Vamos Cuidar Do Brasil
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Educao indgena:uma viso a partir domeio ambiente
Xanda Miranda
O TEXTO APONTA A RELAO ENTRE OS FUNDAMENTOS DA ESCOLA DIFEREN-
CIADA E A EDUCAO AMBIENTAL, DADO AS CULTURAS INDGENASSEREM MATERIAL
E SIMBOLICAMENTE PAUTADAS NOS SEUS AMBIENTES. EXEMPLIFICA O CONCEITO
ATRAVS DE TEXTOS DE PROFESSORES INDGENAS E DOS TEMAS TRANSVERSAIS
TERRA E CONSERVAO DA BIODIVERSIDADE E AUTO-SUSTENTAO DO
REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA AS ESCOLAS INDGENAS.
PALAVRAS-CHAVE:
POVOS INDGENAS, MEIO AMBIENTE, EDUCAO DIFERENCIADA, EDUCAO
INDGENA.
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A EDUCAO AMBIENTAL UM PROCESSO ONDE SE TEM QUE ESTAR ATENTO a tudo que se est desenvolvendo. uma relao com a vida das pessoas, o comportamento das pessoas, o jeito das pessoas. Quando se fala em educao, bastante
abrangente e se aplica tambm educao ambiental: porque se est falando de vida e de recursos que tocam a vida, de que pode
haver paz dentro de um ambiente quando se consegue entender o papel, a funo de cada elemento que faz parte do seu mundo.
Os choques entre as populaes, no caso do povo indgena e a natureza, acontecem a partir de orientaes e da introduo de con-
ceitos que so de outra realidade ou cultura, que so impostos dentro da comunidade. No caso dos povos indgenas se percebe que
a educao est ligada estrutura social do povo e sua relao com a natureza. Porque essa relao se constri, no se criam regras, no
se impe sobre a natureza, se obedece ao que a natureza orienta, se planeja de acordo com o que a natureza oferece.
um processo comum perceber, por exemplo, na poca de chuva, se faz determinado tipo de trabalho. No vero, se aproveita e se faz
outro tipo de trabalho. Ento, existem coisas que no se fazem quando est chovendo, e coisas que no se fazem, quando est seco.
esse o entendimento de que as pessoas se obrigam a obedecer ao que a natureza dita como regra. Quando se criam regras contrrias
orientao da natureza, entra-se em choque com ela.
muito forte essa relao indgena com a natureza, porque existe um jeito de distribuir ao longo do tempo o descanso para cada
uma das espcies. reas de refgio, de reproduo, sejam da fauna ou da flora. A natureza tem um jeito de lidar com essa questo.
H situaes que hoje a comunidade indgena est sofrendo porque foi orientada, muitas vezes, a deixar o seu jeito de ser, de estar
respeitar as orientaes da natureza para impor uma poltica diferente (ASHANINKA, F. P., 2006).36
As culturas indgenas se pautam material e simbolicamente no meio ambiente em que se constituram da sempre se
extraiu a matria-prima para a produo da cultura material (casas, artefatos de uso cotidiano e ritualstico etc.) e para a subsistncia
(caa, pesca, coleta de frutos e razes, roa etc.). nesse contexto que as tradies, os costumes, a lngua, a religio e a estrutu-
ra social foram construdos e transmitidos de gerao em gerao. Essa integrao ser humano-meio se d no dia-a-dia, nas tarefas
domsticas ou de subsistncia, nas relaes interpessoais, na maneira como cada indivduo interpreta a realidade a fim de
apreend-la. atravs dessa mediao cultural que comunidades indgenas exercitam uma educao profundamente compro-
metida com seu meio socioambiental. Nesse aspecto, no so apenas os conhecimentos tradicionais que podem acrescentar
36. Francisco Pianko Ashaninka, uma das lideranas do povo Ashaninka e atual secretrio da Secretaria Extraordinria dos Povos Indgenas do Acre, no texto O que entendemos poreducao ambiental da publicao Aprendendo com a natureza e conservando nossos conhecimentos culturais, produzido pela Organizao dos Professores Indgenas do Acre/OPIA, organizao de Maria Luiza Pinedo Ochoa e Gleyson de Arajo Teixeira.
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muito educao ambiental a relevncia e as formas de transmisso comunitria dessa mediao cultural devem ser con-
sideradas.
Dada essa relao estreita, as alteraes operadas nas culturas indgenas pela explorao predatria e degradao dos recursos
naturais so diretas, drsticas e facilmente observveis. A oferenda de caa por parte do noivo famlia da noiva, por exemplo,
o ponto culminante da cerimnia de casamento dos Awe-Xavante (MT). E se no h caa? E se no h matria-prima para con-
feco das vestimentas e adornos adequados cerimnia? As representaes simblicas permeiam a relao dos povos indgenas
com o seu meio ambiente tanto na dimenso ritualstica quanto na cotidiana. Abaixo, a concepo de meio ambiente e territrio
do povo Awe-Xavante retratada no depoimento de dois curandeiros da etnia. No depoimento, podem-se observar as conse-
qncias da explorao predatria dos seringais do Acre sobre o povo Poyanawa.
O Awe-Xavante depende do cerrado e o cerrado depende do Awe-Xavante. Os animais dependem do cerrado, e o cerrado
depende dos animais. Os animais dependem do Awe-Xavante, e o Awe-Xavante depende dos animais. Isso o R. R significa tudo
para os caadores Awe-Xavante: o cerrado, os animais, os frutos, as flores, as ervas, o rio e tudo mais. Ns queremos preservar
o R. Atravs do R garantiremos o futuro das novas geraes: a comida, os casamentos, os rituais e a fora de ser Awe-Xavante.
Se estiver tudo bem com R, continuaremos a ser Awe-Xavante. O caador anda no R e aprende a am-lo. As mulheres apren-
dem a am-lo porque o casamento depende do R e porque tambm andam l para pegar as frutas. Antigamente o R era assim:
havia a aldeia, em volta a roa, em volta as frutas, em volta a caa junto com os espritos, em volta mais caa e mais caa sempre
junto com os espritos. Os espritos ajudavam a descobrir os segredos que o R escondia: onde estava a fora do caador, onde
estava a caa, onde tinha cobra e outros segredos. Os caadores iam pegar a caa mais longe da aldeia, assim os animais fugiam
em direo aldeia. Depois os caadores iam a outro lugar longe da aldeia. Assim os filhotes iam crescendo sempre e esqueciam a
tragdia da caada. Mais longe que isto s estavam o cu e a outra aldeia onde moram os mortos. Mas hoje os rapazes no esto
aprendendo a amar o R, nunca andaram, caaram, nem sabem cuidar dele, querem plantar arroz e soja. Hoje as novas geraes
querem comprar comida de fora, esqueceram que a comida vem do R, no da cidade. As mulheres Awe-Xavante continuam a
amar o R, sabem que s se ele existir podero se casar e casar seus filhos e filhas.
A minha comunidade e todo o povo Poyanawa foram obrigados a se adaptar ao sistema do homem branco muito cedo, tendo como
resultado a quase extino de nossa cultura. Em 1985, ficamos livres dos patres seringalistas e, sem sombra de dvidas, a nossa cultura
estava bastante fragmentada. Durante todos esses anos, tiraram muitas coisas de ns, mas nunca o direito de sermos ndios. Por esta razo,
estamos trabalhando na revitalizao de nossas tradies, principalmente a lngua materna, que uma das identidades de um povo.
37. Depoimento dos ancios Ado Top'tiro e Thiago Tseretsu, traduo de Hipridi Toptiro. Material produzido pela Associao Xavante War no projeto Salve o Cerrado.
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Estamos considerando como base para esse resgate as nossas escolas. Sabemos que o progresso de uma comunidade torna-se
fortalecido atravs do ensino escolar, porque as crianas so o futuro. Assim, esperamos recuperar nossos rituais, nossas msicas, danas.
E viveremos com dignidade e respeito, como um povo diferenciado, pois ser diferente no ser inferior (POYANAWA, F. D. W., 2006)38.
Ao mesmo tempo, no h cultura esttica no tempo e espao. Culturas so estruturas dinmicas, podem incorporar elemen-
tos externos ou da prpria experincia histrica ressignificando-os de acordo com os prprios referenciais. H exemplos desse
processo de absoro de prticas e costumes entre as etnias indgenas americanas, ainda antes da chegada dos europeus. Cada
uma dessas redes sociais tem sua dinmica especfica de resistncia ao esgaramento e sua prpria histria de interao com
as sociedades no-indgenas, simultaneamente influenciadas por mltiplos fatores, como o tipo de explorao econmica local, o
tipo de influncia religiosa, o tipo de educao escolar introduzido etc.
Precisamos de um conhecimento adequado realidade indgena, para que possamos decidir como passar para a sociedade envol-
vente o valor de nossa cultura, a fora e o esprito do nosso povo, assim conservando e protegendo os ensinos e conhecimentos. No
somos mais ndios isolados, querendo ou no, fazemos parte de tudo o que est acontecendo. Somos diferentes na cultura, no modo
de viver, mas somos iguais na capacidade, na inteligncia. No somos seres de outro lugar, temos direitos s oportunidades.
Na minha aldeia, tinha crianas, adultos e velhos que no cantavam, no danavam, no queriam mais falar a lngua. Quando a escola
veio e trouxe a importncia da cultura, minha aldeia comeou a querer danar, a ver a importncia da lngua, e querer aprender mais.
Ento, acho que o fato de estarmos sempre discutindo esses assuntos uma ajuda que podemos levar para a comunidade, de uma
forma bem devagar, analisando os pontos. Porque, s vezes, ns pensamos que estamos levando uma coisa boa e podemos estar
levando algo, sem perceber, que ruim.
O que estamos querendo mostrar para os nossos alunos a nossa cultura, o respeito com os mais velhos, a tradio. Isto faz parte
de um ensino diferenciado. por isso que ns temos que estar aqui discutindo para defender essa diferena. Neste mundo de fora,
as pessoas acham que ns no temos conhecimento da nossa tradio. Temos domnio da terra, da alma, do esprito, do poder de
matar e curar, no atravs de armas, mas atravs do nosso conhecimento. isso que queremos conservar (YAWANAW, R., 2006)39.
