[William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final
-
Upload
jose-william-craveiro-torres -
Category
Documents
-
view
94 -
download
2
Transcript of [William Craveiro] Ensinar e Deslumbrar Proposta de Trabalho - Final
UNIVERSIDADE DE COIMBRA – UC
FACULDADE DE LETRAS – FLUC
CURSO DE DOUTORAMENTO EM LITERATURA DE LÍNGUA PORTUGUESA
DISCIPLINA: ENSINO DE LITERATURA I
PROFESSORA: DOUTORA ANA MARIA E SILVA MACHADO
ALUNO: JOSÉ WILLIAM CRAVEIRO TORRES
ENSINAR E DESLUMBRAR: UMA PROPOSTA DE TRABALHO COM O
CONTO “A CARTOMANTE”, DE MACHADO DE ASSIS.
Público-alvo: alunos do 9º ano do Ensino Fundamental (faixa etária entre 14 e 15 anos).
Procurar um trecho de uma obra (literatura de língua portuguesa) com vista à
motivação para a sua leitura integral:
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens.
Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de
magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo
médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um
emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma
dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo
arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
– É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido
é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo
confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido.
Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um
pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis.
Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto
Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como
os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem
experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de
Camilo, e nesse desastre, foi o que foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela
cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e
ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de
passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas
principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta
dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e
passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; – ela mal, – ele,
para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os
olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que o consultavam antes de o
fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, ele fazendo anos, recebeu de
Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar
cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia
arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo
menos, deleitosas. A velha caleça de prata, em que pela primeira vez passeaste com a
mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as
cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pintou-lhe o
veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo
sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não
tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados,
pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que
algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e a estima de Vilela
continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e
pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as
suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo
respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As
ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse
também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do
marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para
consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante
restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda
algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que
não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a
opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: – a
virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com
Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
– Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que
lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio,
falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso
deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode
ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia;
aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia
acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se
corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem
já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.”
Atentar na capacidade de sedução do trecho:
O trecho é capaz de seduzir os estudantes já a partir da sua temática: o triângulo
amoroso, o adultério, a traição; ou seja, algo passível de acontecer a qualquer pessoa,
inclusive entre os quatorze e os quinze anos, idade em que são despertas as primeiras
paixões.
Depois, porque, diferentemente do que ocorre com textos de outros autores do século
XIX, no Brasil, como, por exemplo, José de Alencar, a linguagem utilizada por Machado
de Assis, na construção do conto em apreço, é bastante simples, coloquial, próxima da
linguagem dos nossos dias, oferecendo pouquíssimos problemas de compreensão para os
estudantes que estão numa faixa etária entre quatorze e quinze anos. Algumas palavras,
como “magistrado”, “cálidos”, “sufrágios”, “insólitas”, “caleça”, “escrúpulos”, “pérfido”,
“aleivosia”, “avara” e “pródigo”, que não são comuns ao vocabulário dos estudantes, em
alguns momentos têm os seus significados dados pelos próprios contextos em que se
inserem ou, então, são dispensáveis, para fins de compreensão da mensagem. E ainda que
assim não fosse, os estudantes precisam entrar em contato com textos de todas as épocas,
para que não fiquem restritos apenas à leitura de textos contemporâneos. Assim, conforme
afirmaram os Professores Doutores José Augusto Cardoso Bernardes e Marisa Lajolo, os
estudantes habituar-se-ão “a ir ao encontro do desconhecido1” e familiarizar-se-ão “com
textos gradualmente mais complexos [...], [com] diferentes registros [da Língua]”:
Essa tendência modernizante de arejar o livro com a presença
do artigo de jornal, da crônica, da letra de música – enfim – do
texto contemporâneo, pode criar um outro problema: em vez de a
escola ir familiarizando o aluno com textos gradualmente mais
complexos (o que permitiria o amadurecimento progressivo do
leitor), o monopólio do moderno pode estancar o diálogo, sempre
necessário, entre diferentes registros2.
Em terceiro lugar porque é um texto em que o narrador “brinca”, o tempo todo, com
o leitor; como aliás é comum em Machado de Assis: a partir do momento em que o
personagem Camilo começa a receber as cartas anônimas, já somos levados a pensar no
que poderá acontecer a ele e à Rita. Tal situação encontra seu ápice quando o personagem
em questão recebe o bilhete de seu amigo Vilela: teria este descoberto a traição? “O que
vai acontecer?” é, portanto, a pergunta que o leitor, o tempo todo, faz a si mesmo, ao longo
da leitura. Não por acaso escolhemos como o final do nosso excerto a seguinte frase: “No
dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: ‘Vem já, já, à
nossa casa; preciso falar-te sem demora’”. Esta é a frase perturbadora em torno da qual irá
1 BERNARDES, José Augusto Cardoso. “História literária e ensino da Literatura”. In: MELLO, Cristina. et
al (orgs.). II Jornadas Científico-Pedagógicas do Português. Coimbra: Almedina, 2002, p. 28. 2 LAJOLO, Marisa. “Texto não é pretexto”. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na Escola: as
alternativas do professor. 10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991, p. 58.
girar o restante do conto; daí ser repetida, tantas vezes, pelo narrador. “Mas falar o quê?”:
esta é a pergunta que Camilo e os leitores fazem a si mesmos.
Resumindo, a sedução do trecho encontra-se na atualidade da temática do conto, na
sua atemporalidade e na sua anespacialidade; na sua verossimilhança; na predominância da
coloquialidade, em termos de linguagem; e no suspense narrativo que varre o conto de lés-
a-lés, devido à presença do adultério na narrativa.
Fundamentar a escolha:
Escolhemos o conto “A Cartomante”, de Machado de Assis, por vários motivos; em
parte já explicitados anteriormente: em primeiro lugar, por conta da sua temática, em torno
do triângulo amoroso, do adultério, da traição, coisas comuns – ou perfeitamente possíveis
de acontecer – ao Homem de todas as épocas. Nesse sentido é que podemos constatar, de
forma mais cabal, características típicas do texto literário, como a atemporalidade, a
anespacialidade e a verossimilhança, características, essas, que, vale salientar, fazem parte
dos conteúdos de Literatura dos livros didáticos brasileiros do nono ano, que procuram
diferençar, para os estudantes, a linguagem literária das demais; em segundo lugar, por
conta do predomínio da linguagem coloquial no conto, que o torna de fácil leitura por parte
daqueles que têm entre quatorze e quinze anos; em terceiro lugar, porque o texto em
questão prende a atenção dos estudantes do início ao fim, uma vez que estes quererão saber
sempre o que acontecerá em seguida. Ademais, quando for dada aos estudantes a
possibilidade da leitura de todo o conto, eles verão o quão surpreendente é o final, que
toma um rumo diferente daquele que tínhamos imaginado que tomaria, num primeiro
momento, quando fomos levados pela mão do narrador.
