8/3/2019 Alain Caill - NEM HOLISMO NEM INDIVIDUALISMO METODOLGICOS. Marcel Muss e o paradigma da ddiva
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Revista Brasileira de Cincias SociaisPrint version ISSN 0102-6909
Rev. bras. Ci. Soc. vol. 13 n. 38 So Paulo Oct. 1998
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998000300001
NEM HOLISMO NEM INDIVIDUALISMOMETODOLGICOS.Marcel Mauss e o paradigma da ddiva*
Alain Caill
A histria das cincias sociais e da Sociologia que normalmente se conta contm,
evidente e necessariamente, vrios esquecimentos e injustias. Necessariamente, j que
no haveria razes para ocorrer, nesse caso, algo diferente do que ocorre alhures. Como
exemplo, podemos lembrar Johann Sebastian Bach e Vermeer de Delft, que durante
muito tempo foram considerados, respectivamente, como um msico e um pintor de
menor importncia. Na Frana, h apenas pouco mais de um sculo Shakespeare passou
a ser considerado um autor que se pode ler e encenar no original, mas ningum ainda l
Goethe ou Leopardi. Se nos perguntarmos qual autor, nas cincias sociais, foi vtima de
uma subestima de alcance comparvel, a resposta que se impe , parece-nos, Marcel
Mauss.
No que ele seja ignorado, longe disso. Qualquer pessoa informada conhece o papel
decisivo que ele desempenhou na constituio da etnologia cientfica francesa, e aprofunda influncia que exerceu em discpulos, fiis ou heterodoxos, to diversos e
importantes quanto Claude Lvi-Strauss, Roger Caillois, Georges Bataille e Louis
Dumont. Quando a filosofia francesa, com Sartre e Merleau-Ponty, ainda buscava
inspirao nas cincias sociais, suas duas principais fontes de inspirao eram Marcel
Mauss e Claude Lvi-Strauss. E at 1970, no havia nenhum candidato licenciatura
em Filosofia que no tivesse lido pelo menos o "Ensaio sobre a ddiva", e
provavelmente tambm os textos que o acompanham e emolduram na coletnea de
artigos intitulada Sociologia e Antropologia (Mauss, 1966), prefaciada, com o brilho e a
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importncia histrica que se sabe, por Lvi-Strauss. Tambm a bela biografia que
Marcel Fournier (1994) lhe dedicou h poucos anos mostra claramente que sem a
incansvel, ainda que inconstante, atividade de Mauss, a publicao daAnne
Sociologiqueno teria sido retomada aps a Primeira Guerra Mundial, e a escola
sociolgica francesa ter-se-ia praticamente desintegrado.
A nica crtica que se pode, contudo, fazer ao livro de Fournier justo o fato de no ir
at o fim naquilo que ele mesmo demonstra, de no insistir suficientemente no fato de
que a escola sociolgica francesa no ao contrrio do que a histria das idias,
convencional e acomodada, mantm basicamente e quase que exclusivamente mile
Durkheim, cujos discpulos desempenhariam, certo, um papel importante, mas no
mais importante do que o dos apstolos em relao a Cristo; de no insistir em que suabase so as obras de Durkheim e de Mauss, talvez mais as de Mauss do que as de
Durkheim. Ou melhor, que partindo de Durkheim, a Sociologia francesa s se realiza
plenamente com Mauss, a partir do momento em que este consegue reformular as
questes colocadas pelo tio no nico campo em que so passveis de serem respondidas,
o da natureza do simblico e de sua ligao com a obrigao de dar.
Tal afirmao parece temerria. J que, por enquanto, perguntamo-nos quem merece
subir ao panteo e por que, convm uma explicaoquanto a esse ponto. Raciocinemos,
pois, de um modo um tanto bobomas que nos parece esclarecedor, apesar de tudo
, considerando o resultado das contendas pela glria sociolgica e antropolgica, e
perguntemo-nos se no h a razo para apresentar uma queixa.
Em Sociologia, no h grandes dvidas quanto lista dos vitoriosos. Se excetuarmos
aqueles que so considerados os "precursores", como Marx ou Tocqueville,
encontraremos certamente nos degraus mais altos Max Weber e mile Durkheim. Emseguida, um pouco ou bem abaixo, dependendo do caso, Georg Simmel e Vilfredo
Pareto. Quase mesma altura, ou um pouco abaixo, dependendo de se levar ou no em
conta autores mais recentes, encontraremos umas duas dezenas de nomes, como Talcott
Parsons, Norbert Elias, Erving Goffman, Garfinkel, Bourdieu, Schutz, Habermas ou
Luhmann. Marcel Mauss s apareceria bem abaixo desses nomes, em especial nos
manuais anglo-saxes, que do cada vez mais o tom na matria e nos quais largamente
ignorado. Na melhor das hipteses, ele figuraria como um membro da escoladurkheimiana entre outros, no mesmo nvel que Maurice Halbwachs, Franois Simiand,
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Clestin Bougl ou Marcel Granet, que, alis, s so mencionados para constar. Em
Etnologia, sua posio certamente mais elevada, mas fora da Frana est longe de
alcanar a dos grandes, mesmo porque os etnlogos no tm certeza de que ele seja um
deles.
Ns, por termos caminhado durante 15 anos sob a gide do nome de Mauss sem por
isso lhe termos jamais votado um culto particular, nem pretendido nenhuma erudio a
respeito de sua obra e por termos tido o sentimento, ao longo desse percurso, de
descobrir ou achar nele, pouco a pouco, como que por acaso e por milagre, as questes e
respostas que se tinham formado em ns por vias diferentes das suas, fomos sendo
levados convico de que, ainda que fosse exclusivamente pela riqueza e originalidade
do contedo, se no pela fora e alcance sistemtico, a obra de Mauss deveria lhe valeros degraus mais altos no pdio das cincias sociais. Ao lado de Durkheim e Weber,
talvez at acima deles.
Marcel Mauss, um autor gravemente subestimado
Por que Mauss no tem o lugar que merece no panteo sociolgico?
preciso reconhecer que vrios fatores impedem, num primeiro momento, de levar a
srio essa afirmao. Se Mauss subestimado, isso no se deve nem ao acaso nem a
uma espcie de compl. Ao contrrio, pode ser explicado por vrias razes, umas
melhores que outras. A primeira , provavelmente, o fato de que, conforme ao que
constitui a ambio da escola sociolgica francesa, a obra de Mauss no se encaixa em
nenhuma das atuais disciplinas das cincias sociais. Entre os socilogos, ele aparececomo um etnlogo, e os etnlogos no podem realmente reconhecer como um dos seus
algum que no se submeteu ao rito inicitico do campo, ainda que seja o autor de um
preciosoManual de etnografia (Mauss, 1967[1947]).Quanto aos economistas, que
deveriam ser os mais afetados por certas descobertas de Marcel Mauss, tanto o seu
contedo quanto o modo como so expostas tornam-nas praticamente imperceptveis e
ininteligveis.
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Do mesmo modo, para a etnologia anglo-sax, geralmente mais preocupada com a
qualidade emprica das monografias do que com sistematizaes tericas, h ainda nos
escritos de Mauss algo de decididamente "continental" e abstrato demais. Assim, em
vez de discutir sua teoria da ddiva ou da magia, multiplicam-se os exemplos empricos
que parecem no se encaixar bem no quadro do aparato conceitual maussiano.
Inversamente, porm, esse mesmo aparato conceitual, aos olhos dos filsofos e dos
socilogos tericos, na Frana e na Alemanha, parece demasiado simples e rudimentar,
j que no constitui objeto de uma reflexo sistemtica e no exibe de modo explcito o
carter reflexivo que, no entanto, o alimenta. diferena de Marx, de Durkheim e,
principalmente, de Weber, Mauss no pertence ao corpus dos autores cannicos da
tradio filosfica.
A outra srie de razes, provavelmente decisivas, do relativo descrdito de que padece
Mauss est ligada ao fato de ele no ser autor de nenhum livro e fato que explicaria
em larga medida o outro de seu pensamento ser particularmente resistente a qualquer
tentativa de sistematizao. Nada h nele que possa ser facilmente exposto num manual,
ou elegantemente retomado numa dissertao filosfica. Por que Mauss nunca terminou
sua tese acerca da orao nem escreveu um livro inteiro, como lhe cobrava, ainda
recentemente, a crtica do socilogo Henri Mandras, justamente para negar-lhe qualquerdireito de ocupar um lugar de destaque na histria da Sociologia? Pierre Bourdieu, do
mesmo modo, no esconde seu desprezo por aqueles que no so capazes de escrever
nem um livro "de verdade".
Quanto s razes da incapacidade e/ou falta de vontade de Mauss de conquistar o ttulo
de autor de pelo menos um livro "de verdade", ficamos reduzidos s conjecturas. O que
foi decisivo? Um certo diletantismo, paradoxal nesse erudito excepcional ("Mauss sabe
tudo", diziam com razo seus discpulos), que preferiu no renunciar aos prazeres da
vida, da amizade, do amor e do esporte, e s escrever por obrigao, por paixo ou por
prazer, e nunca em virtude de qualquer considerao carreirstica ou pela busca de fama
abstrata e artificial, vainglory oububble reputation ? Ou foi a falta de tempo, j que o
senso do dever cientfico ou filial, de dvida para com os "dois tios" mile Durkheim
e Sylvain Lvi , obrigava-o a se dedicar ao ensino, aos alunos e execuo das
tarefas administrativas indispensveis ao bom funcionamento da cadeira de Cincias
Religiosas da cole Pratique des Hautes tudes?
