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XXVI CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI SÃO LUÍS – MA
CRIMINOLOGIAS E POLÍTICA CRIMINAL II
ANTONIO EDUARDO RAMIRES SANTORO
THAYARA SILVA CASTELO BRANCO
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Criminologias e política criminal II [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/ UFPR
Coordenadores: Antonio Eduardo Ramires Santoro; Thayara Silva Castelo Branco – Florianópolis: CONPEDI, 2017.
CDU: 34
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Tema: Direito, Democracia e Instituições do Sistema de Justiça
1.Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Encontros Nacionais. 2. Defesa jurídico-penal. 3. Infração. XXVI Congresso Nacional do CONPEDI (27. : 2017 : São Luís, Maranhão).
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
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XXVI CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI SÃO LUÍS – MA
CRIMINOLOGIAS E POLÍTICA CRIMINAL II
Apresentação
O Grupo de Trabalho “Criminologia e Política Criminal II” realizado no XXVI Congresso
Nacional do CONPEDI, na cidade de São Luís, na Universidade Ceuma, dentre os seus 14
trabalhos apresentados, discutiu as mais diversas problemáticas e densidades que permeiam o
tema.
O primeiro trabalho, intitulado “O estado penal-psiquiátrico e a negação do ser humano
(presumidamente) perigoso”, de autoria da professora Thayara Castelo Branco, tratou dos
contornos do direito penal de “tratamento” com base no discurso médico-psiquiátrico,
buscando analisar as consequências da reação (penal) ao sujeito “perigoso” e potencialmente
criminoso, bem como a herança dessa periculosidade no Sistema de Justiça Criminal
brasileiro. Dessa forma, problematizou o Estado penal-psiquiátrico que passou a conectar a
noção de “doença” e de “perigo” como justificativa de negação e aniquilamento do ser
humano.
O segundo trabalho, “São Luís, de Ilha do Amor à Ilha do Terror: a “conquista” do 21º lugar
dentre as cidades mais violentas do mundo”, foi de autoria do professor Mauricio José Fraga
Costa. O autor aponta que após a ONG Conselho Cidadao pela Seguridade Social Publica e
Justica Penal do Mexico divulgar o ranking das 50 cidades mais violentas do mundo em 25
de janeiro de 2016, São Luís foi apontada como a 21ª. O trabalho pretendeu identificar as
causas desta situação que teria iniciado com o incremento do tráfico de drogas e se
consolidou com a constituição de facções criminosas em relações com outros grupos
organizados de outras partes do país. O autor propôs que as políticas públicas não sejam
apenas reativas ao crime, apontando que o programa de georreferenciamento, segundo dados
de 2016, já aponta para uma melhoria da situação de violência.
O terceiro trabalho, de autoria de Joao Victor Duarte Moreira e Lucas Silva Machado,
chamado “Da legitimidade do Superior Tribunal de Justiça para resolver a questão da política
criminal referente ao art. 273 do Código Penal”, aborda o art. 273 que tipifica a conduta de
“falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapeuticos ou
medicinais” e sofreu alterações legislativa que aumentaram a pena e indicaram-no como
crime hediondo. O trabalho discute a legitimidade do STJ que declarou a
inconstitucionalidade apenas do preceito secundário do tipo, bem como, diante desta
situação, qual seria a pena aplicável para este tipo penal.
O quarto trabalho das autoras Daiane Ayumi Kassada e Érika Mendes de Carvalho, tratou da
“Responsabilidade das pessoas jurídicas em infrações ambientais em face do princípio do “ne
bis in idem”: uma abordagem político-criminal”. As autoras discutiram a aplicação do
princípio do “ne bis in idem” no âmbito dos crimes ambientais, uma vez que há previsão
constitucional da responsabilidade das pessoas jurídicas no âmbito penal e administrativo.
Naturalmente não se discute que uma pessoa (seja física ou jurídica) possa ser punida duas
vezes na seara penal ou duas vezes na seara administrativa pelo mesmo fato, o que não se
discute é o aspecto transversal, ou seja, se existe um impedimento, à luz do “ne bis in idem”
de que uma pessoa sofra duas sanções, uma penal e outra administrativa, pelo mesmo fato.
O quinto trabalho, “Um júri em Alvorada/RS”, é de autoria de Dani Rudnicki e Anna
Carolina Meira Ramos. Os autores vêm acompanhando julgamentos em plenário do júri em
Alvorada no Rio Grande do Sul com o objetivo de analisar qualitativamente os discursos de
acusação e de defesa, sua pertinência com o caso ou com modelos estereotipados. A escolha
de Alvorada se deu em razão do alto índice de homicídios para uma cidade do seu porte. O
trabalho aborda especificamente os discursos de um julgamento no tribunal do júri ocorrido
no dia 18 de maio de 2017, em que se identificou a utilização de argumentos moralistas
absolutamente alheios ao fato imputado ao réu, tanto por parte da acusação quanto da defesa.
O sexto trabalho, de Antoine Youssef Kamel e Tiemi Saito, chamado “Uma proposta à
reflexão da crise do paradigma carcerário”, é um trabalho com pretensão de refletir sobre a
crise do sistema carcerário a partir do pensamento de Thomas Kuhn exposto na obra “A
estrutura das revoluções científicas”. Os autores apontam uma disfunção entre o discurso
oficial e as reais finalidades da pena de prisão, reconhecem que não há atualmente uma
alternativa à prisão e indicam a experiência da APAC como um redutor efetivo de
reincidência.
O sétimo trabalho, cujo tema é “Lei Maria da Penha”: uma análise atual da implementação da
Rede Integral de Atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar sob a
perspectiva da legislação simbólica”, é de autoria de Leandra Chaves Tiago e Luciana
Andréa França Silva. O texto aborda que a Rede Integral de Atendimento às mulheres
vítimas de violência doméstica e familiar foi um dos mecanismos previstos legalmente para
proteção da mulher diante da violência de gênero, sendo sua implementação o objeto do
estudo das autoras, que trabalham uma importante crítica sobre a possibilidade de que a Lei
Maria da Penha seja uma legislação penal simbólica no sentido negativo, uma vez que à falta
de políticas públicas os mecanismos previstos é que podem efetivamente garantir a
integridade das mulheres vítimas de violência.
O oitavo trabalho, de Natália Lucero Frias Tavares e Antonio Eduardo Ramires Santoro, cujo
título é “Legitimação pela deturpação: a subversão do discurso feminista como justificativa
para o encarceramento”, reflete sobre o imenso aumento do número de encarceramento de
mulheres no Brasil, o que faz necessário um questionamento sobre as transcendências da
pena. Isso porque os filhos recém-nascidos e até doze anos terminam por sofrer indireta ou
diretamente os efeitos da pena. Os autores realizaram uma pesquisa empírica com base em
questionário aplicado na cidade do Rio de Janeiro para conhecer a opinião e percepção da
população sobre o aprisionamento de mulheres grávidas e obtiveram respostas que terminam
por subverter o discurso feminista para legitimar o encarceramento. Foram também
analisados dois casos concretos para avaliação da seletividade do encarceramento feminino.
O nono trabalho, “Justiça restaurativa no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e
Cidadania: da teoria à prática”, de Maria Angélica dos Santos Leal e Daniel Silva Achutti,
apresenta as reflexões e indagações iniciais das atividades empíricas desenvolvidas junto ao
Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) de Práticas Restaurativas
de Porto Alegre. Um problema apontado é a dificuldade da academia pesquisar sobre algo
que não se pode participar, uma vez que o acesso público se faz apenas nos casos de sucesso,
o que influencia metodologicamente a atividade do investigador. Uma outra reflexão é que
apenas os casos que não são graves é que são encaminhados ao CEJUS. São importantes
reflexões a partir de pesquisa empírica.
No décimo trabalho, de Juan Pablo Moraes Morillas, o qual chamou ““Nova prevenção”,
“policiamento comunitário” e “policiamento orientado à resolução de problemas”: uma
reflexão em meio à crise no sistema de justiça criminal”, o autor questiona o caráter
preventivo da pena e o baixo índice de elucidação de crimes como pontos centrais da crise do
atual sistema de justiça criminal no Brasil. O autor parte daquilo que ele chamou de nova
criminologia para contestar a eficiência do modelo tradicional de justiça penal e aponta a
“nova prevenção” como uma alternativa de atuação do Estado antes do crime. O autor cita os
programas “Ronda do Quarteirao” em Fortaleza - CE, e o “Ronda no Bairro” em Manaus –
AM, como exemplos, e afirma que não se trata de uma nova roupagem para o mesmo
discurso repressivo de sempre, mas leituras de conflitos sociais fora do direito penal.
