0. por André Gravatá1. _______________________________2. uma das reações mais comuns diante do desconhecido.3. entrada de ar nos pulmões e de entusiasmo nas ideias.4. vai além dos limites.5. ato de quem não se cansa de buscar o novo.6. trabalhar junto.7. alcateia, bando, cardume, multidão. 8. conversação com trocas.9. impulso gerado por colisão, efeito de determinada ação.10. liberdade.11._______________________________
“E quando o vento folheava silenciosamente tais páginas, levando as cores e as figuras, pelas colunas do seu texto escorria um frêmito, soltando do meio das letras cotovias e andorinhas. Assim revoavam, dissipando-se, página após página, suas cores”, diz o personagem principal do livro sanatório, escrito pelo polonês bruno schulz, ao falar do livro depositado sobre a escrivaninha do seu pai, obra que tanto o encantava. Quero que a cada página deste livro, leitor, cotovias pulem no seu rosto. O que falta nos jornais e nas revistas, esperamos exercitar neste livro: uma interação mais profunda, lúdica, dialógica. Não é possível explicar um tema como arte participativa, a não ser que ele seja experimentado minimamente; por isso, este trabalho pede para ser transgredido.
10
6
9
8
7
5
4
3
2
1
11
Pontifícia Universidade Católica PUC-SPTrabalho de Conclusão do Curso de Comunicação
Social com Habilitação em Jornalismo2011
EXPEDIENTE
André Gravatá autor do livro
Elidia Novaes revisora
Marcos Cripa professor-orientador
Valdir Mengardo professor-orientador
Nina Meirelles diagramadora
Foto da capa reprodução de estampa de Monica NadorA todos que me ajudaram a transformar
uma ideia em livro – e a vida em arte: obriga-
do, mãe e pai; obrigado, Cripa, Valdir, Rejane
e PUC; obrigado, Shakespeare, Cage e Huxley;
obrigado, Elidia, Nina e Luis; e obrigado ao sol,
pois sem luz não teria como escrever nada.Este trabalho foi licenciado com uma Licença Creative Commons.Você tem a liberdade de compartilhar (copiar, distribuir e transmitir)a obra. [A única condição é que você deve creditar a obra.]
“Eu não sei se a arte nos deve salvar, mas tenho
a certeza de que pode conduzir ao melhor que há
em nós, para que não nos desperdicemos na vida”
Valter Hugo Mãe, escritor português
“Você só transforma a sociedade quando
transforma valores culturais”
Mauro Pinto de Castro, professor de geografia do Jardim Miriam
suMáRIo
INTroDução-DEsVIo sobre as cotovias que logo pularão......................
ATo I Arte participativa e história ................................
ATo II Arte participativa e contemporaneidade .............
ATo III Arte participativa e educação .............................
ATo IV Arte participativa e transformação social.............
ATo V Nunca haverá uma obra-prima wiki? ..................
BIBlIogrAfIA ..................................................
13
25
43
57
101
123
127
13
INTRodução-dEsVIo
sobRE As CoToVIAs quE loGo PulARão
A ideia para este livro surgiu de uma palestra à qual
não compareci ao vivo, só virtualmente. Até o final do ano
passado, não entendia nada sobre arte participativa, muito
menos os impactos que esse tipo de manifestação estava cau-
sando mundo afora. Em frente à tela do computador, conheci
o assunto por alguns vídeos de uma palestra de Claire Bishop
– historiadora de arte e crítica, professora do Centro de Gra-
duação Cuny, em Nova York, e professora visitante do Royal
College of Art, em Londres.
Os artistas que desenvolvem trabalhos participativos cos-
tumam ter em mente a criação de obras que só evoluem a
partir de contribuições coletivas, do engajamento do público
na produção do trabalho. Desde o final do século 18, artistas
14 15
formaram grupos que lamentavam o distanciamento entre
arte e público. A partir da segunda metade do último século,
devido a invenções como a internet e fenômenos como a
globalização, a “co-laboratividade” na arte se delineou com
mais intensidade.
Quando me decidi pelo tema, convicto de que iria pesqui-
sar a arte participativa a partir de exemplos da prática, con-
sultei diversas pessoas – desde artistas como Mônica Nador,
Graziela Kunsch, Rejane Cantoni e Jorge Menna Barreto, até
teóricos como Agnaldo Farias e Nelson Brissac Peixoto. Algu-
mas conversas foram curtas, outras longas, algumas duram
até hoje – e espero que continuem por muito tempo. E este
trabalho surgiu após inúmeros cafés nos lugares mais varia-
dos, da periferia ao centro, da universidade ao museu.
‘QUEM PENSA MAiS PROFUNDAMENTE SABE QUE ESTá SEM-
PRE ERRADO, NãO iMPORTA COMO PROCEDA E JULGUE’?1
Mais do que uma introdução, este começo é o iní-
cio de um desvio. Na sua tese de doutorado2, a artista
Rebeca Lenize Stumm cita uma frase do filósofo francês Giles
Deleuze que desmancha a ilusão em relação a aberturas. Ali,
Deleuze aborda um pensamento do filósofo alemão Friedrich
Nietzsche: “nunca é no início (...) que alguma coisa pode re-
velar sua essência, mas, o que era desde o início, ela só pode
1 NiETZSCHE, 2008, p.271
2 STUMM, 2011, p. XXX.
revelá-lo num desvio de sua evolução”. Este livro pretende
ser um desvio desde o começo.
Não é possível explicar um tema como arte participativa,
a não ser que ele seja experimentado minimamente; por isso,
este trabalho pede para ser transgredido. “E quando o vento
folheava silenciosamente tais páginas, levando as cores e as
figuras, pelas colunas do seu texto escorria um frêmito, sol-
tando do meio das letras cotovias e andorinhas. Assim revo-
avam, dissipando-se, página após página, suas cores”, diz o
personagem principal do livro Sanatório, escrito pelo polonês
Bruno Schulz, ao falar do livro depositado sobre a escrivani-
nha do seu pai, obra que tanto o encantava. Quero que a
cada página deste livro, leitor, cotovias pulem no seu rosto. O
que falta nos jornais e nas revistas, esperamos exercitar neste
livro: uma interação mais profunda, lúdica, dialógica.
Em sua tese de doutorado, Ricardo Basbaum cita o pin-
tor alemão Philipp Otto Runge3, o qual afirma que a relação
do ser humano com o seu meio já é participativa por exce-
lência. “Do mesmo modo que os filósofos concluíram que se
imagina tudo a partir de si mesmo, também vemos ou deve-
mos ver em cada flor o espírito que o homem ali colocou, e
é assim que a paisagem irá se desenvolver, como se todas as
flores e animais estivessem apenas presentes pela metade,
a menos que o homem faça a sua parte. Assim, o homem
força seus sentimentos e sensações de encontro aos objetos
a sua volta e, através disso, tudo adquire sentido e uma lin-
guagem”, relata o pintor.
3 referência Basbawn
16
Quando discuto a participação na arte, falo não só do
que Otto Runge disse, mas principalmente de um passo mais
além: de um tipo de arte que instiga a percepção do indiví-
duo como sujeito no mundo.
COMO UM LiVRO DE ARTE
PARTiCiPATiVA NãO DEVERiA SER?
Um casal pede divórcio. Tanto o marido quanto a esposa
querem a guarda do filho. A família do esposo pressiona a
mãe: se você ficar com o menino, fecharemos a conta com
dinheiro acumulado para o futuro dele. A mãe vai parar no
fundo do poço – e abandona a custódia do bebê. “Ela é
uma boa mãe?”, pergunta o escritor norte-americano David
Foster Wallace, num dos seus contos. A resposta fica a cargo
do leitor.
Quando o leitor tenta formular uma resposta a uma per-
gunta assim, ele está participando mais ativamente da cons-
trução do significado da história. Foi isso que Foster Wallace
quis propor: quebrar a “quarta parede textual”4 e indagar di-
retamente ao leitor, anulando o véu de isolamento em torno
do escritor.
A arte participativa vai ao encontro das pretensões de
Wallace. Ela se desenvolve em processos abertos, que às
4 David Foster Wallace fala da “quarta parede textual” com referência ao concei-to de “quarta parede” do poeta e diretor de teatro alemão Bertolt Brecht (1898-1956). Para Brecht, existia no teatro convencional uma parede entre o ator e a plateia, que deveria ser quebrada por meio da aproximação entre ambos.
COMO UM LiVRO DE
ARTE PARTiCiPATiVA DEVERiA SER?NãO
18 19
vezes até ofuscam a fronteira entre artista e público. No li-
mite, a arte participativa quebra todas as paredes entre os
envolvidos no trabalho artístico. Todos viram artistas.
COMO SERiA UMA TROCA BASEADA NA LiBERDADE? 5
Quando Pablo Neruda escreveu O Livro das Perguntas,
em 1974, criou mais do que uma obra com interrogações.
A cada página, o leitor é estimulado a participar do livro não
apenas como aquele que extrai significados a partir do que
está escrito, mas também como co-autor das mini-narrativas
sugeridas com os questionamentos.
Nesse livro, as perguntas são feitas e os leitores respon-
dem ou não, à vontade. O importante é que a obra chama o
leitor a partir da interrogação. “Qual é o pássaro amarelo que
enche o ninho de limões?”, pergunta Neruda. Levando isso
em conta, mais do que respostas, um livro sobre arte partici-
pativa talvez devesse formular perguntas para que os leitores
transponham os limites das reflexões propostas.
Espalhar perguntas pelo texto foi uma maneira que en-
contrei para instigá-lo a participar de um diálogo que trans-
borda do papel – no mínimo, haverá mais questionamentos
ao término da leitura. Aliás, muitas das perguntas encontra-
das não terão resposta. Algumas discordarão do que foi dito.
Outras apenas suscitarão novos caminhos para discussão.
5 Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, 2009, p. 38.
Mais do que transmissão de informações, há um jogo entre
leitor e texto.
OS LiVROS TêM SOM?
O músico John Cage não fazia perguntas em suas com-
posições – em compensação, sempre provocava questiona-
mentos. O que Walter Benjamin disse em relação ao com-
positor alemão Hanns Eisler também vale para Cage: ambos
almejavam a “eliminação da oposição entre intérprete e ou-
vinte”. Em 1952, Cage lançou a música 4’33’’. Silenciosa.
Eram 4 minutos e 33 segundos de puro silêncio – sempre
interrompidos, é claro, pelo som das tossidas, espirros e mo-
vimentos do público.
A música se divide em três atos, iniciados e finalizados
em silêncio. Ao ser apresentada em grandes teatros, a com-
posição 4’33’’ provocava uma diluição entre palco e plateia,
afinal, até o barulho das pessoas nas cadeiras se tornava parte
da composição – de certa forma, o público se tornava com-
positor sem nem perceber. Como não quero escrever um livro
com páginas em branco, farei o contrário de Cage e, em vez
do silêncio que convida à participação, convidarei o público a
participar desta obra por meio do “som e fúria” gerados na
profusão de palavras. Em homenagem a Cage, o livro será
dividido em atos, numa composição caoticamente planeja-
20
da. A cada parte, perguntas intercalarão parágrafos e grupos
de parágrafos, às vezes servindo como subtítulos, às vezes
apenas como intervenções literárias. Convido o leitor a tentar
respondê-las, seja anotando reflexões no livro, seja ponderan-
do respostas em silêncio, seja levando os questionamentos a
uma conversa entre amigos – ou inimigos, quem sabe?
A ARTE SERVE PARA QUê?
“Na arte participativa, busca-se a coautoria dos atos”,
disse Bishop na palestra realizada durante a 29ª Bienal
de Arte de São Paulo, em 2010. Ao convidar o público para
o processo de construção de uma obra, o autor amplia
o diálogo com o mundo. Ao mesmo tempo, o mundo amplia
o diálogo com a arte e despontam não apenas novas obras,
mas também novas mentalidades.
Essa foi a busca de Graziela Kunsch, artista que desen-
volve o Projeto Mutirão – no qual engendra diálogos com
públicos diversos, facilitados pela exibição excertos de víde-
os gravados por ela –, projeto que logo será analisado mais
detidamente. Ela se perguntava como o mundo da arte
poderia “conversar e contribuir com outros mundos”.
Na sua dissertação de mestrado, ela até cita uma frase do
crítico Simon Sheikh que justifica a procura por uma arte mais
plural: “a arte importa, certamente, mas não é o suficiente”.
como seria uma troca baseada na liberdade?
[frase retirada do Cader-
no com fichas de artistas
da 29ª Bienal de São
Paulo, 2009, p. 38.]
22
Nos próximos atos, a maioria das questões citadas aqui
voltarão a ser discutidas com mais profundidade. A introdu-
ção-desvio importa, certamente, mas não é o suficiente.
O QUE é A LEiTURA, SENãO UM DiáLOGO SiLENCiOSO?6
6 BRiSTOL, 2008.
a arte serve para quê?
24 25
ATo I
ARTE PARTICIPATIVA E hIsTóRIA
os pés de Raimundo estão cheios de terra. Os cabe-
los de Raimundo fedem. O frio de Raimundo é amenizado
com trapos e um saco preto amarrado nas costas. O caderno
de Raimundo é feito de folhas de sulfite. Folhas sujas. Rai-
mundo mora numa área nobre de Pinheiros, em São Paulo.
Raimundo mora na Av. Pedroso de Morais, mais especifica-
mente num canteiro dessa área nobre. Raimundo, Raimun-
do, Raimundo.
Raimundo Raimundo Raimundo.
Raimundo.
Raimundo.
Raimundo Raimundo. A situação de Raimundo é tão pre-
cária que é preciso repetir seu nome até que não o esqueça-
26
mos. “Repetir repetir, até ficar diferente”, como fala Manoel
de Barros. A arte é o alimento de Raimundo, que passa todo
o tempo escrevendo textos numa letra difícil de entender.
Ele assina suas criações com o pseudônimo “O Condiciona-
do”. Considera que “tudo é ilusão, tudo isto aqui é falso”
e chama o mundo de Casa Suína.
QUEM é ARTiSTA é ARTiSTA PORQUE
SE CONSiDERA ARTiSTA OU PORQUE OUTRO
ALGUéM O CONSiDERA ARTiSTA OU OS DOiS?
A arte é a válvula de escape de Raimundo. Ele é um
artista? De que adiantaria o chamarmos assim? Ele ficaria
com menos fome ou frio? Não.
Cito o exemplo de Raimundo para sinalizar os caminhos
principais a serem trilhados por este livro:
.1 abordagem das intersecções entre arte e produção
coletiva, na quais a reinvenção da linguagem está impreg-
nada da ressignificação dos papéis sociais e pré-figurações
de sociedades com menos pobreza, menos Raimundos,
menos condicionados e menos Casas Suínas;
..2 não definição estrita do objeto de estudo, pois a arte
participativa pode ter tantas leituras quanto olhares existi-
rem – assim como o Raimundo pode ser visto como poeta,
mendigo, louco, gênio etc., etc., etc. Mais do que trabalhar
as minúcias do conceito, serão analisadas algumas perspec-
27
O a
rtis
ta é
art
ista
por
que
se c
onsi
dera
art
ista
ou
porq
ue o
utro
alg
uém
o c
onsi
dera
art
ista
ou o
s do
is?
28
tivas do fenômeno, representadas nos próximos capítulos
pelos trabalhos das artistas Graziela Kunsch e Monica Nador.
QUANTO TEMPO DURA A COMPAiXãO?
QUANTO TEMPO DURA UMA OBRA-PRiMA?
