AS YALORIXÁS E A MANUTENÇÃO DOS TERREIROS COMO ESPAÇO DE
PRODUÇÃO E DISSEMINAÇÃO DE SABER
Waldeci Ferreira Chagas Universidade Estadual da Paraíba - UEPB
Introdução
Na tradição de algumas etnias africanas a mulher é por excelência
responsável pela preservação, manutenção e transmissão da cultura. Essa condição
garantiu-lhe durante a antiguidade papel importante na composição do universo cultural
dos diversos povos africanos do sul, não só porque fora considerada capaz de assegurar
a vida e por extensão a reprodução das etnias/raças, mas, sobretudo, devido a sua
capacidade de disseminação dos saberes relacionado à vida material e espiritual. Desta
feita, ocupou lugar importante na estrutura de algumas comunidades, o que fez com que
muitas delas tenham se estruturado socialmente e politicamente no sistema matrilinear.
Na compreensão dos europeus a organização familiar fazia parte do processo
de evolução e era comum a todas as sociedades humanas conforme afirmaram alguns
estudiosos, a exemplo de Engels, que aceitou incontestavelmente essa teoria, e afirmou
que havia uma evolução cultural universal a todos os povos. Nesse processo a
humanidade passaria pelo matriarcado e atingiria o patriarcado, considerado o modelo
europeu de organização, e, portanto superior (ENGELS, 1943, apud NASCIMENTO,
2008, p.74). De acordo com essa teoria, o patriarcado,
[...] está associado a superioridade e representa, a espiritualidade, a luz, a razão e a delicadeza. Em contrapartida, o matriarcado foi associado às entranhas cavernosas da terra, à noite, a lua, as coisas materiais e a esquerda, que pertencem à feminilidade passiva, contrastada com o lado direito, ligado à atividade masculina (DIOP, 19878b, p.12 apud NASCIMENTO, 2008, p.74).
No entanto, a presença do matriarcado no processo de organização da
humanidade, não representou o atraso, especificamente dos africanos, uma vez que o
patriarcado resultara do contato das comunidades africanas com os invasores árabes no
século VII e com os europeus no século XV, ao invés da evolução como pensara os
europeus. Na época dos contatos das comunidades africanas do sul com os invasores,
elas ainda mantinham o matriarcado como base na sua organização social e política.
Porém, o contato com tais povos possibilitou a incorporação do patriarcado ao universo
cultural africano. Mesmo que em tais comunidades o patriarcado tenha sido
incorporado, o matriarcado não desapareceu totalmente, os dois modelos de organização
passaram a coexistir no mesmo espaço.
Acerca da compreensão do matriarcado como sendo um estagio inferior no
processo de evolução da humanidade, Diop discorda. Depois de analisar detalhadamente
as teorias da evolução universal rumo ao patriarcado, afirma que elas necessitam de
base cientifica, e alerta que se o matriarcado for considerado inferior, civilizações
avançadíssimas, a exemplo dos impérios de Gana ou Asante, na África ocidental, assim
como o Egito antigo, seriam exemplos de barbárie, apenas porque sua estrutura social é
matrilinear. Esse historiador não só discorda da compreensão de inferioridade do
matriarcado, mais também questiona a ideia de superioridade das comunidades que
fundamentaram sua organização social no patriarcado. Ressalta que comunidades
patriarcais consideradas superiores recorreram às várias práticas bárbaras como a
violência contra as mulheres, o infanticídio e o canibalismo. Entre as tantas cita as tribos
nômades germânicas, no entanto, estas são apontadas pelos estudiosos como estando na
fase da “civilização superior” (DIOP, 19878b, p.12 apud NASCIMENTO, 2008, p.74).
