[William Craveiro] Acerca dos Resíduos Clássicos do Amadis de Gaula - Versão Final
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1
ACERCA DOS RESÍDUOS CLÁSSICOS DO AMADIS DE GAULA1
José William Craveiro Torres2
INTRODUÇÃO
Ao analisarmos os modos de agir, de pensar e de sentir do cavaleiro que se
movimenta em narrativas portuguesas da Baixa Idade Média (séculos XI a XV,
sobretudo nas pertencentes à Idade Média Plena, de XI a XIII), percebemos
semelhanças entre o imaginário que foi criado em torno dessa figura e aquele elaborado
do século VIII a.C. ao IV d.C pelos antigos gregos e romanos em torno de seus heróis.
Tais semelhanças, na Literatura, entre o cavaleiro medieval e o herói da Antiguidade
clássica, sobretudo o grego, podem ser explicadas pelo fato de o cavaleiro medieval ter
recebido como herança de gregos e de romanos, dentre outros, maneiras de agir, de
pensar e de sentir; de modo que os heróis greco-latinos serviram também de exemplos
de comportamento àquele.
Este ensaio procurará evidenciar esses resíduos clássicos presentes no Medievo a
partir de um estudo comparativo entre o imaginário do herói greco-romano,
(re)construído a partir de alguns mitos de Metamorfoses3, de Ovídio, e o imaginário do
cavaleiro medieval (re)criado em torno da personagem Amadis de Gaula, que dá nome à
obra mediévica4 que será aqui analisada. Com este trabalho, realizaremos o que a École
des Annales chamava de história comparativa e utilizaremos o método regressivo; ou
seja, voltaremos ao passado para explicar algo de uma determinada época – iremos em
1 Ensaio exigido pelo Prof. Doutor Paulo Silva Pereira como parte dos requisitos necessários à obtenção
dos créditos da disciplina “História e Periodização da Literatura Portuguesa I”, do Curso de
Doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
– FLUC. 2 Mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará – UFC, doutorando em Literatura
de Língua Portuguesa (Investigação e Ensino) pela Universidade de Coimbra, sob orientação da Prof.ª
Doutora Ana Maria e Silva Machado, e bolsista de Doutorado Pleno no Exterior da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (processo 0952/12-5). 3 OVÍDIO. Metamorfoses / Tradução de Vera Lucia Leitão Magyar. São Paulo: Madras, 2003. 4 MONTALVO, Garci Rodríguez de. Amadis de Gaula / Edición de Juan Manuel Cacho Blecua. 6. ed.
Madrid: Ediciones Cátedra, 2008. Dois volumes.
2
direção à Antiguidade clássica para mostrarmos que muitos dos comportamentos do
cavaleiro medieval têm suas origens nas antigas Grécia e Roma.
No primeiro tópico deste artigo, faremos uma breve revisão da literatura em torno
do Amadis de Gaula, de modo a mostrar que não é nova a discussão quanto ao “sabor5”
clássico de muitos dos episódios dessa novela: estudiosos portugueses e espanhóis, por
exemplo, dedicaram alguns textos de natureza ensaístico-crítica a essa questão.
No segundo tópico, trataremos do referencial teórico; ou seja, dos termos que
utilizaremos para dar conta de determinados fenômenos culturais, literários e
linguísticos. Assim, falaremos dos conceitos de imaginário, ideologia e mentalidade,
segundo os Annales; de resíduo, elaborado por Raymond Williams; da Teoria da
Residualidade, de Roberto Pontes, com suas respectivas contribuições (os conceitos de
hibridação e cristalização), a qual embasará o presente estudo; e do fenômeno da
intertextualidade, com base em Vítor Manuel de Aguiar e Silva.
No terceiro, examinaremos alguns heróis da Antiguidade clássica a partir de três
momentos das suas vidas: nascimento, infância e rito de iniciação, que assinala o
ingresso na idade adulta, para mostrar que essas etapas das suas vidas não eram muito
diferentes daquelas pelas quais passavam os cavaleiros, na Idade Média.
No quarto e último, trataremos dos aspectos clássico-residuais do nascimento, da
infância e do rito iniciático mediévicos, com base em excertos retirados do Amadis de
Gaula.
Ao cabo, terá sido possível, acreditamos, evidenciar não só o imaginário clássico-
residual do cavaleiro mediévico como também a existência do que poderíamos chamar
mentalidade heroica. Também teceremos algumas considerações em torno do
enquadramento do Amadis de Gaula dentro da História da Literatura Portuguesa.
1. Teor clássico do Amadis de Gaula: uma revisão da literatura
A leitura atenta duma novela de cavalaria revela a um estudioso que se debruça
sobre esse gênero narrativo medieval umas passagens de teor cavaleiresco, outras de
teor religioso e algumas de teor clássico: os trechos de feição cavaleiresca são aqueles
que trazem à tona o comportamento guerreiro e cortês do homem de espada; os de
5 O termo é de F. Costa Marques (COSTA MARQUES, F (trad.). Amadis de Gaula: Notícia Histórica e
Literária / Seleção, Tradução e Argumento de F. Costa Marques. Coimbra: Atlântida, 1972. Colecção
Literária Atlântida.)
3
feição religiosa são os que fazem alusão à Igreja Católica, às suas principais divindades
e aos rituais de magia praticados por culturas pagãs (como a dos celtas, por exemplo); e
os de feição clássica são aqueles que transportam para o homem mediévico, sobretudo
para o cavaleiro, os modos de agir, de pensar e de sentir dos antigos gregos e romanos;
nomeadamente os dos heróis que se movimentam nos mitos e nas epopeias.