No décimo primeiro trabalho de André Martins Pereira e Marcus Alan de Melo Gomes,
intitulado “A fabricação dos medos pela mídia e a violência do sistema penal”, os autores
questionam a relação entre a mídia e o sistema penal. Partindo da compreensão de Zaffaroni,
os autores apontam que os meios de comunicação são agências do sistema penal, que
produzem uma realidade específica. Trabalha-se com a ideia de que há mídia hegemônica e
não hegemônica, focando o estudo nas primeiras, para então enfrentar a adesão subjetiva de
trata Vera Malaguti Batista. Afirmam os autores que a demanda por punição, que leva ao
encarceramento em massa, passa pela atividade dos meios de comunicação que provocam um
desejo de encarceramento por conta da adesão subjetiva, que se mostra em tensão em relação
à ineficiência deste encarceramento para o alcance dos supostos fins a que se destinam.
No décimo segundo trabalho, “A Criminologia da Libertação e o fenômeno da seleção
policizante nas polícias brasileiras: uma epistemologia crítico-criminológica necessária”, a
autora Vitória de Oliveira Monteiro pesquisou quais seriam as contribuições epistemológicas
da Criminologia da Libertação para compreensão do fenômeno da seleção policizante, que
implicam em práticas racistas e preconceituosas, que terminam por deteriorar a imagem e
ética policial, o que é, como afirma a autora arrimada em Zaffaroni, próprio dos países latino-
americanos. Para tanto a autora parte de uma abordagem da Criminologia da Libertação, à
luz do pensamento de Lola Aniyar de Castro e Vera Andrade, como uma vertente
criminológica latino americana que se pretende um processo emancipatório que alia a práxis
e a teoria.
No décimo terceiro trabalho, “Realismo crítico, política criminal e dogmática: o papel ativo
do discurso criminológico na inovação legislativa e doutrinária”, os autores Gabriel Antinolfi
Divan e Eduardo Tedesco Castamann analisaram, diante de uma vertente crítica, o potencial
crítico do discurso criminológico e sua influência prática. Partiram dos estudos de Gabriel
Anitúa e aplicaram um realismo crítico de esquerda para terem uma influência prática maior,
para implementar uma produção mais efetiva da criminologia, com o estabelecimento de um
diálogo político que permitisse uma produção legislativa orientada politicamente.
No décimo quarto é último trabalho, de Francisco Antonio Nieri Mattosinho, intitulado
“(Não) corra, que a polícia vem aí: análise das prisões em flagrante delito por tráfico de
drogas submetidas às varas criminais de Ourinhos/SP a partir do REsp 1.574.681/RS”, o
autor trabalhou para responder o problema sobre a legalidade da violação de domicílio por
policiais coma apreensão de drogas sem mandado. Questiona-se a legalidade dessa apreensão
no caso em que os policiais determinaram que o cidadão não corresse e, tendo ele não
acatado a ordem, justificado o ingresso em domicílio e apreensão de drogas. O trabalho
analisa o problema a partir da teoria do direito penal do inimigo de Günther Jakobs e analisa
dados empíricos colhidos pelo autor nas audiências de custódia realizadas na Comarca de
Ourinhos .
Professora Dra. Thayara Silva Castelo Branco – Uniceuma e UEMA
Professor Dr. Antonio Eduardo Ramires Santoro – UFRJ, UCP e IBMEC
Nota Técnica: Os artigos que não constam nestes Anais foram selecionados para publicação
na Plataforma Index Law Journals, conforme previsto no artigo 7.3 do edital do evento.
Equipe Editorial Index Law Journal - [email protected].
1 Mestre em Ciência Jurídica (2016) pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica do Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA) do Campus de Jacarezinho da Universidade Estadual do Norte Paraná (UENP).
1
(NÃO) CORRA, QUE A POLÍCIA VEM AÍ: ANÁLISE DAS PRISÕES EM FLAGRANTE DELITO POR TRÁFICO DE DROGAS SUBMETIDAS ÀS VARAS
CRIMINAIS DE OURINHOS/SP A PARTIR DO RESP 1.574.681/RS
(DON’T) RUN, POLICE IS COMMING: DRUG TRAFFICKING ARRESTS SUBMITTED TO OURINHOS/SP CRIMINAL DISTRICT COURTS OF LAW
ANALYZED UNDER SPECIAL REVIEW 1.574.681/RS
Francisco Antonio Nieri Mattosinho 1
Resumo
O trabalho objetiva apresentar os resultados obtidos na investigação realizada nas Varas
Criminas da Comarca de Ourinhos/SP em relação às prisões em flagrante delito pela prática
do crime de tráfico de drogas (artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/06), contrapondo
posicionamentos jurisprudenciais acerca da natureza permanente da conduta e a garantia
constitucional da inviolabilidade do domicílio. Nesse cenário, à luz da Teoria do Direito
Penal do Inimigo de Günther Jakobs, busca-se contextualizar a Comarca de Ourinhos,
apresentar a ratio decidendi dos precedentes e revelar os resultados obtidos, a partir dos
métodos indutivo, dedutivo e da análise estatística dos dados obtidos.
Palavras-chave: Tráfico de drogas, Direito penal do inimigo, Inviolabilidade do domicílio, Flagrante delito, Comarca de ourinhos
Abstract/Resumen/Résumé
The paper aims to present the obtained results from the research conducted about drug
trafficking arrests analyzed by Ourinhos/SP Criminal District Courts of Law, comparing
jurisprudential positions about the permanent nature of that crime and the constitutional right
of people to be secure in their houses against unreasonable searches and seizures. In this
scenario, according to Günther Jakobs’ Theory of Enemy Criminal Law, it seeks to present
Ourinhos District Court of Law, the ratio decidendi of the precedents and reveal the obtained
results, from inductive and deductive methods and statistical analysis of obtained data.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Drug trafficking, Theory of enemy criminal law, Protection against invasion, flagrant crime, Ourinhos district court of law
1
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1. Introdução
O artigo 5°, XI, da CF/88, assegura a inviolabilidade do domicílio, permitindo,
contudo, o ingresso das Autoridades Policiais na residência do cidadão, dentre outras hipóteses,
em caso de flagrante delito, mesmo que não haja determinação judicial. No crime de tráfico de
drogas (art. 33, caput, da Lei n° 11.343/06), os verbos “ter em depósito” e “guardar” são
condutas classificadas como crimes permanentes, de modo que a consumação se protrai no
tempo, prolongando a situação de flagrância.
Nesse cenário, a jurisprudência superior (STF e STJ) entende ser possível o ingresso
das Autoridades Policiais no domicílio de suspeitos da prática das condutas mencionadas,
mesmo que não haja autorização judicial.
Em que pese o posicionamento jurisprudencial mencionado, o Superior Tribunal de
Justiça, no REsp 1.574.681/RS (DJe 30/05/17), manteve a absolvição de um réu acusado da
prática de tráfico, com fundamento no art. 386, II, do CPP, reconhecendo a ilicitude da prova
colhida em busca realizada no interior da residência sem mandado.
No caso analisado, o réu, ao avistar policiais militares em patrulhamento de rotina em
local conhecido como ponto de venda de drogas, correu para dentro de sua casa, onde foi
abordado. Após buscas no interior do domicílio, os policiais encontraram entorpecentes e o
prenderam em flagrante delito.
Apesar da condenação em primeiro grau, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
reformou a sentença, considerando como ilícita a violação domiciliar, sob o fundamento de que
“o fato de alguém retirar-se para dentro de casa ao avistar uma guarnição da PM não constitui
crime nem legitima a perseguição ou a prisão, menos ainda a busca nessa casa, por não ser
suficientemente indicativo de algum crime em curso”.
A 6ª Turma do STJ, por unanimidade, negou provimento ao REsp interposto pelo
Ministério Público do Rio Grande do Sul, aplicando a “Teoria dos Frutos da Árvore
Envenenada”, prevista no art. 5°, LVI, da CF/88, declarando nula a prova derivada da conduta
ilícita, materializada na invasão desautorizada do imóvel pelas Autoridades Policiais. Percebe-
se, então, que a simples ação de “correr para dentro de casa”, ao avistar uma viatura policial,
não oferece indícios suficientes e necessários para justificar a ofensa à garantia constitucional
da inviolabilidade do domicílio, mesmo que o agente se encontre em situação de flagrante
delito.