A educao diferenciada, definida como bilnge, intercultural e especfica para cada etnia/comunidade, uma conquista polti-
ca do movimento indgena, alcanada com o apoio de organizaes no-governamentais nacionais e internacionais, universidades
e outros movimentos sociais envolvidos, em convergncia com a Constituio cidad de 1988, com a nova Lei de Diretrizes e Bases
da Educao e instrumentos jurdicos internacionais como a Conveno 169 da Organizao Internacional do Trabalho.
38. Francisco Devanir Wetsa Poyanawa professor indgena.
39. Raimundinha Yawanaw professora indgena.
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Por uma educao diferenciada, as comunidades indgenas lutaram muito. Hoje as escolas indgenas trabalham dentro da realidade
do povo para fortalecer o trabalho da comunidade. Os conhecimentos tradicionais so aplicados e os conhecimentos que vm de fora
so o complemento para o desenvolvimento.
elaborado um currculo e calendrio escolar, que atenda as necessidades das atividades desenvolvidas na comunidade. Isso um
incentivo aos alunos para que cada vez melhorem a produo auxiliando a prtica educacional, dentro e fora da sala de aula.
A escola tambm trabalha a riqueza, o esprito, que d origem ao povo, o esprito que fica na floresta e traz o conhecimento de sinais
de quem canta as msicas, quem pode cantar determinada msica e com que idade pode cant-las.
Alm disso, o branco tambm aprende com o ndio. Isso porque, nas escolas indgenas, a educao se faz alm da escola, abrangendo
mais do que saber ler e escrever.
importante trabalhar com a realidade da comunidade, se for Ashaninka ou se Katukina. Baseado nisso, todos desenvolvem seus
trabalhos, envolvidos na cultura e na realidade da comunidade. Muitas vezes os professores indgenas trabalhavam nas escolas, e as
avaliaes vinham das secretarias municipais. Essa realidade no tem nada a ver com o cotidiano das crianas. Agora, essas avaliaes
so voltadas para a cultura e para o ensino especfico. A Lei de Diretrizes e Bases da Educao garante s populaes indgenas ter
sua prpria educao.40
A escola ocupa um decisivo papel nas perspectivas de futuro dessas comunidades como meio de apropriao de novos
conhecimentos e tecnologias, como espao de discusso e preservao da cultura e, principalmente, como instrumento de defesa diante
da presso exercida pela sociedade no-indgena. No que seja tarefa simples a construo de uma escola diferenciada, que atenda
s demandas e a jude a construir projetos de futuro. Historicamente a educao escolar foi utilizada para catequizao e introduo
de modelos de produo econmica totalmente alheios s reais necessidades desses povos, e a transformao dessa educao em
um espao de revitalizao fruto do esforo empenhado pelos professores indgenas e movimentos sociais comprometidos.
As pessoas colocam que temos que voltar ao que ramos antes. Na verdade, devemos revitalizar e fortalecer aquilo que ns somos.
O importante a valorizao do que ainda possumos, para que no se perca completamente. As cincias indgenas representam no
mundo muita coisa importante. Os professores contribuem para fortalecer o conhecimento tradicional junto com a comunidade,
mostrando a importncia desses conhecimentos, preparando os nossos alunos.
40. Professores Indgenas do Acre, no texto Por uma educao diferenciada da publicao Aprendendo com a natureza e conservando nossos conhecimentos culturais.
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Mesmo assim, devemos ter cuidado com o trabalho que a escola prope, pois os alunos esto vivendo entre diversas culturas
diferentes, entre diversos conhecimentos e prticas: prtica tradicional e prtica escolar terica, convivendo com costumes diferentes,
lnguas diferentes. Claro que no d mais para ser um Kaxinaw de antigamente, um Ashaninka de antigamente, de dois sculos
atrs. Mas os alunos vo valorizar o seu costume, os seus conhecimentos tradicionais. Porque isso o que est aceso, que ainda est
vivo. A lngua e os plantios so coisas que podem ser fortalecidas. Isso possvel, depende do interesse de cada um. Com relao
lngua indgena, por exemplo, ela pode ser trabalhada dentro de um kupixawa, com um cacho de banana no meio e um velho no
centro, contando aos jovens as histrias do povo. tudo uma questo de trabalhar a oralidade na prtica, no cotidiano da comu-
nidade (ASHANINKA, I. P., 2006). 41
No Brasil, encontramos povos indgenas em quase todas as unidades federativas. So aproximadamente 225 etnias, falando
cerca de 180 lnguas e somando uma populao estimada em 600 mil indivduos, 120 mil residindo nas capitais. Destes povos,
49,55% tm populao de at 500 pessoas, 14,55% de 500 a 1.000 pessoas, 25% entre 1.000 e 5.000 pessoas e 9% entre 5.000
e 20 mil pessoas. Apenas quatro etnias tm populao acima de 20 mil pessoas e outras 12 esto ameaadas de desaparecimento,
com populao entre cinco e 40 pessoas (RICARDO; RICARDO, 2006). Cada etnia, com suas respectivas e especficas interaes
socioambientais e histricas, compe uma diversidade de experincias educacionais que no poderamos aqui retratar. Optamos,
assim, por reproduzir os temas transversais Terra e Conservao da Biodiversidade e Auto-sustentao, dos Referenciais
Curriculares Nacionais para as Escolas Indgenas (RCNEIs), de difcil acesso aos professores no-indgenas. A escolha se deu pelo
carter nacional do documento, ao mesmo tempo abrangente (dada a diversidade) e estruturado com o objetivo de fundamentar
e fomentar propostas de educao indgena caracterizadas pelo que se poderia considerar um conceito indgena de educao
ambiental crtica. Os RCNEIs sugerem o perfil das atividades que esto sendo desenvolvidas atualmente nas escolas indgenas
e foram elaborados com a participao de professores indgenas e especialistas, a partir do conhecimento da realidade cotidiana
das comunidades.
Terra e conservao da biodiversidade o primeiro tema transversal do documento. A questo territorial um foco clssico dos
movimentos indgenas, batalha de sculos contra governos e interesses econmicos. A preservao dos biomas nesses territrios
uma demanda atual das lideranas e est associada a outro tema transversal; auto-sustentao. Autonomia poltica, econmica
e cultural assim como o uso sustentvel dos recursos naturais so questes na pauta do dia. O universo do trabalho sofre trans-
formaes, e nas regies onde a degradao ambiental gerou dficits graves, a carncia, inclusive alimentar, imensa. Novas
41. Isaac Pinhanta Ashaninka professor indgena.
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necessidades so incorporadas (vesturio, remdios, material escolar), e as comunidades se organizam em associaes, fazem
parcerias com ONGs e universidades, encaminham projetos e reivindicaes aos governos a fim de buscar solues. E muitas pare-
cem estar construindo esse caminho atravs de projetos de produo econmica comunitria e familiar, manejo ambiental,
registro e difuso cultural, entre outros. Seguem abaixo as diretrizes nacionais para o trabalho em sala de aula com esses temas.
TERRA E CONSERVAO DA BIODIVERSIDADE (TEMA TRANSVERSAL NO1/ RCNEIS)
Conhecer a Constituio, que assegura o direito terra e seu usufruto.
Valorizar a biodiversidade existente em reas indgenas.
Identificar as reas indgenas existentes no Brasil e os valores de relao com seu habitat.
Reconhecer a riqueza biolgica de sua rea indgena e do Brasil.
Valorizar o meio em que vive destacando a biodiversidade existente nele.
Reconhecer os materiais existentes na natureza que possibilitam as manifestaes artstico/culturais de seu povo.
Conhecer e discutir a questo das terras indgenas e a situao fundiria no Brasil.
AUTO-SUSTENTAO (TEMA TRANSVERSAL NO 2/ RCNEIS)
Permitir aos alunos uma escolha mais consciente das alternativas de auto-sustentao hoje presentes para sua sociedade
ajudando a fazer da escola um local de reflexo sobre a vida e o trabalho, numa perspectiva de progressiva autonomia.
Aplicar os conhecimentos das diferentes reas de estudo para apoiar a discusso do mundo produtivo e do trabalho.
Conhecer, a partir de diferentes fontes, as alternativas econmicas do grupo tnico antes do contato.
Refletir sobre o que permaneceu e o que mudou nessas prticas produtivas e culturais.
Conhecer outras prticas produtivas para o auto-sustento de sociedades em condies ambientais e socioculturais similares.
Compreender a noo de atividade predatria.
Participar da criao de alternativas de auto-sustento a partir das condies socioambientais atuais.
Participar da busca das alternativas de comercializao nos mercados regional, nacional e internacional.
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Desenvolver atitudes para o trabalho e a vida social que reforcem os laos de solidariedade familiar e comunitria.
Conhecer procedimentos e tcnicas adequadas cultural e ambientalmente corretas, que permitam o enriquecimento alimentar
e a melhoria das condies de vida e sade.
A necessidade de uma poltica e diretrizes especficas para a educao ambiental tambm se d em relao aos povos indge-
nas, especialmente no que diz respeito ao conhecimento da legislao. O uso dos instrumentos jurdicos uma das grandes fer-
ramentas que as lideranas dispem para denunciar as invases, a explorao predatria, a contaminao dos territrios por
agentes qumicos etc. Os conhecimentos milenares que esses povos carregam sobre seus habitats, assim a dimenso simblica
que caracteriza sua construo e transmisso oferecem uma riqueza ainda no devidamente dimensionada pelas sociedades no-
indgenas. A Coordenao Geral de Educao Ambiental do Ministrio da Educao acredita que a educao ambiental voltada
aos povos indgenas 42 pode colaborar na discusso, reflexo, registro e difuso desses conhecimentos, por meio da:
Insero do estudo das principais legislaes ambientais nacionais e compromissos internacionais vinculados aos estudantes indgenas.