A essas razões acrescentamos duas outras: (i) o fato de ser, sem dúvida alguma,
Machado de Assis o maior escritor brasileiro de todos os tempos, como aliás falou sobre
isso Harold Bloom, no seu livro Gênio: “o maior literato negro surgido até o presente3”, “o
mais original dos romancistas brasileiros4”, razão mais do que suficiente para que os
nossos estudantes conheçam a obra do “bruxo do Cosme Velho”, e nisso há um pouco, ou
muito, de História literária; (ii) o descompromisso que os dois últimos anos do Ensino
Fundamental têm com relação ao trabalho exaustivo, no Brasil, com a História literária, de
3 BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura / tradução de José Roberto
O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 687. 4 Ibidem, p. 688.
modo que o professor pode realizar, com mais vagar, o trabalho com o texto literário em si
mesmo, discutindo, com os alunos, as temáticas dos textos; questões de comportamento
humano e social suscitadas a partir das leituras realizadas, questões de ética; questões
estéticas, de modo a levar em consideração o trabalho de construção do texto que foi
realizado pelo autor, ou seja, o texto como objeto de arte; e temas transversais (pluralidade
cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual). Essas razões encontram-se consoantes
os objetivos dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa – os PCN’s –
que foram elaborados pelo Ministério da Educação brasileiro, em 1998, para o segundo e o
terceiro ciclos do Ensino Fundamental:
Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como
objetivos do ensino fundamental que os alunos sejam capazes de:
[...]
posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva
nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como
forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas;
conhecer características fundamentais do Brasil nas
dimensões sociais, materiais e culturais como meio para
construir progressivamente a noção de identidade nacional
e pessoal e o sentimento de pertinência ao país;
conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio
sociocultural brasileiro [...];
desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o
sentimento de confiança em suas capacidades afetiva,
física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e
de inserção social, para agir com perseverança na busca de
conhecimento e no exercício de cidadania;
[...]
utilizar diferentes linguagens – verbal, musical,
matemática, gráfica, plástica e corporal – como meio para
produzir, expressar e comunicar suas idéias, interpretar e
usufruir das produções culturais, em contextos públicos e
privados, atendendo a diferentes intenções e situações de
comunicação;
[...]
questionar a realidade formulando-se problemas e
tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento
lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise
crítica, selecionando procedimentos e verificando sua
adequação5.
5 BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais:
terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa / Secretaria de Educação Fundamental.
Brasília: MEC/SEF, 1998, pp. 07-08, passim.
TEXTOCENTRISMO:
Identificar as perguntas que o trecho pode suscitar
Selecionar as que são passíveis
- de resposta inferencial
As descrições dos personagens feitas pelo narrador permitem-nos conhecê-los? Que
leituras podemos fazer deles, a partir do que o narrador nos diz? E o que não nos é
permitido saber?
Qual a relevância das idades dos personagens no desenvolvimento da trama? Qual a
intenção do narrador ao transmitir para os leitores as idades dos personagens?
O que pretendeu o narrador ao dizer para o leitor que “Vilela cuidou do enterro [da mãe
de Camilo], dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e
ninguém o faria melhor”?
Qual o objetivo de o narrador ter afirmado que Rita era “quase uma irmã [de Camilo],
mas principalmente mulher e bonita”?
Que caminho tomou a relação entre Camilo e Rita? Qual o significado das atitudes de
Camilo com relação à Rita?
Quais as pretensões do narrador, ao dizer ao leitor que “Um dia, porém, recebeu
Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido e dizia que a aventura
era sabida de todos” e, logo em seguida, “daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-
se sombrio, falando pouco, como desconfiado”?
O que o narrador quis fazer pensar o leitor, quando aquele disse a este que “recebeu
Camilo este bilhete de Vilela: ‘Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora’”?
Qual(is) leitura(s) Camilo pôde fazer do bilhete que recebeu de Vilela?
- de discussão (pontos de indeterminação, afetos e ethos)
Camilo estava cegamente apaixonado por Rita ou a amava de verdade? Seria Camilo
apenas um aventureiro, um mulherengo? Queria ele realmente algo sério com a Rita,
como o Vilela, que a tomou por mulher?
Qual a primeira impressão que Camilo teve de Rita? Essa primeira impressão é capaz
de nos dar provas do interesse imediato de Camilo por Rita?
Por que o conto se chama “A Cartomante”? Haveria algo mais que simplesmente uma
referência à cartomante que aparece no fim da narrativa?
- de informação adicional, por parte do professor
Que imagem quis pintar o narrador de Rita, ao dizer que esta, “como uma serpente, foi-
se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pintou-lhe
o veneno na boca”?
- da leitura integral da obra
Qual o medo de Rita com relação a Camilo?
Por que Camilo repreendeu Rita por ter ido a uma cartomante?
Preparar as respectivas respostas
Machado de Assis, como se sabe, foi realmente um gênio da Literatura Brasileira. Ao
lermos sua obra, percebemos que tudo – ou quase tudo – nela é intencional: como
ninguém, Machado sabia valer-se de todos os expedientes para caracterizar as suas
personagens ou, então, para não o fazer, deixando para o leitor uma personagem vaga,
escorregadia, como bem queria o romance moderno (em voga nos séculos XVIII, XIX e no
início do XX), ao qual se dedicou. Como exemplo de uma personagem vaga, em Machado
de Assis, temos justamente Capitu, a sua personagem mais conhecida: nada se sabe acerca
desta, a não ser o que dela disseram as outras personagens, como Bentinho e José Dias. Tal
não ocorre no conto “A Cartomante”, em que os personagens são bem caracterizados pelo
narrador, que é heterodiegético e, portanto, onisciente. Vilela é descrito como um
advogado que outrora foi juiz, como um homem de porte grave, motivo pelo qual parecia
mais velho: disso podemos concluir que Vilela era conservador e que, portanto, era um
homem que dava valor à família, que talvez fosse capaz de fazer tudo para defender a sua,
caso fosse necessário. Em situação diametralmente oposta encontrava-se o seu amigo
Camilo, que era um “nada”, um perdido na vida, uma pessoa sem os valores morais de
Vilela, um ingênuo na vida moral, um inexperiente, pronto para ser manipulado por
alguém, justamente por aquela que viria a ser a sua “enfermeira moral”. Rita, por sua vez, é
“pintada” como a mais experiente do trio, a que possui mais anos vividos, a de “olhos
cálidos” e “boca interrogativa”, imagem da própria Lilith ou da serpente que tentou Adão6,
aquela que leva o Homem à perdição. Após a descrição dessas personagens, acreditamos
que estava já desenhado o que iria ocorrer: um triângulo amoroso. Aliás, ao longo do
conto, o narrador machadiano o tempo todo leva o leitor a fáceis conclusões, para depois
derrubá-lo, no final, quando este achava que já sabia o que iria acontecer. O final é,
portanto, surpreendente. Nesse sentido, afirmamos que o narrador fez, sim, o perfil das
personagens para anunciar ao leitor o que iria acontecer.