A partir, então, da contraposição entre a garantia constitucional do cidadão e do
combate à prática de crime equiparado a hediondo, bem como à luz do Direito Penal do Inimigo
(Günther Jakobs), analisam-se Autos de Prisão em Flagrante Delito submetidos à apreciação
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das Varas Criminais da Comarca de Ourinhos/SP, em casos cujos fatos se assemelham àquele
julgado no REsp 1.574.681/RS, a fim de se demonstrar, empiricamente, que situações como
essa ocorrem cotidianamente, revelando a violação diuturna dos direitos fundamentais
individuais, principalmente, de grupos sociais mais vulneráveis.
2. Problema da pesquisa
No intento de se combater com rigor a prática do comércio ilícito de entorpecentes,
por meio de postura mais enérgica das autoridades, o poder punitivo estatal acaba por legitimar
ações que violam profundamente garantias constitucionais do cidadão, como, por exemplo, seu
direito à privacidade, permitindo a introdução, no Direito Penal brasileiro, de características do
Direito Penal do Inimigo. Isso porque a essência da Teoria de Günther Jakobs é a
descaracterização da pessoa enquanto sujeito de direitos com base na periculosidade que
oferece ao Estado de Direito.
Por sua vez, a periculosidade é aferida a partir de seus traços físicos e sociais, de modo
que agentes integrantes de camadas sociais mais precárias economicamente não têm seus
mínimos direitos e garantias constitucionais preservados. Dentre eles está o de não ter a
residência invadida, a qualquer hora do dia, por policiais, sem as cautelas devidas e sob a única
justificativa, não amparada em elementos concretos de convicção, de que o local supostamente
seria um ponto de tráfico de drogas, ou que o suspeito do tráfico ali se escondeu.
Assim, questiona-se, no presente trabalho, a legitimidade da violação do domicílio sem
autorização judicial no combate ao crime de tráfico de drogas, de modo a justificar a privação
de direitos fundamentais individuais.
3. Referenciais teórico-metodológicos
Sob o viés teórico, a pesquisa apoiou-se no Habeas Corpus 404.980/PR (DJe 03/08/17)
e no REsp 1.574.681/RS (DJe 30/05/17) ambos do STJ. Sob o viés empírico, realizou-se coleta,
processamento e análise dos fatos apreciados nas Audiências de Custódia realizadas perante às
Varas Criminais da Comarca de Ourinhos/SP, no período compreendido entre 02/05/17 (início
da realização dessas audiências na Comarca) e 10/08/17. Por fim, quanto às metodologias
empregadas, foram utilizados os métodos indutivo e dedutivo, partindo-se da análise de diversas
fontes para se chegar à conclusão geral, bem como a análise estatística dos dados obtidos
perante as Varas Criminais da Comarca de Ourinhos/SP.
4. Objetivos
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O presente trabalho se propõe a realizar a contraposição da jurisprudência majoritária
dos tribunais superiores que defende a desnecessidade de ordem judicial para a realização de
buscas domiciliares e prisões em flagrante delito nos casos de crimes permanentes, tais como o
tráfico de drogas, e do REsp 1.574.681/RS (DJe 30/05/17), em que o STJ manteve, por
unanimidade, a absolvição de um réu processado pela prática de tráfico por considerar nula a
prova obtida a partir da invasão desautorizada do domicílio pela Autoridade Policial.
Da mesma forma, busca-se investigar, a partir da análise da Teoria do Direito Penal
do inimigo de Günther Jakobs e de dados coletados nas Varas Criminais da Comarca de
Ourinhos/SP, a licitude da atuação das Autoridades Policiais nas prisões por tráfico de drogas
em detrimento das garantias constitucionais do cidadão.
Para efeitos acadêmicos, salienta-se que a Comarca de Ourinhos conta com duas Varas
Criminais e possui jurisdição territorial sobre os municípios de Ourinhos (população de 111.056
habitantes), Salto Grande (população de 9.255 habitantes) e Ribeirão do Sul (população de
4.446 habitantes), cujas populações estimadas em 2016, se somadas, resultam em 124.757
habitantes, de acordo com os dados oficiais do IBGE (IBGE, 2010).
Contextualizado o objeto da pesquisa, passa-se à análise inicial da teoria que
fundamenta a reflexão apresentada.
5. A Teoria do Direito Penal do Inimigo de Günther Jakobs
Em seu artigo “Sobre o chamado Direito Penal do inimigo”, Luís Greco expõe a
primeira menção de Jakobs ao conceito, ocorrida no ano de 1985, oportunidade na qual foi
possível notar o tom crítico do reconhecimento desse conceito, que só seria ‘legitimável como
um direito penal de emergência, vigendo em caráter excepcional’. Embora Jakobs defenda, a
partir da virada do século, que sua posição seja meramente descritiva, ou seja, de que o conceito
deve ser reconhecido com a finalidade exclusiva de descrever uma situação já existente na
prática, seus estudos recentes foram recebidos pelos estudiosos do tema como sugestivos de
que seu tom crítico de outrora fora substituído por uma legitimação do conceito, tornando-o
algo necessário para garantir a segurança pública e a inviolabilidade dos direitos dos
classificados como cidadãos (GRECO, 2005, p. 216).
Em que pese a variação das abordagens realizadas por Jakobs, a busca pelo
reconhecimento formal de uma divisão material concreta no Direito Penal sempre permeou os
ensinamentos do jurista alemão. Sua defesa do Direito Penal do Inimigo se apresenta mais como
um mecanismo de proteção das garantias individuais, pois tenta apontar para a necessidade de
se evitar que todo o Direito Penal seja contaminado por normas extremamente rigorosas,
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característica do Direito em um Estado de guerra (GRECO, 2005, p. 216). Assim é que “um
Direito Penal do inimigo, claramente delimitado, é menos perigoso, desde a perspectiva do
Estado de Direito, que entrelaçar todo o Direito Penal com fragmentos de regulações próprias
do Direito Penal do inimigo” (JAKOBS, 2015, p. 47). Portanto, de acordo com seus
ensinamentos, para evitar que todo o Direito Penal padeça com a disseminação e imposição de
medidas extremamente rigorosas, elaboradas unicamente para coibir um crime ou
comportamentos específicos praticados por determinados indivíduos, é necessário que se
escolha quais indivíduos apresentam maiores indícios de que incorrerão nas mesmas práticas
delituosas, a fim de oferecer-lhes um tratamento díspar do que seria oferecido àqueles
considerados como “cidadãos”, reprimindo e apenando suficientemente sua conduta, de modo
a tutelar o meio social.
Uma vez apresentada a questão acerca da delimitação de um Direito Penal imposto
somente aqueles considerados como “inimigos”, passa a ser necessária a compreensão da
identificação desses indivíduos e sob quais medidas podem estar submetidos.
5.1. Indivíduo versus pessoa e cidadão versus inimigo
De maneira sucinta, de acordo com a teoria de Jakobs, o Direito Penal se caracterizaria
pela “imagem de autor da qual ele parte” (GRECO, 2005, p. 214), ou seja, cidadão ou inimigo.
Nesse contexto, antes de se realizar uma incursão pelo conceito de inimigo para que se possa
finalmente entender o conceito de “Direito Penal do inimigo”, é preciso entender,
primeiramente, o conceito de pessoa para o jurista alemão, já que sua teoria se sedimenta na
dualidade “pessoa” e “não pessoa” frente ao Direito Penal.
Günther Jakobs (2015, p. 33) conceitua que pessoa é quem se orienta tomando por
base o lícito e o ilícito. Diz ele que “só é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente
de um comportamento pessoal, e isso como consequência da ideia de que toda normatividade
necessita de uma cimentação cognitiva para poder ser real” (JAKOBS, 2015, p. 43). Tem-se,
portanto, que o autor defende ser considerado pessoa (e para o Direito Penal, cidadão) somente
o indivíduo que, sabendo o que é lícito ou ilícito, demonstra que essas normas se encontram
sedimentadas em sua mente e em seu comportamento, certificando toda a sociedade de que suas
atitudes se conduzirão de acordo com tais normas estabelecidas e realmente vigentes. Ou seja,
o status de pessoa, para Jakobs, é uma consequência da absorção do ordenamento pelo
indivíduo, e de sua vigência sobre suas atitudes.