Articulao dos conhecimentos tradicionais indgenas com conhecimentos no-indgenas sobre processos de proteo biodi-
versidade, prticas produtivas sustentveis incentivando a pesquisa e a reflexo tica sobre as fragilidades e potencialidades
dos ecossistemas locais bem como alternativas de manejo agroecolgico e florestal;
Revitalizao e valorizao da histria e cultura de cada comunidade debatendo comparativamente com a cultura ocidental
contempornea, especialmente sobre os atuais impactos socioambientais causados pelos modelos produtivos ocidentais.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICASASHANINKA, I. P. Entre diversas culturas. In: OCHOA, M. L. P; TEIXEIRA, G. de A. (Orgs.). Aprendendo com a natureza e conser-
vando nossos conhecimentos culturais. Braslia: Organizao dos Professores Indgenas no Acre Opiac, Comisso Pr-ndio Acre,
Ministrio do Meio Ambiente, 2006.
ASHANINKA, F. P. O que entendemos por educao ambiental. In: OCHOA, M. L. P; TEIXEIRA, G. de A. (Orgs.). Aprendendo com
a natureza e conservando nossos conhecimentos culturais. Braslia: Organizao dos Professores Indgenas no Acre Opiac,
Comisso Pr-ndio Acre, Ministrio do Meio Ambiente, 2006.
42. Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para a educao ambiental, em elaborao.
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BRASIL. Ministrio da Educao. Referencial curricular nacional para as escolas indgenas.
Braslia: MEC/SEF, 1998.
OCHOA, M. L. P; TEIXEIRA, G. de A. (Orgs.). Aprendendo com a natureza e conservando nossos
conhecimentos culturais. Braslia: Organizao dos Professores Indgenas no Acre Opiac,
Comisso Pr-ndio Acre, Ministrio do Meio Ambiente, 2006.
POYANAWA, F. D. W. A revitalizao cultural. In: OCHOA, M. L. P; TEIXEIRA, G. de A. (Orgs.).
Aprendendo com a natureza e conservando nossos conhecimentos culturais. Braslia:
Organizao dos Professores Indgenas no Acre Opiac, Comisso Pr-ndio Acre, Ministrio do
Meio Ambiente, 2006.
RICARDO, B.; RICARDO, F. (Orgs). Povos indgenas no Brasil, 2001-2005. So Paulo: Instituto
Socioambiental, 2006.
TOP'TIRO, A; TSERETSU, T. O R. S.l.: Associao Xavante War. Disponvel em: .
YAWANAW, R. O valor da cultura na educao. In: OCHOA, M. L. P; TEIXEIRA, G. de A. (Orgs.). Aprendendo com a natureza e
conservando nossos conhecimentos culturais. Braslia: Organizao dos Professores Indgenas no Acre _ Opiac, Comisso Pr-ndio
Acre, Ministrio do Meio Ambiente, 2006.
PARA SABER MAISBRASIL. Ministrio da Educao. Coordenao Geral de Educao Escolar Indgena. Disponvel em: .
Planeja, orienta, coordena e acompanha a formulao e a implementao de polticas educacionais voltadas para as comunidades
indgenas, em harmonia com os projetos de futuro de cada povo.
SILVA, A. L. da; GR UPIONI, L. D. (Org.). A Temtica indgena na escola: novos subsdios para professores de 1 e 2 graus. Braslia:
MEC, MARI, UNESCO, 1995.
FUNDAO NACIONAL DO NDIO. Disponvel em: . rgo do governo federal que estabelece e exe-
cuta a Poltica Indigenista no Brasil.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. ISA. Disponvel em: . Organizao da Sociedade Civil de Interesse
Pblico (Oscip), trabalha de maneira integrada as questes sociais e ambientais e atua com as questes indgenas no Brasil
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ESCOLA
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A educao ambientalnas escolas do campo
Snia Balvedi Zakrzevski
O TEXTO APRESENTA UMA REFLEXO SOBRE A INCORPORAODA DIMENSO
AMBIENTAL NAS ESCOLAS DO CAMPO CONTRIBUINDO PARA QUE OS INDIVDUOS
QUE VIVEM NESSE MEIO SE PERCEBAM COMO SUJEITOS ATIVOS NA APROPRIAO
E NA ELABORAO DO CONHECIMENTO, SEJA ELE REFERENTE AOMUNDO NATU-
RAL OU AO CULTURAL, E COMPREENDAM QUE SO AGENTES DEMUDANAS NA
REALIDADE EM QUE VIVEM.
PALAVRAS-CHAVE:
EDUCAO DO CAMPO, EMANCIPAO, DILOGO DE SABERES, PROJETOS DE
TRABALHO.
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ALGUMAS PALAVRAS INTRODUTRIASAo estudarmos a histria da educao brasileira, podemos perceber que a educao do campo foi tratada pelo poder pblico
com polticas compensatrias (projetos, programas e campanhas emergenciais e sem continuidade), muitas no levando em conta
o contexto em que as escolas estavam situadas, as relaes sociais, produtivas e culturais estabelecidas no territrio. As polticas
educacionais trataram a educao urbana como parmetro a ser seguido, e a do campo como adaptao desta.
Na dcada de 1990, a Lei n 9.394/96 Lei de Diretrizes e Bases para a Educao (LDB) inova nesse sentido, ao reconhecer a diversi-
dade sociocultural e o direito igualdade e diferena. Ela estabelece que os sistemas de ensino devem promover adequaes do ensino
s peculiaridades da vida rural e de cada regio (contedos curriculares e metodologias apropriadas s necessidades e realidades
dos alunos; organizao curricular prpria, adequando o calendrio escolar s fases agrcolas e s condies climticas; adequaes
natureza do trabalho na zona rural) e no propor uma simples e pura adaptao da educao urbana para o meio rural.
Mas foi com a fora de luta dos movimentos sociais do campo, em parceria com universidades, ONGs e diferentes instituies
nacionais e estrangeiras, que surgiram, na dcada de 1990, iniciativas institucionais para a criao de uma poltica de educao
no campo. Um dos visveis resultados dessas lutas foi a implantao do Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria
(Pronera), criado oficialmente em abril de 1998 com o objetivo de promover aes educativas nos assentamentos da reforma
agrria, com metodologias de ensino especficas realidade sociocultural do campo.
Outra grande conquista dessas lutas foi a instituio, em 2002, das Diretrizes Operacionais para a Educao Bsica nas Escolas
do Campo, que consideram a existncia de diferentes grupos humanos que moram e trabalham no campo (agricultores familiares,
assalariados rurais, sem-terra, ribeirinhos, extrativistas, pescadores, indgenas, quilombolas, entre outros), que apresentam diferentes
saberes e formas de relao com a terra, com o mundo do trabalho e da cultura.
A escola do campo no um tipo diferente de escola, mas, sim, a escola reconhecendo e ajudando a fortalecer os povos do
campo como sujeitos sociais, que tambm podem ajudar no processo de humanizao do conjunto da sociedade, com suas lutas,
sua histria, seu trabalho, seus saberes, sua cultura, seu jeito (CALDART, 2000, p. 66). Ela, alm de ser um importante espao de
construo de conhecimentos, um territrio fecundo na construo de prticas emancipatrias da democracia e da solidariedade.
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Hoje os currculos das escolas do campo no podem deixar de incorporar o estudo sobre questes de grande relevncia em
nossa sociedade: questes ambientais, polticas, de poder, sociais, culturais, econmicas, de raa, gnero, etnia, sobre tecnologias
na agricultura, sobre a justia social e a paz.
Neste texto procuramos, a partir de nossas vivncias, experincias e paixes pela educao ambiental, refletir sobre os seus
papis e desafios nas escolas do campo. No temos a pretenso de dar a palavra final, mas de expressar nossa posio e de coloc-la
em debate.
QUE EDUCAO AMBIENTAL QUEREMOS PARA AS ESCOLAS DO CAMPO?A educao ambiental uma complexa dimenso da educao, caracterizada por uma grande diversidade de teorias e prticas
e que, portanto, no pode ser entendida no singular. Apesar de ter como preocupao comum o meio ambiente e de reconhecer
o papel central da educao na melhoria da relao do ser humano e da sociedade com o ambiente, pesquisadores e educadores
ambientais vm adotando diferentes discursos propondo diferentes correntes, ou seja, maneiras de conceber e de praticar a
educao ambiental.
Defendemos que as escolas do campo precisam de uma educao ambiental especfica, diferenciada, isto , baseada
em um contexto prprio, voltada aos interesses e s necessidades dos povos que moram e trabalham no campo. No podemos
esquecer que a realidade do campo heterognea, diversa e, portanto, a educao ambiental no pode ser idntica para todos
os povos, mas deve ser articulada s demandas e especificidades de cada territrio, de cada localidade, de cada comunidade.
A educao ambiental deve estar vinculada s causas, aos desafios, aos sonhos e cultura dos povos que vivem no campo.
Em outras palavras, que veicule um saber significativo, crtico, contextualizado, do qual se extraem indicadores para a ao,
reforando um projeto poltico-pedaggico vinculado a uma cultura poltica libertria, baseada em valores como a solidariedade,
igualdade, diversidade.
Por essa razo, precisamos encontrar um lugar apropriado para a educao ambiental dentro do projeto educativo das escolas,
bem como evidenciar e fortalecer as suas relaes com outros aspectos da educao do campo. Precisamos ter cada vez mais claro
qual o papel poltico da educao ambiental: ela no apenas um acessrio da educao, mas uma educao que envolve a
reconstruo do sistema de relaes entre as pessoas, a sociedade e o ambiente natural.
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A ESCOLA RESPEITANDO AS CARACTERSTICAS E O CONHECIMENTO PRODUZIDONO CAMPO E EDUCANDO PARA A CONSERVAO DA DIVERSIDADEA escola do campo precisa estar estreitamente vinculada realidade, ou seja, vinculada a uma cultura que se produz por meio
de relaes mediadas pelo trabalho na terra (BRASIL, 2003), investindo em uma interpretao e compreenso complexa e politi-
zadora da realidade, que possibilite a construo de conhecimentos potencializadores de transformao dos problemas socioam-
bientais no campo. A escola do campo tem o papel de contribuir na produo de conhecimentos e de valores para o povo viver
melhor no campo, para romper com as prticas sociais contrrias ao bem-estar pblico, para incluir na sociedade os que vivem
no campo.
