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VOZ, MEMÓRIA E SILÊNCIO: LLANSOL E A ESCRITA DO
TEMPO JUBILOSO
Por
ALINE PUPATO COUTO COSTA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários para a
obtenção do Título de Doutor em Letras
Vernáculas (Literaturas Portuguesa e
Africanas) sob a orientação do Professor
Doutor Jorge Fernandes da Silveira.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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VOZ, MEMÓRIA E SILÊNCIO: LLANSOL E A ESCRITA DO TEMPO
JUBILOSO
ALINE PUPATO COUTO COSTA
Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, como
requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em Literaturas Portuguesa e Africanas, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Examinada e aprovada por:
Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ) - Presidente
Professora Doutora Luci Ruas Pereira (UFRJ)
Professora Doutora Maria de Lourdes Azevedo Soares (UFRJ)
Professora Doutora Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira (UFF)
Professora Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria (UFRJ)
Professor Doutor Marcelo Pacheco Soares (IFRJ) – Membro Suplente
Professora Doutora Mônica Genelhu Fagundes (UFRJ) – Membro Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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Ficha catalográfica
COSTA, Aline Pupato Couto.
“Voz, memória e silêncio: Llansol e a escrita do tempo jubiloso” / Aline Pupato
Couto Costa. Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2017.
xii, 182f. : il., 31 cm.
Orientador: Jorge Fernandes da Silveira
Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras - Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, 2017.
Referências bibliográficas: f. 176-180.
1.Literatura portuguesa contemporânea. 2.Maria Gabriela Llansol. I. SILVEIRA, Jorge
Fernandes da. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas. III. “Voz, memória e silêncio: Llansol e a escrita do tempo jubiloso”.
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese.
________________________________ __________________
Assinatura Data
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VOZ, MEMÓRIA E SILÊNCIO: LLANSOL E A ESCRITA DO TEMPO
JUBILOSO
Aline Pupato Couto Costa
Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira
Área: Literaturas Portuguesa e Africanas
RESUMO
“Nada foi, tudo está sendo”, assim nos fala Maria Gabriela Llansol em Finita. É por
essa perspectiva do continuum, da sua textualidade que é “força de pujança”, e do
registro da imagem como “cena fulgor” trazida em fragmentos que esse trabalho busca
identificar a presença da voz, da memória e do silêncio na escrita de Maria Gabriela
Llansol, assim como os mecanismos pelos quais estes elementos se articulam com vista
à expressão no corpus textual de um tempo jubiloso. A pesquisa que aqui se projeta traz
como foco central os livros Um beijo dado mais tarde, Parasceve, Amar um cão e
Amigo e amiga – curso de silêncio de 2004, além da investigação no espólio em Sintra.
Se a ideia da voz, da memória e do silêncio muitas vezes vem acompanhada de uma
negatividade, de uma melancolia e de um certo niilismo, em Maria Gabriela Llansol não
há angústia, pois “nada foi, tudo está sendo”. O que seria um fim, é apenas
transformação; metamorfose dada pela decepação da memória, aquela que, sem excluir
o já passado, conjuga com o novo uma nova simetria pelos efeitos da dobra que vem em
silêncio, no elo afetuoso entre uma palavra e outra. Acredita-se, portanto, que a ideia do
tempo jubiloso esteja compreendida como resultado de um projeto de escrita cujo
processo de elaboração tenha origem na articulação da voz, da memória e do silêncio.
Palavras-chave: Maria Gabriela Llansol, Tempo, Voz, Memória, Silêncio
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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VOZ, MEMORIA Y SILENCE: LLANSOL Y LA ESCRITA DEL TIEMPO DEL
JUBILO
Aline Pupato Couto Costa
Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira
Área: Literaturas Portuguesa e Africanas
RESUMEN
"Nada fue, todo es" así nos dice María Gabriela Llansol en Finita. Es desde este punto
de vista del continuum, de su textualidad que es la fuerza de la pujanza, y el registro de
imagen como "escena resplandor" traída en fragmentos que este trabajo busca
identificar la presencia de la voz, la memoria y el silencio en la redacción de María
Gabriela Llansol, así como los mecanismos por los que estos elementos están
vinculados a la expresión en el corpus de texto de un tiempo alegre. Los proyectos de
investigación que aquí tiene como foco principal los libros Un beso dado más adelante,
Parasceve, Amar a un perro y Amigo y amiga – Curso de silencio de 2004, además de
la investigación en la finca en Sintra. Si la idea de la voz, la memoria y el silencio a
menudo viene con una negatividad, una melancolía y cierto nihilismo, a Maria Gabriela
Llansol no hay ningún problema, ya que "nada fue, todo es". Lo que sería el fin, es sólo
la transformación; metamorfosis dada por la labranza de la memoria, que, sin excluir el
pasado, conjuga con el nuevo una nueva simetría por los efectos de flexión que viene en
silencio, en el vínculo afectivo entre una palabra y otra. Se cree, por lo tanto, que la idea
del tiempo alegre se entiende como el resultado de un proyecto de escritura cuyo
proceso de desarrollo se haya originado en la articulación de la voz, la memoria y el
silencio.
Palabras clave: María Gabriela Llansol, Tiempo, Voz, Memoria, Silence
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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VOIX, MÉMOIRE ET SILENCE: LLANSOL ET L'ÉCRITURE DU TEMPS
RADIEUX
Aline Pupato Couto Costa
Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira
Área: Literaturas Portuguesa e Africanas
RÉSUMÉ
"Rien n´a été, tout est en train de" dit Maria Gabriela Llansol dans Finita. . C'est pour
cette perspective du continuum, de sa textualité qui est la force de la puissance, et de
l'enregistrement de l'image comme “scène d´éclat " mis en fragments que ce travail vise
à identifier la présence de la voix, de la mémoire et du silence dans l'écriture de Maria
Gabriela Llansol, aussi bien que les mécanismes par lesquels ces éléments sont liés à
l'expression dans le corpus textuel, d'un temps radieux. La recherche qu'ici ce projette
apporte comme le foyer central les livres Um beijo dado mais tarde, Parasceve, Amar
um cão e Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004, en plus de la recherche dans leur
butin à Sintra. Si l'idée de la voix, de la mémoire et du silence plusieurs fois vient
accompagnée d'un pessimisme, d'une mélancolie et d'un certain nihilisme, dans Maria
Gabriela Llansol n'est là aucune angoisse, parce que "rien n'été, tout est." Ce qui serait
une fin, c'est juste la transformation; la métamorphose donnée par le coupire de la
mémoire, celui qui, sans écarter, conjugue déjà avec le nouveau une nouvelle symétrie
par les effets de flexion qui fruit du silence, le lien affectif entre un mot et un autre. On
croit donc que l'idée du temps radieux est comprise comme le résultat d'un projet
d'écriture dont le processus de développement provient de l'articulation de la voix, la
mémoire et le silence.
Mots-clés: Maria Gabriela Llansol, Temps, Voix, Mémoire, Silence
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2017
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DEDICATÓRIA
Dedico essa Tese aos meus filhos, João e Vinicius; a Marcus Vinicius, meu “ambo”, e
a meu pai, Roberto Otávio, porque “o que é grande acontece no eterno e o amor é
assim”:
“Vieste na hora exata
Com ares de festa e luas de prata
Vieste com encantos, vieste
Com beijos silvestres colhidos pra mim
Vieste com a cara e a coragem
Com malas, viagens pra dentro de mim
Meu amor
Vieste a hora e a tempo
Soltando meus barcos e velas ao vento
Vieste me dando alento
Me olhando por dentro, velando por mim
Vieste de olhos fechados, num dia marcado
Sagrado pra mim.”
À Simone Valle e a Jandir Teixeira, porque o afeto nos uniu e “o amor é uma
companhia,” ofertada pelo destino.
Aos meus avós, Maria de Lourdes e Manuel Antônio, e à Regina Celia, minha mãe;
em memória. A cada um de vocês, eu digo: “Não era por egoísmo que eu te queria
vivo” – Era só porque o amor era grande demais e a dor da perda, imensa.
Ofereço-vos, enfim, esse trabalho, em sinal da minha gratidão e
da vida que existe e continua para além dos olhos, pois “há à nossa
volta, uma festa de claridade”.
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AGRADECIMENTOS
A Jorge Fernandes da Silveira, mestre querido, eu agradeço todo o carinho, a
humildade, a exigência e a dedicação na construção da voz que aqui se fez. A ti,
agradeço a partilha do afeto, o amor pela Fiama e as portas abertas da casa e do coração.
À Luci Ruas Pereira, minha “cantora de leitura”, que me levou a amar a Literatura
Portuguesa, agradeço-te hoje e Para Sempre o percurso dos meus dias, pois um dia me
disse: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.
A João Barrento e à Maria Etelvina Santos, pelo apoio incondicional. O meu eterno
agradecimento pela atenção, afeto e acolhimento ao longo da minha jornada llansoliana.
À Silvina Rodrigues Lopes, pela presença solidária nessa trajetória.
À Cleonice Berardinelli, pelas leituras e horas plácidas em que estivemos juntas.
À Ângela Beatriz de Carvalho Faria, pelas aulas inesquecíveis em torno dos
“impossíveis”.
À Maria de Lourdes Azevedo Soares e à Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira, pelo
carinho legente que nos envolve e aquece.
À Rhea Willmer e a Marcelo Pacheco Soares, pela amizade que há em nós.
À Monica Genelhu, pela presença amiga e serena nos encontros em torno do texto.
À Gabriela Targanski, pela revisão cuidadosa em espanhol.
À UFRJ e ao corpo docente, pela acolhida e formação acadêmica.
À Universidade Nova de Lisboa, pela aceitação de meu doutoramento.
À CAPES, por ter sido a primeira instituição a acreditar nesta Tese e por me ofertar a
bolsa de estudo para cursar o Doutorado Pleno em Portugal.
Agradeço aos amigos do INES, Instituto Nacional de Educação de Surdos, o incentivo,
a partilha e a compreensão nas horas mais difíceis pelas quais passei ao longo desta
Tese.
Agradeço à Prefeitura Municipal de Duque de Caxias, a licença para estudo.
À minha família, sim, e mais uma vez, eternamente.
A Deus, sobretudo, pela força e coragem. Pela luz que se abria quando “a noite” caía.
“aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós.
Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”
Antoine Saint-Exupéry
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“Nenhuma palavra é poética. Nenhuma. (Nem o verbo ser)
Tudo é hermético... pelos que vieram antes de nós”.
Maria Gabriela Llansol.
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SUMÁRIO
ABREVIATURAS USADAS ....................................................................................... 12
INTRODUÇÃO - “Nada foi, tudo está sendo” .......................................................... 14
CAPÍTULO I - “Pelas fendas da paisagem”
1. “PELAS FENDAS DA PAISAGEM” ................................................................. 26
1.1. Um beijo dado ao encoberto......................................................................... 26
CAPÍTULO II - “Uma linha que me ata ao sol”
2. “UMA LINHA QUE ME ATA AO SOL” .......................................................... 48
2.1. Luz Incomum ............................................................................................... 48
CAPÍTULO III - “Um traço para o solo firme”
3. “UM TRAÇO PARA O SOLO FIRME” ............................................................ 76
3.1. Onde vais? À memória. ................................................................................ 76
3.2. A Senhora decepada e “o puro retrato da família” ....................................... 85
3.3. Ana ensinando a ler a Myriam, ou A Estátua de Leitura ............................. 89
3.4. Aprendizagem da leitura, nascimento e criação: o dois-em-um socrático ... 93
3.5. Parasceve: o lugar obsceno da ressuscitação.............................................. 104
CAPÍTULO IV - “Uma seta para que guardes no coração”
4. “UMA SETA PARA QUE GUARDES NO CORAÇÃO” ............................... 113
4.1. Porque é preciso dizer adeus ...................................................................... 113
4.1.1. Devolve o sol a quem lê ......................................................................... 118
4.1.2. Agora, era a produção da flor do silêncio ............................................... 122
4.1.3. O Golpe (p. 10 a 46) ............................................................................... 123
4.1.4. “Afinal, uma única melodia respondia ao silêncio” (AA, p. 15) ............ 125
4.2. A obra inacabada e as dobras do tempo e espaço ...................................... 127
4.2.1. Um canto órfico na dobra do espaço da obra ......................................... 128
4.2.2. À porta de Parasceve .............................................................................. 129
CAPÍTULO V - “Pelas fendas da paisagem, uma fenda para ver o mar”
5. “PELAS FENDAS DA PAISAGEM, UMA FENDA PARA VER O MAR” .. 151
5.1. A Questão do Júbilo ................................................................................... 153
CONSIDERAÇÕES FINAIS - “Um olhar penetrante descido” ............................ 161
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 168
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Abreviaturas Usadas1
LC _________________ O Livro das Comunidades (1977)
RV _________________ A Restante Vida (1984)
CJA ________________ Na Casa de Julho e Agosto (1984)
CA_________________ Causa Amante (1984)
FP _________________ Um falcão no punho (1984)
CME_______________ Contos do Mal Errante (1986)
F __________________ Finita (1987)
AC ________________ Amar um cão (1990)
BDMT _____________ Um beijo dado mais tarde (1990)
L1 ________________ Lisboaleipzig 1 (1994)
L2 ________________ Lisboaleipzig 2 (1994)
ICQ _______________ Inquérito às quatro confidências (1996)
ATJ _______________ Ardente Texto Joshua (1999)
OVDP _____________ Onde Vais, Drama-Poesia? (2000)
P _________________ Parasceve (2001)
CLP _______________ O Começo de um Livro é Precioso (2003)
JLA ______________ O Jogo da Liberdade da Alma (2003)
AA ______________ Amigo e Amiga – Curso de silêncio de 2004 (2006)
CL ________________Os cantores de Leitura (2007)
LH1 _______________O Livro das Horas I – Uma Data a Cada Mão (2009)
LH2_______________ O Livro das Horas II – Um Arco Singular (2010)
LH3 _______________O Livro das Horas III – Numerosas Linhas (2012)
LH4 _______________O Livro das Horas IV – A Palavra Imediata (2014)
LH5_______________O Livro das Horas V – O Azul Imperfeito (2016)
1 Os livros mencionados estão em ordem cronológica de publicação. O ano referente às edições utilizadas
para elaboração desta Tese está mencionado na “Bibliografia”.
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“Não estamos nas palavras para falar delas, ou
de seus “conteúdos”, mas para falar com elas. Se
assim podemos passar de palavras para as imagens
(relação do verbal com a metáfora), fazemos ainda
outra passagem mais radical, passando das palavras
para o ‘jogo’. É nessa dimensão do significar, como
jogo de palavras, em que importa mais a remissão
das palavras para as palavras – desmontando a
noção de linearidade e a que centra o sentido nos
“conteúdos” –, que o silêncio faz sua entrada. O não-
um (os muitos sentidos), o efeito do um (o sentido
literal) e o (in) definir-se na relação das muitas
formações discursivas têm no silêncio o seu ponto de
sustentação. Desse modo é que se pode considerar que todo discurso
já é uma fala que fala com outras palavras, através de outras
palavras. [...]. Compreender o que é efeito de sentidos é compreender
que o sentido não está (alocado) em lugar nenhum mas se produz nas
relações: dos sujeitos, dos sentidos, e isso só é possível, já que sujeito
e sentido se constituem mutuamente, pela sua inscrição no jogo das
múltiplas formações discursivas (que constituem as distintas regiões
do dizível para os sujeitos)” Eni Puccinelli Orlandi, As formas do silêncio.
“Eu não existe, a perda também não”
Maria Gabriela Llansol
14
INTRODUÇÃO
“NADA FOI, TUDO ESTÁ SENDO”
15
Introdução
“Nada foi, tudo está sendo”
Maria Gabriela Llansol
Diz João Barrento que ser legente é “ler com o corpo e com outros livros que
trazemos conosco e nos escolhem”, pois “com eles nunca lemos sós” e cada acto de
leitura é um chamamento contínuo a um lugar onde alguma coisa acontece”
(BARRENTO, 2009, p. 143). Talvez seja eu, também, uma legente llansoliana, um
alguém-leitor que segue esse modo de leitura de que fala o especialista e responsável
pelo espólio das obras de Maria Gabriela Llansol em Sintra. Isso porque os livros
llansolianos me convocam a um lugar outro através de um processo de interlocução
afetuosa que traço com as linhas que leio e que, aos poucos, percebo que o substrato que
fica é o de uma densidade outra: o do “não-saber”. Caminho pelo vazio. Do vazio que
há no texto? Pelo meu vazio? Do vazio que é o excesso que trago e resisto em soltar?
Talvez, por tudo isso ou por nada disso. Ou talvez, por tudo e nada. Porque o mais
importante, se é que há, é o de estar nesse vazio aqui conjugado. Sou acolhida no
acolhimento que dou às suas imagens. Nesse “não-saber” me proponho a aprender. E
vou aprendendo a atar-me com o “já lido” ou com o “já visto” de maneira outra, vou
aprendendo a aceitar novos sentidos, vou aprendendo a despossuir-me. Nesse “não-
saber” aprendo a errar, e a saber que todo retorno já guarda um sentido novo – e que isto
é humano. Humanidade que nos liga e nos faz grande na pequenez que nos envolve. E é
nesse “não-saber” o abismo com o qual escrevo essa Tese; escrevo em abismo, no risco
de não ser compreendida. Mas sigo, contudo; em vontade, em escolha; pois tenho a
certeza de ser esse o percurso que me permite ir além, em reflexão, em pensamento.
Assim se dá, então, o modo pelo qual leio e escrevo esse trabalho – através de um “ler-
com”, pois acredito ser esse o caminho dessa comunidade convocada pelo ato de ser
16
legente. Comunidade, esta, que se propõe a estar “fora do tempo amnésico dos dias e do
poder”, convocando o passado “para um Aqui e Agora2 do encontro sempre renovado”
ocorrido no espaço de um instante “que se dilata e se furta ao tempo, e que é lugar
único: o do corp’a’screver’’ (Ibidem, p. 144-145).
Cheguei a Maria Gabriela Llansol pelas mãos de Luci Ruas, quando, em junho
de 2009, na PUC Minas, participei de um seminário do grupo de pesquisa De Orfeu e de
Perséfone: figurações da morte nas literaturas portuguesa e brasileira
contemporâneas, uma vez que o meu projeto sobre Inês Pedrosa (dissertação de
mestrado) fazia parte desta linha de pesquisa. Foi neste encontro, a primeira vez que
ouvi falar de Maria Gabriela Llansol. A seguir, li o livro O beijo partido, de Jorge
Fernandes da Silveira. Daí, eu me encantei com a profundidade da temática e da
complexidade da escrita llansoliana. Em julho de 2011, participei do X Congresso da
Associação Internacional de Lusitanistas (AIL), organizado pela Universidade do
Algarve, reunindo pesquisadores de diferentes locais e nacionalidades em torno da
temática da língua portuguesa, o que originou uma troca de experiências muito rica e
proveitosa. Essa ida para Portugal foi extremamente importante para o meu trabalho de
pesquisa, em especial para a definição desse projeto de Doutorado porque foi a partir da
visita a Sintra, ao Espaço Llansol, que tive a certeza de que era ela, Llansol, quem eu
iria estudar. Do lugar lindo e mágico que é Sintra, ao aconchego e simpatia dos que
trabalham no Espaço, tudo me envolvia e me enchia de certeza de que estava no
caminho certo. Lá, no Espaço Llansol, recebi de Maria Etelvina Santos a doação de
todos os Cadernos Llansolianos até então escritos, as publicações de Maria Gabriela e
os livros que falam sobre a obra de Llansol publicados pela editora Mariposa Azual.
Desta forma, ir a Portugal contribuiu significativamente não só, para mim, pelo aspecto
2 As maiúsculas indicam que o “aqui” e o “agora” se dão de maneira única para cada indivíduo.
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investigativo da pesquisa; mas, sobretudo pela compreensão e vivência de um mundo
cultural trazido nos livros como, por exemplo, o simples hábito de se ir a um “café”.
É com muita alegria que digo que a pesquisa aqui apresentada também foi
acolhida e aceita para ser desenvolvida, em 2012, no curso de Doutoramento da
Universidade Nova de Lisboa em Estudos Portugueses, sob a supervisão de Silvina
Rodrigues Lopes, com fomento da Bolsa Capes de Doutorado Pleno no Exterior.3 Para
essa conquista, agradeço, mais uma vez, o apoio incondicional de Luci Ruas, Jorge
Fernandes da Silveira, Silvina Rodrigues Lopes, João Barrento e Maria Etelvina Santos.
“Voz, memória e silêncio: Llansol e a escrita do tempo jubiloso” vem a lume
com a proposição de ser esta investigação um contributo significativo para os estudos
em torno da obra de Maria Gabriela Llansol, ampliando, assim, as bases teóricas da
Literatura Portuguesa do século XX. Interessa aqui investigar a presença da voz, da
memória e do silêncio na escrita de Llansol e estabelecer o modo pelo qual estes
elementos se articulam com vista à expressão no corpo textual de um tempo que é
júbilo, alegria.
Maria Gabriela Llansol Nunes da Cunha Rodrigues Joaquim nasce em 24 de
novembro de 1931, em Lisboa, vindo a falecer em março de 2008, deixando-nos4 um
acervo de trinta obras publicadas e um espólio ainda a ser editado composto por dados
escritos e iconográficos. Este material inédito encontra-se no Espaço Llansol, em Sintra,
Portugal, sob a direção de João Barrento e Maria Etelvina Santos. Ler e compreender
sua obra implica cruzar o literário e o histórico que marcam sua vida em interlocução
3 Por razões pessoais, não pude aceitar a Bolsa Capes.
4 Escrevo esse trabalho oscilando entre a primeira pessoa do singular e do plural, quando considerar que o
dito é amplo e envolve, a nós, legentes. A terceira pessoa do singular, por vezes, será utilizada com
objetivo de enfatizar o distanciamento que há entre a voz que lê e a voz que escreve de modo crítico.
18
intra e intertextual5. Daí que se leia em Onde vais, Drama-Poesia?: “______ eu nasci
em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema. Só havia tecidos espalhados
pelo chão da casa, as crenças ingênuas de minha mãe” (OVDP, p. 11), posto que “ler”
seja já um modo de “viver”. Com Augusto Joaquim, seu marido, Llansol, em 1965, vai
para Bélgica acompanhando-o em exílio, pois Augusto “se recusara a participar na
guerra colonial” (L1, p. 125). Nessa época, deixa um livro publicado e outro ainda
inédito (Os pregos na erva e Depois de os pregos na erva). É, contudo, neste lugar
longínquo que acontece com maior intensidade a produção textual de Llansol6. E Maria
Gabriela, então, escreve as primeiras duas trilogias – Geografia de Rebeldes7 e parte de
o Litoral do Mundo8 e os Diários. Em 1985, regressa a Portugal e continua a escrever
de forma intensa, até a publicação em 2007 de Os Cantores de Leitura – seu último
livro ainda em vida.
Maria Etelvina Santos diz que “Maria Gabriela Llansol é sinônimo de uma
radicalidade dentro da chamada ficção portuguesa, que necessita de ser estudada não só
na sua inserção adentro da nossa literatura e dos estudos literários, mas também como
uma prática de escrita” (SANTOS, 2008, p. 53). Isso porque Maria Gabriela é uma das
vozes da literatura portuguesa contemporânea que concebe o ato de criação de forma
muito particular. Para ela, a ficção é “o encontro inesperado do diverso”, concepção
manifesta no subtítulo de Lisboaleipzig 19, porque o livro é o receptáculo embrionário
do novo, daquilo que, ainda não-sendo, já é percebido e comunicado através do silêncio.
5 Entende-se como interlocução intratextual o diálogo que seus livros convocam aos seus legentes; e
intertextual, o diálogo de Llansol com o mundo que o cerca: objetos, figuras históricas, autores, filósofos,
e etc. Esse percurso de leitura será o modo pelo qual essa Tese se constrói. 6 “Quando soube que havia de vir aqui, tentei evocar, e trazer à minha memória, o meu estado de espírito
de então. (...). Eu procurava evadir-me a escrever” (L1, p. 125). 7 A trilogia “Geografia de Rebeldes” é composta pelos livros: O Livro das Comunidades, A Restante Vida
e Na Casa de Julho e Agosto. 8 A trilogia “O Litoral do Mundo” é composta dos livros: Causa Amante, Contos do Mal Errante e Da
Sebe ao Ser. 9 Livro que une poesia e música, Pessoa e Bach (“uma ficção não pode ser simples, é o encontro
inesperado do diverso” – CA, p. 18).
19
Livro que é lugar-mundo. Livro-casa, lugar de afeto por onde há o encontro de
experiências múltiplas e, na coexistência do diverso, torna-se lugar de ascese pessoal.
Para a escrita dessa Tese, tomei como guia quatro publicações: Um beijo dado
mais tarde, Amar um cão, Parasceve – puzzle e ironias e Amigo e Amiga – Curso de
silêncio de 2004. Contudo, pelo viés de interlocução intratextual, outros livros seus
emergem e dão voz à ideia do júbilo.
A Tese está dividida em cinco capítulos. Nos quatro primeiros, apresento leituras
dos livros-guia e, no quinto, apresento considerações em desenvolvimento, mas não
indecisas, sobre a “poética do júbilo”.
No primeiro capítulo, tendo como base Um beijo dado mais tarde, abordo o
lugar de “descoberta e aprendizagem”, relacionando o pequeno espaço da casa à
vastidão do mundo. Experiência, assim, revelada entre a casa e o mundo, entre o micro
e o macrocosmo, por meio da escrita, em que o contínuo se dá por complementação, de
um eu que é suplemento do outro, assinalado “num meio ‘onde pairou um não-dito’
(BDMT, p. 12)”: o aborto do meio-irmão, filho do pai com a criada, obrigada pela lei
paterna a sacrificá-lo. Nascimento e morte que são tramados no jogo entre biografia,
objeto e memória – perspectiva, essa, que acompanha e marca os textos de Maria
Gabriela Llansol. “Estabelecer um elo entre a lei e a leitura, e querer a escrita” (BDMT,
p. 51) expressa o mote desenvolvido neste capítulo, onde “lutar contra a impostura da
língua” – desejo da rapariguinha – se dá no combate à violência que habita o “mau
silêncio”, pela palavra não dita, ou mal dita [maldita] – raiz de todo mal, pelo
significado que se perde do seu significante por lhe faltar o som, de lhe calar a voz, pelo
afeto não trocado, pelo amor não vivenciado. E é contra esse “mau-silêncio” que se
principia a narração, a do livro e a da pesquisa. Contribuem, como aporte teórico, os
20
estudos de Walter Benjamin, Marilena Chauí, Jo Labany e Didi-Huberman,
principalmente.
No segundo capítulo, através de Amar um cão, pela figura de Jade, reflito sobre
o princípio da luz em que entre a luz comum e a luz incomum está um tempo em devir.
E Jade é um princípio de luz em seu duplo nascimento. Aqui, o lugar da “luz comum”
cruza-se com o da luz incomum; é um estar na luz, fora da luz, em desvio, por
sobreposição; pois “o princípio da luz é uma arca” (AC, p. 17) que tudo abarca no
encontro com diverso. Amar um Cão reitera e ensina o já proposto em livros anteriores:
aprender é, sobretudo, ler. Neste lugar-livro, nascer é renascer ou “entrar numa linha de
conhecimento”; “é irromper, continuando de forma descontinuada a linha, o traço, que
inicia o texto” (Pena, 2009, p. 11). Procuro, neste capítulo, a ideia do ímpar enquanto
ausência de completude e do conhecimento conjugado por seres híbridos. Penso que
seja este o (um dos) sentido(s) do júbilo: a propriedade única do impróprio. E é, no
aberto do tempo que se dá a expressão do incognoscível porquanto ainda seja sua
materialidade sensível inominável na linearidade e orientação do código verbal;
mostrando-se, apenas, evidenciada quando sentida e partilhada em e por elos de afeto. A
ideia da liberdade de consciência é, neste contexto, trazida pela imagem de se estar na
“perpendicular do ceptro” (AC, p. 14), na qual o “eu” há de seguir “o itinerário da
geografia do seu corpo” e ir avançando em existência própria com e pela “cena fulgor”
(AC, p. 26). Importa observar, para posterior desenvolvimento, que a imagem de
perpendicularidade do ceptro elucida a ideia de decepação10
da memória, do corte que
não anula, mas transforma; cujo fim continua em aberto.
10
Sendo o texto Llansoliano um “ser-enigma”, por “sua vontade de ser escrita nova”, há nele “uma
progressiva decepação” (BARRENTO, 2009, p. 242). Decepação vem de decepar, cortar, talhar. João
Barrento define a decepação como sendo a “eliminação do narrativo, da metáfora, a caminho de um
destino final, com a consciência de que não se decepou ainda ‘o nó do imaginário’, para deixar o texto em
carne viva”. Por isso, a construção textual a partir da cena fulgor, por ser ela “a coisa que emerge e pede
para ser vista” (Ibidem, p. 244). Por isso, o texto é a esse modo imagem, pois “não se decepou ainda o nó
21
O terceiro capítulo é motivado pela leitura de Parasceve, título que se refere ao
dia da morte de Jesus e do ritual preparatório do Sábado judaico. No livro, “Parasceve”
é o nome de uma criança que tem o ruah, o sopro, o suspiro de vida. Diz Llansol:
“Numa vida, há sobretudo microvidas independentes que ninguém ouve” (P, p. 88). E
cabe a Parasceve a tarefa de descobrir os caminhos desse “ouvir”. Dessa
forma, Parasceve é aberto diante do reconhecimento e da potência do invisível, vindo
em combate e em complementaridade – por vontade e escolha, pela liberdade de
consciência. Nesta parte há a perspectiva do leitor único de Maria Gabriela Llansol, dos
que comungam entre si o olhar e o ponto de partida em que o caminho se dá
no continuum da decepação. Ler é visto como um “estar com”; com um outro que é
também um si próprio: gesto assinalado na epígrafe da tese. Neste capítulo, procuro
objetivar a questão do júbilo pelo movimento cíclico de nascer-morrer, pelas vozes
textuantes metamorfoseadas; de modo que seja a criança-Témia ou a criança-Parasceve
as que trazem consigo o “ruah”, o sopro da projeção futura do tempo que, no presente, é
ideia em devir. Hannah Arendt é uma das vozes que adoto para investigar a faculdade
do pensar, nos limites compreendidos entre a noção do self e a que abrange a
pluralidade, tomando como base a figura socrática, de Platão. A força textual é
evidenciada no percurso dado no e pelo movimento de uma introspecção deambulatória
em torno de um si. Nesse mergulho interior, Parasceve se revela, sobretudo, uma “doce
esperança” (P, p. 126),
do imaginário”. Decepação, despossessão (termo trazido por Silvina Rodrigues Lopes em Teoria da
despossessão. Ensaio sobre textos de Maria Gabriela Llansol, de 1988, cujo sentido está em des-possuir)
são os instrumentos que unem a mão e texto, sem fronteira entre um e outro. “O fim – termo e finalidade
– da escrita em Maria Gabriela Llansol continua, assim, em aberto, mas cada vez mais próximo daquele
momento em que entre a mão – “decepada” de tudo o que (lhe) é supérfluo – e texto não haverá fronteira”
(Ibidem, p. 242). E o fim é o aberto. Por isso, “o esforço ininterrupto de ler. Ler, lendo, antes de ler, a ler,
depois de ler, lembrando que estava a ler, lembrando a leitura” (BDMT, p. 117).
22
No quarto capítulo, sigo pelos caminhos amantes de Amigo e Amiga – curso de
silêncio de 2004. Esse é o livro de uma perda e de uma ressuscitação de um “ambo”11
;
de uma escrita que, vinda em silêncio, é o modo pelo qual Llansol cria a possibilidade
de aceitação do múltiplo do que, em contradição, permite o deslocamento necessário à
órbita da criação. Dessa forma, o silêncio posto no vazio, no elo que une o dito e o não-
dito, é o que vem fundar o novo. Perspectivas de decepação e do eterno retorno do
mútuo são, no capítulo, estudadas. Júbilo que nasce diante do reconhecimento da
relação entre tempo e eternidade; da voz que múltipla é impessoal porquanto caminhe
em transformação. Sob a cena fulgor de “o que o ler ensina, a vida sobre a terra
esquece” (AA, p. 116) abordo o processo contínuo do ir lendo, do ser legente, na ação
ininterrupta de ler, através de uma despossessão memorialística e por sobreposição. E
Amigo e Amiga é uma travessia ao júbilo por via de uma interlocução intratextual,
explicitamente marcada por Parasceve; e por outra intertextual sobre a qual lemos Rilke
e Vergílio Ferreira. Com eles e através deles, Llansol é capaz de conferir vida ao seu
amigo-amante, A. Nómada, tornando-o “matéria figural” (AA, p. 11) através da luz
trazida por seus laços de afeto e linguagem. Desse modo, em “paz subalterna” (AA, p.
245), diz: “Eu não existe, a perda também não, há um rumor revolucionado que entra no
sossego” (AA, p. 184). Rumor que é voz e silêncio a entrar no corpus textual, posto que
voz e silêncio falam em linguagem sensorial e estão no Tempo em processo polifônico.
São contributos e suporte de análise, os trabalhos de Eni Puccinelli Orlandi, Luci Ruas,
Maria de Lourdes Soares, Dora Ferreira da Silva.
No quinto capítulo, as considerações sobre o tempo jubiloso, a poética do júbilo,
expressam a vontade de apurar os conceitos apresentados nos capítulos anteriores.
Desejo aí dizer, em suma, que a escrita do tempo jubiloso se dá, sobretudo, por um
11
“Ambo” que é um duplo, ligados entre si por um elo de afeto com o qual Llansol faz interlocução.
23
“Tratado de amor” (CL, p. 95), pela troca afetuosa trazida pela linguagem em
movimento. Júbilo que se refaz sempre em outra paisagem posto que é “fenda”. Daí que
me permito, nesse espaço, uma hipótese de leitura futura na qual a perspectiva do júbilo
põe-se em tensão entre as três poéticas emblemáticas da literatura portuguesa (o
desconcerto do mundo camoniano; a poética do fingimento / o “desassossego” de
Fernando Pessoa / Bernardo Soares; e a poética do testemunho, de Jorge de Sena/ Anès)
metamorfoseada nas figuras dos seus autores, que, mais que personalidades da história
ou da literatura, passam a ser potências criadoras em seu texto, ou melhor, em sua
textualidade.
Importa dizer que foram suporte especial de estudo os trabalhos de João
Barrento, Maria Etelvina Santos, Jorge Fernandes da Silveira, Silvina Rodrigues Lopes
e Maria Lúcia Wiltshire, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Santo Agostinho, para além
dos pesquisadores que trouxe aqui.
A foto da capa da Tese é uma homenagem da Câmara Municipal de Sintra a
Maria Gabriela Llansol pela escrita do livro Parasceve – puzzle e ironias, à ocasião de
sua morte. É uma placa fixada no chão da serra de Sintra diante da árvore que foi por
ela textualizada como o Grande Maior. Já os rostos que compõem a epígrafe são de
Llansol em dois tempos: na velhice e na infância, aos oito anos.
Por ser a imagem fulgor na textualidade llansoliana, algo que dialoga em
conjunto com a palavra dita e que dá pulsão ao texto, o trabalho que ora se apresenta
traz esse suporte iconográfico como mais uma estratégia de interlocução.
Assim, reitero o que ocorre no texto llansoliano e faço minha a alegria que
percorre o texto; alegria oriunda de um não-finito, de um caminho que se alcança no
percurso do seu andar, no movimento de um estar “quase a chegar” (AA, p. 43). Eis que
se segue o “beijo”, nosso primeiro capítulo.
24
CAPÍTULO I
“PELAS FENDAS DA PAISAGEM”
25
[O Beijo, Auguste Rodin, 1892/1896, Mármore, 1,84 x 1,11 x 1,19m]
26
1. “PELAS FENDAS DA PAISAGEM”
1.1. Um beijo dado ao encoberto
“Ler é uma práxis revolucionária por excelência.”
Jorge Fernandes da Silveira
“Na casa antiga, cada um de nós levava
consigo um candeeiro, com que arrastava
o seu duplo de penumbra e de sombra.
A chama do petróleo ardia junto à boca,
podíamos devorar a própria luz.
chamas nos queimavam as entranhas
e em archotes vivos nos tornaram,
vagueando por corredores e por escadas
atrás do Outro, que nada nos dizia.”
Fiama Hasse Pais Brandão
Em Um beijo dado mais tarde, Maria Gabriela Llansol relaciona o pequeno
espaço da casa à vastidão do mundo. Lugar de “descoberta e aprendizagem”, como
declara Helena Carvalhão Buescu na orelha da segunda edição, de 1991:
Assim, entre uma morte (de Assafora), um nascimento (da “rapariga que
temia a impostura da língua”) e um nascimento-morte (o do seu meio-
irmão, filho bastardo do “Senhor da casa”), decorre uma história
profundamente familiar, naquilo que o espaço restrito da família pode
encenar do mundo: violência ou segredo, descoberta e aprendizagem (Grifos
conforme o texto.)
Experiência revelada entre a casa e o mundo, entre o micro e o macrocosmo, por
meio da escrita, de uma “continuidade por complementação” (SILVEIRA, 2004, p. 33),
de um eu que é suplemento do outro, assinalado “num meio ‘onde pairou um não-dito’
(BDMT, p. 12)” (SILVEIRA, 2004, p. 13). Nascimento e morte evidenciados no jogo
entre biografia, objeto e memória, onde nascer é renascer no estabelecimento de um elo
entre aprendizagem e conhecimento:
27
Ler. Nascer. Morrer. Aprender a viver com a leitura que morre. Ser a língua
na estátua de um outro, esperar que o mesmo momento se repita. Não o
deixar morrer. Estabelecer um elo entre a lei e a leitura, e querer a escrita.
Voltar-se para Ana, e deitar-lhe um irmão morto dentro de um livro para que
ela o ressuscite (BDMT, p. 51).
Biografia ou romance? Ou, talvez, simplesmente, um romance-biografia. Llansol
parte do espaço da casa familiar para, junto com ela, ir revelando o segredo que ali se
esconde – a de um meio-irmão morto, fruto de uma relação entre o patrão (o filho da
senhora da casa, seu pai) e a empregada (a serva). Anos mais tarde, o jovem senhor
contrai matrimônio e na mesma casa vivem sua mulher e sua filha. Esta criança,
socialmente aceita e a quem lhe foi permitido nascer, é Llansol, crescida aos pequenos
cuidados da serva. É essa a história tecida em Um beijo dado mais tarde. Mas,
sobretudo, é a história de uma violência trazida por meio de uma criança abortada, de
um amor impossibilitado por questões sociais, de uma vida impedida de se concretizar.
Violência geradora do “mau silêncio”, do significado que se perde do seu significante
por lhe faltar o som, de lhe calar a voz. E é contra esse “mau-silêncio” que se principia a
narração, princípio que é suscitado por outro ato de violência: a morte da cabra,
vertendo o seu sangue sem balir. Nessa perspectiva, diz a autora em Um Falcão no
Punho: “Não me reconheço apenas uma mulher, mas um anel, com algumas feridas.
Fundada na luz que se eleva na cozinha, e que desce, condensando-se, [...], junto-me a
Espinosa.” (FP, p. 43). Segundo Marilena Chauí, “para Espinosa, somos seres
naturalmente afetivos, isto é, nosso corpo é ininterruptamente afetado por outros corpos
[...] e essas afecções corporais se exprimem em nossa alma na forma de afetos ou
sentimentos” (Chauí, 2012, p. 400). A ideia de “bom”, segundo Espinosa, é tudo aquilo
que se torna “útil para o crescimento de nosso ser” e “mau”, “o que nos impede de
alcançar algo bom para a nossa existência”. Assim, o silêncio da casa era “mau” porque
28
impedia o acesso ao conhecimento e à clareza das ações. Essa era a missão da rapariga:
fazer ressoar o som, ecoando do mau, o bom silêncio.
Deste mistério, e no fim de um trabalho executado a som e a cinzel,
fez-se a rapariga que temia a impostura da língua e que queria”,
através da palavra,
fazer ressoar fortemente,
o seu irmão morto (BDMT, p.12).
E entre morte e vida, a decisão de escrita. Escrita que também é ato simultâneo
de leitura. Escrita, esta, vinda de um lugar de interstício, “herança da rapariga que
temia a impostura da língua”:
O lugar da intersecção da língua arrancada com a outra língua transparente é
a herança da rapariga que temia a impostura da língua. Por isso, eu tenho de
encontrá-la, e trazê-la para fora da sua nostalgia infinita. E não só. Da
intersecção das duas línguas – a que se ouviu balindo, e a que nasceu do
sangue – voou o Falcão, ou Aossê feito ave (BDMT, p.7).