O penalista alemão, aliás, compara seu conceito de pessoa à configuração de toda a
sociedade a partir da norma, pois “sem uma suficiente segurança cognitiva, a vigência da norma
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se esboroa e se converte numa promessa vazia, na medida em que já não oferece uma
configuração social realmente susceptível de ser vivida” (JAKOBS, 2015, p. 32). Acrescenta
que “isso significa que os cálculos das pessoas deveriam partir de que os demais se comportarão
de acordo com a norma, isto é, precisamente, sem infringi-la” (JAKOBS, 2015, p. 32). Ou seja,
o ordenamento normativo deve oferecer balizas para a interpretação das condutas, regulando o
modo de agir de toda a sociedade e como consequência disso, as expectativas dos indivíduos
que a compõem. Greco (2005, p. 217) exemplifica a questão ao dizer “se homicídios fossem
cometidos repetidamente, em algum momento estaria afetada a confiança na vigência da
proibição do homicídio”.
A existência de uma sociedade ordenada pressupõe normas que a organizem e
estabeleçam limites de ação, tanto para os indivíduos em suas vidas privadas quanto para as
ações do Estado que interfiram na vida desses indivíduos. Assim é que, quando uma norma
passa a ser violada reiteradamente pela população que deveria regrar, perde sua eficácia real e
não há mais sentido sua existência, já que essa mesma população não mais possui expectativas
de que a norma será obedecida, e a própria norma já não oferece mais segurança de que poderá
guiar as ações dos indivíduos submetidos à ela. Da mesma forma, portanto, ocorre com as
pessoas (VICENTIM, 2017, p. 31).
Aduz o alemão que a segurança de um comportamento pessoal, determinado com base
em direitos e deveres, oferecida por um indivíduo deve ser séria a ponto de apoiar as
expectativas depositadas por todos os outros indivíduos que compartilham com ele a
experiência da vida. Contudo, não havendo mais garantias suficientes do comportamento desse
indivíduo, torna-se ele um sujeito perigoso tendo em vista que não mais oferece respaldo para
uma expectativa séria, deixando assim de participar dos benefícios que provém de seu status de
pessoa (JAKOBS, 2015, p. 09-10).
Jakobs (2015, p. 58-59) afirma que “todo aquele que é fiel ao ordenamento jurídico
com certa confiabilidade tem direito a ser tratado como ‘pessoa’ e quem não aplicar esta
disposição, será heteroadministrado, o que significa que não será tratado como pessoa”. Nesse
contexto, a partir do conceito de pessoa, determina-se também quem são as “não-pessoas”
(ZAFFARONI, 2007, p. 18), apontadas pelo Direito Penal como inimigos, justamente porque
são tratadas de maneira diversa, pois deixaram de oferecer a garantia necessária de seu
comportamento.
Explicitando, pois, a condição de inimigo, Eugénio Raúl Zaffaroni afirma se tratar
daquele indivíduo considerado somente a partir de sua periculosidade.
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Na medida em que se trata um ser humano como algo meramente perigoso, e por
conseguinte, necessitado de pura contenção, dele é retirado ou negado o seu caráter
de pessoa, ainda que certos direitos (por exemplo, fazer testamento, contrair
matrimônio, reconhecer filhos etc.) lhe sejam reconhecidos. Não é a quantidade de
direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a
própria razão e que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado
de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente
perigoso (2007, p. 18).
Explica o autor argentino, ainda, que a privação da condição de pessoa é uma
consequência da eleição como inimigo, porém não é sua essência. De maneira geral, aponta que
a origem do conceito inimigo remonta do Direito Romano, mais precisamente da figura do
hostis, o inimigo público, contraposto à figura do inimicus, o inimigo particular. A figura do
hostis possuía ainda dois eixos troncais advindos do direito romano: o hostis alienígena, eixo
no qual eram incluídos todos os indivíduos que por sua própria natureza “incomodam o poder,
os insubordinados, indisciplinados ou simples estrangeiros... como todo desconhecido,
inspiram desconfiança e, por conseguinte tornam-se suspeitos por serem potencialmente
perigosos”; e o hostis judicatus, ou seja, o inimigo declarado, mas não porque assim se
declarava, e sim porque era declarado pelo Senado, “núcleo do tronco dos dissidentes ou
inimigos abertos do poder de plantão, do qual participarão os inimigos políticos puros de todos
os tempos”. A existência desse último eixo troncal possibilitava ao Senado a retirada da
condição de cidadão do indivíduo declarado inimigo de maneira a igualá-lo aos escravos,
tornando admissível a imposição de penas que não poderiam ser aplicadas aos cidadãos
(ZAFFARONI, 2007, p. 19-22).
A análise das classificações de inimigos trazida pelo Ex-Ministro da Suprema Corte
argentina, e atual Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é importante para o
entendimento do conceito de inimigo no Direito Penal, não apenas por apontar o marco
histórico do surgimento de tal figura, mas principalmente porque permite vislumbrar que a
existência do inimigo remonta aos primórdios da sociedade, tendo assumido diferentes formas
de acordo com cada época e contexto, e recebendo inúmeras outras denominações, sempre se
moldando aos interesses dos detentores do poder punitivo.
O hostis, inimigo, ou estranho nunca desapareceu da realidade operativa do poder
punitivo nem da teoria jurídico-penal. [...] Trata-se de um conceito que, na versão
original ou matizada, de cara limpa ou com mil máscaras, a partir de Roma, atravessou
toda a história do direito ocidental e penetrou na modernidade, não apenas no
pensamento de juristas como também no de alguns de seus mais destacados filósofos
e teóricos políticos, recebendo especiais e até festejadas boas-vindas no direito penal
(ZAFFARONI, 2007, p. 24).
A discricionariedade do poder punitivo ao selecionar os inimigos (ainda que tenham
recebido outras nomenclaturas ao longo da história) se torna evidente a partir da análise
realizada por Zaffaroni em sua obra. Em resumo, se depreende da leitura que “o ser humano
145
não é concebível fora das relações interativas”, e devido a essa característica, sempre procurou
organizar-se em comunidades, criando estruturas de poder. Essa organização das primeiras
comunidades ao redor de um centro de poder se deu por meio de uma hierarquização dos
indivíduos, setores sociais e instituições.
Assim, o poder punitivo se mostrou, desde sempre, a forma mais básica e eficiente de
se hierarquizar uma sociedade, eis que legitima(va) a mais drástica intervenção na vida do ser
humano, mediante a imposição de castigos físicos, privação da condição de cidadão, privação
da liberdade ou de outros direitos. Uma das características desse poder punitivo é “o confisco
do conflito, ou seja, a usurpação do lugar de quem sofre o dano ou é vítima” (ZAFFARONI,
2007, p. 30), usurpação essa que decorre precisamente da centralização do poder, permitindo
também a centralização da tomada de decisões acerca de quais condutas serão consideradas
crimes e quais as punições a serem aplicadas, de forma a conter a prática da autotutela, que pela
sua própria natureza enfraqueceria o poder punitivo.
Desde o momento da confiscação da vítima, o poder público adquiriu uma enorme
capacidade de decisão... nos conflitos, e também, consequentemente, de
arbitrariedade, uma vez que não apenas seleciona livremente as poucas pessoas sobre
as quais, em casos contados, quer exercer o poder, bem como a medida e a forma em
que decide fazê-lo (ZAFFARONI, 2007, p. 31).
Aliás, Vivian Oliveira analisando a obra de Zaffaroni, demonstra ser possível concluir
que, em cada época, existiu um inimigo a ser combatido pelo poder punitivo, selecionado
justamente pelos detentores desse poder:
A identificação como estranho, inimigo ou indesejável recaiu sobre os mais diferentes
sujeitos ao longo da história do poder punitivo, tais como as mulheres consideradas
bruxas, os povos indígenas, os africanos escravizados, os judeus, os sujeitos da ‘má
vida’, os comunistas, os imigrantes, os narcotraficantes, os terroristas, etc
(OLIVEIRA, 2014, p. 40-41).
A história revela que o grau de periculosidade sempre será determinado por quem tem
a capacidade de individualizar as condutas que merecem punição ou os indivíduos que deverão
recebê-la, ou seja, o detentor do poder punitivo, por isso assume-se que essa decisão, além de
discricionária, é também de caráter político, pois, como argumenta Zaffaroni, todas as vezes
que se busca justificar a necessidade de legitimar a existência da figura do inimigo no Direito,
parte-se para o campo da teoria política (2007, p. 16), como fez Günther Jakobs quando
fundamentou sua teoria a partir dos contratualistas Hobbes e Kant.