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Sem contar que Mauss sempre se quis militante, ao mesmo tempo em prol da causa
cvica e socialista, e seu envolvimentonestas questes era sabido. O livro de Fournier
surpreende ao mostrar quo profundo era esse envolvimento, e que Mauss no se
contentou em ser por algum tempo o brao direito de Jaurs e, bem mais tarde, um dos
prximos de Lon Blum: tornou-se talvez o mais ativo advogadona Frana do
socialismo associativo, no hesitando em investir a prpria pessoa e os prprios bens
para apoiar essa causa.
Mas todas essas razes so provavelmente secundrias em relao a um modo de pensar
singular, prprio de Mauss, pelo qual talvez devesse ser louvado em vez de acusado, e
que pode ser resumido em algumas palavras: horror sistematizao. Se, como cremos,
o prprio das cincias sociais, em comparao com a Filosofia, , sem renunciar teorizao, dar o devido lugar inesgotvel diversidade da realidade emprica, e
recusar-se a admitir que esta possa ser submetida e reduzida inteiramente lgica do
conceito, ento Mauss , sem sombra de dvida, aquele que com mais razes deve ser
considerado o arauto e heri por excelncia do esprito das cincias sociais. Ningum
mais atento do que ele ao concreto e ao fato de este extrapolar todas as categorias que
sobre ele lanamos, como redes condenadas a deixar escapar a maior parte de suas
presas. "O que nomeamos to mal troca, ddiva, interesse", escreve Mauss (1966, p.266), permanentemente em dvida quanto ao prprio alcance das palavras que emprega
para tentar apreender seu objeto.
Mais do que isso, no preciso for-lo para v-lo reconhecer que no apenas devido
a uma mera dificuldade epistemolgica que nossos conceitos tropeam na tentativa de
se adequarem ao real mas, de modo muito mais profundo, porque tudo na realidade que
tentam apreender est em luta declarada contra eles. Ora, a ddiva s existe na mgica
do que indissociavelmente a negao e a denegao da troca e do interesse. E vice-
versa, sem dvida. Alm disso, como sugere eloqentemente o "Ensaio sobre algumas
formas primitivas de classificao", de Durkheim e Mauss (in Mauss, 1971), entre a
realidade, o ser social real, como diria Marx, e as categorias que a designam h uma
profunda relao de incerteza e de imbricao ao mesmo tempo, j que, num certo
sentido, as categorias do pensamento no so seno a prpria forma do ser social
prtico. E vice-versa, sem dvida, novamente.
O reducionismo dos herdeiros e dos discpulos infiis
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A prpria forma do ser social prtico? Isso pode gerar confuso. Como aquela em que, a
nosso ver, caiu parcialmente Lvi-Strauss. Sua obra como um todo e, em particular, a
"Introduo" que escreveu para apresentar a coletnea clssica dos escritos de Mauss
(Lvi-Strauss, 1966[1950]) acabaram no prestando servio algum compreenso e
posteridade deste. Outra dentre as razes profundas do relativo esquecimento de que
padece Mauss , na verdade, o fato de seus discpulos se terem tornado, num certo
sentido, mais famosos do que ele, porm custa de um desmembramento da
complexidade de seu pensamento ou da nfase unilateral, e portanto equivocada, de uma
de suas dimenses. Literatos outrora de vanguarda e filsofos da desconstruo,
repelidos pelo humanismo temperado de Mauss, preferem as intuies sulfurosas de
Georges Bataille1e os prolongamentos de Maurice Blanchot.
E a reflexo francesa mais viva, durante trs dcadas, conformou-se aos moldes do
estruturalismo inventado por Lvi-Strauss, na seara de Marcel Mauss, mas tambm
contra ele. Afirmando que a cincia no tinha lugar para as categorias nativas de alma
ou de "esprito da coisa dada", afirmando que no existem trs obrigaes distintas, de
dar, receber e retribuir, mas apenas uma, a de trocar, Lvi-Strauss praticamente reduziu
a ddiva troca e abriu caminho para o desenvolvimento de uma cincia das categorias
primitivas que passaria a dar ateno exclusivamente sua estrutura formal, emdetrimento tanto do contedo como de seu modo de emergncia.
Do ser social real e concreto a cincia estruturalista s quer conhecer a forma,
acreditando poder abstrair tudo o que o faz surgir, o movimento da vida social
autoconstituda e autoconstituinte, e sua dimenso de prxis. Na operao, desaparecem
a ddiva e a luta dos homens, comonotouimediatamente Claude Lefort (1951), numa
profunda crtica ab initio daquilo que viria a ser o estruturalismo francesa.2Crtica da
qual ainda esto por ser avaliadas todas as implicaes, que so, a nosso ver,
considerveis. Basta pensar no que poderia ter sido da Psicanlise relida por Lacan se
este, como fez durante algum tempo, no incio, num de seus principais textos,Fonction
et champ de la parole et du langage en Psychanalyse, se tivesse mantido prximo da
concepo maussiana do simbolismo, em vez de, alegando inspirar-se em Lvi-Strauss,
misturar e confundir praticamente tudo sob a noo de simblico: linguagem, lgica
formal, troca, ddiva e teoria dos jogos. Mas, sem nos precipitarmos, dediquemos algum
tempo noo de simbolismo.
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A superao de Durkheim pela descoberta do simbolismo
Como deixam claro, com muito vigor, duas releituras recentes da obra de Mauss
(Karsenti, 1994 e 1996; Tarot, 1994 e 1996), foi, na verdade, mediante a utilizao
dessa noo de simbolismo que Marcel Mauss, discretamente e sem fazer alarde, foi
pouco a pouco se afastando da insustentvel rigidez conceitual do sistema legado por
seu tio, e o fez evoluir de dentro. Se ele tivesse anunciado em altos brados, e explicitado
a revoluo terica que estava fazendo, tudo teria ficado mais claro para todos, e sua
glria mais garantida. Mas nada indica que ele tivesse conscincia de estar realizando
uma tal revoluo. Mesmo porque vrios fios que o conduzem a ela j tinham sido
tecidos havia muito tempo, em colaborao com Durkheim. E o prprio Durkheim j
tinha praticamente chegado idia de que a sociedade deve ser concebida como umarealidade de ordem simblica, uma totalidade ligada por smbolos. Seria a sociedade,
indagava ele em seu "Dtermination du fait moral", "basicamente um conjunto de
idias, de crenas, de sentimentos de todos os tipos, que se realizam atravs dos
indivduos"? (Durkheim, 1974 [1906], p. 79).3
O que prprio de Mauss, que estende o emprego da noo de smbolo para muito alm
dos signos lingsticos ou pictricos exclusivamente, o fato de radicalizar esse
conceito da natureza simblica da relao social, e de tirar da todas as implicaes,
negativas e positivas. "As palavras, as saudaes, os presentes, solenemente trocados e
recebidos, e obrigatoriamente retribudos sob risco de guerra, o que so, seno
smbolos?". O que so, continua B. Karsenti (1994, p. 87), de quem emprestamos essa
citao de Mauss, "seno tradues individuais da presena do grupo por um lado, e das
necessidades diretas de cada um e de todos, de suas personalidades, de suas inter-
relaes, por outro"? "Nossas festas, explicam os neocalednios, so os movimentos da
agulha usada para unir as partes do telhado de palha, para fazer um telhado nico."
(apudKarsenti, 1994,p. 98). O mesmo poderia ser dito dos smbolos, segundo Mauss.
Ou das ddivas.
Pois, como acabamos de ver, no fundo smbolos e ddivas so idnticos para Mauss, ou
pelo menos co-extensivos num sentido que ainda est por explorar. No h ddiva
que no exceda, por sua dimenso simblica, a dimenso utilitria e funcional dos bens
e servios. E, reciprocamente, o que um smbolo, senoas palavras, gestos, atos,objetos e, principalmente, as mulheres e, portanto, os filhos por vir, que so dados
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solenemente, criando a aliana que afasta a guerra, uma aliana constantemente
ameaada de recair no conflito? Assim, a ddiva e o smbolo so de fato co-extensivos,
ou reversveis, mas de um modo difcil de entender, cuja melhor apreenso talvez seja a
formulao de Camille Tarot (1996): "O smbolo maussiano do smbolo no a palavra
ou o fonema, a ddiva."
O simples fato de raciocinar desse modo, sistematicamente e por princpio, em termos
de simbolismo, basta para resolver e diluir todas as antinomias prprias ao
durkheimianismo dogmtico. Antinomias que sem dvida serviram a Durkheim como
muletas necessrias para avanar na via que abriam, instrumento indispensvel para
traar o sulco original, mas que logo o impediriam de avanar. Mauss provavelmente
sentia que Durkheim as teria eventualmente dispensado, que j as tinha parcialmentedescartado, e que a morte o impedira de faz-lo de modo definitivo. E que ele apenas
conclua o gesto dotio.
Mas, uma vez realizado esse gesto iniciado quando o tio ainda vivia, em 1904,
na Thorie de la magie, tudo muda. Ainda que no o diga expressamente, Mauss
abandona, assim, a oposio central e constitutiva da sociologia durkheimiana do fato
religioso: a oposio entre sagrado e profano. Durkheim acreditara poder "tudo explicar
pela religio".4A partir de ento, tudo se poder compreendera partir do simbolismo.