Como os aspectos cavaleiresco e religioso são os que mais saltam aos olhos, nas
novelas de cavalaria, mais comumente os estudiosos têm falado deles. Contudo, há,
ainda, nessas produções mediévicas, outro aspecto, além dos já citados: o que daqui
para frente será chamado de clássico. Com a extinção da matéria greco-romana, o
aspecto clássico sobreviveu, nas novelas de cavalaria dos demais ciclos – bretão e
carolíngio –, não só por meio de constantes alusões que elas passaram a fazer, através
de intextextualidades, às histórias dos gregos e dos romanos antigos, reais ou míticas,
como também (e principalmente) a partir da identificação do cavaleiro medieval,
enquanto personagem, com o herói das epopeias e dos mitos greco-latinos: o imaginário
deste se fazendo presente no modo de agir, de pensar e de sentir daquele.
Críticos houve que, ao perceberem, no Amadis de Gaula, passagens que faziam
alusões diretas, por meio de intertextualidades, a histórias da Antiguidade greco-romana
(mitos e grandes epopeias), bem como excertos que mostravam, na figura dos cavaleiros
medievais que se movimentavam nesta narrativa, o imaginário típico dos heróis das
antigas Grécia e Roma, resolveram pesquisar as origens de tais trechos, com vista a
elucidar o que estaria escrito já nos originais da novela e o que a estes teria sido
acrescentado pelos escribas humanistas e quinhentistas, quando realizaram as suas
cópias do Amadis. Estão, entre estes estudiosos, os portugueses F. Costa Marques6 e M.
Rodrigues Lapa7, ambos selecionadores e tradutores de episódios da “novela dos
Lobeira” para a Língua Portuguesa, além de terem sido os prefaciadores das suas
edições desta narrativa, e os espanhóis Menéndez y Pelayo8, Rodriguez Moñino
9, Cacho
6 COSTA MARQUES, op. cit. 7 Sobre o classicismo presente no Amadis de Gaula, confira Rodrigues Lapa em LOBEIRA, João.
Amadis de Gaula, de João Lobeira / Selecção, tradução, argumento e prefácio de Rodrigues Lapa. 6. ed.
Lisboa: Seara Nova, 1973. pp. 13-14. 8 MENÉNDEZ Y PELAYO, M. Orígines de la Novela. Madrid, 1905. Tomo I, Introducción, pp.
CXCIX-CCXLVIII. 9 RODRÍGUEZ-MOÑINO, António; CARLO, Agustín Millares; LAPESA, Rafael. El Primer
Manuscrito del Amadis de Gaula. Madrid, 1957.
4
Blecua10
e Pedro Salinas11
, que escreveram ensaios em que abordaram a obra medieval
em questão. Entretanto, é preciso deixar claro que o objetivo dos primeiros espanhóis
que se dedicaram ao estudo desses trechos de “sabor” clássico do Amadis de Gaula,
dentre eles Menéndez y Pelayo e Rodríguez Moñino, girava em torno do
estabelecimento do texto original: eles queriam saber o que já estava no primeiro texto
da novela, na primeira edição, e o que teria sido acrescentado à narrativa original por
Garci(a) Rodríguez de Montalvo, no início do século XVI. Este objetivo, portanto,
estava mais ligado à Crítica Genética. Num primeiro momento, chegaram a pensar que
tais passagens de teor clássico tinham sido acrescentadas à história original por Garci(a)
Rodríguez de Montalvo, em virtude de ele ter vivido, na Europa, em plena época do
Classicismo. Tempos depois, viram que não: esses trechos de “sabor” clássico, do qual
poderíamos citar o que gira em torno do filho de Amadis (Esplandián) sendo
amamentado por uma leoa, já existiam numa edição anterior à de Montalvo, uma edição
em Hebraico. É certo que deve haver um maior número de ensaios – brasileiros,
portugueses, espanhóis, franceses, norte-americanos – que tratam desses excertos de
feição clássica presentes no Amadis; no entanto, neste momento conhecemos apenas os
trabalhos que foram aqui arrolados.
O Amadis de Gaula tem o seu aspecto clássico ressaltado pelos medievalistas
muito provavelmente devido ao fato de sua edição mais antiga (uma refundição
castelhana de diversas cópias do original desconhecido), à qual todos têm acesso, datar
de 150812
, época em que os estudos clássicos estavam em voga pela Europa. Muitos
pesquisadores acreditam que esses trechos clássicos do Amadis tenham sido
acrescentados à narrativa original dessa novela pelos humanistas e/ou pelos
quinhentistas que se propuseram a escrever as suas edições dessa obra medieval.
Como dissemos na Introdução, apenas o Amadis de Gaula será o objeto de estudo
da breve investigação que aqui será empreendida. Assim, serão devidamente analisadas
intertextualidades que esta obra estabelece com os mitos e com as epopeias da
Antiguidade greco-latina, bem como passagens em que os modos de agir, de pensar e de
10 Juan Manuel Cacho Blecua, no longo estudo que escreveu, à guisa de prefácio, para a sua edição do
Amadis de Gaula de Garci Rodríguez de Montalvo (MONTALVO, op. cit., pp. 37-39). 11 SALINAS, Pedro. “El ‘héroe’ literario y la novela picaresca española. Semántica e historia literaria”.
In: Ensayos de literatura hispánica (Del Cantar de Mío Cid a García Lorca). Madrid: Aguilar, 1966.
pp. 62-63. 12 Conforme informa F. Costa Marques no prefácio da sua edição do Amadis de Gaula: “No ano de 1508,
Garci Rodríguez (e não Ordóñes) de Montalvo publicava na cidade espanhola de Saragoça Los quatro
livros del Virtuoso cavallero Amadis de Gaula” (COSTA MARQUES, op. cit., p. 5).
5
sentir das suas personagens retomam o imaginário ou a ideologia dos heróis e dos
demais seres ficcionais que podemos encontrar nas epopeias e nos mitos greco-
romanos. Entretanto, tudo leva a crer que tanto a forma como a análise dos trechos de
teor clássico do Amadis será realizada quanto as conclusões a que esse exame chegará
possam ser estendidas às demais obras do ciclo bretão; dentre elas, A Demanda do
Santo Graal, como aliás já mostramos na nossa dissertação de mestrado, intitulada Além
da Cruz e da Espada: acerca dos Resíduos Clássicos d’A Demanda do Santo Graal13
,
defendida na Universidade Federal do Ceará, em 2010.