Em paralelo, lê-se em Um falcão no punho a fala de Maria Gabriela: “luto entre
o interior e o exterior, sinto-me consciência prisioneira dentro do vidro. Tenho
necessidade de fazer cortesias a Fernando Pessoa sentado à mesa, e de erguê-lo numa
transparência que corre e brinca” (FP, p. 99). Para “erguê-lo”, Llansol diz ser necessário
“alterar a ordem das letras do nome de Pessoa para fazê-lo involuir”. Assim, “Pessoa,
lido da direita para a esquerda, dava AOSSEP.” (FP, p. 81). Ou, simplesmente, Aossê.
Através deste jogo llansoliano com as letras do nome “PESSOA”, inferem-se dois
pontos principais sobre os quais toda a obra de Llansol se pauta: a) a possibilidade da
existência enquanto criação12
– e, sob este aspecto, Fernando Pessoa deixa de ser visto
12
“A criação – ou a existência – não é, de fato, a luta vitoriosa de uma potência de ser contra uma
potência de não ser, é antes, a impotência de Deus frente à sua própria impotência, o seu podendo não
não-ser, deixar ser uma contingência”. Remonta, aqui, por Aganben, a ideia de Spinosa referente ao
29
através da ótica de seus heterônimos e passa ser concebido como potência. Potência,
essa, capaz de suscitar o contínuo ato de criação. Daí que se “involua” posto que
involuir é aproximar essência e existência em tensão linguística e fazer coexistir os
opostos onde o “princípio ativo” que os une se mantém mesmo diante de um
deslizamento metamórfico; b) Outro ponto que me sugere é a aproximação das letras
segundo à perspectiva de “diferença” elucidada mais especificamente por uma escrita
fragmentada. Por um dizer estruturado em fragmentos, Llansol traz a “deconstruction”
de Jacques Derrida que é concebida por ele como “obra de amor”, onde por
“différance”, inscreve-se a possibilidade nova do pensar e da experiência, dada na
temporalização do vivido e no entre-espaço dos elementos. É assim “letra amorosa”,
existente somente no corpo textual. “Différance” que é “rastro” e descentramento,
compreendido na Gramatologia de Derrida como: “O rastro é verdadeiramente a origem
absoluta do sentido em geral. O que vem afirmar mais uma vez, que não há origem do
sentido em geral. O rastro é a différance” (DERRIDA, 1999, p. 79-80). Por isso, a
errância convivente do caminho em que “a distância é o percurso”. Ou seja, o que
separa (a distância) é o elemento que leva “ao fulgor”, daí que seja a distância o
percurso, o caminho, a trajetória que se dá por uma “errante intimidade com o dia”13
(FP, p. 50). A “deconstruction” e a “différance”, em seu duplo gesto vem indicar um
“adiantamento espacial” e um “diferimento temporal” dados pela imagem, por cenas
fulgor, à ideia llansoliana, onde os espaços se põem adiante e antecipam a palavra
“bem” e “mal” (já explicado através de Marilena Chauí) posto que “o mal é a inadequada reação frente ao
elemento demoníaco, o recuar amendrontado diante dele. Fugindo diante da nossa própria impotência,
construímos o maligno poder com o qual oprimimos aqueles que nos mostram a sua fraqueza”. E
Agamben acrescenta: “A possibilidade de não ser [é] a única coisa que torna possível o amor”
(AGAMBEN, 2013, p. 38). 13
Herbais, 7 de setembro de 1981: “Errante intimidade com o dia. Passo-o no jardim de Prunus Triloba, à
sombra do arbusto central que é o mais desenvolvido. [...]. Penso em Da Sebe ao Ser e, convivendo com
este livro, no meu Diário. Reparo que, ao fundo, a árvore é um livro que distribui as folhas pelos ramos
de modo que nenhuma escape ao Sol; há um tal fulgor no sol que desce , e se esconde, que dificilmente
posso concentrar-me sempre no mesmo lugar verde. A distância é o meu percurso, e na globalidade do
céu receio não descobrir viagem por mar que me oriente” (FP, p. 50).
30
através da construção intervalar. Importa observar que o texto llansoliano é um contínuo
“sobre esse caminho, indo de cena em cena” (L1, p. 129). Por isso, afirma Carlos Reis,
em “A ficção portuguesa entre a Revolução e o fim do século, que o fragmentarismo
“há de ser entendido também como pulverizado modo14
de conhecimento de si, dos
outros e do mundo” e é o que “legitima a oscilação entre continuidades e
descontinuidades textuais” (REIS, 2004, p. 22). Se a descontinuidade se dá pela ruptura
textual, a continuidade é trazida pelo seu sentido, através de uma memória afetiva, no
espaço de uma comunidade, “este espaço-nó, ou semente”; “espaço de perigo pois nele
se desenvolvem grandes mutações de energia que (...) modificam a maneira de ser e de
viver” (L1, p. 142). É Llansol que afirma que “o continuum espaço-tempo seja
‘suspendido’, e que qualquer forma que aí se inscreva assuma o estatuto de figura” (L1,
p. 142). Figuras que “num primeiro contacto, nada mais são do que personagens
históricas ou míticas; plantas ou animais; um dispositivo de companheiros que tomam
parte na mesma problemática” (L1, p. 129). Diferentemente da figura, a ideia do
personagem está condicionada a um determinado enredo, pois “o personagem é um ser
que pertence à história e que, portanto, só existe como tal se participa efetivamente do
enredo; isto é se age ou fala” (GANCHO, 2001, p. 14). Já as figuras trazem uma
origem, mas nunca um fim. Elas unem “paisagens afastadas” (p. 129). As figuras são
“nós construtivos do texto” , como se lê em Um Falcão no punho – o primeiro diário de
Llansol. A figura “vem do mundo, existe no texto e volta a actuar no mundo”, é “um
princípio activo” (BARRENTO, 2009, p. 122). Augusto Joaquim sobre Finita, diário 2,
diz que “figura é todo o agente do mútuo e que nele intervém”. No mútuo,“cada
14
Eduardo Prado Coelho, em A poesia ensina a cair, no texto “A margem de onde avisto o caos”, afirma
que “cada escritor tem o seu modo de escrever, de um certo modo de marcar os ritmos de sua produção
textual e dos protocolos que a rodeiam”. Maria Gabriela seria como “os que utilizam os textos em forma
de blocos e por vezes os deslocam de versão para versão ou mesmo de livro para livro” (COELHO, 2010,
p. 55).
31
participante sai modificado15
” (L1, p. 143), “convocados para um acto de recomeço”
(L1, p. 130). Ideia que se clarifica em Um beijo dado mais tarde (1991) com a leitura
que se segue: “Também se chama a este estado ‘A Mutação’ porque, mudando, não
pode ser surpreendido sob nenhuma forma. Este ser mutável, troca de pele, e torna-se
Um” (BDMT, p. 84). Assim, este ser mutável “é diferente (no nome: mas o nome não
importa, é um acidente) e igual (na função e na substância)” (BARRENTO, 2009, p.
124). E se o que importa é a substância, o “ser-humano também se anula (...) porque
toda a presença (...) começa a ser imagem” (L1, p. 140). Mas a humanidade que habita o
ser “é uma forma inconfundível, inalienável, e exclusiva de nós mesmos”. E Llansol
diz: “Por isso eu disse ‘fraccionar a imagem nas suas diversas formas’, e por isso o belo
é o encontro inesperado do diverso” (L1, p. 141). Beleza comunicada em silêncio (“o
encontro inesperado do diverso é assistir o belo a comunicar com o silêncio” – L1, p.
135), no silêncio que fica entre uma palavra e outra, pois “nada foi, tudo está sendo” (F,
p. 220). E é deste eterno continuum que nasce a ideia de júbilo, a alegria de sentir que
nada fica ou se perde; mas tudo se transforma: “quando a tarde cai, reacendo as luzes
que ficaram quase acesas da outra noite” (BDMT, p. 117).
À ideia do rastro, há a ruína e os restos propostos por Walter Benjamin como
mecanismos de compreensão da história por outro paradigma: dos vencidos, dos que
tiveram suas vozes censuradas e/ou suas “línguas cortadas”, como aponta
metaforicamente o texto de Maria Gabriela Llansol.
15
Mútuo que é um duplo onde o “eu” surge em imagem. Daí que, em processo epigráfico de um retorno à
infância, do ser que aprende a dizer, ocorra a relação de duplicidade: eu, Gabi / eu, Témia (a rapariga que
temia a impostura da língua) Perspectiva, esta, convivente; de aprender a ver com o outro, através do
outro. Outro que é também si mesmo. Praxis de luta contra a “impostura da língua”. Trago aqui os versos
de Fiama Pais Brandão, em “Área Branca /17”, poema de setembro de 1976, para ilustrar o que procuro
dizer: “Ensinaria à infância a gravar / no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras
/modulações da voz pura, sem a mancha embaciada / compacta que paira diante dos olhos sempre
que se fala. / A mancha que se desloca no raio de visão /e desbota qualquer imagem como a chama de
uma vela /com a fuligem constante a torná-la opaca (BRANDÃO, 2010, p. 67).
32
Um beijo dado mais tarde está dividido em seis capítulos, iniciados por um
prólogo e finalizados pelo epílogo exposto no sexto capítulo, marcações teatrais não
aleatórias à concepção llansoliana de escrita porque condensa tempo-espaço
cronológico em intensidade narrativa ao modo de Benjamin, em Origem do drama
barroco alemão, quando se assiste às reflexões sobre a intensidade temporal e histórica,
o seu Ursprung. Palavra em que o sentido primeiro de “origem”, de um início
marcadamente cronológico, se desloca metonimicamente para uma amplitude de um
movimento primeiro, trazido por um salto (Sprung) primevo (Ur), de algo posto em
“eterno retorno” por Llansol, por sempre instaurar o novo, por promover uma nova
forma e por propiciar uma nova face na história contada, persistindo contra o paradigma
imposto, contra a “impostura da língua” e a causalidade inexistente. No Ursprung
benjaminiano, a ruptura criadora: a “linha de fuga” de Deleuze ou, com Llansol, o
nascimento da terceira língua. Sobre isso, assim nos afirma Jorge Fernandes da Silveira
em O beijo merecido da verdade, posfácio da edição brasileira publicada pela 7Letras
em dezembro de 2013: “dois aspectos fazem da leitura do livro uma das aventuras mais
fascinantes da Literatura Portuguesa atual”: o primeiro pela “impossibilidade de se ler o
texto como um romance à maneira antiga, como a representação especular de um outro
discurso maior e mais socializante, exemplar, aquele em que se reconhecia a visão de
mundo do Autor”. O segundo, diz o especialista, é o cuidado
à gênese dos corpos humanos e das formas imaginárias, de acordo com os
princípios llansolianos de textualidade: como se fosse uma terceira língua, o
literário é uma linguagem nascida entre o mítico e o histórico (SILVEIRA, 2013,
p. 117-118).
Histórico porque vinculado a um espaço e tempo demarcados; e mítico porque
“preso desde o princípio à luta entre duas forças antagônicas: as fundadoras que dão
33
fruto legítimo (os herdeiros) [...], e as transgressoras, contrárias a essa ordem, desejando
implantar outra genealogia (os bastardos)” (SILVEIRA, 2013, p. 117-118). Benjamin
também retoma essa perspectiva mítica ao relacionar o tempo chronos à ideia de kairós,
com ênfase ao instante, ao segundo fugaz, que propicia a transformação e a experiência
do novo. Experiência que reside no trabalho, naquilo que se tem de partilhável, na
palavra comungada trazida ao espaço do comum para que ela, ao ser retomada, seja
também transformada por cada geração, continuamente, como na fábula antiga do
homem velho que diz ser preciso cavar para se achar o ouro escondido na vinha. Essa é,
portanto, a experiência do ouro deixado pelo pai, do verdadeiro tesouro descoberto
quando, deslocado da semântica do capital, passa à ótica do cultural. Lê-se, assim, em
“Experiência e Indigência”: “Os filhos puseram-se a cavar, mas do tesouro nem sombra.
Quando o Outono chegou, porém, a vinha deu uma colheita como nunca se vira em toda
a região. E foi então que os filhos perceberam que o pai lhes legara uma experiência: a
benção não está no ouro, mas no trabalho” (BENJAMIN, 2010, p.73). E com base no
referido texto, Benjamin observa a mudez com que os homens de 1914-1918 voltavam
da guerra e constata que eles “não voltavam mais ricos; mas mais pobres de
experiências partilháveis” (Idem). Contudo, tal sabedoria demonstravam os antigos
através das histórias contadas de modo ameaçador ou benevolente:
Sabia-se muito bem o que era a experiência: as pessoas mais velhas
passavam-na sempre aos mais novos. De forma concisa, com a autoridade da
idade, nos provérbios; em termos mais prolixos e com maior loquacidade,
nos contos; por vezes através de histórias de países distantes, à lareira, para
filhos e netos. Para onde foi tudo isso? Onde é que se encontram ainda
pessoas capazes de contar uma história como deve ser? (BENJAMIN, 2010, p.73).
E, se Benjamin observa que o tempo atual assiste à experiência desmentida
levando o humano a certas indigências, verifica também que é dela a “riqueza de ideias
que se abateu sobre as pessoas” de tal modo que a “pobreza de experiência é apenas
34
uma parte da grande pobreza que ganhou um novo rosto – com a nitidez e o recorte
exacto do mendigo medieval” (Ibidem, p.74). E indaga: “Na verdade, de que nos serve
toda a cultura se não houver uma experiência que nos ligue a ela? Pobreza expressada
por uma “barbárie” que, do seu caos, encaminha o novo, leva “a construir algo com esse
pouco, sem olhar nem à esquerda nem à direita” (Idem). É estar, portanto, no lugar
fecundante do entre-lugar, obedecendo “acima de tudo ao que existe no seu interior.
Mais no seu interior do que na sua interioridade – e é isso que as torna bárbaras”
(Ibidem, p.75), dizendo ou gritando em “uma língua totalmente nova”, por contraste do
arbitrário com o orgânico. Tal como se vê em Llansol, no jogo (Spiel) nominal de suas
figuras (PESSOA / AOSSEP / AOSSÊ), Benjamin, citando as pessoas literárias de
Scheerbart e os nomes russos desumanizados, compreende que “não se trata de uma
renovação técnica da língua, mas da sua mobilização ao serviço da luta ou do trabalho –
em todos os casos, ao serviço da transformação da realidade, não da sua mera
descrição” (Ibidem, p. 76). “Ficámos pobres”, afirma-nos Benjamim. E diz: “E agora é
altura de recuar um passo e fazer o balanço” (Ibidem, p. 78). Balanço que Llansol faz
através de uma textualidade própria. É esse o “beijo dado mais tarde”, aquele que se põe
contra a impostura da língua, pela expectativa de encontro a uma nova paisagem e às
linhas refletidas do Horizonte16
de “mar anterior a nós”. Acrescento, aqui, que leio
“impostura” também pelo viés de uma contração sintagmática dos vocábulos
“imposição” e “leitura”, em jogo linguístico muito próprio de sua escrita. Desse modo,
“lutar contra a impostura da língua”, é um ir contra a uma imposição de leitura da
língua, um ir contra a expressão estática dos termos, dos conceitos que, fechados em si,
impedem a palavra nova.
16
Alusão ao poema de Fernando Pessoa.
35
Verifica-se, em Um beijo dado mais tarde, “a co-existência de dois tipos de
fantasmas” (LABANYI, 2003, p. 63)17
, apontando o texto para uma posição
espacialmente fronteiriça entre “o pré-moderno” e “o moderno” na medida em que se
assiste ao luto do meio-irmão abortado, conferindo-lhe um lugar na história (aspecto
pré-moderno); mas também por inseri-lo em uma perspectiva à contrapelo, de fundo
benjaminiano18
, à contraluz, congregando no tempo presente a circularidade temporal,
de modo a restaurar a potencialidade uma vez impedida de se manifestar (aspecto
moderno).
Em Um falcão no punho, Llansol escreve: “Perguntar ‘quem sou’ é uma
pergunta de escravo; perguntar ‘quem me chama’ é uma pergunta de homem livre”.
Importa observar, que em “O Narrador”, Walter Benjamin amplia o que escreveu em
“Experiência e indigência” (ou em título brasileiro “Experiência e pobreza”), afirmando
que tal pobreza atinge consequentemente o nível existencial e narrativo do homem,
construindo para si e para o seu grupo a sua própria identidade dada ao modo de sua fala
e de sua textualidade. Identidade que é memória cultural; é “práxis revolucionária” que
está para além do individual, do simples pai da vinha, vindo a transcender no coletivo,
entre seus filhos, na ultrapassagem do limiar entre vida e morte, pois “o sentido da vida
é o centro em torno do qual se movimenta o romance” (BENJAMIN, 2008, p.212). E
Benjamin conclui: “O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe
por ouvir dizer. Seu dom é poder contar a sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O
narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir
completamente a mecha de sua vida” (Ibidem, p. 221). Consumação que nos leva a
17
Cf. p. 59: Com Jo Labanyi, compreendemos que “os fantasmas são a corporização de um tipo de luto
impossível de realizar porque as condições de luto não se cumpriram”. 18
Com Llansol por essa perspectiva benjaminiana, lemos: “Nas costas do livro, a obra também se torna,
adquire / O andar que lhe é próprio. Dou-te um sinal ___ viverá, se / Se evadir da normalidade canônica
dos gêneros” (CLP, p. 238). E a autora de O Beijo dado mais tarde, indaga: “Quem quer dormir com o
inquieto?” E, pelo espelho de Alice, a imagem do coelho, “S´envole”, adverte: “Sê leve e / Não te
esqueças ___ “Par délicatesse, j´ai perdu ma vie”(Idem).
36
pensar sobre a ideia “de combustão” como é dito na epígrafe de Fiama Hasse Pais
Brandão ao se devorar a própria luz que com a chama do petróleo ardia junto à boca. E
é nesse processo “de arder”, de se pôr em “combustão”, que, em Um beijo dado mais
tarde, Maria Gabriela diz: “escrevo, mas não sou escravo” (BDMT, p. 116) posto que
ler/escrever, segundo Llansol, impele o sujeito a um ato de liberdade.
A escrita por imagem dá a ver a violência imposta; pois a barbárie está na
palavra muda. Benjamin, conforme já dito, na primeira metade do século XX, observou
que os sobreviventes voltavam mudos dos campos de batalha por não encontrarem
assimilação possível através do uso de palavras. Vê-se, inclusive, com Baudelaire, na
experiência do choque19
, em As flores do mal, e com a definição do trauma por Freud
(por não haver superação possível enquanto não se encontrar na fala a verbalização do
sentido da dor), a compreensão da palavra em transformação posta em questão no drama
barroco alemão:
A palavra torna-se trágica atuando de acordo com o puro significado de que
ela própria é portadora. A palavra enquanto portadora pura de seu significado
constitui a palavra pura. Ao lado desta, porém, há uma outra palavra que vai
se transformando desde o lugar de sua origem até outro lugar para o qual está
voltada, ou seja, para a sua foz. A palavra em transformação é o princípio
linguístico do drama barroco (BENJAMIN, 2013, p. 65).
Em cena, a palavra em transformação ressoa o som da natureza e do sentimento.
“Para essa palavra, a linguagem é apenas um estágio passageiro no ciclo da
transformação. Ele descreve o percurso do som da natureza até a música passando pela
lamentação” (BENJAMIN, 2013, p. 65). A esse encontro sinestésico20
e linguístico, a
essa comunhão de expressões, em Maria Gabriela Llansol, pode nos conduzir a
19
Refiro-me aqui quanto à “experiência do choque” a experiência de se pôr em paradoxo, como se lê em
“Spleen”: “Je suis comme le roi d´un pays pluvieux, / Riche; mais impuissant, jeune et pourtant trés-
vieux” (BAUDELAIRE, 2006, p. 272). 20
Entende-se por “sinestésico” a comunicação sensorial e gestual ou aquela que é partilhada por uma
troca afetuosa.
37
Lisboaleipzig, encontro de Pessoa e Bach, “o encontro inesperado do diverso”. Mas
remete também a um encontro com a ideia textual dada em Um beijo dado mais tarde
quando lemos, no prólogo do primeiro capítulo (“A morte de Assafora”), a presença
afetuosa de diversas formas de comunicação atada por meio da palavra. Assim, se lê:
“cantando [est]as circunstâncias nascentes que sobrevieram” (BDMT, p.7); “uma
melodia cantada por Johann desce no quarto porque ela comigo entra em toda a
parte” (BDMT, p. 8)21
; ou ainda: “Bach canta pela voz de Anna Magdalena” (BDMT,
p.9). E por esse modo de expressão, Llansol vai a caminho do interior da casa – casa
que tanto é corpo de escrita quanto corpo de afeto. Lugar, portanto, de abrigo da
memória: “Talvez Anna Magdalena seja apenas um objecto no meu pensamento”
(BDMT, p.13). Contudo, “a música já não é minha, percorre o corredor do espaço até a
sala de jantar onde, numa certa cena, construí a minha infância” e estou aqui “já não
como filha da casa, mas como neblina muito densa de onde se espera luz” (BDMT, p.
10). Assim Llansol diz: “________ sentei-me junto dela [da estátua de madeira, Anna
de Magdalena], a ler-lhe O Livro das Comunidades que principiava a encarnar num
corpo humano naquela noite de vigília”. Em tom religioso22
, escreve-se como se fizesse
ali uma promessa, como se firmasse o elo entre leitura e escrita por meio de um
sacramento matrimonial: “(recebe – por este movimento de ave – o voo do paraíso)”
(BDMT, p.11). Tratado amoroso sob o qual o “eu se cria” em identidade (“Eu que “sou
a rapariga que temia a impostura da língua e, ao subir estas escadas para tocar as
chamas da entrada em que arde, no presente, o passado, sinto-me Témia, temível e com
temor” (BDMT, p. 8)) e em existência (“crio-me sentada à beira da minha origem,
situação que se repete em vários períodos do ano, quando eu venho aqui” (BDMT, p.
21
Manteve-se o espaçamento entre os termos “ela” e “comigo”, conforme a disposição textual. 22
Religião, daquilo que se re-liga e, ambiguamente, “da crença na existência de uma força ou forças
sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e
obedecida(s).” Cf. Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Lexicon, 2010, p. 555.
38
9)) através dos corpos coexistentes trazidos pela força da palavra em movimento.
Movimento que é impulsionado por constantes reflexões. Daí a interrogação: “esta
abertura natural para o paraíso pertence-me?; ou ainda: “estes móveis e objectos de
adorno transfigurados, consumidas as suas carnes, prata, madeiras, ou cristal, serão os
meus bens luminosos?” (BDMT, p. 9). Assim, em obliquidade (porque ‘“a Nuvem
Pairando’ com noite própria, inclinava-se à chuva torrencial”, BDMT, p.11.) e por
suspensão (porque dos objectos companheiros as “asas não batem. Adejam”, BDMT, p.
9), o “eu” compreende “que a Nuvem Pairando” assistida “era a única cúpula do
inverno” (BDMT, p. 13); por isso, Llansol diz: “Eu, eu canto” (BDMT, p. 15),
lembrando que a voz, dobrada sobre si mesma, traz consigo a potência do “cantar, como
vira fazer Infausta, aos pés de Aossê” (Idem), o “falcão peregrino” (BDMT, p. 24), sem
se esquecer que “tudo começou com Témia a ler a súplica que a avó [a] fazia repetir”
(BDMT, p.17). E “Ana, a que ensina”, diz: “Vinde a ler”, “Venham todos a ler” e “foi
assim que Témia, com seis anos, trouxe Ana e Myriam a lerem uma à outra o amor”
rasgando-se “então o véu que cobria um sentimento inteligente e profundo” (BDMT, p.
25). Para assim, “no fim de um trabalho executado a som e a cinzel, através da palavra,
fazer ressoar fortemente o seu irmão morto” (BDMT, p. 12). “Trabalho”, este, enquanto
dever é praxis política: “tinha a obrigação de cumprir a penitência imposta pela
impostura e, sobretudo, de morder a claridade” (BDMT, p.12).
Desta forma, o primeiro capítulo é estabelecido por ideias nascentes: de Témia,
da voz e da palavra que se põem contra a “impostura da língua” e o nascimento de um
corpo textual. Nascimento, esse, que parte de algo jacente: de Assafora, do meio-irmão
morto, da cabra; onde nascer e morrer se completam em estados contínuos: “uma voz
que nasce da extinção da voz de Johann” (BDMT, p. 9). Ou ainda: “Assafora jacente é o
fim de que nasce um ser” (BDMT, p. 10). Nasce, portanto, no drama, na encenação, de
39
um embate entre os aspectos sócio-histórico-cultural e a busca por uma liberdade
poética, por uma linguagem sem impostura. Por isso, Llansol, tal como Nietzsche23
,
pergunta: “Quem” (“Quem me chama?”), quando o sentido agregado a valor significa
essência. Essência que reside na descoberta da força (do ser capaz) e que expressa em si
própria, dada a partir das diferenças que levam à ação, um princípio ativo e positivo da
afirmação do múltiplo. Essa é a sua genealogia e o seu júbilo: uma “criação ‘alegre’ (ou
seja: não-rancorosa.)” (SAMUEL, 2002,p. 65). Júbilo que vem enquanto aceitação:
“Não queiras um pai melhor do que o meu; certos pecados são um privilégio sobre esta
terra” (BDMT, p. 96); e enquanto compreensão: “compreendo que a história dos
homens acabou aqui. Incluindo todas as pequenas histórias que eu estava ainda a
contar” (Idem). Júbilo que, assim, permite coabitação dos opostos24
: “Também há
tristeza no paraíso”; “também há alegria sobre a terra” (BDMT, p. 11). Daí a conclusão:
“Concluo que o desprendimento é necessário à órbita da palavra” (BDMT, p. 17) em
“uma tristeza criadora do riso” (BDMT, p. 45). E diz: “sinto que a relação entre a casa e
a rua é a de uma alegria nascente” (BDMT, p. 53).
História, portanto, como afirma Jorge Fernandes da Silveira “tecida à matéria da
maternidade” e “à madeira da maternidade”, por desdobramentos:
Na sua origem, assiste-se a uma trama literal e simbólica atada a duas pontas
que se embaraçam em nó. Uma tecida à matéria da maternidade [...]. Outra, à
madeira da maternidade (a imagem de Sant’Ana ensinando a Virgem Maria a
ler). Uma história em que a lei da textualidade de dar nova vida às palavras e
às coisas vem dobrada numa outra história à primeira vista mais verdadeira,
23
Em Assim falou Zaratustra (In: “O grito de angústia”). 24
Eis a presença do paradoxo na perspectiva do novo em Llansol – já que é o novo aquilo que abre
caminho ao júbilo. No texto “Encontro-me no novo”, à ocasião da atribuição do Prêmio D. Dinis, da Casa
de Mateus, ao livro Um Falcão no Punho, Llansol diz que se encontra “no novo” e em situação paradoxal
por escrever “sem pensar nos prêmios”. Mas explica o que pensa sobre o “paradoxo”: “o paradoxo é,
assim, de eu estar dizendo precisamente aqui, ao aceitar e agradecer o gesto que para comigo
tiveram, continuando eu sempre sem saber porque teve esse gesto em mim um seu destinatário. Tomo-o
na sua acepção radical de fraternidade entre nós diante do sentido, como um momento em que
partilhámos um dos bens da Terra que, para mim, são cinco: O conhecimento, a abundância, a
generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver” (L1, p. 84-85, grifos nossos).
40
porque vinculada à biografia de quem a escreve: o nascimento abortado do
meio-irmão para que o seu fosse legitimado (SILVEIRA, 20134, p. 118).
No capítulo “Só e Maravilha”, a intersecção entre voz e silêncio; vida e morte e
a construção da casa textual onde o princípio da textualidade, por deslocamento e gestos
de continuidade, segue contra a lei da narratividade: “Principia a contemplar o princípio
das coisas que sobrevém ao início” (BDMT, p. 34) e “havia uma suave continuidade
que não podia dividir-se em nomes” (BDMT, p. 40).
Da ideia de “princípio” atrelada ao ato de leitura e escrita, afirma Maria Alzira
Seixo, em A palavra do romance, no ensaio “Para uma tipologia do discurso ficcional”,
no qual a pesquisadora pensa a obra de Maria Gabriela Llansol a partir da indagação
“Quem há que suporte o vazio?”, fragmento de O Livro das Comunidades, obra da
primeira trilogia llansoliana, “Geografia de Rebeldes”, mencionado, inclusive, em Um
beijo dado mais tarde (conforme já exposto) que “preencher o vazio foi, desde sempre,
o princípio que presidiu à atitude de criação; interpretar esse princípio, tomando-o como
um impulso de elaboração que oscila entre a compensação da falta e o desejo de
produzir sentidos está na origem das literaturas”. E observa: “Pura categorização
teórica, absoluta abolição do corpo, a vacuidade persegue, no entanto, as formas de
produção com o fantasma [...] da hipotética anulação do feito, da inanidade da sua
corporização efectiva” (SEIXO, 1986, p. 28). Didi-Huberman traz tal conceito sob a
ótica de uma “modalidade do visível quando sua instância se faz inelutável: um trabalho
do sintoma no qual o que vemos é suportado por (e remetido a) uma obra de perda
(HUBERMAN, 2013, p. 34). E “a metáfora é uma fuga ao sentido, uma pequena chama
que só permite a compreensão passageira do que está a ler” (BDMT, p. 24), diz-nos
Llansol. É imagem órfica, fugaz, como o lampejo dos vaga-lumes. E faço lembrar, aqui,
um outro título de Didi-Huberman: Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Nele, o filósofo
41
relaciona a “grande luz (luce) do Paraíso à pequena luz (lucciola) dos pirilampos, dos
vaga-lumes” (HUBERMAN, 2013, p. 11) e afirma que esta “não metaforiza nada mais
do que a humanidade reduzida a sua mais simples potência de nos acenar na noite”
(HUBERMAN, 2013, p. 30). Há portanto um “eu vi” (“Depois escondeu-se e vi [...] a
solidão como o instante presente” BDMT, p. 73;), modalidade de visão dada pelos
sentidos e que “atravessa simplesmente a longa história das tentativas práticas e teóricas
para dar forma ao paradoxo que a constitui” (HUBERMAN, 2013, p. 34). E Didi-
Huberman explica:
Ou seja, essa modalidade tem uma história, mas uma história sempre
anacrônica, sempre a “contrapelo”, para falar com Walter Benjamin. Já se
tratava disso na Idade Média, por exemplo, quando os teólogos sentiram a
necessidade de distinguir do conceito de imagem (imago) o de vestigium: o
vestígio, o traço, a ruína. Eles tentavam assim explicar que o que é visível
diante de nós, em torno de nós – a natureza, os corpos – só deveria ser visto
como portando o traço de uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança
a Deus perdida no pecado (HUBERMAN, 2013, p. 35).
Assim, “coisas a ver de longe e a tocar de perto, coisas que se quer ou não se
pode acariciar. Obstáculos, mas também coisas de onde sair e onde reentrar. Ou seja,
volumes dotados de vazios” (Idem). Com Llansol se lê: “Eu aproximo-me deles, estou a
subir por eles, e escrevo, no vazio deixado pelo espaço que os separa ‘o vazio do
beijo’”25
. E continua, em jogo linguístico atravessado pela experimentação criada
através do cruzamento tempo-espacial entre o macro e microcosmo: “Eu não existo
ainda mas, de um olhar trocado entre ambos, corro para o interior desse lenço, de que
conheço a cambraia dos sentimentos” (BDMT, p. 53). Ausência, portanto, que ‘“dá
conteúdo ao objeto’ ao mesmo tempo que constitui o próprio sujeito” (HUBERMAN,
2013, p. 96), num jogo à “dupla distância”, “distância como choque, como capacidade
de nos atingir, de nos tocar” (Ibidem, p.159). Movimento tátil que começa e termina no
25
Espaçamento conforme o texto-base.
42
vazio, em “eterno retorno”, por uma “temporização dialética em que a distância podia
ser deduzida de uma relação do desejo com a memória – como duas modalidades
conjuntas de um poder da ausência e da perda” (Ibidem, p.164). Por ambiguidade, a
imagem tanto produz o “efeito de recognoscibilidade”, no choque com o seu passado,
quanto se faz “ilegível e inexprimível enquanto não se confrontar com seu próprio
destino, sob a figura de uma outra modalidade histórica que a colocará como diferença”
(Ibidem, p.183).
No terceiro capítulo, “A chave de ler”, ocorre a mímese da relação de
aprendizagem entre Ana e Myriam através de representação cinematográfica: “Le festin
de Babette” e assiste-se a “pequenas histórias na grande história. Histórias de corpos e
de desejos” (HUBERMAN, 2011, p.17) e a exposição do seu projeto de escrita:
Numa história, há (ou não há) um momento de desvendamento a que se
chama sublime. Normalmente breve. Como penso que um leitor treinado já
conhece todos os enredos, quase só esse momento interessa à escrita.
Esse momento, tornado longa sequência sustentadora da vibração explícita, é
o nome de escrita. É a face escondida – mas que me importa desvendar - , das
técnicas narrativas já tradicionais (BDMT, p.48).
E Témia, aqui, enquanto “elo da escrita e da leitura – , está sobre a mesa em
forma de estátua” (BDMT, p 49), na dinâmica entre saber e sabor; conhecimento
sinestésico a passar pela boca e assim, “mastigar a luz” (BDMT, p 15). Órgão, segundo
Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em Dicionário de Símbolos, que indica uma
“abertura por onde passam o sopro, a palavra e o alimento; a boca é o símbolo da força
criadora e [...] da insuflação da alma. Órgão da palavra (verbum, logos) e do sopro
(spiritus)”, que tanto constrói como destrói: “a boca derruba tão depressa quanto edifica
seus castelos de palavras. É mediação entre a situação em que se encontra um ser e o
mundo inferior ou superior aos quais ele pode arrastar”. Aproximada ao “fogo” e ao
“ovo primordial”, “ela é o ponto de partida ou de convergência de duas direções.” De
43
duplo aspecto, a boca “simboliza a origem das oposições, dos contrários e das
ambiguidades” (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain, 2009, p. 13). Em A
imagem sobrevivente, Didi-Huberman diz que, na Grécia antiga, o “ethos apolíneo” (a
lucidez de Apolo) e o “páthos dionisíaco” (a embriaguez das paixões de Dioniso)
expandem-se mutuamente, “quase como o galho duplo do mesmo tronco enraizado na
misteriosa profundeza da terra nutriz grega.” Acrescenta-se: “O Quattrocento sabia
apreciar essa dupla riqueza da Antiguidade pagã” (HUBERMAN, 2013, p.134). E, ao
contar o filme Le festin de Babette, Llansol inicia retomando as figuras de duas
beguinas: figuras do “misticismo renano”. Conta-nos José Augusto Mourão, em Europa
em sobreimpressão – Llansol e as dobras da história, que “as beguinas são as melhores
representantes de um misticismo amoroso, mais afectivo que especulativo, sem que tal
permita fazer a divisão sexista de, por um lado, um misticismo sensual e, do outro, um
misticismo intelectual” (MOURÃO, 2011, p. 33).
Os três últimos capítulos (“Um companheiro filosófico”, “O globo de contar” e
“As cópias da noite”) se referem ao processo de aprendizagem em si, com perguntas e
tentativas de respostas, através de uma construção por desconstrução, em retorno à
busca de sua essência: “Eu não existo ainda. Sou uma semente no homem amante”
(BDMT, p. 53). E por entre as casas erguidas (a da palavra e da sua história) a luz
brilhante, tal qual a dos vagalumes, vem em luz menor, por uma literatura menor: “vejo
uma ponta de bordado no pequeníssimo pano verde de um lenço” (BDMT, p.52); pois
“haveria uma luz menor possuindo os mesmos aspectos filosóficos”. E Huberman cita
Gilles Deleuze e Félix Guattari: “‘um forte coeficiente de desterritorialização’; ‘tudo ali
é político’; ‘tudo adquire um valor coletivo’, de modo que tudo ali fala do povo e das
‘condições revolucionárias’ imanentes à sua própria marginalização” (HUBERMAN,
2011, p.52).
44
E assim, na escrita llansoliana “o pensamento caminha para dentro de si”
(BDMT, p. 103), por um discurso que “não nasce nunca. Sempre recomeça”
(HUBERMAN, 2013, p. 13). Sua escrita reconhece os fantasmas do passado, no seu
registro da perda, traçado por um caminho de uma des-possessão: “Outros objectos
presentes à existência da beleza poderão ainda deixar-me no seu lugar vazio, e partir”
(BDMT, p. 43). No vazio que é potência criadora, porque da “Nuvem Pairando”
fraturada de luz fez-se “uma fenda e avançou para o mar” (BDMT, p. 23). Mar que,
sobretudo, é manancial sobre o qual se deitam substratos de um “eu” que se constitui ao
longo e através de uma experiência de ler/escrever. Mar, esse, de uma casa portuguesa,
de uma cultura portuguesa, de uma geografia portuguesa – mar, esse, simplesmente,
português. Daí que se leia: “E _______é o cheiro do mar que me conduz ao mar”
(BDMT, p. 96):
Fazia frio em casa; o meu espírito pegou em Témia e saímos os três para luz
que envolvia toda a orla marítima numa dupla extensão de mar aéreo; ouço o
bramir das ondas nas faixas dessa luz,
e compreendo perfeitamente que a história dos homens acabou aqui.
Incluindo todas as pequenas histórias que eu estava ainda a contar.
Dei comigo a murmurar para Témia: “Não queiras um pai melhor do que o
meu; certos pecados são um privilégio sobre esta terra (BDMT, p. 96).
E, no tempo, viu-se o “irmão pendurado, palavra indizível” (BDMT, p. 23); mas
foi no próprio tempo que se compreendeu que “o indizível é feito de mim mesma, Gabi,
agarrada ao silêncio que elas representam” (BDMT, p. 113). Assim, “pensar o tempo
significa, portanto, a obrigação de pensar na linguagem que o diz e que ‘nele’ se diz”
(GAGNEBIN, 1997, p.73). Do tempo, Didi-Huberman, em A Imagem sobrevivente,
fala:
O tempo não faz apenas escoar: ele trabalha. Constrói-se e desmorona,
desagrega-se e se metamorfoseia. Desliza, cai e renasce. Enterra-se e
ressurge. Decompõe-se, recompõe-se: em outro lugar ou de outra maneira,
em tensões ou em latências, em polaridades ou ambivalências, em tempos
musicais ou em contratempos (HUBERMAN, 2013, p. 280).
45
Com uma trama de “presente sensorial e memória simbólica” (HUBERMAN,
2013, p. 347), Llansol diz que “o tempo é, visualmente, descolorido, e passa de uma
maneira apagada e branca, mesmo quando cobre ‘cenas fulgor’”. E pergunta(-se): “—
Como se passa de uma vida humana a um livro que se leia por entre nós?” (BDMT,
p.26). E ela, talvez, assim responda: na aceitação “sem ver”, pelo “esforço ininterrupto
de ler. Ler, lendo, antes de ler, a ler, depois de ler, lembrando que estava a ler,
lembrando a leitura, lembrando o pequeno tapete, ou quadro, em que pousamos os pés.”
Ou simplesmente: “leio, ela lê” (BDMT, p. 117) com o “medo, um quarto de palavra, e
a descida a esta morada” (BDMT, p. 26).
[Casa dos avós paternos de Maria Gabriela Llansol – Imagem cedida pelo Espaço Llansol]
46
CAPÍTULO II
“UMA LINHA QUE ME ATA AO SOL”
47
(Tenho sempre diante dos olhos a imitação da luz com que nasci. A luz é o princípio da palavra,
mesmo se for primeiro grito, ou vagido)
Maria Gabriela Llansol
48
2. “UMA LINHA QUE ME ATA AO SOL”
2.1. Luz Incomum
“O princípio da luz é uma arca; [...] Eu fui o primeiro que
afirmei que sou iluminado por ti”.
Llansol, Amar um cão
Em Amar um cão, Maria Gabriela Llansol, em um diálogo a partir de Jade, o
cão “que acabara de nascer” (AC, p. 8), inicia o curto; porém, intenso, texto ressaltando
a brevidade do tempo dado por um espaço de intermédio e de seres híbridos:
_______houve uma breve hesitação da parte de quem transportava o
recém-nascido _______ o meu cão Jade, há muito tempo; muito, e com
grande intensidade, aconteceu durante esse tempo breve em que Jade foi
deixado suspenso sobre um medronheiro, sem mãe visível, num berço nem
celeste,
nem terrestre. No lugar que toda planta acolhe, e que o entregara ao
medronheiro,
sentia sobre si uma incidência animal alada,
que nem era verdadeiramente pássaro,
nem verdadeiramente quadrúpede (AC, p.8).
Importante observar que, com Jade, Llansol afirma existir uma linguagem para
além da palavra onde “só mais tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca”
(AC, p. 8). Porque “pesa a palavra” e há o desejo “de que ela fique muda” (AC, p. 11).