Deixa de ser necessrio recorrer dicotomia entre o sagrado e o profano, j que basta a
oposio simples entre simblico e utilitrio, de onde retirado todo o poder da
distino conceitual primitiva. Ao inverso da concepo durkheimiana do sagrado e do
profano, Mauss insistir continuamente na imbricao entre utilitrio e simblico, entre
interesse e desinteresse. Cai ao mesmo tempo a oposio durkheimiana radical entre
sociolgico e psicolgico, pois entre o social e o individual no h mais ruptura, mas
gradao e traduo recproca, j que os simbolismos constitutivos de um plano so
passveis de traduo nos do outro.
E alm disso, ainda que por razes exclusivamente metodolgicas, os fatos sociais no
podem mais ser realmente considerados como coisas, uma vez que o prprio andamento
da pesquisa revela que a oposio entre coisas e pessoas s tem sentido e alcance aos
olhos do nosso Direito moderno, e que em toda parte, fora dele, a mescla das
dimenses reais e pessoais que predomina. Os fatos sociais, diramos, para resumir damelhor forma a especificidade da viso maussiana, tornam-se totais (Tarot, 1996) e no
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devem mais ser considerados como coisas, e sim como smbolos. Esse princpio no
tem um alcance apenas metodolgico, mas scio-ontolgico. No mais se dir que se
deve tratar os fatos sociais "como [se fossem] coisas", subentendendo "quando sabemos
perfeitamente que no o so", e sim que se deve tratar os fatos sociais como smbolos,
porque sabemos perfeitamente que essa, na verdade, a sua natureza.
Considerados como realidades de ordem simblica, os fatos sociais, que a partir de
ento se tornam totais, so ainda menos passveis de serem considerados como coisas na
medida em que, dada a sua co-extensividade ao registro da ddiva, passa a faltar-lhes
aquilo que, segundo Durkheim, podia garantir a sua objetividade: a obrigatoriedade.
No que ela desaparea; para Mauss, existe claramente uma obrigao de se submeter
lei do simbolismo, bem como exigncia de dar, receber e retribuir. Mesmo porque tudo uma coisa s. Mas essa obrigao deixa de ser exercida com a exterioridade que,
segundo Durkheim, constitutiva do fato social, j que entre indivduo e sociedade no
h mais um hiato, mas uma relao de co-traduo.
Mas, principalmente, trata-se de uma obrigao de liberdade. De onde decorre uma
concepo maussiana da causalidade social que, decididamente, no pode ser reduzida
aos determinismos objetivistas caractersticos do durkheimianismo inicial. Como
observa Mauss (1967, p. 130), alis, contrariamente a todos os holismos tradicionais em
Etnologia, nessas sociedades (tradicionais) em que "o trabalho em conjunto ao mesmo
tempo necessrio, obrigatrio e voluntrio, no h meios de coero; o indivduo
livre"..5Karsenti resume brilhantemente a preocupao de Mauss quando observa:
"Trata-se de superar a temtica da obrigatoriedade, de romper sua funo explicativa
exclusiva, para chegar a umaproblemtica dadeterminao que atue justamente como
liberdade" (Karsenti, 1994, p. 23; grifos do autor).
Substituir o determinismo objetivista por uma determinao pela liberdade ou, melhor
dizendo, pela obrigao da liberdade, implica, evidentemente, e para formul-lo em
termos j convencionais, por demais convencionais, que se deixa de apenas
tentar explicara relao social, para poder compreend-la e interpret-la . Mas
compreender e interpretar a partir do que, em que termos? A resposta a essa questo
ficar mais clara, certamente, se notarmos que Marcel Mauss abandona tambm mais
uma dicotomia, central no durkheimianismo, aquela entrenormal epatolgico. Sabe-seque era por intermdio dela que Durkheim esperava poder passar da cincia moral, e
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derivar os julgamentos de valor dos julgamentos de fato. Essa era, a seus olhos de
herdeiro de Comte e Saint-Simon, a tarefa crucial da Sociologia. Se fosse abandonada,
nenhum esforo pelo conhecimento valeria a pena, como ele explica de todos os modos
concebveis. Porm, afirmar que o desejvel poderia ser idntico ao que
estatisticamente normal algo que nem todo o talento de Durkheim poderia defender
por muito tempo. Ainda mais porque Durkheim no se impede de julgar o que em
nome do que ser ou poderia ser a normalidade futura. A partir desse momento, no nos
encontramos mais diante de uma oposio simples entre um normal e um patolgico
correspondentes, mas confrontados a uma multiplicidade infinita de normalidades e
patologias, passadas, presentes ou virtuais.
Era preciso encontrar outra coisa. E essa outra coisa que Mauss vai encontrar oupensar ter encontrado, isso pode ser debatido no final do "Ensaio sobre a ddiva",
quando evoca o "rochedo da moral eterna", aquela que sempre, em toda parte, manda
dar ao mesmo tempo livre e obrigatoriamente e prescreve a retribuio da "ddiva
nobre". Que, em suma, faz da liberdade e da espontaneidade uma obrigao. A
genialidade ou a fora de Mauss est, portanto, em superar ousadamente o irresolvido
hiato durkheimiano entre julgamento de fato e julgamento de valor, entre normal e
patolgico, afirmando como moralmente desejvel exatamente aquilo que o conjuntodas sociedades conhecidas parece de fato afirmar como tal, o ncleo invariante de
todas as morais. O que os homens devem fazer deixa de ser intrinsecamente diferente
daquilo que de fato j fazem. Ao mesmo tempo, surge uma resposta para a nossa dvida
quanto aos termos em que se deve interpretar a ao social. Ora talvez respondesse
Mauss , nos prprios termos da ao social concreta, sendo esta por natureza
simblica, encarregada de significar ativamente, mesclando indissociavelmente
obrigao e liberdade, interesse e desinteresse.
Se o leitor nos acompanhou at aqui, certamente compreender melhor por que
consideramos possvel e desejvel colocar Marcel Mauss no primeiro degrau do
panteosociolgico, acima at de Durkheim e Weber.6Se ele merece essa posio ,
cremos, porque traa com muita preciso o campo comum em que poderia ser realizada
a desejvel harmonizao das duas grandes sociologias histricas. Na tica maussiana,
de fato possvel reconhecer o fundamento de toda a crtica weberiana ao objetivismo
sociolgico. Porm, de modo simtrico, a herana durkheimiana permite escapar dos
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exageros do relativismo weberiano e esperar dar uma base mais slida para seus tipos-
ideais inclusivos, sem renunciar, de sada, busca de invariantes sociolgicas,
antropolgicas e ticas.
Em direo ao paradigma da ddiva
Neste ponto, contudo, surge outra sria dvida. Na verdade, acabamos de sugerir que
um dos mritos de Mauss consistiu em se livrar das dicotomias insustentveis que
herdara do tio: entre sagrado e profano, indivduo e sociedade, normal e patolgico. Mas
tal mrito , assim formulado, puramente negativo. E se o de Mauss se limitasse a isso,
deveramos ver nele apenas uma espcie de coveiro do durkheimianismo, e de modo
algum oautor deum progresso decisivo na formulao de questes sociolgicas eantropolgicas cruciais. Indicamos que a investigao de Mauss caminhou em direo a
uma considerao do simbolismo. Mas, pode-se perguntar, e com razo, se h nisso algo
alm de meras intuies e pistas de pesquisa, na verdade inexploradas, e nada
aprofundadas. Dvida ainda mais legtima na medida em que, como notvamos de
sada, os manuais nem mesmo identificam tais pistas em Mauss.
A hiptese que gostaramos de defender, como deve estar patente, a de que existe de
fato em Mauss uma teoria sociolgica poderosa e coerente, que fornece as linhas
mestras no apenas de um paradigma sociolgico entre outros, mas do nico paradigma
propriamente sociolgico que se possa conceber e defender. Duas coisas, sobretudo,
impedem de perceber claramente a existncia desse paradigma maussiano. Ao encontro
de Durkheim que, partindo de uma preocupao inicial totalmente cientificista e
naturalista de objetivar a realidade social, adquirira repentinamente, em 1895, uma
conscincia aguda de sua natureza profundamente religiosa, entrevendo o fato de que a
religio da ordem da realidade simblica, mas sem ter tido o tempo de levar adescoberta s suas ltimas conseqncias , Mauss foi rapidamente tomado pela
certeza da natureza simblica da realidade social, e descobriu 20 anos mais tarde, com o
"Ensaio sobre a ddiva", que existe uma ntima ligao entre o simbolismo e a
obrigao de dar, receber e retribuir. Mas no parece ter tido clara conscincia disso. De
qualquer modo, no declarou a sua descoberta explicitamente, e no enunciou
ofato da co-extensividade entre ddiva e smbolo.
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Fato? Sejamos prudentes. Seria melhor falar de uma hiptese apenas, tendo em vista o
quanto a prpria idia de uma relao entre ddiva e simbolismo permanece obscura.