A partir do estudo do poder punitivo desde a Revolução Mercantil até o por ele
chamado “autoritarismo cool” do século XXI, o referido autor chega à conclusão de
que a realidade operativa do poder punitivo sempre discriminou os iguais e os
estranhos, os amigos e os inimigos, aplicando-lhes tratamentos penais diferenciados
(OLIVEIRA, 2014, p. 37).
Jakobs partiu das ideias de Hobbes e Kant, como marcos teóricos de sua pesquisa, para
a defesa do seu conceito de inimigo. Isso porque Jakobs parte do modelo de contrato social
146
defendido por esses filósofos para conceituar a pessoa e a não pessoa. Aponta ele que o inimigo
é o indivíduo que não aceita ser obrigado pelo pacto social, aquele cujo comportamento viola
diretamente o centro do poder existente em uma sociedade organizada. “Tanto Hobbes quanto
Kant, ainda que apresentem importantes diferenças em suas teorias, negam o direito de
resistência à opressão, atribuindo o caráter de inimigo aos indivíduos que pretendem exercê-lo”
(OLIVEIRA, 2014, p. 23). Afasta-se, contudo, do pensamento dos filósofos Rousseau e Fichte
por considerar que, de acordo com eles, todo delinquente – entendido como o violador do
contrato social – seria caracterizado como inimigo e teria seu status de cidadão e os direitos
provenientes dele tolhidos, e que uma aplicação do Direito coerente com uma separação tão
radical entre as figuras do cidadão e inimigo seria impossível (2015, p. 24-25).
Para Rousseau e Fichte, todo delinquente é, de per si, um inimigo; para Hobbes, ao
menos o réu de alta traição assim o é. Kant, que fez uso do modelo contratual como
ideia reguladora na fundamentação e na limitação do poder do Estado, situa o
problema na passagem do estado de natureza (fictício) ao estado estatal. Na
construção de Kant, toda pessoa está autorizada a obrigar qualquer outra pessoa a
entrar em uma constituição cidadã (JAKOBS, 2015, p. 26-27).
Isto porque, como já mencionado, Hobbes e Kant defendem que a sociedade
organizada surge a partir da celebração de um contrato por todos os indivíduos que a integram,
no qual são estipuladas normas às quais todos serão submetidos a fim de se alcançar a paz
social. Assim sendo, nem todo indivíduo delinquente será considerado inimigo, mas somente
aquele que viola gravemente o contrato social, de forma a pelo menos abalar a soberania do
Estado.
Segundo Jakobs, Hobbes sustenta que o réu de alta traição é um inimigo porque “a
natureza deste crime está na rescisão da submissão, o que significa uma recaída no estado de
natureza... E aqueles que incorrem em tal delito não são castigados como súditos” (2015, p. 26),
já que, ao resistirem ao poder do soberano, saem do contrato social e tornam-se um estranho
(ZAFFARONI, 2007, p. 125), vivendo no estado de natureza, onde não há regras de
organização de uma sociedade e vigem as normas de guerra.
Ademais, a leitura que Jakobs faz da teoria de Hobbes é a de que ao celebrarem o
contrato social, instituindo o Estado, os cidadãos acordam em entregar o poder de decisão ao
soberano a fim de que ele governe sobre todos os seus súditos (ZAFFARONI, 2007, p. 125).
Havendo um indivíduo que não ofereça a obediência necessária ao poder do soberano, “os
cidadãos têm direito de exigir do Estado que tome medidas adequadas, isto é, têm um direito à
147
segurança, com base no qual Hobbes fundamenta e limita o Estado: finis oboedientiae est
protectio1” (JAKOBS, 2015, p. 28).
O jurista alemão também realiza uma análise semelhante da obra “Sobre a paz
perpétua” de Kant, porque entende que o inimigo, para esse autor, é o indivíduo que vive no
estado de natureza e não aceita se submeter a um “estado comunitário-legal” e assim participar
dos benefícios dele provenientes, não devendo, portanto, ser considerado como um cidadão,
mas como um inimigo, pois não ratificou o contrato social. Frente à ameaça constante
representada pela ausência de regras do estado de natureza do indivíduo, deve-se obrigá-lo a se
subjugar ao contrato (denominado, em Kant, de Constituição Civil) ou entrar em guerra.
Aceita-se comumente que uma parte pode hostilizar a outra somente se o primeiro a
lesionou de fato e considera-se, desta forma, correto quando ambos vivem em um
estado civil-legal. Pois, pelo fato de ter ingressado neste estado, um proporciona ao
outro a segurança necessária (através da autoridade que possui o poder sobre ambos).
Contudo, um homem (ou um povo) no Estado Natural priva-me desta segurança e já
me está lesionando, ao estar junto a mim neste estado, não, de fato, certamente, mas
pela carência de leis de seu estado (statu iniusto), que é uma constante ameaça para
mim. Eu posso obrigá-lo a entrar em um estado social-legal ou afastar-se do meu lado.
Consequentemente, o postulado que subjaz aos artigos seguintes é: todos os homens
que exercem entre si influências recíprocas devem pertencer a uma Constituição civil.
(KANT, 2006, p. 65).
Vivian Oliveira cita importante crítica de Busato (2014, p. 22-23) quanto à
fundamentação da teoria do Direito Penal do inimigo. Segundo o posicionamento do autor
citado pela pesquisadora, o contratualismo de Hobbes deve ser interpretado levando-se em
conta seu contexto histórico-sociológico, pois é incabível que se pretenda suprimir direitos
fundamentais tão reclamados na atualidade com base em um marco teórico do século XVII.
Tais direitos fundamentais existem justamente em virtude da natureza humana do indivíduo,
revelando seu posicionamento jusnaturalista, não dependendo, pois, de um reconhecimento
estatal, como ocorria com os súditos, que deviam obediência irrestrita ao poder do soberano a
fim de que seu status de cidadão (e consequentemente seus direitos) fosse protegido. No
entendimento de Busato (apud OLIVEIRA, 2014, p. 22), Jakobs objetivava, na realidade,
“legitimar um verdadeiro direito penal de guerra, que admite a eliminação de indivíduos em
nome da manutenção da estabilidade do ordenamento jurídico”.
A vista do conceito de inimigo até aqui exposto, bem como dos fundamentos teóricos
e políticos desse conceito, entende-se que, para a teoria de Jakobs (2015, p. 34), nem todo
sujeito violador da norma é considerado inimigo, mas somente aquele que a viola reiterada e
gravemente, não oferecendo garantia de que se comportará conforme o esperado. Por isso o
1 “O fim da obediência é a proteção”. Tradução localizada na nota 23 da página 28 da obra “Direito Penal do
Inimigo: noções e críticas” de Gunther Jakobs.
148
autor (JAKOBS, 2015, p. 64), ao defender a necessidade de aplicação de penas que tenham uma
finalidade diversa ao inimigo, ressalva que esse Direito Penal deverá limitar-se ao necessário,
retirando do indivíduo apenas os direitos e garantias fundamentais que sejam suficientes para a
coação diante de sua conduta, pois mantendo-se alguns de seus direitos, não ocorrerá sua
completa despersonalização, o que permitirá que o indivíduo se reajuste à sociedade.
Em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito também o
criminoso, e isso por uma dupla razão: por um lado, o delinquente tem direito a voltar
a ajustar-se com a sociedade, e para isso deve manter seu status de pessoa, de cidadão,
em todo caso: sua situação dentro do Direito. Por outro, o delinquente tem o dever de
proceder à reparação e também os deveres têm como pressuposto a existência de
personalidade (JAKOBS, 2015, p. 25).
Para ele, a pena terá duas finalidades diferentes a depender do seu destinatário: cidadão
ou inimigo. Assim, frente a um cidadão, a pena não passará de uma interação simbólica com
caráter de prevenção geral positiva cuja finalidade será demonstrar que, apesar da violação, a
norma continua vigente e válida, prestando segurança necessária às expectativas dos
concidadãos. No entanto, como já se disse, diante das violações reiteradas de um indivíduo,
diminuirá a disposição em tratá-lo como cidadão, merecendo um tratamento penal mais
rigoroso e que terá finalidade de coação física, neutralizando o perigo na intenção de impedir a
ocorrência de novos e futuros danos à norma (OLIVEIRA, 2015, p. 16-17). O autor alemão
exemplifica a questão ao tratar da finalidade da pena aplicada aos terroristas.