Assim, no esvaziamento da linguagem, surge o novo, de uma nova e ressignificada
imagem. Percebe-se que a aprendizagem e a memória trazida se constituem “através do
outro, e em face do outro” e por onde, sob o olhar, “um ser sendo forja a sua
identidade.”
Na dicotomia que há entre o diverso, Llansol lança a possibilidade de uma
“aliança”, através da “grandeza luminosa” (AC, p. 13) de se estar com o outro, de tal
49
forma que “o princípio da luz é uma arca”, onde, em silêncio, diz: “sou iluminado por
ti” (AC, p. 17).
Neste capítulo, busca-se evidenciar a procura llansoliana por um lugar outro,
fora da luz comum, daquela que ilumina marido e mulher, pais e filhos: “procuro outro
lugar à mesa, o lugar ao lado do outro que me estimule e cause medo [...]26
” (AC, p. 18).
Esse espaço único se constitui “no intervalo do afecto”, “entre perigos e prazeres” (AC,
p. 19), pela ação de leitura e escrita mediada pelo ato aprendiz em constante
movimento; “movimento [que] é a passagem obrigatória para a pupila” (AC, p. 15),
pois dela vem a memória: “a memória vê primeiro o porto de nascer” (AC, p. 9).
Assim, ler e escrever são atividades de uma “alma crescendo”, que tanto parte
quanto obedece, indo por um “caminho seu” (AC, p. 26), pois não há como “ser bom
ser se não estiver na perpendicular do ceptro” (AC, p. 15), na reflexão que permite
“pensar a palavra” (AC, p. 11) e fazê-la desaparecer, em ressignificação, pelas “práticas
do silêncio” (AC, p. 16) e da decepação da memória; pois estar na “perpendicular do
ceptro”, com Llansol, é estar, sobretudo, em equilíbrio; no ponto equalizante e voraz de
uma cena fulgor.
26
Medo, aqui, é o que recai sobre o vazio. Vazio, esse, que estimula e “cria a ficção” (SEIXO, 1986, p.
29). A ideia do “medo” dita, no prefácio ao Livro das Comunidades (Afrontamento, 1977; Relógio
D´Água, 1999) – “A primeira chama-se vazio provocado, a segunda é o dito o vazio continuado, e a
terceira é também chamada o vazio vislumbrado” – é trazida por Maria Alzira Seixo em, A palavra do
Romance (1986) ao pensar sobre a “tipologia do discurso ficcional” através da obra de Maria Gabriela
Llansol a partir do pressuposto llansoliano “Quem há que suporte o vazio? Talvez ninguém, nem Livro”.
Isso porque, segundo a autora, Llansol “é o caso mais revelador de um processo de mutação na
novelística portuguesa contemporânea, perigosamente oscilante sobre esse vazio onde se joga e se não
suporta como livro, que para mais o é de Comunidades, referência aberta à solidão comum. Fortemente
radicado na cultura tradicional de uma religiosidade que se afirma pela heresia, pelo heroísmo e pela
criação literária” (SEIXO, 1986, p. 29). Eis o que diz Maria Alzira Seixo: “No prefácio ao Livro das
Comunidades, de Maria Gabriela Llansol, diz-se que há três formas de vazio, e que são essas as coisas
que metem medo: a primeira é a mutação, o processo de alteração humana de que, diz, se ocupa o seu
livro; a segunda é o Tempo quando o Poder o domina sob a forma do que então se chamará a Tradição, de
que o seu livro também se ocupa, não seguindo em todo o caso a Trama da Existência, que a tradição
organiza, mas a Restante Vida que, ao escapar-lhe, a pode contar; a terceira, finalmente, é ‘um corp ‘a’
screver’, o vazio vislumbrado, onde se jogam os cometimentos da memória e da sua perda, onde existir se
articula com o cenário que lhe cabe e que aqui se chama Paisagem. Suportar o vazio, isto é, prolongá-lo
na sua duração permitida, é tido como acção impraticável de vida ou de escrita. Assim se cria a ficção,
modo de inventar suportes inexistentes, relações de tempo inverosímeis, sentidos de carga impraticável;
ou tudo isso possível, de efectividade assumidamente concreta, mas falível como corpo material que só a
escrita produzida diz, vislumbrando a sua vacilação” (SEIXO, 1986, p. 28-29).
50
Jade também é a representação do leitor. Daquele que aprende a ler a partir da
fala de quem escreve; a quem o autor alimenta pela “lei do hábito de servir” e não pela
ordem capitalista, mercantil – mas, cultural; e com quem cria afeto pelo elo construtivo
da interrogação e da busca do lugar enigmático da “luz clara”. A esta “relação de alma
crescendo, [...] nesta ordem de ler, ler é nunca chegar ao fim de um livro [...]” (AC, p.
20). Porque “o seu existe para si”, “seguindo o itinerário da geografia do seu corpo”
(AC, p. 26) e eis que no centro da cena fulgor, não há morte – pois “o teu cão vive,
nela” (AC, p. 27), em imagem, pelo afeto, na voz presente; vivacidade porquanto seja
intensa a permanência da imagem na memória.
Esses são os contornos que percorrem as vinte e três páginas do livro Amar um
Cão, escritas em Azenhas do Mar nos finais de agosto de 1990. Pela edição de 2007,
publicada pela Assírio & Alvim, Amar um cão traz a ilustração de Augusto Joaquim
referente à sua leitura da obra llansoliana e uma adenda textual explicativa da origem
das imagens. Ilustração e texto em comunhão imagética vinda pela comunhão
matrimonial e sinestésica dos autores amantes, especialmente, do ato de criar figuras. E,
assim, o livro dessa edição intitula-se: Desenhos a lápis com fala – Amar um cão; E, na
parte final, há escrito “o tempo na ponta do lápis” – posfácio de João Barrento, unindo
as interrogações às quais as vozes se propõem a cantar: “Nasce-se como? Morre-se
como?” E mais: “Como se age entre estes dois pontos, que relações se tecem entre os
seres, homens ou cães? Como se chega, nesse percurso, a receber o ‘dom poético’ e a
praticar a ‘liberdade de consciência’?” E o autor-ensaísta aponta: “a resposta, que é a de
todo o texto de Llansol, está num dos desenhos: ‘Ficámos no tempo? Sim, ficamos.’
Para viver o Ser no Tempo de forma plena e múltipla.” (BARRENTO, 2010, p. 92).
51
52
Tempo, este, que se volta para o Aberto do infinito27
. Porque, aqui, a morte não
tem lugar já que o texto, em revisitação, a transmuta de lugar e de forma, em direção ao
espaço sempre nascente. É, assim, no aberto do tempo que se dá a expressão do
incognoscível porquanto ainda seja sua materialidade sensível inominável na
linearidade e orientação do código verbal; mostrando-se, apenas, evidenciada quando
sentida e partilhada em e por elos de afeto. Afeto, portanto, que tanto é base quanto
travessia; lugar de passagem, em suma. Lugar que é corpo sinestésico do silêncio: “O
tempo não nos está contado na língua, mas no corpo” (ATJ, 117). Em maio de 1999,
diz Llansol, em um dos seus cadernos ainda a ser publicado que “o silêncio é uma
pedra, um estilete”; “um acto sem sentido de comunicação”:
Data: 09/5/99 – domingo
Nenhum drama me afasta do silêncio que só é poético para quem
não ousa quebrar o silêncio. O silêncio é uma pedra, o estilete que nele
inscreve
________
um acto sem sentido
de comunicação (Espólio de Maria Gabriela Llansol, Caderno 1.54, p.89).
E o que é Jade senão também a nomeação de uma pedra? É pedra e cor. Em
Grafia 1, Fiama Hasse Pais Brandão escreve “a sílaba é uma pedra álgida / sobre o
equilíbrio dos olhos [...] onde as mãos derrubam arestas / a palavra principia”
(BRANDÃO, 2010, p. 34). Em Llansol, Jade é um princípio material e textual, que
caminhando em direção ao aberto entre o Vivo, vem da memória sua imagem primeira:
“[...] caminho através da murta, do aderno, da aroeira, e avistei esta serra em que a
27
A ideia do “Aberto”reside enquanto espaço múltiplo de possibilidade; um “lugar futurante” (Cf.
BARRENTO, 2009, p. 148); ou ainda como afirma Agamben , em A comunidade que vem, no lugar
amplo onde algo é “continuamente gerado” (AGAMBEN, 2013, p. 35); ou, simplesmente, como diz Raul
Antelo na orelha do livro ao definir “Che viene”: “Algo que está sempre chegando”.
53
memória vê primeiro o porto de nascer; mal nasci, situei-me, em vida interior, em face
do mar”; e opõe-se à sua dona em duelo afetuoso de escolha, desejo e rebeldia: “ergo
para a minha dona os meus olhos frágeis, opondo-me a uma adversária que, de certeza,
me ama: faço-lhe pedidos / luta comigo; dá-me a sensação de ter saído vencido, mas
com rebeldia”(AA, p. 9). Assim, Jade como “a palavra” são princípios fundadores do
Novo, da experienciação aberta sobre o tempo e no duelo travado pelo corpo que age,
por onde “as mãos derrubam arestas” e onde a pedra-Jade é também “estilete”.
Percurso, assim, de corte e de busca em que Jade explica: “________ porque o
movimento ________ é a passagem obrigatória para a pupila. Vou daqui ________
porque este é o ponto onde os meus olhos se formaram”; eis que nesse encontro
textual,“sobre o equilíbrio dos olhos”, está “a perpendicular do ceptro”: “não estou
sujeito ao poder da minha dona por temor; não posso ser bom ser se não estiver na
perpendicular do ceptro” (AA, p. 15). E aqui, ao modo de “Grafia 1”, lê-se um jogo
tensional marcado pela presença da condicional “se” na reiteração do campo sinestésico
trazido pela fruição dos corpos linguísticos em movimentos de réplica. E desta certeza
sensorial, diz Maria Gabriela Llansol no avulso acima: “Tenho sempre diante dos olhos
a imitação da luz com que nasci. A luz é o princípio da palavra, mesmo se for primeiro
grito, ou vagido”.
54
(Tudo depende do lugar do olhar)
Maria Etelvina Santos, ao pensar sobre a questão da “luz comum” em Maria
Gabriela Llansol, faz um paralelo entre o quadro de Georges de La Tour, intitulado “A
Educação da Virgem”, de 1640; e a “figura de leitura” banhada em luz que Llansol dá a
ver em seus livros, pois como diz Etelvina: “Esta ‘cena fulgor’ cheia de luz e fora da
‘luz comum’ pode dar a ver toda uma teoria da leitura, também presente em linhas de
Um Beijo Dado Mais Tarde, e cita: “e que leia [Myriam] como se fecha o livro / com a
luz na mão / e sem chegar a um fim”.
55
[Educação da Virgem, Óleo sobre tela por Georges de La Tour – 1640]
Eis a possível teoria:
Se o quadro obedecesse ao princípio da “luz comum”,
provavelmente Ana teria nas mãos a vela, e Myriam seguraria o livro –
assim, Ana iluminaria o objecto que Myriam pretende ler; Ana, a que dá a
ler, teria o rosto mais iluminado, e Myriam teria mais perto dos olhos o seu
objecto de leitura. Mas, desse modo, a luz não incidiria fortemente no rosto
de Myriam, a que aprende a ler. E é esse o “lugar da luz”, neste quadro – o
rosto de Myriam (a legente), a figura ímpar nesta cena. Do seu rosto, a luz
prolonga-se até ao livro; mas, para que possa incidir sobre ele, a chama da
vela quase queima a mão de Myriam (como se a mão fosse posta “a arder”
por ele). Literalmente, só os olhos de Myriam e o pequeno dedo da sua mão
esquerda mostram o objecto de leitura. Quanto aos olhos de Ana, parecem
perder-se no ventre de Myriam – o lugar da “anunciação”.
Se traçarmos uma linha que ligue os olhos de Myriam ao dedo
mínimo da sua mão esquerda e, a partir dessa linha, uma outra que se dirija
aos olhos de Ana, veremos surgir, dessa intersecção, um ângulo que é o
espaço-lugar onde dialogam os “elementos de leitura” que figuram no
quadro: a mão direita de Myriam – “mão-chama de vela” a arder – sobre o
livro, nos joelhos de Ana (e, ainda, um “objecto inocente” perdido, ao
fundo). Estas possíveis linhas de construção interna transportam o legente
deste quadro para o lugar de um livro iluminado e da mão que, por ele, foi
posta “a arder” (SANTOS, 2007, p. 34).
56
E Amar um cão é esse lugar “a arder”, em combustão imanente das palavras que
vêm à boca em jogo e em voo. Lugar em que a mão traz o “desassossego e o dilúvio” e
faz quebrar “a palavra obediente” em pedaços: “um, para partir ainda; outro, para partir
de novo, e o terceiro para fazer desaparecer no puro espírito, donde resultou
obedescente” (AC, p. 15). Em “partir e obedecer”, através do jogo “obedescente e
obediente” da voz, há o que Llansol vem nomear de “os perigos do poço e os prazeres
do jogo”(AC, p. 14, grifos do texto), estabelecendo que o risco do poço é que se dá em
abismo; no abismo de se estar situado no “ponto voraz” do limite, no movimento em
que o “eu” se põe em circulação por entre as margens do interior e do exterior; no elo
sobrevivente travado entre vontade e normatividade; perigo, este, o do poço trazido pelo
gozo do “prazer do jogo”. Abismar-se em si é mergulhar dentro da própria interioridade
ao qual o eu se estrutura, mas por vontade e desejo sob “a luz do luar libidinal”. E o
Poder exercido sob os corpos, é uma força de afeto, não absoluta porque fragmentada; e
não singular porque nele existe “o encontro inesperado do diverso”28
. Poder, que sendo
uma força múltipla e não hierárquica, se dá pela força de atração de um “ardente texto”,
orientado pelo elo de grandeza luminosa feita, em Amar um cão, por uma Aliança com
o Sol no espaço Aberto do Tempo. Importa lembrar que Jade é um princípio de luz em
seu duplo nascimento: no cão que é ser de vida no corpo pedra-física-Jade, e no vivo em
real não-existente, vindo à lume pelo corpo-textual de leitura e escrita. Singularidade
sobreposta por uma duplicidade, que iluminada por uma chama de liberdade, volta-se
para o interior da casa para com ela evoluir e crescer:
O princípio da luz é uma arca; descobre, Jade, como sobre este jardim se
correspondem, em miniaturas de fogo ao sol, grandes distâncias. ‘Eu fui o
primeiro que afirmei que sou iluminado por ti’. É quase meio-dia, e levanto-
me da minha pedra com Jade nos calcanhares porque, como era natural, o sol
venceu-nos; é visível que há no sol muitos invisíveis, nossos adversários, e
que esse leal combate corpo a corpo é o princípio contrário à luz comum, da
nossa aliança (AC, p.17-18).
28
Referência ao subtítulo de Lisboaleipzig1 – o encontro inesperado do diverso (1993).
57
E o “princípio contrário à luz comum” é o da “fraternidade do ímpar”, como
afirma Maria Etelvina Santos: “esse texto dá a ver o lugar e o tempo da fraternidade do
ímpar – um lugar entre e um tempo em devir”; pois o mundo sob o qual se coloca em
diálogo é o mundo da união “dos ímpares, dos híbridos, dos fulgorizáveis, onde escrita,
plantas, animais e letras (trelas de partir) coabitam”, através do deslocamento do olhar,
“habituado à ‘luz comum’ e a ‘lei do hábito de servir’”. E acrescenta que “o drama – a
luta voluntária – a que são chamados é o da mútua não-anulação” (SANTOS, 2007, p.
20). Daí, não existir violência; eis a mansidão pela liberdade do “ser sendo”: “Jade, o
manso, cortou os ares [...]” (AA, p. 14).
(la loyauté envers l´espèce / l´adoration du destin / je suis pris par l´esprit dans l´esprit et je ne connais
pas la liberté d´aller n´importe où, ni n´importe comment: Il me prend dans ses bras et me modèle avec
ses mains. Il ne dira probablement jamais ce qu´il veut que je devienne.)
58
Dada a imagem de Augusto Joaquim, é possível inferir em um eu-partícula, que,
ao circular pelo campo magnético, caminha por um fluxo sem saber da direção e nem do
sentido, indo do mais ao menos, do positivo ao negativo; por um fluido onde não se
sabe a origem e nem o final, pois o seu “eu-espírito” está ali aprisionado pelos braços
que o cercam. Contudo, junto ao movimento que comprime, dá-se a forma com as
mãos. Pelo movimento silencioso do toque sinestésico das mãos, o “eu-espírito”, ao ser
tolhido, é também modelado. Nasce-se, assim, pelo trabalho das mãos, órgão-ol[h]eiro
da vida. Forma que não se finda, pois o desvelo buscado se dá em eterna procura: é
enigma verbal, pelo cantar, aqui da “letra” e da “trela do cão”. Junção do diverso que
não funde, mas t[r]oca-se em veste energética de partícula, por processos de mutação,
indo ao Aberto do tempo. Por isso, a advertência final: “Il ne dira probablement jamais
ce qu´il veut que devienne.” É o que diz Maria Gabriela Llansol em um avulso, de 08 de
dezembro de 1980 ao mencionar a transitoriedade sobre o qual o “eu” está inserido
através do vocábulo “viagem”, o espaço de aproximação em que esse “eu” se põe diante
a um referido lugar-espaço em referência ao campo associativo, que aqui, é expresso
pelo dado geográfico “próximo a Bruxelas”, o particular diante do coletivo ao afirmar
“para mim”; “a meus olhos” e à decisão de escrita que, da luz comum, deseja “alargar
um pouco o espaço” – um buscar, assim, da luz incomum:
8 de Dezembro de 1980
durante a viagem, já próximo de Bruxelas
Quando as árvores se tornaram para mim descrições de frases, foi
o efeito da neve de que estavam carregadas e que, a meus olhos, as
tornava duplamente árvores. Árvores de pensamento, como as árvores
genealógicas, não árvores de contentamento.
A neve que não cai sobre as árvores, nasce delas; não vi cair a
neve hoje.
59
Anterrosto de Um Quarto Que Seja Seu (Ed. Vega, 1978)
E acrescenta Llansol:
Decidimos, o Augusto e eu, tornar os quartos do primeiro andar,
os que estão voltados à luz directa do sol, quartos de escrita. Basta abrir
um rectângulo na parede de madeira e alargar um pouco o espaço.
Dado que a janela do meu quarto é pequena, precisava de poder
receber a reflexão pelas duas janelas. (Guarda e página de anterrosto de Um
Quarto que Seja Seu, Exemplar da biblioteca de M. G. Llansol)
É, desse modo, que Llansol se encontra “no novo” (L1, p. 84), no espaço
intervalar de uma passagem, posto que o “combate” e o “risco”29
– diante do qual o
“eu”se coloca frente ao aspecto de permanente mutação e que vêm nortear toda a sua
obra – giram em torno de uma perspectiva de “nascividade” por uma escolha decisória
de “uma modalidade nascente”, centrada em “um ser que não é em tal ou tal modo de
ser, mas um ser que é o seu modo de ser e, portanto, mesmo permanecendo singular e
não indiferente, é múltiplo e vale para todos”. Isto é o que afirma Giorgio Agamben, em
A comunidade que vem, ao dizer que “somente a ideia dessa modalidade nascente, desse
maneirismo original do ser, permite encontrar um caminho comum entre a ontologia e a
ética”; ou ainda: “Um tal ser que é continuamente gerado a partir da sua própria
29
Esses conceitos de “combate” e “risco” serão abordados ao longo dos demais capítulos.
60
maneira”. E cita sobre a ética: “ética é a maneira que não nos ocorre nem nos funda,
mas nos gera. E esse ser gerado pela própria maneira é a única felicidade
verdadeiramente possível para os homens” (AGAMBEN, 2013, p. 34-35).
Voltado “à luz directa do sol”, e em “Aliança”, Amar um cão segue, assim,
numa travessia da vida à morte e da morte que não se evidencia à vida que prossegue
em escrita. Travessia dada por um duplo nascimento, material e imaterial, que, em
coexistência temporal, dois corpos simultaneamente vem a lume, através da
instabilidade da aposta no desconhecido e da hesitação que sugere toda a expectativa da
espera. Jade vem antes em pensamento trazida pela mão da criança. E com ela deseja
aprender, por meio de uma linguagem outra – que tudo diz através da trela e da letra,
códigos divergentes que se esvaziam para com o silêncio ganharem afetuosamente a
significação comum; e, assim, atingirem, em comunhão e por vontade própria, a
comunicação desejada. Percurso sem fim, que segue em espiral de idas e vindas. Amar
um Cão reitera e ensina o já proposto em livros anteriores; pois, aprender é, sobretudo,
ler. E “ler é nunca chegar ao fim de um livro” (AC, p. 20-21) na textualidade
llansoliana. E se o caminho percorrido é ascese individual; a trajetória vem
compartilhada por mãos alheias; não pelo alheamento que sugere a indiferença; mas
pela essência de alteridade que no termo habita. Pluralidade de mãos que, no impessoal
que lhes acompanha, é singularidade. Desse modo, o caminho vem acompanhado pela
figura do outro, que em Amar um cão, esse outro é definido pela experiência da partilha.
Por isso, Jade nasce de “mãe desconhecida”; pois nasce-se de várias formas. Vivência
que se expande no espaço-tempo humano, encontrando no plano da escrita sua forma
configurada do Aberto. Com Llansol, nasce-se textualmente “no decurso da leitura
silenciosa de um poema” (OVDP, p. 11); nasce-se do sol: “O sol despontou
ligeiramente, e uma pequena vibração circunscrita nasceu” (Caderno 1.40, 56-57); e
61
vive-se da memória que ativa a imagem do existente, fazendo-o um vivo em realidade
não-existente: “a memória vê primeiro o porto de nascer; mal nasci, situei-me em vida
interior, em face do mar”. Nasce e ergue-se, em duelo amoroso, com quem ama: “ergo
para a minha dona os meus olhos frágeis, opondo-me a uma adversária que, de certeza,
me ama” (AC, p.9). É na antítese que se dá o crescimento e a perpetuidade; pois “a
morte é dar como verdadeiro o que é” (AC, p. 25). Daí que em Contos do Mal Errante
esteja escrito: “E a mansão infinitamente mais próxima do cântico invernal do que eu
esperava; mas um cântico invernal não é a morte, nem a imobilidade: é o deixar
espalhadas sobre a mesa todas as letras do nome de Amor” (CME, p. 218). Assim, como
nos fala Silvina Rodrigues Lopes, é na dispersão das letras espalhadas que se é possível
a renovação do amor, onde a fala llansoliana de “deixar espalhadas as letras” é um
“dispersar hipóteses”. E acrescenta: “a palavra ‘amor’ não só não tem um significado
próprio como tem por efeito a decepação de significados”; e explica: “pela sua
envolvência num fluido pregnante que aparece como ‘uma não empobrecida linguagem
universal30
’, mas simplesmente uma linguagem desconhecida que penetra as linguagens,
uma escrita secreta e indecifrável” (LOPES, 1987, p. 107). E diante do indecifrável,
“desconhece-se o amor como se desconhece a disposição que leva à escrita” (LOPES,
1987, p. 107). Ainda em Contos do Mal Errante, e de volta à ideia do “ímpar”, Eduardo
Prado Coelho escreve “O amor ímpar” sobre esse livro das Edições Rolim, de 1986.
Nele, o autor cita que “para Maria Gabriela Llansol, o amor não pode deixar de ser um
processo de conhecimento”; e explica: “Por outras palavras, o amor é a resposta a um
apelo (em Um falcão no punho: não interessa perguntar ‘quem sou eu?’, mas ‘quem me
chama?’). E diz que “esse apelo vem de uma realidade que, subitamente, se tornou
30
“Tão certos eram esses seres coloridos e múltiplos, que as formas de fazer amor jorravam de mil fontes,
gestos e palavras, olhares sobre os objectos. Uma não empobrecida linguagem universal estava escrita na
sala debaixo das patas do monstro” (RV, p. 59).
62
integralmente igual ao pensamento (isto é, matéria figural a trabalhar) e vive em si
mesma como uma inextinguível forma de atracção: é um pensamento com movimento
próprio” (COELHO, 2012, p. 437) Pensamento que é vida, em Amar um cão; onde nela
se desnuda e se substancia em outra imagem: “Eu apago-me no cão que desejo, e vejo-o
mais longe, ao fundo do Coreto, dirigindo-se para mim mesma, com o seu andar de
levantar nuvens, e conhecer-me” (AC, p. 11) – estrutura coordenada e coexistente em
que a esfera temporal se alonga e se amplia por entre o espaço referido. Cão-
pensamento ou “cão do futuro”, sobre quem Llansol diz em texto:
Lanço, de facto, a imagem de um cão para o meio das outras crianças.
Reparam nele porque não pode estar no parque infantil, mas não o veem
como cão. Esta surpresa é um obstáculo a que o meu eu mais interior se
dissipe, e perca a consciência de ir buscar-me a outro lugar. Há um grande
abalo sob aquele solo onde as outras crianças brincam, projectadas no meu
pensamento, onde o cão do futuro é o meu verdadeiro interlocutor. Uma
sensação envolvente de ter encontrado o meu amigo no seu universo, marca o
meu riso de lugares obscuros e luminosos, sempre constantes (AC, p. 12).
Ainda por Eduardo Prado Coelho, em O texto equidistante, cujo mote é uma
reflexão sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol, o autor, com base em Um falcão no
punho, fala que “o lugar e o tempo do presente se deslocam através do lugar e o tempo
do passado, e o que irrompe deste correr de cenários transparentes é uma outra emoção,
a emoção que emerge do próprio esforço de a pensarmos” (COELHO, 2012, p. 427). E
por essa superfície instável, de nada ser permanente, é que reside o texto ardente,
erotizado, pela tensão dos corpos em fruição – texto de sedução, como diz Llansol.
Segundo Angelloz, a simbologia que reside no termo “Livro Ardente”, das Elegias, é a
de ser “revelação”. De forma análoga, pela textualidade de Llansol, o corpo-livro-
ardente é, portanto, um corpo de revelação – um palimpsesto enigmático, onde todo o
63
desejo reside em busca e em descoberta, velado pela luz que lhe acompanha. Sobre a
ideia de luz e revelação, diz Agamben:
Ideia da luz
Acendo a luz num quarto escuro; é um facto que o quarto iluminado já não é
o quarto escuro, que perdi para sempre. E no entanto: não será ainda o
mesmo quarto? Não será o quarto escuro o único conteúdo do quarto
iluminado? Aquilo que não posso ter, aquilo que, ao mesmo tempo, recua até
ao infinito e me empurra para adiante, não é mais que uma representação da
linguagem, o escuro pressupõe a luz, mas se renuncio a captar esse
pressuposto, se volto a atenção para a própria luz, se a recebo – então aquilo
que a luz me dá é o mesmo quarto, o escuro não hipotético. O único conteúdo
da revelação é a aquilo que é fechado em si, o que é velado – a luz é apenas a
chegada do escuro a si próprio. (AGAMBEN, 1999, 117)
Em Um beijo dado mais tarde, lê-se:
era o teu quarto, e o das criadas; à noite, seria o único quarto livre da
casa. Perguntas à Maria Adélia se a chama vacilante da lamparina não vai
apagar-se, deixar-te sem uma única referência visual, nem um único
fragmento dos móveis, ou objectos.
ela nunca quer que entres no calor da sua cama de ferro, ao lado da minha;
conta que uma lamparina de azeite nunca se apaga. É uma luz que realiza
sempre a função da luz – extrair objectos iluminados dos objectos apagados.
Faço com as duas mãos, o gesto de partir a luz aos bocados, e ela ri-se de
tudo o que eu digo, ou faço. Sem a luz, não se distingue o que se vê, nem o
biombo, nem o cesto da roupa suja, nem a mala, nem a cômoda, nem o copo
da lamparina. Por vezes, ela profere uma frase obscura, que tememos não
compreender (BDMT, p. 103-104)
Em Llansol, o lugar da “luz comum” cruza-se com o da luz incomum; é um estar
na luz, fora da luz, em desvio, por sobreposição; pois “o princípio da luz é uma arca”
(AC, p. 17) que tudo abarca no encontro com diverso, inclusive o que ainda não
compreende, pois “a vida não é essencialmente nem principalmente humana” diz a
64
autora em Onde Vais Drama-Poesia31
? Em Um Beijo Dado Mais Tarde, escreve: “Não
sabia que soletrar se podia também dizer ‘sombras ligeiras’. O tempo passa; trata-se de
mim e do tempo, e da minha opção de vida que me obriga a medir-me inexoravelmente
com ele” (BDMT, p. 112).
João Barrento, em Um berço de perguntas – Amar um cão(1), diz que “a relação
do amor ímpar deixa-nos à beira do abismo, do perigo do poço, d´ ‘o que ainda não sei’,
do presente – e com Jade, diz a rapariguinha, [...], ‘eu sei o que é presente32
’”. E,
citando Barthes continua: “O amor ímpar, esse é como aquele ‘estar com quem se ama e
pensar noutra coisa: e é assim que tenho os melhores pensamentos’” (BARRENTO,
2007, p. 8). A ideia do ímpar é a da ausência de completude; que não tendo par, não
sendo um par perfeito, segue em sua permanente procura: “Só eu fui à sua procura”
(AC, p. 29). Procura que é busca individual; onde a partilha com o outro se realiza como
um bem a si próprio (“para ele se refrescar”) e onde a descoberta da experiência vem
pelo encontro dado em comunidade, revelada em escrita sobreposta de Vivos (“folha de
alface”):
Foi por causa dessa nostalgia que sonhei, esta noite, que Jade tinha
deixado a casa. Só eu fui à sua procura, e um homem, que encontrei numa
aldeia, deu-me uma folha de alface para ele se refrescar; uma mulher deu-me
os seus sinais, e bati a uma parede, do lado da rua. Jade veio-me, e deitou-se,
dando à cauda, num enorme prato de leite. Felizmente, havia a trela, e trouxe-
o para o Coreto do Jardim da Estrela, para o lugar de onde havíamos partido
(AC, p. 29).
E por esse lugar que é espaço de leitura e berço de memórias, Llansol diz: “Eu
sei que, pouco a pouco, passaremos a viver noutro fundo de livro e de linguagem e
31
OVDP, p. 190. 32
(L2, p. 162).
65
teremos, então, uma inquietação mais simples”33
. E pela perspectiva de um
conhecimento conjugado por seres híbridos, acrescenta: “A árvore sabe que eu não falo,
com estes termos, nem do abandono da vida, nem do abandono da razão. Falo de vir a
parecer-me com outro, semelhante a mim”. E se há nostalgia, ela passa a ser também
atravessada pelo processo de metamorfose de leitura/escrita: “A árvore tem o mesmo
desejo nostálgico, e é essa mudança, que há-de fazer-se pela sensibilidade, a que se
chama leitura” (BDMT, p. 112), caminho pelo qual se ultrapassa “a abóboda da solidão
humana” (AC, p. 24). Talvez seja este o (um dos) sentido(s) do júbilo: a propriedade
única do impróprio. Única porque ainda que pertencendo a um todo, esse pertencimento
não pode ser representado pelo real: “o pertencimento, o ser-tal, é aqui apenas relação
com uma totalidade vazia e indeterminada” (AGAMBEN, 2013, p. 63). Ou ainda: única
porque é um exercício atravessado por uma experiência que é “semelhante a mim”34
.
Por isso, Jade deseja aprender a ler. E para essa aprendizagem, solicita ao outro a
fala ininterrupta, “partindo a trela”: “Jade, partindo a trela, pediu-me que eu lhe
33
É a noção de “paz subalterna”, de Amigo e Amiga – Curso de silêncio de 2004 a ser melhor vista em
capítulo seguinte. 34
Diz Agamben: “Qualquer é a figura da singularidade pura. A singularidade qualquer não tem
identidade, não é determinada relativamente a um conceito, mas também não é simplesmente
indeterminada; ela é, antes, determinada somente através da sua relação com a ideia, isto é, com a
totalidade das suas possibilidades. Através dessa relação, a singularidade confina, como disse Kant, com
todo o possível [...]. Isso significa que nesse confinar está em questão não um limite (Schanke), que não
conhece exterioridade, mas um limiar (Grenze), isto é, um ponto de contato com um espaço externo, que
deve permanecer vazio. Aquilo que o qualquer acrescenta à singularidade é apenas um vazio, apenas um
limiar, [...] o acontecimento de um fora. Importante aqui é que a noção de “fora”seja expressa, em muitas
línguas europeias, com uma palavra que significa “à porta” (fores é, em latim, a porta da casa, thyrathen,
em grego, quer dizer literalmente, “na soleira”, “no limiar”). O fora não é um outro espaço que jaz para
além de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – em uma palavra:
o seu rosto, o seu eidos. (AGAMBEN, 2013, p. 63-64). É nessa perspectiva de “passagem”, no lugar-
entre, que incide o trabalho de escrita llansoliano: “________ estou no meu lugar predilecto de escrever
_______ lugar do solstício de verão. É a entrada, entre a porta da rua e o lanço da escada que me revela
claramente o princípio de isolamento da casa. [...]. Uma luz quente que atravessa a greta da porta deixada
entreaberta cobre a máquina e eu sinto-me, o que tem sido raro agora, a muita distância acima do meu
ermo” (FP, p. 135). Ou ainda: “Depois começamos a desdobrar possibilidades – uma cena, outra cena,
paredes externas do embrião: Não. Os bandos não chegaram à ilha. Perderam-se. De como Pessoa
explicou o seu desencontro com Infausta. Bach não é ouvido em Leipzig. Pessoa não é consolado na
Índia. Mas o grande desejo comum é a viagem para Jerusalém. Bach: — Mais um passo, e estarás em
Jerusalém. Pessoa: — Mais um ser, e estaria em Jerusalém. Eu, fazendo minha exclamação de Pessoa:
— Eu não sei o que amanhã trará. Quem pensa, dispõe-se a um infinito de realidades para além de si
mesmo” (FP, p. 136).
66
falasse ininterruptamente para ele aprender a ler” (AC, p.14). Partir, assim, a trela é,
desse modo, dissipar e fragmentar sua própria linguagem. Esvaziamento que será
preenchido pelo ato da fala. É a aprendizagem de leitura trazida pelo jogo de oralidade e
escuta; mas não só pela boca se fala. Com Llansol, a apreensão do significado se dá
pelas diversas formas de se fazer “ouvir”, por enunciados imagéticos e visuais, pelo
toque sinestésico e pelo silêncio que completa e amplifica o espaço do dizer: “________
as actividades práticas do silêncio são o sossego de sair, a alegria de não interceptar as
vozes que me falam, e o sentimento de ter um movimento idêntico ao de Jade: também
é uma actividade prática do silêncio, a própria descrição do silêncio por meio do
silêncio” (AC, p.16).
Esvaziamento que, pela “prática do silêncio” é elo com o futuro:
Principio a recorrer às palavras que anunciam a realidade [...]. Avanço outra
palavra por entre os canteiros, na esperança, afinal, de que ela fique muda, e
eu possa brincar melhor sozinha, com o traço de união que me é próprio e me
há-de ligar, no futuro, à sua imagem – Que cão tão só, vou acompanhá-lo
comigo (AC, 11-12).
Desse modo, Jade, o cão do futuro, conhece o modo pelo qual o aprender se
estabelece,pois diz querer “aprender a ler sobre um texto” que um eu-autor se põe “a
arder” (AC, p. 1435
). E nesse percurso corre, brinca, entra no “reino” imaginário das
palavras, e segue com a criança: “Jade corre pela praia, à minha frente. Corre paralelo às
águas. [...]. Uma criança corre com ele, e partilham ambos o exercício de correr”.
Criança e cão vão juntos e correm paralelos ao fluido movente da vida – no espaço
fecundo do aberto e oxigenado pelo ar renovado e salgado do mar quando “o sopro da
35
Grifos nossos.
67
vida é a leitura” (AC, p.14) de um texto ardente36
. É tratado espiritual no convexo do
humano. É Ardente texto Joshua37
. E o texto adverte: “Só param quando o mar começa,
porque não têm membros adequados para sobrevoar o Oceano, nem poder fazer chão
sólido o que é movente e líquido”. Com Llansol, não há fusão; já que é na alteridade
que se dá a possibilidade do encontro – “o encontro inesperado do diverso”.
Criança e cão vão “à frente” de quem lê-escreve. Enquanto isso, nesse litoral,
“um homem velho curva-se para um monte de areia. Observa, e afasta-se”. Das
imagens, observa-se uma sobreposição temporal cujo presente se concentra pela figura
de quem, tendo já aprendido a ler, escreve. O passado é trazido pela figura do velho que
se “curva para o monte de areia”, movimento introspectivo que tem como direção um
conjunto de fragmentos dispostos diante de si; pois a vida se reconstitui em memória tal
como uma paisagem vinda em mosaico, em pedaços que pedem seus elos de ligação. A
criança e o cão são marcas do futuro, que “vão à frente” dos que lá estão. Com eles, se
conjuga o tempo presente de quem escreve, pela limitação imposta ao alcance do seu
olhar; e o tempo passado representado pelo “velho” – que, embora estando, logo “se
afasta”. São eles, pois, que antecedem o tempo futuro no presente e correm através das
imagens de quem escreve e se afasta. Esse é o retorno do mútuo38
em Llansol, pela
perspectiva da metamorfose que não anula a anterioridade que a antecede, mas que a
conjuga e a transforma a partir do encontro no tempo sincrônico da experiência: “ontem,
reunindo o espaço com o tempo, resultou uma criança. (BDMT, p. 70). Daí que a
memória veja “primeiro o porto de nascer” (AC, p. 9), pois ao unir os fios de
36
Escreve Maria Gabriela Llansol em um de seus caderninhos em 30 de junho de 1993: “Não há
verdadeiro pensamento na costura cultural portuguesa. Organiza-se o texto do “como se”, do como se não
houvesse outra realidade. Que fazer? Pôr no mundo crianças de nascer, e não crianças de cópia
__________” (Llansol, Caderno 1.38, pág. 7). 37
Livro publicado por M.G.L. em 1998. 38
A ideia de repetição que há implícita na perspectiva do “eterno retorno do mútuo” indica tensionar a
linguagem, na paradoxal ação de afirmar e negar. É, sobretudo, aprender a “ambiguidade” que “deriva”
no (e pelo) texto que ensina. Aprendizagem que vem em linguagem, atravessada pela voz do sujeito que
lê/escreve num espaço “entre” – o que implica a ação reescrever e reler continuamente, por “mil
combinações” (AMARAL, 2010, p. 145 - Alusão ao poema “Queixas e Resignações”).
68
pensamento, por elos de afeto, antecipa o que ainda não tem correspondente verbal, pois
será ela a dar voz o que só é trazido, primeiramente, pelo olhar silencioso de quem ainda
é aprendiz: “Jade que acabara de nascer [...] já pensava. [...]. Ele trazia nos olhos um
instrumento azul para medir o diâmetro do sol, e dos astros; lia-se neles uma linguagem
que só mais tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca” (AC, p. 8). E
“nascer” presume-se “pensar”, refletir, ler.
Segundo João Barrento “o nascimento-aparição [de Jade] é um acontecer que se
insere num espaço-tempo” dado primeiramente “como distante e indefinido (‘há muito
tempo’) – e com isso, anulado em termos de qualquer cronologia precisa – , mas ao
mesmo, no instante desse nascimento-aparição, é breve e intenso”. Desse modo, breve e
intenso, “o tempo foge ao tempo como res extensa e cita, para além do “Agora” de
Kierkegaard, de Migalhas Filosóficas, o “Presente Absoluto”, de Santo Agostinho, em
Confissões:
O que agora claramente transparece é que nem há tempos futuros e nem
pretéritos. É impróprio afirmar: os tempos são três, pretérito, presente e
futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das
coisas passadas, presente das coisas presentes, presente das coisas futuras [...]
– lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes
e esperança presente das coisas futuras (LIVRO XI, 20).
Com São João da Cruz, lê-se na epígrafe de Depois de os pregos na erva: “A
ascese da memória leva à esperança”; Em Um beijo dado mais tarde, Llansol indaga: “o
que é o tempo circunciso?” E responde: “É a nova fase da minha vida, uma espécie de
apelo retido no meu nome, que entra claramente pelos restos da minha vida de hoje”
(BDMT, p. 71-72). E a cena fulgor seguinte é a de trazer para o centro da imagem a
boneca da infância que já fora de geração outrora; e, então, decepá-la, por mudar-lhe o
69
nome; “querer lavá-la” e “tirar-lhe o verniz”, para que, mudando, o espaço possa ser
propício à alegria:
à tarde, trouxe-lhe da casa que atinge o fim dos seus dias, Juta, uma boneca
da infância da minha tia Assafora, de há quase cem anos; mudei-lhe o nome
para Miosótis e, ao querer lavá-la com algodão embebido em álcool, tirei-lhe
o verniz do peito; é nesta sequência de, lentamente, mudar objectos de lugar,
desejando que o espaço que os cerca seja, em extremo, alegre aqui, (BDMT,
p. 72)
E em Llansol, “mudar, ou desaparecer – era o pó do [meu] crescimento”
(BDMT, p. 70).