Apesar de não concordar com a ideia do matriarcado como inferior, Diop
contestou a teoria do matriarcado universal “primitivo” e apresentou a hipótese dos
“dois berços”. Para ele as formas de organização social eram decorrentes das condições
de vida concretas dos povos. Para tanto, passou a compreender a humanidade a partir
dos dois grandes berços, o norte e o sul. Segundo Diop,
[...] no norte, o caráter nômade dos povos indo-arianos implicava a subvalorização da mulher, pois ela representava um empecilho a mobilidade tribal, um peso a ser carregado nos deslocamentos coletivos. Nesse contexto, ela não tinha uma função produtiva na economia do grupo. Por outro lado, nas civilizações meridionais, agrárias, a mulher desempenhava função central. Ela representava,
socialmente, o valor máximo da vida e da produção agrícola: a estabilidade. Suas atividades no cultivo garantiam o sustento da coletividade, enquanto os homens desempenhavam funções arriscadas, incertas, ou até economicamente prejudiciais à comunidade, como a caça, a pesca e a guerra (DIOP, 19878b, p.12 apud NASCIMENTO, 2008, p.75).
Nos seus estudos Diop identificou vários casos de comunidades africanas
matrilineares que mudaram para o sistema patrilinear. No entanto, não compreende essa
mudança com produto do processo evolutivo, mas decorrentes das invasões a que tais
comunidades foram submetidas. Analisando a obra desse historiador Nascimento afirma
que ele, [...] examinou vários casos relatados na ciência ocidental em que ocorreu uma aparente evolução de sistemas matrilineares para outros patrilineares, inclusive na Grécia antiga. Seus estudos mostram que, em todos esses exemplos, houve populações originais agrárias sedentárias, de origem meridional (leia-se africana), com organização social matrilinear. Posteriormente, invasores do norte as dominaram e impuseram-lhes outros sistemas. Os invasores setentrionais eram povos nômades, guerreiros agressivos que praticavam o patriarcado (NASCIMENTO, 2008, p.75).
Os estudos de Diop desconstroem a tese do caráter evolutivo da humanidade
com relação à organização social, que coloca o sistema matrilinear como inferior e o
patrilinear como superior, com o que Nascimento concorda. No entanto, essa autora
afirma que nas comunidades africanas onde o sistema matrilinear,
[...] existiu, isso não implicou uma dominação da mulher sobre o homem, mas a partilha de responsabilidade e privilégios, inclusive do poder. Por este ser partilhado entre mulher e homem, um equilíbrio estável era assegurado nos negócios de Estados (NASCIMENTO, 2008, p.75).
Para tanto, essa autora cita no Egito, a existência das várias mulheres
africanas que foram soberanas na condução e administração do Estado e da vida
religiosa e espiritual, a exemplo das rainhas Nefertiti, Nefertari, Cleópatra, e a rainha
Nzinga em Angola, entre outras (NASCIMENTO, 2008, pp.76-79). Diante do propósito
dos portugueses de colonizar o mundo desconhecido em favor dos seus interesses
econômicos, a África foi alvo de exploração e seu povo escravizado e transportado para
a América com o intuito de trabalhar na lavoura de cana-de-açúcar e tornar a nova terra,
em especial o Brasil produtivo aos olhos da corte portuguesa.
Isso significou o transporte de grande contingente de africanos para o Brasil,
ou seja, a diáspora colocou na nova terra homens e mulheres com diferentes saberes que
se misturaram aos saberes indígena e juntamente com os brancos passaram a compor o
universo cultural da terra Brasil. Os bantos foram os primeiros a desembarcar, vindos,
principalmente, de Angola, Moçambique, do Zaire e Congo. Depois de comercializados,
foram fixados em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Já os sudaneses trazidos da Nigéria
e do Benin, foram fixados no Nordeste. Nessa empreitada, os guineano-sudaneses,
oriundos do norte da Nigéria, também tiveram o mesmo destino (SANTOS, 1998, p.
108). Juntamente com esses povos desembarcaram no Brasil diferentes saberes e
práticas, visto os africanos terem vindo de diferentes regiões da África, cujas culturas
são diversas. Dentre os africanos aportados no Brasil merecem destaque as mulheres,
sobretudo, porque elas foram importantes na manutenção e disseminação dos saberes,
conhecimentos e práticas culturais tradicionais que serviram de base para a construção
da identidade cultural dos afrodescendentes no Brasil. Com elas vieram também os
modos de organização social e política, intrínsecos a cultura dos africanos, do qual a
mulher participava juntamente com o homem.