O Direito Penal dirigido especificamente contra terroristas tem, no entanto, mais o
comprometimento de garantir a segurança do que o de manter a vigência do
ordenamento jurídico, como cabe inferir do fim da pena e dos tipos penais
correspondentes. O Direito Penal do cidadão e a garantia da vigência do Direito
mudam para converter-se em – agora vem o termo anatemizado – Direito Penal do
inimigo, em defesa frente a um risco [...] (JAKOBS, 2015, p. 62).
No entanto, o autor não mais se restringe apenas à luta contra o terrorismo. Diz ele que
o Direito Penal possui inúmeras outras regras através das quais é possível verificar que se tem
passado a uma legislação cada vez mais de “luta” em determinadas situações:
Há muitas outras regras do Direito Penal que permitem apreciar que naqueles casos,
nos quais a expectativa de um comportamento pessoal é defraudada de maneira
duradoura, diminui a disposição em tratar o delinquente como pessoa. [...] por
exemplo, no âmbito da criminalidade econômica, do terrorismo, da criminalidade
organizada, no caso de “delitos sexuais e outras infrações penais perigosas”, assim
como, em geral, no que tange aos “crimes”. Pretende-se combater, em cada um destes
casos, a indivíduos que em seu comportamento (por exemplo, no caso dos delitos
sexuais), em sua vida econômica, (assim, por exemplo, no caso da criminalidade
econômica, da criminalidade relacionada com as drogas e de outras formas de
criminalidade organizada) ou mediante sua incorporação a uma organização [...] se
tem afastado, provavelmente, de maneira duradoura, ao menos de modo decidido, do
Direito, isto é, que não proporciona a garantia cognitiva mínima necessária a um
tratamento como pessoa (JAKOBS, 2015, p. 34).
Salo de Carvalho (2006, p. 259) aponta que essa expansão do conceito, realizada por
Jakobs, ao abranger não mais apenas os grupos terroristas, mas qualquer integrante de uma
organização criminosa, na realidade, serve como parâmetro para a expansão “das malhas de
149
punitividade com a radical ruptura dos sistemas de garantias”, pois permite abranger sob um
mesmo rótulo condutas completamente diversas do terrorismo, como o tráfico de drogas.
5.2. Coexistência das duas esferas penais e violações ao estado democrático de direito
Diante das reflexões até o momento apresentadas, para que seja possível proteger o
bem jurídico “segurança de todos”, parece ser absolutamente compreensível e aceitável que se
trate com maior repressão aqueles indivíduos que mais gravemente ataquem o bem jurídico
com seus atos, deixando de revelar a garantia necessária de que se comportarão conforme o
conjunto normativo imposto. Dessa forma, reconhecer a existência formal do Direito Penal do
inimigo é de suma importância justamente para a individualização dos indivíduos considerados
inimigos e a consequente aplicação da lei penal de forma mais rigorosa a eles, punindo não a
mera violação da norma, mas a periculosidade oferecida pelo agente.
Isto porque uma das principais características da teoria de Günther Jakobs é
precisamente a coexistência de dois sistemas penais, como duas faces de uma mesma moeda,
pois existem sob as mesmas condições de tempo e lugar, mas com funções distintas de acordo
com seus destinatários.
Não se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito Penal, mas de
descrever dois polos de um só mundo ou de mostrar duas tendências opostas
em um só contexto jurídico-penal. Tal descrição revela que é perfeitamente
possível que estas tendências se sobreponham (JAKOBS, 2015, p. 21).
O jurista alemão admite que a sobreposição desses conceitos, na prática, pode gerar
certa confusão, pois os tipos ideais dos sistemas penais dificilmente apareceriam em sua forma
pura, claramente estabelecida. Exemplifica o autor que, mesmo no caso do cometimento de
crimes de pouca expressão, diante dos quais a pena assumiria um caráter meramente simbólico,
sendo, assim, reconhecida a aplicação de um Direito Penal do cidadão, a pena também assume
uma função de prevenção de riscos futuros ao punir com o encarceramento o violador da norma,
admitindo, portanto, a existência de traços de um Direito Penal do inimigo nessa função.
Também na aplicação do Direito Penal a um terrorista, julgado a partir das regras do processo
penal, são reconhecidos, ao menos teoricamente, direitos dos quais seriam dignos apenas os
cidadãos (JAKOBS, 2015, p. 21).
A partir da análise da Teoria do Direito Penal do Inimigo, é possível prosseguir no
estudo sobre a relativização jurisprudencial da garantia constitucional da inviolabilidade do
domicílio nos casos de crimes permanentes, dentre os quais se enquadra a prática do crime de
tráfico de drogas (artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/06), nas modalidades “guardar” e “ter em
150
depósito”, geralmente praticados com a manutenção de entorpecentes no interior da residência
do agente.
6. Crimes permanentes e a desnecessidade de autorização judicial para o ingresso no
domicílio
Nos termos do artigo 14, I, do Código Penal, diz-se o crime consumado, quando nele
se reúnem todos os elementos de sua definição legal. A partir desse momento, o iter criminis
encontra-se integralmente percorrido, restando superadas as fases da cogitação, da preparação
e da execução, de modo que, após a consumação, somente ocorre a prática de atos classificados
como de mero exaurimento da conduta delituosa.
A doutrina penal brasileira classifica os crimes quanto à forma de ação em crimes
instantâneos, permanentes e crimes instantâneos com efeitos permanentes. O professor Cézar
Bitencourt (2010, p. 253-254) entende que crime instantâneo “é aquele que se esgota com a
ocorrência do resultado. Instantâneo não significa praticado imediatamente, mas significa que,
uma vez realizados os seus elementos, nada mais se poderá fazer para impedir sua ocorrência”.
Para ele, “crime permanente é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo, dependente
da atividade do agente, que poderá cessar quando este quiser (cárcere privado e sequestro)”.
Quanto aos crimes instantâneos de efeitos permanentes, afirma Bitencourt que “não se confunde
com o crime permanente o crime instantâneo de efeitos permanentes (homicídio, furto), cuja
permanência não depende da continuidade da ação do agente”.
Apesar da lição doutrinária mencionada, SILVA e LEITE (2014, p. 21) apresentam
análise mais apurada sobre o conceito de crime permanente:
Tanto nos crimes instantâneos como nos crimes permanentes há a consumação do
delito, exceto na tentativa. Um leitor desatento pode compreender que nos crimes
permanentes não existe a consumação, mas há. Então se o crime foi consumado, a
ação do agente preencheu os requisitos necessários desde a conduta que iniciou a
execução até o seu resultado pretendido. Uma pergunta surge: como essa consumação
de protrai no tempo?
Se uma ação inicia a conduta de determinado tipo penal, tendo um nexo causal,
gerando um resultado, chegamos à consumação desse tipo. Tal consumação se finda
de imediato. É uma ação concreta que acontece com o resultado, realizando-se o
resultado ocorre de imediato sua consumação. O conceito que a doutrina penal
brasileira trata sobre o prolongamento da consumação pode trazer outras
interpretações e dúvidas sobre essa ação, por ser confuso.
O que entendemos aqui é que no crime permanente ocorre uma nova execução do fato
típico. Após sua consumação ele volta a exercer uma nova conduta, ligada por um
nexo causal, tendo o resultado pretendido dolosamente. Podemos entender como um
ciclo da execução da ação, que passa pela conduta, tendo nexo, chegando ao resultado
constantemente, de forma dolosa pelo agente. Poderíamos entender que nesse ciclo se
confunde o momento do início da conduta da nova execução e o momento da
consumação da anterior, tornando-se algo permanente até o momento que não
aconteça mais nenhuma execução, como por exemplo, no caso do sequestro, quando
a vítima desaparecida é encontrada.
151
Nesse cenário, a fim de se verificar se a conduta do agente pode ser classificada como
crime permanente, deve-se analisar o núcleo verbal do tipo, de modo que, se o verbo
expressamente selecionado pelo legislador penal expressar ideia de continuidade no tempo,
está-se diante de um crime permanente. Uma das principais consequências decorrentes do
enquadramento da conduta típica como crime permanente reside na verificação da situação de
flagrância do agente, que permite sua prisão imediata.