E cresce-se como quem costura, amarrando os fios pelo tecido do tempo; de
modo que “uma frase, lida destacadamente, aproximada de outra que talvez já lhe
correspondesse em silêncio, é uma alma crescendo”. Tecido que é nó temporal e
textual, sobrepostos em silêncio. Cresce-se “através do outro, e em face do outro”, no
infinito do tempo. E “sob o seu olhar, um ser sendo forja a sua identidade”. E, pelo
processo de metamorfose e pela coexistência do encontro de híbridos, proporcionada
pela neutralidade advinda do esvaziamento de cada ser, “o cão” é aquele que sendo
animal, é nomeado por um termo mineral; e, nascido de uma árvore, o medronheiro,
vem adquirir dons humanos; aprende a ler, morre e se transforma em escrita, seguindo à
geografia própria do seu itinerário, em devir. Devir que, como simultaneidade, Llansol
explica em Um falcão no punho: “Como ser civil conheço o presente, o passado, e o
futuro. Mas como escritor tenho um olhar que toca sobretudo o espaço, livre de tempo.
Nele não há poder, que é sempre o poder de escolher e de chegar à morte” (FP, p.123).
Por esse devir, nesse tornar-se outro por transubstanciação, a figura do cão – como as de
toda a textualidade llansoliana – , é também figura metonímica da literatura, pois com
Foucault sabe-se que a literatura “não é a linguagem que se identifica consigo mesma
70
até o ponto de sua incandescente manifestação”, mas um estar “fora de si mesma”, à
contraluz pela perspectiva de Novalis:
A literatura não é a linguagem que se identifica consigo mesma até o ponto
de sua incandescente manifestação, é a linguagem distanciando-se o mais
possível de si mesma, e se este colocar-se “fora de si mesma” põe em
evidência seu próprio ser, esta claridade repentina revela na distância mais do
que um sinal, uma dispersão mais do que um retorno dos signos sobre si
mesmos. (FOUCAULT, 1990, p.14).
Ou, como afirma Deleuze, a literatura enquanto “possibilidade de vida”.
[…] A literatura é uma saúde não só na medida em que arrasta a língua para
fora de seus sulcos costumeiros, mas também na medida em que está “do
lado do informe, do inacabamento”, como observa Deleuze. A literatura é
uma saúde, na medida em que não se reduz à neurose – ao “papai e mamãe”
– mas também na medida em que não se completa, em que não se precipita
ao ponto de uma psicose. A literatura é uma saúde também, e principalmente,
porque caminha em direção ao que ela é: seu desaparecimento. E, porque é
não-toda, e inacabada, a literatura é sempre porvir. Nisso reside também sua
saúde, que é também o seu delírio. Em não ser completa, em ser não-toda, em
saber que “escrever: não se pode”. Mas em insistir, sempre, em avançar em
direção à impossibilidade da escrita (DELEUZE, 1997, p. 15).
Jade, enquanto figura, acompanha os livros de Maria Gabriela Llansol desde A
Restante Vida, publicado em 1983. E Jade é, então, ser e não-ser, no sentido imaterial
do vivido; ou seja, é matéria-animal e pensamento-escrita imaterial. Conjuga consigo o
espaço atemporal do Cronos humano; é letra, palavra, memória. E neste percurso de
ascese individual, por meio da ação e vontade de ler/escrever, Jade ultrapassa o limite
físico da morte e retorna para o lugar de convívio em “espuma do texto” (AA, p.11) – já
em energia outra; pelo impulso sinestésico que há entre a letra e a trela. E, assim, segue
a “geografia do seu corpo” que, metamorfoseado por vários planos, vai em direção ao
caminho seu; onde “o seu existe para si”. Percepção dada em “cena fulgor” sobre a qual
ele próprio avança. Lugar onde a morte não existe; pois, em imagem, o cão ainda vive;
no e pelo vórtice de uma cena fulgor:
71
Depois desses dois dias de grande dor, Jade partiu de Colares seguindo o
itinerário da geografia do seu corpo. Porque ele próprio tinha verificado que
o melhor caminho era o seu. O seu existe para si. E ele encontrou-se no
centro de uma cena fulgor. Avançando com a cena fulgor, chegou a uma
povoação onde havia uma mulher que tinha o cão doente, deitado num
relvado. Às portas da morte, como se diz dos humanos.
– Espera. E vem aqui, antes que o meu cão morra.
– Vai – respondeu-lhe Esse. – Em nome da cena fulgor que me acompanha,
aqui, ou ali,
o teu cão vive, nela (AC, p.27).
Eis o modo de ressuscitação Llansoliano, em que a “cena fulgor” tanto é clímax
quanto catarse; estado de sublimação; de vibração e alegria pela possibilidade de acesso
a um lugar outro: “Entremos então na palavra como vale encantado, não entre duas
montanhas, mas entre os humanos para que possa fazer de nós vivos no meio do vivo”
(L1, p. 120).
E sobre o tempo, a autora escreve junto ao livro “A restante vida”, no original o
fragmento abaixo que não é publicado:
________ a jovem Myriam pergunta-me:
— Ana, o que é o infinito?
Só posso mostrar-lho:
— O infinito tenha piedade de mim, e reze.
Quando em Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004, escreverá em
complementação: Há que se “rezar a leitura” (AA, p.). E que se leia, enfim, “como se
fecha o livro com a luz na mão, e sem chegar ao fim” (BDMT, p. 89) – um crepúsculo
de paz39
, em hora intervalar. Esta é a sua Ca(u)sa Amante, pois o eu que lê-escreve diz:
“e eu sonho, balouçando pelo espaço as recordações de hoje /e de amanhã – meu lugar
futuro” (Caderno 1.58, pp. 126-131, em 6 de Março [2000] / segunda). E por palavras
39
“Estava o pensamento diante da vela fazendo uma observação crítica da luz; certos textos, ainda os não
concebeu, mas é como se já os tivesse imaginado; é a realização de mais um passo; um crepúsculo de paz
– sua hora preferida [...]” (BDMT, p. 88).
72
outras, (re)vê-se Amar um cão em livro-outro, de 1996, esvaindo-se em pura imagem
silenciosa de escrita:
era um vez um animal chamado escrita, que devíamos, obrigatoriamente,
encontrar no caminho; dir-se-ia, em primeiro, a matriz de todos os animais;
em segundo, a matriz de plantas e, em
terceiro,
a matriz de todos os seres existentes.
Constituído por sinais fugazes, tinha milhares de paisagens,
e uma só face,
nem viva, nem imortal. Não obstante, o seu encontro com o tempo
apaziguara a velocidade aterradora do tempo,
esvaindo a arenosa substância da sua imagem (CA, p. 160)
Na certeza de que “o tempo há-de voltar aqui, [...]; e há-de encontrar a [nossa]
mão bárbara, e a [nossa] mão amena” (BDMT, p. 27), Llansol, diz da sua “aliança com
o Sol” (AC, p. 13), ao “legar a vida” (BDMT, p. 26) sua Causa Amante, seu
Scriptural40
:
Aqui
É Tudo,
Nada
Entre Tudo e Nada.
Movimento
Gosto
E
Quando
Mais
Fim,
Causa Amante (Prefácio de CA).
40
Referência feita ao escrito inédito de M.G.L que se lê a seguir.
73
21 de Julho 2003
Scriptural é mais que escritural. Não o
sabia. Avancemos por essa vereda. A
lua, esta noite, será breve leve.
Scriptural. […]
1 Um dos primeiros dos meus afectos
é aos livros abertos,
que se suicidam em cada página,
para renascer na próxima linha______
2 Um livro é uma assembleia de
vozes,
um banquete de muitos convivas – ou
de alguns. Isto é um livro para mim.
Não talvez para os outros. Mas eu só
quero falar do ponto de vista da minha
experiência pessoal. Sem
generalizações,
Porque onde está o suposto
todo, eu, do ponto de vista da minha
experiência, suponho que está a pedra.
3 Nestes cadernos eu deponho,
escritos à primeira mão da madrugada,
a base de meus textos. É este
verdadeiramente
o impulso estruturador do
trabalho subsequente.
4 É um desses cadernos que vos dou
hoje a ler. Simples reflexo, ou reflexos
desorganizados, da sua gestação.
(Caderno 1.66, 50-52)
74
CAPÍTULO III
“UM TRAÇO PARA O SOLO FIRME”
75
“Onde vais?”
“À Memória”
“Porquê?”
“Procurar o Excerto Dessa Possibilidade.”
“Onde Vais?”
“A um encontro de amor”
“Com quem?”
“Com a Minha Condição de Vaso Quebrado.”
[...]
A imagem tinha as mãos cortadas rentes pelos punhos, de um só golpe e,
no alto da cabeça, o véu descolorido deixava à mostra uma zona circular de
madeira. Era impossível definir o seu ritmo de andar. Usava sandálias ou
ia descalça, pois a mulher via mal, por ela ter a ponta do pé direito também
cortada. A saia caía em pregas e, movendo-se, o ramo aí bordado, ou
desenhado, tomava-se um ramo coleante e andante Foi vindo da janela,
enquanto tomava banho, que lhe surgiu um impulso no seu corpo dizendo-
lhe que a imagem representava a Senhora decepada.[...] (Parasceve, p. 21)
76
3. “UM TRAÇO PARA O SOLO FIRME”
3.1. Onde vais? À memória.
Décrire, c´est voir et revoir, bien sûr, mais c´est aussi et
peut-être sourtout aller voir.
Pierre Ouellet
Interrogação e caminho: “Onde vais? À memória” (P, p. 21). Esses são os modos
de interlocução pelos quais o texto nasce e vai “à beira do rio da escrita” em percurso
memorialístico (P, p. 175). São lugares-movimentos, espaços de passagem, que
conduzem Parasceve, em “lápide e versão”41
. Se Parasceve significa o dia da morte de
Jesus e do ritual preparatório do Sábado judaico, textualmente é o nome de uma criança,
um menino, que traz consigo o ruah – “a parte mais íntima e activa do som” (P, p. 177).
Ruah que é “o sopro, a linguagem elementar” (BARRENTO, 2009, p. 242) que tudo
comunica no tempo Aberto da experiência. Parasceve, tendo como subtítulo “puzzles e
ironias”, termina de ser escrito em Sintra42
, no dia 24 de novembro de 2000; e é
publicado, em abril de 2001, pela Relógio d´Água Editores. Em maio de 1999, Maria
Gabriela Llansol escreve em um dos seus caderninhos:
O DIÁRIO DA OBRA
4 de Maio / 99 – terça
Estou no Café da Lurdes (por detrás da Estação),
depois de ter estado das 5 às 9 da manhã a beber o meu
Diário ________ para não beber imagens com inquietação e
amargura. Decidi, numa decisão súbita que irrompeu
enquanto tomava banho,
reunir aquela dispersão e montar um Diário – o Diário da
Obra. Montar – montar, o cavalo transporta. É a este
41
Todo cantar é “Lápide & Versão” (SILVEIRA, 2010, p. 145), em um estado entre o literal e o
simbólico, no ritmo da “linha descendente / ou [e] ascendente” do poeta em que o equilíbrio se dá “em
disjunção” (AMARAL, 2010, p. 134), em precipício. 42
Região serrana de Portugal onde morava Llansol à época.
77
montar e desmontar que me refiro. O texto escrito espalha-se
sobre mim, e sinto o seu bálsamo sobre as feridas que
afluem das imagens textuais sobre as outras.
Ainda bem que vivo em Sintra, onde, um dia, pressenti
que deveria chegar. É meu sítio escolhido textualmente.
Parasceve derruba-me________. Ao ir na rua, uma mulher
baixa e de meia idade pergunta-me se, em Sintra, sei onde
há uma ervanária. Queria alecrim. Em plena Serra, onde o
alecrim desponta. (Caderno 1.54, pp. 76-77)
Importa observar neste fragmento de 1999 relevos que se configurarão no
projeto-livro a ser lançado em 2001, como a decisão da escritora em não querer trazer
para si “imagens com inquietação e amargura”; a ideia-puzzle de “montar e desmontar”
dispersões para reuni-las, posteriormente, em escrita nova; ideia que é transportada por
um movimento de híbridos e apresentada em jogo linguístico do vocábulo “montar” –,
em que a ambiguidade tanto sugere o ato passivo do eu-alguém que pratica a montaria
pelo movimento ritmado do cavalgar do animal; como a ação de construir, tal um
montar de quebra-cabeças. Eis a perspectiva de construção do “Diário da Obra”, em que
a matéria figural (texto) estando “espalhada”, dispersa, no meio comum do quotidiano
encontrará em seu “eu-escrevente” o elo de reunião; onde a escrita nascente vem da e na
reciprocidade do ler e escrever por um saber oriundo de um apelo. Saber, esse, sentido
de modo sinestésico e com força balsâmica; e em sobreposição: sobre “as feridas” e
sobre “as imagens textuais” que, em dobra, afluem. Escreve-se sob um tempo-espaço
presente em que o instável é matiz do estar: “Estou no Café da Lurdes (por detrás da
Estação), depois de ter estado das 5 às 9 da manhã a beber o meu Diário”, escrevendo-se
como quem se nutre. Leitura que é escolha e decisão de escrita. Observa-se que a
compreensão das decisões só ocorre num tempo futuro, oriundas de um pressentimento
ou de uma intuição, realizadas como uma resposta a um apelo interior. E o lugar tanto é
tópica textual quanto espaço de fruição linguística: “Ainda bem que vivo em Sintra,
onde, um dia, pressenti que deveria chegar. É meu sítio escolhido textualmente”; e lugar
78
súbito da reflexão/inspiração: “Decidi, numa decisão súbita que irrompeu enquanto
tomava banho”. E se Parasceve “derruba”, no sentido hipotético do ser vencido; ergue-
se em escrita, para além do puzzle, pelo viés da ironia colhida no quotidiano da
observação: “Ao ir na rua, uma mulher baixa e de meia idade pergunta-me se, em
Sintra, sei onde há uma ervanária. Queria alecrim. Em plena Serra, onde o alecrim
desponta”.
Parasceve – puzzles e ironias, assim denominado somente na contracapa, traz
como ilustração a imagem distante de uma alta e imensa árvore, com sua vasta
folhagem a compor sua grande copa. Árvore que, em texto, é nomeada enquanto
“Grande-Maior”, um ser a princípio “muito estranho”, um “Alguém-vegetal que, num
momento extremo, salvou uma criança humana de perder o seu ruah” (P, p. 177).
Com 180 páginas, sem apoio de sumário, o texto é dividido em quatro grandes
partes em que a escrita narrativa é trazida por cenas-fulgor, com variações discursivas,
ora com predominância do discurso direto, ora com ênfase no discurso indireto e
indireto livre.
Segundo João Barrento, é a partir de Onde Vais, Drama-Poesia?(2000) e de
Parasceve (2001), que o modo de escrita llansoliano passa por “uma viragem” no que
tange à configuração da Obra de Maria Gabriela Llansol, dada a ideia do continuum que
nos livros se evidencia. O ensaísta mostra que o agora visto é “a distância que vai de um
espaço de escrita ocupado por figuras da História, com nomes próprios, a um outro, em
que as figuras passaram a ter nomes comuns” e afirma que Llansol, em Parasceve,
intensifica e renomeia “um projecto de escrita e de existência que vem já do Lugar 1 de
O Livro das Comunidades” (1977) (BARRENTO, 2009, p. 241); livro em que se lê,
sobretudo: “Quem há que suporte o Vazio? Talvez ninguém, nem o Livro” (LC, p. 10)43
43
Em diálogo ao que já foi exposto sobre a ideia do vazio, “ao que mete medo”, segundo Giorgio
Agamben e a Maria Alzira Seixo, em A palavra do romance (1986), importa ressaltar que “livro” é, para
79
Mas, especificamente, em “Lugar 1”, Llansol já traz a figura da “mulher”, única e
plural; e com ela escreve [sobre] a cena sobre a qual o seu projeto de escrita se
desencadeia e se desdobra entre a experiência do vivido e da vivência da experiência
pela condução do olhar em elo afetuoso com os punhos dos quais as mãos se
movimentam. Eis um fragmento de “Lugar 1”:
Lugar 1 –
nesse lugar havia uma mulher que não queria ter filhos de seu
ventre. Pedia aos homens que lhe trouxessem os filhos de suas mulheres para
educá-los numa grande casa de um só quarto e de uma só janela; usava um
xaile preto junto de seu rosto; tinha uma maneira distante de fazer amor:
pelos olhos e pela palavra. Também pelo tempo, pois desde os tempos de sua
bisavó, voltar a qualquer época era sempre possível. A mover-se, olhava por
vezes com fixidez um sítio o mais belo de sua casa a casa toda
porque toda a casa era bela e começava nesse olhar ora o tempo das crianças,
ora o tempo dos homens. Mulheres, não havia outra, além dela, nunca
ultrapassavam a entrada, que dava para a terra, terra de jardim onde se
podiam dar passeios (LC. p.11).
Nesse “Lugar 1”, Llansol inaugura sua comunidade amorosa e filial unida não
pela linhagem tradicional marcada pelo laço consanguíneo, mas pelo laço em nó
Llansol, uma representação do macrocosmo, sendo a sua comunidade aquela capaz de contornar esse
vazio. Daí que em A palavra imediata – livro das horas IV (2014), diga na secção 6 – “O começo de um
livro” – onde se documenta o nascimento e momentos da gênese de alguns livros. De O Livro das
Comunidades, há: “Os portugueses malditos/ O país concebido como vazio/ Proposição de uma nova
mitologia”. Em destaque, M.G.L escreve: “— tentar apanhar o ponto de referência que está aquém e além
das divergências das esquerdas e direitas, isto é, o vazio poético do poder sobre um território (ou um
território que ao dizer-se fronteira e estremadura abre o espaço, o abismo, onde do fundo, se chama o
poder e as gentes). Aquém e além da política. // — esse território não é fechado. Há um contínuo
contrabando. Somos pais de que filhos incógnitos? Somos os filhos de que pais malditos? Por isso
aparecem as figuras de Descartes, Müntzer, Eckhart, Spinosa, etc.” (LHIV, p. 134-135) Para nós, aqui,
importa ressaltar que a ideia do júbilo recai no reconhecimento do vazio, na revelação (pela linguagem)
do irreparável. Com Agamben, “o irreparável é o fato de que as coisas sejam assim como são, deste ou
daquele modo. [...] Revelação não significa revelação da sacralidade do mundo, mas apenas revelação do
seu caráter irreparavelmente profano. As duas formas do irreparável segundo Espinosa, a segurança e o
desespero (Eth, III, def. XIV-XV), são desse ponto de vista, idênticas. [...] A raiz de toda a alegria e de
toda a dor puras é que o mundo seja assim como é. [...]. O mundo do feliz e o do infeliz, o mundo do bom
e o do malvado contêm os mesmos estados de coisas, são quanto ao seu ser-assim, perfeitamente
idênticos. O justo não vive em um outro mundo. Aquele que se salvou e aquele que se perdeu têm os
mesmos membros. O corpo glorioso só pode ser o mesmo corpo mortal. O que muda não são as coisas,
mas os seus limites. É como se sobre elas estivesse agora suspenso algo como uma auréola, uma glória. O
irreparável não é uma nem uma essência nem uma existência, nem uma substância nem uma qualidade
[...]. Ele não é propriamente uma modalidade do ser, mas é o ser que já sempre se dá nas modalidades, é
as suas modalidades. Não é assim, mas o seu assim” (AGAMBEN, 2013, p. 85). E “assim significa: não
de outro modo” (idem, p. 88). Daí que “a linguagem não pode dizer, mas apenas mostrar” (idem, p. 89). E
Llansol traz à luz esse pensar através das cenas fulgor, através da exposição da relação de reciprocidade
implicada entre as imagens.
80
compartilhado da aprendizagem atravessada pela luz e espaço da casa em comum. Há
aí, a inscrição da figura gerativa e fecunda da “mulher” que tanto é única quanto plural,
no percurso em dobra que faz sobre si; movimento pelo qual se dá o ato criativo de
força entrópica, pois o que se busca é “obter uma resposta”; mas ela, a “rapariga” sabe
porque “lembra(va) que não há (existiam) precedentes”; no entanto, põe-se a “pensar,
estar com algumas crianças e os papéis, e talvez com São João da Cruz (carmelita
descalço), que encontraria em qualquer parte” (LC, p. 12). Ainda nesse Lugar “de
subida”, lê-se: “a porta fechou-se com uma ligeira deslocação de ar que agitou o xaile”.
O “xaile da mente” (AA, p. 56), certamente; assim derivado em adjetivação em Amigo e
Amiga – curso de silêncio de 2004. E a mulher com ele “escrevia para procurar o livro”;
mas a “pequena frase, uma vez encontrada, voltou a perder-se”; buscada a pergunta
“então esquecida; olharam em sentido inverso” e “a pergunta surgiu na mulher sob a
forma de um sorriso” (LC, p. 12-13), silenciosamente – em movimento sinestésico da
cópula entre olhos e palavras.
Em diálogo, Parasceve diz: “Não há portas”. “Há caminho”. Eis o júbilo que
advém do “jogo da liberdade da alma” (P, p. 76); pois ao “eu” é cabível viver em
“alternativa”. Essa é a liberdade dada pela possibilidade de escolha: ou o indivíduo se
torna ativo enquanto “ser real” ou se coloca em passividade, em submissão, objeto de
um Poder “de realeza” (LC, p. 12). Alegria que se dá pela constatação de se saber
humana e, ainda assim, saber-se capaz de tocar o diverso e o ainda não-visto pelo viés
da criação. Ou seja, compreender-se “humana” significa saber-se ser finita, falível, e
circunscrita por um corpo limítrofe fixado em um dado tempo-espaço; mas também,
enquanto um “ser-alguém”, a mulher de Parasceve sabe ser a ação a sua condição
humana. Ação que dá e origina a possibilidade da obra como criação do novo,
coincidindo o “Há” pela potência da palavra em movimento, em modo de leitura e
81
escrita motivado pela imagem vista/sentida44
. Celebração, enfim, da palavra pela
poética do olhar45
: “Com um simples olhar, eu própria deslocava o meu corpo. E o
corpo estava onde estava o meu olhar” (P, p. 11).
Olhar, esse, que condicionado às experiências vividas/sentidas/lidas é
direcionado por “restos” de uma memória individual, tornando o ler uma afirmação de
“os seus afectos intemporais”, segundo José Augusto Mourão; e “não uma maneira de
responder a um contexto”. E onde “escrever é sensualizar o invisível”; pois “abre a
linguagem caminhos que o narrativo obliterou” (MOURÃO, 2003, p. 192-193), diz o
autor citando o livro O jogo da liberdade da alma46
.
Diz Llansol: “Numa vida, há sobretudo microvidas independentes que ninguém
ouve”(P, p. 88). E cabe a Parasceve a tarefa de descobrir os caminhos desse “ouvir”.
Dessa forma, Parasceve é aberto diante do reconhecimento e da potência do invisível,
vindo em combate e em complementaridade – por “graça e generosidade”, vontade e
escolha de uma “liberdade [gozada] da alma”:
O invisível, naquela clareira, é duro e indestrutivelmente colorido.
Todo ele me deixa a sós comigo, na expectativa da metamorfose que não o
desnature, nem o anule. Pede-me um suplemento
“sê, por graça e generosidade, o meu pássaro poético traficante”
sedento de batalha (P, p. 88).
44
Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira, em “Uma narrativa em mutação recepção e produção de Causa
Amante de Maria Gabriela Llansol” propõe a seguinte interrogação: “Onde nasce a escrita de Maria
Gabriela Llansol?” E responde: “Certamente não chegaremos a um resultado palpável sobre este lugar
porque um corp ‘ a’ screver, apesar de ter um cérebro pensante, é muito mais do que “ele” sabe em razão
da filogênese que se espraia rizomaticamente não só para o passado e o futuro, mas também para todas as
direções do presente. Isto quer dizer que não há uma semente primeira onde repousa e germina a
linguagem e o pensamento, mas ao contrário, para além de um inconsciente individual ou coletivo, a
mente humana se cria e se alimenta de associações múltiplas vindas de tudo à sua volta, produzindo
registros em permanente fluxo através de encontros e capturas, apropriações e reterritorializações, como
nos ensina Deleuze” (In:http://www.gragoata.uff.br/index.php/gragoata/article/view/181, acessado em 1/12/2016). 45
“Olhar é completamente diferente de analisar e de compreender, é apanhar o que flui num instante
único, sem tempos, sem crítica, fazendo coincidir o acontecimento com o seu espetáculo. Penso que para
mim não existe tempo, vivo num único momento em que o que ficou para trás e o que ficará para adiante
se projecta” (s.d. [Lovaina, anos sessenta]; LHIV, p. 23). 46
JLA, p. 11.
82
Parasceve traz a imagem de uma mulher que tira uma página do seu dicionário –
é a primeira; porém é a 33, já que “o dicionário está rasgado e sem capa”. Contudo, o
mesmo dicionário é também um alguém-agente, pois “como um croupier dá-lhe três
palavras” – palavras que, “sobre a página”, “estão a andar, acumulam-se como num
baralho, sobrepõem-se, deslizam, e tomam banho num mar que ali apareceu” (P, p. 11).
Desta cena inicial é possível ler o modo de textualização de Maria Gabriela Llansol,
tendo em vista que o mesmo objeto funcional e utilitário (o dicionário) que traz
“palavras mortas”, pois estão sem movimento, pode assumir uma outra função – a de
agente/ “croupier” – se, assim, o “eu” desejar ver; se trouxer consigo o potencial e a
sensibilidade do olhar. Olhar que é atravessado pelo atrativo exterior e pela experiência
interior; onde o passado individual é trazido pelo viés da memória e o tempo presente se
configura em possibilidade posta em ação para a abertura do novo. Mas se, e somente
se, houver o constante movimento do “banhar-se”; que é, sobretudo, a ideia da
“decepação”, do corte, da limpeza a propiciar sempre o frescor do novo. Somente,
então, por este desvio será possível se romper com a palavra útil, pragmática e “morta”
do dicionário, se o dicionário se puser em metamorfose pelo olhar de quem vê e se esse
alguém que vê quiser e desejar. Essa é a perspectiva do leitor único47
de Maria Gabriela
Llansol, dos que comungam entre si esse olhar e esse ponto de partida em que o
caminho se dá no continuum da decepação. Daí o pensamento de Pierre Ouellet em que
descrever é “ver e rever; mas, sobretudo, um ir ver”, movimento constante de busca,
desejo e ressignificação. Com Llansol, o descrever decorre no espaço fecundo e diverso
(jardim) de onde emana o pensar: “Descrever um lugar indescritível é torná-lo
47
A perspectiva de “leitor único” pode também ser lida através do conceito de Giorgio Agamben, já
exposto em capítulo anterior, sobre “a nascividade”, em A comunidade que vem, ao se ler: “uma maneira
nascente é também o lugar da singularidade qualquer, o seu principium individuationis. Para o ser que é a
sua própria maneira, esta não é, de fato, uma propriedade que o determine e o indentifique com uma
essência, mas, antes uma impropriedade; mas o que o torna exemplar é que essa impropriedade é
assumida e apropriada como o seu único ser. O exemplo é apenas o ser do qual é exemplo: mas esse ser
não lhe pertence, é perfeitamente comum. A impropriedade, que expomos como o nosso ser próprio, a
maneira , que usamos, nos gera. É a nossa segunda, mais feliz natureza” (AGAMBEN, 2013, p. 35).
83
inamovível para o resto da minha vida, que certamente decorrerá ao lado da árvore,
como sempre tem decorrido no jardim que o pensamento permite”. E acrescenta: “O
jardim não é criado pelo pensamento, o jardim permite pensar, tem a sua própria forma
de pensar o pensamento” (P, p. 12). Jardim, esse, que é único.
Em intensificação à ideia de comunidade vista em “Lugar 1”, Parasceve traz por
uma revisitação ao modo imagético e memorialístico visto em O livros das
comunidades a filiação da criança-ruah através de um “voltar a ver”, por uma estratégia
de rememoração de quem narra:
84
Voltei a ver-me lá, sentada na Fonte do Plátano, e aparece, a subir a vereda,
que é um pouco íngreme, um grupo de pessoas com ar de pertencerem à
mesma família em passeio. Trazem consigo um rapazinho que se chama
Parasceve, como creio ter compreendido, e que é um ser muito delicado,
embora firme, com uma pala de tecido forte apertado por detrás da cabeça, a
proteger-lhe os olhos. O pai enchia garrafões que a mulher lhe ia entregando,
tirando-os de um carro de mão, um a um, devagar, como quem deseja reter
sem esforço a compreensão de um fio de água que se renova
ininterruptamente. Eu pensei, sem maldade, creio, que o rapazinho era o puro
retrato da família (P, p.15).
85
3.2. A Senhora decepada e “o puro retrato da família”
“Esta figurinha de madeira, sem atractivos de beleza, mas com a beleza
contraditória que deforma os criadores, é da mesma família do que eu”
(AA, p. 18).
“A minha figurinha de madeira, uma Senhora de catorze centímetros
(medi-os), no contraponto de Ana ensinando a ler a Myriam, continua a
existir no início da rua de uma frase perdida.” (AA, p. 18).
Ser da mesma família é, para Llansol, conjugar entre si perspectivas
“textuantes”: “Eu e ela éramos textuantes” (P, p. 10). Lê-se em Parasceve:
A mulher, para se salvar do perigo iminente que corre, diz “O Meu
Dicionário de Hoje”, e, se dissesse o meu destino de hoje, teria dito
exactamente o mesmo. É uma expressão paralela que me ocorre e peço ao
Grande maior que me deixe subir até ao alto da sua copa, tentar compreender
a linguagem das suas folhas. Há palavras afins com determinadas regiões do
corpo, há vidas intimamente unidas e para sempre paralelas porque o
dicionário lhes distribuiu exactamente as mesmas palavras. São parceiros e
ignoram-no. Eu, por exemplo, sentia-me livre no interior da liberdade que me
ocorre (e me dá passagem), sem saber que a mulher corria um perigo
inevitável. Há uma palavra para esta estranha relação. Eu e ela éramos
textuantes (P, p. 10)48
.
A partir do olhar e do apelo que une o que já em exposição segue em paralelo, o
“eu” se evidencia em liberdade que “dá passagem”. Essa é a forma do ver llansoliano;
do ver enquanto modo de pensar e imaginar: “O mais difícil para ti vai ser não imaginar.
48
Ao dizer “Meu dicionário de hoje”, Llansol une “dicionário” à “diário”. Sendo “diário” anagrama de
“dicionário”, os dois termos em Llansol se completam e se iluminam na proposição que há em Amigo e
Amiga – curso de silêncio de 2004 “O que o ler ensina, a vida sobre a terra esquece” (AA, p. 116). Se o
que o ler ensina é o movimento, o frescor da continuidade trazida sempre pelo novo, das palavras que vão
e que se abrem em caminhos outros através de constantes ressignificações; a vida, por sua vez, recai no
hábito do dia-a-dia, na constância que mecaniza as ações afastando a possibilidade de reflexão sobre o
todo. Daí que seja preciso pôr as verdades, as ideias pré-concebidas do “diário” a andar, como faz a
mulher de Parasceve com as palavras do dicionário. A aproximação entre os termos indica a saída do
lugar-comum, indo em direção ao rompimento do sempre-assim.
86
Tu és uma textuante”. Essa é a condição da partilha textual, de estar em troca e em
aprendizagem constante. Cada qual que chega à comunidade traz consigo o “ponto de
vista” que lhe cabe, conforme o pensamento que lhe é próprio: “O Grande Maior tem as
mesmas propriedades. Apenas não pensa do mesmo modo”. E Llansol diz: “Falo do
meu ponto de vista de visitante, porque ali não havia morte”. Nascer-Morrer, dois
opostos que não se excluem, mas se complementam; pois “aprofundar a intensidade de
viver e deixá-la à natureza, é morrer menos”. Porque o “espaço é (era) sem fim”, dentro
do percurso de decepação em que o “ponto de apoio” (P, p. 13) é o lugar último de onde
se deita em brevidade. Espaço, esse, também fronteiriço (divisória), de perigo – a
lembrar o “abismo do poço”, de Amar um cão – em que o risco da prova é a queda
quieta da palavra morta pelo “pouso da mão sobre o texto”, em que a palavra movente
volta ao estado permanente do dicionário. Esse é o “embate” e essa é “conjectura
grave”; pois é sutil o limiar do movimento na mecanização da ação rotineira
(“tradução”):
foi muito brusca essa aparição
e que, junto das rochas, embate furioso contra a falésia. A mulher
corre perigo. Senta-se no dicionário, que é um banco sólido de papel e, de
mim para ela, escorrem duas cenas. Ora a cena do plátano, a que chamo
Grande Maior, ora as palavras se aproximam de mim em fuga, rodando num
turbilhão que sucumbe quando pouso a mão sobre o texto.
Este livro é leve e jubiloso, embora tente abrir caminho através de
uma conjectura grave. É provável que mal se dê por isso, como quando
traduzi O Alto Voo da Cotovia (P, p. 9).
Queria a mulher tentar “transpor para a consciência quotidiana o que, durante
séculos, fora atribuído ao êxtase” (P, p. 10). Mas, nesse lugar, onde o corpo e o olhar
estão, a mulher diz que não deve se preocupar “com a credibilidade do testemunho”;
pois “era uma cidade invisível” – só vista por ela própria (P, p. 11). O que aqui se
estabelece é o lugar dessa textualidade llansoliana que vive entre o testemunho e a
ficção, a partir da intensidade de uma experiência pessoal em que, como afirma Jorge
Fernandes da Silveira, em O Tejo é um rio controverso (2008), o “hipotético repertório
87
das imagens [...] vai, progressivamente, expandindo-se numa espécie de conteúdo
arbitrário, imotivado a priori e motivado a posteriori” (SILVEIRA, 2008, p. 69): “O
texto é livre, e anterior a sim mesmo, e posterior a si mesmo __________ a substância
narrando-se” (JLA, p. 12). É por esse mote que Parasceve, através da voz da mulher e
do Grande maior, modalizado pela interface de uma terceira voz identificada como
“eu”, um eu-mulher, se apresenta e se mostra como estratégia de escrita e reafirmção do
já assinalado em “Lugar 1” de O livro das comunidades. A comunidade llansoliana
conjuga dessa troca de conhecimentos com a qual cada um participa trazendo para o
âmago textual a sua voz e o seu apelo, tal como um chamado que vem a partir do ângulo
de onde se está e de onde, ainda, a visão se dá em alcance. “Nada foi, tudo está sendo”,
como diz Llansol em Finita. Num ir em sobreposição, o processo de renascimento:
“Havia pés por cima de mim, [...] e eu senti que, naquele instante, muitos seres
‘nasciam’, porque chovia e aqueles pés eram particularmente leves”. E acrescenta a
mulher: “Mesmo que um apontasse o meu coração, o meu coração continuaria a bater,e
talvez renascido” (P, p. 12). Pelo jogo semântico da água: “mar”, “fonte”, “chuva” – há
a imagem da água alada, quando “água significa ave” (SILVEIRA, 2008, p. 68); fluido
que limpa e lava “as mãos” e move-se em decepação e em frescor quando, no lugar-
limite, dada “a uma divisória sem fim”, o “eu” é posto no “riacho”, estreito de mar, rio
menor, para ali se lavar e novamente pôr-se a andar; “eu” que não fica em evidência
posto que a chama movente é força entrópica de estar voltado para si no contraponto de
um outro. Referindo-se a O livro das comunidades, José Augusto Mourão indaga: “Que
é uma comunidade senão um corpo acordado para a linguagem e para a percepção
através da percepção de um outro corpo que fala? Não é comunidade um lugar de
recepção, um corpo em devir, um lugar de mutações, transversal ao tempo?” E continua:
“Um diálogo dos mortos e dos vivos? O livro das comunidades regurgita de
88
‘nascimentos’ e ‘mutantes’. É um livro dos começos, [...], um lugar de constituição de
um ‘nós’; [...]. O livro é um lugar de incubação e a palavra é alteridade da carne”.
Citando O senhor de Herbais, diz o ensaísta: “O facto é que o corpo muda” (OSH, p.
18). “Os sentidos do texto coincidem com as fronteiras do corpo em que fazer o sinal e
o fazer sentido se encontram. Quando o corpo muda, tudo está a mudar; o Logos não é
só Palavra, mas também Acto”. E termina: “No Logos há acto, energia, e não apenas
sentido. A obra do Logos está ligada à carne e ao movimento. E à libertação. O Livro
deve cumprir-se no corpo daqueles que um mesmo corpo liga” (MOURÃO, 2003, p.
198). Daí que a figurinha de madeira, como é dito na epígrafe, tenha “a beleza
contraditória que deforma os criadores”, pois segue na contramão do belo da Tradição,
de modo que trazer esse contraditório da forma que tudo “deforma” em direção ao novo
é condição sine qua non de pertença à comunnitas llansoliana; pois exige do olhar dos
seus legentes a leitura da beleza “sem atractivos” já consagrados. Por sinais de oposição
em complementaridade e de decepação, diz Llansol: “A minha figurinha de madeira,
uma Senhora de catorze centímetros (medi-os), no contraponto de Ana ensinando a ler
a Myriam, continua a existir no início da rua de uma frase perdida”.
89
3.3. Ana ensinando a ler a Myriam, ou A Estátua de Leitura
Arde ali a substância onde Ana está ensinando a ler a Myriam,
Ana sentada numa cadeira, com o livro aberto no colo, Myriam de pé, a
olhar um dos primeiros textos (…)
Maria Gabriela Llansol
Diz Llansol em suas primeiras anotações: “Levanto dos joelhos o diário que
imaginei de mim para mim mesmo [...]” (Diário de 1949-50, cadernos de escola, p. 23).
Ou ainda, anos mais tarde dirá:
Por vezes, o meu animal doméstico toma-me por outro animal. É quando, à
noite, nada se vê e ele principia o seu sono, afastado de mim, num sítio
atractivo da casa. Passadas poucas horas – e a noite é jovem –, ouço os seus
passos que se deslocam. Ele me procura e, com um sopro de júbilo, sobe para
onde me deito e, por se encostar à curva dos meus joelhos, pressinto que me
toma por um animal maior que o envolve e protege. Assim seja. (1.75, 44-45)
Sendo ler movimento deambulatório em torno de “mim” e “mim mesmo” ou
ainda, lugar-acolhimento forjado por um outro; ler é, em suma, um estar com. Com um
90
outro que é também um si próprio, a lembrar Rimbaud ao dizer “J´est un autre”. Ou
ainda, um “ser sendo”, de Amar um cão. Ler é se pôr em ação e em movimento; junto
a, e em torno de. E não só: em Amar um cão, Jade “quer aprender a ler sobre um texto
que ‘eu’ porei a arder [...]”. Segundo Maria Etelvina Santos, “ler um texto não é o
mesmo que ler sobre um texto. Como escrever sobre não é o mesmo que escrever com.
Quando leio um texto, escrevo sobre ele; mas quando leio sobre um texto, escrevo com
ele”. E diz: “Este aparente jogo de palavras tenta mostrar um possível caminho para a
leitura da textualidade llansoliana, caminho já sugerido no início d´O livro das
comunidades pela expressão um ‘corp ‘a’ screver” (SANTOS, 2007, p. 25). A leitura
que se faz “sobre” é uma leitura em devir pelo modo de compreensão a posteriori,
traçada pela linha de afeto pelo qual os textuantes entram no texto. E “entrar no texto” é
“quando escrevente e legente têm o mesmo desejo e interagem nesse combate, não para
que este acabe, mas para que eles e o texto perdurem na leitura e na escrita de um texto-
futuro” (SANTOS, 2007, p. 26). Ler, assim, é se mostrar atento; não ao texto, mas no
próprio olhar que percorre o texto; para com ele ir num mais além, em derivação e em
projeção do novo. Essa é a perspectiva de liberdade proposta pelo ato de ler; pelo
movimento livre do ir e vir sob a “sensualética” (P, p. 81) tensional da luz libidinal. “É
um dar-se em corpo ao texto; luta como ‘causa amante’, num processo em que tudo se
joga, mas donde não se sai vencido nem vencedor” (SANTOS, 2007, p. 25). Ler, assim,
é atravessar o vazio que “mete medo” (LC, p. 10).
Em Um beijo dado mais tarde, há: “— ‘Ana é outro nome’ — diz. O nome da
estátua policroma em madeira em que Sant´Ana ensina a ler a uma jovem nitidamente
desproporcionada nesse conjunto”. E ainda: “Esta cena da aprendizagem da leitura está
também expressa noutro quadro a óleo – e eu nunca esquecerei esta terna reciprocidade
feminina de companhia que tinha origem ________ na origem de ler” (BDMT, p. 24).