“Da adversidade, vivemos”, escreveu o artista brasilei-
ro Hélio Oiticica num de seus Parangolés, as famosas capas
coloridas que ganhavam vida quando o público as vestia e
dançava. Nelas, a participação se dava num nível corporal
e visual. “Na participação ativa pela visualidade, o espaço é
bidimensional, tudo ocorre na superfície, sem ilusões, sem
remeter a um outro que não esteja presente materialmente
diante do participante: a tinta e a tela não são meios para
representar uma outra realidade, mas constroem uma reali-
dade em si mesma, questionando seus próprios meios e pro-
cedimentos. Assim, o participante, consciente disso e possibi-
litado pela própria ordem conscientizadora da obra, se coloca
diante da tela como portador dos mesmos conhecimentos do
artista”, explica a pesquisadora Cinara de Andrade Silva na
sua dissertação de mestrado.
Com suas ideias de participação corporal e visual, Oiti-
cica começou a desbravar um caminho que é levado a ex-
tremos em obras nas quais a “co-laboração” do público é
condição para que a obra comece a se delinear. A palavra
“participativo” foi vista pela primeira vez em 1881 (a expres-
Quanto tempo dura a compaixão?
Quanto tempo dura uma obra-prima?
30 31
Nessa altura, pode surgir a pergunta: se toda arte depen-
de da participação do olhar de um espectador para ser inter-
pretada, toda arte não é participativa? De certa forma, sim.
Como explica o filósofo Jacques Rancière, “toda posição de
espectador já é uma posição de intérprete, com um olhar que
desvia o sentido do espetáculo”9. O espectador também par-
ticipa da obra ao construir um significado para o que vê, claro.
No entanto, o foco deste trabalho está em práticas ar-
tísticas nas quais o público não só participa da construção
dos significados, mas também dos objetos (ou processos) que
depois ganham sentido. Como explica Neal Benezra10, diretor
do Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA), a
arte participativa cria situações “que envolvem membros do
público como participantes ou até parceiros no processo de
produção do trabalho artístico”, com “espírito de abertura e
engajamento ativo”, por meio de um “convite aberto” para
um trabalho “em processo”.
A PARTiCiPAçãO ANULA A ALiENAçãO?
Há também diferenças entre participação e interação.
“Todas as obras que se propõem como interativas, de certa
maneira definem as regras do jogo. Então, esse tipo de obra
9 Em entrevista para a revista CULT, http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/, acessada em julho de 2011.
10 Prefácio do catálogo da exposição (“A arte participativa: de 1950 até ago-ra”), ocorrida em 2009.
são “democracia participativa” só surge em 19687). O termo
vem do latim participare (participar), derivado de pars (parte)
e capere (pegar).
TODAS AS OBRAS DE ARTE SãO PRODUZiDAS
POR EXTRAVAGâNCiA OU NUM SURTO DE RAiVA?8
A arte participativa antecipou muitas estratégias colabo-
rativas que só viriam à tona com as tecnologias da Web 2.0.
“Termos como colaboração e coletivo não são encontrados
nos anos 60. Naquela época, a arte participativa estava mais
relacionada ao envolvimento político e à luta pela democra-
cia”, comentou Bishop na palestra citada na introdução-des-
vio. Segundo a crítica norte-americana, a arte participativa
não tem mais um inimigo artístico tão definido nos dias de
hoje. Mas há uma preocupação com os problemas sociais
que é o fio condutor de muitos trabalhos participativos nos
últimos anos.
O QUE SE PASSA NA CABEçA DO PúBLiCO QUE
é CONViDADO A PARTiCiPAR DA CONSTRUçãO
DE UMA OBRA DE ARTE?
7 Segundo o site http://www.etymonline.com, consultado em julho de 2011.
8 Pergunta contida numa das anotações do diário da artista plástica Louise Bourgeois (1911-2010).
32
pode acabar sendo mais impositivo do que uma arte que está
diante do espectador e com a qual ele pode fazer o que bem
entender”, explica Rancière. Na interatividade, as ações do
espectador influenciam o trabalho, embora de maneira breve
e, na maioria das vezes, repetitiva e reversível, sem uma mu-
dança fundamental ou estrutural na obra. Mas isso também
é questionável.
A artista e professora da PUC-SP Rejane Cantoni, por
exemplo, que desenvolve trabalhos interativos – como um
cubo de espelhos no qual o público entra e visualiza uma
imagem múltipla, com repetições infinitas – discorda da visão
do filósofo francês. Segundo ela, os trabalhos interativos tra-
vam um diálogo com o público que muitas vezes aponta o
alargamento da obra. “O público não se comporta sempre da
maneira que o artista imaginou”, comenta. Uma das obras
de Rejane se chama Solo: é um piso que se move de acordo
com o movimento na sua superfície. Cantoni imaginou que
o público apenas caminharia sobre a obra, então se surpre-
endeu quando viu crianças pulando em cima do trabalho,
quebrando as regras previstas e ressignificando a ideia inicial.
Mas há quem trace uma diferenciação precisa entre arte
participativa e interativa. “Por interatividade, entendo que
sejam obras que requerem uma ação do espectador para que
aconteçam: desde apertar um botão até fornecer informa-
ções pessoais, por exemplo. De certa forma, entendo que
este tipo de relação opera num campo de problemas e num
certo comportamento do público que já foi previsto pelo
autor. Considero a ideia de participação mais complexa”, co-
a pa
rtici
paçã
o
anul
a
a al
iena
ção?
34 35
menta Jorge Menna Barreto, artista e pesquisador, mestre em
poéticas visuais pela USP. Entre seus trabalhos há o Projeto
Matéria, realizado em 2004 no Centro Cultural São Paulo.
Era uma oficina que fazia as vezes de intervenção artística:
quinze alunos foram selecionados para participar das aulas
com professores diversos. O foco era uma reflexão acerca de
assuntos como o papel do artista e principalmente questões
relacionadas àrecepção da arte. Neste projeto, o mote era a
aula-diálogo – a participação do público ressignificava a obra
à medida em que ela acontecia.
Na visão de Barreto, qualquer trabalho artístico é poten-
cialmente participativo. “Um texto crítico sobre uma obra,
por exemplo, pode ser uma forma de participação. Enten-
do que participação seja essa relação de continuidade que o
público pode ter com a obra, emancipando-se da proposta
do artista e percorrendo novos caminhos, deslocando o seu
sentido, e até mesmo o subvertendo. é nesse momento em
que o público se torna co-autor, no momento que faz uma
apropriação do conceito e um desvio, uma leitura crítica e
contundente que opera nas brechas do que foi dito e propos-
to, e não se contenta com o que está dado, ou com a simples
captura de conteúdo depositado na obra pelo autor”, com-
pleta o artista.
O QUE é A DEMOCRACiA PARTiCiPATiVA NA iDEiA?
E NA PRáTiCA?
Como todas as palavras, o termo “participação” tem di-
versas acepções. Pode ser interpretado da seguinte forma: “é
inicialmente baseada em uma diferenciação entre os produ-
tores e os beneficiários – os primeiros estão interessados na
participação desses últimos, e entregam uma porção subs-
tancial de trabalho a eles, quer no momento da concepção
ou no novo ciclo do trabalho”, como diz Christian Kravagna,
historiador de arte e professor da Academia de Belas Artes
de Viena11. Por isso, é preciso deixar claro que “as fronteiras
são permeáveis e categorizações rígidas têm pouco efeito.”
Em vários momentos do século passado, a arte partici-
pativa aproximou a arte do cotidiano das pessoas. Nesse tipo
de trabalho artístico, a relação entre artista e espectador foge
da relação hierárquica habitual. As origens da participação
na arte remontam ao Dadaísmo, no início do século 20, em
Zurique, na Suíça, onde a criação caótica e acidental de algu-
mas obras começava a embaçar os limites da arte tradicional,
que tanto valorizava a noção de autoria. Também na primeira
metade daquele século, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht
elaborou suas teorias sobre a quebra da quarta parede no
teatro – para Brecht, entre o espectador e o ator havia um
muro que devia ser derrubado. Já no Brasil, por volta de 1960
e 1970, o teatrólogo Augusto Boal desenvolveu o Teatro do
Oprimido, um método teatral que incluía práticas como o
Teatro-Fórum, no qual a plateia era convidada ao palco para
solucionar os dilemas encenados.
11 No texto Working on the Community – Models of Participatory Practice, de 1998, disponível em. http://republicart.net/disc/aap/kravagna01_en.htm, acessado em julho de 2011.
36 37
Outros artistas brasileiros, como Oiticica, Lygia Clark e
Lygia Pape, foram pioneiros na exploração de novas relações
entre a obra de arte e o público. Pape, por exemplo, costu-
mava declarar que um dos seus objetivos era desrespeitar as
estruturas hierárquicas tradicionais. Em 1968, ela criou um de
seus trabalhos mais famosos, intitulado Divisor. A obra con-
sistia num tecido branco de 900m2, cheio de buracos para
que as cabeças do público entrassem. O trabalho só se reali-
zava com o público presente. E as pessoas que participavam
da obra só se movimentavam se existisse uma atuação coleti-
va sincrônica: apenas com a harmonia entre os participantes,
a obra ganhava vitalidade.
Na década de 1950, os happenings (“acontecimentos”)
buscavam a aproximação direta com o público: as pessoas eram
convidadas a participar de ações sem começo nem meio, nem
fim previstos. Nos happenings, ocorriam improvisações com
elementos que não tinham necessariamente conexão entre si,
ressignificados na ação única que não poderia ser reproduzida
depois. O comportamento do público variava do entusiasmo à
indiferença. Como lembra o artista norteamericano Alan Ka-
prow, parte do público preservava uma distância contempla-
tiva: “quando um trabalho é realizado em uma avenida movi-
mentada, transeuntes normalmente vão parar e assistir, assim
como eles podem assistir à demolição de um edifício”.
QUE TiPO DE ESPECTADOR VOCê é?
Quatro rapazes de branco servem café. Sentado, o mú-
sico John Cage lê um texto que relaciona melodias com zen-
-budismo. Às vezes, lê em voz alta. Outras, em silêncio. Bal-
bucia. Na escada, os poetas Charles Olson e Mary Caroline
Richards leem poemas. Enquanto isso, o pianista David Tudor
improvisa uma canção. Merce Cunningham dança. Mais pes-
soas interferem no “evento” de maneira aleatória, em im-
provisos seguidos de improvisos. Essa cena ocorreu em 1953,
no Black Mountain College, na Carolina do Norte, Estados
Unidos, e foi considerada o primeiro happening. Realizada
por Cage, a “Theater Piece # 1” envolvia os participantes em
apelos a todos os sentidos.
Alguns anos depois, em 1957, surgiu o Situacionismo,
movimento que começou com um grupo italiano que se de-
finia como “vanguarda artística e política”. Críticos da socie-
dade de consumo, eles defendiam a ideia de que as pessoas
deviam construir as situações das suas próprias vidas, sem
alienação, na rotina. Ou seja, eles tentavam articular a relação
entre a arte e a vida. “Toda pessoa razoavelmente conscien-
te de nosso tempo já se deu conta do fato óbvio de que a
arte não pode mais ser considerada uma atividade superior,
ou mesmo uma atividade compensatória para a qual alguém
pode honradamente se devotar. A razão para tal deterioração
é, com certeza, a emergência de forças produtivas que neces-
sitam de outras relações de produção e de uma nova prática
de vida. (...) nós acreditamos que todos os meios de expressão
vão convergir num movimento geral de propaganda e preci-
sam englobar todos os aspectos perpetuamente interativos
38 39
da realidade social”, defendem Guy Débord e Gil Wolman,
membros do situacionismo, no Guia Prático para o Desvio12.
Saindo da itália e voltando aos EUA, para Nova York, é
possível encontrar outro grupo do final do século passado
que também apontou para uma maior participação do públi-
co na arte. Criado em 1979, o Group Material transitou por
temas como consumo, alienação, educação e AiDS. Uma das
exposições do grupo, chamada Democracy: Cultural Partici-
pation (“Democracia: Participação Cultural”), de 1988, con-
tou não apenas com uma exposição de objetos – entre eles,
diversos pacotes de salgadinhos, numa diversidade de sabo-
res que sugeriam “identificações étnicas com gostos particu-
lares” –, mas também com “town meetings”13 (fóruns políti-
cos). Num desses encontros, as discussões giraram em torno
das seguintes indagações: Quais são alguns dos aspectos da
atual crise de participação cultural?
Cultura para quem? Quem tem acesso e a quem é nega-
do o acesso às instituições de representação? De que forma
as instituições culturais servem e de que forma elas falham
com suas comunidades e público?
Como o consumismo afeta o nosso poder participativo?
Como mercados e instituições definem comunidades e ditam
a sociabilidade?
Quais são algumas práticas fora do mainstream, alterna-
12 DéBORD , Guy; WOLMAN, Gil. um guia prático para o desvio. 1956.
13 Antes de 1971, os “town meetings” eram encontros organizados por fun-cionários municipais eleitos – como consta na dissertação de Graziela Kunsch. Muitas vezes, tais encontros ocorriam “por insistência dos cidadãos comuns”–, para que fossem discutidas e anunciadas novas políticas.
tivas e/ou de oposição? Quais são os problemas e soluções
apresentadas por essas práticas?
Quais são as nossas opções? Como podemos começar a
construir uma democracia cultural?
As questões apontadas pelo Group Material continuam
atuais e ilustram bem como eles tentavam motivar o engaja-
mento do público ao convidá-lo para uma conversa. “O públi-
co deixa de ser quem apenas está habituado com os códigos
da arte, então ele pode ser formado em qualquer situação,
com quaisquer pessoas”, conta Paulo Myiada, coordenador
do núcleo de Pesquisa e Curadoria do instituto Tomie Ohtake
e assistente curatorial da 29ª Bienal.
‘A EXiSTêNCiA PRECEDE E COMANDA A ESSêNCiA’?14
Cada vez mais a aproximação entre artista e público se
dá por um viés ativista. Na dissertação insurgências Poéticas,
escrita pelo pesquisador André Mesquita sobre arte ativista e
ação coletiva, há uma reflexão sobre as práticas artísticas ati-
vistas entre as décadas de 1990 e 2000. Em muitas delas, são
percebidas propostas colaborativas. A experimentação cons-
tante chama atenção: protestos, performances e instalações
artísticas são apenas algumas das práticas desenvolvidas por
grupos bastante críticos ao status quo. Para Mesquita, tais
projetos “simplesmente desmontam qualquer ideia restrita
14 SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 13. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
40 41
de que coletivo é apenas um agrupamento formal, uma coa-
lizão temporária ou núcleo de artista”. Em seu entendimento,
“estratégias de participação aumentam a nossa definição de
ações coletivas como função social e meio de comunicação”.
As nossas definições aumentam e, consequentemente,
significações antigas são atualizadas. A arte participativa
nasce de premissas diametralmente opostas à noção de arte
do russo Leon Tolstói, por exemplo. Para o escritor, autor do
livro O que é Arte?, a arte é “a atividade humana que consis-
te em um homem comunicar conscientemente a outros, por
certos sinais exteriores, os sentimentos que vivenciou e os
outros serem contaminados desses sentimentos e também os
experimentarem.” Mas na arte participativa as pessoas expe-
rimentam um sentimento diferente, que é singular e compar-
tilhado ao mesmo tempo, forjado em conjunto.
QUAIS SÃO ALGUNS DOS ASPECTOS DA ATUAL CRISE DE PARTICIPAÇÃO CULTURAL?