2. Do referencial teórico: considerações em torno dos termos imaginário, ideologia,
mentalidade, resíduo, Residualidade, hibridação, cristalização e intertextualidade
Como dissemos, os conceitos de imaginário, ideologia e mentalidade serão
tratados do ponto de vista da École des Annales; tendo por base as considerações que G.
Duby14
e J. Le Goff15
fizeram sobre esses termos.
Podemos entender por imaginário o conjunto de imagens que um determinado
grupo de certa época faz de si e de tudo o que está à sua volta; ou seja, imaginário vem
a ser o modo como um grupo social enxerga o mundo e a si mesmo; o modo como
(re)age a algo, como sente (no sentido mais amplo da palavra sentir) e como percebe
tudo aquilo que o afeta. Cada época tem, portanto, o seu próprio imaginário, visto que
as pessoas de cada período histórico enxergam a realidade duma determinada maneira e
manifestam-se, por isso mesmo, de forma singular, por meio de palavras, de atos e de
emoções: é o que percebemos quando comparamos povos de épocas (e também de
lugares) diferentes. Também é possível falar em imaginários dentro de um imaginário;
ou seja, temos um imaginário medieval, que comporta todas as imagens relacionadas à
Idade Média, mas temos, dentro deste imaginário, outros tantos: o imaginário em torno
do cavaleiro medieval (uma espécie de imaginário cavaleiresco), o imaginário em torno
da Mulher medieval etc.
13 TORRES, José William Craveiro. Além da Cruz e da Espada: acerca dos resíduos clássicos d’A
Demanda do Santo Graal. Fortaleza, 2010. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) –
Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Ceará. 14 DUBY, Georges. A História Continua / Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor / Editora UFRJ, 1993. 15 LE GOFF apud FRANCO JÚNIOR, Hilário. “O Fogo de Prometeu e o Escudo de Perseu. Reflexões
sobre Mentalidade e Imaginário”. In: Signum: Revista da ABREM – Associação Brasileira de Estudos
Medievais, n. 5, 2003. (Homenagem a Jacques Le Goff.)
6
Ideologia16
, por sua vez, é uma espécie de imaginário voltado para a prática;
possui, portanto, um caráter político: trata-se da visão de mundo que um determinado
grupo ou camada social tenta impor, muitas vezes por meio do poder que detém, a uma
determinada sociedade, com vista a dominá-la.
Já mentalidade, grosso modo, seria o modo de agir, de pensar e de sentir que teria
se originado ainda na Pré-História e se mantido, ao longo da cadeia evolutiva do
Homem, praticamente o mesmo, até os dias de hoje. O imaginário seria, portanto, a
forma como a mentalidade apresentar-se-ia em cada momento histórico.
Quanto ao conceito de resíduo, retiramo-lo do livro Marxismo e Literatura17
, de
Raymond Williams. O residual seria tudo aquilo formado no passado, mas passível de
ser constantemente retomado, de forma inconsciente, por indivíduos de um grupo ou
camada social, de modo a ser tido como algo próprio mesmo das épocas posteriores ao
seu surgimento.
Foi com base nesses e em outros conceitos, como o de hibridação cultural e o de
cristalização18
, que Roberto Pontes pensou a Teoria da Residualidade: “Na Cultura e na
Literatura nada é original; tudo é residual”. Com ela, quis ele primeiramente enfatizar
(sobretudo na Literatura) que certos aspectos comportamentais e culturais “vivos” e
tidos como pertencentes a um dado momento histórico são, na verdade, traços
característicos duma era passada, retomados, por uma pessoa ou por um determinado
grupo, de forma consciente ou inconsciente.
Nessa proposta de análise de textos literários, de Roberto Pontes, o residual, de
Williams, deu lugar ao termo resíduo; o hibridismo cultural, de Burke, passou à
hibridação cultural; já cristalização saiu da Química para explicar determinados
fenômenos culturais ou literários. Pontes não se limitou a “costurar” conceitos de
diversas correntes de pensamento, mas procurou repensá-los antes de os colocar à
disposição de alunos-presquisadores e da comunidade acadêmica em geral. O que à
primeira vista pode parecer simples mudança de nomenclatura, na verdade traz em si
uma demorada reflexão quanto ao vocábulo que melhor explica determinado processo.
16 Termo assim analisado por Peter Burke, em seu livro acerca da École des Annales: BURKE, Peter. A
Escola dos Annales (1929 – 1989): a Revolução Francesa da Historiografia / Tradução de Nilo Odalia.
São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. 17 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura / Trad. de Waltemir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1979. p. 125. 18 PONTES, Roberto. Entrevista sobre a Teoria da Residualidade, com Roberto Pontes, concedida à
Rubenita Moreira, em 05/06/06. Fortaleza: (mimeografado), 2006.
7
Assim, o estudioso preferiu o termo hibridação, em vez de hibridismo, pelo fato de o
sufixo do primeiro vocábulo transmitir melhor a ideia de ação, de dinamismo, de algo
em constante mudança, em andamento, em processo, como de fato acontece com as
culturas a todo momento.
O conceito de cristalização, na Teoria da Residualidade, também foi
reconsiderado. Como suas origens remontam aos estudos dos cristais, ou seja, à
Química, então ele já não tem o significado que Peter Burke atribuiu-lhe, em seu livro
Hibridismo Cultural, comumente utilizado nas Ciências Sociais: o de ser um período
em que, após determinadas trocas culturais, tudo “vira rotina e se torna resistente a
mudanças posteriores19
”. O termo cristalização, na Química, relaciona-se ao refino de
um elemento natural, como acontece ao melaço de cana ao se transformar em açúcar, ou
então à simples transformação de um elemento cultural em outro. Assim, a
cristalização, conforme pensado por Pontes, deve ser vista como um processo constante
de transformação, de refino, a partir do qual um elemento cultural, um objeto de arte,
transforma-se (ou é levado a se transformar) em outro, mas sem perder as suas
características essenciais.