91
Nomeação, derivação e sobreposição. Troca e mutação onde identidade e ipseidade49
correm em paralelo pelo modo de decepação:
— “Venham todos a ler” — diz Ana, a que ensina. — Um de cada
vez, e durante longos anos, para que o prazer dure. A jovem volta ao seu
lugar, na estátua, e quebra o que lê em mil pedaços, sem quebrar o livro onde
o ler circula. O testamento que leu foi-lhes lido; todos os objectos são agora –
imagina – móveis por si mesmos _____ herdados _____ e estão presentes no
acto permanente de ler (BDMT, p. 25).
“Foi assim que Témia, com seis anos, trouxe Ana e Myriam a lerem uma à outra
o amor que reciprocamente se dedicam; [...] está a ouvi-las”, pois “o que se esconde está
escrito; levanta-se para dividi-lo em pequenas folhas de caderno e anota que o que está a
passar-se, de superfície perceptível, ou invisível, é para todos lerem”, na obediência ao
“livro aberto nos joelhos e à tranquilidade – ainda sem escrita – da criança que lê”
(BDMT, 25-26). Criança-Témia ou criança-Parasceve50
, ambas trazem consigo o
“ruah”, o sopro da projeção futura do tempo que, no presente, é ideia em devir; tal como
a metáfora da criança que se põe a correr com Jade para no espaço da leitura encontrar
breve e instável abrigo já que ao “sopro de júbilo”, o encosto encontrado se dá “à curva
dos joelhos”, como nos fala Llansol em anotação de epígrafe.
Há nesta linhagem escritural e figural uma “geometria do amoroso”, pela
perspectiva do corpo d(o)ado em tábua de aprendizagem:
49
Ipseidade em relação à identidade (a mesma coisa) significa “a coisa mesma”, “a coisa que transcendeu
em direção de si mesma” (AGAMBEN, 2013, p. 89 – 90). 50
Nesta interlocução atravessada pela infância, trago a possibilidade de se estabelecer um diálogo com os
versos de Fiama Hasse Pais Brandão, em Teoria da realidade, tratando-a por tu, onde se lê: “(...)
realidade do mar, palavra minha. / Criança, a tua mão de areia /construiu a praia. Os teus dedos
sonoros chamam-me agora. / Chamei-te, outrora, eu, no transe / do som a pousar no meu mar. /Aceita a
água que vem / para os teus pés, recebe a luz, colhe /as pequenas algas. São-te dadas
pelo passado tempo, ainda / recordado, em ti, por mim, realidade” (BRANDÃO, 2010, p. 168).
92
3 de Novembro de 1992 / terça
_______ também há a geometria do amoroso
[...]
_____ introduz-me no teu espaço por eu ser alguém que
também traz para o espaço a tua narrativa. Deixa que as
minhas proposições,
as minhas demonstrações,
os meus escólios
sejam o apoio que desfaz a tua solidão.
(Caderno 1.36, pp. 35, 37-38)
93
3.4. Aprendizagem da leitura, nascimento e criação: o dois-em-um socrático
Ainda estás muda, mas ouves
cantar um nome, ouviste já
dois nomes, tu queres dizê-los,
tacteias, sugas, redizes.
A primeira palavra já a dizes,
encastoada na substância do mar,
agora que puseram o mar todo
a teus pés, e ao dizer-te a palavra,
alguém a poisou e ao mar
debaixo dos meus passos. Alguém
é outra voz, além das vozes
ocultas, maternais, de outrora.
Alguém não é um eco, é a terceira
fala, mensageiro sem início,
apenas boca presente, junta,
que veio nascer contigo. Nunca
teu gémeo, ou duplo, apenas de um lugar,
ali, alguém no espaço, contigo, a ouvir.
Fiama Hasse Pais Brandão
Em O jogo da liberdade da alma, diz Llansol: “__________ aprendi com a
linguagem de Haallâj que, onde / há nada, há muito para dizer, / que onde há muito para
dizer, há nada” (JLA, p. 11). Talvez esse fragmento dê conta de elucidar o que
Parasceve encena com a imagem da mulher sobre o dicionário e das palavras, que
soltas, se põem a ir – a ir sempre adiante, em um caminhar constante ao mais além. São
somente três palavrinhas (“actriz, actual e actualidade”) que abrem percurso na luta
contra ao “não-uso” das palavras, das palavras utilitárias e já canonizadas pelo Poder,
pela Tradição. Não à toa, as palavras-pássaros já trazem consigo imagens-formatos com
as quais partirão: de “actriz”, o campo semântico introduz “máscara”, “personagem”,
“um eu-outro” ou, mais precisamente, ser a palavra “actriz” o duplo da mulher-
Parasceve, daquela que forja um “eu-alguém”, um “eu-criança”, para que sendo um
outro e decepando o nó que há no imaginário, vá em busca da consciência de si própria,
ao encontro consigo mesma pelo intermédio da palavra e da memória. Memória que se
94
dá por processos de decepação e de “des-possessão”, como mostra Silvina Rodrigues
Lopes. Des-possessão que permite se tornar transparente; transparência dada por
esvaziamentos que, no espaço aberto e sem fronteira desse corpo “nu”, uma nova forma
ali venha habitar; e com a imagem anterior, se transmutar. Efeito de transubstanciação,
pois em cada nova forma resta ecos dos já idos. Processo que a “mulher” sabe ser
doloroso; mas reconhece que “a luta chispante é o (meu) deslumbramento” (JLA, p. 8).
Luta que se dá “perante o homem nu sentado ao piano no combate consigo mesmo”
(JLA, p. 8); no tempo “actual”, da “actualidade”; ou seja, no tempo presente do agora –
no estar absoluto da hora em que tudo decorre no pressuposto que “o instante é a
escrita” (JLA, p. 49). Desse modo, por esse código, é que “a mulher” e seus textuantes
procuram descobrir o puzzle. Jogo que o Grande Maior, um ser-alguém-vegetal, ajuda a
desvendar com o seu “olho de árvore”, a partir do ponto de vista que lhe é próprio,
enquanto árvore; enquanto axis mundi,que tudo vê da altura de sua copa; já a “mulher”
só ainda lhe cabe enxergar com seus olhos de humana, mesmo híbrida do espírito bravio
do lobo. Essa é a comunidade dessa geometria desenhada por cenas A451
, por cenas
fulgor; comunidade, sobretudo, amorosa porque híbrida; porque tanto é múltipla quanto
única. Comunidade que traz a geografia dos rebeldes, aqui não mais saídos por figuras
da História – porque desse espaço “a mulher” já se libertou; mas através da
territorização do espaço textual fora do cânone – “lugar onde o texto aprende a
materialidade do lugar por onde corre” (JLA, p. 12). Lugar de passagem, de troca e de
metamorfoses; de modo que o que importa na textualidade llansoliana é o processo,
apresentado no “decorrer de” uma cena, em um caminho-origem – perspectiva, essa,
que coloca em brevidade o espaço conquistado, qual um canto órfico; nunca plenamente
51
Cenas A4 remetem ao desenho representado na folha de papel em tamanho A4.
95
alcançado. À luz que ilumina em parte, o já “um-outro”; propriedade do “ser-enigma”,
cabendo-lhe as dobras de sua revelação:
Evidentemente que eu estou no decorrer de uma viagem de comboio.
A palavra forte não é viagem de comboio, mas no decorrer de. O sol ilumina
metade do livro, cortando a página em luz e sombra. Com a trepidação, a
minha mão transportada no comboio treme, e a pequena garrafa com água
para beber, tomba.
Do ponto de vista dos meus olhos, esta é uma história não humana,
entre coisas, uma menos-valia que decidi contar, porque pô-la a nu equivale a
libertá-la da sua morte inglória e banal.
Não verteu a água, mas mudou a posição dentro da garrafa. Oscilou,
estendeu-se à superfície tendo por horizonte apenas os meus olhos. Esse
fenômeno simples foi visto por um outro que escreveu.
O universo multiplica-se com a descrição minuciosa e atenta da
viagem (JLA, p. 13).
Segundo Hannah Arendt, em A vida do espírito, ao refletir sobre a faculdade do
pensar, nos limites compreendidos entre a noção do self e a que abrange a pluralidade,
toma como base a figura socrática, de Platão. Sendo Sócrates tanto o cidadão da polis
quanto o homem que detinha uma consciência ética-moral-filosófica sobre o seu tempo,
Arendt passa com ele a analisar o modus operandi do discurso e considera que o método
dialógico usado por Sócrates é o que permite a faculdade do pensar. Diálogo dado em
silêncio entre “mim” e “mim mesmo”; voz que, muda, tudo diz no aberto do
pensamento, no ainda sem nome conceitual que o defina. A essa forma de diálogo
mudo, Platão diz ser o “dois-em-um” – o dois-em-um socrático, portanto (two-in-one).
Segundo Hannah Arendt, esse modo singular da atividade do pensar pressupõe um dado
de pluralidade em potencial: Diz ela: “O fato de que o estar-só [solitude], enquanto dura
a atividade de pensar, transforma a mera consciência de si [...] em uma dualidade é
talvez a indicação mais convincente de que o sujeito exista no plural” (ARENDT, 2003,
p. 135). Dualidade que faz do pensar uma atividade dialética, crítica e aberta à
renovação; já que a cada estágio do diálogo, alcança-se um outro horizonte hipotético da
96
ideia inicial. É, assim, em similitude, a perspectiva llansoliana do “decorrer com”, da
multiplicidade do universo pela vertente da água que muda o modo da queda do líquido
no interior do corpo, dada à experiência passada/(sen)tida. Em Onde vais, drama-
poesia? lê-se: “Que a história do universo é a sua história do universo e que o seu Há é
todo o Há que existe” (OVDP, p. 34). Ser em si “leitor único” na e pela multiplicidade
de vozes que permitem a ação do pensar; já que todo o universo está no Há que lhe
cabe. Ou ainda, como diz Fiama Hasse Pais Brandão em “Homenagem à literatura”:
“Que à medida que os anos e os vocábulos se acumulam / mais incompreensível me
torno para os detentores de outras técnicas / e que só deve ler-me quem não tema
reconhecer-se como leitor único” (BRANDÃO, 2010, p. 46).
É, assim, a “menos-valia” llansoliana, trazida por uma praxis política vinda na
contramão do já instaurado; ao modo revolucionário dado pela ruptura da palavra morta,
da voz que vai à contrapelo dos usos mecanicistas da palavra. Ação política do modo
linguístico da textualidade de Maria Gabriela Llansol em pôr na narração a condição
humana ou a vida do espírito, que o clássico platônico já concebia: “Falemos mais dos
gregos, /que amaram o mar com a boca / do canto dos aedos e da escrita, / e com os
barcos, que apontavam / pelas linhas dos códices, na singradura” (BRANDÂO, 2010, p.
175) Eis a esperança trazida com Parasceve, na ironia de ser ele-ela a representação de
um ser menino, a criança, que diante da “mulher”, ambos devem aprender a ir adiante,
compreendendo, em máxima temporal aorística, o absoluto do tempo: “— Quem disse
que era infantil? / — Falo apenas do que experimentei” (P, p. 120). Daí que em Um
beijo dado mais tarde se leia: “___________ é o cheiro do mar que me conduz ao mar;
[...] o meu espírito pegou em Témia e saímos os três para a luz que envolvia toda a orla
marítima numa dupla extensão de mar aéreo; ouço o bramir das ondas nas faixas dessa
luz [...]” (BDMT, p. 96). E, novamente, com Fiama Hasse Pais Brandão, em “Teoria da
97
realidade, tratando-a por tu”, a ideia ampliada em poesia, onde a conjunção “se”
condiciona o “novo” à figura atemporal da criança (“crianças repetirem crianças”),
sendo elas-ela, a criança, a que vai encher o mar:
Falaram-te os poetas gregos, poetas lidos.
Ler faz embater a fala nas palavras
que são ouvidas no ouvido.
Ouves palavras-eco que vêm
para mim de novo, se essas
crianças repetirem crianças.
Elas levam o balde cheio de água
para encher a maré, levantam
a barbacã de areia, seguindo o plano
dado pela voz de alguém do meu início
ou de um livro de páginas abertas
rente ao mar. Por vezes, tu,
realidade, és um livro, aberto
numa página com o mar.
E a pura mãe folheia-te?
(BRANDÂO, 2010, p. 175)
Por “esse arcanjo do espírito bravio ser menino” (P, p. 125), a ideia da criança
associada a essa busca impele a uma suposta necessidade de retorno à origem – origem
que só poderá ser alcançada pelo viés da memória. João Barrento, em Na dobra do
mundo (2009) diz que a memória aí referida é uma “memória mítica, arcano”. E explica:
“A ironia está no ter de “voltar a ser”, no facto de aquilo que se busca poder estar numa
origem. [...] O ruah é essa origem. É o sopro que não pode vir de nenhum corpo, mas
permite que todos os corpos sejam Vivos.” Origem que vai ao encontro da conceituação
de Walter Benjamim no sentido de ser essa origem a “emergência, livre e não
determinada, de um facto, de uma ideia, de uma experiência, a partir de qualquer
momento do passado ou do presente”. E “por mais distante que essa origem possa estar,
por mais que se perca nas brumas míticas da história, do mito ou do Ser, ela poderá
saltar a cada momento para o (meu) Agora” (BARRENTO, 2009, p. 248). Memória
vinda em imagem, tal qual Santo Agostinho escreveu em Confissões:
98
O grande receptáculo da memória – sinuosidades secretas e inefáveis, onde
tudo entra pelas portas respectivas e se aloja sem confusão – recebe todas
estas impressões, para as recordar e revistar quando for necessário. Todavia,
não são os próprios objetos que entram, mas as suas imagens: imagens das
coisas sensíveis, sempre prestes a oferecer-se ao pensamento que as recorda
(AGOSTINHO, 2000, p. 267)
Hannah Arendt complementa as proposições de Santo Agostinho ao afirmar que
através do pensar (“tornar presente o ausente”), “a memória quase sempre guarda e
mantém à disposição da lembrança tudo o que não é mais; e a vontade antecipa o que o
futuro poderá trazer, mas que ainda não é” (ARENDT, 2003, p. 60). Desse modo entre o
“não mais” e o “ainda não”, está a memória e desejo (vontade). Daí que Llansol
escreva: “Desejo profundamente (para isso escrevo)” (P, p. 100); modo em “que o texto
vai adiante” onde “criar possibilidades é sempre alargar o leque das probabilidades” (P,
p. 101).
Ser um e ser múltiplo. A “mulher” de Parasceve sabe que a “identidade é
precária”; por isso, o que deseja é aprender “a ser figura com as figuras que o texto vai
possibilitando” – figuras que “se tornem cada vez mais anônimas” – postas a “nu”. Por
isso, “também não é verdade que a mulher se reconheça em todos os mundos para onde
vai ou se lembre de todos os lugares onde esteve” (P, p. 100) porque tudo “é uma
constante” e “a mulher” ou, simplesmente, um “eu”, é apenas “um reflexivo que se
recorda” (P, p. 101).
Sobre o modo de tornar as figuras nuas, “mais anônimas”, “não portadores de
nomes ou de obras que a cultura reconheça”, diz Llansol: “Vejo nesse anonimato
crescente o fruto do trabalho figural de muitos que tiveram nome, nome que, por vezes,
não silencio. A cultura sabe desses nomes, mas não saberá jamais mais do que isso”
Porque “quando diz o nome, ignora o combate”. De modo que nomear é uma forma de
99
pré-estabelecer, de fazer morrer as palavras; pois conceder-lhes um conceito é deitá-las
em um fim, condenando-as, assim, ao esquecimento pelo lugar comum. E o desejo da
“mulher” de Parasceve reside na decisão do querer “viver, vencer a morte, e saber se se
confirma que só o amor é maior do que esse colapso”. Amor que é canto, leitura-escrita.
E a voz diz: “Gostaria que, nesse momento, nos reconhecêssemos textuantes, gente que,
no mistério da realidade, não tem necessariamente muito a partilhar, salvo esse pequeno
diálogo que transportamos de lugar em lugar” (P, p. 100). Daí que páginas à frente, se
leia: “Dizê-lo é voltar lá. Sim. Lá e tralalá” (P, p. 125). Em um voltar que já é um-outro,
inomeável “lá e tralalá”. Movimento de eterno retorno do mútuo52
, em dobra e por
sobreposição, que por força decisória e efeitos de decepação do “eu” segue em errância.
E lê-se: “Errar, aqui, é apenas o movimento da inteligência duvidosa que coloca sobre
os (teus) joelhos um pensamento que seria parado, se não fosse um auditivo”. Som que
é ruah, promessa; corpo que, infantil, é aprendiz; que, “varrido pelo silêncio”, se põe a
“nu”.
Em O jogo da liberdade da alma, a cena primeira é a de “dois homens nus ao
piano” (JLA, p. 7). Nudez que precisa de um equivalente para ser vista / reconhecida.
Em Parasceve, a “mulher” diz que o “equivalente era um domador do medo” (P, p. 16);
de modo que a “equivalência” aqui assumida é aquilo que impele o sujeito a prosseguir,
pondo-o em ação, tornando a vida ativa; ou com Hannah Arendt, “vita activa”.
Para Arendt, a vita activa designa três atividades humanas fundamentais:
trabalho, obra e ação. E diz que “todas as três atividades e suas condições
correspondentes estão intimamente relacionadas com a condição mais geral da
52
“Tudo, desde sempre esteve no modo. Que tudo quanto deva advir, se manifeste no modo humano,
entre seres que não temem, nem se sintam feridos no seu narcisismo por a realidade ser o que é: vamos
para onde ignoramos, por caminhos que desconhecemos. E eu sobre o real não sei mais, mas nessa
verdade me desejo manter, à imagem de uma das figuras que mais amo, “a rapariga que temia a impostura
da língua”. Quem escreve e quem lê, em mútuo, encontrarão o como seguir a linha da nova colina.
E, nesse processo, me sinto muito feliz” (L1, p. 87, grifos nossos).
100
existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade”. Contudo,
“das três atividades, a ação tem a relação mais estreita com a condição humana da
natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo
somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de
agir” (ARENDT, 2016, p. 11). Princípio, esse, de natalidade que traz a “criança nua”.
Ou ainda o “homem nu” –, já que no tempo absoluto, de acordo com Santo Agostinho,
ou pela perspectiva do tempo aorístico, segundo os gregos clássicos, a linearidade
cronológica se apaga em escrita llansoliana. Princípio em que o nascer remonta uma
origem, a origem de ler. Pois ler é ato contínuo do ir lendo, do ler sobre, do ler com; em
processo de decepação e de des-possessão – pela perspectiva do nada ter, do nada
possuir, pois “tudo está sendo” no instante da leitura e da escrita que encerra. Princípio
errante, de tentativas e continuações por corpos híbridos de ser e de ser-obra: a nudez do
homem ao piano não era física; mas era vista “através do andamento musical”, em
corpo misto de homem e obra. Imagem “que reflui sempre sobre em imagem”; por
desdobramento que oculta o sexo; posto que, sendo neutro, andrógino barthesiano – é
ímpar llansoliano que, como Orpheu, vai à procura de seu par. Uma vez achado,
“desfaz-se em espuma de texto” (AA, p. ).
Sendo a ação a atividade que “corresponde à condição humana da pluralidade”
(ARENDT, 2016, p. 09), M. G. Llansol escreve em O jogo da liberdade da alma:
“Vozes, ao meu lado, formam igualmente palavras; e escrevo como Há; vejo, ao fundo
do corredor, o homem nu que me toca” (JLA, p. 15); e na página seguinte, prossegue:
“toca um texto que leio em voz alta no meu espírito. Para mim, sem voz audível.
Rememorada. A energia não pensa mas, se eu me colocar aberta no seu caminho _____
ela pensa. Eu é o outro que eu vejo em mim” (JLA, p. 17). Daí que o “nu” ponha “em
evidência o homem” e sua música seja tocada “a quatro mãos com o seu companheiro
101
que lhe entregou voluntariamente”; porque ao eco de Rimbaud, Llansol elucida o modo
pelo qual o indivíduo vai tomando consciência de si a partir do modus operandi
socrático do “dois-em-um”, ou “a partilha de nós mesmos”53
e da premissa dialética que
há no diálogo, no qual a “mulher” de Parasceve “vai aprendendo a perguntar” (P, p.
100). Nesse sentido, por ser a ação do pensar intrinsecamente ligada à consciência de si
(de um “eu” múltiplo já caracterizado pela pluralidade que o envolve), Hannah Arendt
traz a perspectiva política da natalidade54
ao ato desse agir, considerando a natalidade
não apenas como categoria biológica; mas, sobretudo, como categoria política. Por esse
mesmo viés, vale lembrar a escrita de Llansol já em “Lugar 1”, mais uma vez: “nesse
lugar havia uma mulher que não queria ter filhos de seu ventre. Pedia aos homens que
lhe trouxessem os filhos de suas mulheres para educá-los” (LC, p. 11). Ou ainda: “a
escrita era as vozes em coro dos trinta mil camponeses que depois de abolirem os juízes
53
“A palavra consciência (conscience), empregada por Arendt, tem origem no grego syn-eidenai, cujo
significado original remetia apenas à noção de consciência de si (consciousness), sem qualquer conotação
particularmente moral, mas sim descrita como con- scientia: “Conheço comigo mesmo, ou, na medida em
que conheço, estou consciente de que conheço” (I know with my self, or while I know I am aware that I
know). Como tal, a consciência é retratada como confirmação da própria existência. Na sequência, Arendt
aponta para o conceito de conscientia em Cícero, que lhe atribui uma conotação de testemunha ao que
está oculto, introduzindo o dois-em-um ou a partilha de nós mesmos: “Quando estou sob juramento
acerca de algo que está oculto a todos, devo relembrar que Deus é minha testemunha, e isso de acordo
com Cícero significa ‘my mind is my witness’”. Desse modo, importa saber que “a autora apresenta
quatro momentos recorrentes da noção de consciência: ‘consciência: como testemunha; como a faculdade
de julgar, isto é, de distinguir o certo do errado; como aquilo que dentro de mim, e sobre mim, se submete
a julgamento; e, finalmente, como uma voz interior, como, por exemplo, a voz bíblica de Deus que vem
do exterior”’ (Assy, 2015, p. 67-68). 54
Em A origem do totalitarismo, Hannah Arendt, diz que “cada fim na história contém necessariamente
um novo início; esse início é a promessa, a única ‘mensagem’ que o fim pode produzir. O início, antes de
se tornar um evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, é idêntica à liberdade do
homem. Initium ut esset homo creatus est – ‘para que houvesse um início, o homem foi criado’, disse
Agostinho (A cidade de Deus, Livro XII, cap. 20). Esse início é garantido por cada novo nascimento; é,
de fato, cada homem” (ARENDT, 2016, p. 531). Em nota do texto de abertura de A condição humana,
“Pensar o que estamos fazendo”, Adriano Correia diz que “em suma, nascer é já ser capaz de instaurar
novidade no mundo através da ação, e o nascimento é a aparição inaugural de uma singularidade, que
pode ganhar realidade no domínio político. Os homens, como entes do mundo, são politicamente não
seres para a morte, mas permanentemente afirmadores da singularidade que o nascimento inaugura.
(CORREIA, 2016, p. XVII). Já em A condição humana, Hannah Arendt escreve: “Das três atividades
(trabalho, obra e ação), a ação tem a relação mais estreita com a condição humana da natalidade; o novo
começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a
capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de iniciativa, a todas as atividades humanas
é inerente um elemento de ação e, portanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade política
por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político, em
contraposição ao pensamento metafísico” (ARENDT, 2016, p. 11).
102
se dirigem para o massacre de Frankenhausen e cujas pegadas ficaram perdidas no
deserto” (LC, p. 42); porque “a fecundidade do dom é a única retribuição do dom” (LC,
p. 43), tal qual la fête de Babette em Um beijo dado mais tarde.
Assim, “recordar é quase, de certeza, um ainda-mais-morrer. Ler o novo é, de
longe, preferível”, onde “o puzzle dessas proximidades é o equivalente exacto do
enigma” (P, p 148). Enigma vindo por perspectiva órphica e erótica, dado o viés oculto
e amante que em cena faz-desfaz, se sensualiza, fricciona e funda:
A mulher, que no texto procura o corpo amado e desaparecido, por
pouco que não encontrava a sua textuante. Também é verdade que, se tivesse
chegado mais cedo, teria dado com o seu corpo morto, em vez de
desaparecido. Ou, então, teria assistido ao seu renascer iluminante. Talvez o
atraso fosse positivo (P, p. 148).
É bem possível que Llansol com Sá-Carneiro, em Apoteose, diga: “Desci de
mim. Dobrei o manto de Astro, / Quebrei a taça de cristal e espanto” (SÁ-CARNEIRO,
1991, p. 197); mas talvez, ela, Llansol venha dizer no último verso: “Talhei o Oiro com
a sombra do meu rastro” porque traz consigo a perspectiva convivente e movente de um
discurso que se dá não por uma estabilidade produzida por um “em”55
; mas o “ir com”
ao modo da decepação: “Se a tua mão te escandalizar, corta-a”, e acrescenta:
O escândalo é acreditar o humano como exclusiva sede de saber. A
mulher fez bem em lançar fora a estatueta. Não conseguia desprender-se da
sua matéria de madeira. Claro que o gesto da mulher não fora impecável. Não
percebera que, ao lançar fora a estatueta como lixo, a fizera entrar no ponto
do espaço onde as suas mãos decepadas estavam destinadas a executar
melodias admiráveis.
No espaço textuante todos os corpos são, afinal, híbridos. Cismar,
transmuta. Permite alcançar nomes novos e locais de caminho (P, p. 150).
55
Diz Sá-Carneiro no último verso: “Talhei em sombra o Oiro do meu rastro” (SÁ-CARNEIRO, 1991, p.
197).
103
Daí que ela, a escrevente, a mulher híbrida de lobo e de perguntas, ou Llansol,
vá à memória para “procurar o excerto dessa possibilidade.” E mencione que o caminho
é um “encontro de amor” com a sua “condição de vaso quebrado”:
E como sabe a mulher que é híbrida? Como sabe que é uma
viajante? Como sabe que o seu percurso equivale a uma busca consequente?
Tem um corpo de perguntar, a mulher. Deve ser por isso. Assim o sabe, e não
de outro modo. Nenhum interlocutor lhe dirá, se lhe perguntar. Não querem,
aliás, dizer. Querem ficar. A mulher olha para si. Tem olhos de lobo, os seus
dedos são lápis, a sua mão esquerda é um candeeiro sempre aceso. O seu
corpo não excita qualquer desejo sexual. A alegria que suscita, nua, é a de um
Corredor a correr mais veloz do que o seu volume. Está nua? Está. Deixou os
seus vestidos noutro lugar. Mais uma vez, à beira de.
São seus, esses vivos que encorporou. Como ela é deles. O caminho
é um puzzle indissolúvel. Não se deram uns aos outros como ajuda. Correm,
de ponto em ponto do espaço, em busca do nome que impeça que o novo, o
estranho, funcione como um explosivo deflagrante da consciência.
Medo? Medo de quê? Não há puzzle sem ironia.
Há, no entanto, algo de extremamente curioso no corpo que corre à
procura de um semelhante. Não corre ele à procura de um perdido? De modo
algum. A maior parte dos semelhantes está por achar (P, p. 150).
Em “apaixonadamente”, índice dois da terceira parte, “a mulher tem um
pensamento que ascende à consciência, no momento em que espalha as cinzas da lareira
sobre a terra, num movimento muito próximo a joeirar”. Nesse instante, “o pensamento
separa-se do pó e sobe. É poalha”. E “as cinzas caem na terra”. Pensamento, esse, “que
é sempre alguém, força pujante56
, quando se quer pensar” (P, p. 152,153). Um alguém-
Jade a correr com a criança defronte ao mar; um alguém-mulher que vai à adiante. Ou
simplesmente, um alguém-outro, assim dito no poema de Fiama Hasse Pais Brandão,
“Teoria da realidade, tratando-a por tu”, trazido em epígrafe:
[...] Alguém
é outra voz, além das vozes
ocultas, maternais, de outrora.
Alguém não é um eco, é a terceira
fala, mensageiro sem início,
apenas boca presente, junta,
que veio nascer contigo. Nunca
teu gémeo, ou duplo, apenas de um lugar,
ali, alguém no espaço, contigo, a ouvir [...] (BRANDÃO, 2010, p. 169).
56
“Sentiam uma pujança enorme no pensamento” (P, p. 65).
104
3.5. Parasceve: o lugar obsceno da ressuscitação
Onde o desejo der com o túmulo
dará com essa presença a que chamas anjos.
Maria Gabriela Llansol
“Se o amor vence a morte, é forçosamente no túmulo que se combatem”, diz
Llansol em Parasceve. Nesse livro de continuantes, no sentido de um sempre
prosseguir, Maria Gabriela Llansol afirma a escrita do amor que vem na eminência de
uma perda; pois, “dar a vida não chega”. É preciso “ressuscitar”57
(JLA, p. 21). Sendo
“ressuscitar” um chamar outra vez à vida, um fazer ressurgir; o termo traz a ideia do
aparecer-desaparecer porquanto haja vida em latência. Ou seja, “ressuscitar” pressupõe
a não transcendência entre os estágios de vida e morte, na perspectiva que morrer é um
apagamento de um não mais viver. Assim, nascer-morrer, aqui, caminha na percepção
de uma existência baseada sobre o anterior, à semelhança de O texto de Joan Zorro, de
Fiama Hasse Pais Brandão, em que “a mutabilidade da grafia” é, sobretudo, um
escrever-ler continuum “sobre”, centrado no tempo presente de onde se vê/ fala/ sente:
Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os
meus textos
a joan zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e
da leitura
exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra
e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos
é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente
(BRANDÃO, 2010, p. 34).
57
“O que aprendi com Teresa? Que a ressurreição não é um acto de potência divina, mas a suprema
manifestação de amor. Dar a vida não chega, não é um acorde consonante com a substância. Ressuscitar,
sim, é o acorde perfeito” (JLA, p. 21).
105
Eis que Llansol diga: “Escrevo-as [lembranças] tal como elas me recordam.
Continuo a escrevê-las tal como elas continuamente me recordam. Do mesmo modo que
os legentes. Continuarão a escrever do mesmo modo que a substância os recorda” (JLA,
p. 19); pois o que “a mulher” diz é: “Eu não sou a tua palavra. Tu também não é a
minha. Precisamos ambos de escrita, de imagem, de pensamento. E na imagem,
precisamos vitalmente da música. A palavra é daqui, a música não. O som é a parte
mais secreta do oxigênio” (P, p. 175). Em um artigo publicado no jornal – “Expresso
(actual)”, em matéria intitulada “O mundo reencantado”, de 8 de Novembro de 2003,
António Guerreiro escreve:
Há uma razão interna à própria obra de M. G. Llansol, a que é
necessário prestar atenção. De todas as artes, a música é aquela que vem
ocupar o lugar mais essencial. Se a leitura é aqui um motivo tão importante, é
porque a revelação deve ser ouvida, não basta o espaço surdo da escrita. E o
modo acústico do olhar é, para M. G. Llansol, a leitura.
Desse modo, a partir do sensorial que aproxima corpos, em O jogo da liberdade
da alma, a “rapariga desmemoriada” que está em busca de uma recordação que a faça
cruzar “as linhas da consciência” (JLA, p. 20) também diz querer alguém para
ressuscitar para ela. E fala: “— Alguém que tenha para comigo essa memória” (JLA,
21). Porque quando “o invisível” se tensiona, abrindo à linguagem caminhos obliterados
pelo narrativo, “o por escrever” é infinito e “a nova linguagem se reproduz por si
mesma, contendo em si o próprio princípio de existir” (JLA, p. 12). Ou ainda: “Se for
realmente forte e sensual, vive e dá vida”; “anima e ressuscita” (P, p. 112).
O texto adverte que diante da perda, há que se entrar “na memória e tratá-la por
alguém” (P, p. 114), lugar onde “fósforos inflamam a imaginação” (P, p. 111). Com
Hannah Arendt, sobre o papel da imaginação se lê:
106
A imaginação, portanto, que transforma um objeto visível em uma
imagem invisível, apta a ser guardada no espírito, é a condição sine qua non
para fornecer ao espírito objetos-de-pensamento (thought-objects) adequados:
mas esses só passam a existir quando o espírito ativa e deliberadamente
relembra, recorda e seleciona do arquivo da memória o que quer que venha
atrair seu interesse, a ponto de induzir a concentração; nessas operações o
espírito aprende a lidar com coisas ausentes e se prepara para “ir mais além”,
em direção ao entendimento das coisas sempre ausentes, e que não podem ser
lembradas, porque nunca estiveram presentes para a experiência sensível
(ARENDT, 2003, p. 60-61)
Sem conseguir dizer até mesmo o próprio nome, a “rapariga desmemoriada”
deverá encontrar na memória esse ser “eu-alguém”, de modo que é / era “nesses
momentos, a personificação única do espírito infantil” posto que nomear é já um mais
morrer; onde, assim, também se inscreve na textualidade llansoliana a ideia da “pessoa
única, voltada para o seu rosto de brincar” (P, p. 115) – “brincar” que é puzzle
linguístico de montar e desmontar texto-palavra-ideia, vindo por “um jogo muito
perigoso” – “o jogo da liberdade da alma” (P, p. 117), em que “brincar cura” (P, p. 114)
porque dá vida através da “voz [que] fará o seu caminho” (P, p. 116). Caminho traçado
de encontros e de trocas afetuosas já que “o amor é uma saudação de caminhantes” (P,
p. 117). E o amor é “a alegria acompanhada” não por uma causa exterior; mas “por uma
causa interior. De outro modo, morreria” (JLA, p. 68).
Ao romper com estruturas fixas, Llansol escreve Deus sive legens dobrando com
o conceito de Baruch Spinoza “Deus sive natura”, e parte o absoluto ao mencionar
“natura sive deus” (JLA, p. 65), tornando-o “deus”, plural, e trazendo-o para o espaço
do comum (de sua comunidade) de modo que a santidade una será, agora, múltipla e
partilhada por aqueles que comungam do “Luar libidinal” (JLA, 91), do sexo de ler,
pela poética do olhar. E Llansol questiona: “Que afecto é a sanctitas? E ela narra o
momento da morte do pai:
107
levantei-me da cama e fui ___________________________ estamos
indo,
no dia em que meu pai morre,
ao 64 da rua Domingos Sequeira, com uma saia azul, de peitilho. É o mesmo
vestido, lido de outro modo.
Na sala onde agonizava só se ouvia a sua respiração, tudo
o mais estava opresso, pesava.
reconhece-me,
a rapariga que sempre fui, a seus olhos, o rapaz que
não sou
vai morrer sem deixar varão, porque esse mandar abortar à
criada que amara,
sobre o meu vestido pousava o não-dito, um texto que haveria
de ser dito,
que, dizendo a vida, fosse capaz de abrir a morte, porque os últimos
momentos são estranhos,
uma espécie de realidade incognoscível que, a partir de um dado instante
imponderável,
se torna conhecida ___________ o seu vivo trémulo deixara de oscilar, caíra.
A sala ficou uma placa de cobre gravada nesse instante
breve,
soubesse eu ver onde tombara
aquela vida
onde, ao deixar de ser meu pai, me estava escrevendo que éramos
simplesmente irmãos,
depois de tantas lutas familiares, perdidos nos intestinos da parentela, o que
ali estava a tombar em fezes
era o centro solar de um conflito, um tu rei a desfazer-se em pó,
e dir-se-ia que Témia avançava com o seu dedo,
e tocava num interruptor que faria disparar todo o seu sentimento de opressão
(JLA, p. 90-91)
Afeto, este, em que a santidade vai ao acolhimento do narrado, da palavra dita,
em silêncio e voz. Voz que não tem como direção “o outro” senão “o outro” que é,
somente, “si mesmo”; um eu-linguagem; um eu-pensamento onde “anjos” nada mais
são do que textuantes nessa comunidade llansoliana de legentes; sendo “um alguém-
mão que vem ao (meu) encontro e fica (comigo) a conversar” (P, p. 180). Alguém, esse,
que permite a experiência do viver, porquanto traga consigo a potência de uma
transcendência divina pela faculdade comunicante com o Aberto e com o infinito que
tudo sabe porque dá a ver: “—Anjos é um nome meu (disse o olho da árvore, o Grande
108
Maior); As gravações (de voz) não eram para os anjos. Eram para a tua memória-
alguém. Para que conseguisses viver” (P, p. 116).
Daí que Llansol jogue com as palavras “túmulo” e “tálamo”58
em Parasceve, por
conjugarem entre si de aproximação fonética e semântica ao pensamento desenvolvido.
“Tálamo”, lugar híbrido de multi significação, traz três acepções; podendo ser:
“leito conjugal”, “receptáculo das plantas” e “parte encefálica”, localizada no
intermédio cerebral sendo responsável pelas funções de transmissão motora e regulação
dos estágios de consciência, sono e atenção. Imagens, essas, distintas; mas que
contornam Parasceve em complementaridade porque o que em suma o texto mostra é o
movimento, o processo de tomada de consciência de um “eu” em seus estágios de
apreensão do conhecimento pelo viés do amor e do acolhimento, estando esse “eu-
alguém-outro” sempre em lugar de intermédio que é a posição gerativa. É a narração de
uma aprendizagem pela voz de quem aprende. De quem duplamente aprende: pois tanto
aprende a dizer o que aprende, como a reconhecer o modo como se aprende.
Aprendizagem que é busca, na procura de um “como”. Eis a força textual evidenciada
neste percurso – dada no e pelo movimento dessa introspecção deambulatória em torno
de um si. Nesse mergulho interior, Parasceve se revela, sobretudo, uma “doce
esperança” (P, p. 126), onde “o candeeiro, a luz e o rasto caminham num único
movimento solidário” (P, p. 129).
E assim, Parasceve vem a ser o lugar obsceno da ressuscitação; “onde” - diz o
texto - “o desejo der com o túmulo dará com essa presença a que chamas anjos” (P,
123). E “o lugar obsceno” é, especialmente, aquele que, estando fora de cena, fora de
foco, passa em perversidade por dentro do verso, implicitamente, em tensão entre o dito
e não-dito. Ou, simplesmente, um “cone de luz e sombra” por onde “as presenças
58
“Túmulo também lhe sugere tálamo”; “É certo que num quarto, num tálamo feito de chão [...]” (P, p.
149).
109
surgiam” (P, p. 119) e onde “nenhum objecto era disponível para censura”.
Obscenidade, essa, que tanto propaga quanto é fruição e pulsão do próprio desejo. Diz o
texto que “o ruah vive apenas no silêncio interdito, obsceno. Nesse túmulo vivo de que
te fala o desejo; e era isso que traziam os anjos” (P, p. 120-121).
Decepação e voz são aqui trazidas enquanto movimentos de busca, de modo que
a palavra dita é “apenas uma parte da (sua) respiração”: “Era certamente o desconhecido
desconhecida que eu viera buscar no beijo que me abrira a porta da vida” (P, p. 179);
em que o conhecer só poderá ser trazido por um “movimento inverso do habitual” (P, p.
180), em um “ler ao contrário a sua vida”(P, p. 89) onde o “conhecido” é alcançado por
“mãos decepadas” (P, p. 87). Descobrimento, esse, que vem tensionado por um
processo de esvaziamento e ressignificação da palavra; já que, como dito, “recordar é
quase, de certeza, um ainda-mais-morrer. Ler o novo é, de longe, preferível” (P, p. 148).
Neste capítulo que se objetiva ressaltar a questão do júbilo pelo movimento
cíclico de nascer-morrer, pelas vozes textuantes metamorfoseadas e híbridas, como a do
“lápis [que] quer a noite” (P, p. 50) para com ela ver a luz; e onde, sobretudo, “a
angústia que (a) invade é sem importância” (P, p. 45), deixa-se inscrita a voz da
rapariga-mulher-Témia:
e, se escrevo esta breve passagem autobiográfica,
é para indicar onde nasce uma palavra livre,
como nascida de uma morte, escreverá para lhe retirar, um a um, todos os
atributos perecíveis, como estes não são do corpo, mas de um Luar libidinal
inadequadamente punitivo (JLA, p. 91).
110
CAPÍTULO IV
“UMA SETA PARA QUE GUARDES NO CORAÇÃO”
111
(4 de Out. [2004]
___________ eu experimento a luz; tiro uns objectos, ponho outros, afasto uma cadeira______ e sei
que a luz tem uma incidência imediata no meu espírito________ conforme as partes que ilumina,
estabelece-se uma ponte e, quando leio, a leitura passa por essa luz, regulo as gradações e a
sensibilidade ao grande texto de um autor que começo a conhecer é imediata.)