Todavia os portugueses ignoraram o universo cultural trazido pelos
africanos, e passaram a impor-lhes a cultura cristã ocidental, pois antes de serem
vendidos e distribuídos nos engenhos ou nas fazendas, os africanos aportados no Brasil
eram batizados, recebiam um nome cristão e assim ficavam obrigados a professar a
nova fé.
A proposta dos portugueses era a de que em pouco tempo eles esquecessem
a tradição cultural que trouxeram da África e passassem a manifestar unicamente a
cultura cristã, em especial, a fé católica, sobretudo, porque na acepção dos europeus os
africanos eram incivilizados, e sua fé animista era uma decorrência do estado de
ignorância a que ainda estavam submetidos. Por isso, entenderam que colonizá-los na
África e explorá-los no Brasil representava uma oportunidade deles elevarem a sua
cultura e desta feita ter a sua existência material assegurada. Os europeus,
principalmente os portugueses acreditavam que os africanos eram incapazes
tecnicamente de se manterem e em função disso em pouco tempo seria uma raça extinta,
ou seja, eles não seriam capazes de reproduzirem a sua cultura. Para tanto, não
pouparam nas práticas de violência e a utilizaram como meio para impor a cultura cristã
ocidental. A perspectiva era extinguir de vez a tradição africana.
Embora dentre os propósitos dos portugueses não fizesse parte, o respeito à
cultura africana, essa resistiu, principalmente no que se refere à religião e religiosidade.
Logo, o nosso propósito neste trabalho é discutir a manutenção dessa cultura mediante
os espaços sagrados, em especial os terreiros de candomblé e umbanda, e neles
dedicamos atenção as yalorixás ou mães de santo; mulheres herdeiras das velhas yabás
africanas que ao longo do período escravista aportaram no Brasil e trouxeram consigo
saberes e fazeres que ainda perduram nas roças, terreiros e casas de santos; práticas que
são cotidianamente apropriadas e reinventadas pelos iniciados, mais também pelos
leigos nessa cultura, o que faz da tradição africana um acervo relevante na composição
do universo cultural dos brasileiros. Mesmo assim os terreiros de candomblé e umbanda
no Brasil ainda são alvos da intolerância e discriminação.
No exercício de manutenção e transmissão dos sabres tradicionais africanos,
as mulheres tiveram papel fundamental, uma vez que guardaram nas suas memórias e
práticas a cultura africana, entre elas, o saber dos orixás, presente nas ervas, nas águas,
na comida, nas rezas, nos ritos, ou seja, na natureza em geral.
Embora o culto aos deuses africanos tenha sido proibido no Brasil, ele se
manteve, graças às inúmeras ações forjadas pelas yalorixás, entre elas, o uso dos santos
católicos como estratégia para cultuar os orixás. Essa prática fora comum nas senzalas,
sobretudo, à noite quando depois da extenuante jornada de trabalho os escravizados se
recolhiam. Nas senzalas era comum os escravizados recorrerem as velhas yabás a
procura de ungüento para curar feridas, rezas que os reconfortavam espiritualmente e os
ajudavam a enfrentar as agruras do mundo do trabalho escravo. Desta feita o culto
passara a ser usado como um meio de alento ao cansaço. Por isso, os senhores e
senhoras de escravos o viram como uma estratégia para manter os escravizados sob
controle, e assim livrá-los da possibilidade de revolta.
Todavia, foi a partir da realização dos cultos dedicados aos (as) santos (as)
católicos (as), que as populações negras no Brasil puderam reinventar a sua cultura e
manter viva a crença nos orixás e assim recriar a África no Brasil. Acerca dessa questão
(CAPUTO & PASSOS, 2007) afirmam que:
O candomblé com seus mitos, seus rituais, símbolos e sua linguagem sagrada viajou na diáspora e foi recriado em terras brasileiras. Sua tradição é mantida e, ao mesmo tempo, ressignificada no cotidiano dos terreiros. A oralidade não é apenas a fala do povo-de-santo, é antes, sua estrutura, sua constituição (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95).