Com a passagem “Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor”,
o narrador deixa claro para o leitor o momento em que teve início o relacionamento de
Camilo e Rita: logo após a morte da mãe de Camilo, durante o período do luto.
Acreditamos que seja digno de nota o fato de estar Rita, na primeira oração, a exercer o
papel de sujeito da voz ativa, o que corrobora com o que dissemos há pouco: ela era a
manipuladora; ela parece ter dado o primeiro passo para o relacionamento extraconjugal.
O fato de o narrador ter dito que Rita era “quase uma irmã [de Camilo], mas
principalmente mulher e bonita”, corrobora com o que há pouco dissemos dos dois: Camilo
talvez a tenha tomado por irmã, num primeiro instante, mas, Rita, depois, seduziu-o,
fazendo com que ele a visse como uma mulher bonita, e não mais como irmã. Assim, teria
sido impossível Camilo não se envolver com Rita, uma vez que começavam os apelos
físico-corporais, ou os dos instintos. Há inclusive um tom naturalista, neste momento da
história, em que o narrador fala em “odor di femina”. Esse ponto, como muitos outros, e
isso mostraremos adiante, também faz com que nos perguntemos se Camilo amava Rita ou
se somente sentia por ela uma atração física, ou uma paixão cega e desenfreada. O que é
certo é que Camilo e Rita foram ficando cada vez mais próximos e cúmplices, como
podemos perceber a partir dos seguintes trechos: “[Camilo e Rita] Liam os mesmos livros,
iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe damas e o xadrez e jogavam às noites;
– ela mal, – ele, para ser agradável, pouco menos mal” e “[...] os olhos de Rita, que
6 Lilith, na Mitologia Babilônica, é o demônio que habitava lugares desertos. Na Cabala, é tida como a
primeira mulher do Adão bíblico. Noutra passagem, é tida como a serpente que levou Eva e Adão a
comerem do fruto proibido, ou seja, foi quem os levou à perdição.
procuravam muitas vezes o dele, que o consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos
frias, as atitudes insólitas”.
Com as passagens “Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe
chamava imoral e pérfido e dizia que a aventura era sabida de todos” e, logo em seguida,
“daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como
desconfiado”, quer o narrador fazer com que o leitor pense que Vilela mudou o seu
comportamento para com o amigo e com a mulher porque recebeu uma carta anônima,
contando-lhe tudo acerca do relacionamento extraconjugal. Trata-se de mais uma estratégia
do narrador para fazer com que o leitor pense ser o “dono da situação”, ou seja, dominar o
conto, saber o que virá adiante, bem como ele terminará. O narrador está constantemente
jogando com o leitor; por isso diz: “recebeu Camilo este bilhete de Vilela: ‘Vem já, já, à
nossa casa; preciso falar-te sem demora’”. Neste momento, o leitor pensa saber já o que vai
ocorrer, pensa já ter “matado a charada”. O que não sabe o leitor é que logo essa sua
impressão esvair-se-á e, quando ele menos esperar, e achar que estava enganado e que o
conto teria outro fim, verá que tinha razão, que as suas suspeitas tinham fundamento.
Apesar de o conto afirmar que Camilo e Rita chegaram ao amor (“Como daí
chegaram ao amor, não o soube ele nunca”), não podemos dizer ao certo que isso
realmente tenha sido verdade; pelo menos quando consideramos a figura de Camilo, nessa
relação. Ao longo do conto, há algumas passagens que deixam essa dúvida na cabeça do
leitor: “[A cartomante] declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas
que não era verdade... – Errou! Interrompeu Camilo, rindo. [...] Camilo pegou-lhe nas
mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito”, “Rita estava certa de ser
amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele [...], não podia
deixar de sentir-se lisonjeado”, “Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de
rapaz”, “– Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato”, “– Vejo bem que o senhor gosta muito
dela...”. Nessas passagens, vemos o verbo “querer”, e não “amar”. Quando vemos este,
percebemos que não está sendo usado na voz ativa (Camilo amava Rita), mas trazem
somente a impressão de um com relação ao outro. Temos ainda o fato de Camilo dizer a
Vilela que estava apaixonado, “uma paixão frívola de rapaz”, e não amando. Décadas
depois, Drummond diria, num de seus poemas: “Amor é privilégio de maduros”. Enfim,
muitos são os trechos do conto que, aliados aos comportamentos de Camilo que nos foram
“pintados” pelo narrador, dão-nos a ideia de que de fato Camilo não amava Rita, mas sobre
isso nada podemos (professor e estudantes) dizer em definitivo.
Conhecendo Machado de Assis como o conhecemos, ou seja, como um autor que põe
a Língua Portuguesa a seu serviço, quando constrói os seus textos, é difícil pensar que o
título do conto, “A Cartomante”, refira-se apenas à personagem italiana que aparece no
final da narrativa e à qual é feita uma alusão, no início desta. O título “Cartomante” parece
brincar com os vocábulos “cartas” e “amantes”, elementos que dominam a narrativa.
Podemos bem fazer essa leitura, mas não podemos afirmar com certeza (nós, professor e
estudantes) que Machado tenha tido essa intenção.
Para caracterizar melhor a personagem Rita dentro da história, o narrador diz o
seguinte: “como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os
ossos num espasmo, e pintou-lhe o veneno na boca” (grifo nosso). Noutras palavras, temos
aqui a imagem da Lilith, da Mitologia hebraica, ou da serpente que tentou Adão. Essa
alusão deverá ser feita aos estudantes pelo professor, para que possam ter uma melhor
noção do perfil da personagem Rita dentro do conto: astuciosa, manipuladora.
Para finalizar, exploremos a seguinte passagem: “Foi por esse tempo que Rita,
desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do
procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz
repreendeu-a por ter feito o que fez”. Somente sabemos por qual motivo Rita correu à
cartomante quando lemos os primeiros parágrafos do conto, que trazem a seguinte
informação: “[A cartomante] continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-
me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...”; ou seja,
Rita recorreu à cartomante porque tinha medo de que Camilo a esquecesse. Também
precisamos voltar ao início do conto para saber por qual razão Camilo repreendeu Rita por
ter ido procurar uma cartomante: porque “era imprudente andar por essas casas, Vilela
podia sabê-lo, e depois... [...] Camilo não acreditava em nada”.