Contudo, no temos a menor dvida de que o que confere ao pensamento de Marcel
Mauss toda a sua fora e fecundidade est nos laos estreitos que estabelece, sem
afirm-lo suficientemente nem explicar-se, entre a ddiva, a temtica do simbolismo e
seu conceito de fato ou fenmeno social total.7De qualquer modo, essa hiptese que
ir guiar nossa tentativa de delinear aqui um paradigma da ddiva, embora insistamos
muito mais, nas pginas seguintes, na ddiva encarada do ponto de vista dos atores
sociais do que no simbolismo em si ou na dimenso do fenmeno social total .8
Convenhamos, a ausncia de explicaes, por parte de Mauss, acerca desses pontos
cruciais deixa pairar sobre sua obra uma considervel dimenso de obscuridade. E esta reforada pelo fato de que, para atingir a clareza total, seria preciso retomar todos os
escritos anteriores do autor, especialmente o "Esboo de uma teoria geral da magia"
(Hubert e Mauss, 1902-1903) e o "Ensaio sobre a natureza e a funo do sacrifcio"
(Hubert e Mauss, 1899),9 luz da descoberta que ele s faria bem mais tarde, no
"Ensaio sobre a ddiva" (Mauss, 1923-24), e do estabelecimento da equivalncia entre
ddiva e smbolo. Esta , em nossa opinio, a tarefa central que se apresenta
teorizao sociolgica: a de explicitar o paradigma da ddiva assim esboado porMauss. Antes de tentarmos avanar um pouco mais nessa direo, talvez seja til
lembrar como ns mesmos chegamos a essa hiptese e formulao desse programa de
trabalho terico.
Do antiutilitarismo negativo a um antiutilitarismo positivo
Durante uma dcada, a revista do MAUSS(Movimento Antiutilitarista em Cincias
Sociais), colocada desde suas primeiras pginas sob a gide de Marcel Mauss, limitou-se, num certo sentido, basicamente a tentar resgatar o esprito crtico que presidira
inveno e ao sucesso da escola sociolgica francesa. Parece-nos que os manuais de
histria da Sociologia no do a devida nfase a essa dimenso crtica. Pois foi
declaradamente para escapar do utilitarismo spenceriano, desprezando completamente
as abstraes da economia poltica, que Durkheim enunciou suas regras do mtodo
sociolgico. E foi essa a inspirao primordial que continuou alimentando a obra de
Mauss at sua morte.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#7nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#7nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#7nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#8nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#8nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#8nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#9nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#9nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#9nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#9nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#8nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#7not8/3/2019 Alain Caill - NEM HOLISMO NEM INDIVIDUALISMO METODOLGICOS. Marcel Muss e o paradigma da ddiva
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No se deve renegar essa postura crtica. Que, alis, no implica de modo algum
subestimar a priori a fora ou a legitimidade dos interesses materiais, utilitrios. E
tampouco leva a afirmar que os homens, ignorando o interesse, o clculo, a esperteza ou
a estratgia, agiriam por puro desprendimento. Pelo mero fato de sugerir que nenhuma
sociedade humana poderia edificar-se exclusivamente sobre o registro do contrato e do
utilitrio, insistindo, ao contrrio, em que a solidariedade indispensvel a qualquer
ordem social s pode surgir da subordinao dos interesses materiais a uma regra
simblica que os transcende, essa postura crtica j lana sobre os assuntos humanos
uma luz singular e poderosa. Que no tinha, e ainda no tem, equivalente nem na
economia poltica nem nas filosofias polticas contratualistas e/ou utilitaristas.
Conseqentemente, mesmo reduzido sua dimenso crtica, o antiutilitarismo que sepoderia qualificar de negativo tem o seu valor. Resta saber se isso bastaria para
determinar e cristalizar um paradigma, o que mais duvidoso. Em vrios aspectos,
esse antiutilitarismo negativoem outras palavras, e resumindo, a afirmao de que a
ordem social irredutvel ordem econmica e contratual comum a todas as
grandes sociologias clssicas, tanto a de Weber como a de Pareto, a do jovem Parsons e
a de Tocqueville e, evidentemente, a de Simmel. ele que traa o prprio campo da
Sociologia clssica;10
sua fora e sua fragilidade. Sua fora, porque define, contra aeconomia poltica e longe dela, um campo de investigao comum a todas as
sociologias (e a todas as antropologias). Sua fagilidade porque, diferena da economia
poltica, no chega a desembocar num conjunto de conceitos e de hipteses gerais
compartilhadas por todos os investigadores. O esfacelamento definhamento,
involuo, como queiram da Sociologia contempornea (e, junto com ela, da
Antropologia) parece claramente ligado a essa incapacidade das diversas sociologias de
se cristalizarem, ainda que minimamente, num paradigma comum. As observaes queprecedem permitem-nos agora formular uma primeira hiptese: o malogro histrico da
Sociologia clssica, apesar das maravilhosas promessas que continha, decorre de sua
impossibilidade de transformar seu antiutilitarismo crtico, ou negativo, inicial num
antiutilitarismo positivo claramente formulado.
A expresso antiutilitarismo positivo pode parecer estranha. Ficar mais clara assim que
enunciarmos nossa segunda hiptese: a de que o "Ensaio sobre addiva" de Marcel
Mauss nos fornece os fundamentos de um paradigma positivo e no apenas crtico,
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ou por negao em Sociologia e em Antropologia. E, de modo mais geral, para o
conjunto das cincias sociais. Pois ele nos d a prova emprica, um comeo de prova,
em todo caso, um indcio, de que no so apenas os socilogos da virada do sculo que
criticam o utilitarismo econmico, mas os homens de todas as sociedades humanas. De
que a obrigao paradoxal da generosidadeesse antiutilitarismo prticoconstitui a
base, o rochedo, como diz Mauss, de toda moral possvel, e, conseqentemente, a, e
no num improvvel e inencontrvel contrato social original, que se deve buscar a
essncia e o cerne de toda sociabilidade. E se essa descoberta se confirmar, haveria algo
mais importante no campo das cincias sociais?
Foicom o esprito de fidelidade a essa descoberta que, h quatro anos, demos a um dos
nmeros deLa Revue du MAUSS (n. 11, 1991) o ttuloDar, receber e retribuir: o outroparadigma. nesse mesmo esprito que os autores informalmente reunidos em torno
deLaRevue du MAUSS semestrielle prosseguem doravante boa parte de suas reflexes.
preciso reconhecer que essa hiptese de que um paradigma sociolgico e
antropolgico positivo deve se basear na afirmao de uma certa universalidade da
tripla obrigao de dar, receber e retribuir extremamente ambiciosa. Se fosse
confirmada, permitiria retomar em novos termos captulos inteiros da histria das
religies e da filosofia, e colocar sob uma nova perspectiva um nmero considervel dequestes antropolgicas, ticas e econmicas. Conforme o prprio programa da escola
sociolgica francesa, trata-se de nada menos do que pr termo hegemonia do
economicismo sobre nossos espritos e retraduzir muitas das questes oriundas da
tradio filosfica num questionamento passvel de um esclarecimento emprico
pertinente.
Essa tentativa de fundar um paradigma em cincias sociais na hiptese da
universalidade da obrigao de dar seria sustentvel, e comque condies? A questo
assume dimenses ainda maiores na medida em que no se pode seriamente responder a
ela por princpio e a priori, e apenas a utilizao efetiva do paradigma seria capaz de
convencer os cticos. No pretendemos resolver a questo, mas apontaremos
resumidamente um certo nmero de razes que, a nosso ver, tornam a aposta plausvel.
Em seguida consideraremos algumas dificuldades e obstculos que se apresentam no
caminho.
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Situao e delineamentos de um paradigma da ddiva
Antes de comearmos a defender a idia de que existe e deve existir em cincias sociais
um paradigma da ddiva, ainda que seja, como veremos, antiparadigmtico, talvez fosse
conveniente explicar e justificar a utilizao do termo "paradigma". Permitam-nos ser
breves e dogmticos. O prprio autor que introduziu o termo nos estudos sobre a
cincia, Thomas Kuhn, reconhece que, por ter tantas acepes diferentes, corre-se o
risco de entrar num labirinto escolstico. Entendamos, pois, por paradigma
simplesmente um modo generalizado e mais ou menos inconscientemente
compartilhado de questionar a realidade social histrica e de conceber respostas para
essas questes. J que cremos ainda que, nas cincias do social histrico, ao contrrio
das cincias matemticas ou experimentais, a dimenso estritamente cognitiva , por
princpio, indissocivel da dimenso normativa ou, melhor dizendo, entre
julgamentos de fato, julgamentos de razo e julgamentos de valor existe uma relao de
incerteza e que o momento normativo , neste caso, em ltima instncia, dominante,
entenderemos mais especificamente por paradigma nas cincias do social histrico um
modo generalizado e mais ou menos inconscientemente compartilhado de questionar
normativamente a realidade social histrica e de propor para tais questes respostas
positiva e normativamente significativas.
A bem dizer, essa caracterizao ainda bastante vaga. No limite, qualquer teoria que
goze de alguma popularidade entre os pesquisadores poderia, assim, passar por
paradigma. E a palavra designaria apenas aquilo que os anglo-saxes gostam de chamar
de "programas de pesquisa". Quando falamos em paradigma, temos em mente algo de
maior alcance epistemolgico e histrico, que pode ser avaliado se acrescentarmos que,
a nosso ver, existem nas cincias sociais dois, e apenas dois, grandes paradigmas, e que
o paradigma da ddiva e do simbolismo tem vocao para figurar como o terceiro.
O primeiro, atualmente designado, de modo geral, pela expresso individualismo
metodolgico, parte da idia de que as relaes sociais podem e devem ser
compreendidas como resultante do entrecruzamento dos clculos efetuados pelos
indivduos. Esse certamente o pavilho mais genrico, capaz de abrigar as mercadorias
mais diversas, mas cuja diversidade s se torna evidente se olharmos bem de perto;
como exemplos, podem ser mencionados a teoria da ao racional, a teoria da
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racionalidade limitada, o neo-institucionalismo, o utilitarismo, a teoria dos direitos de
propriedade. Traduzido em termos ainda mais simples e rudimentares, o que todas essas
linhas de pensamento tm em comum o fato de se inspirarem em algum tipo de viso
simples, simplista ou, ao contrrio, sofisticada da figura do homo oeconomicus. Max
Weber s vezes apresentado como campeo do individualismo metodolgico;
equivocadamente, em nossa opinio. Contudo, grande a tentao de aceitar
temporariamente essa interpretao equivocada de sua obra, para melhor definir a
simetria em relao a Durkheim.