Ainda no âmbito das revisões por Roberto Pontes, lembre-se que o teórico
cearense descartou o caráter inconsciente do residual de Raymond Williams, de modo a
considerar como resíduo tudo aquilo que remanesce do passado, independente de ter
sido retomado de forma consciente ou inconsciente por parte de um indivíduo ou de um
grupo ou camada social. Acontece que Pontes, como muitos antropólogos
contemporâneos, sabe das dificuldades de se provar a “(in)consciência” de um ato
praticado.
Este tópico não poderia ser finalizado sem que falássemos, antes, da relação entre
intertextualidade e residualidade. São fenômenos distintos. O primeiro, conforme
palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva20
, só ocorre quando um texto, em seu
conteúdo, alude a outro texto ou ao conteúdo de outro texto, no todo ou em parte, por
meio de um sintagma, de uma frase, de uma oração ou de um período, de modo a
corroborar ou a contestar algo. Para que o fenômeno intertextual se estabeleça entre dois
ou mais textos, Aguiar e Silva chama a atenção para o fato de que o aspecto estrutural se
faz tão ou mais importante que o conteudístico, ou seja, dois textos que giram em torno
19 BURKE, Peter. Hibridismo Cultural / Trad. de Leila Souza Mendes. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2006. p. 114. (Coleção Aldus.) 20 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. Vol. I. 8. ed. Coimbra: Almedina, 2006.
8
do mesmo assunto não permitem que se fale em intertextualidade, pois esta só se
estabelece por meio do intertexto, que é uma estrutura comum (sintagmática, sintática,
semântica) aos textos, permitindo o diálogo entre estes.
O segundo é algo infinitamente mais amplo, pois não se circunscreve aos limites
dos textos ou das palavras. A residualidade procura estudar, como se viu, modos de
agir, de pensar e de sentir de um período histórico em outro; noutras palavras, como os
imaginários de determinados agrupamentos de certa época foram parar, tempos depois,
noutra(s) civilização(ções). Para tanto, a residualidade pode lançar mão de qualquer
objeto como fonte histórica ou documental, com vista a chegar à verdade dos fatos;
como aliás fizeram, outrora, os participantes da École des Annales. Dentro dessa
perspectiva da residualidade, trabalharemos, aqui, apenas com obras literárias, tendo em
vista que elas podem perfeitamente ser utilizadas como registros de imaginários.
3. O nascimento, a infância e a “formação-iniciática” do antigo herói greco-
romano a partir do que podemos retirar dos mitos de Metamorfoses
No âmbito da Mitologia greco-romana, o termo herói pode significar duas coisas:
em primeiro lugar, o indivíduo resultante da união de um deus (ou de uma deusa) com
uma mortal (ou com um mortal), ou seja, o mesmo que semideus; em segundo lugar, já
numa acepção mais ampla da palavra, “um ser humano capaz de superar os limites que
separam o homem dos seres comuns. Sua existência é devotada à busca do Espírito, seja
este o Graal ou um elixir da imortalidade21
”. Acreditamos que a segunda acepção seja a
melhor, já que abarca, em si, de certa forma, a primeira; afinal de contas, Hércules (filho
de Júpiter e de Alcmena), Perseu (filho de Júpiter e de Dânae) e Aquiles (filho de Tétis
e de Peleu) eram considerados heróis não simplesmente pelo fato de terem nascido da
união de deuses com mortais, mas, principalmente, pelo seu comportamento, pelo tipo
de vida que levavam, pelas qualidades morais e pela bravura que possuíam, pelos
propósitos que os moviam e pelos ideais que os guiavam.
Há, ainda, nas narrativas mitológicas, inúmeros exemplos de heróis que não
surgiram da união de deuses com mortais, mas que também realizaram obras valorosas,
como é o caso de Jasão, filho de Esão e de Alcímede (ou Polímede), só para citarmos
um exemplo. Nesta parte do trabalho, procuraremos, com base na leitura de alguns
21 JULIEN, Nadia. Dicionário Rideel de Mitologia / Tradução de Denise Radonovic Vieira e ilustração de
Mônica Teixeira. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2005. p. 109.
9
mitos presentes em Metamorfoses, de Ovídio (notadamente a partir dos mitos que giram
em torno de Hércules, de Perseu e de Jasão), traçar um perfil, ainda que de forma breve,
do herói greco-latino da Antiguidade clássica, de modo a delinear, ao cabo desta parte
do ensaio, o seu imaginário.
Em geral, independente de serem filhos de deuses com mortais ou simplesmente
de serem filhos de mortais, as origens dos heróis são sempre nobres. Basta ver, por
exemplo, Hércules, que é filho do deus Júpiter com uma mortal, Alcmena, e Jasão, que
é filho de reis de Iolco, que ficava na Tessália. Também podemos constatar que, desde
cedo, os heróis realizavam grandes feitos e davam provas de sua incomensurável força:
Hércules estrangulou duas cobras que tinham sido enviadas por Juno para matá-lo22
,
quando ainda era uma criança de berço, e Teseu23
, aos dezesseis anos, conseguiu
levantar um rochedo e retirar, de debaixo dele, as sandálias e a espada que seu pai Egeu
lá tinha deixado, para quando o filho tivesse idade suficiente para usá-las. A defesa dos
fracos, das mulheres, dos anciãos e daqueles que amavam era algo que começava a
surgir nos heróis da Antiguidade clássica já em tenra idade.