Nesse sentido, conceitua o artigo 302, do Código de Processo Penal que, “se considera
em flagrante delito, quem está cometendo a infração penal”. Ademais, com o intuito de espancar
qualquer dúvida sobre o tema, o legislador definiu no artigo 303, do CPP que, “nas infrações
permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessara a permanência”. A
partir da análise dessas disposições legais, a jurisprudência sedimentou entendimento que os
verbos “guardar” e “ter em depósito”, presentes no caput, do artigo 33, da Lei de Drogas,
classificam-se como crimes permanentes, permitindo, assim, a prisão do agente em situação de
flagrante delito (art. 302, I c.c. art. 303, ambos do CPP).
Ocorre que a situação de flagrante delito configura, expressamente, uma ressalva à
garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, in verbis: “Art. 5º, XI - a casa é asilo
inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo
em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial”.
Por conta disso, o Superior Tribunal de Justiça, no recente julgamento do Habeas
Corpus nº 404.980/PR (DJe 03/08/17), sob relatoria da Min. Laurita Vaz, reafirmou sua
jurisprudência, ao decidir que “alegação de nulidade absoluta por violação de domicílio, não é
procedente porque sendo o tráfico ilícito de entorpecentes crime de natureza permanente, cuja
consumação se prolonga no tempo, é prescindível o mandado de busca e apreensão para que os
policiais adentrem no domicílio do acusado, com o intuito de reprimir e fazer cessar a prática
delituosa. [...] Desse modo, não há que se falar em ilegalidade na abordagem e apreensão das
substâncias entorpecentes encontradas no quarto do paciente, não havendo que se cogitar haver
prova ilícita ou em reconhecimento de nulidade”.
Logo, conjugando a expressa relativização constitucional à garantia da inviolabilidade
do domicílio com a natureza de crime permanente do tráfico de drogas, a jurisprudência
nacional entende ser plenamente válido o ingresso das Autoridades Policiais na residência do
agente, quando houver fundados indícios da prática do delito mencionado, independentemente
de autorização judicial.
152
7. REsp 1.574.681/RS – correr não consubstancia presunção de flagrante delito
Diante da expressa autorização constitucional e da posição jurisprudencial acerca das
situações cotidianas relacionadas às prisões em flagrante delito pela prática do crime de tráfico
de drogas, as Autoridades Policias atuam com o respaldo do sistema de justiça criminal
brasileiro.
No entanto, a relativização da inviolabilidade do domicílio ao lado da seletividade do
Direito Penal, que atua de maneira mais enérgica sobre grupos socialmente vulneráveis, e do
contexto de Direito Penal do Inimigo, que encara o traficante de drogas como um indivíduo
despido de direitos e garantias fundamentais, abriram as portas para situações questionáveis
acerca dos limites da atuação estatal.
Deve-se lembrar que, ombreada à garantia da inviolabilidade do domicílio, encontra-
se a garantia da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF/88), de forma que posturas
corriqueiras dos cidadãos, ainda que inoportunas e duvidosas, não podem justificar a atuação
das autoridades responsáveis pela segurança pública de maneira desproporcional e violadora
dos mais comezinhos direitos fundamentais de todo cidadão, seja ele ou não criminoso.
Ao abordar o contínuo embate entre os direitos fundamentais do indivíduo e a
segurança pública, Nucci (2016, p. 71-72) leciona:
Os direitos humanos somente atrapalham a polícia quando esta é despreparada ou
desaparelhada; mal paga ou corrupta. A polícia bem treinada, com armas, aparelhos
tecnológicos modernos, cultivando o campo da inteligência contra o crime, bem paga
e sem corrupção não sofre absolutamente nenhuma influência dos direitos humanos.
Ao contrário, são até úteis para a demonstração da lisura dos trabalhos policiais e
permitem aquilatar a idônea prova produzida, fazendo a palavra do policial ter um
valor inestimável para a instrução do processo-crime.
É natural haver reclamo contra os direitos humanos se a polícia não tem preparo,
desconhece as regras básicas do Direito, depende de armas e veículos velhos ou
quebrados e não lastreia a sua investigação na inteligência, mas na pura sorte ou na
pressão exercida contra os suspeitos. Nesses casos, os direitos individuais atrapalham
– e muito – a colheita da identidade do autor, do crime e as provas de sua existência.
[...] O que é inadmissível, no Estado Democrático de Direito, é acatar a deliberada
infringência dos direitos humanos em nome de uma pretensa segurança pública,
aceitando os abusos policiais como se fossem indispensáveis para o sossego e a paz
alheia. Esse acatamento pode dar-se por meio da omissão da sociedade (ou do
incentivo à violência, como ocorre com os casos de linchamento), bem como pela
manifesta indiferença dos poderes de Estado.
Como reação a condutas policiais que ferem o núcleo duro das garantias
constitucionais da inviolabilidade do domicílio e da presunção de inocência, subjugando-os ao
discurso de combate à criminalidade organizada e ao tráfico ilícito de entorpecentes, a 6ª Turma
do STJ, por unanimidade, no REsp 1.574.681/RS, manteve a absolvição de um réu acusado da
prática de tráfico, com fundamento no art. 386, II, do CPP, reconhecendo a ilicitude da prova
colhida em busca realizada no interior da residência sem mandado.
Transcreve-se a ementa do julgamento por ser autoexplicativa:
153
RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. FLAGRANTE. DOMICÍLIO
COMO EXPRESSÃO DO DIREITO À INTIMIDADE. ASILO INVIOLÁVEL.
EXCEÇÕES CONSTITUCIONAIS. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. INVASÃO
DE DOMICÍLIO PELA POLÍCIA. NECESSIDADE DE JUSTA CAUSA.
NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS. TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE
ENVENENADA. ABSOLVIÇÃO DO AGENTE. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. O art. 5º, XI, da Constituição Federal consagrou o direito fundamental relativo
à inviolabilidade domiciliar, ao dispor que "a casa é asilo inviolável do indivíduo,
ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial".
2. A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito à intimidade
do indivíduo, o qual, na companhia de seu grupo familiar espera ter o seu
espaço de intimidade preservado contra devassas indiscriminadas e arbitrárias,
perpetradas sem os cuidados e os limites que a excepcionalidade da ressalva a tal
franquia constitucional exigem.
3. O ingresso regular de domicílio alheio depende, para sua validade e regularidade,
da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de
mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, somente quando o contexto
fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no
interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do
domicílio.
4. O Supremo Tribunal Federal definiu, em repercussão geral, que o ingresso forçado
em domicílio sem mandado judicial apenas se revela legítimo - a qualquer hora do
dia, inclusive durante o período noturno - quando amparado em fundadas razões,
devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto, que indiquem estar
ocorrendo, no interior da casa, situação de flagrante delito (RE n. 603.616/RO, Rel.
Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010).
5. O direito à inviolabilidade de domicílio, dada a sua magnitude e seu relevo, é
salvaguardado em diversos catálogos constitucionais de direitos e garantias
fundamentais, a exemplo da Convenção Americana de Direitos Humanos, cujo art.
11.2, destinado, explicitamente, à proteção da honra e da dignidade, assim dispõe:
"Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada,
em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais
à sua honra ou reputação." 6. A complexa e sofrida realidade social brasileira
sujeita as forças policiais a situações de risco e à necessidade de tomada urgente
de decisões no desempenho de suas relevantes funções, o que há de ser considerado
quando, no conforto de seus gabinetes, realizamos os juízes o controle posterior
das ações policiais. Mas, não se há de desconsiderar, por outra ótica, que
ocasionalmente a ação policial submete pessoas a situações abusivas e arbitrárias,
especialmente as que habitam comunidades socialmente vulneráveis e de baixa
renda.
7. Se, por um lado, a dinâmica e a sofisticação do crime organizado exigem uma
postura mais enérgica por parte do Estado, por outro, a coletividade, sobretudo a
integrada por segmentos das camadas sociais mais precárias economicamente,
também precisa sentir-se segura e ver preservados seus mínimos direitos e
garantias constitucionais, em especial o de não ter a residência invadida, a qualquer
hora do dia, por policiais, sem as cautelas devidas e sob a única justificativa, não
amparada em elementos concretos de convicção, de que o local supostamente seria
um ponto de tráfico de drogas, ou que o suspeito do tráfico ali se homiziou.
8. A ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes
públicos, diante da discricionariedade policial na identificação de situações suspeitas
relativas à ocorrência de tráfico de drogas, pode fragilizar e tornar írrito o direito
à intimidade e à inviolabilidade domiciliar.
