagens de análise da ordem espacial do mundo.
Segundo Capel (1981), nos anos de 1870, ocorreu uma difusão considerável das cátedras de
geografia da Europa, particularmente da Alemanha. Além disso, houve o desenvolvimento ou
fortalecimento dos grupos profissionais e sociedades científicas. O caráter científico da geografia
estava em questão, os debates sobre seu objeto afloravam e seus limites em relação às outras
disciplinas – tanto físicas quanto das ciências sociais – eram constantemente remodelados. Os
pensadores do século XIX da série GBS foram subdivididos em sujeitos com contribuições prévias
e posteriores à difusão das cátedras de geografia na Europa (Gráfico 4); os pensadores que tivessem
vivido mais de metade de sua trajetória no século XIX foram classificados como figuras da
institucionalização universitária ou não da disciplina.
Dessa maneira, não apenas geógrafos figuravam nos ensaios, mas também os cartógrafos,
historiadores, curadores profissionais e bibliotecários que se destacaram para a inclusão no conjunto
privilegiado de ciências da universidade. O mundo não se abria à descoberta, colonização, difusão
comercial e industrial e ao fortalecimento de impérios apenas para geógrafos de formação. Todos os
geógrafos são cidadãos, resultados de variadas trajetórias de vida e das circunstâncias sociais e
econômicas que emolduram a geografia do século XIX – uma geografia estabelecida e fortalecida
no contexto das universidades, com o apoio das sociedades científicas. Até que ponto as condições
de tempo e lugar influenciariam o contexto de suas tarefas? Essa é uma pergunta colocada no final
dos anos 1980 por Thomas Freeman, ainda que seja proclamada atualmente como base do caráter
espacial dos science studies.
Gráfico 4 – Divisão dos ensaios do século XIX (antes e pós-difusão das cátedras de geografia europeias - 1870) por
composição editorial
Fonte: Autoria própria.
O objetivo da série GBS não é louvar indivíduos ou grupos, mas compreender o
desenvolvimento do campo (MARTIN & ARMSTRONG, 2000). Há que se notar um padrão que
não se desenrola a partir da superação dos fundadores institucionais e possui claro balizamento
histórico: 1) na ênfase ao período pós-difusão catedrática da geografia europeia e norte-americana
na passagem do século XIX, em detrimento da geografia da Antiguidade ou da Renascença; 2) e
também na proliferação dos ensaios sobre biobibliográficos sobre indivíduos do século XX desde as
publicações de meados da primeira década do século XXI.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um belo ensaio introdutório encabeça o primeiro volume da série GBS. Escrito pelo
geógrafo francês Philippe Pinchemel (1977), tal ensaio é o exemplo claro de um projeto
historiográfico canônico. Em outras palavras, a identidade negociada da geografia na série não é
restritiva, apesar de possuir uma narrativa que se delineia no levantamento de dados. Os resultados
e alguns procedimentos adotados ocasionam uma importante ressalva nesse momento do texto: a
variedade de nacionalidades no início da série, ao contrário de sua constituição atual, reside, ao
menos em parte, na formatação institucional da UGI no período da formação da Comissão sobre
História do Pensamento Geográfico. A série apresenta pensadores que contribuíram para o ponto de
vista geográfico dos fenômenos, para a análise da variedade espacial.
Para distintos modos de narrar a história da geografia, há diversas formas de periodizá-la.
Isso não é diferente na série GBS e, por esse motivo, fizemos o levantamento dos períodos
históricos privilegiados pela publicação. A ênfase não é na geografia da Antiguidade, tampouco na
geografia da Renascença, esta se configura uma narrativa estruturada a partir da combinação entre
as contribuições das sociedades científicas e geográficas e a institucionalização da geografia na
universidade no século XIX. Finalmente, chegando ao ponto atual da série, a história da geografia é
composta grandemente pela geografia universitária do século XX. Cria-se, portanto, uma imagem
fundamental da formação da disciplina que congrega pesquisadores em torno de um conjunto de
práticas, como o trabalho de campo e a exploração.
O discurso a respeito daquilo que é a geografia e quais são os seus partícipes varia ao longo
do tempo e os aspectos institucionais/editoriais, as periodizações e as características linguísticas
podem indicar como o modo de se inspirar e organizar as fontes disciplinares resulta em diferentes
figuras canônicas da disciplina. Não nos referimos aqui ao cânone como aquela noção de que há
uma comunidade subserviente a uma única forma de pensar. Sem dúvida, as mesmas figuras,
organizadas de maneira distinta, poderiam exibir padrões narrativos contraditórios àqueles da GBS.
Analisar as condições de canonização de indivíduos pode fornecer padrões históricos sobre os
modos de contar a história do pensamento geográfico. O cânone disciplinar delimita fronteiras cuja
rigidez dependerá da montagem a partir da qual determinados indivíduos e características são
selecionados para representar um grupo e sua genealogia e apresentar sua tradição.
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