A educao ambiental nas escolas do campo, atenta s diferenas do ambiente natural, histricas e culturais, contribui para a
formao de sujeitos responsveis, capazes de refletir e agir sobre sua realidade, capazes de identificar, analisar, compreender e
resolver problemas, capazes de cooperar e, acima de tudo, que sejam possuidores de um comportamento tico.
Um dos grandes desafios s escolas do campo contribuir para recriar os vnculos de pertencimento dos sujeitos, para que
estes se reconheam como integrantes de uma comunidade e reconstruam a sua identidade com o campo, com o local em que
vivem. No momento em que os sujeitos sentem-se pertencentes a um determinado territrio, possuem sentimentos que lhes
possibilitam comprometerem-se com a realidade socioambiental respeitando suas potencialidades e seus limites.
Possuir um sentimento de pertencimento ao meio e de responsabilidade por ele, conhecer e compreender o meio em que vivem
e as inter-relaes entre os diferentes elementos que o compem, condio essencial para a conservao da diversidade biolgica e
cultural de um territrio.
Os elementos naturais e culturais que fazem parte do ambiente no podem ser esgotados ou deteriorados. A biodiversidade
est estreitamente vinculada diversidade cultural: as culturas se formam com base nas caractersticas particulares do meio onde
a populao habita. Da mesma forma as espcies, os espaos, as paisagens apresentam para as comunidades uma significao,
um valor cultural.
Uma educao ambiental crtica e emancipatria no campo pode contribuir para que os indivduos se percebam como sujeitos
ativos na apropriao e na elaborao do conhecimento, seja ele referente ao mundo natural ou ao cultural, e compreendam que so
agentes de mudanas na realidade em que vivem, podendo de modo responsvel e solidrio contribuir para a transformao das realidades.
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O DILOGO DE SABERES NA EDUCAO AMBIENTALMuitas vezes o trabalho com as questes ambientais em contextos escolares restringe-se a uma disciplina, o que contribui
para simplificar a realidade. Tendem a reduzi-la a explicaes isoladas, mecanicistas, lineares que impedem a compreenso dacomplexidade do ambiente do campo. As questes ambientais no podem ser consideradas objeto de uma determinada disciplina,tratadas de modo isolado, mas pressupem o dilogo de saberes, por meio do qual as vrias cincias contribuem para o seuestudo orientando o trabalho escolar.
Se queremos que os filhos de pequenos agricultores da regio norte do Rio Grande do Sul, por exemplo, examinem o problema
da perda da qualidade e quantidade da gua para consumo humano nas comunidades rurais em que residem, os professores,
em seus planejamentos, certamente precisam considerar elementos relacionados qumica da gua, presena de microrganismos,
sua turbidez e outros aspectos relacionados rea das cincias naturais. Mas esses aspectos, apesar de preponderantes, no so
suficientes, tambm devem ser desafiados a identificar e analisar as diversas atividades desenvolvidas pela populao que reside
na regio (a agricultura, a pecuria especialmente a criao de sunos, entre outras), seus costumes, a legislao ambiental, os
usos da gua hoje e no passado e outros aspectos que no so contemplados pelas cincias naturais.
Como podemos perceber, no estudo desse tema na escola precisamos contemplar a dimenso natural mas tambm as questes
sociais, polticas, econmicas, culturais etc. O estudo das realidades ambientais e a busca de solues apropriadas requerem a complementari-
dade e a sinergia de saberes de diferentes disciplinas cientficas reconhecendo que nem sempre os saberes cientficos so suficientes.
Ns, como educadoras e educadores, precisamos reconhecer, cada vez mais, o valor de outros saberes, alm do saber cientfico
para a educao ambiental, tais como os saberes cotidianos, saberes construdos a partir da experincia e saberes populares. Desse
dilogo (que implica a confrontao de saberes de diferentes tipos, do no-aceite de nada em definitivo), podem surgir outros
novos saberes, que podem revelar-se teis, adequados e que podem ter uma grande significao contextual. Por essa razo esse
dilogo uma das caractersticas fundamentais em processos educativos que visam a transformao.
Isso implica dizer que essa educao respeita e valoriza os diversos saberes, reconhecendo que todos so iguais por direito. E,
nesse cenrio, ser preciso reivindicar uma educao capaz de romper com a lgica da autoritria racionalidade, permitindo que os
conceitos possam ser construdos atravs dos afetos, da gratuidade, da gestualidade e das emoes. Certamente o grande mestre
Paulo Freire sbio em nos dizer que seria necessrio temperar nossa racionalidade com boas doses de paixo. A aprendizagem
sobre as questes ambientais na escola um fenmeno integrado, algo que implica a pessoa inteira: um entremeado de cogni-
es, sentimentos, afetos, valores etc., e no somente uma questo intelectual, como tantas vezes se cr e se pratica.
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A ESCOLA DIALOGANDO COM A COMUNIDADEA escola do campo no uma ilha. Ao fazer parte de uma realidade comunitria, caracterizada por sua cultura especfica, a
escola deve dialogar com a comunidade. A ao conjunta com a comunidade (alunos, professores e funcionrios da escola, pais
e membros da localidade) favorece o desenvolvimento social em que todos participam e se engrandecem, e a educao ambiental do
campo, ao contribuir para a criao de possibilidades de intercmbio e de relao de colaborao da escola com a comunidade,
abre um universo enorme de situaes para a aprendizagem coletiva por meio do dilogo e da cooperao.
Por meio do dilogo entre os membros da escola e destes com as pessoas e organizaes da comunidade (clube, igreja,
sindicato, entre outras), da reflexo crtica sobre a realidade socioambiental, acontece um verdadeiro processo de aprendizagem
coletiva, de desenvolvimento de saberes (contextuais, significativos, vinculados a uma realidade concreta), de habilidades, de
atitudes, de valores que enriquecem os membros da escola e da comunidade, e que servem para implementar projetos criativos
que contribuam para melhorar a qualidade de vida no contexto de sua prpria cultura respeitando e valorizando o entorno.
Existe uma grande diversidade de estratgias para investigarmos o ambiente em que vivemos, para redescobri-lo e conhec-lo
mais e melhor tornando o espao escolar um espao aberto ao dilogo com a sociedade. Por exemplo, as escolas do campo
podem colaborar em diagnsticos socioambientais da regio; juntamente com entidades e lideranas da comunidade podem
realizar estudos sobre os problemas ambientais na comunidade buscando alternativas para sua soluo. A realizao de trilhas ou
itinerrios interpretativos, de trabalhos de campo, de experimentos, de entrevistas, de seminrios, de oficinas, de aulas abertas so
exemplos de atividades que possibilitam a interao dos membros da escola com pessoas e entidades da comunidade, permitindo
tecer uma trama de relaes de cooperao, de busca de dilogo de saberes, de trocas, de discusso, de confrontao de idias
e de experincias, de negociao e de tomada de decises comuns colaborando no desenvolvimento comunitrio.
INTERVINDO NA REALIDADE SOCIOAMBIENTAL POR MEIO DE PROJETOS DE TRABALHOPor meio de projetos de trabalho intencionalmente planejados (conectados com as polticas pblicas de educao, com
a proposta poltico-pedaggica da escola do campo e com os anseios da comunidade), as questes socioambientais relevantes
em nvel local, contextualizadas em uma realidade global, podem ser trazidas para dentro da escola43.
43. Os projetos de trabalho devem estar conectados ao projeto educativo de cada escola do campo, seja para atuarem de acordo com as polticas j existentes, seja para influenciarem emnovas direes, pelo seu carter demonstrativo e inovador de boas prticas sociais (CARVALHO, 2004, p. 2).
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Os projetos de trabalho na escola, alm de possibilitarem o acesso a novas informaes, favorecem a problematizao da
realidade, contribuem para a comunidade ler a realidade (analis-la e interpret-la) com outros olhos, investigar as dificuldades e
conflitos socioambientais favorecendo o desenvolvimento de uma sensibilidade poltica e de valores humanos que permitem ao
sujeito posicionar-se frente realidade.
Na regio do Alto Uruguai Gacho, a agroecologia, transgnicos, conservao da floresta ombrfila mista, conservao e uso
sustentvel das guas, temas de grande relevncia sociocultural, so objetos de projetos de trabalho desenvolvidos pelas escolas
rurais, que atendem filhos de agricultores familiares. E as educadoras que atuam nas escolas rurais da regio, participantes do Projeto
Lambari44, tm elaborado seus projetos de trabalho tendo como referncia trs etapas construdas pelo grupo, descritas a seguir.
1 ETAPA: ESTUDANDO A REALIDADE LOCAL E DEFININDO OS TEMAS DOS PROJETOS
A partir da anlise da situao, do contexto e das demandas da comunidade bem como das suas contribuies para a comu-
nidade local so definidos pela comunidade escolar os temas dos projetos de trabalho e seus objetivos gerais45.
2 ETAPA: TECENDO REDES DE RELAES
Por meio da construo das redes de relaes, o tema central do projeto visto sob a ptica de todas as disciplinas do currculo
escolar buscando o dilogo entre as diferentes vises. Nessas redes so definidos no s os conceitos ou proposies a serem
trabalhadas mas tambm as dvidas, as contradies existentes.
Nas redes os conceitos no derivam necessariamente de outros mais gerais e inclusivos, mas eles adquirem em si mesmos a
categoria de ns articuladores que contribuem para a explicao e representao de um fenmeno.
Uma nova compreenso dos professores sobre o tema do projeto surge do confronto das diferentes vises e do uso do conhe-
cimento que cada um detm de sua rea. E a troca de conhecimentos especficos possibilita aos professores perceber aspectos
antes no observados. Desse modo so definidos os objetivos especficos e os contedos a serem trabalhados durante o projeto
estabelecendo relao entre eles.
44. Projeto que tem por objetivo central a formao continuada de educadoras(es) ambientais e busca a insero das questes ambientais no cotidiano escolar.
45. Questes cujas contradies podem ser resolvidas com os conhecimentos que os alunos j dispem fora da escola ou de que o conhecimento escolar no pode dar conta no se cons-tituem em temas de projetos de trabalho.