Atentar na materialidade do trecho: estruturas formais e semânticas, memória
Apesar de vazado numa linguagem simples, coloquial, com poucas palavras que não
fazem parte do vocabulário de adolescentes que estão entre os quatorze e os quinze anos,
Machado realiza construções textuais incríveis, em “A Cartomante”. Logo no início do
trecho assinalado, podemos perceber como ele trabalha com os números, nesta gradação
decrescente: “Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das
origens”. Tanto os significados das palavras incomuns quanto as figuras de estilo utilizadas
por Machado de Assis na construção do seu conto deverão ser trabalhados com os
estudantes.
Machado, para caracterizar melhor as suas personagens, ou as diversas situações que
as envolvem, recorre sempre a outras histórias; realiza, portanto, um trabalho intertextual,
ao longo das suas obras. É o que podemos perceber também no conto em apreço, quando o
narrador alude ao carro de Apolo ao falar da velha caleça de prata em que pela primeira
vez Camilo passeou com Rita, de modo a tentar mostrar ao leitor que, nesse momento,
Camilo sentiu-se um deus; e também quando o narrador alude à Lilith, da Mitologia
hebraica, ou à serpente que tentou Adão, para se referir à Rita e ao seu caráter
manipulador.
Outro exemplo de gradação, agora crescente, no texto de Machado em questão, é:
“Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura”. As gradações são figuras de
estilo bastante utilizadas por Machado de Assis, em sua obra. Da mesma forma,
encontramos muitas figuras de linguagem, principalmente metáforas: “a batalha foi curta e
a vitória delirante”, “pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos”. Mas também
antíteses: “candura gerou astúcia”, “a virtude é preguiçosa e avara [...], só o interesse é
ativo e pródigo”. Enfim, em alguns momentos, é bastante poética e cheia de diálogos
intertextuais, a prosa do “bruxo do Cosme Velho”. As figuras de linguagem, assim como
as de estilo, e os diálogos intertextuais também deverão ser trabalhados com os alunos.
INFORMAÇÃO TRANSTEXTUAL
Pensar em trechos complementares susceptíveis de dotar os leitores das coordenadas
estético-literárias necessárias para a compreensão e fruição do trecho, ao nível
- da teoria literária
Todo o texto verbal, como sublinha Bachtin, apresenta como dimensão constitutiva
múltiplas relações dialógicas com outros textos. Estas relações dialógicas pressupõem
necessariamente a langue, que possibilita e garante a interindividualidade dos signos, mas
não existem no sistema linguístico, manifestando-se a nível da enunciação e, por
conseguinte, da produção textual. O texto é sempre, sob modalidades várias, um
intercâmbio discursivo, uma tessitura polifônica na qual confluem, se entrecruzam, se
metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras
consciências.
Fundamentando-se em estudos de Bachtin, quase desconhecidos no Ocidente até o
final da década de sessenta, Julia Kristeva designou o fenômeno do dialogismo textual com
um termo destinado a conhecer uma fortuna excepcional na teoria e na crítica literárias
contemporâneas: intertextualidade. [...]
Definindo-se intertextualidade como a interacção semiótica de um texto com
outro(s) texto(s), definir-se-á intertexto como o texto ou o corpus de textos com os quais
um determinado texto mantém aquele tipo de interacção7. [...]
O texto acima, de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, ajudaria os estudantes a
perceberem que os textos, inclusive os literários, mantêm uma relação dialógica com
outros textos. Essa relação, chamada de intertextualidade, por Julia Kristeva, ocorre
imenso nos textos de Machado de Assis (contos e romances). Além das intertextualidades
mitológica e bíblica que “A Cartomante” traz e às quais fizemos alusões páginas atrás, há
quem defenda que o conto em questão seja, na verdade, uma releitura de Hamlet, de
William Shakespeare, como se pode ver neste texto escrito por Ricardo Gomes da Silva:
A presença do discurso paródico na ficção machadiana há
décadas vem sendo pensada pela crítica literária. Autor inclusive de
uma poesia intitulada “Paródia”, Machado de Assis pôde parodiar
em sua obra diversos tipos de discursos, desde literários até
discursos políticos, religiosos e filosóficos. Nas vezes em que o
escritor carioca se voltou aos discursos literários, suas paródias se
comportaram de forma inversa das demais do gênero. Isto é, ao
invés de procurar depreciar o discurso literário alvo das paródias,
Machado de Assis, ao parodiar, realizou um tipo de imitação
reverenciadora.
[...]
Em “Machado de Assis’s A cartomante: modern parody and
the making of a ‘brazilian’ text”, de Ellen H. Douglass, novamente
encontramos a anotação de que, em Machado de Assis, a paródia
cumpre uma função não necessariamente ridicularizante do alvo da
paródia. Ao analisar a paródia em “A cartomante”, Douglass
considera seu procedimento como respeitoso e não zombeteiro
(DOUGLASS, 1998, p.1037) em relação à peça Hamlet, de
Shakespeare. A marca da consciência paródica em “A cartomante”
é outro aspecto chamado atenção por Ellen H. Douglass. A autora
diz que, ao se referir diretamente a Shakespeare, no início do conto,
“Machado alerta seu leitor da existência de uma operação
intertextual8” (DOUGLASS, 1998, p.1037).
7 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. “Texto, intertextualidade e intertexto”. In: ______. Teoria da
Literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 624-625, passim. 8 SILVA, Ricardo Gomes da. “O comportamento do discurso paródico em Machado de Assis”. In:
NAVARRO, Pedro; ZANUTTO, Flávia. Anais da 2ª JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso.
Maringá: Editora do Departamento de Letras, 2012, pp. 01-08, passim.
- da história literária
Deslocado, assim, o ponto de vista, um velho tema como o triângulo amoroso já não se
carregará do pathos romântico que envolvia herói-heroína-o outro, mas deixará vir à tona
os mil e um interesses de posição, prestígio e dinheiro, dando a batuta à libido e à vontade
de poder que mais profundamente regem os passos do homem em sociedade. Da história
vulgar de adultério de Brás Cubas-Virgília-Lobo Neves à triste comédia de equívocos de
Rubião-Sofia-Palha (Quincas Borba), e desta à tragédia perfeita de Bentinho-Capitu-
Escobar (D. Casmurro) só aparecem variantes de uma só e mesma lei: não há mais heróis a
cumprir missões ou a afirmar a própria vontade; há apenas destinos, destinos sem
grandeza9.
O trecho acima selecionado, do livro História Concisa da Literatura Brasileira, de
Alfredo Bosi, ajudará a situar um velho tema, que é o do triângulo amoroso, dentro do
cenário da Literatura Brasileira; nomeadamente com relação às escolas romântica e
realista. Os estudantes perceberão a inovação trazida por Machado de Assis, dentro do
Realismo, com relação à temática em questão, que, diga-se de passagem, é uma constante
dentro da sua obra. De empecilho que foi no Romantismo, pelo fato de “o outro” atrapalhar
o enlace amoroso do herói com a heroína, o triângulo amoroso, no Realismo, aparece como
fruto do interesse financeiro ou, como no caso de “A Cartomante”, da simples libido; ou
seja, sem a grandeza de que se reveste na escola literária anterior.