[frase retirada de um
dos trabalhos da exposi-
ção Democracy: Cultural
Participation (“Demo-
cracia: Participação Cul-
tural”), de 1988, realiza-
da pelo Group Material]
42 43
ATo II
ARTE PARTICIPATIVA E CoNTEMPoRANEIdAdE
À medida que os anos se passaram, as cifras em
jogo no mercado da arte cresceram exponencialmente – e a
vaidade de muitos artistas também. Mas tanto dentro quan-
to fora do mainstream artístico, continuam surgindo projetos
que convidam o público a assumir outros papéis que não ape-
nas o de observador. A internet potencializou a organização
de grupos, facilitando a criação de projetos que já nascem
com um formato difícil de enquadrar em velhas definições.
O WallPeople, por exemplo, é um projeto colaborativo
com berço digital. Trata-se de uma proposta artística que con-
vida as pessoas a transformarem muros em murais de fotos.
O projeto acontece simultaneamente em diversas cidades
mundo afora, uma vez por ano. “O tema de 2011 foi ‘felici-
44
dade’. Em São Paulo, neste ano, havia muitos fotógrafos na
ação, mas também foram pessoas que não tinham nada a
ver com fotografia e levaram a foto do filho, por exemplo”,
conta Julia Bolliger, que trabalha no portal ideia Fixa, organi-
zador da ação no Brasil. Naquela edição, cerca de 3 mil pesso-
as saíram de casa com suas fotos, rumo a muros espalhados
por 20 cidades do mundo. Mesmo que não seja o tipo de
participação fundamentalmente cocriadora, com pessoas que
transgridam a ideia inicial, ainda assim é um projeto que me-
rece ser citado pela amplitude de mobilização e diálogo com
o público, sinal da potencialidade das ferramentas atuais.
QUANDO O ESPECTADOR SE TORNA UM ACOMODADO?
“A tendência para a prática de colaboração e partici-
pação é, inegavelmente, uma das características principais
da arte contemporânea”, escreveu o filósofo alemão Boris
Groys, no ensaio A genealogia da arte participativa. A ten-
dência mencionada por Groys pode ser percebida em obras
como “Please, love Austria” (“Por favor, ame a áustria”), do
cineasta alemão Christoph Schlingensief, realizada em 2000.
Ele transferiu para uma das praças da cidade um contêiner
que abrigou dez estrangeiros. Todas as ações dos “prisionei-
ros” podiam ser acompanhadas pela internet. Diariamente,
um deles era eliminado por votações online. Os perdedores
eram encaminhados ao departamento de deportação. À luz
4746
do dia, o cineasta passava pelo contêiner e proferia vários
comentários de cunho racista. O projeto suscitou críticas
e motivou a mobilização de muitas pessoas. O que instigou
os ânimos foi o delicado tema em discussão: a xenofobia.
“’Please, love Austria’ mostrou as contradições de uma
sociedade e criou mais debate e agitação que a própria
instituição responsável por questões de imigração. A atuação
de Schlingensief é contraditória e antidemocrática, o que só
explicitou a liberdade do fazer artístico. A ambiguidade está
no âmago da obra”, comentou a crítica Claire Bishop ao ana-
lisar o trabalho. Para ela, tal obra não deve ser criticada por
um aspecto ético superficial. Alguns trabalhos participativos
partem de uma ideia que reafirma problemas da sociedade
atual para colocá-los em discussão.
QUAL O VALOR SOCiAL DA ARTE?
“Você conhece Akira Kurosawa?”; “Você já leu Clarice
Lispector hoje?”; “Está com fome? Então leia O Banquete, de
Platão”; e “Descubra quem você é”: essas foram algumas das
frases que escrevi em post-its, preparando-me para uma inter-
venção urbana cujo planejamento foi realizado a várias mãos.
Um amigo colocava miniaturas dentro de bexigas vazias
e as passava para mim. Além das miniaturas, iam os post-its
dobrados bem miúdos. Enquanto uns enchiam as bexigas,
outros preparavam fantasias com panos estampados e papel.
Qual o valor s o c i a l
da arte?
48 49
Estávamos organizando uma intervenção urbana, coletiva-
mente, entre músicos, publicitários, jornalistas e pesquisado-
res de áreas diversas.
Cada detalhe da ação foi pensado e executado colabora-
tivamente, após a leitura de poemas e músicas que nos ins-
piraram. O encontro foi proposto por amigos que desenvol-
veram a ideia de um laboratório de intervenções na cidade.
Dez pessoas se reuniram com o objetivo de criar uma ação
artística efêmera e impactante. O grupo saiu pelas ruas do
centro de São Paulo cantando e entregando bexigas para as
pessoas com as mensagens citadas. Na maioria das entregas,
conversávamos com as pessoas. Mesmo com algumas tenta-
tivas frustradas, em geral o diálogo se estabelecia.
‘... AQUi AiNDA EXiSTiRiAM SéRiAS DiFiCULDADES A VEN-
CER. MAS ESTAS DiFiCULDADES ESTãO MAiS DENTRO DE
NóS MESMOS DO QUE EM QUALQUER OUTRA PARTE’?15
Essa ação não reflete uma dinâmica participativa do co-
meço ao fim, porque nesse caso há um espectador almejado:
o público da rua. Mas é uma mistura de arte participativa com
arte pública que dilui fronteiras que nem mesmo estavam tão
claras. “Na arte pública, não chamamos o público de público,
nem de espectador, porque ele às vezes nem sabe que está
sendo envolvido na ação”, conta Nelson Brissac Peixoto, filó-
sofo e professor da PUC-SP.
15 GOGH, Vincent Van. Cartas a Théo. Trad. Pierre Ruprecht. Porto Alegre: L&PM, 2001. (p.299)
O que aconteceu na ação descrita há poucos parágra-
fos? Um encontro entre amigos? Uma intervenção urbana?
Uma ação de educação informal? A arte contemporânea li-
quidifica a realidade. E, como Bishop discute, a arte participa-
tiva coloca uma série de binômios pulsantes diante de quem
a analisa, como
. arte/vida. autor/público
. individualidade/coletividade
O artista Thomas Hirschhorn vai ao âmago dessa questão
quando comenta um dos seus trabalhos artísticos, chamado
Foucault Art Project, para o qual ele imaginou um espaço
com 700 a 1000 m2, onde ocorreriam discussões, exposições
de fotos e livros, encontros, entre outras atividades. “Deve-
mos nos libertar de exposições. Odeio e nunca uso o termo
show em inglês; odeio e nunca uso a palavra piece [peça,
pintura]. Nunca uso e o termo instalação. Mas quero fazer
um trabalho, uma obra de arte! Quero me tornar o que sou.
Quero me tornar um artista! Gostaria de me apropriar do
que eu sou. Este é o meu trabalho como artista”, conta Hirs-
chhorn. O artista alemão quer se apropriar de si mesmo – e
considera este o seu trabalho. Seu trabalho é se tornar artis-
ta, numa fusão de vida com arte.
VOCê GOSTARiA DE PARTiCiPAR
DE UMA EXPERiêNCiA ARTíSTiCA?“16
16 Título de um dos trabalhos do artista multimídia Ricardo Basbaum.
50 51
Deborah me convidou para opinar sobre algo em sua
casa. imaginei que fosse uma cadeira ou prateleira, porque
sou bom carpinteiro. Também falo de quadros, de Picasso
a Magritte, de Tarsila a Deborah. Uma casa é uma casa. Sei
tudo que uma casa pode ter. Mas ela queria um palpite sobre
uma caixa alienígena. Branca, de um material desconhecido,
com um tubo central (porta rabos talvez, ou lixeira prática).
Deborah disse que a caixa era bio-magnética, ela tinha dese-
jos de abraçá-la”, conta o escritor André Carneiro, em depoi-
mento para o site do projeto Novas Bases para a Personalida-
de (NBP)17, do artista Ricardo Basbaum. Esse projeto consistiu
no seguinte: Basbaum inventou um objeto retangular com
uma espécie de cilindro no meio, que foi entregue a várias
pessoas, convidadas a fazer o que quisessem com ele.
O artista só pedia que elas documentassem as ações,
seja quando pintavam o objeto, quando apresentavam
alguma performance com ele ou quando realizavam algo
que nem o inventor da ideia havia imaginado. Basbaum
também pedia que devolvessem o objeto. A proposta, rea-
lizada desde 1994, intitula-se “Você gostaria de participar
de uma experiência artística?” Se fôssemos dividir a possi-
bilidade de participação em níveis, essa obra estaria entre as
mais participativas – com um porém, claro, afinal, para que
você participe dessa experiência artística, é necessário o con-
vite. inclusive existe uma escala que facilita a distinção das
nuances envolvidas num ato participação. Há um conceito
político que pode ser relacionado com a arte participativa.
17 http://nbp.pro.br
A “escada da participação” sugere um olhar minucioso
para os níveis de apropriação de poderes dos indivíduos
comuns numa sociedade. Na escala dos graus de participação
dos cidadãos desenvolvida pela escritora Sherry R. Arnstein,
cada degrau corresponde a um nível diferente da abertura
dos indivíduos na definição dos rumos de uma sociedade.
A seguir, os oito degraus da escada da participação cidadã:
.8º Controle cidadão
.7º Delegação de poder
.6º Parceria
.5º Pacificação
.4º Consulta
.3º informação
.2º Terapia
.1º Não-participação
Enquanto no primeiro degrau há a não-participação – ou
seja, a apatia diante do aparato político, quando o sujeito é
suscetível a qualquer tipo de manipulação –, no último de-
grau há o controle cidadão – que ocorreria caso questões
mais relevantes para o funcionamento de uma sociedade,
como orçamentos, fossem totalmente decididas a partir de
assembleias populares, por exemplo. O segundo e o terceiro
degraus também estão mais ligados à não-participação: no
nível da “terapia”, os problemas dos cidadãos são ouvidos
pelo governo, mas nada é feito, compromissos não são firma-
dos; no degrau da “informação” há uma maior transparên-
cia do poder público em relação a decisões importantes, mas
nada mais do que isso.
52
Nos outros graus de participação, também há diferentes
tipos de relação: no nível da “parceria”, geralmente surgem
organizações híbridas que dialogam com diferentes atores.
Em “pacificação”, há o uso de estratégias paliativas para a
resolução das situações – neste degrau, as demandas são
atendidas com soluções temporárias.
Pode-se aplicar a “escada de participação” na arte para
analisar os graus de abertura que os artistas dão em relação à
cocriação. Por muito tempo a arte foi “não-participativa”. Em
tempos de Renascimento, período em que a arte estava pau-
tada pela ideia de imitação (mimesis) das formas ideais e clás-
sicas, não se falava em colaboração. Hoje em dia, encontram-
-se trabalhos com as mais variadas características. Muitos, por
exemplo, permitem uma participação semelhante ao quinto
degrau da escada pensada por Arnstein. Na “consulta”, pede-
-se a opinião dos participantes, mas isso não garante que ela
seja levada em conta durante o desenvolvimento do trabalho.
O COLETiVO OU O iNDiViDUAL?
Aaron Klobin é um jovem artista norteamericano que re-
alizou vários trabalhos colaborativos. Em um de seus traba-
lhos, Aaron pediu que as pessoas lhe enviassem desenhos de
ovelhas – em troca, o artista pagava US$0,02 a cada um dos
colaboradores18. Ele consultava o público, mas usava apenas
18 Matéria sobre o trabalho de Aaron Klobin, acessada em agosto de 2011 http://blogs.estadao.com.br/link/tag/johnny-cash/
O COLETIVO OU
O INDIVIDUAL?
54 55
ATo III
ARTE PARTICIPATIVA E EduCAção
“Percebo que antes mesmo de aprender o uso do
imperfeito do subjuntivo, já estão me dizendo que ele não
serve para nada. Primeiro, aprendam. Depois, vocês podem
questionar o uso dele”, explica o professor François Marin,
personagem do filme francês Entre os Muros da Escola. Essa
frase ilustra bem a típica relação entre estudante e professor:
o mestre transmite conhecimentos ao aluno, como se estives-
se sempre um passo à frente.
Constrói-se uma relação problemática, com uma lacu-
na entre as duas inteligências. A relação entre a transmissão
de conhecimentos e o ensino é, para o filósofo francês
Jacques Rancière, o princípio do embrutecimento do aluno.
Para que haja emancipação na sala de aula, uma outra
postura deve ser assumida.
as contribuições que mais o interessavam, sendo que a par-
ticipação popular se resumia à simples remessa de (possíveis)
partes da obra. Na contramão do que acontece com traba-
lhos como os de Klobin, as obras de arte participativa que
convidam o público a se apropriar da ação proposta motivam
o surgimento de comunidades – seja durante a execução da
obra, seja num processo de “expansão” ou transgressão do
discurso inicial, o que pode durar muito tempo. “Comuni-
dade significa que não há um ser singular sem um outro ser
singular”, explica o filósofo francês Jean-Luc Nancy.
Após esses primeiros atos, focalizados em análises de re-
ferências contemporâneas e antigas – conceitos e obras fun-
damentais para uma primeira aproximação do tema – entra-
mos noutro momento. é hora de mergulhar em dois projetos
tão singulares quanto seus participantes.
56 57
QUAL é A DiFERENçA ENTRE OUViR E ESCUTAR?
Rancière se baseia nos argumentos do professor Joseph
Jacotot, um educador do século 19 que defendia a emanci-
pação intelectual das pessoas por meio da ideia da igualdade
das inteligências. Segundo Jacotot, todos têm a mesma ca-
pacidade de aprendizagem. Uma das situações que justifica-
riam essa equidade é o fato de que o ser humano aprende
o idioma nativo sem maiores explicações teóricas. Do gugu-
-dádá até a elaboração de frases mais complexas, dá-se um
processo realizado por tentativa, comparação, erro, acerto...
enfim, de pura experimentação. Se o professor entende que
seu aluno é tão inteligente quanto ele mesmo, a relação
muda totalmente.
“O aluno do mestre ignorante aprende o que o mestre
não sabe, já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa
e recontar tudo o que descobriu no caminho, enquanto o mes-
tre verifica se ele está realmente procurando. O aluno aprende
alguma coisa como um efeito do ensinamento do mestre. Mas
não aprende o conhecimento do mestre”, conta Rancière no
livro O Mestre ignorante. Ao discursar numa escola de artes,
Rancière comparou as ideias de Jacotot ao comportamento
do espectador de teatro. Ele lembra que muitos dramaturgos
pressionam o espectador a sair da sua atitude passiva. Assim,
reflete Rancière: “este é o primeiro ponto que os reformado-
res do teatro compartilham com os pedagogos do embruteci-
mento: a idéia da lacuna entre duas posições. Mesmo quando
QUAL É
OUVIR EESCUTAR?
A DIFERENÇAENTRE
58 59
o dramaturgo ou o ator não sabe o que quer que o espectador
faça, pelo menos ele sabe que o espectador tem que fazer
alguma coisa: trocar a passividade pela atividade”.
As oposições olhar/saber, olhar/agir, aparência/realidade
e atividade/passividade são, para Rancière, alegorias da desi-
gualdade. Na maioria das vezes, elas são ressaltadas com a
intenção de ser abolidas. Mas “é exatamente o esforço para
suprimir a distância que constitui a própria distância”. Em
vez do reconhecimento das semelhanças entre artista e es-
pectador, cava-se ainda mais fundo o abismo entre ambos.
“De fato, eles [dramaturgo e ator] estão mais que cautelosos
hoje em dia quanto a usar o palco como meio de ensino. Eles
apenas querem proporcionar um estado de atenção ou uma
força de sentimento ou ação. Mas ainda supõem que aquilo
que vai ser sentido ou entendido será o que eles colocaram
no próprio roteiro ou performance. Eles pressupõem a igual-
dade – ou seja, a homogeneidade – entre causa e efeito.