Durante toda a vida, o herói greco-romano corria o mundo, em busca de
aventuras: nisso consistia a sua “formação-iniciática”. Geralmente, essas aventuras
estavam sempre acompanhadas do maravilhoso, ou seja, de magias, de feitiços, de seres
sobrenaturais etc. Quando não buscavam tais aventuras de bom grado, acabavam sendo
submetidos a elas por vontade de um deus ou de alguém que lhes era superior: um rei,
por exemplo. Perseu, quando criança, foi encerrado numa arca com sua mãe pelo
próprio avô, Acrísio, e lançado ao mar24
. Depois de encontrado por um pescador de
Serifo, foi aceito na corte por Polidectes, o rei desse lugar. Perseu, já adulto, foi
mandado por Polidectes à caça da Medusa, monstro que transformava em pedra tudo o
que para ela olhasse. Com a ajuda de Minerva e de Mercúrio, Perseu conseguiu matar
esse monstro e dar fim ao sofrimento do povo daquela região. Em seguida, utilizando os
sapatos alados de Mercúrio, Perseu, que voava pela Etiópia, salvou Andrômeda, filha da
rainha Cassiopeia, de um monstro marinho. Antes disso, enfrentou Atlas, o gigante, e
transformou-o numa grande montanha, com a ajuda da cabeça da Medusa que havia
cortado e que levava consigo.
22 Juno (ou Hera) mostrava-se sempre hostil aos filhos que seu marido (Júpiter) tinha com outras
mulheres. 23 O herói da Mitologia Greco-Romana responsável pela morte do Minotauro, monstro da Ilha de Creta. 24 De acordo com um oráculo, Acrísio ficara sabendo que o seu neto seria o causador de sua morte.
10
Hércules, como já foi dito, enfrentou, desde criança, os obstáculos que Juno pôs
em seu caminho. Durante sua vida, teve de servir, a mando da mulher de Júpiter, a
Euristeus (filho do rei de Argos, Estênelo, e de Nicipe, a filha de Pélope, descendente de
Perseu), que o obrigou a realizar doze difíceis tarefas, conhecidas como “Os Doze
Trabalhos de Hércules”, termo pelo qual ficou conhecido o seu “rito iniciático”; porém,
Hércules, a exemplo de Jasão, não esperava que lhe impusessem tarefas a cumprir para
que pudesse participar de grandes aventuras. Exemplo disso foi o fato de ele ter se
juntado a Jasão na busca do Velocino de Ouro, embora tenha abandonado a empreitada
no meio do caminho. Jasão, exemplo de coragem e de astúcia, acabou por conseguir o
Tosão de Ouro após enfrentar três obstáculos, parecidos com alguns dos trabalhos que
Hércules realizara a pedido de Euristeus: arar a terra com dois touros de patas de bronze
que soltavam fogo pela boca e pelas narinas, semear os dentes do dragão que Cadmo
matara e dos quais sairia uma safra de guerreiros que voltariam suas armas contra o
semeador e adormecer o dragão que guardava o velocino. Com a ajuda da feiticeira
Medeia, filha do rei Étes que tinha se apaixonado por Jasão, este conseguiu vencer as
três provas, ou seja, deu cabo ao seu “rito iniciático” e tomou para si o Tosão de Ouro,
que depois foi oferecido ao rei Pélias.
Um pouco mais de conhecimento acerca dos mitos greco-latinos, sobretudo
daqueles que tratam das aventuras dos heróis da Antiguidade clássica, é capaz de revelar
o verdadeiro objetivo daqueles personagens que neles se movimentam: obter a glória,
chegar à apoteose25
, receber um galardão (presente) dos deuses. Percebemos isso a
partir do fim que era dado aos heróis pelos numes: ou eram levados diretamente para o
Olimpo, como aconteceu com Eneias e com Rômulo, ou eram levados, pelos deuses, a
um local inacessível aos mortais por terra e por mar, no qual teriam tudo aquilo que
desejassem e seriam poupados da morte, de modo que passariam, sem experimentar a
dor, à vida eterna. Este local chamava-se Campos Elísios, mas também poderia ser
chamado de Campos Afortunados ou de Ilha dos Abençoados.
Com base no que foi dito até aqui, já podemos fazer um breve apanhado do
imaginário do herói da Antiguidade clássica: um Ser ao qual mais importava o aspecto
espiritual (não no sentido cristão do termo), que vivia atrás de superar os seus próprios
limites, que almejava um ideal que não se limitava apenas a glórias terrenas; alguém
25 De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, Antônio (dir.). Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.), “inclusão de alguém entre os deuses,
em função de suas qualidades, atributos; deificação, endeusamento”.
11
cheio de qualidades morais, como coragem, bravura, lealdade e fidelidade, mas que, em
alguns momentos, podia trazer certos desvios de caráter, ou seja, era alguém passível de
defeitos; um Ser com firmes propósitos, incapaz de se desviar do caminho que desejava
ou que deveria trilhar; alguém a quem agradava a nobreza não só de caráter, mas
também aquela advinda das origens, da família; um Ser cheio de força e de vitalidade,
geralmente pronto a auxiliar os fracos, os oprimidos e as minorias; um Ser que buscava
participar, geralmente acompanhado dos seus iguais, de aventuras impossíveis aos
homens comuns, como enfrentar seres mágicos e sobrenaturais, como deuses,
feiticeiros, gigantes etc; alguém que buscava enfrentar obstáculos com vista a receber,
ao fim de tudo, um galardão, uma recompensa das divindades, e que respeitava os
deuses, acima de qualquer coisa.