A presença dos (as) santos (as) católicos (as) nos rituais religiosos realizados
nas senzalas funcionou como estratégia capaz de possibilitar a realização do culto aos
orixás, uma vez que os senhores não desconfiavam que os cultos realizados fossem
dedicados aos deuses africanos, sobretudo, porque ao olhar o interior das senzalas eles
viam as imagens dos (as) santos (as) católicos (as) e não as referências aos deuses
africanos. No geral essa medida possibilitou aos africanos escravizados no Brasil
reinventarem a tradição dos orixás e inventar os terreiros como espaços de vivência,
manutenção e reinvenção da cultura africana no Brasil. Embora a tradição dos orixás
tenha chegado com os africanos da diáspora, e se mantido nas senzalas, os primeiros
terreiros de candomblé só surgiram no Brasil no século XIX. Durante um longo período
da sua história os escravizados foram impedidos de cultuar os seus deuses, no entanto, a
proibição, e a ausência dos terreiros não significaram a ausência de culto aos orixás. Tão
pouco o surgimento dos primeiros terreiros representou a liberdade desse culto, uma vez
que comumente, desde o império as autoridades governamentais recomendavam a
proibição da prática de culto aos orixás, e reforçavam a ideia do catolicismo como culto
oficial do país.
Por isso, as autoridades imperiais não pouparam as pessoas negras, que
ousaram vivenciar a sua religiosidade, quebraram a ordem social e praticaram o culto
aos orixás, numa época em que a diversidade de culto era autorizada apenas ao recinto
doméstico e restrito aos povos da Europa residentes no Brasil, conforme está enunciado
no trecho de uma carta que o Juiz de Paz da Bahia, o Senhor Antonio Gomes de Abreu
Guimarães, recebera do Visconde de Camamú. Após receber a carta o tal juiz preparou
relatório e encaminhou ao Imperador D. Pedro, dizendo-lhe:
[...] é verdade que a sagrada constituição Política oferecida por S. M. I. (Sua Majestade Imperial) no artigo 5 diz que: a religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas, mas seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas sem forma alguma exterior ao templo. Isto se entende para com as nações políticas da Europa, e nunca para os pretos africanos, que vindo das suas para a nossa Pátria, se educam no grêmio da nossa religião; como se permitirá que estes venham apostatar, mostrando por uma face catolicismo, e por outra adorando publicamente seus deuses? (REIS & SILVA, 1989, pp. 128-130).
No trecho acima, o Juiz de Paz questiona o imperador acerca da suposta
liberdade dos negros africanos de praticarem a sua religião, quando a Constituição
Brasileira de 1824 não permitia. Fez tal questionamento, porque o preto africano
Joaquim Baptista na tentativa de negar que não estava praticando culto africano, o
procurou e se queixou de que fora ofendido e furtado pelos oficiais do Império em 200
contos de réis, um chapéu de sol, e um pano da Costa. No relatório encaminhado ao
imperador, o juiz diz que o negro não fora roubado, mas que na casa dele os oficiais
encontraram:
[...] em cima de uma mesa toda preparada, um boneco todo guarnecido de fitas, e búzios, e uma cuia grande da Costa cheia de búzios, e algum dinheiro de cobre misturado das esmolas, tocando tambaque, e cuias guarnecidas de búzios, dançando umas {mulheres}, e outras em um quarto dormindo ou fazendo que dormiam (REIS & SILVA, 1989, pp. 128-130).