Este ltimo , de fato, quase que unanimemente considerado como campeo do segundo
grande paradigma utilizado pelas cincias sociais. Paradigma esse que, desde os
trabalhos de Louis Dumont, que o reivindica, se convm geralmente chamar de holismo.A vantagem desse termo , sem dvida, a de designar a oposio diametral em relao
ao individualismo, decorrente da certeza de que h na totalidade considerada enquanto
tal algo mais do que nas partes ou em sua soma, e de que a totalidade historicamente,
logicamente, cognitivamente e normativamente mais importante hierarquicamente
superior do que os indivduos que contm. Em suma, o individualismo metodolgico
postula que os indivduos existem empiricamente, e possuem valor normativo, antes da
totalidade que formam, ao passo que o holismo postula o inverso. Pode parecer que oholismo desempenha, nas cincias sociais, um papel nitidamente menos importante do
que o individualismo metodolgico. Principalmente na atualidade, j que ningum, a
no ser Louis Dumont, o reivindica explicitamente. De modo que acaba servindo mais
como referncia de oposio do que como signo de convergncia. Contudo, a postura
holista teve, e ainda tem, um papel central nas cincias sociais, o que fica patente se
acrescentarmos que possvel ligar a ela o culturalismo, o funcionalismo e o
estruturalismo. E grande parte do marxismo, pelo menos antes de ser relido, por alguns,atravs das lentes do individualismo.
Aporias do individualismo e do holismo metodolgicos
H lugar para um terceiro paradigma, e necessidade de institu-lo. Tal sugesto parece
fcil quando lembramos de como e por que os dois paradigmas reconhecidos se
mostram totalmente incapazes de pensar ao contrrio do que crem a gnese do
lao social e a aliana. Totalmente incapazes, tambm, de pensar a ddiva. E, porconseguinte, o poltico (Caill, 1993). Basta lembrar rapidamente as razes desse
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fracasso para ver surgir em negativo o lugar desse terceiro paradigma, e compreender
por que deve ser um paradigma da ddiva e do simbolismo.
mais simples comear pelas dificuldades prprias ao holismo, pois so, nesse
particular, patentes e congnitas. O holismo no tem nada a dizer sobre o modo como o
lao social gerado, o que fica evidente quando se observa que nem mesmo se coloca a
questo. Por hiptese, postula que o lao social sempre est dado de sada e preexiste
ontologicamente ao dos sujeitos sociais. Mas seria possvel falar em ao nesse
caso? Dificilmente, j que nessa perspectiva supe-se que os sujeitos, individuais ou
coletivos, no fazem seno aplicar um modelo e uma lei que existiam antes deles.
Limitam-se a expressar os valores de sua cultura, cumprir as funes sociais
determinadas ou colocar em prtica as regras envolvidas na lgica da estrutura de quedependem.A fortiori, numa tal perspectiva, a ddiva inexistente e impensvel. Onde
os homens e os tericos da ddiva acreditam v-la em ao, os defensores de uma
abordagem holista trataro de mostrar que se trata unicamente de submisso s
prescries do ritual e cumprimento das tarefas necessrias reproduo da ordem
funcional e estrutural.
Sempre se melhor crtico dos outros do que de si mesmo. Os partidrios de uma
abordagem individualista facilmente colocam em evidncia a tendncia hiptese que
se encontra no cerne do holismo e notam que este postula como um dado justamente
aquilo que est por explicar: a produo da relao social e da totalidade. Mas, ao
contrrio do que crem, seu paradigma no se sai melhor do que o rival. Se o holismo
reifica e hipostasia a totalidade, o individualismo metodolgico faz o mesmo com o
indivduo. O que menos visvel e menos chocante primeira vista, em razo da
diferena de escala e porque a figura fsica do indivduo menos impalpvel do que a
da sociedade. Mas ser que de realidades fsicas que se trata? Tudo bem considerado,
to injustificado supor os indivduos como dados, presentes desde sempre, quanto a
sociedade. E mesmo "dando" a si mesmo o indivduo, com os traos que lhe agradam,
de indivduos ilhados, calculistas racionais e egostas (self-regarding eself-interested), o
individualismo metodolgico revela-se to incapaz de proceder gerao lgica do elo
que une esses tomos individuais quanto um mgico de tirar um coelho de um chapu
vazio.
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No falaremos aqui das recentes sofisticaes da verso standarde ancestral do
paradigma, que revelam uma conscientizao parcial parcial apenas , por parte de
seus defensores, dos problemas que coloca. Levar em conta os custos da informao e
sua incompletude, o carter limitado e contextual da racionalidade, descobrir que os
indivduos so incapazes de coordenar suas aes, a menos que regras de coordenao
preexistam, de modo que antes de tentar descrever suas aes individuais preciso
pensar o modo como so geradas as convenes em torno das quais se unem, nada disso
muda, no fundo, o problema que Durkheim tinha percebido com clareza: no possvel
fazer o altrusmo nascer do egosmo.
Ou, mais precisamente, impossvel convencer os egostas racionais, isolados e
"mutuamente indiferentes" a levar adiante a teoria de que seria vantajoso para elescooperar, ou seja, confiar uns nos outros e estabelecer uma relao de aliana. Pode-se
torcer o dilema do prisioneiro em todas as direes, submet-lo a backward inductionou
torn-lo evolutivo, repeti-lo ao infinito ou analis-lo na instantaneidade, e sempre se
chegar mesma concluso: se os sujeitos sociais forem fixados em sua posio de
separao inicial e de desconfiana, nada poder fazer com que saiam disso, tanto que
para se precaverem individualmente, evitando o risco do pior a possvel traio do
outro, tomaro a dianteira na traio, e todos se encontraro numa situao bem piordo que aquela que a confiana teria permitido instaurar (Cordonnier, 1993 e 1994;
Nemo, 1994;La Revue du MAUSS semestrielle, 1994a).
A ddiva como aposta e como soluo das aporias do holismo e do individualismo
bastante fcil tirar as concluses dessas breves observaes, pelo menos para um
leitor de Marcel Mauss. O nico meio de escapar das aporias do dilema do prisioneiro e
do individualismo metodolgico, o nico meio de criar a confiana e moldar a relaosocial, tentar a aposta da ddiva. Pois, como se v claramente e estabelec-lo com
extremo rigor o mrito da literatura acerca do dilema do prisioneiro , s pode ser
uma aposta. Pois , de fato, unicamente numa situao de incerteza estrutual que o
problema da confiana e da tessitura do lao social se coloca.
Partamos do princpio de que nos encontramos num universo holista, onde tudo regido
pelo costume, os valores ou regras, e ningum trair, j que cada um sabe que o
comportamento do outro regido pelo costume, e que este lhe ordena escolher a via da
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honra, que a da generosidade. A via da ddiva obrigatria.11Tudo se passa como se
estivssemos diante de um Deus infinitamente bom e benevolente, de modo que no h
a menor dificuldade em escolher a melhor via. Consideremos, ao contrrio, que nos
encontramos mergulhados nas guas glaciais do clculo egosta, postulado pela
axiomtica do interesse, e tampouco haver hesitao, j que, por hiptese, no
podemos esperar nenhum sinal de generosidade em nosso parceiro e adversrio.
Concluiremos, assim, que o holismo e o individualismo s nos esclarecem quanto a dois
casos extremos e muito particulares: no primeiro, todas as pessoas com quem nos
relacionamos podem ser consideradas santos, ou algo assim, fosse apenas porque so
to previsveis quanto santos; no segundo, todas as pessoas com quem nos relacionamos
devem ser consideradas escroques. Falta, portanto, elaborar um modelo que se refira realidade concreta, essa na qual no sabemos para que lado tendem ou tendero nossos
parceiros passados, presentes, futuros ou possveis, porque tendem aos dois ao mesmo
tempo.
"Confiar totalmente ou desconfiar totalmente", eis a soluo que, de modo precursor,
Mauss dava ao dilema do prisioneiro (Mauss, 1966, p. 277). Ou, antes, a soluo que ele
demonstrava ter sido efetiva e historicamente dada ao problema pelas sociedades
arcaicas: apostar na aliana e na confiana, e concretizar a aposta por meio de ddivas
que so smbolos performadores dessa aposta primeira. Ou recair na guerra. Em
outras palavras, apostar na incondicionalidade pois na aliana se deve dar tudo
mas reservando-se a possibilidade de recair, a qualquer momento, na desconfiana. Ou
ainda, mergulhar na incondicionalidade (pois na situao do dilema do prisioneiro, por
hiptese, sem comunicao com meu parceiro-adversrio, a escolha tem de ser, num
determinado momento, sem condies) mas no incondicionalmente nem
necessariamente para sempre. Permanecendo, pois, num ter de ambivalncia
irredutvel, porque constitutivo da aliana entre inimigos e rivais. Ambivalncia que
explica o fato de que as ddivas obrigatrias obriguem a quem d e a quem recebe, que
sejam ao mesmo tempo remdio e veneno (gift/gift, pharmakos), benefcio e desafio,
uma ambivalncia prpria ao regime que se pode chamar de incondicionalidade
condicional (Caill, 1996).