4. As intertextualidades e as residualidades clássicas do Amadis de Gaula a partir do
nascimento, da infância e das aventuras de seu personagem principal
Ao lermos o episódio do Amadis de Gaula que gira em torno do nascimento do
personagem que dá nome à obra, é impossível não lembrarmos, de imediato, do
nascimento de Perseu e da exposição a que este foi submetido por seu avô Acrísio:
Amadis, também filho de reis, foi encerrado numa arca calafetada, como ocorrera ao
herói greco-romano que matou a Medusa, e, em seguida, foi lançado ao rio por
Darioleta, uma das amas de sua mãe, a rainha Helisena. Também como aconteceu ao
herói da Antiguidade clássica, felizmente Amadis foi salvo, quando já se encontrava em
alto-mar, por um bom homem, que se encarregou da sua criação e educação: o cavaleiro
escocês Gandales. Por conta desse fato, Amadis de Gaula passou a se chamar “Donzel
do Mar”. Vejamos:
en cabo de una pieça quiso el Señor poderoso que sin peligro
[Helisena] suyo un fijo pariesse, y tomándole la donzella
[Darioleta] en sus manos vido que era fermoso si ventura
oviesse, mas no tardó de poner en esecución lo que convenía
según de antes lo pensara, y embolvióle en muy ricos paños, y
púsolo cerca de su madre, y traxo allí el arca que ya oístes, y
díxole Elisena:
– ¿Qué queréis fazer?
– Ponerlo aquí y lançarlo en el río – dixo ella –, y por
ventura guareçer podrá. […]
12
La donzella tomó tinta y pergamino, y fizo una carta que
dezía: «Este es Amadis sin Tiempo, hijo de rey.» […]
Esto así fecho, puso la tabla encima tan junta y bien
calafeteada, que agua ni otra cosa allí podría entrar, y tomándola
en sus braços y abriendo la puerta, la puso en el río y dexóla ir
[…].
en la mar iva una barca en que un cavallero de Escocia iva con
su muger, que de la Pequeña Bretaña llevava parida de un hijo
que se llamaba Gandalín, y el cavallero havía nombre Gandales,
y yendo a más andar su vía contra Escocia, seyendo ya mañana
clara vieron el arca que por el agua nadando iva, y llamando
cuatro marineros les mandó que presto echassen un batel y
aquello le traxessen26
.
No que concerne à infância, a imagem de Amadis de Gaula que nos é transmitida
é aquela do menino iniciado, desde cedo, nas artes da guerra: já a partir dos cinco anos,
manejando o arco. Também a de uma criança corajosa, aos sete anos de vida, com senso
de justiça e disposta a ajudar os seus, caso necessário:
y dende adelante con mejor voluntad curava dél tanto que llegó
a los cinco años. Entonces le hizo un arco a su medida y otro a
su hijo Gandalín; y fazíalos tirar ante sí; y assí lo fue criando
fasta la edad de siete años. […]
Pues estándole mirando todas como a una cosa muy
estraña y creçida en fermosura, el doncel ovo sed, y poniendo su
arco y saetas en tierra, fuese a un caño de agua a beber, y un
donzel mayor que los otros tomó su arco y quiso tirar con él,
mas Gandalín no lo consentía, y el otro lo empuxó rezio.
Gandalín dixo:
– ¡Acorredme, Donzel del Mar!
Y como lo oyó, dexó de bever y fuese contra el gran
donzel, y él le dexó el arco y tomólo con su mano y dixo:
– En mal punto feristes mi hermano.
Y diole con él por cima de la cabeça gran golpe según su
fuerça, y travarónse ambos; assí que el gran donzel malparado
començó a fuir y encontró con el ayo que los guardava y dixo:
– ¿Qué hás?
– El Donzel del Mar – dixo – me firió.
Entonces fue a él con la correa y dixo:
– ¡Cómo, Donzel del Mar!; ¿ya sois osado de ferir los
moços? Agora veréis cómo vos castigaré por ello.
Él hincó los inojos ante él y dixo:
– Señor, más quiero que me vos hiráis que delante de mí
sea ninguno osado de hazer mal a mi hermano27
.
26 MONTALVO, op. cit., vol. I, pp. 246-247, passim. 27 Idem, pp. 258-259, passim.
13
A “formação-iniciática”, na Baixa Idade Média, começava com a saída do garoto
da casa de seus pais: ele se dirigia à casa de um “senhor de armas”, geralmente um
homem de posses que fosse capaz de educá-lo, e, quando fosse considerado preparado
para empunhar armas, era-lhe feita a sua ordenação, que poderia acontecer, em média,
entre os quinze e os vinte e cinco anos. A ordenação de cavaleiro dava-se por meio de
uma cerimônia, a da investidura, que consistia no verdadeiro ritual de passagem do
mancebo para a fase adulta. A “formação-iniciática” do cavaleiro mediévico semelha-
se, do início ao fim, à do herói mítico greco-romano: este só passava a ser considerado
herói após intensa formação, realizada, como mostramos no capítulo anterior, longe de
casa (geralmente em meio aos bosques, junto ao centauro Quíron), e após um “rito de
iniciação28
”, que geralmente terminava com a entrega das armas (lança, escudo), de
peças de vestimenta (sandálias) ou de um objeto sagrado, carregado de simbologia
(Velocino de Ouro), aos heróis, por parte dos seus mestres, de alguém que lhes era
superior, em termos de hierarquia (um rei, por exemplo), ou mesmo de seus pais, como
aconteceu, de forma indireta, com Teseu. Amadis, ainda atendendo por Donzel do Mar,
foi tirado da casa de Gandales pelo rei Languines, que se encarregou de sua educação
até entregá-lo ao rei Lisuarte. Este o colocou a serviço de sua filha Oriana, por quem
depois Amadis se apaixonou e com quem teve um filho, Esplandián. Amadis também se
tornou cavaleiro pelas mãos de seu próprio pai, o rei Periom (sem que disso soubesse), a
pedido de Oriana, sua amada: este entregou àquele uma espada, no momento da
investidura ou ordenação.