Como sabemos, esta igualdade se baseia em uma desigual-
dade. Ela se baseia no pressuposto de que há um conheci-
mento adequado e uma prática adequada no que diz respei-
to à ‘distância’ e às formas de suprimi-la”, continua Rancière.
Nas palavras do autor, para suprimir a distância entre
professor e aluno, “Jacotot colocou o livro como o algo que
fica no meio. O livro é a coisa material, exterior tanto ao mes-
tre quanto ao aluno, através do qual é possível verificar o que
o aluno viu, o que ele disse a respeito, o que ele pensa sobre
o que disse.”
A artista Kunsch também quer suprimir a distância entre
ela e seu público. Para isso, não usa um livro, mas sim excer-
tos de filmes.
O QUE EMBRUTECE O POVO: A FALTA DE iNSTRUçãO OU A
CRENçA NA iNFERiORiDADE DA SUA iNTELiGêNCiA?
“Escutar é algo que vai mais além da possibilidade audi-
tiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, signifi-
ca possibilidade permanente por parte do sujeito que escuta
para abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferen-
ças do outro”, diz Paulo Freire no livro Pedagogia da Autono-
mia. Logo no começo da conversa com Kunsch, ela leu este
trecho de Freire. Ouvir o outro é essencial para a artista.
Os diálogos que ela propõe dependem da atenção do pú-
blico. E o diálogo anula o comportamento bancário, tão criti-
cado por Freire – a pedagogia bancária consiste em depositar
conhecimento sem nenhuma perspectiva crítica nem convite
ao aluno para que ele recrie o que está sendo dito. Sendo
ávida leitora de Paulo Freire, a artista também cuida para que
seu espectador não seja apenas um receptor de informações.
O espectador da arte participativa ajuda a construir a
obra – e tem até o aval para ressignificá-la. Por exemplo, caso
você queira, pode sair reproduzindo o Projeto Mutirão, obra
inicialmente elaborada por Kunsch. Dentro da ideia do proje-
to está a possibilidade da apropriação da obra pelo especta-
dor – e da diluição da autoria, claro.
61
O que embrutece o povo:
a falta de instrução ou a crença
na inferioridade da sua inteligência?
‘A LiBERDADE POLíTiCA NãO PODE SE RESUMiR
NO DiREiTO DE EXERCER A PRóPRiA VONTADE.
ELA RESiDE iGUALMENTE NO DiREiTO DE DOMiNAR
O PROCESSO DE FORMAçãO DESSA VONTADE’. 19
A GENTE DOMiNOU/DOMiNA ESTE PROCESSO?
Uma das características essenciais da obra participativa é
que ela está “em processo”. Ela é um fluxo de água que, a
princípio, corre num chão cavado pelo artista. Depois da ideia
inicial, o artista chama mais gente para que o chão seja ca-
vado em grupo. E cada um faz isso à sua maneira. Assim, ou
.1 o artista continua cavando o chão junto com outras
pessoas que aceitam se dedicar ao desenvolvimento do tra-
balho tanto quanto o propositor ou
..2 o artista vai embora e deixa o fluxo de água correr
pelos caminhos traçados pelo público que, a esta altura já não
é mais espectador, mas sujeito da obra.
“Espectar” é o ato de olhar, assistir, apreciar. Vem do
latim specto, de observar atentamente, contemplar. A par-
tir do momento que a obra começa a ser construída pelo
espectador, ele também se torna artista. Quando deixa de
“espectar”, também deixa de ser espectador. “Arte expandi-
da” foi uma expressão usada nas décadas de 60 e 70 para ca-
racterizar o tipo de arte que estava sendo influenciada pelas
performances e happenings, entre outras práticas artísticas.
19 MATTELART, Armand. História das Teorias da Comunicação. São Paulo: Edi-ções Loyola, 2003.
62 63
A arte participativa alarga o papel do público ao ponto
do nome espectador não mais servir para nomeá-lo.
‘ESTE é TEMPO DE PARTiDOS,
é TEMPO DE HOMENS PARTiDOS’20?
O Projeto Mutirão consiste em diálogos promovidos por
Graziela Kunsch, nos quais são exibidos trechos de vídeos
sobre movimentos sociais e suas lutas, gravados pela artista
ou por colaboradores. Os excertos são mais do que um pre-
texto para os encontros. Eles funcionam como uma espécie de
liga das conversas, motivação para novas reflexões – e para a
participação. Kunsch comenta, na sua dissertação: “acho que
Nicolau Bruno [pesquisador da ECA-USP – Escola de Comuni-
cação e Artes da Universidade de São Paulo] não precisava ter
medo da dispersão ‘pós-moderna’ que o uso do excerto ou
fragmento (excerto, no vocabulário de Graziela Kunsch) pode
sugerir. A forma (seria inapropriada a palavra?) é pensada,
articulada, mas não a partir de abstrações, nem articulações
de abstrações, mas se constrói no acompanhamento de lutas
políticas em andamento, de ações movidas pela necessidade
e pela utopia (não é a utopia absolutamente necessária e
a satisfação de algumas necessidades, utópica?) A recusa
em fechar a forma, o voltar-se constantemente para ela,
questioná-la, incorporar a discussão, a apresentação, a crítica,
o comentário alheio, tudo isso”.
20 ANDRADE, 2001, p. 38.
VOCêS ACHAM QUE A EDUCAçãO DEVE
SER UMA FERRAMENTA PARA iMPULSiONAR
O CRESCiMENTO ECONôMiCO DO PAíS
OU SEU PAPEL PRiMORDiAL é OUTRO?21
A biblioteca de Kunsch contém referências fundamentais
para que as pessoas entendam seus trabalhos e saibam de
onde ela parte para atuar como artista. Com a intenção de
deixar claras as suas motivações, em muitas mostras e apre-
sentações ela leva pelo menos um recorte temático de livros,
para compartilhar com o público algumas das referências em
jogo. “Tento criar estratégias para as pessoas usarem esses
livros nos espaços expositivos, como grupos de estudos”,
conta. Na 29ª Bienal de Arte de São Paulo, por exemplo,
havia quase 300 livros da sua coleção particular. Desde que
abriu sua casa como uma “residência pública”, em 2001,
sua biblioteca é compartilhada. “A biblioteca era o primeiro
cômodo da casa e sempre tinha muita gente passando por
lá. As pessoas podiam entrar para estudar e levar livros em-
prestados. Até pessoas que eu não conhecia podiam agendar
visitas para estudar na biblioteca – no entanto, isso aconte-
cia menos, a maioria dos que usavam a biblioteca eram os
que frequentavam as exposições e eventos que ocorriam na
casa”, relembra Kunsch.
Ela estudou num colégio tradicional, mas desde jovem
buscava apresentar trabalhos em forma de teatro ou vídeo.
21 Pergunta contida na matéria “Exercício de Dialética”, publicada na revista Trip de setembro de 2011.
64 65
“Gostava de trabalhar em grupo e acabava levando todo
mundo comigo. Tinha gente que nunca teria interesse em
fazer teatro, mas daí topava fazer uma peça. A gente trans-
formava um trabalho sobre efeito estufa em teatro. Alguns
professores se tornaram aliados e passamos a montar peças
para apresentar para outras turmas”, diz Kunsch numa en-
trevista contida nos anexos do livro insurgências Poéticas, do
pesquisador André Mesquita.
Nos tempos de criança, a jovem Graziela Kunsch ainda
não pensava em trabalhar com arte. Foi atleta da seleção
brasileira de nado sincronizado, pentacampeã brasileira por
equipes e campeã sul-americana. Mas abandonou o esporte
para estudar teatro. Antes de terminar o ensino médio, foi
convidada para trabalhar em uma escola de artes cênicas para
crianças e adolescentes, com alunos de até 15 anos. “Acabei
passando dez anos na escola. As minhas peças com os alunos
sempre eram criações coletivas e aproximavam várias lingua-
gens. incluía vídeos nos trabalhos. As artes plásticas estavam
sempre presentes. Os cenários geralmente eram conceituais,
muito bem pensados. Tenho muita saudade daquela época.
Sei que as peças de teatro tocavam muito as pessoas, acho
que mais do que meus trabalhos atuais”, conta ela.
AS PESSOAS SE EMOCiONAM COM O QUê?
Nas peças de teatro com os alunos, já estava presente
uma abordagem social e política. Até as crianças tinham in-
teresse em lidar com esses temas. A peça Se você sonha com
nuvens, por exemplo, inspirada em contos zen budistas e
hindus, foi uma das quais Kunsch mais gostou. “Lembro dos
pais me procurarem, e a agradecerem: ‘nunca imaginei que
meu filho pudesse me dizer essas coisas’”, diz. As peças eram
assinadas pelo coletivo de alunos, como, por exemplo, “cria-
ção coletiva à luz de Manoel de Barros” e “criação coletiva
com a Clarice Lispector”.
Kunsch queria estudar cinema na USP e artes plásticas
na Faap (Fundação Armando álvares Penteado). Pensava em
cursar uma faculdade durante o dia e outra à noite. “Para o
cinema e para o teatro que eu queria fazer, precisava estudar
artes plásticas”, fala a jovem artista, hoje com 32 anos. Ela
não entrou na USP, mas passou na Faap em primeiro lugar,
com direito a bolsa no primeiro ano. “Comecei a cursar cine-
ma como ouvinte. Na realidade, cursei não só como ouvinte,
pois os professores de aulas práticas acolhiam todos os alu-
nos”, lembra. A turma da Faap era muito criativa e radical; a
partir desse grupo surgiram vários projetos artísticos coletivos.
Ela resolveu estudar na USP como ouvinte, onde teve
aulas com professores como Arlindo Machado, que falava
bastante sobre as origens da linguagem cinematográfica, e
Ricardo Calil, mais focado em cinema brasileiro. As aulas a
influenciaram bastante, tanto quanto as experiências com os
amigos da Faap. “O fato de eu ter estudado arte é muito de-
66 67
As pessoas se emocionam com o quê?
terminante no cinema que faço hoje – e foi crucial na minha
forma de repensar o teatro. De certa maneira, abandonei o
teatro, mas também não abandonei. O trabalho se radicali-
zou, deixou de ser espetáculo para virar outra coisa. Uma das
definições para ‘participação’ é justamente o não-espetácu-
lo. Quem é contra o espetáculo, é a favor da participação das
pessoas”, explica.
VOCê é CONTRA O ESPETáCULO?
Desde o grupo de teatro, Graziela lidava diretamente
com questões políticas e ativistas. “Me formei num grupo
que não era exatamente engajado, mas era bastante político,
com um trabalho bem crítico. No teatro, existe muito forte a
ideia do trabalho coletivo, acho que funciona melhor do que
em qualquer outra área”, reflete a artista.
Durante o curso de artes plásticas, ela formou, com alguns
amigos, o Núcleo Performático Subterrânea. Esse coletivo rea-
lizava várias ações pela cidade, sem planejamento nem regis-
tros. As performances rompiam os limites entre a atuação e a
não-atuação, cada um se expressava de uma maneira diferen-
te, reagindo a algumas situações do cotidiano. Como eram as
ações? “Nunca descrevo, era um trabalho bem radical, quan-
do a gente coloca em palavras a experiência é empobrecida”,
responde ela. O grupo costumava dizer que todo mundo nasce
subterrânea, mas poucas pessoas percebem isso.
69
é POSSíVEL DETERMiNAR A DURAçãO
DE UMA EXPERiêNCiA ARTíSTiCA?
Enquanto estudante, a faculdade era a cidade de Kuns-
ch, o universo da artista. E ela estava na Faap na época em
que começou a instalação de catracas. Tentou resistir a isso,
com um movimento anti-catracas, mas no fim, as demandas
não foram atendidas. Ela também participou de outras mo-
bilizações na faculdade, como do grupo MTAW (Movimento
Terrorista Andy Warhol), que deixou colorido um dos corre-
dores cinzas da escola. O engajamento em ações assim ren-
deu inúmeras tentativas de repreensão por parte dos direto-
res da faculdade à estudante. Mas sempre teve sorte e nada
de grave resultou das conversas. Por um lado, ela era uma
aluna rebelde. Por outro, ganhou dois prêmios – e bolsas –
nas competições de arte anuais da Faap. Como representan-
te da universidade, também ganhou um prêmio em Berlim.
A artista e os amigos não apenas fizeram manifestações e
intervenções urbanas. Eles lidavam com múltiplas linguagens.
Então, lançaram uma revista chamada Urbânia, fanzine que
nasceu com 300 exemplares com o objetivo de divulgar suas
“ações subterrâneas”. O poema a seguir, de Fernando Pessoa,
publicado sem créditos na contracapa dos números 1 e 2 da
revista, resume o impulso que gerou a revista: “Mesmo que
os nossos versos nunca sejam impressos, / Eles lá terão a sua
beleza, se forem belos. / Mas eles não podem ser belos e ficar
por imprimir, / Porque as raízes podem estar debaixo da terra /
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista. / Tem que ser
assim por força. Nada o pode impedir”. E a revista ironizava
os próprios integrantes do grupo. “A notícia mais alarmante é
que não há indícios de que Graziela Kunsch seja uma pessoa
real ou uma única pessoa, mas heterônimos de si mesma”,
constava numa página solta encartada na publicação. Houve
um intervalo de sete anos entre as edições número dois e três
da Urbânia. Várias edições número 3 foram esboçadas e, na
Urbânia 4, sobre projetos de cidades, a revista assumiu uma
lógica mais colaborativa e migrou para a internet.
A EXPERiêNCiA DO ESPECTADOR PODE
SER TRANSFORMADA NUMA OBRA DE ARTE?
A Arte e Esfera Pública é outros dos projetos de Kunsch,
uma iniciativa que ocorreu em 2008, organizada por ela e
um amigo, também artista, chamado Vitor Cesar. “Apoia-
dos em práticas contextuais (site-specific) e em projetos de
colaboração, objetivamos pensar em como se constitui uma
esfera pública hoje, ou, mais apropriadamente, em como se
constituem e se sobrepõem diferentes esferas públicas, dife-
rentes contextos e diferentes audiências”, resume o folder
da exposição, que esteve espalhada por vários lugares de São
Paulo. Num dos espaços, estava montado mais um dos pro-
jetos que também contam com a participação de Kunsch: a
BASE móvel, uma estrutura que motivava encontros, conver-
70
sas e estudos. A BASE móvel, instalada no Centro Cultural
São Paulo, era formada por cadeiras, móveis e fitas coladas
no piso, que traçavam uma planta no chão para delimitar
a função de cada espaço. Havia um espaço para conversas,
outro com livros das bibliotecas pessoais de Kunsch e de um
amigo dela, chamado Ricardo Rosas – entre outros espaços
para projetos de outros artistas.
Em 2004, realizou uma exposição chamada Um espaço
para a contracultura inglesa no Centro Brasileiro Britânico, a
partir da obra do inglês Stewart Home. Para essa exposição,
ela levou todos os livros que possuía de autoria de Home, entre
outros títulos relacionados. A partir daí, parte da sua biblio-
teca segue em quase todas as exposições. “é uma proposta
educativa. Um convite para falar para as pessoas: ‘olhe, este
trabalho aqui precisa de um pouco mais de tempo da sua
atenção, você pode aprofundar sua visão sobre a exposição’.
Uma biblioteca permite várias camadas de aproximação.Tem
gente que só olha as lombadas, por exemplo. Se as pessoas
percebem algum sentido, nem que seja rápido, já é válido”, diz
Kunsch. Nessa exposição, também houve momentos de partici-
pação mais explícitos. “Foi a primeira vez que organizei conver-
sas dentro do espaço expositivo. A cada sexta-feira, acontecia
um diálogo sobre um tema ligado à contracultura inglesa, de
alguma forma também ligado ao contexto brasileiro”, explica.