Maria Gabriela Llansol
112
113
4. “UMA SETA PARA QUE GUARDES NO CORAÇÃO”
4.1. Porque é preciso dizer adeus
“Devolve o sol a quem lê”
Llansol, Amigo e Amiga
Eis um pedido de Textualino: “Devolve o sol a quem lê” (AA, p. 166). E devolver
“o sol a quem lê” é, sobretudo, um ato de amor. É conferir ao outro, seu legente, uma
nova chance; possibilidade que, dada pela luz vinda em retorno, é modo de
ressignificação. Pois “luz” é aqui anunciada enquanto “o único leito da linguagem”
(AA, p. 169) quando “o silêncio que silencia o silêncio cresce” (AA, p. 175) – silêncio
que vem em dobra posto (em) que é curso. Silêncio, este, que “não fala, ele significa”
(ORLANDI, 2007, p. 42). Segundo Eni Puccinelli Orlandi, “o silêncio não é o ‘tudo’ da
linguagem. Nem o ideal do lugar ‘outro’, como não é tampouco o abismo dos sentidos.”
E afirma: “Ele é, sim, a possibilidade, para o sujeito, de trabalhar sua contradição
constitutiva, a que o situa na relação do ‘um com o ‘múltiplo’, a que aceita a
reduplicação e o deslocamento”. E que, portanto, “nos deixam ver que todo o discurso
sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa” (ORLANDI, 2007,
p. 23-24). É nesta perspectiva que se diz que o “silêncio cresce” (AA, p. 175); onde
silenciar o silêncio não se remete ao não-dizível ou a um estado de censura, mas ao
movimento que ultrapassa a relação da dicotomia entre o dito/não-dito, na qual fala o
sentido.59
59
Segundo Orlandi (2007), “há uma dimensão do silêncio que remete ao caráter de incompletude da
linguagem: todo dizer é uma relação fundamental com o não-dizer. Essa dimensão nos leva a apreciar a
errância dos sentidos (a sua migração), a vontade do ‘um’ (da unidade, do sentido fixo), o lugar do non
sense, o equívoco, a incompletude (lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível), não como
meros acidentes de linguagem, mas como o cerne mesmo do seu funcionamento. Movimento, mas
também relação incerta entre mudança e permanência se cruzam indistintamente no silêncio. Nem um
sujeito tão visível, nem um sentido tão certo, eis o que nos fica à mão quando aprofundamos a
compreensão do modo de significar do silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 12-13).
114
Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 vem a lume em 2006. E “curso”, aqui,
tanto remete a fluxo quanto à aprendizagem de silêncio. E Llansol indaga: “— O que é
o texto em face do silêncio? O seu receptáculo” (AA, p. 156). Lugar de atenção e
acolhimento, portanto: “A chave era simples – era o silêncio” (LHV, p. 676). Isto
porque aprender o silêncio, silêncio que é fundador60
, é, sobretudo, compreendê-lo em
sua relação com a palavra. Buscando compreender a materialidade simbólica do
silêncio, diz Enni Puccinelli que “estamos nas palavras para falar com 61
elas”
(ORLANDI, 2007, p. 15), transfigurando-as em imagens e estabelecendo com elas um
“jogo”, como está registrado na epígrafe da Tese.
Amigo e Amiga emana a dor da morte pela vivência da perda irreparável que
representou o falecimento de Augusto, seu “ambo”62
. Com, 253 páginas, o livro é
dividido em quatro partes: “O Golpe”, “Delírio em Parasceve”, “estere” e “______
Estou bem; além de mais uma adenda onde escreve: “Hoje, terminei o ciclo do dia”
(AA, p. 243) “das operações divinas” (AA, p. 245). Assim, através do percurso traçado
por entre os caminhos de Parasceve, chega-se à fala, na última parte: “________Estou
bem.” Na e pela vivência do luto de um ambo, o curso é uma meta-aprendizagem, aonde
o conhecimento vem com e através do texto: “Porque presumo que há de ensinar-me o
dobro das palavras que sei” (AA, p. 73).
Em fragmentos e por cenas fulgor, características da escrita llansoliana, a
textualidade é assim tecida. Nota-se que o sumário vem nomeado por “Tábua de
matérias” onde cada capítulo, numerado em ordem crescente por algarismos romanos (o
60
“Silêncio que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser
outro, ou ainda que aquilo que é mais importante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e
do silêncio nos levam a colocar que o silêncio é ‘fundante’ [...] – princípio de significação: o silêncio
como fundador” ((ORLANDI, 2007, p. 14). 61
Grifo nosso. 62
Segundo Maria de Lourdes Soares, em “Um torvelinho de intensidades”: o texto-querubin e daïmon da
escrita, o “ambo” é visto enquanto “nó de afeto que une Amigo e Amiga em um só corpo, como o laço
que une Ana e Myriam na sua estátua. In: http://www.revistaabril.uff.br/index.php/revistaabril/article/view/169/108
(Acessado em 15/10/2016).
115
uso desses numerais vêm sugerir uma aproximação ao antigo Livro das Horas no que
tange à escolástica do medievo, além de ser possível se pensar na anulação dos tempos
pela sobreposição entre o passado e o futuro, existindo apenas o presente pela
intensidade e continuidade do instante), traz a linha de pensamento sobre o qual a
palavra dita se amplia. Se assim se estrutura o elo da textualidade do livro exposto; há
uma outra textualidade implícita, porque não-convencional, submersa nessa “tábua de
matérias”; textualidade também transparente, porque não se mostra nem se evidencia;
mas que se insinua em camada lírica, tensionada pela força atrativa e sinestésica vista
pela sequência das frases/versos pontuados no índice. Desta forma, é possível ler em
verso o que diz cada capítulo, em sentido e direções diversas, conferindo ao legente o
seu próprio caminho de deambulação e descoberta no espaço não marcado da “matéria
figural”, pelo curso ainda silencioso da escrita. Para isso, entretanto, caberá a quem ler
que leve consigo a partilha afetuosa da leitura por fragmentos e a abertura necessária a
fim de se descobrir novas pontes. Eis uma trajetória possível onde cada verso aqui
escrito é um enunciado capitular de Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004:
Do amor
Hoje, terminei o ciclo do dia
das operações divinas.
Do corpo para a prata,
os despejos do presente
no lento lendo,
o silêncio.
Há
uma esfinge
do amor
na espuma do texto,
esquecimento?
Alguém,
o adulto,
não desaparece
onde se enterra o mar.
Debaixo do seu véu,
uma rosa insustentável
se desvanece.
Folhas a cair
de Parasceve.
116
A copa da grande árvore
dizia como brisa
na noite obscura
do liberto
que se abrisse,
que se destacasse
Há
o homem enfermo
à porta. Na sua vida?
Encontro meus irmãos
das imagens curativas.
Musiquia,
“tsi-z-li”,
numa toada musical,
Era um Textualino
de pregas invisíveis
um convívio
atento
para as figuras.
A dissonância dos tempos e das fases.
Este crepúsculo antigo
do flutuante
humano Bach.
Debaixo da língua
Modos de morrer
Se assumiam a si mesmos
No transparente
A ouvir ler
Um livro mais remoto
Curso de silêncio: é isto.
________ e suspendi.
Este é o Jardim que a ausência permite
Um paradoxo inexplicável
Numa reminiscência difícil de quebrar.
À hora preliminar da tarde,
entra na minha vida
para transformar
meu timbre
que o revelará.
Na primeira parte intitulada “O Golpe”, Maria Gabriela Llansol, ao dizer da
imensa dor sentida, vai aliando a esse sentimento de vazio à relação do fazer escritural.
Do vazio da perda física ao vazio fecundo sobre o qual a arte se funda e se alimenta.
Assim, ao expressar o vazio que o luto sugere, a autora traz à tona o processo pelo o
qual a escrita nela nasce, “quando o negro chumbado da noite” cai e se desfaz em
“espuma do texto” (AA, p. 11). Escrita de amor em canto órfico uma vez que é pela
matéria figural que o seu amor humano se corporifica e se desvanece. O texto se abre ao
117
caminho de Parasceve, por essa linha de aprendizado que é, sobretudo, o movimento
cíclico do nascer-morrer, pela constante decepação da memória. Esse é o curso. Essa é a
aprendizagem desejada, trazida ao e pelo fio da leitura (ou das leituras). Há que se
“rezar a leitura”, aprender a grande mensagem dos textos antigos, pois “o que o ler
ensina, a vida sobre a terra esquece”63
(AA, p. 116); Há que se recordar “Ana ensinando
a ler a Myriam”, Há que se retornar ao “Drama-Poesia”, indo ao encontro de si pelo rio
da escrita e, assim, se reencontrar com Jade, com quem divide a esperança de um “amor
crescendo à semelhança do que fora uma alma crescendo” (AA, p. 15). Percurso interior
necessário para que seja ela a sua “Casa de Saudação”. Ela, a autora, ora textuante, diz
no que nomeia “ver-me”, capítulo XXXV: “O que foi casa, não importa onde e como,
desde ‘que sou casa’ de Hölder, de Hölderlin à Casa da Saudação ______”; sendo, desse
modo, ela própria, o seu abrigo. E acrescenta: “A finalidade da Obra terá certamente o
seu selo no cume da árvore”, ao som, enfim, da copa de Parasceve, pelo interstício
silencioso que vem em folha: “Entre duas, ou mais folhas, o Nómada fala de mim:
‘julga que precisa de companhia, /quando o que precisa/ é de matéria figural/ para
transformar” (AA, p. 49). Assim, “Casa de Saudação” é a casa também onde a saudade
é posta em ação. Lugar-abrigo do movimento, da história e da tradição reinventada.
Lugar mítico64
por excelência por onde Eduardo Lourenço tece sua “Mitologia da
saudade”, já que “com a saudade, não recuperamos apenas o passado como paraíso;
63
Cabe aqui ressaltar a ideia possível de sobreposição: “o que o ler ensina [sobre] – ou seja, acerca de –, a
vida sobre a terra esquece” (AA, p. 116, grifos nossos). E o que se ensina está sobre a terra, o que remete
à ideia de Mestre Eckhart sobre o “homem humilde”, originário do étimo latino húmus, que quer dizer
“terra”. Ou seja, o homem humilde é aquele ligado à terra. 64
Segundo Junito de Souza Brandão, “o inconsciente coletivo é constituído pela soma dos instintos e dos
seus correlatos, os arquétipos. Assim, como cada indivíduo possui instintos, possui também um conjunto
de imagens primordiais. Assim, tem-se o mito como exteriorização de conteúdos do inconsciente
coletivo” (BRANDÃO, 2011, p. 14). Desse modo, o “lugar mítico” é o espaço por onde emana esse
inconsciente coletivo não definido no tempo-espaço e de que o livro se ocupa. Diz ainda Junito, com base
em Arcângelo Buzzi, que “harmonizar logos e mythos, ao mostrar que ‘o discurso linguístico enuncia
intensamente esse espetáculo de solidariedade dos opostos, procurando aproximá-los e integrá-los
pacífica e conflitualmente, então o discurso, mesmo que use palavras-de-ciência, é mítico e
consequentemente literário” (idem).
118
inventamo-lo”, e onde “a saudade parece modulada pelo ritmo universal do mar”65
.
Desse modo, diz Eduardo Lourenço, “descobre-se, sem bem o saber ainda, que a
eternidade é feita de tempo, e o tempo de eternidade. Tudo aí, simultaneamente, passado
e presente” (LOURENÇO, 1999, p. 14). Lugar, enfim, infinito de aprendizagem e de
escuta, posto que “ninguém morre no país da Saudade66
. Como nos sonhos”
(LOURENÇO, 1999, p. 15). Com Maria Gabriela Llansol, percebe-se a passagem desse
tempo saudoso ao tempo do júbilo pela aceitação e reconhecimento da relação de
reciprocidade que há entre tempo e eternidade, convocada por Eduardo Lourenço, já que
o projeto de leitura e escrita levantado por Maria Gabriela, implica a clareza desse
saber. Llansol se dobra à morte, ao fim pressuposto, na medida que não nega e não teme
o vazio; mas contorna-o, levando-o ao limite o seu sentido gerador. Com Maria
Gabriela, não há recusa67
; há um rio contínuo de escrita, metáfora gráfica da não recusa
à realidade material.
4.1.1. Devolve o sol a quem lê
Devolver “o sol a quem lê” sugere que o processo de leitura/escrita ocorre num
continuum, em modo hiperbólico de desdobramento. Amigo e Amiga – curso de silêncio
de 2004 é assim definido por Llansol: “Estes fragmentos, curso de silêncio de 2004,
estão desprovidos de um elo lógico. Eles contêm a maior experiência de dor de uma
65
Retoma-se o fragmento llansoliano de Um beijo dado mais tarde: “É o cheiro do mar que me conduz ao
mar” (BDMT, p. 96) para expressão ampla da acepção de que “mar” agrega no imaginário português. 66
Destaque de Eduardo Lourenço no livro Mitologia da saudade (1999). 67
Eduardo Lourenço nos fala que o povo português, “imemorialmente rural, absorvido por fora em
afazeres desprovidos de transcendência, mas levados a cabo como uma epopeia, com o seu talento do
detalhe, da miniatura, é um povo-sonhador. Não especialmente por ter cumprido sonhos maiores do que
ele, mas porque, no fundo de si, ele recusa, o que se chama a realidade. Ou, se se prefere, a ordem do
tempo, rio sem regresso. [...] os portugueses suportam-na (a realidade), mas não se dobram diante de
nenhum desmentido da realidade”. Daí que o autor diga: “É esse lugar de sonho, esse lugar ao abrigo do
sonho, esse passado-presente, que a ‘alma portuguesa’ não quer abandonar” (LOURENÇO, 1999, p. 14,
grifo nosso) – Lugar, esse, sobre o qual Llansol abandona e busca nova ressignificação.
119
mulher resistente.” (AA, p. 35) A ausência de “elo lógico” vem negar a prática dos
discursos feitos por processos de verossimilhança e de linearidade do discurso,
compreendidos segundo as estruturas do cânone literário; pois, em Llansol o
encadeamento da ideia se dá por uma escolha afetuosa, pela construção de laços de
afeto. Os elos firmados são sinestésicos, trazidos na escrita pelo “princípio da imagem”
(AA, p. 30), por cenas fulgor escritas em fragmentos. Ainda sobre os fragmentos,
Llansol traz voz e silêncio em convergência como matéria figural: “Serviram de matéria
de ensino oral sobre a ferida da morte nas escolas do vale – e o aberto silêncio
envolvente”. E a autora acrescenta: “uma pequena aluna disse a outra pequena aluna que
estudava o que tem sete dobras ou sete lâminas, num nevoeiro claro. Quem o disse não
fui eu, foi aquela outra, talvez minha constante semelhante” (AA, p. 35). Essa imagem
da criança, do infante aprendiz que vem “com um odor na mão a amparar o adulto”
(AA, p. 25), inferem as dobras pelas quais o “eu” em travessia é convocado a passar:
“vejo tudo, sobre sobretudo” (AA, p. 188)68
. Travessia dada pelo processo de
revisitação, se a voz de Textualino for lembrada: “Devolve o sol a quem lê”. Importa
mencionar que o “eu” é voz múltipla, impessoal, porque é ser em transformação.
Metamorfose e deambulação pelo constante modo de decepação da memória, já que
“dobra” é “lâmina”. E a autora finaliza o fragmento: “ela chorava, porque sofria a
resistir. Depois, deixou de sofrer, numa alegria de decepação. Melhor que lágrimas”
(AA, p. 35). Eis a expressão do júbilo a que se objetiva demonstrar trazida pela
memória, voz e silêncio. Alegria que em Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 é
atravessada pelo percurso silencioso da aprendizagem da convivência da dor da perda
68
No afastamento que o exílio lhe confere, Llansol se põe diante da experiência singular que nasce entre
vivência e experiência. Nesse distanciamento geográfico, linguístico e social aprofunda-se a sua noção do
júbilo, posto que não se põe em nível ficcional (No “eu” que é “ele”), nem em nível circunstancial (No
“eu” que é um “outro”), pela perspectiva do ser-cultural. Mas, a ideia do júbilo nasce a partir da
compreensão de que o existir se dá na dimensão do seu “ser-assim”; da não exclusão de opostos; naquilo
que se mostra pelas dobras de sua especificidade: “Eu não sou jamais isto ou aquilo, mas sempre tal,
assim. Não posse, mas limite; não pressuposto, mas exposição” (AGAMBEN, 2013, p. 90).
120
de um “ambo”, seu “amor humano”, o seu também “companheiro filosófico”69
. É dor e
silêncio. Silêncio, luto e ressuscitação. Silêncio que se faz ponte nesse caminho que
vem amparado e sustentado por seus textuantes-familiares, convivas que com a mulher
compartilharam nós de afeto: “Para consolar da perda irreparável, digo à mulher que
este Curso é um convívio” (AA, p. 229). Foi assim escrito em “atento”, capítulo que
sugere o modo pelo qual quem lê/escreve devem estar: em atenção; pois “Não se lhe
confere o Curso, mas nele estão implícitas as promessas invasoras que a figura
desenhou na densidade” (AA, p. 229); ou ainda: “O céu dos interlocutores que se
estimulam e entendem está presente” (AA, p. 29). Assim, Llansol diz: “Partilho com
eles a grande dor oculta de não sermos abertos nunca mais. Entre seus livros, encontro
meus irmãos” (AA, p. 148). Daí que se encontra, no corpo de escrita, uma invocação de
figuras de outrora ao modo de uma revisitação a tudo que lhe deu ou fez sentido ao
longo da jornada. Tal como um funeral, seus textuantes-familiares lhe concedem
amparo e acolhimento: “Esta figurinha de madeira [...] é da mesma família do que eu”
(AA, p. 18). Pela voz do Nómada, lê-se:
julga que precisa de companhia,
quando o que precisa
é de matéria figural
para transformar.
Ainda sobre o processo de deambulação e metamorfose brevemente exposto, lê-
se abaixo o movimento de “liberdade da alma”, enquanto ação consciente, movido e
alimentado pelo próprio desejo e vontade:
a vocação do homem é a de fazer confluir
o ser e o não-ser no entresser.
Nesse movimento, a mulher não será mais
passagem, nem mediadora, mas o ser de entre.
69
Figura que se remete a Vergílio Ferreira, no Diário III, Inquérito às Quatro Confidências.
121
Tudo de nada. Não serão o poder e o medo que
lhe imporão o seu movimento.
Mas será ela mesma que animará o movimento (AA, p. 172).
“Sei e seio”, sei-o; é jogo que Llansol nos mostra na página 16, “Sei” nosso e
“seio” nosso – o meu”(AA, p. 16), ao unir linguagem, alimento, desejo. Saber que vem
da boca, do desejo, da necessidade, da dependência, do outro – pela partilha e pelo
trabalho solidário da troca: “Compor este curso em que os ouvintes gozam, como eu, de
liberdade de consciência e do dom poético, é seguir um cardume de peixes, que me
procurou quando eu o vi evoluir no fundo do mar” (AA, p. 26). Saber, em suma, que
vem pelo toque sinestésico da língua: “É isso, a língua sente a perda da língua
companheira. _________ é essa a descoberta do dia. Quem não sente esse contato
directo _________ ficciona. Ficcionar é repulsivo para o silêncio” (AA, p. 26)
Sobre o silêncio, Maria Gabriela Llansol diz: “palavra vem, palavra vem, por
favor”’ indecisa, mal decidida ainda, é uma recém nascida no lento lendo” (AA, p.
27) Silêncio é, aqui, a palavra nascente – o rumor, nascido do desejo e da vontade. É o
que vem com “o tambor da clorofila” nascido do seu “corpo corruptível”. É a palavra
“recém-nascida” que, à imagem da criança-bebê (por entre o “sei” e o “seio”), é
aprendiz. Aquela que só tem expressão pelo corpo, pelo campo sinestésico dos sentidos,
porquanto ainda lhe falte a linguagem comum, verbal (canônica e paradigmática) do
adulto70
. Silêncio que é espaço de comunicação dado pelo olhar: “O lugar de alguém é
fundamentalmente o olhar _________ e o olhar da gruta é o teu, Musiquia. ‘É a cadeira
do lume?”’ (AA, p. 83). Luz e voz, a dizer e a amparar no lento lendo movimento de
transformação e transfiguração ao que o texto convida e diz: “eis um berço aqui
presente, a casa transparente de um tambor por construir; eis uma emoção intelectiva
que reabre, e se vira para a árvore” (AA, p. 27).
70
Ou seja, para a criança vem primeiro a imagem, depois o nome / palavra.
122
Pelo processo silencioso de escrita, há, no enlevo das linhas, o bordado que se
mostra e diz; e em face deste, do que aparece, existe, ao mesmo tempo, aquele que
desaparece, nunca sendo totalmente concluído. Esse é o texto llansoliano, é tecido
aberto que, no tempo de sua construção, segue em direção ao sempre novo, um ciclo
inconcluso, um “ser sendo”. E a autora diz: “Agora, era a produção da flor do silêncio;
depois, seria a maturação do seu fruto; depois a sua música; depois a sua cacofonia71
;
depois, o seu conhecimento por vias rápida72
; depois, o seu desejo sexual, realçado em
luar libidinal73
” (AA, p. 12).
4.1.2. Agora, era a produção da flor do silêncio
Eis que a imagem da capa é um bordado, tecido onde há várias flores
ramificadas, de diferentes formas e tamanhos. O tecido é recortado em forma de um
pássaro a apontar para cima, para o alto da página. Essa figura de pássaro está
sobreposta a um outro tecido, liso, mas onde nele é possível visualizar ondulações e
manchas que sugerem um modo de flor. A capa é uma fotografia de Duarte Belo e o
bordado retratado foi feito pelas crianças da Escola da Rua de Namur sobre um desenho
de Augusto Joaquim.
O texto se abre pela fotografia tirada em uma ocasião de alegria pelo
recebimento do prêmio por Maria Gabriela Llansol. Nela, Llansol e o marido, Augusto,
estão de mãos dadas, sorrindo, felizes, juntos. Curioso notar que o casal dirige o seu
olhar para baixo, para a terra, para um dado humano presente, contrapondo-se ao
sentido da ave da capa. Busca-se com isso elucidar que os dados iconográficos
demonstram o modo tensional da composição por efeitos de oposição, em dobra
71
A imagem / o imagético, imaginário. 72
A palavra / o nome / o nominal, designativo. 73
O símbolo / o simbólico.
123
imagética. Se o bordado que a antecede é um colorido em verde e lilás (símbolo do
advento, segundo preceitos da filosofia católica), a imagem fotográfica se dá em preto e
branco, no choque entre o claro e o escuro. E se a foto é leve e jubilosa74
, dada a alegria
envolvente; na página seguinte, o punctum é desviado e uma quebra se realiza pela
palavra “o golpe”, primeira parte do seu curso.
4.1.3. O Golpe (p. 10 a 46)
Diz Llansol: Estes fragmentos, curso de silêncio de 2004, estão desprovidos
de um elo lógico. Eles contêm a maior experiência de dor de uma mulher
resistente. Serviram de matéria de ensino oral sobre a ferida da morte nas
escolas do vale — e o aberto silêncio envolvente; (AA, p. 35)
Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite acende-se
sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vaguear.
(AA, p. 11)
É pela página 11 que se inicia o “curso de silêncio”, trazido, assim dito por
Maria Gabriela Llansol, a partir do momento em que tudo ao seu alcance se imobiliza e
um alguém, um “trilhador dos mundos”, se senta à “soleira de um barraco de cristal” e
se localiza “sobre um objeto deixado” por ele próprio que é “o estudo do texto” por
onde nasce a escrita, conferindo-lhe “o estatuto de nómada”. Ele, sem situação social
conhecida, um homem quotidiano, partido em fragmento, move-se, flutuando por
impulso no ar. O movimento é de vagueação. Ele, como as folhas do plátano, agora, são
“vagamundos”. Um convite dado pelo entrelaçamento de olhares, entre mundos, em
silêncio, no jogo das aparências que se desfazem na e pela “espuma do texto” (AA, p.
11).
74
Diz-se que a foto é jubilosa porque é única; onde a ideia de unicidade llansoliana parte do conceito de
que o único “em mim” é aquilo criado “por / em mim” – noção de criatividade implícita a partir do
deslizamento do verso camoniano “engenho e arte”.
124
a partir do momento em que tudo ao meu alcance se imobiliza, sinto
a copa da árvore verdejante, à entrada de um ramo; vindo de um ponto
movimentado de vila próxima,
um trilhador dos mundos senta-se na soleira de um barraco de
cristal. Está centrado sobre um objecto que deixou __________ o estudo do
texto em que escrevo e que lhe conferiu (necessitaria ele?) o estatuto de
nómada. Sem situação social no conhecimento. As folhas adoram
vagamundos. A vagueação. E as daquele plátano, e árvores limítrofes, não
são excepção à regra. Assim, ele, partido em fragmentos, move-se, flutuando,
por impulso do ar. É um homem quotidiano, sem nenhum sinal de ilustração
nas mãos e/ou no rosto. Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria
que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio.
[...]
Convido-o para o meu quarto,
que se desfaz na espuma do texto.
A ondulação textual traz e desfaz o lugar fronteiriço de onde as vozes se
entrecruzam; pois o que une os espectros nesse espaço é a “afinidade espiritual”, “ponte
e palavra”: “________ entre aquele homem, e aquela fonte ________ havia uma
afinidade espiritual ________ ponte e palavra”. O percurso de um a outro ficava sem
linhas, rapidamente, por instinto e, independentes, se sobrepunham no mesmo lugar. A
fonte movia-se, o homem parava, e eu observava a caríssima forma de se estimarem”
(AA, p. 12). Pois, ler é o mesmo que escrever – é ato de amor, forma (modo) de se
estimarem.
Em Amigo e Amiga, o ser e o estar são postos lado a lado, em constante jogo de
presença e ausência, trazidos à luz da escrita, por efeito de dobra textual pelo viés do
silêncio75
: “Sem estarem em Parasceve, tudo decorria muito próximo do tronco (...)
onde os silêncios diversos que existiam pairavam e construíam ninhos”. E quem lê,
escreve: “Agora, era a produção da flor do silêncio” (AA, p. 12).
75
Segundo Luci Ruas, em Na paz subalterna da de criar figuras – uma leitura de Amigo e amiga, de
Maria Gabriela Llansol diz que “o silêncio desse curso é uma forma permanente de insurreição. Falar aí
implica silenciar”. In: http://www.omarrare.uerj.br/numero13/luci.html (Acessado em 12 / 06 / 2016).
125
4.1.4. “Afinal, uma única melodia respondia ao silêncio” (AA, p. 15)
O trabalho de escrita de Llansol se realiza por uma atividade de escuta, trazida
por uma oralidade dos seus textuantes reais e não-reais. É escuta, afeto, leitura. Leitura
e decisão de escrita. Assim, escreve-se: “ouvi-o fazer a pergunta/ injuntiva/ amorosa por
excelência // ‘mata a minha sede’ Ou // dá-me de beber”. “Matar a sede” de outro e “dar
de beber” a alguém que sente a sede não são a mesma coisa. A ação de “matar a sede”
torna quem bebe um ser passivo; enquanto o “dar de beber” a outrem, dá a possibilidade
do autoconhecimento; pois permite a quem bebe conhecer o limite de sua sede, em
encontrar por sua própria mão o caminho do equilíbrio necessário à saciação. E o texto
responde na página seguinte: “dá-me de beber” pela figura de linguagem leixapren,
oriunda das Cantigas medievais. Pelo jogo anelante das palavras que nunca se tocam,
mas se desdobram, há o espelhamento dos corpos físicos agora divididos pelos dois
planos: material e espiritual. Vozes que se buscam e que só encontram abrigo pelo viés
das mãos. Essas são as vozes ou, simplesmente, a voz agente do texto.
É voz sem tempo, polifônica porque impessoal, mas que canta ao pé e à soleira
do “barraco de cristal” de quem lê e escreve, porque assim se escuta, pelo som do afeto
que vem à margem de uma página e outra. Vozes que dialogam sem se tocarem no
mesmo espaço, tal qual “os ambos” que ora se encontram. É canto órfico a dizer essa
cantiga de aprendizado na espiral do tempo e espaço; canto que tudo diz em dobra, por
sua mancha de incompletude e silêncio. É a impossibilidade da obra; é a continuidade
da vida. Lugar tensional da escrita que prediz o júbilo pela aceitação da entrega.
Fazia escuro, fazia luz, as praias rodeavam o silêncio na aceitação do
descalabro das ondas e suas vagas mínimas que circulavam em fúria redonda.
Mas não era o caos, era a caótica natureza da sua carne em marcha que,
rodando mais uma vez sobre si mesma, se aquietava,
em resposta ao Amigo
________ oculto no mar ________
126
Não seria sonho,
ou delírio; ou disfarce
________ era a realidade
absoluta. (AA, p. 13)
127
4.2. A obra inacabada e as dobras do tempo e espaço
O que vai seguir, esta manhã, é percorrer, de novo o meu desejo de
todos os dias,
permanecer no inseguro, subtraí-lo de algumas das suas partes,
atirar-lhe o salva vidas dos fragmentos.
Maria Gabriela Llansol
É nesse “golpe” que vem a ideia (vontade) de “marcar neste Curso 25 de julho
de 2023” (AA, p. 14). O dia 25 remete, em especial, à Revolução dos Cravos, momento
emancipatório na História portuguesa; mas também é a representação de um estado em
confluência, ao agregar os instantes limítrofes entre exílio e liberdade, entre dor e
alegria. Tudo ainda sugere a mesma data: com a soma não convencional do ano, é
possível se encontrar 25 (20 +2+3 = 25). Julho e Agosto são meses de verão que
marcaram intensamente Llansol, como ela própria afirma. Mas, em Amigo e Amiga, o
salto pro futuro é o desejo incessante do reencontro com o amado, ao tempo feliz que
um dia viveu; já que o hoje é marcado pela certeza da impossibilidade do pleno
encontro. Tentativa de driblar a morte pela escrita, eis o jogo trazido por essa linhas que
se dobram à esfera tempo (“Somente, o futuro hoje me envolve tão presencialmente que
quase asfixia como um véu lançado sobre os olhos. Ou, então, tão ligeiro e recuperável
que não paro de regular a circularidade concêntrica dos lugares” (AA, p. 14)) e espaço,
pela flexão “à coroa solar de Parasceve”, assim expresso em os despejos do presente:
hesitei entre enfrentando (o gerúndio) e enfrentar, mas achei que
enfrentando caracterizava uma ação, o movimento que, felizmente ou
infelizmente, demorava a percorrer ________ mas percorrer o quê?
________
um certo espaço,
que era a coroa solar de Parasceve
128
É dessa forma que o fio do texto (pensamento) percorre a obra. Obra que se faz
aberta, pelo fulgor das imagens que nascem no cotidiano e são postas em fragmentos.
Leitura e escrita, em reciprocidade. “Por que me veio a ideia súbita de marcar neste
Curso 25 de Julho de 2023, quando certamente aí não viverei? Deve ser um
sentimento de permanência antecipado que, de qualquer modo, se realizará por uma
abertura que eu não delimito, (...)” (AA, p. 14).
4.2.1. Um canto órfico na dobra do espaço da obra
“E julguei que para rir com alegria (quando?) toda a criação chorava e o
nosso amor humano também; todavia crescia indestrutível.
Na experiência do abandono que fazia ________” (AA, p. 15).
“No nosso caso, a perda era um amor crescendo, à semelhança do que fora
uma alma crescendo, no interior de um texto já escrito amar um cão”
(AA, p. 15, espaçamento e grifos conforme o texto).
Aqui, a autora faz uma revisitação à imagem trazida no seu livro Amar um cão,
de 1990, para confluir no espaço presente a ideia tensional da perda aliada à força
motriz de escrita, ora corporificada no texto atual, como um ser nascente. O amor que
cresce é o texto que nasce, é a corporificação de Nómada76
, fugaz, possível agora
somente de ser tocado pelas linhas que se enlaçam na “espuma do texto” (AA, p. 11), à
semelhança de Orpheu à procura de Eurídice. Uma “alma crescendo” é também
caminho de autoconhecimento; pois, na diferença de planos, o caminhar da descoberta é
feito pelos sentidos (“eu sentia”), tal qual a criança, aprendiz, a “rapariguinha” que um
dia fora. Nessa busca, Llansol traz para o espaço do não-lugar (solo) outras revisitações,
76
Ou “A. Nómada”; figuras llansolianas que indicam Augusto Joaquim. Luci Ruas, em Na paz subalterna
da de criar figuras – uma leitura de Amigo e amiga, de Maria Gabriela Llansol, escreve que “Orfeu
dilacerado pelo tempo, desfeito em tempo para acolher-se a uma gruta de onde podem emanar os sinais de
um amor que busca vencer as limitações do tempo e os impulsos ambíguos de Eros e Tánatos, para
tornar-se ágape. Orfeu dilacerado é A. Nómada”
In: http://www.omarrare.uerj.br/numero13/luci.html (Acessado em 12 / 06 / 2016).
129
flexionando no tempo presente o passado pela sobreposição de elementos de teor
imaginativo sendo estes de cunho verbal e não-verbal, plástico e sonoro, vivo e não-
vivo:
Tracei no solo do parque, como já fizera em rapariguinha para
brincar aos aviões, a árvore do silêncio que não era (eu sentia) o reverso da
árvore da vida. “Meu amoroso silêncio”, disse pulsando, qualquer ponta de
um coração criativo. E julguei que para rir com alegria (quando?) toda a
criação chorava e o nosso amor humano também; todavia crescia
indestrutível. Na experiência do abandono que fazia ________ (AA, p. 15).
4.2.2. À porta de Parasceve
Inquieto-me porque, quotidianamente,
devemos fazer os despejos do presente.
Maria Gabriela Llansol
Aqui, há o esforço de quem sabe ser necessário o permanente esforço de
decepação: “Inquieto-me porque, quotidianamente, devemos fazer os despejos do
presente” (AA, p. 14) onde há, por efeito de desdobramento, “uma dor vitoriosa” (da
decisão de escrita) que “cobria outra dor” (AA, p. 16), em “paz subalterna77
” (AA, p.
245), dependente de outra, e de outra, e mais outra... pois, a única certeza que
permanece é a do movimento continuado78
. Aventura que é experiência de escrita vinda
à contraluz79
: “e já o corpo, moderado pela placa da inteligência” (AA, p. 16).
77
Com Luci Ruas se lê: “A paz subalterna é silêncio libidinoso em busca da “outra paz, que o quarto
procura”’ (In: http://www.omarrare.uerj.br/numero13/luci.html (Acessado em 12 / 06 / 2016). 78
Continuação dada por sobreposição como se lê, também, em Os Cantores de Leitura: “A paz brilha na
tranquilidade. A tranquilidade brilha no sossego, o sossego brilha na provocação insólita deste sol, a
provocação da luz repousa no abscôndito, [...]” (CL, p. 272). Daí que diga: “A paz não existe” (LHIV, p.
24) posto que ela não se completa. Assim, em sentido pleno e absoluto, ela perde sua existência. Mas vive
por derivação como o ler que, a certa temperatura de escrever, “funde-se em outra escrita” (CL, p. 272). 79
Lembro, aqui, Novalis ao mencionar o conceito de Besonnenheit.Termo que significa “clareza de
consciência proporcionada por uma instância crítica – o que remete à ideia de “contraluz”, pelo
conhecimento trazido em luz e sombra.
130
A experiência textual é aqui moderada pela “placa de inteligência”, esse é seu o
vazio fecundante, sua luz trazida em desvio; pelo choque térmico entre a emoção, “fogo
que arde”, e a “placa fria da inteligência”; porque entre a mão que escreve e o corpo
textual que ora se forma, a luz que vem é a experiência nascente, moderada em desvio
pelo anteparo racional. Experiência luminosa que nunca finda, pois os raios refletidos
sempre se refazem ao jogo das imagens e sensações. Esse é mote e o modelo de criação
de Maria Gabriela Llansol. Tal perspectiva se apresenta no quadro renascentista “A
criação de Adão”, de Michelangelo, século XVI, que, ao pintar os afrescos da Capela
Sistina, retrata o exato momento em que Deus estabeleceu a criação do homem. Importa
observar que o Deus de Michelangelo se projeta em direção ao homem.
Geometricamente equilibrado pela extensão dos braços, o quadro traz em imagem
central os dedos alinhados que querem se tocar, mas há um espaço, o vazio, entre eles.
Se o braço estendido valoriza a associação entre Deus e o seu poder criativo, tanto mais
demonstra o interstício que existe entre as pontas de cada dedo. Por esse vazio se
evidenciam toda a tensão existente na criação. É o vazio fecundo dito por Llansol em O
Livro das Comunidades, nele há o poder da criação oriunda do desejo nunca atingido; é
a jouissance80
barthesiana como força motriz; desejo que é movimento pela completude
nunca atingida. Imagem que se remete ao livro Amigo e Amiga, de Maria Gabriela
Llansol, pois as mãos que se desejam também encontram esse vazio. Pequena distância
que é força atrativa, sendo desse quase lá a emanação de toda a força criativa. Esse
quadro, de 280 cm x 570 cm, de 1511, está no teto da Capela Sistina. A cena representa
um episódio do Livro do Gênesis no qual Deus cria o primeiro homem: Adão.
Deus é representado como um ancião. Seu braço esquerdo está abraçado a uma
figura feminina, normalmente interpretada como Eva – que ainda não foi criada e,
80
Força tensional do texto movida pelo prazer da escritura.
131
figuradamente, espera no céu para ganhar uma forma humana. O braço direito de Deus
está esticado para criar o poder da vida de seu próprio dedo para Adão, o qual está com
o braço esquerdo estendido em contraposição ao do criador. Em Michelangelo, Adão é
capaz de alcançar Deus mesmo antes de ter ganhado vida. Pela mesma razão, Eva é
vista representada antes de sua própria criação. As posições de Deus e Adão, a pintura
do braço direito de Deus e esquerdo de Adão são quase idênticas e representam o fato
de que, como diz o Gênesis 1:27: "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança".
Ao modo llansoliano, a imagem criada corresponde ao que cada um pode compreender
à luz de sua própria leitura, pelo afeto travado entre os corpos ao modelo de um
processo de imanência Spinosista81
. Por outra perspectiva, há estudiosos que dizem que
Deus estaria envolto de um cérebro e que seu o manto branco sugeriria um útero, assim
como a echarpe verde,que sai de seu ventre, poderia ser um cordão umbilical.
81
Imanência: Do latim (im + manare). Juntos agregam significado original de “existir e/ou permanecer
no interior”. A imanência Spinosista invoca aquilo que tem em si o próprio princípio e fim. Não
considera, para tanto, o aspecto de transcendência que atribui ao externo as causas daquilo ao qual se
designa. Isso, em contexto llansoliano, ganha especial relevo na compreensão do mundo para Llansol.
Para ela, não há causa externa que promova o bem, exceto o próprio trabalho e esforço humano alcançado
pela atividade do pensar. Daí que deslize metonimicamente a afirmação de Espinosa DEUS SIVE
NATURA para DEUS SIVE LEGENS . Ou seja, Deus não está fora do mundo; mas, sim, no mundo, entre
os homens e por eles sentido através de um corpo de afeto em que tudo é capaz de compreender através
do “olhar”. Em O azul imperfeitto – Livro das Horas V, se lê: “Se insisto na linguagem é porque ela é o
espelho do ser; e se eu atravessasse uma casa escura, ou uma época do conhecimento da minha evolução
particularmente difícil, escolheria a linguagem como guia. Voltei-me para a Quimera, minha amiga e ali
sentada, e com o profundo sentimento dos caminhos e desvios que iria atravessar, disse-lhe e disse a mim
mesma: — A linguagem te guie” (LHV, p. 508).
132
[A Criação de Adão, Afresco de 280cmX570cm por Michelangelo,1508-1512, teto da Capela Sistina,
Roma]
Da força que conduz o processo de criação, diz Llansol: “hesitei entre enfrentando
(o gerúndio) e enfrentar, mas achei que enfrentando caracterizava uma ação, o
movimento que felizmente ou infelizmente, demorava a percorrer __________” (AA, p.
15); pois “este é o instante que não se mede pelo instante seguinte. Isto é o tempo” (AA,
p. 62). Dessa forma, pelo imperativo do dado referencial e da intensidade remetida pelo
aspecto memorialístico, os tempos se entrecruzam e ferem a linha marcadamente
cronológica e, assim, “das cinco horas” (AA, p. 40), chega-se às “quatro da manhã”:
“Mudou a hora para a hora de inverno, e são quatro da manhã e já tenho oito
horas de sono” (AA, p. 41, espaçamento conforme o texto base). Observa-se que há
espaços de distanciamento gráfico entre uma palavra e outra, indicando reflexão, tempo
de maturação, pensamento em desenvolvimento. Para além das estruturas de oposição
que constroem a tensão textual e vão percorrendo todo o texto, esses espaços se
mostram enquanto força atrativa e pulsão movente do ato de criativo. Espaço, esse,
fecundo como demonstrado a partir da tela de Michelangelo. Vazio que ainda não foi
nem mesmo preenchido pela mancha gráfica (_________), pois dela e com ela lê-se a
presença do silêncio, que já é um rumor de voz, uma expressão de um lento lendo da
133
palavra recém-nascida. Espaços que são, contudo, “um textualino – a qualidade
cristalina que guarda o espaço entre as folhas” (AA, p. 53).