9. Tal compreensão não se traduz, obviamente, em transformar o domicílio em
salvaguarda de criminosos, tampouco um espaço de criminalidade. Há de se
convir, no entanto, que só justifica o ingresso no domicílio alheio a situação
fática emergencial consubstanciadora de flagrante delito, incompatível com o
aguardo do momento adequado para, mediante mandado judicial, legitimar a
entrada na residência ou local de abrigo.
154
10. Se é verdade que o art. 5º, XI, da Constituição Federal, num primeiro momento,
parece exigir a emergência da situação para autorizar o ingresso em domicílio
alheio sem prévia autorização judicial - ao elencar hipóteses excepcionais como
o flagrante delito, casos de desastre ou prestação de socorro -, também é certo que
nem todo crime permanente denota essa emergência.
11. Na hipótese sob exame, o acusado estava em local supostamente conhecido
como ponto de venda de drogas, quando, ao avistar a guarnição de policiais,
refugiou-se dentro de sua casa, sendo certo que, após revista em seu domicílio, foram
encontradas substâncias entorpecentes (18 pedras de crack). Havia, consoante se
demonstrou, suspeitas vagas sobre eventual tráfico de drogas perpetrado pelo réu,
em razão, única e exclusivamente, do local em que ele estava no momento em que
policiais militares realizavam patrulhamento de rotina e em virtude de seu
comportamento de correr para sua residência, conduta que pode explicar-se por
diversos motivos, não necessariamente o de que o suspeito cometia, no momento,
ação caracterizadora de mercancia ilícita de drogas.
12. A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora
pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não
configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o
consentimento do morador - que deve ser mínima e seguramente comprovado - e
sem determinação judicial.
13. Ante a ausência de normatização que oriente e regule o ingresso em domicílio
alheio, nas hipóteses excepcionais previstas no Texto Maior, há de se aceitar com
muita reserva a usual afirmação - como ocorreu na espécie - de que o morador anuiu
livremente ao ingresso dos policiais para a busca domiciliar, máxime quando a
diligência não é acompanhada de qualquer preocupação em documentar e tornar
imune a dúvidas a voluntariedade do consentimento. 14. Em que pese eventual boa-
fé dos policiais militares, não havia elementos objetivos, seguros e racionais,
que justificassem a invasão de domicílio. Assim, como decorrência da Doutrina dos
Frutos da Árvore Envenenada (ou venenosa, visto que decorre da fruits of the
poisonous tree doctrine, de origem norte-americana), consagrada no art. 5º, LVI,
da nossa Constituição da República, é nula a prova derivada de conduta ilícita - no
caso, a apreensão, após invasão desautorizada do domicílio do recorrido, de 18
pedras de crack -, pois evidente o nexo causal entre uma e outra conduta, ou seja,
entre a invasão de domicílio (permeada de ilicitude) e a apreensão de drogas.
15. Recurso especial não provido, para manter a absolvição do recorrido.
(REsp 1574681/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA,
julgado em 20/04/2017, DJe 30/05/2017)
Assim, a partir da análise minuciosa dos fatos em cada caso concreto, é possível que
o Poder Judiciário, quando da verificação da regularidade formal da prisão em flagrante delito
executada pelas Autoridades Policiais, considere ilegais a detenção e as provas decorrentes da
violação do domicílio, por força da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, nos termos do
artigo 5º, LVI, da CF/88.
Com efeito, se o histórico narrado nos autos revelar que as Autoridades Policiais
perseguiram e ingressaram no domicílio do agente, em razão de o mesmo ter corrido ao avistar
a viatura policial, está-se diante de nítida prisão ilegal, cuja solução aponta para seu imediato
relaxamento.
Ora, se havia fundadas suspeitas de que aquele agente praticava o crime de tráfico de
drogas, dever-se-ia buscar maiores elementos concretos acerca da atividade ilícita do indivíduo,
por meio de campanas ou monitoramento. Caso haja, ainda, informações concretas, há inúmeros
instrumentos de investigação revestidos pela reserva de jurisdição, como, por exemplo, a
155
interceptação telefônica e o próprio mandado de busca domiciliar, que possibilitam a atuação
estatal de acordo com os direitos e garantias individuais constitucionalmente previstos.
A observância dos meios constitucional e legalmente previstos de investigação
respeita os direitos fundamentais dos cidadãos e garante a atuação estatal dentro da estrita
legalidade, conforme se espera num verdadeiro Estado Democrático de Direito.
8. Análise dos Autos de Prisão em Flagrante delito e das Audiências de Custódia
realizadas perante as Varas Criminas da Comarca de Ourinhos/SP
Nesse cenário, empreendeu-se pesquisa de campo perante as Varas Criminais da
Comarca de Ourinhos/SP, a fim de se verificar, a partir da análise minuciosa dos Autos de
Prisão em Flagrante Delito e das Audiências de Custódia relacionados ao crime de tráfico de
drogas, se casos semelhantes àquele do REsp 1.574.681/RS foram apreciados por aqueles
Juízos. Em que pese a regra da publicidade dos processos judiciais, foram obtidas autorizações
expressas dos respectivos Juízos, para que os dados fossem acessados e analisados para fins
científicos.
Assim, foram obtidos os seguintes resultados estatísticos:
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Casos em que o agente correu ao
avistar os Policiais e acabou sendo
preso, em flagrante, após a
localização de drogas no interior de
sua residência: 0003211-91.2017.
8.26.0408; 0004378-46.2017. 8.
26.0408.
Casos em que o agente correu ao
avistar os Policiais e acabou
sendo preso, em flagrante, após a
localização de drogas no interior
de sua residência: 0003867-48.
2017.8.26.0408; 0004454-
70.2017.8.26.0408.
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9. Resultados alcançados
A partir dos dados obtidos, conclui-se que, em pelo menos 10% (dez) por cento das
prisões em flagrante delito analisadas, os agentes policiais, em razão de o indivíduo ter corrido
ao avistar a viatura, perseguiram-no, ingressaram em seu domicílio, localizaram entorpecentes
e prenderam-no.
Salienta-se que, nas duas Varas Criminais analisadas, a proporção de prisões em
flagrante por tráfico mostrou-se muito semelhante (1ª Vara Criminal – 48%; 2ª Vara Criminal
– 45%), bem como a proporção de casos em que o agente correu dos policiais militares também
se repetiu (1ª Vara Criminal – 10%; 2ª Vara Criminal – 11%). Ademais, em todos os casos
analisados, os autuados tiveram suas prisões em flagrante convertidas em prisões preventivas,
com a exceção de um caso em que uma mulher, presa na companhia de seu amásio, foi
beneficiada com a liberdade provisória, mas voltou a ser presa em flagrante no dia seguinte,
também pela prática de tráfico de drogas.
Isso significa dizer que, num juízo de constatação estatístico, a cada 100 (cem) prisões
em flagrante delito pelo crime analisado, 10 (dez) teriam ocorrido de maneira ilegal por força
da ofensa à garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, resultando na nulidade das
provas obtidas por meio da atuação policial (de acordo com a Teoria dos Frutos da Árvore
Envenenada – art. 5°, LVI, CF/88) e comprometendo a necessária repressão estatal no combate
ao tráfico ilícito de entorpecentes.
Da mesma forma, verifica-se que a decisão do STJ, no REsp 1.574.681/RS, apresenta-
se como importante precedente para a defesa da garantia da inviolabilidade do domicílio do
cidadão, anulando a obtenção de provas ilícitas que ensejam a deflagração e eventual
condenação de indivíduos pela prática do crime de tráfico de drogas. Revela-se, também, como
uma postura de repúdio à aplicação de um Direito Penal do Inimigo, autorizador da
identificação e rotulação dos indivíduos a serem perseguidos e punidos pelo poder punitivo
estatal, a partir de suas características sociais, tendo em vista o simples fato de correrem da
Polícia, serem perseguidos e terem suas casas invadidas sem autorização judicial, pelo fato de
morarem em regiões carentes e onde os níveis de criminalidade são mais significativos.
Logo, diante da cifra obtida na investigação empírica empreendida, espera-se que o
Ministério Público e o Poder Judiciário brasileiro, a fim de garantir os direitos fundamentais de
todos os cidadãos brasileiros, repudiem a realidade do Direito Penal do Inimigo e adotem
medidas coerentes com as determinações constitucionais e legais aplicáveis à espécie,
exercendo o necessário controle sobre a atuação estatal, balizando-a de maneira a evitar
violações diuturnas e assegurar a manutenção de um verdadeiro Estado de Direito.
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Referências
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