Em virtude da proibição aos negros (as) de cultuarem seus deuses, o juiz de
Paz, justificou a ação dos oficiais quando chegaram à casa do preto Joaquim, afirmando
que os oficiais:
[...] quebraram o chamado Deus Vodum, cuias, e tudo lançando por terra, e somente se interessaram em prendê-los, fazer acordar as que dormiam; e porque na casa havia bastante roupa de lavadeiras,
deixaram onze para tomar conta, e as mais com os ditos 3 pretos conduziram a minha presença em número de vinte e cinco, que vendo o choro que fizeram, depois de as repreender, por serem crioulas, as mandei embora, para não dar incômodos a seus senhores (REIS & SILVA, 1989, pp. 128-130).
Conforme se depreende do trecho acima, não se tratava de um terreiro, mas
de um praticante que individualmente realizava as escondidas o culto aos orixás no
interior da sua casa, e quando procurado por alguém a atendia. Mesmo estando na sua
casa fora privado de praticar sua religião por ela ser proibida e pelo fato de ser preto
africano. Essa situação além de evidenciar a intolerância contra a religião e
religiosidade das pessoas negras, é denotativa da condição destas pessoas na sociedade
brasileira do século XIX, visto que além de não ser reconhecido cidadão, uma vez que
teve sua casa invadida e os símbolos da sua religião quebrados e apreendidos Joaquim
Baptista teve sua queixa indeferida porque na compreensão do Juiz de Paz, os oficiais
não o roubaram, mas executaram uma ação, conforme determinação da lei. Por sua vez
a constituição proibia o culto que ele estava realizando.
Mesmo não sendo reconhecido cidadão, Joaquim Baptista não se calou e
recorreu à autoridade imperial no sentido de reaver os símbolos da sua religião, e
denunciar as autoridades imperiais à violência a que fora submetidos. O comportamento
dele é denotativo das formas de resistência a que as pessoas negras recorreram ou se
utilizaram para se manter culturalmente vivas. De inicio a prática do culto aos orixás,
mesmo que as escondidas numa sociedade oficialmente católica é denotativa da
resistência. Por outro lado a recorrência a autoridade imperial, denunciando a situação a
que fora submetido, quando teve sua casa invadida por policiais e seus objetos sagrados
quebrados e apreendidos, também é digna de nota. Uma evidencia de que os africanos
escravizados no Brasil, nunca aceitaram essa condição. De uma forma ou de outra
resistiram à violência que lhe fora imposta.
Mesmo que a atitude de Joaquim Baptista não tenha resultado na devolução
dos símbolos sagrados que lhes pertenciam, na punição do policial que o agrediu e na
concessão do direito para praticar livremente o culto aos orixás, ela é relevante, porque
é uma evidencia da ação dos escravizados contra o sistema escravista, uma prova de que
nunca aceitaram a condição que lhe fora imposta e recorreram a vários mecanismos,
entre eles a abertura dos terreiros de candomblé; espaço sagrado onde o saber
tradicional fora guardado, vivenciado e reinventado.
Assim o terreiro se constituira em lugar de aconchego e guarda dos
escravizados fugidos. Pois era para onde corriam os (as) negros (as) fugidos dos
engenhos. Sob a proteção dos orixás e a guarda das mães de santo, os fugidos
aguardavam o momento de sair em busca dos quilombos ou das matas onde formavam
outros quilombos.
Desde o século XIX quando surgiram os primeiros terreiros de candomblé
no Brasil, esse assumiu função social, pois não se tratava de um espaço meramente
sagrado, mais também social e político, e desde outrora vem possibilitando aos
iniciados ou não a vivência e aproximação com a cultura africana, além de fortalecer os
laços de sociabilidade fundamentados na família, base da organização social e política
da África tradicional. Nos primeiros terreiros de candomblé abertos no Brasil, desde
outrora as mulheres assumiram papel relevante, sobretudo, porque eles foram iniciativas
de mulheres africanas, que durante o período da escravidão aportaram no Brasil.