Em Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004, escreve-se a possibilidade de um
retorno à luz, que é essencialmente expressão jubilosa. Mas, “a luz que aí faz é o duplo
do gelo” (AA, p. 189), luz que vem em tensão e por ondas de desdobramentos. Escrita
solidária que se faz enquanto gesto de amor. No permitir que o outro siga seu itinerário,
beija-se a dor e percorre-se Parasceve, “Esperança”, que banhada pela luz própria é
trazida no “leito da linguagem” (AA, p. 169): “mal bate a manhã, o nevoeiro desponta
___________ o dia seguinte dispersa o nevoeiro” (AA, p. 69). Movimento cíclico em
que nele há luz e paz: “Paz dependente de uma outra paz, que o quarto procura; paz
subalterna _______” (AA, p. 245).
Ao consolar a mulher da perda irreparável, o Curso, que “é um convívio” (AA, p.
229), traz não só os textuantes llansolianos, como outras vozes que percorreram o
itinerário autoral de Maria Gabriela Llansol. Há um repertório envolto nessa trajetória
de silêncio e marcadamente expresso nas páginas finais da primeira parte quando
Llansol escreve: “Preciso de luz afirmativa à minha cabeceira. Evoco Rilke”. E revela,
em íntimo, que o seu texto nasce por “uma aprendizagem de leitura”, onde há “a
tessitura cerrada dos dois” mundos, analítico e sintético; texto que vem em
desdobramento, portanto. Lê-se:
Hora das cinco da manhã. Preciso de luz afirmativa à minha cabeceira.
Evoco Rilke. Qualquer coisa como “um anjo à minha mesa”.
No compartimento ao lado, destinado ao trabalho de ler e de escrever , a
estante de torcidos e tremidos, sonha:
“o texto, construído com pregos e martelos, transformou-se numa estante
de leitura; a segunda desconhecia atentamente o que era ler, mas quando a
claridade da manhã penetrou a casa na claridade do escritório, uma emoção
de aprendizagem de leitura, acompanhou-a.”
Do candeeiro irradiava
não ouvir vozes dispersas que tentem a luz à análise ______ há o mundo
analítico e o mundo sintético, a tessitura cerrada dos dois revela o texto
(AA, p. 40, espaçamento conforme o texto base).
134
Llansol nos indica estar “lendo a nona elegia de Rilke” (AA, p. 55) e diz: “Como
diz Rilke agora, saindo inteiro da nonagésima folha que recorda um verso da nona
Elegia: ‘é entre martelos que o nosso coração sobrevive”’ (AA, p. 59). Já por entre as
linhas da segunda parte, Delírio em Parasceve, a figura de Rainer Maria Rilke reflete a
presença da cultura alemã na obra llansoliana; pois, com Rilke subjaz a vivência da
experiência biográfica, da história do casal em exílio – motivo pelo qual Llansol sai de
Portugal e assume residência na Bélgica, lugar onde Augusto foi causa e efeito – pois,
por ele e com ele teve início, talvez, o seu primeiro modo de “decepação” – ao deixar
para trás a pátria, a família, a língua. Contudo, a figura literária de Rilke também vem
representar a sensação do desamparo existencial e uma busca de afinidade com a
natureza. A presença do poeta e da árvore nas Elegias de Duíno aproxima Rilke e
Llansol do exposto em Parasceve. A compreensão entre os autores sobre os conceitos de
vida e morte se assemelham já que Rilke observa no movimento uma eterna circulação
entre a vida e a morte. Segundo Dora Ferreira da Silva, são os anos entre a publicação
do Livro das Horas (“Tu, Deus vizinho... Entre nós há apenas uma delgada parede”) e a
publicação das Elegias de Duíno que ocorre a transformação espiritual no poeta de
modo a alterar “radicalmente sua relação com a divindade: é como se a tênue parede se
adensasse cada vez mais, impossibilitando qualquer contato ou comunhão entre Deus e
o poeta, relegando-o a um desesperado insulamento”; se antes Deus era obscuro e
presente, hoje o espaço do poeta nas Elegias é de solidão e de ausência onde o apelo
humano é sem resposta: “Quem se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?”
E onde nem mesmo a morte reconforta, pois o abandono transcende a esfera do visível:
“Todo Anjo é terrível”(RILKE, 2013, p. 11). Nesse mundo sem-abrigo, Rilke afirma
que o único meio possível do homem se redimir é o da tarefa poética, como diz Dora:
135
Nesta ideia do homem como ser ameaçado, desligado e estranho reside a
afinidade profunda, apontada por Heidegger, da posição rilkiana com sua
filosofia. E Rilke passa a evocar tudo quanto exaspera o sentimento da
solidão: o vento portador dos espaços cósmicos, a noite “ternamente
enganosa” que vem ampliar a nossa acuidade íntima, tornando ainda maior o
nosso desamparo. E nem mesmo o amor liberta o homem desse confinamento
essencial, pois os amantes apenas ocultam “um ao outro seu destino”.
Somente as grandes amorosas, essa plêiade de mulheres ardentes celebradas
anteriormente nos “Cadernos de Malte Laurids Brigge”, despojando o amor
de todo caráter transitivo e dual, convertendo-o em anseio infinito, num
lamento por ser um ser eterno, chegam, através da doação plena de si
mesmas, à transcendência anelada, como a flecha que ultrapassa “a corda,
para ser no voo mais do que ela mesma”. Mas há outros caminhos e a tarefa
poética é logo apontada em seu caráter de redimir as coisas efêmeras: “Sim,
as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas queriam ser percebidas...
Tudo isto era missão”. E assim como os santos ouviam outrora o chamado de
Deus, o poeta deve ouvir o apelo das coisas transitórias, essa música
imperceptível gerada pelo silêncio. Tudo acena para o poeta, tudo é símbolo.
À semelhança de Amigo e Amiga em “O Golpe”, a primeira elegia, seguindo
ainda os pressupostos de Dora, termina com a evocação de um lamento pela morte de
Linos, deus grego da natureza; dessa forma, Rilke vem a escrever o luto e o desespero
humano diante da morte e com a dor sentida, há o entoar da música, fonte de “êxtase,
consolo e amparo”. E o que é a lamentação para Rilke? “Uma semente de júbilo que
tomba, imatura. Agora, porém, em meio à tempestade, desabrocha em mim a árvore do
júbilo, minha lenta árvore do júbilo”, assim escrito pelo poeta no poema Klage, de
1914. Se na primeira elegia, há a união da vida e morte através de um processo
memorialístico (“lembra-te, o herói permanece; sua queda mesma foi um pretexto para
ser: nascimento supremo”), na sexta elegia o poeta retoma o ciclo vida-morte através da
imagem do florescer, sob o ritmo e ascensão das metamorfoses; na sétima, há afirmação
da vida, a lembrar Zaratustra, de Nietzsche, quando escreve a parte final (XII):
“Profunda é a dor, mas a alegria é ainda mais profunda. A dor diz: Passa! Mas toda
alegria quer eternidade, quer profunda eternidade”. Na elegia, há um retorno às águas
das fontes como “jogo promissor” a verter revelações e à imagem da ave que, “erguido
pela estação que ascende”, o poeta se abre ao abandono da amplitude das sensações e
136
das visões da vida. Do alargamento do tempo, Rilke escreve: “Não, não acrediteis que o
Destino seja mais do que a infância e do que ela contém”. Para Dora, o tema da infância
é uma constante na obra do poeta onde “a duração esquiva às medidas do tempo, eterno
presente em que se é com plenitude, ‘as veias túmidas de ser”’(SILVA, 2013, p. 91). E
o mundo passa a existir no movimento de dentro para fora: “o mundo existirá senão
interiormente”, o Weltinnenraum rilkiano – espaço interior do mundo expandido através
de todos os seres. (RILKE, apud SILVA, 2013, p. 92). Com Dora, lê-se:
As pedras que se amontoam em desordem, os frontões semidestruídos, as
colunas partidas, as estátuas mutiladas, tudo isto persiste misteriosamente em
nossa imaginação, como se o tempo não tivesse passado sobre eles. E são os
homens criadores, os homens de coração pródigo que os reconstroem
milagrosamente, devolvendo-lhes o antigo esplendor (SILVA, 2013, p. 92).
Com Llansol, cabe aqui lembrar o pedido de textualino: “Devolve o sol a quem
ler”. E a perspectiva do híbrido trazido por Maria Gabriela Llansol, é vista coexistindo
em Rilke quando afirma na oitava elegia sobre o animal: “ele vê tudo onde nós vemos
futuro, em tudo se vê e salvo para sempre”. Assim, o animal vive em comunhão com o
Todo, na abundância do “Aberto”, para além da morte. Já ao homem, resta-lhe “estar
em face do mundo, eternamente em face” (RILKE, 2013, p. 32). Pois, diz Dora:
A relação de conhecimento supõe sempre um sujeito e um objeto – daí a
condição humana “de estar em face” das coisas, irremissivelmente. O tempo
existe para nós que dividimos a realidade em porções e enquanto vemos a
parte, o animal participa do todo, “salvo para sempre”, pois sua história é a
história do Cosmos. Porém, adverte o poeta, até mesmo no animal há uma
profunda nostalgia, a nostalgia da “primeira pátria”, pois que “o ventre é
tudo”. No pássaro, há uma “quase certeza” porque pertence, pela origem, aos
demais domínios “como se fosse a alma liberta de um entrusco, que o espaço
acolheu, mas com a imagem repousando a recobri-lo (SILVA, 2013, p. 95).
137
Mas, Maria Gabriela diz estar na nona elegia; não sob a primeira onde se canta a
dor. Na nona parte, assim como na sexta, na sétima e na décima, como menciona Dora,
Rilke vem afirmar “a consciência terrestre do homem e sua capacidade de superar a
angústia e o desalento inerentes à condição humana” (SILVA, 2013, p. 75). Eis a
perspectiva de júbilo. É na nona elegia que ocorre a mais forte expressão da experiência
pessoal do poeta pela crença centrada no percurso da existência pessoal, entregando-se à
vida tal como um “cavaleiro andante das coisas efêmeras que estranhamente nos
solicitam. A nós, os mais efêmeros”. Com Llansol, essa jornada do seguir sempre
adiante é proporcionada pela decepação da memória na aceitação do novo; pela não
exclusão do paradoxo, mas pela possibilidade de sua coexistência ao caminho do
Aberto. E diz Dora sobre Rilke: “Como o seu bem-amado Kirkegaard, Rilke não teme o
paradoxo: é no coração frágil do homem, o mais efêmero de todos os seres, que se
cumpre a transmutação do finito em infinito, do transitório em eterno”; e explica: “em
seu coração a “externalidade” será enfim devolvida ao Absoluto. Como? Através da
aceitação plena do terrestre, afirmando apaixonadamente o “aqui e o agora”’; pois o
poeta vê “na morte não o ‘outro lado’, a promessa da transcendência, mas a mais íntima
e sagrada inspiração da terra”, e assim “nessa imanentização os opostos se coincidem, o
finito se infinitiza, o efêmero se eterniza” (SILVA, 2013, p. 98).
À semelhança de Rilke, há, no canto llansoliano, o combate à escrita utilitária ao
qual o poeta cabe escapar; é ele que precisa transformar o modelo planfetário das
palavras sem imagens, das palavras cruas “em peça de ourivesaria, mesmo no
confronto. Esse é o convívio” com que ambos os poetas trabalham; através de “uma
lembrança descida do céu – o céu dos interlocutores que se estimulam e [se] entendem”.
Margem, essa, textual, “exterior à saudade” (AA, p. 29):
138
XVIII – exterior à saudade
________ a inteligência do convívio é uma pessoa única que, segundo a
minha experiência, raramente se apresenta sob a forma humana, mal existe
entre os humanos; a inteligência do convívio é, de facto, muita inteligência.
Falou-me ela de quanto necessitava ter a memória do outro, uma memória
detalhada e ampla que, tirando-o do seu próprio espaço, o projectasse num
belo espaço de convívio ________ refiro-me aos céus da inteligência ampla.
(AA, p. 29)
E assim, lê-se com Llansol: “Humanamente, [...] sou textuante” (AA, p. 53); um ser
em metamorfose que, como em Rilke, procura transformar “casa, ponte, árvore, porta,
cântaro, fonte, janela ___ e ainda: coluna, torre...” em coisa íntima, pelo acolhimento
trazido não só pelos sentimentos humanos, esse “punhado de terra do indizível, mas
pela palavra colhida pura [...] em terra silenciosa” (RILKE, 2013, p. 35); onde dizer,
canta o poeta, é também compreender: “Mas para dizer, compreende, para dizer as
coisas como elas mesmas jamais pensaram ser intimamente”, pois “entre malhos
subsiste [nosso] o coração, como a língua entre os dentes [...] permanece a exaltadora”
(RILKE, 2013, p. 35). Desse modo, pelas cordas do coração e pelos fios que tecem o
invisível, “é a metamorfose” a “desesperada missão” e das “obscuras distâncias”, diz
Rilke: “consagrei-me todo a ti...; Terra, ó minha amada; não é este o teu desejo:
renascer invisível em nós?” para que nos “[nossos] corações invisíveis se cumpra a sua
metamorfose – infinitamente, quem quer que sejamos!” (RILKE, 2013, p. 36). E
Llansol escreve que “o inesquecível esperado há de vir e será ele o grande afinador do
piano (os pedais de toda a Terra textuando)” (AA, p. 71).
Assim, por todo o exposto, torna-se possível dizer que Amigo e Amiga segue
com as Elegias de Duíno82
, na partilha da dor, da linguagem e da alegria. Em diálogo
com a literatura Portuguesa, Fiama Hasse Pais Brandão, também conjuga desse
pensamento que vem mesclado pelo modelo alemão. E juntas caminham pelo
82
Segundo Maria de Lourdes Soares, “a leitura de Rilke é ‘luz afirmativa’, Anjo textual que a acompanha
e que lhe permite abrir passagem à penetração no invisível, notadamente a Oitava Elegia (leitura
implícita, apesar de não referida no livro), sobre o olhar das criaturas, com todos os olhos, para o Aberto
[...]” (JADE - Cadernos Llansolianos 9, p. 51).
139
movimento de ave que delineiam em escrita. E Llansol pergunta: “Uma ave é um
animal?”, ao rememorar a hipótese de ser o livro um homem (AA, p. 84). Na página
posterior, há: “Nada é tão simples como sonhar com um ramo. Já é mais difícil
caligrafar sobre ele. Mas levá-lo a pairar num interstício de Parasceve e reconhecê-lo
como interlocutor no cerne espiritual desta aventura é um trabalho que tem muito de
ave” (AA, p.95). Em voo, o jogo llansoliano de fonemas e imagens nos termos
assinalados ave/ aventura. E sob as “folhas das obras completas de João da Cruz” por
onde ela, a autora/textuante agora ouve o seu renovado cântico: “É uma aventura que
tem muito de ave”83
(AA, p. 95).
Assim, “as manchas do puzzle” (AA, p. 57) são trazidas pelo enlace afetuoso
que há no som que quer “ser tocado”(AA, p. 58) e o no desejo de quem busca “limpar-
lhe o silêncio84
” (AA, p. 56). Por isso, Llansol diz que “ler era repleto de silêncio e da
fascinação dos sons” (AA, p. 55); síntese do silêncio interior de quem aprende a falar e
dos sons que percorrem os “ritmos”; que, sobre “o teclado das emoções”, vê(e)m em
vozes diversas; sons, enfim, que falam com “a palavra desdobrada em xaile da
mente”(AA, p. 56): “como, se não a podes ouvir. Somente olhar. / Somente a olhas
quando, num textuante, ouves. / E não vês a sua construção. Apenas o vago olhar / de
que padeces / olhar de olhar o que se ouve” (AA, p. 56).
Talvez seja esse “o delírio” a nomear a segunda parte: da sensação de suspensão
criada pela certeza de ter sido Parasceve uma escrita em/ao Aberto. Delírio que é
suspensão trazida, sobretudo, pela celebração da palavra: “Delírio dava a volta à
83
Em 13 de dezembro de 1996, durante um Colóquio sobre Rilke realizado na Faculdade de Letras de
Lisboa (12 e 13 de dezembro de 1996), onde lá também estava Fiama Hasse Pais Brandão, Llansol
escreve: “O que eu escutei foi o ponto de confluência das línguas. Tinha um sentido inexplicável. Olho a
Fiama; ela olha-me. O olhar os textos – descubro – é o nosso corpóreo olhar. Da distância?” (LHV, p.
701; LHIV, p. 189). 84
“O silêncio faz com que o dia de hoje seja sempre diferente do de amanhã” (LHV, p. 676).
140
manivela da máquina do dicionário, e o que explodia em cor verbal no ecrã, por
projecção de um ramo de linguagem, indescritivelmente soprava e existia” (AA, p. 176).
E Maria Gabriela afirma: onde se escreve “com a porta aberta para a rua, não há
uma única livraria” (AA, p. 84). Caminho que se segue acompanhado pelo viés
memorialístico (“Ficámos a ver o rio, vindo à memória de ambos as correntes do vento”
(AA, p. 80)):
Evoquei Parasceve: ─ Que espécie de sinal gráfico de pessoa? Ou de figura?
Ao menos, se eu te tangesse ______ Sim; o espírito roça-me; inclino a cabeça
para essa presença espessa, e entro na gruta de facto, entramos, porque vou
acompanhada por quem desceu comigo a rua, até aquela Praça que faz recuar
as árvores (AA, p. 81).
A criança tocava nas folhas como se fossem as teclas de um piano vivo, o
violento sopro musical do nascimento. Mandaram-na para Parasceve, onde se
tornou a madeira sonora de uma porta, em face da qual eu contornava o que
andava a escrever. Assim, conseguíamos cercar a memória e o futuro
lateralmente. (AA, p. 58).
Em tom intervalar entre o material e o espiritual, a presença do sonho marca a
condução da obra: “E eu sonhei que ensinava a ler aos animais que acordavam, aos que
nunca tinham dormido, e aos que entravam no adormecido” (AA, p. 55); “Eu precisava
de sonhar o dobro, não inclinar a cabeça ao que esmagasse e revelasse nossa origem, e a
razão por que eu escrevia sempre sobre nada” (AA, p. 58). E “nada” era, sobretudo, “um
textualino”, um canto órfico ao ritmo de Rilke:
XLII. nada
Se eu não ouvir o oxigénio das folhas,
a música é cega para mim.
Como diz Rilke agora, saindo inteiro da nonagésima folha que recorda um
verso da nona Elegia:
“é entre martelos que o nosso coração sobrevive”
Lembrei-me então que a criança me estava a mostrar os contornos da terra
apetecível à sensibilidade do anjo, que deixara de ser o definido no
implacável de Rilke.
Era um textualino (AA, p. 59)
141
Escreve Llansol: “Juntas mãos e mãos, ficamos votados a uma cavidade onde,
mas só a grande distância deste horizonte, nos é permitido ler. O que conhecemos dança
sobre fios suspensos das recordações [...] e o sono pisa-me no amplo chão” (AA, p. 63).
Assim, no espaço intervalar do sono, entre a consciência e inconsciência, e na
configuração do não-lugar, o “amplo chão”, sugestivo do plano bidimensional de
escrita, reforça-se a tarefa da Amiga, poeta, narradora, textuante, em dar voz/corpo ao
seu “ambo” não por simples ato de amor, fruto da paixão humana; mas pelo gesto de
amor traduzido pela tarefa sagrada da transfiguração da coisa simples em extraordinária;
de tornar dizível todo o indizível que há na palavra comum.
Delírio em Parasceve é, assim, um caminho aprendiz que persegue as páginas
49 a 106 do livro, por onde Llansol vem afirmar a persistência do seu ambo “em existir,
agora mais liberto e agudo”, restando-lhe, à narradora,somente entregar-se ao abandono,
que é o deixar “vir ao espírito [as] linhas evoluentes” (AA, p. 85), por onde o efeito de
decepação da memória chega em travessia de leitura/escrita pelo silencioso e sinuoso
movimento do nunca finito, no interstício dos entreditos.
Diz Llansol: “Entre ti e a tua imagem há um hiato, e é nestas circunstâncias de
ausência que te falo ________ a quem falo? (AA, p. 84); eis a escrita epistolar que vem
em Amigo e Amiga; um texto em dobra, nascido das várias vozes textuantes, sem
destinatário definido. É uma carta que “lendo, não se sabe do que se fala. “Mas,
demorando a ler, verifica que se lê” (AA, p. 102-103). É, portanto, uma carta
indecifrável ainda; um enigma aberto ao tempo da decodificação amorosa, pois “há
palavras que são [...] uma reverência ao desconhecido”; “porque a História, [...], faz-se
sempre com os intervalos do que se fez e onde não está ninguém” (FERREIRA, 2009,
p. 162-163). Cabe aqui invocar, nesta intertextualidade proposta, a Carta ao Futuro,
ensaio de Vergílio Ferreira, onde o autor que é figura llansoliana, o seu “companheiro
142
filosófico”, de O inquérito às quatro confidências, diário III, se dirige também ao
“amigo”, metáfora da geração futura; mas que, em semelhança ao Curso de silêncio de
2004, verifica-se o registro da escrita a um ausente em que a pujança a que se serve o
impulso do ato criativo subjaz da necessidade interior de pôr à lume a incandescência
das ideias: “Escrevo pelo prazer de comunicar”85
(FERREIRA, 2010, p. 11). Esse é o
legado, essa é a sina; “porque o sentimento estético é uma comunicação original com a
essencialidade da vida”; e “é dentro da emotividade que o mundo tem sentido”
(FERREIRA, 2010, p. 101). Sentimento estético que “não é um exclusivo das obras de
85
Com Vergílio Ferreira há, sobretudo, a perspectiva do corpo convergente em matéria e em palavra. Do
nascer e renascer pela “celebração da palavra” – “porque uma consciência só se exerce, só realmente
existe, se encarnada na palavra” (FERREIRA, 2011, p. 294). Na segunda parte de Invocação ao meu
corpo, Vergílio reflete sobre o “eu”, espaço gerador de uma identidade onde se conjugam o tempo, a arte,
a liberdade, a razão, Deus, língua, verdade, dialética, o sim e o não. É, sobretudo, uma “descida a zona
original de nós”: “o estrume que tu és, agora é o prodígio que o habita e o transmigra à grandeza de ti. O
teu corpo de podridão é o facho que o ilumina, é o combustível que só existe como a chama em que ele
arde.” Em “Subjectividade do corpo”,em Invocação ao meu corpo, é onde o autor de Aparição escreve
sobre o regresso do homem a si próprio: “Porque eu sou o meu corpo”. E diz: “No puro acto de estar vivo
ele é o absoluto que eu sou” (FERREIRA, 2011, p. 255) E “o absoluto do nosso corpo é o absoluto do
nosso eu – nós o podemos verificar nas experiências mais simples”, porque “estou sendo [...] no instante
em que [...] vejo.” E explica: O meu desdobramento é portanto do tipo daquele em que me desdobro entre
o “eu” e o “mim”, entre aquele que observa e o que é observado. Porque o “eu” que observa está ainda no
“eu” observado, o “mim” que contemplo inclui aquele que contempla. Assim, a observação que de mim
eu faço é sobretudo compreensível quando a faço não sobre aquilo que estou sendo, mas sobre aquilo que
fui; como a observação do meu corpo o desprende particularmente de mim quando o penso no acto que
realizei, quando o objectivo como ao corpo de outrem e o vejo por exemplo numa fotografia ou num
filme. [...] A realidade última do meu ser é o corpo que sou, ou seja, o “eu” que ele é (FERREIRA, 2011,
p. 255). Ou seja, o corpo, para Vergílio, “é essa pessoa efectivada”, por ser “um corpo que pode dizer eu.”
E pela ação do dizer, há a relação da arte com a vida, na aparição do “eu” pelo continuum do tempo dado
pela voz, que é a “projeção de nós próprios através da palavra” (p. 260). Tal perspectiva é trazida nas
obras llansolianas pela simbiose conceitual que há entre corpo e casa. Corpo, enquanto receptáculo da
vida, é compreendido pelo viés do literal, metafórico e bibliográfico. Assim, lê-se em Inquérito às quatro
confidências:“Texto ortopédico é feito de uma procura da língua, de uma voz, de uma ária, de que modo
evitar ou corrigir um texto que não é tal qual um texto, mas uma simples descrição de um corpo visto do
exterior. Texto não-ortopédico seria o que eu procuro compreender e não entendo (IQC, p. 119). Ou
ainda, na “necessidade de se refrescar”, Llansol ouve de Vergílio que “também há um álbum de fotografia
na APARIÇÃO: “Entre a minha alma e a água o corpo estava despido, incógnito na sua natureza – obra de
autor desconhecido; à medida que lavava o chão, vinha-me à memória a classificação das partes do corpo
em coração, membrana, entranhas, núcleo, âmago, sangue [...], afastei a água e mergulhei, já mais livre,
no álbum de escrever; é assim que eu desejaria escrever, apurando o álbum da fotografia do corpo sem
tópicos, flash sobre flash, deslocando o braço que segura a máquina de escrever para todos os ângulos
possíveis. Chamo a este texto a fotografia ________ [...]. Que importa o lugar da representação na água
se a nudez é a nascente do corpo, o próprio efeito de escrever [...]? — Também há um álbum de
fotografia na APARIÇÃO – diz-me ele, a meio do corredor: — Não se lembra? (IQC, p. 99-100). Nudez
que é esvaziamento e decepação. Assim Maria Gabriela Llansol escreve e se inscreve no corpo de escrita,
em e por imagens, tal como fotografia. Expressão por impressão infinitamente; luz sobre luz; “flash sobre
flash”.
143
arte”, mas também é sabido “das horas silenciosas em que a sua face se adivinha e não
há ainda uma obra de arte a traduzi-la, a integrá-la numa manifestação” (FERREIRA,
2010, p. 100); silêncio que vem em voz e em escuta; é um apelo vindo “desde os
confins da memória” (FERREIRA, 2010, p. 101). Por isso, diz Vergílio, “sempre
estimei a epistolografia, é porque é ela a forma de comunicação mais directa que
suporta uma larga margem de silêncio”; e acrescenta: “porque ela é a forma mais
concreta de diálogo que não anula inteiramente o monólogo” (FERREIRA, 2010, p. 11).
Observa-se que o monólogo dialogal visto na escrita epistolar llansoliana não anula o
Curso textual da história narrada; são textualidades que coabitam o espaço da narração,
ampliando o processo deambulatório do “eu”, pois em “o silêncio”, capítulo XVI de
Amigo e Amigo, Llansol diz que “o que nós somos é um ponto espiritual” (AA, p. 27);
elo de afeto, portanto; pois, a profunda fraternidade, diz Vergílio, “não é uma cadeia de
braços, mas uma comunhão do silêncio, uma comunhão do sangue” e “toda a vida que
se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua
verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final” (FERREIRA, 2010, p. 18).
Verdade, essa, que move à mulher que escreve a dizer ao seu “ambo”: “a nossa primeira
forma estética de amor acabou” (AA, p. 224). E é o amor “o único lugar da relação
entre sujeitos, que é uma relação de perda, apelo que atira os amantes para o vazio de si,
hipótese de renovação. Do lugar de uma possessão mútua à despossessão” (LOPES,
1988, p. 109). Desde os livros da primeira trilogia, como observa Silvina Rodrigues
Lopes, o amor em Llansol é uma força-agente que liberta o “eu” “da escala humana para
uma escala cósmica” (LOPES, 1988, p. 108) e nele se alia “a vontade de amar” e a
“vontade cintilante do saber” (CME, p. 31). Amor que vem “através do coração da
inteligência” (CA, p. 91) figurado no plano de escrita; porque, segundo Silvina
Rodrigues Lopes, “toda a escrita vive do dizer, expansão de uma subjectividade anterior
144
à consciência de si e à representação” (LOPES, 1988, p. 110). Ainda com Silvina, “a
escrita de Maria Gabriela Llansol aparece nitidamente como espaço onde se dramatizam
as ideias-forças da passagem do poder ao desejo, o que faz de todos os livros uma única
Causa Amante” (LOPES, 1988, p. 109). Eis aqui também seu Drama-poesia, ao unir
voz, gesto, ao lirismo da fala. Narração lírica posta em ação no decurso da escrita pelo
movimento das imagens intercaladas, vindas em fragmentos. Acrescenta a
pesquisadora: “as ideias-forças de que aqui se fala partem de onde brota o pensamento e
o desejo – a relação entre linguagem e os corpos – e organizam-se num pensamento da
diferença” (LOPES, 1988, p. 110), que não se excluem, mas se complementam em
alteridade. Da subjetividade presente ao elo afetuoso da escrita enquanto ato criativo,
Silvina, pelas mãos de Lévinas, afirma que a “despossessão”, como movimento de
abertura, é a exposição que possibilita a ampliação do sentido:
Esta subjectividade é primordial para um pensador como Lévinas que, na
linha da tradição judaica e fora da oposição animalidade ou sensualidade /
espírito, concebe o corpo feminino como misericórdia e generosidade,
passividade de onde irrompe todo o movimento para o outro, despossessão
que é exposição, abertura da possibilidade do sentido. (LOPES, 1988, p.
110).
E diz: “Abertura de sentido correspondente à dilaceração do corpo feminino”
A abertura do sentido corresponde à dilaceração do corpo feminino, pré-
originária em relação a um sujeito consciente de si mas nascimento de uma
subjetividade inseparável da corporeidade, aquém do saber e da formação de
imagens; sensibilidade ou proximidade que não significam percepção ou
tomada de consciência no contacto mas movimento para o outro,
independentemente de qualquer troca de informações, compreensão,
conhecimento” (LOPES, 1988, p. 110).
145
Em O começo de um livro é precioso, Llansol escreve:
Toda a escrita representativa vive do impensado da
Representação. É quase incompreensível como as
Estações giram em torno da rosa-dos-ventos. São
Pássaros que voam convergindo para onde brotam
Nascentes. E, no entanto, ninguém detém as águas.
Andam a monte e, só cansadas, caem na rosa como
Versos livres num poema (CLP, p. 347).
Da imagem llansoliana, de O começo de um livro é precioso, é possível ir ao
princípio do verso em Fiama Hasse Pais Brandão: “Água significa ave”. Verso-chave de
sua escrita, sua “Chave de ler”86
, dito em “grafia 1”, Poesia 61 – como se fosse, sendo,
um modo de princípio verbal, de preenchimento do vazio que preside à “atitude de
criação”87
(SEIXO, 1986, p. 28).
“Água significa[ndo] ave” é espécie de “textualização da palavra no poema”
(SILVEIRA, 2006, p. 53), como afirma o maior especialista de sua obra no Brasil, Jorge
Fernandes da Silveira, quando o Verbo em Fiama principia e não se esgota, tampouco
se retém, pois “ninguém detém as águas”, como afirma Maria Gabriela Llansol.
“Textualização da palavra no poema” ou, simplesmente, em outras palavras, “o real
modo fictício de estar no poema” (SILVEIRA, 2006, p. 53), como se o espaço, o modo
e o tempo convergissem em cenas vivas, por “Cenas Vivas” (2000)88
, “onde brotam /
Nascentes”. Assim, dado o movimento giratório da “rosa-dos-ventos” na juissance “do
impensado da Representação”, pelo continuum processual de leitura e escrita, seguindo
86
Título do terceiro capítulo de O Beijo dado mais tarde, de Maria Gabriela Llansol. 87
Diz a autora: “Preencher o vazio foi, desde sempre, o princípio que presidiu à atitude de criação;
interpretar esse princípio, tomando-o como um impulso de elaboração que oscila entre a compensação da
falta e o desejo de produzir coisas, entidades, sentidos, está na origem da formação das religiões, das
literaturas, das ciências e das várias outras formas de adequar o homem ao seu espaço de viver e de
pensar”. 88
Aqui, compreende-se “Cenas Vivas” como imagens vivas, sobrepostas no tecido de um poema; e como
referência ao penúltimo livro da Poeta. Assim, a convergência se dá em imagens vivas pelo objeto-livro,
através do processo de leitura e escrita.
146
a fluidez do seu “rio demorado”, pela temática fundacional da água, há novamente
expressa a relação ave/aventura, em ampliação semântica do anagrama AVE/EVA.
Coincidência e coexistência de opostos; e a duplicidade no UNO evidenciados
circunstancialmente89
, em dis-curso, na origem que é feminina à luz do jogo mútuo de
duplicidade: AVE – EVA. É “água íntima dos lábios” (BRANDÃO, 2010, p. 8), dito em
grafia 2. E assim, “repetem-se os melros [...] a debicar sempre nas pedras húmidas”
(BRANDÃO, 2010, p. 165), por meio de uma interlocução intratextual que se alarga e
se amplia por figuração cênica quando o rio de escrita de “grafia 1” se estende à “grafia
2”: “Está no rio / o embrião da noite // O rio livre / com apenas o princípio evidente / de
todas as formas // A água íntima dos lábios”. Logo, a água em curso em Fiama é práxis
e poiésis; palavra em movimento, onde a grafia se situa no modo de olhar, como um
“teorema de pálpebras” (BRANDÃO, 2010, p. 9) e em réplica, “na grafia dos espelhos”,
à maneira de Nietzsche, em eterno retorno.
E “água”, em Llansol, nesse Curso de silêncio, é “lágrima especial” (AA, p.
186), a pequena lágrima que “coube em sorte”; pois, após atravessar as folhas em
Delírio em Parasceve, percurso de encontro com as vozes e com a Voz de “Prunus
Triloba”, árvore da vida; vozes que tudo dizem “montadas no silêncio” (AA, p. 153), ao
ritmo do afeto, que o “eu” que agora canta é “estere”, grafada com letra minúscula,
depois de ter sido ela a “mulher decepada”, a “cortada a cerce”, a “escrevente”, a
“mulher da noite obscura”, entre tantos outros “eus”. E “estere”, grafada com letra
minúscula, também fende o absoluto do “eu”, que esvaziada “existia”, onde junto a
“Nómada ausente, resta o jardim da ausência; que este seja – o jardim que a ausência
permite”. “No concreto das horas”, ela, a mulher, diz: “devo atenção às jovens flores
preteridas que são a imagem de um ocultamento – o seu”. (AA, p. 177). Modo de
89
“Onde”
147
evidenciar o esvaziamento em que tudo se contrai e se expande em simultaneidade por
meio de uma coexistência de opostos que se complementam na imagem traçada: “digo
eu, digo ele, dido ela, encontro outra forma de referir-me a alguém que coincida
com o tempo e a pessoa _________ concentro-me na imagem, e desço a ela.” (AA, p.
178). E ao dizer que “é o concreto que interessa à porta”, Llansol invoca, para além da
ideia da dor que se transmutará em alegria; ou da noite obscura que virá encontrar, pelo
amanhecer, a claridade do dia – a imagem da importância do estar voltado para si, não
no sentido narcísico de estar no centro do mundo; mas a interioridade que permite a
abertura ao autoconhecimento; caminho que parte de dentro para fora, que como num
duelo no fundo do mar de si, o mergulhador retorna à superfície após ter-se defrontado
com os medos e angústias mais intrínsecos escondidos por entre seus corais, que
dispersos ao longo do espaço e do tempo devem ser resgatados e devolvidos à
superfície. Epopeia não coletiva, mas do próprio homem; uma narrativa cantada em voz
lírica, que é apelo afetuoso entre Eros e Tanatos – elo de força não externo; mas,
sobretudo, interno.
Amor e morte em epopeia breve90
: “Eu digo, em borboleta: — Eu sou uma
borboleta. Mas queria ter um sabor breve dos sentimentos humanos. É, de toda a
evidência, [...] o que aqui fica escrito seja o sentido na minha alma de borboleta”;
“Preciso de estudar, perto e longinquamente, sobre mim mesma – e a sua perda. A
minha vida é arriscada e breve” (AA, p. 174).
Processo único de aprendizagem, de chegadas e partidas; que, pela decepação da
memória, o “eu” que lê/escreve caminha em evolução “até a luz” através do silêncio que
90
A ideia de brevidade se liga à concepção de uma “literatura menor” definida por Giles Deleuze e Félix
Guattari, em Kafka – Por uma literatura menor, na qual contrapõe essa forma de literatura (a menor) a
uma “literatura maior”. Segundo os autores, a “literatura maior ou estabelecida segue um vetor que vai do
conteúdo à expressão: [...] O que se concebe bem se enuncia... Mas, uma literatura menor ou
revolucionária começa por enunciar, e só vê e só concebe depois. [...] A expressão deve quebrar as
formas, marcar as rupturas, [...] adiantar-se à matéria” (DELEUZE, Giles; GUATARI, Felix, 2014, p. 58).
148
habita o “espaço errante entre os olhos e as letras”. Do “rosto projectado na folha”,
contempla, agradece e partilha “as páginas com lágrimas”. E “é isto” (AA, p. 175):
CXXVII. é isto
________ tudo me agrada num livro – a maleabilidade, a companhia fechada
e que se abre, o espaço errante entre os olhos e as letras, a concentração da
cabeça, o meu rosto projectado na folha, os caminhos que dele evoluem até a
luz da janela, ou lâmpada – e da partida. [...].
Agradeço-lhes o que eles contribuem para que eu escreva este Curso.
O consolador na dor – hoje – , multiplica-se pelos volumes dispersos pela
casa que se entregam à mim e à lembrança do cão que se deita e suspira por
Nómada ________ seu mestre-de-procura, que aqui morreu.
Sinto que não sou capaz de, sozinha, contemplar o dom de tantas
páginas com lágrimas e, à noite, quando o silêncio que silencia o silêncio
cresce,
alguns deitam-se a meu lado e, entre a acutilância da leitura e o elevado
erotismo da escrita, eu fico de vigília
__________________ e eu sonho. (AA, p. 175).
Assim, em metamorfose, o “eu”, agora “estere”, mas que também no percurso
do ser/do ter sido uma “pessoa de silêncio”, ou um “eu-livro, ou um “textualino”; ou
simplesmente, um eu-outro(s) de mim mesmo, diz: “reiniciei-o [me] várias vezes e
inseri-o[me] na coluna dos textos feridos”, uma expressão de libertação “na construção
maior de outra sombra” (AA, p. 152), “em paz subalterna”, em “desvelo amoroso” (AA,
p. 152), onde a onda de luz que vem é luz encantatória “sobre a toalha de leitura” – eis a
“outra sombra”; uma luz à contraluz, luz que “esbate os contornos e o tesouro do
arbusto esconde-se” – tesouro “inacessível” (AA, p. 153), porque é canto órfico. Nesse
movimento deambulatório de “desassossego” e de encontro com a Voz do mundo e dos
tempos; de encontro e desencontros consigo e com seus textuantes de leituras ao ritmo
sonoro da poiesis e de Bach; pelo sussurro à contrapelo de Benjamin; pela evidência do
Aberto na trajetória de ascese do voo em linguagem, junto ao seu Nómada e na dor da
perda, a amiga-amante, “cantora de leitura”, escreve – porque assim lê: “________
149
estou bem”, capítulo final de Amigo e Amiga em que realiza a síntese dos dois tons
trazidos: a dor da perda e a sua possibilidade de reencontro através do corpo de escrita.