- da crítica literária
Na razão inversa de sua prosa elegante e discreta, do seu tom humorístico e ao mesmo
tempo acadêmico, avultam para o leitor atento as mais desmedidas surpresas. A sua
atualidade vem do encanto quase intemporal do seu estilo e desse universo oculto que
sugere os abismos prezados pela literatura do século XX. [...]
Logo que ele chegou à maturidade, pela altura dos quarenta anos, talvez o que
primeiro tenha chamado a atenção foram a sua ironia e o seu estilo, concebido como “boa
linguagem”. Um dependia do outro, está claro, e a palavra que melhor os reúne para a
crítica do tempo talvez seja finura. Ironia fina, estilo refinado, evocando as noções de
ponta aguda e penetrante, de delicadeza e força juntamente. A isto se associava uma idéia
geral de urbanidade amena, de discrição e reserva. [...]
O que não há dúvida é que essas primeiras gerações [de críticos] encontraram nele uma
“filosofia” bastante ácida para dar impressão de ousadia, mas expressa de um modo
elegante e comedido, que tranqüilizava e fazia da sua leitura uma experiência agradável e
sem maiores consequências. Poder-se-ia dizer que ele lisonjeava o público mediano,
inclusive os críticos, dando-lhes o sentimento de que eram inteligentes a preço módico. O
9 BOSI, Alfredo. “Machado de Assis”. In: ______. História Concisa da Literatura Brasileira. 43. ed. São
Paulo: Cultrix, 2006, p. 180.
seu gosto pelas sentenças morais, herdado dos franceses dos séculos clássicos e da leitura
da Bíblia, levava-o a compor fórmulas lapidares, que se destacavam do contexto e corriam
o seu destino próprio, difundindo uma idéia algo fácil de sabedoria. [...]
O que primeiro chama a atenção do crítico na ficção de Machado de Assis é a
despreocupação com as modas dominantes e o aparente arcaísmo da técnica. [...] ele
cultivou livremente o elíptico, o incompleto, o fragmentário, intervindo na narrativa com
bisbilhotice saborosa, lembrando ao leitor que atrás dela estava a sua voz convencional.
Era uma forma de manter, na segunda metade do século XIX, o tom caprichoso de Sterne,
que ele prezava; de efetuar os seus saltos temporais e brincar com o leitor. Era também um
eco do “conte philosophique”, à maneira de Voltaire, e era sobretudo o seu modo próprio
de deixar as coisas meio no ar, inclusive criando certas perplexidades não resolvidas.
Curiosamente, este arcaísmo parece bruscamente moderno, depois das tendências de
vanguarda do nosso século, que também procuram sugerir o todo pelo fragmento, a
estrutura pela elipse, a emoção pela ironia e a grandeza pela banalidade. Muitos dos seus
contos e alguns dos seus romances parecem abertos, sem conclusão necessária, ou
permitindo uma dupla leitura, como ocorre entre os nossos contemporâneos. E o mais
picante é o estilo guindado e algo precioso com que trabalha, e que se de um lado pode
parecer academismo, de outro parece uma forma sutil de negaceio, como se o narrador
estivesse rindo um pouco do leitor. [...]
Não é possível enfeixar numa palestra a análise adequada de suas diversas
manifestações. Mas posso tentar a apresentação de alguns casos, para dar uma idéia da
originalidade que hoje nos parece existir na obra de Machado de Assis, e que foi sendo
desvendada lentamente pelas gerações de críticos acima referidas.
1. Talvez possamos dizer que um dos problemas fundamentais da sua obra é o da
identidade. Quem sou eu? O que sou eu? Em que medida eu só existo por meio dos outros?
Eu sou mais autêntico quando penso ou quando existo? Haverá mais de um ser em mim?
Eis algumas perguntas que parecem formar o substrato de muitos dos seus contos e
romances. Sob a forma branda, é o problema da divisão do ser ou do desdobramento da
personalidade, estudado por Augusto Meyer. Sob a forma extrema é o problema dos
limites da razão e da loucura, que desde cedo chamou a atenção dos críticos, como um dos
temas principais de sua obra. [...]
2. Outro problema que surge com freqüência na obra de Machado de Assis é o da
relação entre o fato real e o fato imaginário, que será um dos eixos do grande romance de
Marcel Proust, e que ambos analisam principalmente com relação ao ciúme. A mesma
reversibilidade entre a razão e a loucura, que torna impossível demarcar as fronteiras e,
portanto, defini-las de modo satisfatório, entre o que aconteceu e o que pensamos que
aconteceu. [...] E concluímos que neste romance, como noutras situações da sua obra, o
real pode ser o que parece real. E como a amizade e o amor parecem mas podem não ser
amizade nem amor, a ambigüidade gnosiológica se junta à ambigüidade psicológica para
dissolver os conceitos morais suscitar um mundo escorregadio, onde os contrários se tocam
e se dissolvem.
3. Neste caso, que sentido tem o ato? Eis outro problema fundamental em Machado
de Assis, que o aproxima das preocupações de escritores como o Conrad de Lord Jim ou de
The Secret Sharer, e que foi um dos temas centrais do existencialismo literário
contemporâneo, em Sartre e Camus, por exemplo. Serei eu alguma coisa mais do que o ato
que me exprime? Será a vida mais que uma cadeia de opções? Num de seus melhores
romances, Esaú e Jacó, ele retoma, já no fim da carreira, este problema que pontilha a sua
obra inteira. [...] O grande problema suscitado é o da validade do ato e de sua relação com
o intuito que o sustém. [...]
4. Parece evidente que o tema da opção se completa por uma das obsessões
fundamentais de Machado de Assis, muito bem analisada por Lúcia Miguel-Pereira – o
tema da perfeição, a aspiração ao ato completo, à obra total, que encontramos em diversos
contos e sobretudo num dos mais belos e pungentes que escreveu: “Um homem célebre”.
[...]
5. Surge então a pergunta: se a fantasia funciona como realidade; se não
conseguimos agir senão mutilando o nosso eu; se o que há de mais profundo em nós é no
fim de contas a opinião dos outros; se estamos condenados a não atingir o que nos parece
realmente valioso, – qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o
errado? Machado de Assis passou a vida ilustrando esta pergunta [...].
Este sentimento profundo da relatividade total dos atos, da impossibilidade de os
conceituar adequadamente, dá lugar ao sentimento do absurdo, do ato sem origem e do
juízo sem fundamento, que é a mola da obra de Kafka e, antes dela, do ato gratuito de
Gide. Que já ocorria na obra de Dostoievski e percorre discretamente a de Machado de
Assis. [...]