Além desses trechos do Amadis, que aproximam o personagem principal dos
heróis míticos greco-romanos, temos, ainda, ao longo dessa novela de cavalaria,
excertos em que claramente podemos perceber que a narrativa estabeleceu diálogos com
obras (mitos, epopeias) da Antiguidade clássica; talvez para não deixar dúvidas quanto à
sua ligação a matrizes greco-latinas. Alguns desses diálogos podemos chamar mesmo
de intertextuais, porque a narrativa do Amadis apresenta elementos linguísticos
28 Em muitos casos, o “rito iniciático”, na Mitologia greco-romana, confunde-se com a “formação-
iniciática” do herói, sendo apenas um momento importante desta; assim, os “Os doze trabalhos”, no
caso de Hércules, “a busca pelo Velo de Ouro”, no caso de Jasão, e a tríplice aventura “Medusa-Atlas-
Monstro marinho”, no caso de Perseu, podem ser considerados, além de momentos importantes das
“formações-iniciáticas” desses heróis, também seus “ritos iniciáticos”.
14
suficientes (vocábulos, expressões) para que se afirme isso: há alusões claras à Guerra
de Troia, em alguns casos. Vejamos um exemplo:
– Después que no me vistes, mis buenos señores, muchas
tierras estrañas he andado, grandes aventuras han pasado por mí
que largas serían de contar; pero las que más me ocuparon y
mayores peligros me atraxeron fue socorrer dueñas y donzellas
en muchos tuertos y agravios que les fazían, porque assí como
éstas nascieron para obedescer con flacos ánimos, así los de
fuertes coraçones estremadamente entre las otras cosas las suyas
deven tomar, amparándolas, defendiéndolas de aquellos que con
poca virtud las maltratan y deshonran, como los griegos [y] los
romanos en los tiempos antiguos lo fizieron, passando las mares,
destruyendo las tierras, venciendo batallas, matando reyes y de
sus reinos los echando, solamente por satisfazer las fuerças y
injurias a ellas fechas, por donde tanta fama y gloria dellos en
sus istorias ha quedado, y quedará en cuanto el mundo durare.
Pues lo que en nuestros tiempos passa, ¿quién mejor que
vosotros, mis buenos señores, lo sabe?, que sois testigos por
quien muchas afruentas y peligros por esta causa cada día
passan29
.
Esse excerto do Amadis de Gaula realiza uma clara intertextualidade com as três
epopeias da Antiguidade clássica; nomeadamente com a Odisseia e com a Eneida, pois
resume, em poucas palavras, como estas fazem em certa altura de suas narrativas, causa
e consequências da Guerra de Troia: fala de “Gregos” que passaram “os mares”,
destruíram “terras”, venceram “batalhas”, mataram “reis” e os desterraram “dos seus
reinos, só para vingar as violências e injúrias” que foram feitas a mulheres (no caso da
matéria troiana, que foram feitas à Helena, devido ao seu rapto por Páris). Saliente-se,
nessa passagem do Amadis, a fala do protagonista, exortando os seus a agirem como os
antigos gregos e romanos, na defesa das mulheres; noutras palavras, a terem os antigos
como modelo. Esse trecho do Amadis de Gaula pode ser classificado, à luz de Vítor
Manuel de Aguiar e Silva, como um intertexto endoliterário, hetero-autoral, explícito e
corroborador.
Não poderíamos finalizar esta parte do ensaio sem que disséssemos que, além dos
trechos que estabelecem relações intertextuais com obras literárias das antigas Grécia e
Roma, o Amadis traz excertos de “sabor” clássico, como bem a estes se referiu F. Costa
Marques, ao tratar da passagem do Amadis de Gaula que fala do nascimento do filho
29 MONTALVO, 2008, vol. II, pp. 1282-1283.
15
que o protagonista desta novela teve com sua amada, Oriana. Esse trecho, em muitos
aspectos, faz-nos lembrar o nascimento de Rômulo e Remo; contudo, como não há
nenhum indício vocabular, frasal ou textual capaz de assegurar a relação intertextual
entre esse excerto do Amadis e o mito romano, Costa Marques preferiu se referir a ele
como um trecho de “sabor” clássico. Eis o trecho do Amadis de Gaula que trata do
nascimento de Esplandián, o filho de Oriana com Amadis:
A Oriana le plugo mucho de la partida del Rey su padre,
porque se le llegava el tiempo en que le convenía parir. Y llamó
a Mabilia, y díxole que según los desmayos y lo que sentía, que
no era otra cosa sino que quería parir, y mandando a las otras
donzellas que la dexassen, se fue a sua cámara, y con ella
Mabilia y la Donzella de Denamarcha, que de antes tenía ya
guisado todas las cosas que menester havían convenientes al
parto. […] Pero el gran miedo que tenía de ser descubierta de
aquella afruenta en que estava la esforçó de tal suerte, que sin
quexarse lo sufría; y a la media noche plugo al muy alto Señor,
remediador de todos, que fue parida de un fijo, muy apuesta
criatura, quedando ella libre, el cual fue luego embuelto en muy
ricos paños. […]
Entonces encendieron una vela, y desembolviéndolo
vieron que tenía debaxo de la teta derecha unas letras tan
blancas como la nieve, y so la teta isquierda siete letras tan
coloradas como bravas bivas; pero ni las unas ni las otras
supieron leer, ni qué dezían, porque las blancas eran de latín
muy escuro, y las coloradas, en lenguaje griego muy cerrado.
[…] Y Mabilia, en tanto, havía el niño puesto en una canastra, y
ligado con una venda por encima; y colgándolo con una cuerda,
lo baxó fasta lo poner en las manos de la Donzella; la cual lo
tomó y fuese con él la vía de Miraflores, donde como su fijo
propio della se havía de criar secretamente. […]
Y cuando la Donzella de Denamarcha y su hermano
llegaron aquella fuente, ella traía gran sed del trabajo de la
noche y del camino, y dixo a su hermano:
– Descendamos, y tomad este niño, que quiero bever.