Um trabalho de mãos e mente a cortar o passado memorialístico, de modo que vazia,
“estere”, possa vir a receber o novo, estando pronta para ser preenchida pelo Aberto do
Tempo – eis o seu júbilo. Júbilo que nasce na interface do fingimento pessoano e do
testemunho de Sena, pois na vivência do desconcerto escolhe como acolhimento o
caminho da leitura-escrita posta em fulgor. Fulgor que vem tensionado pelos processos
desassossegados e deambulatórios de Pessoa e de Sena transfigurados à imagem de
AOSSÊ e JORGE ANÈS, enquanto potências criadoras91
. Isto porque há, em Llansol, o
modo pessoano de uma deambulação interior, da viagem92
entre mim e mim mesmo,
em complementaridade com o modo seniano do testemunho deambulatório em torno do
mundo, enquanto marca de sua presença crítica no tempo que lhe é conferido. Daí que
sua escrita viva no limite da autobiografia, porquanto seja real93
o fingimento. Real,
esse, trazido em fingimento pelo apelo afetuoso de acolhimento do diverso, pela
celebração da palavra e do movimento sempre contínuo do ir. De tal modo que todo “ir”
é, sobretudo, um retornar para si, no autoconhecimento que permite a ascese do voo
pelo mundo exterior. Movimento vindo em espiral de desdobramento. Luz que
transcende por chama incandescente – energia que, de dentro para fora, tudo suspende
em silêncio, tal como a “poalha”94
no ar. Assim, sem negar “o golpe”, pelos caminhos
91
No capítulo seguinte essa ideia será brevemente retomada. Contudo, eu a trago aqui como hipótese de
investigação posterior tendo em vista que o estudo do júbilo no entre-lugar das poéticas do fingimento e
do testemunho diante do desconcerto dos “seus mundos” façam por merecer ou, até mesmo, venham
exigir, para além do júbilo, a conceituação, a partir do cânone, das emblamáticas supracitadas através dos
autores que as definem (Camões, Fernando Pessoa e Jorge de Sena) e o seu diálogo com as figuras de
Maria Gabriela Llansol que a eles se remetem (COMUNS, AOSSÊ e JORGE ANÈS). 92
“Escrever, indo de um quarto a outro, é uma forma de viagem” (LHV, p. 239). 93
“O toque do real é sempre um momento de suspeita. Suspeita de que a vida se prolonga na morte”
(COELHO, 2010, p. 53). 94
Maria Gabriela Llansol nos remete à imagem de “poalha de luz" ou "poalha dourada" em deslizamento
à ideia canônica expressa em Gênesis (3, 17-19). Trago abaixo, nos fragmentos citados, a passagem de
“poalha” em que na obra se apresentam: “Repara que nós nascemos numa civilização que afirma que
todos viemos a este mundo, onde nos encontramos a falar, desterrados do paraíso, não ousando, todavia,
incluir as crianças, enquanto tais, nesse desterro. Seja como for, as imagens edénicas estão presentes na
150
delirantes e encantatórios de Parasceve, ela, a amante, a mulher que perde seu “ambo”,
pela decepação da memória, de ser ela, agora, a mulher que “cortada a cerce”, é “estere”
– que só pelo vazio de si será capaz de ver/sentir o novo pelo “encontro inesperado do
diverso”. E por essa via de silêncio e de aprendizagem; de metamorfoses e vozes, é ela a
“cantora de leitura”, capaz de ressuscitar pela força do Verbo o amigo-amante, seu
Nómada, agora Tual, para assim, acolhê-lo na forma possível do “beijo dado mais
tarde”.
inocência, embora, devido ao pecado original, inventado para o efeito, sejamos obrigados a crescer para
as perdermos e as voltarmos a encontrar, depois da morte. Repara ainda que toda esta fantasia foi mais
especificamente elaborada, a partir do momento em que o poder político se apoderou do lugar de onde era
emitida, com autoridade, a interpretação das escrituras. Aliás, o livro do Génesis, de que nos servimos,
está cheio de erradas (para não dizer, conscientemente falsas) traduções. Para te dar um exemplo: onde
está dito “Sois poalha de luz e em seres luminosos haveis de vos tornar”, foi traduzido por “Sois pó e
em pó vos haveis de tornar”. Mas não é meu trabalho discutir com livros mortos. Basta dizer que o texto
evoca outra realidade” (In: “O Espaço Edénico”, Na Casa de Julho e Agosto, p. 147). Em O Livro das
Horas 1, há dito: “Mas há por perto uma outra linhagem, a linhagem dos seres humanos e não-humanos
sem natureza temporal, apanhados num momento da sua imortalidade passageira. É um olhar que vê o
fim e o começo de todas as coisas, poalha e mais poalha que de novo toma consistência, como uma
semente. E não é tudo, é ainda o facto de imaginar estes seres, de os completar, de os esquecer (História
das pequenas histórias)” (LH1, p. [20 de Novembro de 1976]). Ou ainda: “O logos desfaz-se em
múltiplos entenderes (ficou- me um cabelo nos lábios), despe-se do seu significado perfeito; embora
imóveis, nós não somos um quadro; e, nos restos da conversação ou da memória (Johann dirige-me um
olhar de estímulo surdo), deposita-se a sua poalha dourada, quando houve dizer verdade... (L1, p. 74);
Ou como se lê em Lisboaleipzig 2: “Elisabeth desvanece-se no ar. Anna dirá tão somente que nem na
idade juvenil, nem na idade madura, nem agora, jamais este poeta foi feito da substância dos que se
anotam à margem. Se tal estivesse em seu poder, nunca como naquele instante, desejou que voltasse, no
seu ventre, a nascer de novo. Por isso,e por, sem saber o alcance, continuar a mostrar aos cacilheiros de
gente e à imensa multidão de automóveis que amanhecea palavra que anuncia______ tu és poalha
dourada, e em poalha dourada te hás-de tornar, ao som imperioso do órgão que os chama. (L2, p. 115,
grifos nossos).
151
CAPÍTULO V
“PELAS FENDAS DA PAISAGEM, UMA FENDA PARA VER O
MAR”
152
[A Catedral, Auguste Rodin, 1908, pedra 60x34 cm, Museu Rodin].
“Queria mostrar-te que todo este conjunto, que eu defino por criação, está fechado na mão de Ana,
sob a primeira linha de leitura que ensino a Myriam” (BDMT, p. 50).
“Cada um tivera o seu Amante; o Amante que lhe ensinara o Canto, e o Amante que a ensinou
a separar-se dele. O jovem rosto e o rosto envelhecido que teriam mais tarde estavam ligados por
um idêntico princípio de fulgor” (BDMT, p. 47).
153
5. “PELAS FENDAS DA PAISAGEM, UMA FENDA PARA VER O
MAR”
5.1. A Questão do Júbilo
O signo é uma fenda que se abre sempre sobre a
ruptura de um outro signo.
Roland Barthes
Todo o júbilo está na nuca,
na cerviz indobrável do humano.
Desde que nuca seja anel.
Maria Gabriela Llansol
Diz Llansol em O jogo da liberdade da alma, que “o texto é a alegria que me
espera na linguagem” posto que “em linguagem, [o] cão está junto à porta, encostado ao
muro, e a ladrar de alegria ao texto ________ em figura de Jade” (JLA, p. 88). Alegria,
essa, que é jubilo, propiciada pela fruição da palavra em corpo textual trazida pelo signo
verbal (cão) em desdobramento (Jade).
Sendo a alegria uma emoção, importa, aqui, pensar o modo desta poética
llansoliana a partir das reflexões propostas por Didi-Huberman na conferência
pronunciada em 13 de abril de 2013 no teatro de Montreuil, nos arredores de Paris, e
que estão publicadas no livro Que emoção! Que emoção?. Neste trabalho, Didi-
Huberman procura entender as emoções humanas, suscitadas por diferentes imagens,
através do olhar hipotético de quem sente, daí a exclamação (!) e; em seguida, por um
distanciamento necessário indo a caminho da indagação. Percurso, esse, também
llansoliano visto que a trajetória do júbilo perpassa por experiências outras, mas segue
mediada pelo pensar incessante de quem se põe a olhar95
. Desse modo, toda experiência
95
Em “Qualquer coisa que muda a escala do olhar”, Eduardo Prado Coelho diz: “O olhar através da
janela dá-nos a linha infinita do horizonte” (COELHO, 2010, p. 49).
154
vai em desdobramento do olhar e se torna única em percepção e análise, pois carrega
consigo marcas e gestos do(s) “eu(s)” por onde passou. E se a rapariga de Um beijo
dado mais tarde temia a impostura da língua, “o falcão temia a impostura do olhar (RV,
p. 65). Olhar que move, comove; é e-moção – “quer dizer, uma moção, um movimento
que consiste em nos pôr para fora (e-, ex) de nós mesmos” (HUBERMAN, 2016, p. 28).
Sobre a importância do olhar na textualidade llansoliana, lê-se:
“É dentro do Tratado de amor que se encontra o precioso papel que
tu me deste. Não vás perdê-lo por negligência do teu olhar ______ abertura
tua para a tua memória. O que me deste, deixo-o contigo, para que, de novo,
mo entregues quando me reencontrares nessa velhíssima próxima vez” (CL,
p. 95).
Há nesse fragmento um tratado amoroso feito em elo de leitura e escrita. Papel,
que sendo anel, vem reafirmar a aliança de uma comunidade que se entrelaça pela
aproximação afetuosa do cruzamento de olhares. Olhares que comungam de um ponto
de convergência, sabendo-se ser único no múltiplo. Coletividade que acolhe e que
integra, se não houver “negligência do olhar”. Nisso reside a perspectiva do leitor único
em Maria Gabriela Llansol e a alegria que dela advém por saber que “nada foi, tudo está
sendo” a partir do movimento que abre os sentidos, e põe sempre o sujeito a caminho
de. Na textualidade de Llansol, o importante não é o caminho, mas o caminhar. E entre
a tensão de vivência e experiência, há o eterno retorno por onde advém o frescor (o
sopro, ruah), a leveza (o exercício de ser ave), o júbilo (a alegria de estar em passagem).
Didi-Huberman lembra que segundo Merleau Ponty “o evento afetivo da
emoção é uma abertura efetiva – um tipo de conhecimento sensível e de transformação
ativa de nosso mundo” (HUBERMAN, 2016, p. 26). Assim, a imagem llansoliana
enquanto júbilo, trazida por cena fulgor, se dá na fenda, pela abertura do signo
linguístico “que se abre sempre sob a ruptura de um outro signo”, como afirma Roland
155
Barthes, em O império dos signos (BARTHES 2010, p. 70). Essa é a sina e o frescor da
criação. É o vazio que “mete medo” (LC, p. 9) e que propicia a escrita e dá a vida, já
que “nós vivemos de imagens” (LHIV, p. 82). Ou seja, diz Huberman que
a emoção é um “movimento para fora de si”: ao mesmo tempo “em mim”
(mas sendo algo tão profundo que foge à razão) e “fora de mim” (sendo algo
que me atravessa completamente para, depois, se perder de novo). É um
movimento afetivo que nos “possui” mas que nós não “possuímos” por
inteiro, uma vez que ele é em grande parte desconhecido para nós
(HUBERMAN, 2016, p. 28).
Desse modo, se é o vazio que move a ação de ler/escrever, fazendo dessa escrita
uma escrita nova onde ela “é o ponto de partida de uma espiral” (LHIV, p. 142),
importa falar que a perspectiva do júbilo, em Llansol, é “uma metamorfose escritural”
em meio ao leito de uma língua com águas já definidas; ou ainda: aquilo que vai
rompendo com estruturas “sem qualquer imagem vital” (LHIV, p. 138):
s.d. [1980-81?]
Represento-me que, ao ser publicada, vão colocar A restante vida
num cadinho e submetê-la à prova do fogo. Se eles fossem mestres na arte de
provar os metais, que enorme inquietação para mim, confrontada a uma
conclusão final. Será A restante vida ouro, isto é, metamorfose escritural,
força metálica de uma língua que, pouco a pouco, vai sendo dissolvida na
água? Águas ambíguas, ora águas de Tejo-rio, ora águas já definitivamente
poluídas. Sem qualquer imagem vital (LHIV, p. 138).
Contudo ela diz, partindo de uma coincidência a uma coexistência afetiva
porque implica em uma escolha; única, portanto:
________ Aprendi, então, a ler de uma maneira que eu achava / que
devia ser extraordinária [...] ; conhecendo eu os autores que emergiam do
texto para mim, aprendiz de legente antes de ser escrevente, decidi uma
manhã, fui levada uma manhã, não sei como dizê-lo, a colocar a meu lado,
sobre o braço da poltrona, alguns dos maiores nós do texto (em livros) que eu
considero – por tecerem, uns nos outros, o meu próprio ser. Faltavam ainda
alguns, faltariam sempre, [...] (LH IV, p. 100)
156
Nesta perspectiva, de uma leitura coberta por outras leituras96
, e de um olhar
que, “pelas fendas da paisagem”, busca “uma fenda para ver o mar” (CA, p. 156), do
olhar que é, sobretudo, português97
; importa observar98
que a ideia de júbilo vem a lume
em meio às três poéticas emblemáticas da literatura portuguesa (o desconcerto do
mundo camoniano; a poética do fingimento / o “desassossego” de Fernando Pessoa /
Bernardo Soares; e a poética do testemunho, de Jorge de Sena) com as quais Llansol
dialoga e transfigura seus autores em imagens99
, que não deixam de ser figuras, se assim
fosse não seriam cenas fulgor llansolianas; deixam, sim, de ser personalidades fixadas
na/pela história e literatura, e passam a ser potências criadoras em seu texto. Daí que
venhamos a ler COMUNS, AOSSÊ e JORGE ANÈS em sua obra. É possível dizer que
o tempo do júbilo circula no seu próprio tempo, em interlocução, atravessando verdades
instauradas ou institucionalizadas, rompendo com o já-dito, na medida em que ela,
Llansol, “poalha de luz”, se despossui. Em meio ao múltiplo, o júbilo coexiste no entre-
lugar de desconcertos que, através da arte e da literatura, preenchem o vazio de suas
épocas.
Assim, se a poética do fingimento tem como base a escrita em heterônimos; de
um sujeito que, fragmentado em si, se ficciona e, em máscara, passa a ser “um outro”;
“um outro” que se multiplica cada vez mais sobre/de si mesmo desassossegadamente
em desconcerto entre “entre mim e mim mesmo”, de modo que o “eu” é já “um outro” a
96
Procura-se, aqui, trazer a ideia de corpus legentes / escreventes que são, sobretudo, corpus coexistentes. 97
E que, portanto, a figura do mar preenche um imaginário cultural. 98
Reitero o foi dito no capítulo anterior de que não faz parte desse trabalho o estudo do júbilo diante das
emblemáticas que o cercam. Contudo, o que deixo aqui é uma hipótese de leitura futura para quem
comigo compartilha desse mesmo olhar. 99
“ ______ da água a Leipzig há o percurso da viagem, e os pontos deixados por AOSSÊ; [...]. Em
AOSSÊ, não há plural; eu deslizo na sua língua, e o tom monocórdico do seu chapéu cobre-o com a
imagem de alfaiate que o defende? Quem será o alfaiate de AOSSÊ em Leipzig? Onde conserva ele o
meu jardim, entre os óculos e os olhos? Evanescente, evanescente, evanescente é o último sussurro da
trajectória que nos liga. Somente se eu soubesse onde se encontra , ou em que mundo habita a próxima
liquidez que há-de __________” (LHV, p. 251).
157
partir de um dado imaginário (dada a uma motivação geográfica / histórica que o mar de
Portugal propõe e o “mar” português, da cultura e do sonho português, levantam100
) em
que, por espelhamento, o indivíduo se vê, imaginando-se. E se a perspectiva do
testemunho é a do sujeito que se vê à semelhança de “um outro”; um outro que consigo
compartilha o espaço comum; são, desse modo, indivíduos sociais, inseridos em um
tempo sobre o qual conjugam responsabilidades. Daí o modo testemunhal da escrita
seniana por ser o “eu” um “outro” implicados circunstancialmente no tempo-espaço. Em
Llansol, o “eu” é “um outro” pela condição humana; porém, pelo viés do afeto e da
experiência individual que o acompanha e o distingue dos demais, esse “eu” passa a ser
“um outro” a partir do olhar que lhe é próprio, em linguagem sinestésica (gestual /
sensorial); por isso, em Llansol, o silêncio não é voz muda; é voz que sensorialmente
comunica – não a todos, mas com quem lhe compartilha do mesmo apelo; por isso, a
possibilidade do diálogo, dada à distância de quem lê/aprende/vê com um outro; ou seja,
no necessário afastamento para que na relação possa existir o outro.; ou ainda: saber-se
ser singular diante do todo. Diálogos, assim, possíveis, entre “mim e mim mesmo” (eu-
Gabi-Témia-mulher-rapariga desmemoriada); e entre as vozes que compõem seres reais
e não-reais (Grande Maior, Jade, Textualino...), todos eles “textuantes” pois vão para o
espaço da escrita com o que lhe é único: o pensamento – pensar que traz a perspectiva
do “leitor único”101
para dentro dessa comunidade “de rebeldes”, onde toda a rebeldia
dita se põe a favor do pensar.
Diz Ernst Bloch, em O princípio da esperança, que “pensar é transpor”.
Transposição que em escrita jubilosa permite o tempo sem angústia, fruto de um
100
A passagem sugere uma referência à saudade com base no já comentado estudo de Eduardo Lourenço,
em Mitologia da saudade. Vale lembrar que a escrita de Maria Gabriela Llansol também habita esse
entre-lugar. 101
Imagem, essa, de ecos camonianos quando se lê: “Verdades puras são e não defeitos; / E sabei que,
segundo o amor tiverdes, / Tereis o entendimento de meus versos” (CAMÕES, 1980, P. 221).
158
continuum processo de “decepação”, e de “des- possessão”102
. Tempo sem peso, onde a
dor sentida se transforma em “espuma de texto” (AA, p. 11), para logo ser desfeita e o
movimento se perpetuar em escrita nova. No tempo jubiloso, a força pungente ficcional
é motivada pela circunstancia de um tempo-espaço que desliza filosoficamente para um
processo reflexivo, segundo a dialética do “dois-em-um” em termos socráticos, pois
toda a ação posta em cena vem pelo pensamento. Pela ação do pensar, Llansol faz de
sua escrita praxis política e caminho derivatio para alcançar o desconhecido. Percurso,
esse, órfico e será o legente, segundo Augusto Mourão, quem cumpre a promessa do
novo; pois nele que está a palavra em movimento103
; nele reside a esperança; o “legente
é filho”; é quem se senta no espaço “entre” – entre a mão que escreve e o texto que diz;
é ele quem vai à frente; “que corre à frente” de quem ali pôs as palavras que
prosseguem em escrita/leitura nova “até chegar a hora propícia da travessia”; nele está o
“ruah”, o sopro, que no tempo-espaço trazido por Parasceve guarda o ar vital. Esse é o
olhar llansoliano diante do texto, da sua escrita aberta, do seu inacabado texto, ao modo
de o Livro do desassossego, de Fernando Pessoa/Bernardo Soares; textualidade também
testemunho daqueles cuja voz não se ouve na história, dos abortados da história que no
sangue derramado tiveram suas vidas cortadas104
; ouviu-se a voz dada aos não-
humanos, aos “objetos” servis do Poder e aos excluídos. Textuantes que foram (são) voz
102
Ao se afirmar que em Llansol não há angústia, não se nega nela a presença desse sentimento; pois ela
diz por volta dos difíceis anos de sessenta: “Eu olho sempre, e vejo tudo, imodificável, imobilizado,
embora transformado, compreendes? E isso angustia-me extraordinariamente”. Contudo, é nesse vazio
que ela volta para si para, ao modo de decepação, vir a ser “estere” em devir: “Vivo para dentro, para a
cena, na minha maneira de ser que é possuir um palco dentro, e uma plateia”. E, em linhas adiante, diz:
“O que eu ignorava é que, nessa altura de purificação, tudo me ocorre, me pertence, ‘em luxúria’” (LHIV,
p. 23-24). 103
Movimento, este, que é ritmo poético, movimento que trazido ao campo da linguagem se faz enigma.
João Barrento em um ensaio intitulado‘“Um ritmo poético fugindo...’ Hölderlin-Llansol-Hölder relaciona
esse movimento ao “enigma do ritmo”, citando Blanchot, em A escritura do desastre, “que não é cadência
regular, mas pulsação inquieta de algo de vivo ou música im-perfeita que tem o dom de lançar o sentido
para a distância” (BARRENTO, 2012, p. 21), como num lançamento de dados à maneira de Mallarmé.
Completa-se a isso o que diz Jorge Fernandes da Silveira ao afirmar que “o movimento é a única
realidade essencial” (SILVEIRA, 2006, p.19). E cito, entre movimento e pensamento, o verso de Ana
Luísa Amaral: “É mental o destino” (AMARAL, 2010, P. 145). 104
Referência à figura do meio-irmão trazida no livro Um beijo dado mais tarde.
159
política. Daí que Maria Gabriela venha dizer: “Eu sou. Sou a fonte e o túmulo de muitos
irmãos” (LHV, p. 259). Texto que é pensamento e que vai à frente; é ave. Daí que
Llansol siga por desdobramentos: “meu pai foi um homem nu, o homem nu do piano
não é meu pai, assim, posso amá-lo neste Outono” (JLA, p. 95). E diz: “nudificar é dar à
luz, desovar no rio onde se nasce” (P, p. 81). Assim, em leitura e escrita, Maria Gabriela
Llansol faz da imagem comum a sua própria imagem, pois sabe que a imagem vista
vem105
do desvio do seu olhar e nasce na fenda do seu apelo; é ela, assim, quem lhe dá a
luz (pela ação de escrever). Mas, a imagem quando vista é já uma imagem outra (pela
ação de ler); já não mais lhe pertence, e segue em caminho próprio106
, “a caminho da
ponte” (P, p. 179). Texto que é assim “fluxo e fluxo. Ruído e som. Emanação e ruah”.
Eis Parasceve, em uma “respiração dispersa que sopra” (P, p. 180).
Diz Fernando Pessoa que “entre alma e alma há o abismo de serem almas”
(PESSOA, 2009, p. 337). E acrescenta: “Minha alma é uma orquestra oculta; não sei
que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de
mim. Só me conheço como sinfonia” (PESSOA, 2009, 298); ou seja, em realização
musical, em imagem, no seu “assim”107
– em sua “relação expositiva entre a existência
e a essência, a denotação e o sentido” (AGAMBEN, 2013, p. 90), no ser tal-qual108
que
em abismo põem-se como força seminal de toda arte; que, por sua natureza109
intermediária, comunica luz e sombra – opostos que não se excluem, mas se
complementam em significação.
105
Nasce /é gerada. 106
Imagem que segue em travessia ao encontro do futuro, do seu legente-único. 107
Segundo Giorgio Agamben, “assim significa: não de outro modo; [...] Não de outro modo nega cada
predicado como propriedade (no plano da essência), mas os retoma a todos como im-propriedade (no
plano da existência). Um tal ser seria uma existência pura, singular e, todavia, perfeitamente qualquer”
(AGAMBEN, 2013, p. 88). 108
A existência como exposição é o ser-tal de um qual. A categoria da talidade é, nesse sentido, a
categoria fundamental, que permanece impensada em toda qualidade (AGAMBEN, 2013, p. 91). 109
Diz Llansol: “Toda a natureza reverbera, e se suicida em mim para renascer” (LHV, p. 377).
160
Daí que, por letra llansoliana, se leia que todo o júbilo esteja na nuca, em lugar
intermédio entre corpo-espírito; “na cerviz indobrável do humano” (P, p. 180), em
aliança; na certeza de que “o tempo há-de voltar aqui, no próximo verão; e há-de
encontrar a nossa mão bárbara, e a nossa mão amena, fazendo um anel com os dois
polegares, e os dois indicadores” (BDMT, p. 27) para que caminho prossiga. Sempre.
“Ler. Nascer. Morrer. Aprender a viver com a leitura que morre. Ser a língua na estátua
de um outro, esperar que o mesmo momento se repita. Não o deixar morrer. Estabelecer
um elo entre a lei e a leitura, e querer a escrita. Voltar-se para Ana, e deitar-lhe um
irmão dentro de um livro para que ela o ressuscite” (BDMT, p. 51), onde o júbilo é o
beijo que se levanta após o enfrentamento com mar.
161
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“UM OLHAR PENETRANTE DESCIDO”
162
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Comuns confessa-lhe que sabe que ela é a rapariga que temia a
impostura da língua, que agora também teme o desprezo das línguas, e que
todos, afinal, hão-de vir a escrever numa língua em que ninguém se vinga.
Pelas fendas da paisagem, tornou-se perceptível um curso de ar que
agitou de contentamento os ramos do dom arbusto:
daqui faço uma linha que me ata ao sol,
um traço para o solo firme,
uma seta que guardes no coração,
uma fenda para ver o mar.
Comuns aceitou-o logo na sua língua, mas só Úrsula assistiu a, em que
momento da queda, ele deixou de ser uma sombra que se abriga no calcanhar,
ou um perigo prometido ao nascer ou, talvez ainda, um olhar penetrante
descido.”
Maria Gabriela Llansol, grifos nossos.
Entre o passado e o presente, a escrita de um tempo em que o futuro nele se
inscreve; escrita que nasce do vazio fecundo que promove a passagem de ecos, vozes,
experiências que vão ao caminho do Aberto em deslize metamórfico. Essa é, sobretudo,
a Causa Amante, ou A restante vida de quem, na paisagem, busca “uma fenda” e que
tenha sobre ela “um olhar penetrante descido” de modo que a “linha” tecida seja um elo
“com o sol”, e onde o “traço” firme guarde sentido “no coração” (CA, p. 156).
Em Amar um cão, Maria Gabriela Llansol, em um diálogo a partir de Jade, o cão
“que acabara de nascer” (AC, p. 8), inicia o curto texto ressaltando a brevidade do
tempo dado por um espaço de intermédio e de seres híbridos. Importa observar que,
com Jade, Llansol afirma existir uma linguagem para além da palavra onde “só mais
tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca” (AC, p. 8). Porque “pesa a
palavra” e há o desejo “de que ela fique muda” (AC, p. 11). Assim, no esvaziamento da
linguagem, surge o novo, de uma nova e ressignificada imagem. Interessa perceber que
a aprendizagem e a memória trazida se constituem “através do outro, e em face do
outro, sob o seu olhar, um ser sendo forja a sua identidade.” E na dicotomia que há entre
163
o diverso, Llansol lança a possibilidade de uma “aliança”, através da “grandeza
luminosa” (AC, p. 13) de se estar com o outro, de tal forma que “o princípio da luz é
uma arca”, onde, em silêncio, diz ser “iluminado por ti” (AC, p. 17). Neste capítulo, há
considerações importantes sobre a procura llansoliana por um lugar outro, fora da luz
comum. Espaço, esse, único, por isso “incomum”, constituído “no intervalo do afecto”,
“entre perigos e prazeres” (AC, p. 19), pela ação de leitura e escrita mediada pelo ato
aprendiz em constante movimento – “movimento [que] é a passagem obrigatória para a
pupila” (AC, p. 15), pois dela vem a memória de onde se vê “o porto de nascer” (AC, p.
9). Assim, ler e escrever são atividades de uma “alma crescendo”, que tanto parte
quanto obedece, por um “caminho seu” (AC, p. 26), pois não há como “ser bom ser se
não estiver na perpendicular do ceptro” (AC, p. 15), na reflexão que permite “pensar a
palavra” (AC, p. 11) e fazê-la desaparecer, em ressignificação, pelas “práticas do
silêncio” (AC, p. 16). Jade também é a representação do leitor. Daquele que aprende a
ler a partir da fala de quem escreve; a quem o autor alimenta pela “lei do hábito de
servir” e não pela ordem capitalista, mercantil – mas, cultural; e com quem cria afeto
pelo elo construtivo da interrogação e da busca do lugar enigmático da “luz clara”. A
esta “relação de alma crescendo, [...] nesta ordem de ler, ler é nunca chegar ao fim de
um livro [...]” (AC, p. 20). Porque “o seu existe para si”, “seguindo o itinerário da
geografia do seu corpo” (AC, p. 26) e eis que no centro da cena fulgor, não há morte –
pois ali, a exemplo do cão110
, há algo vivente, em imagem, pelo afeto, na voz presente.
Iniciar a conclusão com as considerações sobre Amar um Cão implica dizer que
para a elaboração da Tese a sua leitura foi fundamental para a compreensão do que na
textualidade llansoliana é o jogo, a tensão entre opostos, estendendo a linguagem a
situações-limites sem ainda ter encontrado equivalente na boca, como, por exemplo, ao
110
“o [teu] cão vive, nela” (AC, p. 27).
164
modo de “lá e tra-la-lá”, em código outro. Daí que, em Causa Amante, leia-se “um
animal chamado escrita” (CA, p. 160), posto que ao relacionar leitura-escrita ao Vivo,
Llansol vem enfatizar a memória cultural que se faz e refaz no instante que se lê e
escreve pelo movimento contínuo de apreensão do conhecimento. Desse modo, a figura
de Jade nos traz a chave de ler, nos convoca a uma perspectiva de leitura que se dá
através do silêncio. Do silêncio que é, sobretudo, um elogio à eloquência posto que, em
introspecção, nos leva à atividade do pensamento. Pensar que permite o dizer –
conferindo voz a quem não tem. Dizer que vem combater o “mau silêncio" da casa, ao
fazer fluir a palavra dita.
Em Um beijo dado mais tarde, assiste-se à violência do interdito – lugar-
nascente da figura da “rapariga que temia a impostura da língua”. E é isso que Llansol
busca combater: a impostura da língua, da língua falsa, da autoridade que apaga vozes.
Essa é a imagem do livro, do beijo que só é dado – símbolo da aliança entre ela e o pai;
do passado e do seu presente – após a palavra dita. O que Jade e a rapariga nos mostram
é que o caminho da aprendizagem vem pelo silêncio. No dizer que primeiro se põe em
diálogo consigo mesmo, na memória que o habita, para depois ganhar o espaço exterior.
Dessa forma, o enfrentamento não se dá de fora para dentro, pelo derramamento do
sangue jorrado de uma língua cortada; mas pela via do pensamento derramado por elo
de afeto. Nele e por ele corre o sangue vital capaz de reconstituir a vida e fazê-la
progredir no percurso de nascer-morrer.
Por isso, em Parasceve, leio o desejo como força motriz no percurso ao novo:
“Onde o desejo der com o túmulo, dará com essa presença a que chamas anjos” (P, p.
125). Pois, “se o amor vence a morte, é forçosamente no túmulo que se combatem”. E
“túmulo” lembra “tálamo”, como afirma Maria Gabriela Llansol. Parasceve é,
165
sobretudo, essa “doce esperança” (P, p. 126), onde “o candeeiro, a luz e o rasto
caminham num único movimento solidário” (P, p. 129).
De cena em cena, procurei mostrar que o texto llansoliano fulgura por
fragmentos onde o sentido advém do entrelace de uma memória afetiva no espaço de
uma comunidade111
que se apresenta em incompletude por saber que tudo está em
passagem, em constante processo de transformação. Na certeza de um sempre
prosseguir, por uma perspectiva nunca conclusiva, residem a força e a vitalidade de sua
escrita. Pela ideia do continuum, Llansol elege figuras para atuarem no texto em
detrimento de personagens. São elas que, sendo “nó construtivo”112
, atravessam o
tempo-espaço trazendo para a escrita a ideia do ininterrupto que se atualiza com o
momento presente. Se muitas vezes, voz, memória e silêncio são portadores de uma
negatividade, de uma melancolia ou de um certo niilismo, em Maria Gabriela Llansol
não há angústia posto que são passagens, pois “nada foi, tudo está sendo” (F, p. 220).
Decepação e voz foram interpretadas como modos de expressar movimentos de
busca, de forma que a palavra dita é “apenas uma parte da (sua) respiração”: “Era
certamente o desconhecido desconhecida que eu viera buscar no beijo que me abrira a
porta da vida” (P, p. 179, grifos do texto). Descobrimento, esse, tensionado por um
processo de esvaziamento e ressignificação da palavra, visto que “recordar é quase, de
certeza, um ainda-mais-morrer. Ler o novo é, de longe, preferível” (P, p. 148).
Objetivei ressaltar o tempo do júbilo pelo movimento cíclico de nascer-morrer,
pelas vozes textuantes metamorfoseadas e híbridas, como a do “lápis [que] quer a noite”
(P, p. 50) para com ela ver a luz. E onde, sobretudo, “a angústia que (a) invade é sem
importância” (P, p. 45). Importa dizer que a obscuridade do não dito é “a noite” à qual
111
Digo “comunidade” no sentido de uma coletividade. 112
Sendo a figura o “nó construtivo” do texto llansoliano, Maria Etelvina Santos diz que compreender a
noção de figura no que se refere à “sua consistência e devir” (SANTOS, 2010, p. 106) permite estabelecer
o modo como a escrita pode desde este aspecto implicar o novo, o atual e o vivo.
166
devemos ir. Pois é através dela que se dá a luz. Esse é o combate. Esse é o jubilo, em
voz, memória e silêncio, objetivo principal da Tese.
Com Amigo e Amiga – Curso de silêncio de 2004, o mote veio centrado no
verso/frase “Devolve o sol a quem lê”; pois, devolver “o sol a quem lê” (AA, p. 166) é
essencialmente expressão jubilosa. É ato de amor. É permitir que o outro siga seu
itinerário, é beijar a dor e lembrar Parasceve, “Esperança”, que banhada pela luz própria
é trazida no “leito da linguagem” (AA, p. 169): “mal bate a manhã, o nevoeiro desponta
___________ o dia seguinte dispersa o nevoeiro” (AA, p. 69).
Amigo e Amiga é um curso de silêncio datado em 2004. E “curso”, aqui, tanto pode
ter o sentido de fluxo como de aprendizagem de silêncio. De “O golpe”, pelo caminho
aprendiz de Parasceve, chega-se à fala, na última parte: “________Estou bem”. Na e
pela vivência do luto de um ambo, o curso é uma meta-aprendizagem, aonde o
conhecimento vem com e através do texto: “Porque presumo que há de ensinar-me o
dobro das palavras que sei” (AA, p. 73).
Encontramos no seu corpo de escrita, uma invocação de figuras de outrora ao modo
de uma revisitação a tudo que deu ou fez sentido ao longo da jornada llansoliana. Tal
como num funeral, seus textuantes-familiares lhe concederam amparo e acolhimento:
“Esta figurinha de madeira [...] é da mesma família do que eu” (AA, p. 18). Pela voz do
Nómada, lemos:
julga que precisa de companhia,
quando o que precisa
é de matéria figural
para transformar.
Ou seja, o necessário não é estar em companhia do sujeito ou do objeto real
existente, mas sim em sua presença como “matéria figural”, transformada em potência
de escrita. E diz Llansol: “Partilho com eles a grande dor oculta de não sermos abertos
167
nunca mais. Entre seus livros, encontro meus irmãos” (AA, p. 148). E “para a consolar
da perda irreparável, digo à mulher que este Curso é um convívio” (AA, p. 229). Logo,
o “(...) Curso é um convívio” (AA, p. 229). E nele há luz e paz: “Paz dependente de uma
outra paz, que o quarto procura; paz subalterna _______” (AA, p. 245).
Amigo e Amiga nos mostra a aceitação de um adeus. Um ensaio-aprendizagem para
o seu último livro, Os cantores de leitura, onde se lê, em suma, o próprio adeus,
envolvido “no silêncio de nem sequer escrever” (AA, p. 245). E nele há:
Que me esqueçam, mesmo os mais próximos, e me deixem estar sozinha
________ não há texto autobiográfico. Que os humanos,
ao ler-me, não falem de mim,
pois tenho presa à borda [...],
um raio de sol,
[...] (CL, p. 11).
Entre o “texto autobiográfico” e a “matéria figural”, há a vontade, em forma de
pedido explícito, de que a Figura da Criadora sobreviva à pessoa histórica e socialmente
datada e localizada num tempo e espaços definidos. Desejo que, em suma, é a expressão
radical da reivindicação do Tempo Jubiloso. Tempo de júbilo que, entre tantas outras
vozes, canta através da figura da “rapariguinha que temia a impostura da língua”:
eu sou feliz, na alegria não sentimental que se manifesta; o que me
aprisionava, partiu; o que tende para um limite finito, desapareceu; a mata
espessa e o grande bosque florescem; dobro-me conforme o número, gênero,
grau, modo, tempo, e pessoa que sou vossa. E passo a leitura. (CL, p. 26)
E, em sua companhia, em jogo anelar, passamos todos nós a leitura.
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_________ . Figuras Llansolianas – Monstros e Fantasmas nos Mitos Portugueses. In:
BARRENTO, João (Org.). Europa em sobreimpressão. Llansol e as dobras da história.
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____________. O Tejo é um rio controverso. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.
____________ . Lápide & Versão: ensaios sobre Fiama Hasse Pais Brandão seguidos
de “Memorial da Pedra Antologia Poética”. Rio de Janeiro: Bruxedo, 2006.
SOARES, Maria de Lourdes M. de Azevedo. A geografia ficcional de Maria Gabriela
Llansol: o litoral do mundo. In: BARRENTO, João (Org.). Europa em sobreimpressão.
Llansol e as dobras da história. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.
________ . O espaço Llansol: sobreimpressão de paisagens na Casa de Julho e Agosto.
In: SILVEIRA, Jorge Fernandes da (Org.). Escrever a Casa Portuguesa. Belo
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____________ . Um corpo de fulgor: “Esse estupendo corpo/, certo me tem
maravilhado”. In: OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire de (Org.). Um Nome de Fulgor –
Maria Gabriela Llansol (1931 – 2008). Niterói: Editora da UFF, 2012.
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da Moeda, 1993.
ZUMTHOR. Paul. A letra e a voz: A “literatura” medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
Livretos de Jornadas e Colóquios
Rara & Curiosa – Os papéis avulsos de Llansol. Segundas Jornadas Llansolianas de
Sintra: Maria Gabriela Llansol – A liberdade da alma. Portugal, Espaço Llansol,
Centro Cultural Olga Cadaval, 25 e 26 de setembro de 2010.
180
Vivos no meio do vivo. 3° Colóquio Internacional Maria Gabriela Llansol ( Mourilhe,
20-24 de julho 2005). Portugal, Espaço Llansol, 2007.
Livro 1: Em busca da troca verdadeira / Quem somos?Quem nos chama?
Livro 2: Cem memórias de paisagem / Um fio de voz
Livro 3: A imagem repentinamente sabe...
Livro 4: Recriar as densidades e os materiais... / O mesmo vestido, lido de outro
modo...
DVD interativo – Álbum do encontro.
Cadernos da “Letra E”
Hölderlin, Poemas lidos na Letra E em 3 de Novembro de 2012. Traduções de Maria
Gabriela Llansol, Bruno Duarte, Tomás Maia e João Barrento. Espaço Llansol, 2012.
Maria Gabriela Llansol / Teresa Huertas, Da Paisagem (26 de Janeiro 2013). 12 p.
Llansol. Uma vida de escrita. Espaço Llansol, 2013, 12 p.
O Regresso de Jade. Amar Um Cão, de M.G. Llansol, lido aos mais pequenos por Hélia
Correia. Espaço Llansol, 2013, 22 p.
Dickinson em Llansol. Espaço Llansol, 2013, 20 p.
O Ambo - Maria Gabriela e Augusto Joaquim. Espaço Llansol, 2013, 24 p., com
extratextos a cores (desenhos de A. Joaquim)
PROENÇA , Pedro. Alguns Manifestos para Gabriela, acompanhados de certos livros
que se desenrolam da sua Obra. Espaço Llansol, 2013, 52 p., com 30 colagens de Pedro
Proença em extratexto a cores. (esgotado)
VIEIRA, Helena (Org.). Llansol na Imprensa Portuguesa. Meio século de crítica. 2013.
Escola do Tempo e do Olhar. Llansol e o cinema de Abbas Kiarostami. 2014. 12 pp.,
com poemas de A. Kiarostami
181
A Solidão Essencial. Llansol versus Blanchot. 2014. 32 pp.
A Ilha de Ana de Peñalosa ou “a imagem com que se resiste”. Llansol e a crise do
mundo contemporâneo. 2014. 24 pp.
Os Cafés de Llansol. 2014. 48 pp.
Llansol e os Rostos do Tempo. O Almanaque Llansol. 2014. 12 pp.
Um Quarto que seja nosso… Llansol e Virginia Woolf. 2014. 24 pp.
O Império dos Fragmentos. Llansol e a escrita fragmentária. 2014. 32 pp.
O Ofício de Crescer. Lugares e tempos de Llansol. I: A infância. 2014. 20 pp
O Lugar do Entresser. Crónica da Letra E. CD com 20 Cadernos da Letra E e 29
sessões da Letra E. 2014.
A época sem segredo. Lugares e tempos de Llansol. II: Adolescência e juventude. 2015.
36 pp., extratexto a cores em formato A3.
Llansol e Clarice Lispector. 2015. Folheto, 4 pp.
As escolas da Bélgica. Lugares e Tempos de Llansol III. 2015. 36 pp.
Uma Nova Geografia. Llansol e as escolas da Bélgica (ateliers de música, pintura,
escrita). 2015. 24 pp.
“O homem do livro”. Nietzsche e Llansol. 2015. 32 pp.
“A viagem infinita”. Llansol e a experiência da morte. 2015. 16 pp.
O “companheiro filosófico”. Vergílio Ferreira e Llansol. 2015. 36 pp.
“Um alvoroço de imagens”. A iconografia llansoliana. 2015. Desdobrável A3, com
textos e imagens.
Maria Gabriela Llansol, O Caderno do Exílio. Outubro 2015. 72 pp.
Sintra “em passo de pensamento” (Maria Gabriela Llansol). Espaço Llansol, 2016.
Rostos / Aparições / Desaparecimentos (Maria Gabriela Llansol / Teresa Huertas).
Espaço Llansol, 2016. 24 pp. Com 8 pp. de fotografias em extratexto.
182
Um livro numa frase. O Bloco 06. 2016. 32 pp.
A Criança, a Mulher e o Lobo. Fábulas para educadores inquietos (Maria Gabriela
Llansol/Paulo Sarmento). Espaço Llansol, 2016. 32 pp. Com 8 pp. de extratexto.
“Em contraponto”. Llansol e a música. Espaço Llansol, 2016. 32 pp.
“Uma estética literária para a geometria” (Llansol e Espinosa). Espaço Llansol, 2016.
52p.