6. Pessoalmente, o que mais me atrai nos seus livros é um outro tema, diferente
destes: a transformação do homem em objeto do homem, que é uma das maldições ligadas
à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual. Este tema é um dos demônios
familiares da sua obra, desde as formas atenuadas do simples egoísmo até os extremos do
sadismo e da pilhagem monetária10
.
Esse excerto do texto “Esquema de Machado de Assis”, como se pôde ver, faz um
apanhado das características fundamentais da prosa machadiana. Praticamente tudo o que
dissemos acerca do conto de Machado de Assis escolhido para análise, “A Cartomante”, e
também acerca das razões que nos levaram à escolha deste encontra apoio nestas palavras e
nestas expressões que o crítico Antonio Candido utilizou para se referir à obra do “Bruxo
do Cosme Velho”: “tom humorístico”, “surpresas”, “atualidade”, “estilo intemporal”,
“ironia fina”, “boa linguagem”, “leitura agradável”, “impressão de que os leitores e os
críticos são inteligentes”, “gosto pelas sentenças morais”, “algo fácil de sabedoria”,
“trabalho com o incompleto, com o fragmentário”, “coisas meio no ar”, “narrador rindo do
leitor”, “moderno”, “contos e romances abertos, inacabados”, “originalidade”, “problema
da identidade”, “relação entre o fato real e o imaginário”, “ciúme”, “a amizade e o amor
parecem mas podem não ser amizade e amor”, “dissolução de conceitos morais”, “mundo
escorregadio”, “sentido do ato”, “diferença entre o bem e o mal” (trabalho com antíteses,
por extensão), “transformação do homem em objeto do homem”. Assim, a leitura do
“Esquema de Machado de Assis” poderá ajudar, e muito, os estudantes a ler melhor não só
o conto em apreço, mas toda a obra machadiana.
10 CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In: ______. Vários Escritos. 3. ed. São Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1995, pp. 18-28, passim.
- da relação interartes e/ou interdisciplinar
Para os que acreditam em coincidência ou para os que acham que tudo na vida é obra
do destino, o longa-metragem A Cartomante, filme de Wagner de Assis e Pablo Uranga,
estréia dia 30 de janeiro em grande circuito e propõe a questão. A história, um romance
que também é considerado pelos diretores como um “thriller romântico”, narra a trajetória
da jovem Rita, personagem de Deborah Secco, quando ela se apaixona pelo bad boy
Camilo, papel de Luigi Baricelli. O romance teria tudo para ser perfeito não fosse a
armadilha do destino: Rita está noiva de Vilela, interpretado por Ilya São Paulo, médico
competente, ambicioso, mas simplesmente o melhor amigo de Camilo. Entre a nova paixão
e a certeza do romance seguro, Rita procura uma cartomante para ouvir o que o futuro lhe
reserva. Mas as previsões da mística mulher não estão de acordo com conselhos que Rita
ouve de sua analista, a dedicada Dra. Antonia, papel de Silvia Pfeifer. E a jovem se vê
diante da dúvida: é possível prever o destino e controlar nossas vidas?
[...]
A Cartomante, cujo roteiro foi escrito por Wagner de Assis, é uma história
contemporânea livremente inspirada no conto homônimo de Machado de Assis. “O conto é
um ponto de partida, apenas”, explica ele. O filme tem também participações especiais da
atriz Giovanna Antonelli, interpretando a empresária Karen Albuquerque, mulher que
resolve encontrar todas as respostas de sua vida numa noite, apenas; e da atriz Mel Lisboa,
no papel de Vitória, uma estudante de psicologia que “acredita que não há salvação
espiritual nem moral se não ajudarmos o próximo”. O ator Sílvio Guindane também está na
história como Duda, melhor amigo de Camilo nas noitadas da cidade.
As filmagens duraram quatro semanas e foram realizadas entre março e abril de
2002, na cidade do Rio de Janeiro. Na trilha sonora, o cantor e compositor Leoni canta
uma versão acústica da consagrada “Lágrimas e Chuva” e o sucesso atual, “Melhor pra
mim”, ambas de sua autoria. A música-tema do filme é a inédita “Canção do Acaso”,
também composta por Leoni especialmente para o filme, mais especificamente para a
personagem Rita. A canção é cantada pela banda Penélope. Verônica Sabino, com as faixas
“Agora” e “Não se afasta de mim”, complementa o tom da trilha, que tem também a magia
do grupo Era num tema que aparece sempre nos momentos em que Rita sobe as escadas da
cartomante, em busca de sua felicidade11
.
O texto acima, escrito por Denise del Cueto especialmente para o Jornal Copacabana,
seria apresentado aos estudantes para que eles soubessem que foi feita uma (re)leitura de
“A Cartomante”, de Machado de Assis, pelos cineastas Wagner de Assis e Pablo Uranga.
A temática do conto, em torno do adultério, da traição, foi mantida no filme, como se pôde
ver no texto de Denise. No entanto, outras personagens, como a Dr.ª Antônia, a empresária
Karen Albuquerque e a estudante de Psicologia Vitória, foram incorporadas à narrativa, no
longa-metragem. Também o tempo em que se passa a história contada no filme é já outro:
o início do século XXI. Com esse texto de Denise del Cueto e com a apresentação do filme
de Wagner de Assis e Pablo Uranga, os estudantes perceberão que uma obra literária não
11 DEL CUETO, Denise. Cinema e Arte. Jornal Copacabana. Ano IX, nº 104, janeiro de 2004.
se encerra em si mesma, no tempo de sua produção, mas que continua a suscitar sempre
novas leituras, com o passar do tempo, podendo mesmo ser atualizada por meio de outra
linguagem artística.
Também deverão ser levados a perceber que não há mal algum no fato de o filme não
ter sido completamente fiel ao conto, visto que, como Arte que é, o Cinema, tanto quanto a
Literatura, tem o seu direito de (re)criar. Tratam-se, portanto, de artes diferentes, que se
exprimem em linguagens diferentes, em torno de uma mesma questão, ou temática, ou
história.
- da ética
O grande impulso que teve a literatura no século XIX existiu graças aos jornais e
revistas dedicadas às famílias e às mulheres, em que, ao lado de artigos sobre a moda
européia, ensinamentos religiosos, culinária, amor e casamento, escreviam os grandes
autores. O século XIX revestia-se de um grande puritanismo com relação às mulheres,
tanto que alguns anos antes, em 1857, Gustave Flaubert foi processado por ter escrito
Madame Bovary, romance considerado escandaloso para a época por abordar o adultério.