QUAL é A FUNçãO DO ARTiSTA?
A experiência do espectador pode ser transformada numa obra de arte?
72 73
Estou bem no momento de questionar o meu próprio
trabalho. Cada diálogo é muito diferente. Alguns são incrí-
veis, funcionam muito bem, outros são desastres e se tor-
nam mais uma apresentação do que uma conversa. Preciso
descobrir um jeito de isso funcionar mais dialogicamente”,
comenta a artista, idealizadora do Projeto Mutirão. Os víde-
os apresentados nos diálogos do projeto são diversos, como
filmagens no MST (Movimento Sem-Terra), entre outras ima-
gens de ocupações e manifestações. No início dos encontros,
Kunsch costuma fazer perguntas para a plateia. E ela geral-
mente customiza as abordagens, porque o trabalho é sempre
apresentado em contextos específicos, nos quais é possível
desenvolver as conversas segundo ideias mais afins a cada
grupo. A intenção da artista é realizar diálogos nos quais a
participação do público aflore – e incentivar a apropriação do
trabalho e sua reinvenção pelas mãos dos participantes.
O QUE é, ENTãO, ESSA ARTE QUE é CONSiDERADA
TãO iMPORTANTE E NECESSáRiA PARA A HUMANiDADE
CUJOS SACRiFíCiOS NãO APENAS
DO TRABALHO E DAS ViDAS HUMANAS,
MAS TAMBéM DA BONDADE, LHE SãO OFERECiDOS?24
Numa conversa com o movimento Passe Livre, em Floria-
nópolis, por exemplo, Kunsch começou perguntando: como
seria o espaço de uma cidade com o transporte gratuito?
24 TOLSTOi, 2002, p. 30.
A artista terminou a faculdade em 2001 e foi morar em
Paris durante sete meses, por meio de um projeto de residên-
cia artística da Faap. Enquanto estava na França, um amigo
a convidou para participar do Festival Mídia Tática Brasil. Ela
disse que não queria fazer um trabalho individual, e propôs
aos Rejeitados – um coletivo de coletivos do qual ela fazia
parte – que também participassem do festival. O evento foi
um marco na história de Kunsch, aproximando ativistas de
artistas. Ou seja: o evento propiciou o contato entre pessoas
com objetivos comuns e práticas diferentes.
No Mídia Tática, ela conheceu iniciativas como o CMi
(Centro de Mídia independente)22, do qual se tornou colabo-
radora ativa, com tamanho envolvimento que, nesse período,
abandonou os projetos de exposição de seus trabalhos artís-
ticos. Era muito comum que alguém de algum movimento
social ligasse para ela de madrugada e saíssem imediatamente
para realizar filmagens. No final de 2004, em 2005 e 2006, es-
teve tão dedicada a esse trabalho que foi aceita no mestrado
em 2005 mas, na prática, manteve o foco exclusivo no CMi.
COMO é POR DENTRO OUTRA PESSOA?
QUEM é QUE O SABERá SONHAR?“23
22 O Centro de Mídia independente é uma rede que surgiu nos EUA em 1999, para agregar as notícias de coberturas jornalísticas sobre os protestos contra um encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle. O CMi se tornou um portal de mídia alternativa gerido por coletivos independentes.
23 Poesia Como é por dentro outra pessoa, de Fernando Pessoa acessada em 27 de agosto de 2011, http://www.revista.agulha.nom.br/fpessoa93.html.
74 75
O QUE VOCê QUiS DiZER QUANDO FALOU QUE
UM POEMA DEVE AGiR COMO UMA MALA VAZiA?25
Toda conversa é uma divisão de responsabilidades. No
diálogo não há apenas emissores e receptores, mas duas ou
mais pessoas interagindo. O tempo todo, há o exercício da
escuta e da fala. E o desafio de Kunsch é promover conversas
espontâneas, nas quais as falas se levantem naturalmente.
E não só ela tem esse desafio, mas também outros artistas
que trabalham com o diálogo. Há, inclusive, uma evolução
nesse meio: os trabalhos artísticos de linha mais educacional
e dialógica já estão sendo reconhecidos pelo sistema insti-
tucionalizado de arte; tanto que há vários críticos e historia-
dores buscando nomear essas práticas. Há quem chame de
“arte baseada em diálogo” ou “estética relacional”. Novos
tempos, novas terminologias. E assim também pensa Kunsch
em relação ao seu trabalho: “não uso a terminologia ‘plano-
-sequência’26 para os vídeos que mostro durante as apresen-
tações. Essa expressão foi proposta pelo André Bazin, quan-
do ele falava do cinema clássico. Para os filmes de hoje que
eu outras pessoas fazem, acho que precisamos de outros
nomes. Por isso, chamo meus vídeos de excertos”.
Nas apresentações, Kunsch tenta mais escutar do que
falar. Ou fazer perguntas e, conforme os conteúdos e ideias
25 Primeira pergunta da entrevista com o poeta Kay Ryan realizada pela revista Paris Review, na edição 187, em 2008.
26 O plano-sequência é um plano longo, sem cortes, que de certa forma subs-titui uma sequência de planos. O plano é a unidade de tempo no cinema, uma cena sem nenhum corte (edição) é um plano.
Como seria o ponto de ônibus? O que mudaria na práti-
ca? Nesse caso, ela tentou incentivar as pessoas a refletirem
sobre a cidade dos sonhos de maneira menos abstrata. “Nor-
malmente, os movimentos sociais têm muita facilidade para
pensar as questões ideologicamente, nos direitos, mas muita
dificuldade de pensar espacialmente”, explica.
A interação depende do perfil do público: há pessoas
que logo começam a falar e trazem ideias. Outros, mais tí-
midos, entram e saem calados. “Mas acho que, no mínimo,
as perguntas que faço instigam o pensamento das pessoas,
elas tentam visualizar alguma coisa. isso é importante, nesse
momento elas já estão participando, elas se percebem, de
certa forma, sujeitas do trabalho. E para mim não basta ser
participante. O público precisa se perceber sujeito de deter-
minado processo”, reflete Kunsch.
A artista não quer que as pessoas apenas participem de
suas proposições, mas também que elas façam novas, num
exercício de cocriação. Num texto sobre trabalhos participati-
vos, o artista e educador norte-americano Ted Purves reflete
sobre a essência de trabalhos construídos em conjunto: “Por
‘cocriação’, eu quero dizer que, apesar de os projetos serem
instigados por um artista ou por um coletivo, todos têm sido
estruturados para permitir seu significado concreto e suas
resoluções possíveis; para serem reformulados por aquelas
pessoas que poderiam ser consideradas, do contrário, apenas
como espectadoras”.
77
o que você
quis dizer quando falou
que
um poema
deve agir
como
uma mala vazia?
[primeira pergunta
da entrevista com o
poeta Kay Ryan re-
alizada pela revista
Paris Review, na edi-
ção 187, em 2008.]
trazidos pelas pessoas, ela tenta mediar e articular o que
surge. “Conforme as pessoas passam a pensar em determi-
nada provocação, posso ser a mediadora que tenta articular
essas falas, nem que seja minimamente. A partir de alguma
coisa que alguém fala, eu digo ‘ah, tenho um excerto aqui
muito legal, relacionado com isso que você falou, aí mostro
o vídeo’. Em algumas apresentações, até falo sobre o conte-
údo dos vídeos, explico algumas das ações. Há quem queira
entender melhor como funciona uma ocupação sem-teto, e
a gente conversa sobre isso. Há outros casos em que não
se fala sobre nenhum vídeo desse jeito, daí a gente discute
outra coisa, como a linguagem do trabalho”, fala Graziela.
Em alguns momentos, as pessoas assumem tanto a dis-
cussão que a artista poderia sair da sala sem ser percebida.
“Claro que nunca sou apenas mais uma participante da con-
versa. Como propus o jogo, vou ter sempre algum olhar por
trás. Mas o melhor momento é a hora na qual sou completa-
mente dispensável nos diálogos”, comenta.
Tais melhores momentos não aconteceram apenas em
apresentações do Projeto Mutirão. Bem antes, quando dava
aulas de teatro, ela adorava deixar os alunos totalmente so-
zinhos dentro da sala, trabalhando sem o inquisidor olhar
adulto, sem palpites alheios. Na primeira metade da aula,
ela tentava ao máximo trazer referências para eles traba-
lharem. Depois do intervalo, o grupo inteiro fazia uma cena
improvisada, na qual lidavam com todas as dificuldades de
um processo coletivo. Kunsch saía da sala, e eles buscavam
caminhos, completamente sós. Depois, ela voltava e via o re-
78 79
sultado. “Costumo dizer que essa foi a minha melhor expe-
riência como professora, justamente quando eu não estava
na sala de aula. Foram os momentos nos quais eu fui uma
melhor professora”, explica a artista.
MAS COMO EXPLiCAR QUE ELE [O HOMEM]
SEJA TãO APAiXONADAMENTE PROPENSO
À DESTRUiçãO E AO CAOS?27
Na 29ª Bienal, Kunsch realizou diálogos com diversos
públicos, desde plateias que começaram com uma pessoa
até públicos compostos por 150 educadores. Dependendo
da situação, a interação se dava de maneira diferente. “Nor-
malmente, quando falo que a apresentação foi um desastre,
é quando ela é mais expositiva, quando falo mais do que
o público. Por outro lado, fiz uma apresentação puramente
expositiva num congresso acadêmico de cinema, em vinte
minutos, que depois rendeu um diálogo com o público que
foi super legal”, comenta. Nesse dia, o foco da discussão foi
a linguagem do trabalho. “Para mim, também é muito legal
quando o trabalho é discutido a partir do ponto de vista do
cinema, quando a ênfase não é só na luta política”, diz.
inclusive as apresentações que não foram muito legais
são vistas como importantes para o trabalho. Recentemente,
ela estava num teatro de arena. Começou a conversa meio
nervosa, porque decidiu fazer uma reflexão sobre o traba-
27 Dostoievski, 1864, via O livro das citações.
lho que até então não tinha feito, tentando buscar um novo
entendimento dos excertos, numa elaboração que ainda era
rasa. Começou a ler o que escreveu e tudo começou bem
mal. Até um momento de virada.
Kunsch grava todas as apresentações e depois retira ex-
certos dessas gravações que também são usados em outras
apresentações. “Num dos excertos dessa conversa no teatro
de arena, apareço numa mesa, com microfone, uma boa ilu-
minação em cima e uma projeção atrás. Parece muito com
um jornal de televisão. Só que ao mesmo tempo assoava o
nariz, muito humana, bem diferente dos âncoras na tevê.
Daí eu falei: ‘ainda tenho uma série de outros excertos para
mostrar para vocês, mas estou muito incomodada com essa
situação armada’, que no fundo foi armada por mim mesma,
e resultou num desastre”, lembra Graziela. Na apresentação
em questão, ela ressaltou para a plateia que seu trabalho se
recusa a fechar uma forma e busca um diálogo mais próximo.
Pediu para aumentar a claridade. O técnico de luz intensifi-
cou a luz na artista. “’Não, não, não em mim, aumente a
luz nas pessoas’, eu disse. Essa cena durou meros segundos,
mas é um dos meus excertos preferidos, desta parte dos víde-
os reflexivos. é um trecho que nasce justamente de um mo-
mento em que tudo estava dando errado”, comenta Kunsch.
Ou seja: o erro e o improviso também entram no trabalho e
reforça a ideia da participação da plateia como essencial e
como caminho para a obra.
80
QUANDO UM DiáLOGO COMEçA?
As conversas de que ela mais gosta são as mais extensas,
que duram horas e horas. Artistas que desenvolvem traba-
lhos participativos pautados pelo diálogo desempenham um
papel que, nas teorias de redes, levam o nome de netweaver,
alcunha dos que facilitam o espaço de diálogo e atuam como
“tecelões” da rede. Os netweavers fomentam a criação de
espaços em que as pessoas se sentem confortáveis para rea-
lizar trocas. “Uma das apresentações mais longas aconteceu
durante uma residência artística que fiz na Holanda. Apre-
sentei o Projeto Mutirão no apartamento da residência ar-
tística em que estava. Fizemos uma sopa coletiva. Como era
uma situação mais informal, a conversa durou cerca de cinco
horas”, comenta Kunsch.
Recentemente, a artista participou de uma exposição cha-
mada Conversas, em Curitiba, no Paraná, na qual uma das
conversas sobre o projeto durou cerca de oito horas. “Batizei
essa oficina com o título de outro trabalho meu, de vídeo: ‘Eu
sou ele, assim como você é ele, e eu sou você e nós somos
todos juntos’. Era para estimular que as pessoas se aproprias-
sem dos projetos. Uma das pessoas que estava registrando
em vídeo as conversas, entendeu bem a proposta. No final
da exposição, ela apresentou o Projeto Mutirão com excertos
filmados por ela mesma”, conta Kunsch. Outra pessoa, que
também estava nessa exposição em Curitiba, mandou para a
artista um livrinho com uma conversa fictícia sobre o Proje- –Quando um diálogo começa?
82 83
A CRiAçãO (MAS SERá PRECiSO REPETiR OUTRA VEZ,
DROGA?) é AVENTURA, é DESCOBRiMENTO. O CRiADOR
é AQUELE QUE SE ADiANTA. COMO PODERiA ENRiQUECER
O MUNDO SE SUA OBRA FOSSE CONDiCiONADA PELA NE-
CESSiDADE DE SER iMEDiATAMENTE ENTENDiDA, ASSiMiLA-
DA, APROVEiTADA?28
A artista convida o público não só a participar da cons-
trução da obra, mas a continuá-la: “Você que viu uma con-
versa do Projeto Mutirão pode assumir o trabalho e continuá-
-lo. Essas pessoas costumam me pedir pelo menos um DVD
com excertos para que façam apresentações nas cidades
delas. Sempre dou muita ênfase: esse arquivo pode crescer,
ou então pode ser um arquivo completamente diferente do
meu”, conta.
A única regra que ela pede: que cada vídeo seja um plano
único. “isso tem um sentido: são pecinhas que estão soltas,
lutas que muitas vezes estão isoladas, e o que a gente faz
nessas conversas é articular essas coisas num projeto coletivo.
Hoje em dia ainda não temos um projeto coletivo; só agora
estamos voltando a pensar nisso, num projeto de cidade, por
exemplo. E é claro que, quando acontecer uma apropriação
de fato, o projeto nem se chame mais Projeto Mutirão, talvez
nem precise mais desse histórico. Não terei como controlar,
nem saber como as pessoas se apropriarão disso”.
28 CORTáZAR, Julio. Papéis inesperados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
to Mutirão, na qual há trechos de entrevistas, fragmentos da
conversa que Kunsch realizou no Paraná, entre outras cita-
ções. Com feedbacks assim, o trabalho começa a transbordar
das mãos da artista.
O QUE FAZ COM QUE ALGUNS TRABALHOS
GANHEM ViDA PRóPRiA (E CONTiNUAçãO)
E OUTROS NãO?
Uma educadora da Bienal contou para Kunsch que alguns
professores se engajaram nas lutas no Movimento Passe Livre
contra o aumento da tarifa de ônibus. Eles não só começaram
a participar das manifestações, mas também a alertar passa-
geiros dentro dos ônibus sobre as causas que estavam sendo
defendidas. “isso tudo é extensão dessas conversas. Não dá
para determinar de fato a duração delas”, relata a artista.
Quando fala de apropriação do seu trabalho, ela deseja
que as pessoas façam mais do que apenas colaborar no envio
de vídeos para as apresentações (o que já acontece). A ideia é
que qualquer pessoa pegue um arquivo de excertos, tanto da
artista quanto outros quaisquer, e fomente novos diálogos.