Uma teoria paradoxal e pluridimensional da ao
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No fundo, Marcel Mauss sugere, de modo pioneiro, que o nico modo possvel de
responder ao dilema (do prisioneiro) faz-lo por meio de um paradoxo. A aposta da
ddiva , de fato, intrinsecamente paradoxal, j que apenas a gratuidade demonstrada, a
incondicionalidade, so capazes de selar a aliana que beneficiar a todos e, finalmente,
quele que tomou a iniciativa do desinteresse. Aquele que, homenageando Joseph
Schumpeter, tinha percebido claramente a natureza do problema econmico colocado,
ficaramos tentados a chamar deempreendedor da ddiva. Mas, justamente, retrucaro o
individualismo metodolgico e as mil e uma formas de utilitarismo cientfico,
justamente, um empreendedor, e na verdade por interesse que age. E se assim,
diro ainda, abusivo falar de ddiva.
Ao que um partidrio do paradigma da ddiva responder que, raciocinando assim,cairemos novamente na ladainha de que mal acabamos de sair, desconsiderando
totalmente o fato da aposta, da abertura para a incerteza quanto ao retorno que
constitui a generosidade e a ddiva iniciais, sem as quais no haveria absolutamente
nada. O empreendedor da ddiva, o chefe selvagem sedento de prestgio ou o cavalheiro
que se recusa a trair seriam "realmente desinteressados"? Seu desinteresse no deve ser
posto em dvida, ainda mais porque s vezes, freqentemente ou quase sempre (o que
mais plausvel? Eis um vasto tema) ganham com isso? Questo sem sentido, seformulada nesses termos. Talvez eles "ganhem", mas por terem corrido o risco de
perder, at de perder tudo, inclusive a prpria vida.
E isso deve bastar, por ora, para notar uma grande diferena entre o paradigma da
ddiva e seus dois rivais. Estes acreditam ter uma teoria da ao, mas na verdade no
tm nenhuma, j que para eles todas as aes podem ser creditadas a um nico mvel. O
sujeito da ao apresentado pelo holismo incapaz de dar. Controlado demais pelo
exterior para atingir a liberdade e o sentido, pode, na melhor das hipteses, apenas
cumprir corretamente o rito, a regra ou a funo, submetendo-se ao seu destino. Est
controlado demais, obrigado demais para agir. Inversamente, o indivduo do
individualismo metodolgico ao mesmo tempo livre demais e fechado demais em si
mesmo para ser capaz de sair, agir e realmente se relacionar com as outras mnadas.
Utilizando os termos de Max Weber, diramos que o holismo s concebe a ao
tradicional, e o individualismo s concebe a ao instrumentalzweckrational.
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Os comentadores de Mauss talvez no tenham dado suficiente nfase ao fato de que era
um modelo de ao social totalmente diferente o que ele nos apresentava na reflexo
acerca do sacrifcio ou da ddiva, um modelo intrinsecamente plural. Pois a ddiva ,
segundo ele, indissociavelmente "livre e obrigada" de um lado, e interessada e
desinteressada do outro. Obrigada, pois no se d qualquer coisa a qualquer pessoa,
num momento qualquer ou de qualquer modo, sendo os momentos e as formas da
ddiva de fato socialmente institudos, como bem nota o holismo. Contudo, se se
tratasse unicamente de mero ritual e pura mecnica, expresso obrigatria de
sentimentos obrigados de generosidade, ento nada ocorreria na verdade, j que, mesmo
socialmente imposta, a ddiva s adquire sentido numa certa atmosfera de
espontaneidade. preciso dar e retribuir. Sim, mas quando, quanto, com que gestos,
quais entonaes? Quanto a isso, mesmo a sociedade selvagem mais controlada pela
obrigao ritual deixa ainda um grande espao para a iniciativa pessoal.
A definio da relao entre interesse e desinteresse mais delicada ainda, j que no
somente o ganho acaba indo possivelmente, mas no garantidamente para aquele
que soube correr o risco da perda, mas tambm porque a ddiva arcaica, ddiva
nobre cujos restos Mauss exuma, no tem, nem pretende ter, nada de caridosa. Trata-se,
como Mauss deixa bem claro, de ddiva agonstica, rivalidade pela ddiva. Uma outraforma da guerra, portanto. Guerra continuada por outros meios, como se descreveu certa
vez o poltico, esse perfeito equivalente da ddiva em maior escala. De modo que o
interesse se encontra duplamente presente e imbricado nessa ostentao simblica de
generosidade. Que mais do que ostentao, alis, uma vez que a traz realidade. O
interesse est no final do processo (e no no incio, como quer o utilitarismo), pois a
generosidade, se tudo correr bem (mas no h como ter certeza de que tudo correr
bem), acaba compensando. Sob outra forma, porm, encontra-se tambm no prpriocerne do processo inteiro, estruturado pela rivalidade agonstica dos parceiros. O
paradoxo suplementar que essa rivalidade , em si mesma, a condio da aliana e da
amizade.
O que confere anlise mais do que esboada por Mauss sua enorme fora potencial o
fato de no se apresentar como resultado de uma construo especulativa, mas como
desvendamento da complexidade do concreto em si. Mantendo-se no nvel da
especulao, no muito difcil perceber os defeitos que notvamos h pouco no
8/3/2019 Alain Caill - NEM HOLISMO NEM INDIVIDUALISMO METODOLGICOS. Marcel Muss e o paradigma da ddiva
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holismo e no individualismo metodolgicos, e tentar super-los multiplicando as
hipteses e os modelosad hoc, obtidos pela manipulao mais ou menos arbitrria de
algum parmetro. Nada disso ocorre em Mauss. Sem dvida, possvel e legtimo
discutir infindavelmente a sua escolha das palavras. Estaria correto em utilizar o termo
ddiva, em vez de troca simblica ou prestao agonstica (como s vezes faz)? Pode-se
realmente falar em interesse, ou obrigao etc.? Ele mesmo tinha conscincia demais da
extraordinria variabilidade histrica do sentido das palavras foi, inclusive, o
primeiro terico disso, com o seu "Ensaio sobre algumas formas primitivas de
classificao"(Durkheim e Mauss, in Mauss, 1971) para esconder suas dvidas
quanto a cada um dos termos empregados. Contudo, no que diz respeito ao sentido geral
da resposta que prope, h poucas dvidas. Poucas dvidas de que a ddiva "no
funcionaria", no seria o operador privilegiado da sociabilidade que se no fosse,
efetivamente, ao mesmo tempo e paradoxalmente obrigada e livre, interessada e
desinteressada.
Interacionismo, ddiva e redes
O modo como tentamos, at agora, entrar no paradigma da ddiva certamente ter
deixado cticos no s os defensores intransigentes do individualismo ou do holismo
metodolgicos, como tambm todos aqueles, cada vez mais numerosos, que se filiam
atualmente ao interacionismo. E atualmente todos o fazem, ainda que se trate
unicamente de se distanciar dos defeitos mais grosseiros e mais gritantes dos dois
paradigmas dominantes. Quem discordaria de que, em princpio, preciso evitar reificar
e hipostasiar as figuras do indivduo e da sociedade? E tudo o que se tem buscado nas
cincias sociais, nas ltimas trs dcadas, no constitui uma tentativa de abrir um
caminho intermedirio, evitando tanto os escolhos do individualismo como os do
holismo tradicionais?
No h um ar de famlia, que consiste exatamente nisso, entre o interacionismo
simblico de E. Goffman, a etnometodologia de Garfinkel, a antropologia das cincias
de M. Caillon e B. Latour, a sociologia econmica de Mark Granovetter e Richard
Swedberg, a economia das convenes de L. Thvenot ou, num gnero totalmente
diferente, J.-P. Dupuy e A. Orlan, e a sociologia da competncia de Luc Boltanski?12E
se assim, como tudo leva a crer inicialmente, no seria vergonhosamente abusivo
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atribuir a um nico autor, ainda por cima discreto quanto a esse tema, o mrito
exclusivo de ter formulado uma questo que , na verdade, a de todos?
No negamos que existe, de fato, um ar de famlia entre todos esses autores, e entre eles
e Mauss. inclusive possvel descobrir interacionismo no prprio Durkheim e, a
fortiori, em Weber. Sem mencionar G. Simmel, que , sem dvida, ao lado de Mauss, o
outro inventor do paradigma que aqui tentamos fixar. Mas a questo crucial saber se
existe, entre os autores que se dizem ou so ditos interacionistas, ferramentas tericas e
conceitosespecificamente interacionistas. Nem sempre o caso. Vrias descries feitas
por Goffman se referem, de fato, a interaes. Mas para explic-las, Goffman ora se
apia na distino mais pesadamente holista de Durkheim, evocando a obrigao ritual,
ora, ao contrrio, se inspira na teoria de T. Schelling e na teoria dos jogos, ou seja, noinstrumento privilegiado do individualismo metodolgico contemporneo.13
Os economistas das convenes, por sua vez, a nosso ver se incluem totalmente no
quadro do individualismo metodolgico que, alis, reivindicam explicitamente , e
se limitam basicamente a introduzir nele um grau suplementar de flexibilidade.14Alis,
a prpria idia de interacionismo no fica clara, e talvez fosse melhor, seguindo Norbert
Elias, explorar as possibilidades do que poderamos chamar de interdependentismo,
propondo a anlise do conjunto das interdependncias concretas que ligam os
indivduos, do qual o interacionismo, isto , a anlise das inter-relaes face a face ou
em relao de conhecimento mtuo, constituiria apenas um subconjunto.