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3 ETAPA: TRAANDO TRAJETRIAS
Os contedos selecionados so trabalhados pelos professores que planejam suas atividades e as confrontam com os outros
professores. So ento definidas as atividades iniciais do projeto (atividades desencadeadoras), as atividades de desenvolvimento
(que buscam a conquista de novos conhecimentos, de procedimentos e de novos valores com todos os envolvidos no processo) e
de fechamento do projeto (produto final). Tambm so definidos os recursos necessrios e estabelecido o cronograma de realizao
do projeto. As atividades tambm so apresentadas e discutidas com a comunidade escolar apresentando a lgica do projeto
elaborado, ainda aberto a mudanas que se faam necessrias.
Defendemos que a educao ambiental nas escolas do campo deve compreender o pensar e o fazer, o agir e o refletir, a teoria
e a prtica. Ela deve adotar o dilogo como sua essncia; apontar para a participao; discutir no coletivo; exigir uma postura
crtica, de problematizao constante estabelecendo uma relao dialtica entre os conhecimentos populares, de senso comum
com aqueles j sistematizados.
ALGUMAS PALAVRAS FINAISA educao ambiental que queremos nas escolas do campo aquela comprometida com o empoderamento social. Ela possi-
bilita que diversas vozes expressem a sonoridade do grito da liberdade, buscando a responsabilidade ambiental na construo de
um mundo que valorize a diversidade biolgica e a diferena cultural.
um grande desafio educao ambiental do campo estimular um processo de reflexo sobre modelos de desenvolvimento
rural que sejam responsveis, economicamente viveis e socialmente aceitveis, que colaborem para a reduo da pobreza, para
a conservao dos recursos naturais e da biodiversidade, para a transformao dos problemas socioambientais fortalecendo as
comunidades, no dissociando a complexidade da sociedade e da natureza.
Nosso compromisso quer corroborar para que a escola do campo seja vista com mais ateno e carinho e que, fortalecida em
seus alicerces polticos, possa contribuir com a construo de uma sociedade mais eqitativa e com responsabilidade ecolgica,
atravs do olhar inventivo da educao ambiental. O caminho pode ser longo e difcil, mas saberemos esperar atuando como pro-
tagonistas na construo de um mundo que queremos.
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CALDART, R. S. Pedagogia do movimento sem-terra. Petrpolis: Vozes, 2000.
CARVALHO, I. C. M. A escola como espao socioambiental e os projetos de trabalho na escola. Boletim Salto para o Futuro: Vida
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BRASIL. Ministrio da Educao. Coordenao Geral de Educao do Campo. Disponvel em: .
Responsvel por implementar uma poltica de educao que respeite a diversidade cultural e as diferentes experincias de
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. Promove estudos e pesquisas para avaliar e aperfeioar polticas pbli-
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SALTO PARA O FUTURO. Boletim, 2001. Disponvel em: . Sobre
escolas rurais e classes multisseriadas.
_____. Boletim, 15 set. 2006. Disponvel em: . Sobre a Educao
de Jovens e Adultos no campo.
ARTIGOS RELACIONADOS:
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PARTIR DO MEIO AMBIENTE
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EDUCAO AMBIENTAL E EDUCAO DE
JOVENS E ADULTOS
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Religiosidadeafro-brasileira eo meio ambiente
Denise Botelho
O TEXTO APRESENTA A RELAO DA EDUCAO PARA A DIVERSIDADE COM
A EDUCAO AMBIENTAL POR MEIO DA RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA. O
CANDOMBL OFERECE SUBSDIOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA CONSCINCIA
ECOLGICA A PARTIR DA LGICA DOS ORIXS, INTRINSECAMENTE LIGADOS AO
MEIO AMBIENTE.
PALAVRAS-CHAVE:
CANDOMBL, EDUCAO AMBIENTAL, FORAS DA NATUREZA, ORIXS, DIVER-
SIDADE TNICO-RACIAL.
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SEM FOLHA NO TEM SONHO
SEM FOLHA NO TEM FESTA
SEM FOLHA NO TEM VIDA
SEM FOLHA NO TEM NADA
SALVE AS FOLHAS GERNIMO E ILDSIO TAVARES
Peo licena (ag) aos mais velhos e s mais velhas que chegaram antes de mim, ao mundo e ao tempo que lhes permitiu
sabedoria que um dia eu terei em relao aos que viro depois de mim. Ag aos(s) Olossain (sacerdotes que possuem o ax 46
de Ossain47), preservadores e preservadoras das ddivas da natureza.
Lembramos que os candombls serviram e servem para a preservao da herana religiosa e cultural africana, sempre atuantes
na luta do povo negro, resistindo opresso, dominao e excluso, buscando um espao de valorizao da particularidade
negra no patrimnio cultural brasileiro.
Os processos educativos no candombl so concebidos por meio de uma educao integral. No se divide o saber, no se
separam as disciplinas. Somam-se os valores tico-filosficos ao cotidiano. A educao para toda a vida, o desenvolvimento do
ser em todas as suas potencialidades (BOTELHO, 2005). O candombl oferece subsdios para o desenvolvimento da conscincia
ecolgica a partir da lgica dos orixs48.
A educao ambiental sempre foi praticada pelo povo de santo seguidores e seguidoras dos orixs. A cosmoviso africana e
afro-brasileira identifica os orixs com a natureza, assim natural que nos candombls aprenda-se a conservar a natureza tornando
cada casa de candombl um plo de resistncia aos descuidos com o meio ambiente.
46. Fora vital que move o universo.
47. Orix responsvel pelos segredos das folhas.
48. Orixs so divindades africanas trazidas para o Brasil pelos negros yorubs, grupo tnico da frica do Oeste. Alm dessas divindades ligadas cultura yorub, existem tambm os inquices (divin-dades dos negros bantos) e os voduns (divindades relacionadas aos negros jjes).
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Antes de comear a leitura, tenha em mente que a religiosidade de matriz africana presente hoje, no Brasil, uma ressignifi-
cao dos cultos aos orixs praticados no continente africano por diversos grupos tnicos, que passaram por algumas adaptaes,
conseqncia do processo econmico escravocrata. A instituio candombl centenria e fortalecida, polariza no apenas a vida
religiosa mas tambm a vida social, a hierrquica, a tica, a moral, a tradio verbal e no-verbal, o ldico e tudo, enfim, que o
espao da defesa conseguiu manter e preservar da cultura do homem africano (LODY, 1987, p.10).
A hegemonia terica, que privilegia apenas o contedo eurocntrico nas escolas brasileiras, tem alijado negros e brancos de um
conhecimento presente na cultura brasileira pertencente a outros grupos tnico-raciais dificultando uma conscincia reflexiva
e emancipatria da nossa populao.
Sugerimos, em especial, um dilogo entre os temas relacionados ao meio ambiente e aos saberes das comunidades religiosas
tradicionais negras, como via para ampliar os seus espectros de possibilidades no manejo da natureza.
Para os praticantes do candombl, o significado de viver e de ser humano est ligado s formas mticas e s expresses da
unidade ser-mundo. Os mitos descrevem as irrupes do sagrado no mundo e contam uma histria sagrada sobre como algo foi
produzido e comeou a ser. So narrativas de um acontecimento ocorrido no tempo primordial da criao, como uma realidade
passou a existir graas s faanhas dos entes sobrenaturais. Seja uma realidade total ou o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma
ilha, uma espcie vegetal, um comportamento humano, uma instituio... (ELIADE, 1972, p. 11).
Ao descrever as origens do universo e das criaturas, as relaes entre a humanidade e as divindades e, ainda, como se d o
equilbrio dinmico entre eles, o mito de cada divindade dota de sentido o mundo e fornece um sistema de valores e de princ-
pios para os seus seguidores e seguidoras. Em relao ao meio ambiente, cada habitat natural est relacionado a um orix, que
tem como um de seus atributos preservar o planeta e a humanidade.
Para que cada ecossistema tenha o seu guardio, o Ser Supremo Deus-Oludumar presenteou cada divindade com um
atributo para auxili-lo na grande obra de perpetuao da humanidade. Assim, as foras da natureza so o reflexo das emanaes
dos orixs no planeta. As divindades-orixs viabilizam o encontro do sagrado com a humanidade.
Preservar, cuidar e manter a fauna e a flora condio fundamental para os(as) participantes dessa religiosidade afro-brasileira.
Os ritos e rituais so propiciados por meio de folhas, banhos de guas naturais e por partes de animais consagrados aos orixs.
Ewe orix, orix ewe sem folhas no tem orixs, e sem orixs no h contato com o sagrado, assim como sem as guas das
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cachoeiras, dos rios, dos igaraps, do mar, a fortaleza das pedreiras, a biodiversidade das florestas. Enfim, podemos afirmar que
para a religio dos orixs a natureza parte fundadora da constituio dos seres.
Aprende-se que ao turvar as guas dos rios estaremos maculando o ambiente das yabs orixs femininos e como sabemos que
os atributos de cada orix nos possibilitam uma vivncia mais saudvel e ntegra, vamos assimilando valores de preservao e mane-
jo sustentvel, uma vez que precisamos intervir na natureza, sem, contudo, destru-la, porque somos atingidos pela lio da unicidade
essencial entre indivduo e grupo (CAMPBELL, 1997, p. 369).
Com certeza cada rvore, cada animal, cada nascente, cada poro de terra, cada inspirao de ar so constitutivos desses
indivduos e de seus grupos. A experincia religiosa ensina, ainda, a necessidade de reordenao do comportamento segundo as
exigncias de um novo contexto, conduzindo o indivduo a reorganizar seu mundo e sua prtica de acordo com os novos cenrios
construdos. Ele (ela) interage com o meio ambiente sabendo que a morada sagrada das divindades yorubs.
Yemanj, soberana das guas do mar, protege o ecossistema aqutico. Em tempos remotos, quando a humanidade no
respeitava a morada dessa deusa, tudo atiravam em suas guas, e ela ofendia-se pela falta de respeito e desleixo com os seus
domnios. Indignada, foi reclamar com Oludumar (Deus Supremo). Ele permitiu a Yemanj que tudo que lhe fosse atirado nas
guas dos mares fosse devolvido nas praias e, assim, surgiram as ondas dos mares em protesto ao descuido das pessoas. Como
Yemanj tem seus domnios naturais, outros orixs tambm tm papel de guardies e guardis da natureza.