“O objetivo é que cada vez mais existam outros personagens
pelo trabalho. Vários pontos formando uma rede, dando
força para que essa rede não seja só uma massa, mas que
também tenha um corpo”, diz.
84 85
O site do projeto entrou no ar no ano passado29, mas
online. há apenas a estrutura da página, sem nenhum vídeo.
Em breve, Kunsch quer transformá-lo num grande arquivo,
para disponibilizar os excertos acumulados até hoje e mo-
tivar a criação de mais um espaço de discussões, inclusive
com a possibilidade de que os usuários enviem outros vídeos
para arquivo. Nos últimos anos, Kunsch se aproximou dos
movimentos em prol de melhorias na habitação e transporte.
Então, muitos dos seus vídeos abordam essa temática. Com o
site, ela quer aumentar a diversidade das abordagens.
“Queria que o arquivo contivesse registros de todas as
lutas por mudanças progressistas”, comenta a artista. Essas
lutas, como reflete em sua dissertação, promovem as cha-
madas “políticas pré-figurativas” por meio de manifesta-
ções, ocupações e protestos. Tais pré-figurações “não apenas
anunciam como a sociedade poderia ser, como já constroem
uma outra sociedade”.
Aliás, também os diálogos de Kunsch abrem ca-
minho para uma nova maneira de organização cole-
tiva. O trabalho ainda não foi apropriado por tantas
pessoas, mas só o fato de existir essa possibilidade já si-
naliza uma mudança de perspectiva para o público.
E ela acredita que “os registros em vídeo dessas formas de
organização e situações [ocupações, debates públicos, mu-
tirões, etc.] podem contribuir visualmente com a instituição
de um imaginário; com a criação de uma outra sociedade”.
Para reforçar isso, ela se apóia nas ideias do filósofo grego
29 www.projetomutirao.org.
O que faz com que alguns trabalhos
ganhem v i d a p r ó p r i a
(e continuação) e outros não?
86 87
da luz do sol, dos reflexos no prédio e da movimentação ur-
bana. Como comenta ismail Xavier, citado por Kunsch na sua
dissertação, em Empire o artista estabelece “um continuum
entre o mundo da tela e o mundo cotidiano e procurando
dissolver as fronteiras entre objeto e obra de arte”30.
VOCê GOSTARiA DE PARTiCiPAR
DE UMA EXPERiêNCiA ARTíSTiCA?31
Durante a Ocupação Chiquinha Gonzaga, no Rio de Ja-
neiro, Kunsch propôs aos moradores uma dinâmica diferen-
te: “vamos criar um documentário sobre a ocupação, sem
diretores, colaborativamente?” A proposta se desenrolou,
rendeu boas imagens, mas acabou parada por circunstân-
cias diversas, como a falta de verba para bancar o básico das
filmagens, de fitas e câmeras. Mais recentemente, há cerca
de dois anos, ela está desenvolvendo um projeto na Comuna
Urbana Dom Hélder Câmara, em Jandira, SP, o primeiro as-
sentamento urbano do MST (Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra), no qual cinema e coletividade também são as
palavras-chave.
No assentamento, haverá 128 casas, uma escola para
crianças, uma creche e uma padaria, além de outras atividades
coletivas e de geração de renda, como um projeto audiovi-
sual. “Todo esse assentamento urbano está sendo construído
30 XAViER, ismail. . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
31 Título de um dos trabalhos artísticos do artista multimídia Ricardo Basbaum.
Cornelius Castoriadis, que considera a sociedade como algo
que existe por meio de “instituições imaginárias”.
E SE ViVêSSEMOS NUMA CULTURA DA PARTiCiPAçãO?
- Bora, pode entrar, pode entrar!
- Entra! Entra! Entra!
- Ninguém vai pagar essa porra! Entra aê!
- R$2,30 não dá!
- Ninguém vai pagar, mano!
- Vamo aê, entra!
Essas falas foram ouvidas no Terminal Parque Dom Pedro,
em São Paulo, no ano de 2006, durante uma manifestação
contra o aumento da tarifa do transporte público. A cena,
registrada por Graziela Kunsch, se transformou num excerto
intitulado Abertura de Portas, com 38 segundos. A ideia do
uso de trechos de gravações sem cortes, intitulados “excer-
tos”, é uma tentativa de dizer que “se trata de momentos,
de peças de um processo maior”.
Antes de Kunsch, diversos artistas, como o cineasta ira-
niano Abbas Kiarostami e o artista múltiplo Andy Warhol, ex-
ploraram a prática das gravações sem cortes. Um dos traba-
lhos de Warhol, chamado Empire, nasceu da seguinte ideia:
o artista posicionou uma câmera, por oito horas, de frente
para um edifício em Nova York, o Empire State Building. Oito
horas de gravação depois, estava registrado todo o percurso
88 89
com assessoria da USiNA, um coletivo de arquitetura do qual
faço parte. Todos os projetos do coletivo são desenvolvidos
com as famílias. Há discussões com os arquitetos sobre como
eles imaginam os espaços. Durante a semana, as construtoras
trabalham nas obras, mas nos fins de semana acontecem os
mutirões, com a participação de todos. Me chamaram para
fazer um documentário sobre o assentamento, que também
deveria ser gravado por mutirão, um documentário autogeri-
do”, comenta Kunsch.
‘E O PROBLEMA COM ESTEREóTiPOS NãO é QUE ELES SEJAM
MENTiRA, MAS QUE ELES SEJAM iNCOMPLETOS.’32 QUAL é O
ESTEREóTiPO QUE CONSTRUíMOS PARA A ARTE?
Em Jandira, o processo não pôde ser realizado tal como
idealizado pela USiNA e por Kunsch, mas persistindo na idéia
de um “documentário autogerido”, a artista vem perguntan-
do aos moradores que cenas precisam existir no documen-
tário sobre a história da Comuna e propondo atividades de
realização dessas cenas.
Tanto no Projeto Mutirão quanto no documentário da Co-
muna, Kunsch ainda assume o papel da mediadora, que arti-
cula as propostas e ideias que surgem. “Acho essa mediação
32 Frase proferida pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie, numa pa-lestra que foi registrada em vídeo e está disponível na internet, no endereço: http://www.ted.com/talks/lang/eng/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html
importante. é uma postura de indivíduo diferente: que está
‘em relação’, que co-labora nesse processo coletivo”, explica.
Trata-se de práticas que apontam uma nova noção de
autoria. Ainda que a ideia inicial seja de uma só pessoa, o de-
senrolar dessa proposta se pauta num processo que diminui a
possibilidade do seu fim ser atribuído a um só. Um processo
coletivo depende da destruição do púlpito do autor-individual,
do autor-excludente. A própria noção de autor é relativamen-
te recente. “O autor é uma personagem moderna, produzi-
da sem dúvida por nossa sociedade na medida em que, ao
sair da idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo
francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio
do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da ‘pessoa
humana’”, conta Roland Barthes no texto A morte do Autor.
COMO NOSSOS GESTOS REVELAM
QUEM SOMOS E O QUE ViVEMOS?33
A noção de autoria está ligada à tentativa de aproximar
“pessoa” e “obra”. Barthes discute exatamente a ideia de
autoria na literatura, numa reflexão que pode facilmente ser
transposta para qualquer outro ramo da arte. No limite, o
sociólogo francês fala de como o ser humano se expressa:
“o escritor só pode imitar um gesto sempre anterior, jamais
original; seu único poder está em mesclar as escrituras, em
33 Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, p. 24.
90 91
fazê-las contrariar-se umas pelas outras, de modo a nunca se
apoiar em apenas uma delas”. O escritor jamais é original,
sempre remete a um gesto anterior.
“Quisera ele exprimir-se; pelo menos deveria saber que a
‘coisa’ interior que tem a pretensão de traduzir não é senão
um dicionário todo composto, cujas palavras só se podem
explicar através de outras palavras”, completa Barthes. Qual-
quer texto – e obra de arte – transborda um sentido único,
vai além do que o autor pensou; afinal, a própria criação se
dá em dimensões múltiplas. As abordagens possíveis diante
de qualquer trabalho artístico são diversas – e não intrínsecas
à obra. O indivíduo é o responsável por escolher a forma de
aproximação. No caso da literatura, o leitor. No caso da obra
de arte, o espectador. O espectador é o ponto de convergên-
cia da obra. Como diz Barthes, “o nascimento do leitor deve
pagar-se com a morte do Autor”. é no leitor/espectador que
a multiplicidade se reúne. Motivar o espectador a se perceber
como sujeito da obra é uma ação típica da arte participativa.
Numa análise mais minuciosa, a arte participativa está ape-
nas dando consciência ao espectador do que ele já é.
O QUE UMA OBRA DE ARTE Já MOTiVOU VOCê A FAZER?
(O QUE ESTE LiVRO MOTiVA VOCê A FAZER?)
Nos grandes teatros, por exemplo, o papel do especta-
dor não fugia muito do métier previsto pelo autor: chorar, rir
etc., etc. “Tudo o que o povo exige da tragédia é ficar bem
comovido, para poder derramar boas lágrimas; já o artista,
ao ver uma nova tragédia, tem prazer nas invenções técnicas
e artifícios engenhosos, no manejo e distribuição da maté-
ria, no novo emprego de velhos motivos, velhas ideias. Sua
atitude é a atitude estética frente à obra de arte, a daquele
que cria; a primeira descrita, que considera apenas o con-
teúdo, é a do povo”, lembra Nietzsche, no livro Humano,
Demasiado Humano. Ele fala de um público que vê a obra
com certo distanciamento.
é como se até o século 20, o espectador fosse um “es-
pírito cativo” – usando um termo do filósofo alemão. Para
ele, os espíritos cativos são aquelas pessoas com uma “es-
treiteza de opiniões transformada em instinto pelo hábito”.
Elas agem sempre pelos mesmos motivos. O filósofo não fala
da possível postura desses espíritos cativos diante da arte,
mas é fácil prever. Seja no século 19 ou no 21, um espíri-
to cativo – uma pessoa com estreiteza de opiniões – pro-
vavelmente vai rir durante uma comédia, provavelmente vai
chorar diante de uma tragédia, provavelmente vai estranhar
uma escultura deformada. Claro que pode haver variações,
mas o que está em discussão vai além disso: há pessoas que
condicionaram seus pensamentos a ponto de anularem o
que elas não querem ver, de ignorarem as possibilidades que
elas não conhecem. isso é fato, inclusive tema de pesquisas
recentes. Na psicologia e na ciência cognitiva, os pesquisado-
res dão o nome de “esquemas” para as estruturas mentais
que usamos para representar os aspectos do mundo à nossa
volta. Os esquemas não só organizam nosso conhecimento,
93
O que
uma obra de arte já motivou
você a fazer?
(O que este livro motiva você a fazer?)
mas também formam uma espécie de arquivo que é con-
sultado constantemente, para que lidemos mais rápido com
as informações à nossa volta. “’Esquemas’ podem realmen-
te entrar no caminho da nossa capacidade de observar dire-
tamente o que está acontecendo”, explica Eli Pariser34. No
ano de 1981, a pesquisadora Cláudia Cohen mostrou para
um grupo de indivíduos o vídeo de uma mulher comemoran-
do seu aniversário. Alguns disseram que a moça era garçone-
te, outros que ela era bibliotecária. As pessoas que disseram
que ela era garçonete se lembraram da mulher com um copo
de cerveja. Os outros, que atribuíram à jovem a profissão de
bibliotecária, recordaram que a moça usava óculos e ouvia
música clássica. No vídeo, as três informações estavam à
mostra. Mas os pesquisados acabaram se esquecendo da in-
formação diferente daquela que eles intuíram.
Ou seja, nossa mente edita o mundo. Certos ambientes
geralmente impõem regras – certos museus, por exemplo,
colocam até fitas no chão para que não nos aproximemos
das obras. isso castra as possibilidades presentes. Assim, as
pessoas se tornam os espíritos cativos. Criam esquemas rígi-
dos em suas mentes. Trabalhos que convidam o espectador a
participar da sua construção apenas mostram outras possibi-
lidades que na maioria das vezes estão presentes; escondidas
às vezes, mas presentes.
Quando um espectador constrói a obra junto com o ar-
tista, há uma imersão do público no trabalho. isso dá uma
nova visão de mundo. Graziela Kunsch, artista do Projeto
34 PARiSER, Eli. . New York: Penguin Press, 2011.
94 95
Mutirão, sabe disso muito bem. Ela geralmente participa dos
processos que documenta.
‘PARA CANTAR é PRECiSO PERDER
O iNTERESSE DE iNFORMAR’35?
Kunsch já teve problemas em se assumir como artista,
mas não tem mais. Todos os papeis que desempenha, seja
como jornalista, curadora ou professora, são formas da sua
prática artística. “Não importa muito como chamamos essas
linhas de atuação, nem tudo precisa do estatuto da arte, im-
porta é que esses trabalhos aconteçam. Mas gosto de pensar
no que faço como arte, porque gosto de estudar a arte e
entender como a nossa sensibilidade muda com o passar dos
tempos”, comenta.
UM DiA OS PROBLEMAS ACABAM?
Av. Roberto Marinho, 18 de outubro de 2004.
Numa manifestação popular, jovens rebatizaram a ave-
nida: de Av. Jornalista Roberto Marinho para Av. Jornalista
Vladimir Herzog. intervenção efêmera na duração, mas signi-
ficativa no ato. Kunsch estava lá, filmou tudo. é mais um dos
excertos que ela usa em suas apresentações. Nos seus traba-
35 BARROS, 2010, p. 458.
lhos gravitam questões semelhantes, ligadas a engajamento
e transformação social.
“Penso que precisamos deixar de pensar o espaço de
exposição como espaço de contemplação e passar a pensá-
-lo como espaço de uso”, fala a artista. A arte participativa
de Kunsch flerta com a educação, mais exatamente com um
processo educativo coletivo e democrático. Desde os diálo-
gos propostos pelo grupo de artistas do Group Material, que
chegava a abordar a educação como tema de seus trabalhos,
surgem cada vez mais trabalhos artísticos ligados a práticas
educativas – e participativas. “A curadoria contemporânea é
marcada por uma volta à educação. Formatos educacionais,
métodos, programas, modelos, prazos, processos e procedi-
mentos tornaram-se difundidos na praxis da curadoria, da
produção de arte contemporânea e em suas estruturas mais
cruciais (...) a curadoria opera cada vez mais como uma prá-
tica educacional expandida”36, é o que dizem Paul O’Neill
e Mick Wilson no livro Curation and the Educational Turn
(Curadoria e a Volta da Educação).
No Brasil, por exemplo, o Educativo da Bienal é um proje-
to que visa reforçar a relação entre o público e a arte. Como
conta Stela Barbieri, artista e curadora do Educativo37, “um
dos nossos maiores desafios é o diálogo. Precisamos atentar
para a questão das várias vozes que nos circundam: a voz do
artista, do curador, da criança, do visitante de procedências
36 Tradução Livre
37 Em entrevista para a pesquisadora Lucia Pasqualucci, divulgada no endereço http://goo.gl/SCFP4.
96 97
transborda para o cotidiano. “Pode-se, assim, sonhar com
uma sociedade dos emancipados, que seria uma sociedade
de artistas. Tal sociedade repudiaria a divisão entre aqueles
que sabem e aqueles que não sabem, entre os que possuem
e os que não possuem a propriedade da inteligência”, apon-
ta o filósofo Rancière.