Abriram-nos e deixaram com suas filhas de santo, ou biológicas a tarefa de prosseguir e
manter viva a tradição dos ancestrais africanos no Brasil. Um exemplo disso é Mãe
Beata de Iemanjá, uma,
descendente direta de africanos, da família Aro, da cidade de Ketu. Os seus bisavós vieram da África como milhões de homens e mulheres arrancados de sua terra e transformados em escravos. Trouxeram duas filhas, gêmeas, de três anos, Maria da Conceição e Josefa. A primeira morreu no navio negreiro e foi lançada ao mar. A segunda sobreviveu e chegou ao porto de Salvador onde foi vendida junto com os pais (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95).
Em entrevista essa yalorixá disse:
Minha bisavó quando chegou no Recôncavo ficou alegre porque uma quantidade de escravos vendidos foi para Pernambuco, outra para Maranhão e outra para Bahia. O navio negreiro chega no porto em Salvador e lá era o mercado de escravos que dividia tudo. E podiam ir também para todos os Engenhos ... do Recôncavo, da Cruz, Campina, Catolé, Brandão, Engenhoca. Para alegria deles, meus bisavós foram
vendidos para o Engenho Novo. Mas só descobriram isso lá (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95).
A sobrevivência da bisavô de Mãe Beata de Iemanjá, representou a
manutenção do culto dos orixás que com ela aportou no Brasil; uma herança vivenciada
por Mãe Beata e passada para as suas filhas e netas, uma vez que essa Yalorixá ao longo
dos seus 81 anos de idade ainda mantém a tarefa de passar os seus saberes e praticas aos
seus filhos e filhas de santos ou biológicos. A tradição aprendida com a sua bisavô, mãe
Beata de Iemanjá vem passando para seu neto Noam, iniciado no candomblé desde os
11 anos de idade, e hoje aos 16 anos continua a aprender os mistérios e segredos do
candomblé (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 96).
Outros exemplos de Yalorixás são pertinentes na manutenção desse culto e
dos terreiros como espaço de vivência e manutenção do culto aos orixás, como é ocaso
da paraibana Mãe Beza. Iniciada no culto dos orixás há 39 anos, Mãe Beza é filha de
Xangô com Yansã e pertence às nações Angola, Keto e Nagô, uma herança dos pais de
santo que a iniciaram no culto dos orixás, especialmente na umbanda. Mesmo tendo
sido iniciada nesse culto, também foi doutrinada na jurema, na qual fez sua primeira
formação. Em razão disso, seu terreiro se denomina “Umbanda na Jurema” e é dedicado
ao caboclo Tupirí, entidade do culto indígena e dono do terreiro. Portanto, encontramos
no seu terreiro dois assentamentos, um dedicado aos orixás, pertencente ao culto
africano, e outro dedicado aos caboclos e mestres, proveniente do culto indígena.
(Conforme entrevista concedida em 28/10/2006, por Dona Inacia Pereira de Pontes, 61
anos, Mãe Beza, yalorixá do Terreiro de Umbanda na Jurema, Caboclo Tupirí,
localizado na Cidade de Sapé – PB).
Embora no terreiro de candomblé e umbanda a mulher tenha
representatividade e seja autoridade religiosa, portanto, uma sacerdotisa, não queremos
afirmar que essas religiões sejam eminentemente femininas, mas ressaltar que tais
mulheres herdaram da antiguidade africana não só a religiosidade, mas a tradição de
organização social e política, fazendo com que nos terreiros ou casas de santo o sistema
matrilinear seja uma realidade, visto que no seu processo de administração a mulher está
lado a lado do homem e tem o mesmo poder de decisão e participação. Nesse espaço
perdura a solidariedade e não a sobreposição da mulher em relação ao homem, mas o
equilíbrio, representado no mito de Osíris e Isis, e que na antiguidade africana
fundamentaram a base das sociedades tradicionais.
Mas não foi apenas no período da escravidão que os terreiros serviram de
refugio as populações negras, essa prática se estendeu para além desse período e o
tornou um espaço político relevante na organização e mobilização das pessoas negras no
Brasil, pois foi nesse local onde elas, na época da ditadura militar se reuniram para
discutir a situação política, social e econômica do país, e desta feita forjar estratégias de
reivindicações e oposição a esse regime.