Exu o Senhor da Comunicao tem o desgnio de levar at os ps de Olodumar os pedidos da humanidade. um orix
fundamental para o desenvolvimento da religio, porque ele o princpio dinmico da comunicao entre a humanidade e Deus.
Exu que acolhe o pedido dos ecologistas para manter a fauna e flora brasileira e ele, tambm, que registra junto aos guardies
os abusos e os descuidos com a natureza.
A faca, a enxada e o arado, quando so necessrios para a interveno no meio ambiente, esto relacionados a Ogum Senhor
do Ferro e dos Caminhos ele que abre os caminhos. Com sua virilidade herica, possibilita a preparao de um cenrio favorvel
para o manejo das florestas e para uma agricultura sustentvel, essencial para a sobrevivncia da humanidade.
Oxossi o provedor das comunidades. com ele que a gente aprende que a caa deve ocorrer para alimentar a sociedade e, assim,
deve ter carter sagrado, de manuteno da humanidade, sem maus-tratos e sem carnificinas desnecessrias. Pela preservao das
florestas, o grande caador trar sempre fartura e prosperidade para os lares daqueles que respeitam a me natureza.
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As folhas so regidas por Ossain. ele que preserva as plantas, compartilha os segredos das ervas medicinais e litrgicas com
a humanidade e desperta o ax (energia vital) contido nas plantas, permitindo aos filhos e filhas dos orixs manejarem a sabedo-
ria das plantas para fortalecerem seus corpos e espritos e, principalmente, para no permitirem sua extino.
Omolu Grande Senhor da Terra o responsvel pela transmutao e a renovao. Controla as pestes e as epidemias, e
quando a terra no est frtil, ela no frutifica, ela no tem vida, a morte.
No ar Oxumar faz a sua morada. Poluir a atmosfera sujar a morada da Serpente Arco-ris que une o cu e a terra.
Os mangues, nascedouros da vida martima, so protegidos por Nan, o princpio da vida, dona da lama onde a sabedoria
gestada. Indica a energia acumulada nas muitas experincias pelos anos vividos.
Oxum tem sua morada nas cachoeiras e nos rios. a Senhora da Fertilidade, dona das guas, ela que nos permite que os
gros brotem e se transformem em alimento para a humanidade.
Tantos outros fenmenos da natureza esto relacionados aos Orixs. Oya-Ians comanda os ventos e tempestades, e Xang
governa os raios e troves. Tenho a impresso de que essas divindades ficam furiosas com a usurpao dos espaos sagrados da
natureza e criam o caos com inverses climticas, inundaes, raios e tempestades, nos alertando: cuidem, cuidem...
De forma geral, o candombl possibilita aos seus participantes leituras do mundo, das relaes humanas harmoniosas e de con-
vivncias igualitrias, em que todos podem viver com autoconfiana, dignidade e respeito e, tambm, que devemos ter respeito
pelo planeta que nos acolhe, afinal, sem ele a humanidade no sobreviveria.
Por intermdio da contextualizao do universo do candombl, indicamos a necessidade de desapegarmo-nos de valores civi-
lizatrios hegemnicos, to cristalizados em ns, para entrarmos em contato com um olhar diferenciado sobre a humanidade e o
meio ambiente. Como os ias que, quando so recolhidos para a sua iniciao passam pelos ciclos de morte e renascimento, pre-
cisamos renascer para novas idias, valores e culturas.
preciso criar novos espaos e eleger outros atores sociais para um conhecimento educacional diferenciado (BOTELHO, 2000),
e nesse aspecto privilegiar os conhecimentos dos quilombolas, do povo de santo, das comunidades da floresta, de grupos que
carregam o respeito natureza. Ser benfico para a nossa sociedade competitiva e destruidora, que na preeminncia do lucro,
devasta grandiosas reas e desrespeita a irm-rvore, o irmo-cu, a irm-terra, o irmo-rio, enfim, uma comunidade infinita que
sustenta a existncia da humanidade.
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As peculiaridades dos seguidores e seguidoras dos orixs indicam um pensamento comum que tem como alicerces, valores
civilizatrios construdos numa lgica afro-brasileira, de comunidade, solidariedade e interdependncia. Orientar-se por essa trade
possibilita uma postura favorvel para as prticas conscientes e politizadas em relao responsabilidade que temos com o nosso
meio ambiente.
Na lgica religiosa do candombl, possvel afirmar que os orixs, na condio de organizadores grupais, viabilizam a harmo-
nizao dos contrrios conduzindo a um processo de equilbrio entre os diferentes seres viventes, sendo cada um respeitado na
sua essncia.
Incluir outras leituras de mundo e do meio ambiente, a partir de uma ptica tnico-racial, oferece novas possibilidades, conte-
dos diversificados e posturas inovadoras para trilharmos um caminho de solidariedade com o planeta e com a prpria humanidade.
E, principalmente, buscar os caminhos da conservao e da sustentabilidade.
Percorrida a jornada pela terra que acolhe, pelas guas que curam e acalmam, pelos saberes das folhas, pelo exerccio
pleno da religiosidade afro-brasileira, penso que a natureza dadivosa com a humanidade. Vamos exercitar o que aprendemos
retribuio , vamos cuidar do planeta.
As idias aqui socializadas sero lidas, analisadas, interpretadas de diferentes formas, por variados saberes e por diversos
sentimentos, afinal isso a diversidade. No temos verdades absolutas, mas as nossas crenas auxiliam no processo de cuidados
com a me-natureza. Omi kosi, w kosi, rs kosi (no existem orixs, sem as guas e sem as folhas).
Vamos refletir sobre alguns aspectos da relao meio ambiente e candombl.
Conhecer os princpios da educao ambiental presentes no candombl, alm de promover o respeito por uma prtica socior-
religiosa herdada dos negros e negras africanos e afro-brasileiros(as), ainda pode facilitar aos educadores uma ao pedaggica
mais solidria em relao ao meio ambiente.
Nas comunidades de candombl no se divide o saber dos valores tico-filosficos, e a educao para desenvolvimento do
ser em todas as suas potencialidades. Como essas prticas so somadas ao cotidiano, a assimilao dos cuidados com o meio
ambiente pode compartilhar dessas mesmas metodologias.
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Na cosmoviso africana e afro-brasileira, Deus (Oludumar) presenteou cada divindade com um atributo para auxili-Lo na
grande obra de perpetuao da humanidade. Ser que a presena de cada guardio ou guardi em stios ecolgicos diferen-
ciados garante os alicerces da preservao ambiental?
As foras da natureza so reflexos das emanaes dos orixs no planeta. Poluir o ar, desperdiar a gua, destruir as rvores,
desrespeitar a humanidade so prticas contrrias aprendizagem dos terreiros de candombls.
Como vises de mundo integradas e relaes humanas respeitosas e inclusivas, vivenciadas no candombl, podem subsidiar
princpios de conservao do meio ambiente?
Idealize um plano de aula a partir dos conhecimentos sobre o candombl, que tem como alicerces valores civilizatrios cons-
trudos numa lgica afro-brasileira de comunidade e solidariedade favorveis manuteno da vida no planeta.
REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBOTELHO, D. M. Aya nini (coragem): educadores e educadoras no enfrentamento de prticas racistas em espaos escolares. 2000.
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_____. Ministrio da Educao. Coordenao Geral de Diversidade e Incluso. Disponvel em:
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Universidade de S. Paulo.
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PEDAGGICO DA NATUREZA
O SUJEITO ECOLGICO: A FORMAO
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ESCOLA
EDUCAO INDGENA: UMA VISO A
PARTIR DO MEIO AMBIENTE
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Reinventando relaes entreseres humanos e natureza nosespaos de educao infantil
Lea Tiriba
SENSVEL NECESSIDADE DE PRODUO DE NOVAS RELAES DOS SERES
HUMANOS ENTRE SI E COM A NATUREZA, ESTE TEXTO TRAZ REFLEXES SOBRE
OS SENTIDOS E COMPROMISSOS FUNDAMENTAIS DO TRABALHO EM CRECHES
E PR-ESCOLAS. SUA INTENO CONTRIBUIR PARA INSTITUIO DE NOVAS
FORMAS DE VIVER, SENTIR E PENSAR A VIDA NA TERRA.
PALAVRAS-CHAVE:
EDUCAO E ECOLOGIAS, RELAO SERES HUMANOS-NATUREZA, EDUCAO
INFANTIL.
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VIVEMOS UMA SITUAO DE EMERGNCIA PLANETRIA, em que est clara a possibilidade de que a espcie humanaconcretize um processo de autodestruio, criando condies socioambientais insuportveis a sua sobrevivncia e de outras
espcies na Terra. Ludibriada pelo mito da natureza infinita, auxiliada por sua inteligncia e onipotncia e ensandecida pelo
desejo de possuir e consumir, a civilizao ocidental criou, nos ltimos 200 anos, um modelo de desenvolvimento que no est
voltado para o bem-estar e felicidade dos povos e espcies, mas para os interesses de mercado. Centrado na produo e consumo
de bens, orientado para gerar lucro, este modelo capitalista, urbano, industrial, patriarcal vem gerando, ao mesmo tempo,
desequilbrio ambiental, desigualdade social e sofrimento pessoal.
Como educar as crianas num quadro planetrio em que cerca de 38 mil hectares de florestas nativas so destrudos por dia,
milhares de espcies desaparecem e 1,3 bilho entre os mamferos humanos (20,6% da populao mundial) esto ameaados
de morte pela fome (DIAS, 2004, p. 23)? Certamente no ser nosso objetivo ensin-las a reproduzir um estilo de pensar e de
viver a vida, que nefasto, que insalubre!
Nas creches e pr-escolas, temos, todos os dias, a oportunidade de oferecer sensaes, interaes, condies materiais e ima-
teriais que contribuam para a formao de dois modos de existncia: um que potencializa a existncia; outro que faz sofrer, que
enfraquece (ESPINOSA, 1983). Como aprendizagem e autoconstituio no so processos separados, fundamental que aqui elas
vivenciem experincias positivas, pois, se a vida transcorre no cotidiano das instituies, a que ela se afirma como potncia ou
impotncia, de corpo e de esprito.