VOCê Já PENSOU COMO A SUA PRESENçA
PODE ALTERAR OS ESPAçOS?38
38 Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, p. 10.
variadas, do segurança da sala, do educador. Essa dimensão
humana do trabalho precisa ser valorizada”. Para ela, dar es-
paço para que as pessoas se coloquem é essencial “para nos
tirar da arrogância, às vezes extremamente analítica, intelec-
tualizada ou extremamente sensível”.
O Educativo desenvolve projetos com professores, estu-
dantes e indivíduos dos mais diversos públicos, que partici-
pam de atividades pensadas para que o conteúdo da Bienal
seja mais profundamente observado. Em 2010, devido a par-
cerias da Bienal com secretarias de educação, escolas particu-
lares e ONGs, cerca de 35 mil educadores foram capacitados
para trabalhar o tema da Bienal em aula.
O material usado pelo Educativo estimula um olhar parti-
cipativo sobre a arte, uma participação que desponte do pró-
prio espectador. Em vários trechos, os textos indicados pela
Bienal sugerem que as pessoas se apropriem das ideias discu-
tidas e participem da ressignificação dos trabalhos apresen-
tados. Num trecho do caderno com fichas sobre artistas, por
exemplo, o Educativo propõe: “ao longo de uma semana, co-
lete a sucata produzida na sua casa. Faça uma construção com
essas sobras de materiais”. Essa dica figura logo após a descri-
ção de uma obra da artista alemã isa Genzken, que garimpa
mercadorias e artigos diversos para transformá-los em arte.
Tanto no Educativo quanto nos diálogos de Graziela Kuns-
ch, há uma discussão em curso com questões afins, como:
de que modo ressignificamos os processos de aprendizado?
Como motivarmos a inteligência coletiva? Do caldeirão de
referências citadas, começa a surgir um tipo de arte que
98 99
ATo IV
ARTE PARTICIPATIVA
E TRANsfoRMAção soCIAl
– A sociedade de massas é complicada. Despertar al-
guém é um luxo. Sabe de uma coisa que, do alto dos meus
55 anos, eu descobri? O homem é mau, comentou Mônica
Nador, após chupar uma laranja.
A laranja ainda estava verde por fora. A cor laranja que a
laranja não tinha estava nas portas atrás dela. A casa é bas-
tante colorida, com paredes repletas de formas e desenhos.
Ela estava sentada num banquinho, ao lado da cozinha
e do quarto em que dorme: dois cubículos com poucos mó-
veis. Na sua casa, localizada no Jardim Miriam, na periferia de
São Paulo, não há nem sala nem TV. Antes, ela morava nos
Jardins, bairro de classe média alta. Então, optou por uma
mudança radical.
100 101
A casa atual de Mônica Nador é mais do que uma casa. é
também um ateliê. Fora o quarto, cozinha e dois banheiros, há
um enorme salão, no qual cotidianamente ocorrem oficinas
de cinema e de estêncil, além de enérgicas discussões sobre
arte contemporânea e filosofia.
– Você acredita que o homem é mau?, perguntei.
QUAL A POSSiBiLiDADE DE EXiSTiR ARTE
EM UM AMBiENTE iNDiFERENTE?39
– Absoluta certeza. A gente não presta. A gente é isso
aí. Tem muita gente ruim. O homem é ruim. Quando saí da
burguesia e vim morar aqui, tinha certeza que tudo era culpa
da burguesia. Mas não é bem assim...
– é... Mas você não acha que alguns comportamentos só
existem devido a circunstâncias complicadas, que levam as
pessoas a algumas ações mais perversas?
– A gente vê crianças abandonadas na rua e não liga, en-
tende? O ser humano optou por isso. Estamos vivendo isso.
Banalizou-se o mal. Por que a gente aceita isso? Quem não
aceita é louco, como eu. Sair dessa mesmice faz de você um
herói. Acho isso um saco, não faço mais do que a minha
obrigação. Eu, que não faço mais do que minha obrigação,
tenho que dormir com esse barulho ‘ah, como você é boa’,
‘como você é especial’.
39 Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, p. 54.
Você acredita que o homem é mau?
102 103
Os panos foram pintados com uma técnica de estêncil
desenvolvida por Nador, mas tudo foi trabalhado a várias
mãos, com autoria compartilhada entre ela e os moradores
do Jardim Miriam. As cores dançavam nos imensos panos
pintados. Cada um dos tecidos se estendia pelo espaço com
seus imponentes seis metros de altura. Pendiam do teto e se
movimentavam como se sentissem a presença das pessoas. E
na exposição não havia apenas panos pintados, mas também
a presença de moradores do Jardim Miriam, do projeto Jardim
Miriam Arte Clube (Jamac), num núcleo de pintura em plena
atividade. Eles passavam várias horas por dia no ibirapuera,
focados nas produções. Em conversa, um deles chegou a co-
mentar: “algumas estampas levam meses de trabalho”.
Tambores e mais tambores verdes faziam uma fila silen-
ciosa, lado a lado, numa das paredes do pavilhão. Eram mais
pinturas, todas com a precisão da paciência. A repetição de
formas dos desenhos quase hipnotizava os espectadores que
observavam o diálogo permanente entre as obras expostas e a
arquitetura do espaço. Roxo, azul, verde, preto, vermelho. As
cores se sobrepunham, emissárias da intensidade de uma arte
feita por uma comunidade de mãos.
HOJE EM DiA Há MAiS ARTiSTAS DE MERCADO OU ARTiSTAS
QUE PROMOVEM TRANSFORMAçõES SOCiAiS? E O QUE iM-
PORTA SE Há MAiS DE UM GRUPO DO QUE DE OUTRO?
– O que fez você ter tão clara essa ideia do mal no ser
humano?
– As pessoas de todas as classes são difíceis... Algumas
vezes, pensam que eu tento me aproveitar delas... Outro dia li
uma crítica do sociólogo Slavoj Zizek, e ele dizia que a gente
devia parar de considerar o corpo ideológico como um desvio
cognitivo da humanidade e encarar os fatos. Entendo o ‘en-
carar os fatos’ como ‘o homem é mau’. Não é que o homem
não entendeu direito o que acontece. O homem entendeu e
fez um opção, optou pelo mundo atual. Agora, a gente tem
que trabalhar dentro dessa realidade. O mundo depende de
você e de mim, depende de todos.
AS PESSOAS ESTãO DiSPOSTAS A PARTiCiPAR
MAiS ATiVAMENTE DA ARTE – E DO MUNDO?
O mundo depende de todos. E a imagem de todos estava
estampada nos cerca de quarenta panos de seis metros que
compunham uma exposição do Pavilhão de Culturas Brasi-
leiras, em São Paulo, no primeiro semestre de 2011. Havia
imagens de pessoas, folhas, cajus, caules, igrejas, violões,
tambores, peões e manchas.
Aliás, havia também quadrados, linhas e estrelas.
E sóis. E círculos. E fitas. inúmeras imagens repetidas. Tais
panos eram uma prova da riqueza da imaginação humana –
e a imaginação flerta com o infinito.
105
Hoje em dia há mais artistas de
mercado ou artistas que promo-
vem transformações sociais?
E o que importa se há mais de
um grupo do que de outro?
Mônica Nador é a idealizadora do Jamac, projeto artís-
tico que se constitui com a soma da inspiração de dezenas
de pessoas. Nador é uma artista que “percebe, talvez como
poucos, que a cultura não é propriedade só de alguns, que a
beleza deve ser apropriada por pessoas em diferentes condi-
ções sociais e carrega consigo, para materializar a proposta,
jovens que se somam na caminhada, filhos da periferia, aglo-
merações urbanas, num país que se urbanizou extremamente
rápido e infelizmente não transportou o legado da cultura
local, ligada à labuta com a terra, para o nicho urbano”, refle-
te Mauro Pinto de Castro, colaborador do Jamac, num texto
que acompanhava a exposição.
O Pavilhão de Culturas Brasileiras não foi o primeiro a
receber a arte de Nador. Em 2009, ela também realizou ex-
posições na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Museu
da Casa Brasileira (MCB). As oficinas de estêncil do projeto
são apenas parte das atividades – e os panos e paredes pinta-
das representam apenas o fim concreto do trabalho. O mais
importante é o processo. é a transformação das pessoas que
participam dos percursos traçados coletivamente.
A ARTE PARTiCiPATiVA CABE NOS MUSEUS?
“Eu só sei fazer arte, é a minha formação, a minha lin-
guagem, o meu instrumento para chegar nas pessoas. E é isso
que faço, não vou virar burocrata. Nas oficinas de estêncil,
106 107
sempre falo: ‘vou ensinar para vocês uma técnica com a qual
vão poder pintar de panos de prato a paredes de museu’. O
aluno pode até ganhar dinheiro com isso. Não acho que a arte
deva ser distanciada da realidade”, comenta Nador. E os alu-
nos realmente aproveitam a técnica que aprendem, empre-
gando-a nas mais variadas superfícies, de paredes a roupas.
Desde quando nasceu, em Ribeirão Preto, filha de pai
húngaro e mãe de ascendência italiana, ela sempre este-
ve próxima da arte. Seu pai era meio médico, meio artista.
Durante a semana, trabalhava num hospital. Aos sábados e
domingos, transformava-se num pintor de quadros. Mas ela
experimentou outras áreas antes de decidir enveredar pelas
artes. Começou a estudar arquitetura em 1974, na antiga
FAUSJC (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Eumano Fer-
reira Veloso de São José dos Campos), ainda em tempos de
ditadura no Brasil. Em 1976, a faculdade fechou. Um ano
depois, foi estudar história e pedagogia na Unicamp (Univer-
sidade de Campinas).
Continuava insatisfeita, meio desestruturada, só o psica-
nalista a entendia. Depois de muito pensar, foi fazer artes plás-
ticas na Faap (Fundação Armando álvares Penteado). “Com a
arte, você constrói maneiras de se expressar”, diz. Formou-se
em 1983 e dedicou alguns anos à pintura. Já no meio da déca-
da de 90, começou a achar que pararia de fazer arte. “Era uma
vida super difícil, com poucas opções de trabalho interessan-
tes”. Ela não mais se sentia confortável com as dinâmicas do
mercado da arte. Em 1995, entrou na pós-graduação, então
se aproximou da arte como nunca antes. Encontrou referên-
cias novas. Percebeu que poderia fazer um trabalho próprio,
fora do circuito.
Nador tinha tido contato com obras de Florestan Fer-
nandes, Celso Furtado, entre outros, ainda quando estudava
arquitetura. Mas na Faap, esses nomes sumiram das biblio-
grafias recomendadas. Por um bom tempo, ela chegou a
acreditar que não existia alternativa para as questões sociais,
a não ser que ocorresse um movimento de massas. No mes-
trado, desconstruiu essa ideia após entrar em contato com
novas reflexões. Por exemplo, uma das noções que impac-
taram Nador surgiu do texto The end of painting (“O fim da
pintura”), escrito por Douglas Crimp40, no qual o autor dis-
cute a “condição agonizante da pintura”. “A partir de 1996,
depois do enfrentamento das ideias de Crimp, a artista passa
a elaborar um trabalho que deriva da sua pintura inicial reco-
nectando-a à realidade. Deixa de ser artista acrílic on canvas
[que segue técnicas tradicionais] e segue para o espaço peri-
férico, para o encontro com novas áreas nas quais julga mais
necessárias as camadas de tinta”, aponta a pesquisadora Syl-
via Furegatti na sua tese sobre arte e meio urbano, na qual
comenta a trajetória de Nador.
A CONViCçãO DE JEFFERSON DE QUE
A EDUCAçãO é O PROJETO MAiS iMPORTANTE
PARA UMA SOCiEDADE DEMOCRáTiCA AiNDA
é VáLiDA OU FOi CONVERTiDA EM UM MiTO?41
40 CRiMP, Doulgas. . in: On the museum ruins. MiT Press: Cambridge, 1993.
41 Pergunta contida no cartaz-convite de um dos trabalhos do Group Material.
108 109
Durante o mestrado, defendido na ECA (Escola de Co-
municações e Artes da USP), Nador desenvolveu um projeto
chamado Paredes Pinturas, no qual colocou em prática a ideia
de pintar paredes de casas com estêncil. Com esse projeto,
viajou o país, aproximando-se de realidades bastante precá-
rias. Como diz Furegatti, “a preocupação de Mônica, nesse
momento, está em estabelecer uma qualidade para a pintura
que compreenda acesso à obra artística por pessoas e lugares
marginalizados por aquela primeira sociedade que conhecera
nos arredores dos museus e das galerias”.
O que a artista mais queria naquele momento era imer-
são: almejava morar em algum lugar periférico para desen-
volver um trabalho mais profundo. “O circuito não me sa-
tisfez. Dentro dele, fazia apenas intervenções pontuais, não
criava vínculos fortes com os lugares em que eu trabalhava,
era tudo muito rápido”, comenta a artista. Daí, foi trabalhar
na Associação Arte Despertar, no Jardim Miriam. O que deve-
ria durar um ano não passou de seis meses. As formalidades,
entre outros problemas, a incomodavam fortemente. “Falei:
‘quer saber? Vou ser meu próprio patrão! E me virei para vir
morar no Jardim Miriam. Formei uma OSCiP [Organização da
Sociedade Civil de interesse Público] e procurei pessoas que
me ajudassem nessa transição”.
A artista conhece membros do coletivo Consulta Popu-
lar, que tem ligações com lideranças do Brasil inteiro. Nador
acionou amigos e pediu que indicassem nomes de lideranças
no Jardim Miriam, que poderiam ajudá-la no estabelecimento
do projeto que queria desenvolver. “Quando consultei meus
amigos, eles me falaram para procurar uma pessoa chamada
Agnaldo. Ele foi me encontrar onde eu morava, nos Jardins.
Daí ele me falou que eu deveria conhecer o Mauro Castro.
Começamos a fazer reuniões dominicais, à tarde, na casa do
Mauro. Foi um período longo, mais de um ano”, conta Nador.
Castro é um velho militante do bairro. Foi metalúrgico duran-
te 30 anos, depois conseguiu cursar ciências sociais na PUC-
-SP e hoje é professor de geografia em uma escola pública do
Jardim Miriam.
O QUE A ARTE MUDA NAS PESSOAS?
A dificuldade de Nador em convencer as pessoas quanto
à validade do trabalho que queria colocar em prática resi-
dia no fato de que muitas pessoas já passaram pelo Jardim
Miriam para implantar projetos – e a maioria dessas ações
apenas frustrou os moradores. Na década de 70, por exem-
plo, estudantes da USP iam ao Jardim Miriam discutir política
com as pessoas. Havia também um movimento de saúde,
entre outros. Mas a maioria das pessoas que foram ajudá-
-los havia abandonado os projetos. “Então combinamos: nós
nos envolveríamos no projeto de arte e, em contrapartida,
ela ofereceria para a gente um curso de economia política”,
conta Mauro. Para os moradores do Jardim Miriam, além da
arte, também era importante uma ação de formação educa-
tiva mais concreta. Enfim, em 2004, nasce o projeto.
110
Mauro e outros da região também ajudaram Nador em
atividades que foram além das portas do ateliê no Jardim Mi-
riam, intermediando o contato entre a artista e escolas, por
exemplo. De vez em quando, ela promove ações em colégios,
mas atualmente as atenções estão voltadas para o Jamac.
“Em um projeto como esse não há retornos financeiros. Há
muita dedicação, isso sim. Há muito esforço voltado para um
sonho: tornar a arte acessível, fazer uma arte compartilha-
da”, diz Mauro. Ele comenta que Nador vem fazendo uma
ação inclusiva, com a intenção de democratizar a arte. “Há
muitos jovens aqui do bairro envolvidos com o projeto. A
vinda dela contribuiu para o entendimento de que a cultura é
fundamental para a transformação social. Com o Jamac, sur-
giram novas possibilidades. é um caminho sem volta. Não dá
para mudar a realidade só com asfalto ou postos de saúde.