Seja como for, no somos evidentemente loucos de pretender que Mauss tenha
inventado tudo sozinho e que, exceo dele, nada valha a pena. Notadamente, como
acabamos de sugerir, parece que boa parte das descobertas que lhe atribumos poderia
ser igualmente atribuda a GeorgSimmel, autor que tem ainda em comum com Mauss ohorror ao esprito de sistema. E nada se percebe nele que, em princpio, seja estranho
abordagem do discpulo privilegiado de Simmel que Norbert Elias.
Entre os autores contemporneos, aqueles com quem as afinidades deveriam ser mais
pronunciadas so os que centram sua anlise na utilizao da noo de rede. o caso da
antropologia das cincias e tambm da sociologia econmica tal como entendida e
defendida por M. Granovetter e R. Swedberg (1994), entre outros. Quer seja no mbito
da cincia ou no da empresa, esses autores mostram de modo sugestivo como sua
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anlise escapa das interpretaes correntes. O que produz a descoberta cientfica no a
razo universal e impessoal em ao, mas a capacidade dos especialistas de constituir
alianas, tecer redes e obter apoio de colegas, administradores, financiadores e
jornalistas, e aparelhos, micrbios ou moluscos. O que faz funcionar as empresas e d
vida aos mercados econmicos no a universal e abstrata lei econmica da oferta e da
procura, mas a cadeia de (inter)dependncias e relaes de confiana de que so feitas
as redes. As sociologias da cincia e da economia convergem, assim, para uma tipologia
das redes.
Nada mais de acordo com aquilo que constitui o ncleo da postura de Marcel Mauss. De
fato, a primeira anlise de rede jamais realizada pelas cincias sociais e que ocupa
um lugar central no"Ensaio sobre a ddiva" a de Malinowski, emArgonautas doPacfico (sic), quando descreve as ddivas simblicas de bens preciosos, osvaygu'as,
realizadas pelos nativos das ilhas Trobriand por ocasio de suas famosas
expedies kula. A palavrakula, explicava Malinowski, significa crculo, o grande
crculo do comrcio simblico intertribal. Crculo ou rede, d no mesmo. Sem saber
j que os socilogos americanos ignoram completamente Mauss , Granovetter centra
sua reflexo a respeito das redes exatamente naquilo que Mauss descobrira em sua
busca da ddiva atravs da infinita variedade de culturas: fidelidade e confiana.
A rede o conjunto das pessoas em relao s quais a manuteno de relaes
interpessoais, de amizade ou de camaradagem, permite conservar e esperar confiana e
fidelidade. Mais do que em relao aos que esto fora da rede, em todo caso.15A nica
coisa que falta a priori nessas anlises reconhecer que essa aliana generalizada que
constitui as redes, atualmente como nas sociedades arcaicas, s se cria a partir da aposta
da ddiva e da confiana.16E constatar que o vocabulrio da fidelidade e da confiana
indissocivel do da ddiva (Servet, 1994), j que a palavra dada, mais do que o
juramento e antes dele (Verdier, 1991). Contudo, e logo voltaremos a isso, a referncia
ddiva, em razo de sua natureza simblica, abre imediatamente para uma dimenso que
irredutvel s redes concretas e empiricamente determinadas.
Mas acrescentemos desde j que por uma outra dimenso, igualmente forte, que essas
anlises em termos de redes se inscrevem to facilmente no quadro da reflexo aberta
por Mauss. De fato, holismo e individualismo tm em comum o fato de pensarem asociedade segundo um eixo vertical. Um para afirmar o peso esmagador do topo sobre a
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base, do todo sobre as partes e os indivduos. O outro, ao contrrio, para negar essa
preeminncia perguntando, alm disso, totalidade: "quem te fez rainha?" ,
pretendendo reproduzir logicamente a gerao do alto pelo baixo. Em ambos os casos,
preciso supor que um dos dois termos preexiste gerao e seria, assim, transcendente
realidade que gera. Raciocinar em termos do interacionismo da ddiva, de pensamento
do poltico, , ao contrrio, adotar um ponto de vista radicalmente imanente,
horizontalista, e mostrar que do mesmo movimento que se produzem ou se
reproduzem os termos opostos, a base e o topo.
"De sada", isto , o tempo todo, agora, no h nem indivduo nem sociedade nem
natureza nem sociedade, diria Latour , mas a (inter)ao dos homens concretos.17A
prxis, diria o jovem Marx deAideologia alem. Afirmao com que Mauss certamenteconcordaria, ele que, alis, era grande admirador de Marx e, por mais estranho que
possa parecer, poderia justificadamente ser considerado como seu principal herdeiro.18
Estabelecendo relaes que so determinadas pelas obrigaes que contraem ao se
aliarem e dando uns aos outros, submetendo-se lei dos smbolos que criam e fazem
circular, os homens produzem simultaneamente sua individualidade, sua comunidade e
o conjunto social no seio do qual se desenvolve a sua rivalidade. Eis, aproximadamente,
o que poderia dizer um Marx cruzado com Mauss e com alguns harmnicos do lado do
atual pensamento de redes.
Resta saber se os representantes desta ltima concordam com o que dela dizemos.19A
principal implicao disso que o que poderamos chamar de modalidade reticular do
interacionismo de modo menos pedante, as escolas que praticam o interacionismo
baseadas na anlise das redes no representaria seno uma utilizao do paradigma
da ddiva. Sendo de lamentar apenas que no tenha mais conscincia disso. E que,como insiste com justeza Olivier Schwartz (1993), num texto luminoso que constitui
uma homenagem vibrante a Marcel Mauss e sua sociologia compreensiva, limitando-
se a observar interaes empricas mais ou menos arbitrariamente recortadas, o
interacionismo no saiba, em geral, abrir-se para a profundidade do simbolismo e do
fato social total. Assim, escreve esse autor:
Se o interacionismo se sente especialmente vontade no plano das unidades ou
seqncias interacionais claramente delimitadas [...] uma perspectiva maussiana
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constri seus fatos de outro modo [...]: 1o. substitui um modo de recorte dos objetos
operado em funo das necessidades da anlise do investigador por uma construo dos
fatos segundo as situaes em que so efetivamente pertinentes para os grupos
estudados; 2o. as unidades observadas no so constitudas em isolado [...] A
originalidade de sua posio decorre, precisamente, de sua capacidade de circular entre
o plano mais "situacional" e o mais "estrutural", de praticar o go-between entre nveis
diferentes de organizao do fato social. (Schwartz, 1993, p. 303)
O componente normativo do paradigma da ddiva
Afirmvamos h pouco que, nas cincias sociais, o componente normativo
hierarquicamente superior em relao s dimenses estritamente cognitivas. A aluso aMarx que acabamos de fazer permite precisar a situao de Mauss desse ponto de vista,
e insistir no fato de que esses debates, que devem parecer bizantinos para os leigos,
acerca do lugar que devem ocupar, respectivamente, os paradigmas holista,
individualista e interacionista, esto longe de ter um alcance puramente acadmico.
Atravs deles, e rapidamente, desemboca-se diretamente na questo das escolhas ticas
e polticas. Simplificando um pouco, e correndo o risco de ficar exposto a numerosas
refutaes empricas fceis, parece pouco duvidoso que existe uma forte correlao
entre a adoo do paradigma individualista e uma certa preferncia pelo liberalismo
econmico (e poltico) e, reciprocamente, entre a escolha de uma abordagem holista e,
no mnimo, uma certa reticncia quanto a esse mesmo liberalismo econmico. Os
individualistas desejam deixar ao livre jogo do mercado a organizao da maior parte da
existncia social. Os holistas, ao contrrio, tm mais tendncia a desejar que o Estado
desempenhe um papel importante.
Nesse sentido, os debates acadmicos apenas reproduzem a oposio, to central namodernidade, entre liberais mais ou menos rgidos (ou o contrrio) e socialistas mais ou
menos flexveis (ou o contrrio). Os primeiros falam a partir do ponto de vista do
mercado, os ltimos, do ponto de vista do Estado (quando no do da religio ou de seus
sucedneos modernos). Aqui tambm se sente uma grande lacuna, a de uma doutrina
que, sem negar a necessidade do Estado e do mercado, tratasse de desenvolver uma
viso poltica a partir do ponto de vista da prpria sociedade (e de sua autoconsistncia,
sua Selbstandigkeit), na medida em que esta irredutvel ao mercado e ao Estado. Olivro de Fournier atesta a contento que era essa a viso de Mauss, que durante toda a
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vida militou, e muitas vezes na linha de frente notadamente por ocasio de sua
colaborao estreita com Jaurs , pelo advento de um socialismo associativo. Ser
lcito pensar que a exigncia cada vez mais atual, mesmo que tudo parea nos afastar
disso, e que o desenvolvimento da economia solidria, quaternria, associativa, plural
etc., que todos desejamos profundamente, e pouco importa aqui sua designao exata,
s pode surgir se reconhecer em si mesma um conjunto de mveis complexos, os que
impelem paraa ddiva e para o investimento livre em redes de obrigaes, e no apenas
por interesse individual isolado ou por obrigao estatal?