Creches e pr-escolas so espaos privilegiados para aprender-ensinar, porque aqui as crianas colhem suas primeiras sen-
saes, suas primeiras impresses do viver. Assim, interessados na produo de potncia, podemos pensar as instituies de edu-
cao infantil como espaos de vivncia do que bom, do que alegra e, frente aos desafios da vida, nos faz mais potentes
(DELEUZE, 2002). Mas, como educar as crianas na perspectiva de uma vida alegre, saudvel e solidria, se vivemos num mundo
em que imperam o individualismo, a competio e a destruio da biodiversidade?
Observando o modo de funcionamento de creches e pr-escolas, em centros urbanos e at mesmo em zonas rurais, podemos
perceber que as crianas esto emparedadas: so mantidas, a maior parte do tempo, em espaos fechados, as rotinas no
contemplam suas necessidades e desejos de movimentarem-se livremente nos ptios, sob o cu, em contato com o sol, a terra, a
gua. Raramente de ps descalos, nas reas externas brincam sobre cho predominantemente coberto por cimento ou brita; e
s se aproximam da gua para beber e lavar mos e rostos. Tomar banhos de mangueira, brincar de comidinha, dar banho em
boneca, fazer barquinho para colocar na correnteza das valas quando chove... Nada disso corriqueiro, ao contrrio, exceo!
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Como aprender a respeitar a natureza se as crianas no convivem com seus elementos? Como investir na produo de
concepes educacionais e rotinas que se estruturem na contramo de uma tendncia que destrutiva?
Buscando respostas para essas questes, alinhavei em cinco pontos algumas idias para uma educao que esteja voltada para
a formao de pessoas ntegras, solidrias e comprometidas com a manuteno da vida em nosso planeta.
RELIGANDO OS SERES HUMANOS COM A NATUREZA, DESCONSTRUINDO A CULTURAANTROPOCNTRICA
Se, no passado, o objetivo da escola era ensinar s crianas os conhecimentos necessrios produo da sociedade urbana e
industrial, hoje o desafio educar na perspectiva de uma nova sociedade sustentvel. Assim, j no basta ensin-las a pensar o
mundo, a compreender os processos naturais e culturais. preciso que elas aprendam a conserv-lo e a preserv-lo. Isto implica
rever as concepes de mundo e de conhecimento que orientam as propostas curriculares, em que a natureza no tem valor em
si mesma, simples matria-prima morta para a economia industrial e a produo de mercadorias, simples objeto de estudo de
humanos interessados em coloc-la a seu servio. Para isso foi necessrio que os seres humanos deixassem de se perceber
como parte da natureza. E, ainda mais, passassem a situar-se como superiores a ela esquecendo sua condio animal, valorizando
aquilo que os distingue como espcie e desprezando o que os caracteriza como seres que so parte integrante e, portanto,
dependentes dessa mesma natureza. A idia de que pertence aos humanos tudo que no humano as terras, as guas, os
vegetais, os animais, os minerais decorre de uma separao artificial entre seres humanos e natureza; ou dizendo de outro modo,
de uma separao entre sujeito de conhecimento e objeto de pesquisa, estratgia da metodologia cientfica indispensvel ao
domnio e controle do mundo natural.
A viso antropocntrica refora um sentimento de estranhamento entre seres humanos e natureza: cria muros de fumaa
que se materializam como muros de alvenaria separando as escolas do contexto em que esto situadas. Muitas vezes, at as
janelas no esto ao seu alcance, impedindo o olhar para o mundo que est l fora e mesmo prejudicando a respirao de ar puro,
contribuindo para que meninos e meninas no se vejam e no se sintam parte do mundo natural. Assim, em vez de aprenderem
uma percepo de si prprias como espcie que parte da natureza, elas aprendem a se sentir e a se comportar como se fossem
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o seu senhor. Esse sentimento ensinado s crianas ocidentais desde a mais tenra infncia e, certamente, alimentado pela
distncia a que so mantidas do mundo natural.
Se queremos formar pessoas que respeitem a natureza, desfrutar da vida ao ar livre no pode ser uma opo de cada profes-
sora ou escola, mas um direito das crianas e, portanto, um imperativo pedaggico. Desde a creche e a pr-escola precisamos,
portanto, realizar uma aproximao fsica estabelecendo relaes cotidianas com o sol, com a gua, com a terra, fazendo com
que sejam elementos sempre presentes, constituindo-os como cho, como pano de fundo ou como matria-prima para a maior
parte das atividades.
ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLAMexer na terra, correr na grama, jogar bola, pular, saltar, subir em rvores: as crianas tm verdadeira paixo pelos espaos ao
ar livre! Elas manifestam claramente essa preferncia porque so modos de expresso da natureza (ESPINOSA, 1983). Obrigadas
a permanecerem em espaos fechados, impedidas de se integrarem ao universo de que so parte, sofrem uma dupla alienao:
do mundo maior ao qual pertencem e dos desejos de um corpo que tambm natureza! E, quando lhes so impostas roti-
nas de dormir, comer e defecar, alienam-se tambm em relao aos prprios ritmos internos, alterando o equilbrio de sua
ecologia pessoal.
A vida humana na Terra se substantiva atravs do corpo. ele que nos faz vivos e materializa a nossa existncia. Entretanto
as relaes que estabelecemos com nosso corpo esto inseridas e marcadas por uma viso de mundo em que a razo ocupa o
centro da cena. Valorizamos em ns mesmos, seres humanos, a capacidade intelectual; e subestimamos, ou at mesmo ignoramos
o que nos identifica como animais. Nosso corpo a expresso dessa identidade, a prova da nossa condio animal, algo que nos
faz iguais a outras espcies que habitam conosco um mesmo ecoespao.
Durante muito tempo ns nos acreditamos superiores, capazes de tudo saber sobre a natureza, de desvendar todos os mistrios
da vida pelo uso da razo. Na viso da cincia moderna, a realidade uma mquina e no um organismo vivo. Sua natureza tem
uma lgica que pode ser decifrada por um ser humano que definido por sua atividade mental. essa atividade que interessa
aos objetivos de domnio e controle da natureza. Assim, as crianas so distanciadas do mundo natural porque o divrcio sujeito
(ser humano) x objeto (natureza) um componente essencial na produo de uma cincia que possibilita esse domnio.
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Em conseqncia de um modelo de pensamento que hipertrofia a razo, so relegadas a um segundo plano algumas dimen-
ses e canais de expresso da experincia humana, entre elas as sensaes fsicas, as emoes, os afetos, os desejos, a intuio,
a criao artstica. Ao mant-lo por tanto tempo imobilizado, a escola trata o corpo tambm como natureza inesgotvel, capaz de
ceder infinitamente s necessidades da mente, assim como o meio ambiente natural cede matrias-primas s necessidades impostas
pelo mercado.
Os currculos, as rotinas das instituies educacionais expressam claramente esta evidncia: a de que a escola no tem pelo corpo
o mesmo apreo que tem pela mente. Os espaos de educao das crianas de zero a seis anos no escapam a essa lgica. Em seu
cotidiano, divorciam ser humano e natureza, separam corpo e mente, razo e emoo. Na contramo dessa tendncia precisamos
de rotinas que no fragmentem o sentir e o pensar, que estejam atentas s vontades do corpo, que no aprisionem os movimentos.
Ao contrrio, ajudem as crianas a expressarem a dana de cada um, isto , o jeito de ser, que , em outros termos, a expresso
de nossa psique, de nossa alma.
AS CRIANAS SO SERES DE NATUREZA E, SIMULTANEAMENTE, SERES DE CULTURAA realidade no uma mquina regida por leis matemticas passveis de interpretao racional; a razo no o nico caminho
de acesso ao jeito de ser do mundo; e o que define uma criana no apenas a sua racionalidade, ela unidade de corpo-esprito-
razo-emoo. Portanto, o objetivo de Educar e Cuidar inclui o conjunto de dimenses que constituem a humanidade!
Mas, como realizar a integrao de uma dimenso do humano como ser biolgico, ser de natureza se, no processo de cons-
truo da viso moderna, essa dimenso foi se perdendo, e prevaleceu a dimenso cultural? Para real-la ser necessrio assumir
as crianas tambm como seres de natureza. A concepo de criana como ser de cultura est assegurada nas propostas
pedaggicas na medida em que esto implcitas duas idias fundamentais: i) nenhum ser sobrevive com caractersticas humanas
se no receber cuidados de outros humanos; ii) s entre humanos seremos capazes de aprender a recriar as atitudes, as regras, os
valores, enfim, o jeito de ser da espcie e do grupo social de que somos parte. Entretanto, o que no est devidamente enfatizado
que os seres humanos no esto ss, partilham a existncia com inmeras outras espcies, sem as quais a vida no planeta
no pode existir. Somos parte da natureza, somos fruto de autopoiese, isto , de um fenmeno de auto-organizao da matria
que d origem a todos os seres vivos (MATURANA & VARELA, 2002). Portanto, as crianas so, ao mesmo tempo, seres da
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natureza e seres de cultura. Na escola, a conjugao dessas duas concepes assegurar o respeito diversidade cultural com o
respeito biodiversidade. O reconhecimento da diversidade cultural implica o reconhecimento de todos os seres humanos des-
frutarem do direito de cidadania assim como de soberania dos povos e das naes. Na mesma medida, o reconhecimento da bio-
diversidade implica o respeito ao conjunto de tudo que vive na biosfera, tudo que vive no ar, no solo, no subsolo e no mar. No
poderemos pensar apenas no bem-estar dos seres humanos porque h uma interdependncia entre as espcies, h um equi-
lbrio global que precisa ser preservado.
AS TRS ECOLOGIAS E O CUIDARCreches e pr-escolas no so depsitos de crianas, no so abrigos, no so hoteizinhos. Creches so espaos de desenvolvi-
mento das mltiplas dimenses humanas durante a primeira infncia. Precisam, portanto, ser espaos onde elas vivam interes-
santemente, satisfatoriamente, alegremente as primeiras experincias de sua vida.