Él tomo el niño, assí embuelto en sus ricos paños, y púsolo
en un tronco de un árbol que aí stava; y queriendo descender a
su hermana, oyeron unos grandes bramidos de león que en el
espesso valle sonavan, assí que aquellos palafrenes fueron tan
espantados, que començaron de fuir al más correr sin que la
donzella el suyo tener pudiesse […].
haviendo aquel santo Nasciano cantado missa al alva del día, y
yéndose a la fuente por folgar aí, que la noche havía sido muy
calorosa, vio cómo la leona llevava el niño en su boca; el cual
llorava con flaca boz […].
16
– Vete, bestia mala, y dexa la criatura de Dios, que la no
fizo para tu govierno.
Y la leona, blandeando las orejas, como que falagava, se
vino a él muy mansa, y puso el niño a sus pies, y luego se fue.
[…] Y pasando [Nasciano] cabe la cueva donde la leona criava
sus fijos, viola que les dava la teta, y díxole:
– Yo te mando de la parte de Dios, en cuyo poder son
todas las cosas, que quitando las tetas a tus fijos las des a este
niño, y, como a ellos, lo guardes de todo mal.
La leona se fue a echar a sus pies, y el hombre bueno puso
el niño a las tetas, y echándole de la leche en la boca, le hizo
tomar la teta, y mamó30
.
Como vimos, Amadis de Gaula, desde a sua origem, aproxima-se dos heróis
greco-romanos: como aconteceu a Perseu, a Édipo e a Páris, foi exposto logo após o seu
nascimento, mas retornou, tempos depois, também como ocorreu com os três heróis há
pouco citados, à casa de seus pais, para ocupar o seu lugar (nobre, diga-se de
passagem); como aconteceu a Héracles, Amadis, desde criança, demonstrava uma força
descomunal e um pendor para a refrega; como todos esses heróis míticos, passou por
uma “formação-iniciática” longe da casa paterna, período em que aprendeu a manejar a
espada e a agir como um caval(h)eiro, e por um “rito iniciático”, momento em que
recebeu, do próprio pai (sem que disso tivesse consciência), a sua arma, como aconteceu
(ainda que de forma indireta) com Teseu.
Como ocorreu com esses heróis mitológicos, que saíram pelo mundo em busca de
aventuras, verdadeiras “formações-iniciáticas”, Amadis de Gaula realizou façanhas que
não ficaram a dever àquelas realizadas por eles: também enfrentou seres sobrenaturais,
como o feiticeiro Arcalaus e o monstro Endriago. Enfim, Amadis procurou agir, como
vimos numa das passagens da novela que selecionamos para esta parte do artigo, como
os heróis greco-romanos, porque os tinha como modelos; tanto que chegou a pedir para
que seus amigos cavaleiros fizessem o mesmo, sempre em defesa das mulheres.
Esplandián, o filho de Amadis, em tudo saiu ao pai; inclusive já a partir do seu
nascimento.
30 MONTALVO, op. cit., vol. II, pp. 1003-1007, passim, grifo nosso.
17
CONCLUSÃO
Ao cabo de tudo o que foi dito, acreditamos ter ficado claro o aspecto clássico-
residual e híbrido do Amadis de Gaula: nesta novela, os cavaleiros comportam-se como
os heróis que encontramos nos mitos e nas epopeias da Antiguidade clássica. Nesse
sentido é que podemos afirmar que o imaginário cavaleiresco mostra-se residual,
quando comparado àquele que os antigos gregos e romanos elaboraram em torno de
seus heróis. Tal imaginário é reforçado inclusive a partir das intertextualidades que a
novela de cavalaria em apreço estabelece com trechos de Metamorfoses, de Ovídio, e
com deteminadas passagens da Odisseia, de Homero, e/ou da Eneida, de Virgílio.
A aproximação desses imaginários (do que foi construído em torno do cavaleiro
medieval e do que foi elaborado em torno do herói mítico greco-romano) faz-nos pensar
na existência de uma mentalidade heróica; ou seja, em modos de agir, de pensar e de
sentir comuns a todos os heróis de todas as épocas e de todos os lugares, já a partir da
Pré-História ou do início dos tempos: Gilgamesh, por exemplo, tido como o mais antigo
herói da Humanidade, apresenta características muito próximas às dos heróis míticos
greco-romanos.
Por fim, uma consideração mais acerca dos resíduos clássicos do Amadis de
Gaula. Comumente esta obra tem sido, sobretudo pela crítica brasileira, enquadrada
dentro do Humanismo, pelo fato de trazer, ao longo da sua narrativa, trechos e/ou
elementos de teor ou de “sabor” clássico (neste ensaio denominados de resíduos), e pelo
fato de, diferente do que ocorre n’A Demanda do Santo Graal, não realizar uma
exaltação dos valores e da ideologia cristã (católica, para sermos mais exatos), tão
comum ao espírito medieval. Não concordamos com o enquadramento do Amadis de
Gaula dentro do Humanismo nem por uma razão nem por outra. Em primeiro lugar,
porque resíduos clássicos, conforme mostramos na nossa dissertação de Mestrado,
também podem ser encontrados – quer por meio de intertextualidades, quer por meio de
residualidades, da forma como tratamos desses termos no segundo capítulo deste ensaio
– n’A Demanda do Santo Graal. Depois, porque acreditamos que o aspecto medieval
exaltado no Amadis foi outro: o amor cortês, e não o religioso. É como se toda a
narrativa do Amadis de Gaula fosse, na verdade, formada pelo entrelaçamento de
cantigas de amor (declarações feitas de Amadis para Oriana, em atmosfera de
vassalagem amorosa, de sofrimento por amor e de súplicas) e de cantigas de amigo
18
(declarações feitas por Oriana a suas amigas, que dão conta da saudade que ela sentia de
Amadis, quando este se encontrava distante). Enfim, a atmosfera do Amadis é também
medieval, cavaleiresca; apenas não é religiosa, como a da Demanda. Assim,
defendemos mesmo que aquela novela, assim como ocorre a esta, seja mesmo
enquadrada dentro do Trovadorismo.
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