Entretanto foi um período rico em personagens femininos: Emma Bovary (Flaubert), Anna
Karenina (Tolstói), A mulher de trinta anos (Balzac), a Capitu de Dom Casmurro
(Machado de Assis) etc. À medida que a questão da feminilidade surgia no cenário social
daquele tempo, era necessário dar voz a esse ideal de independência, e a literatura, através
de seus personagens e em virtude da sensibilidade dos seus criadores, pôde colocar em
questão e estabelecer uma dúvida produtiva sobre a posição da mulher [...].
O amor não era tão essencial nesta época como era o casamento – este, sim, de suprema
importância. A conjugação casamento e amor não era algo necessário. Uma mulher tinha
de desempenhar as funções de esposa, mãe e dona de casa. Ao homem eram destinados o
espaço público e as conquistas profissionais, intelectuais e políticas, à mulher o claustro
doméstico.
Os personagens femininos, na obra de Machado, vêm ocupar um lugar privilegiado,
um lugar de destaque em todos os romances [...].
Machado surge no romance, em 1872, com Ressurreição. É um romance de enredo
excessivamente simplista. Entretanto, é importante na obra machadiana na medida em que
apresenta um tema que virá a ser uma constante na vida literária de Machado – o ciúme e a
desconfiança implícita do adultério feminino.
Machado foi um grande apreciador de Shakespeare, em suas obras existem várias
passagens em que se refere ao dramaturgo inglês. É curioso, inclusive, como sempre
gostou de fazer referências a Otelo. E, em quantas passagens de seus personagens, não
surge a mesma temática – a traição? Em seu primeiro romance Ressurreição, Félix passa
grande parte de sua vida com a viúva Lívia a pensar na possibilidade de ser traído. [...]
Estas situações triangulares vão também aparecer em outros personagens12
[...].
12 FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. “A Virgília de Machado de Assis, ou a “saída freudiana” para o mal-
estar no amor. In: LOBO, Luiza. Anais do II Encontro de Ciência da Literatura. Rio de Janeiro: Faculdade
de Letras da UFRJ, 2003.
A partir do conto “A Cartomante”, de Machado de Assis, poderemos trabalhar, com
os estudantes, questões relacionadas ao adultério e à traição: há alguma justificativa válida
para o adultério? Em casos como os do século XIX, dos quais a Literatura dá-nos muitos
exemplos, em que as Mulheres eram obrigadas a se casar com homens que não conheciam
bem, o adultério poderia ser justificado como uma forma legítima de elas irem em busca do
amor verdadeiro? A traição, feminina ou masculina, entre amigos e/ou entre amantes, deve
assinalar o fim de um relacionamento ou pode/deve ser perdoada e superada?
Também poderá ser discutida a situação da Mulher nos dias atuais, a partir do conto
em apreço: podemos dizer que, hodiernamente, no Ocidente, a Mulher possui os mesmos
direitos que o Homem, em termos de relacionamento amoroso? A Mulher, hoje, é dotada
da mesma liberdade sexual dos Homens? Até onde deve ir a liberdade sexual feminina?
Deve haver limites para ela? Essas são algumas questões que poderão ser colocadas para os
estudantes não só a partir do conto “A Cartomante”, mas de toda a obra de Machado de
Assis, como bem nos mostrou Luiz Alberto Pinheiro de Freitas, por meio do seu texto.
Um comentário à guisa de conclusão
Trabalhar uma obra literária (um poema, um conto, uma crônica, um romance) a
partir de um excerto relevou-se para nós uma grande surpresa. Não imaginávamos, é bem
verdade, que um simples fragmento de texto, sem título, sem referências ao seu autor e à
época de sua produção, poderia dar margem a tantas discussões! Para começar, esse tipo de
trabalho com o texto literário permite-nos olhar para ele sem preconceitos, uma vez que
dele, de início, nada sabemos, além do conteúdo da mensagem que foi selecionado pelo
professor. Dessa forma, fica parecendo fácil o que, se fosse posto doutra forma, pareceria
difícil: foi o que tentamos mostrar a partir do trabalho com o excerto selecionado do conto
“A Cartomante”, de Machado de Assis. Esse texto, quando colocado para os estudantes de
Ensino Fundamental (ou mesmo de Ensino Médio/Secundário) na sua integralidade, dá
margem a comentários como estes: “Será um texto de difícil leitura”, ou “Os textos
‘antigos’ são muito difíceis”, ou, ainda, “Machado de Assis é um chato; escreve muito
‘difícil’”. Posto assim, “em doses homeopáticas”, sem referências ao autor e à época em
que foi escrito, o texto realmente mostra-se mais prazeroso, porque leva a uma leitura mais
à vontade, aparentemente sem qualquer compromisso com escolas literárias ou com
autores; a uma leitura mais prazerosa, portanto. Saber “cortar” a narrativa no ápice da
história também parece ser importante e interessante: faz com que os estudantes sintam
vontade de ir além e, sem dúvida nenhuma, é capaz de desenvolver, neles, o gosto pela
leitura.
O primeiro momento do trabalho com o texto literário, a partir de um excerto,
deverá, está claro, ser dominado pelo textocentrismo, como aliás falaram acerca disso Vítor
Manuel de Aguiar e Silva, no seu ensaio “Teses sobre o ensino do texto literário na aula de
Português13
”, e a pesquisadora brasileira Marisa Lajolo, em “A Leitura Literária na
Escola14
”. O trabalho realizado a partir do trecho, nesse primeiro instante, deverá levar em
consideração a participação dos estudantes, como aliás propõe a Pedagogia moderna: o
professor deverá incentivar a participação destes por meio de perguntas (passíveis de
resposta inferencial; de discussão). Aspectos referentes ao estilo do autor, à linguagem por
ele utilizada e à Língua Portuguesa, ou seja, à “materialidade do trecho”, também poderão
e deverão ser trabalhados nesse primeiro momento: para Vítor Manuel de Aguiar e Silva
(2010), o ensino da Literatura não pode mesmo ser desvinculado do ensino da Língua; daí
a necessidade de colocarmos para os nossos estudantes sempre textos do cânone literário;
noutras palavras, textos exemplares quanto à normatividade linguística; textos inovadores,
que tragam novos horizontes, em termos de expressão e de comunicação. Nesse sentido,
acreditamos que fomos muito felizes, ao termos escolhido o conto “A Cartomante”, de
Machado de Assis, pois ele traz, em si, todas essas características.