Você só transforma a sociedade quando transforma os valo-
res culturais”, explica o professor.
O impacto do projeto está aumentando a cada dia. Há
uma satisfação clara nas falas de Nador. “Depois de vir para
cá, a cultura entrou na agenda das pessoas, elas assumiram
que a cultura é um importante instrumento de cidadania
para a criação de redes de sociabilidade”, relata.
A ARTE SE DiSTANCiOU DAS PESSOAS OU AS PESSOAS
SE DiSTANCiARAM DA ARTE OU NENHUM DESSES
DOiS MOViMENTOS OCORREU?
a arte
se distanciou das pessoas
ou
as pessoas
se distanciaram da arte
ou
nenhum desses dois movimentos ocorreu?
112 113
das grandes obras de museus mobiliza bilhões, mas também
o submundo da arte, movido por roubos e vendas não de-
claradas, movimenta cifras estratosféricas: anualmente, há
transações que chegam a US$ 6 bilhões42.
Muitos trabalhos de arte participativa nem envolvem ob-
jetos. Resumem-se a ações, diálogos. Aliás, o mais importante
nesse tipo de arte se dá no contato entre as pessoas. Ainda
que haja algum resultado concreto ao término dos processos,
não é isso o mais importante. O que pulsa na arte participativa
são as relações entre as pessoas e os aprendizados que surgem
na “co-construção”, na experimentação compartilhada.
O QUE O PúBLiCO QUER DO ARTiSTA?
O QUE O ARTiSTA QUER DO PúBLiCO?
Em outro dos cafés filosóficos ocorridos no Jamac, um
morador do Jardim Miriam levantou a seguinte pergunta:
“Quando converso sobre essa tal de arte contemporânea
com meus colegas que dão aulas de educação artística, eles
não sabem o que é, ou não gostam, e não querem nem co-
nhecer. Por que isso acontece?”. Celso Favaretto, professor
da Faculdade de Educação da USP, deu uma resposta impreg-
nada de reflexão histórica. “A arte é algo que sempre fez
parte do dia a dia das pessoas, da vida que elas levam nas
casas, igrejas, associações, escolas, clubes... Acontece que
42 informação da interpol, citada em matéria da edição 464 da revista istoé Dinheiro, de agosto de 2006.
A artista já mora no Jardim Miriam há sete anos. E na
casa dela, que é de certa forma uma casa coletiva, os fins de
semana são animados. Atualmente o Jamac organiza cafés
filosóficos mensais, nos quais professores da USP são convida-
dos para debater temas diversos com os moradores da região.
Ela ri ao lembrar de um dos últimos cafés. Num debate
com um professor de filosofia estética, especialista em Hegel,
um dos moradores do Jardim Miriam perguntou a opinião do
acadêmico sobre a arte dos grafiteiros e dos pixadores. “Nós
começamos uma discussão muito democrática e rica”. O pro-
fessor falou que não daria para chamar certas práticas de
arte. Então ela interveio e disse: “Os teóricos estudam uma
coisa muito diferente daquilo que a gente faz”. O engraçado,
de acordo com ela, foi que ninguém brigou. As discordâncias
foram expostas sem problemas. Como afirma o professor da
PUC-SP, Miguel Chaia, o trabalho de Nador “é uma reação à
arte que quer ser imune à realidade circundante”.
Um diálogo assim, inserido num projeto artístico, aponta
um caminho diametralmente oposto ao da arte baseada no
espetáculo. “O espetáculo é, por definição, imune a ativi-
dade humana, não acessível a qualquer revisão ou correção
projetada. é o contrário do diálogo. (...) é o sol que nunca se
põe no império da passividade moderna”, explica o francês
Guy Débord na obra Sociedade do Espetáculo. Por exemplo,
a caveira cravejada de brilhantes criada pelo britânico Da-
mien Hirst, e vendida por 100 milhões de dólares, é puro
espetáculo. Abundam obras de arte que impedem que o sol
do império da passividade dê adeus. Não só o mercado oficial
114 115
Atualmente, ela tem uma empresa chamada Pare-
des Pinturas, que pinta casas do CDHU (Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de
São Paulo), num trabalho de recuperação urbana. Traba-
lhos artísticos são desenvolvidos nos prédios, sempre com
a participação da comunidade.
A DiSTâNCiA ENTRE A ARTE E A ViDA DAS PESSOAS
PODE SER ANULADA DE QUAiS MANEiRAS?
“Nós colocamos a mão na massa, pintamos as casas das
pessoas, deixamos os espaços lindos, limpamos o que está
sujo... Não quero saber de arte transcendente, quero trans-
cendência na terra”, diz Nador com muito entusiasmo. “A
coisa mais importante que existe é a vida da gente, não é a
arte. Mas sou artista. E o que quer dizer isso? Que tenho al-
guns instrumentos, conhecimentos. Por isso, vou fazer minha
vida por meio da arte, e quero falar isso para mais gente,
dizer que isso é possível, sim, que a arte pode estar bem mais
próxima da vida da gente”, completa.
A modernidade nos legou um trunfo: colocou
a definição de arte na mão dos artistas e interessados.
“A partir do momento que o Duchamp exibe um urinol no
museu, um grande tapete foi puxado: o da visão burguesa
de arte”, diz Nador. Na maior parte do tempo, o trabalho da
artista é legitimado apenas pelas pessoas ao seu redor, pelo
quando chegou o iluminismo, a coisa tomou um rumo muito
particular, cujo acompanhamento a população foi impedida
de fazer”, disse o professor.
Numa outra oportunidade, Favaretto voltou ao Jamac
para falar sobre a relação entre arte e política entre os 1940
e 1970. Com tantas discussões, nascem novas mentalidades.
“Aqui estamos fazendo formação de pessoas”, diz Nador. O
Jamac busca levar a arte novamente para a rotina das pes-
soas. inclusive o projeto virou Ponto de Cultura. Agora é um
espaço apoiado financeira e institucionalmente pelo gover-
no, reconhecido como um lugar que desenvolve ações com
impactos socioculturais relevantes.
Na arte participativa e compartilhada de Mônica, não só o
autor sai do púlpito, mas a arte também. Ela deixa de ser um
artigo especial, para poucos, cujos significados estão guarda-
dos a sete chaves. A arte vai parar na sala, cozinha, banheiro.
QUEM ASSiNA UMA OBRA FEiTA COLETiVAMENTE?
As pessoas que mais se destacam nas oficinas são con-
vidadas para trabalhar com Nador. Há quem more em bair-
ros distantes e ainda assim frequente o Jamac assiduamente.
Odete é uma dessas pessoas. Ela é artista, então também cola-
bora com a Mônica Nador na realização de aulas. “A Odete já
me disse que uma das coisas que mais a marcaram no projeto
foi a convivência com outras classes sociais”, comenta Nador.
116 117
TODOS OS TRABALHOS ARTíSTiCOS TêM
FiM
?
público – e isso significa uma grande quebra de paradigmas. E
mais: ela não é a única artista da história toda. Cada vez mais
frequentadores do Jamac se transformam em artistas, à sua
moda, num movimento de troca e aperfeiçoamento constante.
TODOS OS TRABALHOS ARTíSTiCOS TêM FiM?
O Jamac promove impacto profundo sobre a vida das
pessoas envolvidas. Se para modificar uma realidade é neces-
sário mudar os valores culturais em vigência, Mônica Nador
conseguiu atingir o ponto nevrálgico da situação na qual se
inseriu. Por meio da arte, mira-se a recriação do espaço e das
relações.
A arte de Nador promove conexões entre as pessoas, téc-
nicas e conteúdos. Criam-se novas conexões o tempo todo.
O Jamac conversa com Rancière: “A arte já não quer mais
responder ao excesso de commodities e sinais, mas à falta de
conexões”, comenta o filósofo francês no livro Problems and
Transformations in Critical Art.
NO QUE CONSiSTEM EXATAMENTE ESSAS NOVAS
COLETiViDADES QUE NãO CABEM MAiS NA
DiCOTOMiA NATUREZA E SOCiEDADE?43
43 Pergunta contida em entrevista da revista CULT com o antropólogo Bruno Latour, na edição 132, p. 14.
118 119
Tanto no trabalho de Nador quanto em outras obras de
arte participativa já citadas, a generosidade é uma virtude
presente. Ela diria que não, que ela não está fazendo mais do
que sua obrigação. Mas é inegável seu esforço em prol de um
impacto social. E é uma generosidade diferente, que não vê
no outro um coitado, mas um protagonista, sujeito.
“Artistas interessados em diferentes conceitos e cau-
sas chegaram, simultaneamente, ao desenvolvimento
de práticas ‘generosas’ por uma variedade de razões”,
explica Ted Purves, no livro What we want is free: generosi-
ty and exchange in recent art (“O que queremos é a liber-
dade: generosidade e troca na arte recente”). Tais razões,
segundo Purves, incluem o interesse em promover o aces-
so democrático ao “mundo da arte”, críticas a economia,
valorização de políticas locais entre outras motivações.
O autor fala da generosidade na arte por meio de trabalhos
onde há uma aproximação significativa entre público e artista.
Como num dos trabalhos do artista norte-americano Ben
Kinmont, que ofereceu cafés da manhã na sua casa durante
dois meses para quem quer que aparecesse – e entre os
participantes havia mais estranhos do que amigos. Por meio
de trabalhos baseados em ações generosas e trocas alterna-
tivas se estabelece “um fórum de contestação social e críti-
ca”. E o próprio Jamac é uma espécie de fórum. Um fórum
que caminha lado a lado com a apropriação de linguagens
plásticas e a experimentação artística. E a artista está aberta
à ressignificação contínua do projeto, que assume a multipli-
cidade como identidade.
ATo V
NuNCA hAVERá uMA obRA-PRIMA wIkI44?
“Não acredito que uma grande obra de arte já tenha
sido criada por consenso, muito menos por vários editores.
Nunca haverá uma obra-prima wiki. isso é porque a arte, se
tem algum valor, é o do produto de percepções profundas
e muitas vezes racionalmente incomunicáveis. Quem tentar
explicar ou compartilhar essas percepções em uma obra de
arte coletivamente criada vai deparar com uma negociação e
reedição delas em banalidades”, escreveu o jornalista e críti-
co britânico Jonathan Jones em seu blog no jornal The Guar-
dian45. Jones é categórico, não faz rodeios ao criticar a arte
participativa. Mas seu discurso não abarca a complexidade
44 “Wiki” significa “colaborativo”. Os softwares wiki, por exemplo, permitem a manipulação coletiva.
45 http://www.guardian.co.uk/artanddesign/jonathanjonesblog/2010/mar/02/tunick-gormley-interactive-art (acessado em 2 de novembro de 2011)
120 121
da realidade. No fundo, não sabemos o que será considerado
obra-prima no futuro. Com a internet, entre outras inovações
recentes, novos conceitos vazaram para todos os campos
do conhecimento – como a participação, colaboração e
articulação em rede. Nada disso tinha sido previsto. Hoje em
dia até a pergunta “o que é arte?” tem cada vez mais respos-
tas, numa profusão irredutível de perspectivas.
O jornalista continua sua reflexão. “A arte participativa
é uma negação de talento. é uma complacência em relação
a uma mentira aconchegante de que todos são igualmente
capazes de criar arte que vale a pena. Que chance temos de
nutrir as maravilhas raras em nosso meio, os artistas nasci-
dos, se nós reivindicamos este direito infantil de colocar um
distintivo que diz ‘artista’?”, completa. Se, por um lado, a
arte participativa pode ser observada como negação do ta-
lento individual, ela é, em outro ponto de vista, a afirmação
do valor da atuação coletiva e do comportamento coopera-
tivo. Mais do que o requinte dos gênios, a arte participativa
aponta o potencial dos grupos.
O grande desafio das artistas Mônica Nador e Graziela
Kunsch é motivar a participação do público a ponto de elas
deixarem os projetos e eles continuarem rumo a destinos não
previstos. Mais do que abertos a interpretações, os trabalhos
dessas artistas estão em progresso, clamam por apropriações.
Tais projetos se assemelham a nossa sociedade. As estrutu-
ras do mundo são constituídas de intrincadas tradições, mas,
ainda que rígidas, continuam no gerúndio, em aberto. interfe-
rir nos processos em curso é se assumir cidadão, sujeito, gênio.
(Este capítulo é mais curto, você já deve ter percebido.
Na verdade, é um ato-convite.)
QUE TAL TERMiNAR ESSA REFLEXãO,
NãO Só NO PAPEL,
MAS TAMBéM NA PRáTiCA?
124
bIblIoGRAfIA
lIVRos
AULT, Julie, ed. Show and Tell: A Chronicle of Group Material.
London: Four Corners, 2010.
BiSHOP, Claire. Participation. New York: MiT Press, 2006.
CAGE, John. Silence. Hanover: Wesleyan University Press. 1973.
CRiMP, Doulgas. The end of painting. in: On the museum ruins.
MiT Press: Cambridge, 1993.
ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas
contemporâneas. São. Paulo: Perspectiva, 2005.
FRiELiNG, Rudolf. The Art of Participation: 1950 to Now. San Fran-
cisco Museum of Modern Art. San Francisco, Califórnia. 2008.
RANCiÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autên-
tica, 2002.
RANCiÈRE, Jacques. The Emancipated Spectator. Trans. by Gregory
Elliot. London: Verso, 2009.
126 127
PURVES, Ted. What We Want is Free: Generosity and Exchange
in Recent Art. Albany, NY: State University of New York Press,
2005.
FREiRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários
à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
DéBORD , Guy. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contra-
ponto, 1997.
DéBORD , Guy; WOLMAN, Gil. Um guia prático para o desvio.
1956.
WALLACE, David Foster. Breves entrevistas com homens hedion-
dos. Companhia das Letras, 2005.
NERUDA, Pablo. O livro das perguntas. São Paulo: Cosac Naify,
2008.
NiETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo:
Companhia de Bolso, 2008.
O’ NEiL, Paul e WiLSON, Mick. Curating and the Educational Turn.
Open Editions/de Appel arts centre.
PARiSER, Eli. The filter bubble. New York: Penguin Press, 2011.
TOLSTOi, Leon. O que é Arte? São Paulo: Ediouro, 2002.
REVIsTAs E CAdERNos
Revista Urbânia 3. São Paulo.
Caderno com fichas de artistas da 29ª Bienal de São Paulo, 2009.
TEsEs E dIssERTAçÕEs
FUREGATTi, Sylvia. Arte e Meio Urbano – Elementos da estética
extramuros no Brasil. FAU USP, 2007. (Tese de Doutorado)
SiLVA, Cinara de Andrade. Hélio Oiticica: arte como experiência
participativa. Rio de. Janeiro, 2006. (Dissertação de Mestrado.)
STUMM, Rebeca Lenize. Enterros: momentos-específicos. ECA-USP,
2011. (Tese de Doutorado)
BASBAUM, Ricardo Roclaw. Você gostaria de participar de uma ex-
periência artística? (+NBP). ECA-USP, 2008. (Tese de Doutorado)
MESQUiTA, André Luiz. insurgências poéticas: arte ativista e ação
coletiva (1990-
2000). São. Paulo: 2008. (Dissertação de Mestrado.)
wEbsITEs
http://nbp.pro.br
http://republicart.net
http://www.bienal.org.br
http://www.guardian.co.uk/artanddesign/jonathanjonesblog/2010/
mar/02/tunick-gormley-interactive-art
Top Related