Nas instituies de educao infantil, visamos uma educao ambiental atenta qualidade de vida, qualidade do existir
cotidiano. Nessa perspectiva, o cuidar uma referncia central porque possui uma dimenso ontolgica: isto , est relacionado
constituio do ser humano, pois, do nascimento at a morte, condio para a sua existncia (BOFF, 1999). Mas como ter cuidado
e aprender a cuidar numa sociedade que no cuida da natureza, das outras espcies nem da prpria espcie, que destri em
funo dos objetivos do capital? Na sociedade em que vivemos o cuidar se restringe famlia, no mximo aos membros mais
prximos de uma comunidade. No diz respeito ao coletivo, no est comprometido com a necessidade de cuidar de todos, do
conjunto dos seres, humanos e no-humanos (TIRIBA, 2005).
Numa educao para sociedades sustentveis, o cuidar referncia fundamental porque orienta o trabalho em relao s
trs ecologias (GUATTARI, 1990) e nos ajuda a avaliar: i) a qualidade dos espaos/atividades relacionada ao eu (ecologia pessoal 49);
ii) a qualidade das interaes coletivas, relacionada ao ns (ecologia social); iii) e a qualidade das relaes com a natureza (ecologia
ambiental).
49. Sem prejuzo ao conceito de ecologia mental, formulado pelo autor, prefiro adotar a expresso ecologia pessoal, por sua abrangncia e por apontar para a superao do dualismocorpo/mente.
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A ecologia pessoal diz respeito s relaes de cada um consigo mesmo, s conexes de cada pessoa com o seu prprio corpo, com
o inconsciente, com os mistrios da vida e da morte, com suas emoes e sensaes corporais, com sua espiritualidade. A ecologia
social est relacionada s relaes dos seres humanos entre si, s relaes geradas na vida em famlia, entre amigos, na escola, no
bairro, na cidade, entre os povos, entre as naes. A ecologia social retrata a qualidade destas relaes. A ecologia ambiental diz
respeito s relaes que os seres humanos estabelecem com a natureza. Reflete as diferenciadas maneiras como os grupos humanos
se relacionam com a biodiversidade, de maneira sustentvel ou predadora: com o objetivo de satisfazer suas necessidades fundamen-
tais, ou com o objetivo de apropriao-transformao-consumo-descarte [...] (GOUVEA; TIRIBA, 1998, p. 26).
Em sua articulao, os trs registros ecolgicos expressam as dimenses da existncia e revelam a qualidade de vida na Terra,
bastando, para isso, perguntar: na sociedade capitalista-urbano-industrial-patriarcal, como esto as relaes de cada ser humano
consigo mesmo? Qual a qualidade das relaes dos seres humanos entre si? E as relaes destes com a natureza isto , com a
Terra, espao que a espcie humana habita?
Por outro lado, as trs ecologias podem ser referncia para pensar a existncia das crianas e adultos que, todos os dias, per-
manecem durante oito, dez, ou 12 horas nas instituies de educao infantil. Que equilbrios as rotinas dirias definem? Como
vo as relaes de cada criana ou educadora consigo mesma? Qual a qualidade das relaes entre os humanos que cons-
tituem a comunidade escolar? Como vo as relaes destes com a natureza? No transcorrer da existncia cotidiana, as prticas
institucionais reproduzem a insalubridade definida pela lgica ocidental?
DESCONSTRUINDO AS VELHAS ROTINAS E INVENTANDO OUTRASNa perspectiva da produo de novas relaes dos seres humanos entre si e com a natureza, a educao tem um sentido amplo,
extrapola o compromisso com a transmisso de conhecimentos via razo e busca abranger outras dimenses, como a intuio, a emoo.
Comprometida com um desejo e uma necessidade de reestruturao da civilizao, ela desconfia do poder explicativo do raciona-
lismo cientfico e valoriza os processos criativos, contribuindo para qualificar a vida nos planos das trs ecologias. Nessa perspectiva,
as instituies de educao infantil e suas educadoras e educadores assumem os desafios de uma educao ambiental que vise:
Resgatar, no melhor de nossas tradies culturais, elementos das culturas negra, indgena e de outras etnias que compem
a nao brasileira que nos ajudem inventar novos modos de viver, sentir e pensar a vida sobre a Terra.
Reinventar as relaes com o corpo, com o tempo que passa, com os mistrios da vida e da morte (GUATTARI 1990, p. 16),
em movimentos de encontro de cada um consigo mesmo, de fortalecimento da integridade de corpo-esprito-razo-emoo.
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Estar atento s concepes e prticas de trabalho que reproduzem o divrcio entre corpo e mente, que hipervalorizam o
intelecto e fazem do corpo simples objeto de controle da mente.
Pensar um novo modo de funcionamento escolar que, por respeitar ritmos e interesses infantis, permita criana aprender a
respeitar as vontades do corpo; isso significa atentar para as rotinas de sono, alimentao e controle de esfncteres, a proces-
sos de insero e acolhimento, modeladores de ritmos afetivo-corporais que repercutem em sua ecologia pessoal.
Ampliar os espaos e os tempos de movimentarem-se livremente, assim como de relaxar, meditar, estar atento respirao,
melhorar a alimentao, cuidar da postura.
Mexer numa rotina de trabalho que supervaloriza os espaos fechados das salas de aula, os materiais industrializados e
propiciar s crianas contato cotidiano e ntimo com a terra, com a gua, como o ar, de tal maneira que sejam percebidos
e respeitados como fontes fundamentais de vida e de energia.
Incorporar rotina as atividades de semear, plantar, cuidar e colher alimentos e outros vegetais; do mesmo modo, assumir
cozinhas, hortas, marcenarias, oficinas de produo e conserto de brinquedos como privilegiados espaos educacionais, onde
tambm se aprende matemtica, cincias sociais e naturais, lngua portuguesa.
Promover encontros festivos (em que possamos compartilhar alimentos, msica, projetos) favorecedores de sentimentos de
amizade, companheirismo e solidariedade. Esses so sentimentos que precisam ser aprendidos e exercitados no cotidiano, con-
tedos que precisam ser introduzidos no planejamento de trabalho da escola.
Questionar e combater as prticas consumistas e a onipresena dos meios de comunicao na vida das crianas abrindo espao
e incentivando as trocas humanas que se do atravs da narrativa, da brincadeira e da produo artstica.
Transformar as relaes e interaes com a natureza questionando os conceitos de conhecimento e de trabalho que essas intera-
es asseguram; denunciando e rejeitando as propostas curriculares que propem um conhecimento intelectual, descritivo, que
fazem da natureza um simples objeto de estudo.
Investir na construo coletiva de propostas pedaggicas que visem uma integrao mais ampla e possibilitem o desfrute, a
admirao e a reverncia da natureza como fonte primeira, fundamental reproduo da vida, e no como simples colnia,
domnio de exploraes humanas.
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Alm disso mas este um assunto para outra conversa preciso assumir o campus escolar como espao de investigao
pedaggica que seja prtica ecolgica. Isso implica olhar para o prprio umbigo, isto , tomar conscincia do impacto ambiental
que as creches e pr-escolas provocam assumindo compromissos com a reduo do consumo de gua e de energia e com o
desperdcio de materiais.
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PARA SABER MAISBRASIL. Ministrio da Educao. Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais. Biblioteca virtual de educao. Disponvel em:
. Ferramenta de pesquisa de stios educacionais, do Brasil e do exterior, em que se podem pesquisar
tambm stios dedicados educao ambiental.
RECICLOTECA. Disponvel em: . Centro de informaes sobre reciclagem e meio ambiente. O site
oferece informaes sobre as questes ambientais, com nfase da reduo, no reaproveitamento e na reciclagem do lixo.
HORTA VIVA. Disponvel em: . Voltado para a comunidade escolar, o site oferece informaes
sobre conceitos e prticas ambientais (especialmente, sobre a criao de hortas escolares), valorizando conhecimentos tradicionais,
populares e de natureza cientfica e tecnolgica.
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A vida no bosque no sculo XXI:educao ambiental e educaode jovens e adultos
Timothy D. Ireland
ESTE TEXTO REFLETE SOBRE O CONCEITO DE EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS
NA PERSPECTIVA DA EDUCAO PARA TODOS, AO LONGO DAVIDA, E A SUA
RELAO COM A EDUCAO AMBIENTAL NAESCOLA E FORA DA ESCOLA.
ARGUMENTA QUE A INTEGRAO DA EDUCAO AMBIENTALNA EDUCAO
DE JOVENS E ADULTOS, DE FORMA CONCRETA E NO APENAS DE FORMA
SIMBLICA, NO UMA OPO, MAS UMA NECESSIDADE.
PALAVRAS-CHAVE:
EDUCAO DE JOVENS E ADULTOS, EDUCAO AMBIENTAL, SUSTENTABILI-
DADE, EDUCAO AO LONGO DA VIDA, DIVERSIDADE.
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QUEM J ESCREVEU UM ARTIGO OU UM LIVRO SABE COMO DIFCIL ESCOLHER UM BOM TTULO. O ttuloprecisa chamar a ateno do leitor, mas sem engan-lo. Normalmente, o ttulo a ltima pea a ser criada. Imagino que muitos
de vocs, leitores e leitoras, estranharam o ttulo deste artigo. Fiz um teste de recepo com alguns amigos, que o acharam
esquisito e incompreensvel. Mas eu quis mant-lo porque, de certa forma, foi inconscientemente uma das inspiraes do meu
texto e de muitas outras reflexes e intervenes ao longo dos anos neste campo que chamamos hoje de educao ambiental.
Mais de 150 anos atrs, o norte-americano Henry Thoreau, escreveu um livro chamado Walden; or, Life in the Woods (Walden;
ou A vida no Bosque) (1854) sobre a sua experincia de viver durante dois anos e dois meses numa cabana que ele mesmo ergueu,
na margem de um pequeno lago, Walden Pond, situado num bosque em Concord, Massachusetts. Durante aquele perodo,
Thoreau sobreviveu unicamente com o produto da sua prpria labuta. No livro, entre muitas outras reflexes, o autor descreve a
sua relao com o meio ambiente e defende um padro de consumo que ainda hoje pode servir para alimentar debates sobre os
atuais padres de consumo e a sua contribuio par