Porém, é preciso devolver o texto à sua integralidade, para que ele possa ser melhor
lido pelos estudantes, para que possa ser analisado nos seus pormenores; para que os
estudantes possam contemplar a sua riqueza, tanto em termos de conteúdo quanto em
termos de forma; para que eles, enfim, possam aprender a, de fato, ler um texto. Assim,
para que possam realizar esse trabalho a contento, é preciso que o professor dê-lhes
subsídios para tal: levar para os estudantes textos de Teoria literária, de História literária e
de Crítica literária que girem em torno da obra que está sendo trabalhada e do seu autor
faz-se realmente necessário, se quisermos leituras realmente profundas. Vale salientar que
o professor deve dar aos estudantes condições de realizar uma melhor leitura, a partir
desses textos esclarecedores, mas não deve dar-lhes respostas antes que eles mesmos
elaborem as suas. Assim deverá ser o segundo momento do trabalho com o texto literário:
13 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. “Teses sobre o ensino do texto literário na aula de Português”. In:
______. As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Poética da Língua Portuguesa.
Coimbra: Almedina, 2010. 14 LAJOLO, Marisa. “A Leitura Literária na Escola”. In: ______. Do Mundo da Leitura para a Leitura do
Mundo. 3. ed. São Paulo: Ed. Ática, 1997.
toda a obra deverá ser considerada; deverão ser feitas perguntas capazes de explorar
melhor o texto (perguntas passíveis de resposta inferencial; de discussão; de informação
adicional, por parte do professor; da leitura integral da obra) e textos não literários capazes
de lançar luzes sobre o texto literário deverão ser utilizados. Neste segundo instante,
teremos o trabalho com a História e com a Crítica literárias, importantíssimas também para
que os estudantes tornem-se bons leitores, de acordo com Vítor Manuel de Aguiar e Silva
(2010), José Augusto Cardoso Bernardes15
e Marisa Lajolo, professora universitária
brasileira que, sobre a importância da História e da Crítica literárias para os estudantes,
escreveu o seguinte:
De modo geral, não se pode – e talvez nem se deva – fugir a alguns
encaminhamentos mais tradicionais no ensino da literatura: por
exemplo, a inscrição do texto na época de sua produção, uma vez
que textos assim contextualizados nos dão acesso a uma
historicidade muito concreta e encarnada, à qual se cola a obra de
arte à revelia ou não das intenções do autor; outro caminho, a
inscrição, no texto, do conjunto dos principais juízos críticos que
sobre ele se foram acumulando, fundamental para fazer o aluno
vivenciar a complexidade da instituição literária que não se compõe
exclusivamente de textos literários, mas sim do conjunto destes
mais todos os outros por estes inspirados; outro exemplo, ainda, a
inscrição do e no texto, no e do cotidiano do aluno, entendendo que
este cotidiano abrange desde o mundo contemporâneo (no que essa
expressão tem, intencionalmente, de vago e de amplo) até os
impasses individuais vividos por cada um, nos arredores da leitura
de cada texto16
.
É preciso, também, que os estudantes sejam levados a desenvolver bem outra forma
de leitura: aquela chamada “oral”; ou seja, aquela realizada em voz alta. Essa é outra
competência linguística que os estudantes precisam ter. O professor, após os estudantes
terem realizado suas leituras, deverá ler o texto em voz alta para a classe, a fim de que eles
possam desenvolver também essa importante habilidade. Por acaso, o conto “A
Cartomante”, de Machado de Assis, foi muito bem lido por um ator brasileiro, chamado
Othon Bastos. Tal leitura, muito bem realizada, porque feita por um ator profissional, pode
ser encontrada numa das faixas do CD Machado de Assis por Othon Bastos, que o
professor poderá utilizar numa de suas aulas. Ainda no âmbito da mídia, o professor deverá
colocar os estudantes em contato com o filme A Cartomante, de Wagner de Assis e Pablo
Uranga, para que eles percebam, como já foi dito, que uma obra literária não se encerra em
15 BERNARDES, op. cit. 16 LAJOLO, op. cit., p. 16.
si mesma, mas que ela continua a suscitar sempre novas leituras, podendo mesmo ser
atualizada por meio de outra linguagem artística.
Esperamos que, com este trabalho, o preconceito que os estudantes ainda têm com
relação a obras de séculos passados, consideradas canônicas, acabe ou, pelo menos,
diminua consideravelmente. Esperamos, também, que os estudantes aprendam de fato a ler
uma obra, que eles a interroguem até a exaustão e que consigam retirar dela tudo o que ela
de fato tem a oferecer; enfim, que eles possam compreender muito satisfatoriamente a
mensagem que lá está, bem como os processos linguísticos e estéticos a partir dos quais
essa mensagem foi elaborada. Esperamos, ainda, e acreditamos não ser algo impossível,
que trabalhos desta natureza possam suscitar (ou aumentar) nos alunos o gosto pela leitura,
pelas razões que foram expostas no início deste comentário.
Para finalizar, devemos dizer que a este trabalho anexamos três planos de aula, com
o intuito de mostrar como as diversas atividades às quais nos referimos ao longo deste
poderão ser desenvolvidas com os estudantes a partir do conto “A Cartomante”, de
Machado de Assis.
Referências Bibliográficas
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. “Teses sobre o ensino do texto literário na aula de
Português”. In: ______. As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a
Poética da Língua Portuguesa. Coimbra: Almedina, 2010.
______. “Texto, intertextualidade e intertexto”. In: ______. Teoria da Literatura. 8. ed.
Coimbra: Almedina, 2006, pp. 624-625.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. “A Cartomante”. In: Várias Histórias. Rio de
Janeiro/Belo Horizonte: Garnier, 1989.
BERNARDES, José Augusto Cardoso. “História literária e ensino da Literatura”. In:
MELLO, Cristina. et al (orgs.). II Jornadas Científico-Pedagógicas do Português.
Coimbra: Almedina, 2002, p. 28.
BLOOM, Harold. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura / tradução
de José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 687.
BOSI, Alfredo. “Machado de Assis”. In: ______. História Concisa da Literatura
Brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 180.
BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares
Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa / Secretaria
de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998, pp. 07-08.
CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In: ______. Vários Escritos. 3. ed.
São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995, pp. 18-28.
DEL CUETO, Denise. Cinema e Arte. Jornal Copacabana. Ano IX, nº 104, janeiro de
2004.
FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. “A Virgília de Machado de Assis, ou a “saída
freudiana” para o mal-estar no amor. In: LOBO, Luiza. Anais do II Encontro de Ciência da
Literatura. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2003.
LAJOLO, Marisa. “A Leitura Literária na Escola”. In: ______. Do Mundo da Leitura para
a Leitura do Mundo. 3. ed. São Paulo: Ed. Ática, 1997.
______. “Texto não é pretexto”. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em crise na
Escola: as alternativas do professor. 10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991, p. 58.
SILVA, Ricardo Gomes da. “O comportamento do discurso paródico em Machado de
Assis”. In: NAVARRO, Pedro; ZANUTTO, Flávia. Anais da 2ª JIED – Jornada
Internacional de Estudos do Discurso. Maringá: Editora do Departamento de Letras, 2012,
pp. 01-08.
Anexos