Logo, foi nos terreiros de candomblé que as pessoas negras na cidade do Rio
de Janeiro, São Paulo, e Salvador se reuniram e deram inicio as primeiras discussões
que resultou na fundação do Movimento Negro Unificado, na década de 1970.
Portanto, o terreiro, seja de candomblé ou umbanda se solidificou na
sociedade brasileira como uma casa de acolhimento, vivência, e transmissão de saberes;
os quais estão presentes na natureza e são decifrados pelos idosos, entre os quais
destacamos as mulheres, yabás, pretas velhas, mulheres de santo, yalorixás e senhoras
do saber.
No geral a política de perseguição ao culto dos orixás perdurou após o século
XIX, quando da abertura dos primeiros terreiros e se manteve ao longo da história. A
prova disso é o fato de que só na década de 1970 a prática do candomblé deixou de ser
caso de polícia e cessou de ser exigida das yalorixás a autorização da polícia para que
nos terreiros pudessem ser realizados os toques e os rituais dedicados aos orixás. Pois é
na vivência do terreiro observando as práticas das yalorixás, e demais mulheres idosas
que os filhos e filhas de santo aprendem o segredo dos orixás e passam a atuar na vida.
Mesmo que algumas yalorixás tenham recorrido à linguagem escrita para sistematizar
os seus conhecimentos e saberes, e publicaram livros, no candomblé prevalece à
tradição oral, ou seja, o saber é aprendido e transmitido na relação entre as yalorixás e
seus filhos e filhas de santo. Segundo Mãe Beata de Yemanjá,
[...] tudo o mais acontece nos terreiros e na vida, no dia-a-dia não só dos filhos e filhas-de-santo, mas de todo aquele e aquela que ama o candomblé. É na vida em comunidade que se aprende o candomblé sejam crianças, jovens ou adultos. É preciso ter vivência. Isso o livro
não ensina, nem eu ensino nos livros (CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95).
Também é a esse espaço que recorrem às pessoas não iniciadas quando por
ventura são acometidas por alguma energia ou força que a medicina desconhece. Pois
nele as pessoas lidam com outro saber, que chegou ao Brasil trazido pelas mãos e
memória das mulheres negras escravizadas, cuja essência ou segredo está nas ervas, na
terra, na água e no ar, um saber que não separa homem e natureza, mas que os
compreendem como complementares. Assim sem natureza não há orixá, não há
candomblé, não há vida. Pelas mãos das yalorixás a cosmovisão africana adentrou e está
presente na cultura brasileira e no conhecimento praticado nos terreiros; neles
“encontramos os orixás, a natureza, os animais, os seres humanos, vivos e mortos”
(CAPUTO & PASSOS, 2007, p. 95). Cada um deles traz um ensinamento, importante a
vida das pessoas que recorrem a esse espaço em busca de solução para algum problema
que por ventura esteja o afligindo. Comumente as pessoas procuram o terreiro para
curar um mal físico, espiritual e afetivo, sobretudo, porque diante deles se
desestabilizam e ficam mais suscetíveis as intempéries da vida. A recorrência ao terreiro
é a crença de que nesse espaço há uma energia ou força que pode auxiliá-las a superar,
enfrentar e resolver o mal que lhes afligem.
Normalmente no terreiro não se encontra a solução dos problemas, mas
conforto, força e energia, que pode está numa palavra da yalorixá, num banho de erva
indicado, num alimento recomendado, numa oração ou num gesto de solidariedade e
bondade com o semelhante ou um orixá. É um exercício onde a pessoa busca o seu
interior, e em momentos introspectivos retoma o equilíbrio consigo e com a natureza, o
que faz com que a vida siga seu fluxo normal e os sujeitos nas relações que estabelecem
se percebam. Essa prática é milenar e ao longo da história do Brasil vem sendo
reinventada e ressignificada, o que faz com que cada yalorixá seja relevante na
manutenção do terreiro como espaço singular na transmissão e manutenção do saber e
conhecimento dos orixás.
Referências
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