Essa breve digresso normativa revela imediatamente a necessidade de efetuar um
ajuste no alcance do paradigma da ddiva. Apesar de dezenas ou centenas de pginas
escritas para especificar o contrrio, muitos leitores deLa Revue du MAUSS, mais oumenos benevolentes, acreditaram ler nela um manifesto romntico em favor de
alternativas totalmente radicais e inditas para a ordem prtica e terica reinante. Como
criticvamos a hipertrofia da economia de mercado, a hiptese de sua naturalidade e a
de sua imaculada concepo, e como colocvamos srias dvidas quanto capacidade
da cincia econmica de analis-lo, deduziu-se que desejvamos sua substituio por
uma economia completamente diferente, uma economia fundada na ddiva e na
gratuidade, por exemplo. E essas poucas linhas, rpidas e, portanto, desajeitadas queacabamos de escrever para mostrar a proximidade de inspirao entre aspectos de Marx
e Mauss no vo certamente contribuir para resolver o problema. Pois a loucura do
marxismo no sculo XX consistiu, justamente, em pretender construir, sobre as runas
do mercado e do Estado burgueses, uma economia completamente diferente, fundada
em motivaes altrustas, na ddiva, em prol da causa do proletariado.
intil reafirmar aqui que nenhum desgnio sombrio ou ideolgico desse tipo nos
inspira, e que, como Mauss, no clamamos de modo algum pela abolio do mercado ou
do Estado, mas por sua reinsero numa ordem social e poltica que faa um sentido
global seu reembedding, diria K. Polanyi. Ser certamente mais interessante precisar
uma das razes tericas fundamentais para isso: nem a economia de mercado, nem a
economia pblica, nem o capitalismo, nem o Estado so incomensurveis e
absolutamente estranhos economia ou sociedade da ddiva, ou, pelo menos, no do
modo como geralmente se imagina. Oprincpio da economia de mercado, para falar
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como Montesquieu, o interesse (e, secundariamente, a liberdade). O princpio da
economia pblica a obrigao (e, secundariamente, a igualdade).
Nenhum desses princpios est ausente do registro da ddiva. Sua especificidade,
comparadoa esses grandes maquinrios modernos impessoais que so o mercado e o
Estado, no de modo algum o desprezo do interesse e da obrigao, da liberdade ou da
reciprocidade, mas o fato de mesclar todos esses princpios, temperando um com o
outro, quando a modernidade deixa cada ordem obedecer a seu prprio princpio,
procurando torn-los compatveis, mas apenas a posteriori. No existe,
portanto, um modelo da economia da ddiva que pudesse ser, enquanto tal, oposto ao do
mercado ou da economia estatal. Isso exige que se torne ainda mais preciso o sentido no
qual nos parece possvel buscar delimitar um paradigma da ddiva.
Um paradigma anti-sistemtico e antiparadigmtico (as quatro entradas para a
ddiva)
Assim como se imputou Revue du MAUSS um rousseaunianismo ingnuo e perigoso,
muitos de seus leitores apressados acreditaram que, como criticvamos a axiomtica do
interesse a pretenso de tudo explicar pelo famoso interesse , decorria que
pretendamos poder tudo explicar pelo desinteresse, quem sabe at pelo esprito de
caridade. Pois bem, correndo o risco de surpreender, no hesitamos em declarar e repetir
que o paradigma da ddiva no implica nenhuma condenao das explicaes pelo
interesse enquanto tais, inclusive o interesse econmico. O "Ensaio sobre a ddiva",
alis, recheado de consideraes nesse sentido, a ponto de alguns autores terem achado
que poderiam situ-lo sob a bandeira de uma certa forma de marxismo economicista.
"Ser o primeiro, o mais belo, o mais sortudo, o mais forte e o mais rico, isso o que se
busca e assim se o obtm." (Mauss, 1966, p. 270). Essa frase aparentemente simplestransborda, decerto, de sutilezas ocultas, pois poderamos refletir longamente acerca da
hierarquia relativa desses diversos objetivos e do modo como cada um deles pode ser
atingido.
Por uma longa srie de razes, que tomaria muito tempo desenvolver aqui, parece que
uma das implicaes lgicas do antiutilitarismo e do paradigma da ddiva deva ser a
afirmao de que os interesses instrumentais so hierarquicamente secundrios em
relao ao que se poderia chamar de interesses de forma ou de apresentao de
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si (Selbstdarstellung), que os interesses estritamente econmicos ou materiais so
secundrios em relao aos interesses de glria ou fama, dir-se-ia ainda h pouco tempo
atrs. E isso porque, antes de ter interesses econmicos, instrumentais ou de posse,
preciso que os sujeitos, individuais ou coletivos, existam, e se constituam enquanto tais.
Seja como for, fica suficientemente claro nessa discusso que o paradigma da ddiva
no o inimigoa priorida axiomtica do interesse (exceto em sua dimenso axiomtica
ou paradigmtica), nem de nenhum outro tipo de explicao. Ope-se, sim, a todo e
qualquer reducionismo e, assim, a toda teorizao unilateral. E, sobretudo, a toda
teoria a priori. A quem fala apenas de interesse preciso retrucar que h tambm
obrigao, e espontaneidade, e prazer, e vice-versa.
Se refletirmos acerca da extraordinria complexidade analtica imediatamenteintroduzida pela frmula da tripla obrigao de dar, receber e retribuir, e de sua
combinao com a certeza de Marcel Mauss de que, na ddiva, h ao mesmo tempo
obrigao e liberdade, interesse e desinteresse, compreende-se melhor por que Mauss,
inimigo de qualquer sistema, no deixou nehuma teoria acabada e formalmente
satisfatria. Se quisssemos adotar um procedimento tipologizante, poderamos de fato
distinguir entre as aes que so regidas primeiramente pela obrigao de dar, ou pela
de receber, ou pela de retribuir,20
e refazer a operao para cada um dos trs outrosmotivos e depois considerar as combinaes de motivos. Isso bastaria para constituir um
instrumental tipolgico respeitvel, e provavelmente necessrio.21Porm, sem desejar
ou pretender ir to longe, para ter uma idia da plasticidade intrnseca do paradigma
bastar notar a extraordinria pluralidade dos escritos explicitamente inspirados
nele.22E que, surpresa, podem muito bem ser reagrupados de acordo com as quatro
dimenses da ao isoladas por Mauss.
Uma primeira categoria de textos, os mais prximos de uma abordagem etnolgica ou
antropolgica profissional, insistem primariamente no fato da obrigao ritual. Para
eles, a ddiva antes de mais nada ddiva ritual. Ou exclusivamente isso. O autor mais
representativo dessa concepo certamente Guy Nicolas (1986), que, alis, dedicou a
suas manifestaes na frica, no Niger, na regio de Maradi, uma das mais belas
monografias jamais produzidas em Etnologia, na nossa opinio,23e que atualmente
estende sua anlise s sociedades contemporneas e ao estudo do martrio e da vontade
de morrer pela ptria (Nicolas, 1995 e 1996).
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Com nuanas j que seus autores no so etnlogos de profisso , poderamos
ligar a essa inspirao o belo livro de Dominique Temple e Mireille Chabal (1995), La
reciprocit et la naissance des valeurs humaines, que mostra admiravelmente que antes
da ddiva positiva, ddiva de bens, e da ddiva negativa, ddiva dos males e da morte,
existe uma obrigao de reciprocidade, anterior a qualquer ddiva concreta, que regula a
alternncia dos gestos.24De onde provm essa obrigao de reciprocidade? Por que
mesmo na mais terrvel das guerras h sempre regras? Eis, de fato, um campo de
reflexo de suma importncia. E um campo emprico evidentemente inesgotvel, j que
o prprio campo da Antropologia, inclusive da antropologia das sociedades modernas.
Seguindo a lgica estruturalista das oposies binrias, as anlises mais opostas quelas
que raciocinam em termos de ritual so as que vem primeiramente na ddiva, em vezda obrigao, a dimenso da liberdade, na medida em que beira a espontaneidade e a
criao. A generosidade, neste caso, est do lado do engendramento e da gerao a
da paternidade e da maternidade, ou ainda a do artista criador (cf. Hyde, 1983). No
primeiro caso, dom de vida; no segundo, dom do artista, justamente na medida em que
ele recebeu um dom, e que faz com que esse dom recebido das musas circule em prol
dos outros.
A ddiva , assim, ddiva do que surge, ddiva do prprio surgir. Essa a ddiva que
ocupa os filsofos, mais do que os etnlogos, principalmente se forem fenomenlogos.
Se a ddiva dos etnlogos basicamente ddiva ritual, aqui torna-se doao, ou ddiva-
doao. Dentre os autores que contriburam naRevue du MAUSS, o mais sensvel a essa
dimenso da ddiva certamente Jacques Dewitte (1993), particularmente atento obra
do bilogo A. Portmann, sobre a qual Hannah Arendt baseava parte de suas reflexes
relativas ao desejo de aparecer. No resta dvida de que est a uma dimenso essencial
do antiutilitarismo, j que as anlises de Portmann permitem descartar qualquer
interpretao utilitarista, funcional ou instrumental do ser vivo, mostrando como ele se
desenvolve no jbilo da apresentao de si (Selbstdarstellung) e como esta ltima
hierarquicamente primeira em relao s necessidades orgnicas e funcionais.
Essa meno ao jbilo inerente ao fato de aparecer lana uma ponte entre a tradio
fenomenolgica de Arendt, Portmann e Dewitte e uma entrada totalmente diferente na
complexidade da ddiva, a da rivalidade e do Agn. No existe apenas desejo deaparecer, diria Jean-Luc Boileau, seu mais firme e fogoso defensor, mas luta e
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competio para impor seu prprio aparecer perante o dos outros. Esse o verdadeiro
motivo primeiro. O desejo de glria, de ser o mais belo. A ddiva, aqui, agonstica. E
a posio de Boileau forte, j que sem dvida da ddiva agonstica, e no de outr
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