Usos, costumes e encantamentos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Usos, costumes e encantamentos: a cultura popular na obra de Ademar Vidal
VOLUME I
MARIA NILZA BARBOSA ROSA
João Pessoa – PB 2006
M A R I A N I L Z A B A R B O S A R O S A
Usos, costumes e encantamentos: a cultura popular representada na obra de Ademar Vidal
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração em Literatura Brasileira, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Ignez Novais Ayala
João Pessoa – PB 2006
B238u Rosa, Maria Nilza Barbosa. Usos, costumes e encantamentos: a cultura
popular na obra de Ademar Vidal/ Maria Nilza Barbosa Rosa.- João Pessoa, 2006.
338p. Inclui Bibliografia e Volume II com
anexos Orientadora Maria Ignez Novais Ayala. Tese (doutorado) CCHLA/UFPB 1. Literatura brasileira – crítica e
interpretação. 2. Cultura popular UFPB/BC CDU:869.0(81)(043)
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Usos, costumes e encantamentos: a cultura popular representada na obra de Ademar Vidal
MARIA NILZA BARBOSA ROSA Aprovada em 31/03/2006
Banca Examinadora
__________________________________________ Profa. Dra. Maria Ignez N. Ayala (Orientadora)
__________________________________________ Prof Dr. Luíz Carvalho de Assunção (Examinador)
__________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Pazera Junior (Examinador)
__________________________________________ Prof. Dr. Marcos Ayala (Examinador)
__________________________________________ Prof. Dr. Diógenes André V. Maciel (Examinador)
___________________________________________ Profa Dra. Ana C. Marinho Lúcio (Suplente)
___________________________________________ Profa Dra. Rosa Maria Godoy Silveira (Suplente)
Resumo
Ademar Vidal, que viveu entre 1897 e 1986, tem aqui analisados alguns de
seus escritos: Práticas e costumes afro-brasileiros (Inédito), A tradição do
maracatu, Aboios de vaqueiro paraibano, Lendas e superstições: contos
populares brasileiros. Os textos foram utilizados como uma possibilidade de
desvendar a cultura popular nas primeiras décadas do século XX, na
Paraíba, tal qual representada na obra de Ademar Vidal. A contribuição que
pretendemos dar ao estudo em questão está em recuperar os escritos do
autor situando-os na confluência entre a cultura e a literatura. A abordagem
temática, isto é, as memórias populares deram rumo à análise desenvolvida,
entre usos, costumes e tradição que povoam a produção estudada. Com este
enfoque foi possível formar um quadro significativo das manifestações
culturais populares na Paraíba no período acima mencionado.
Resumé
Ademar Vidal, qu'il a vécu entre 1897 et 1986, il a analysé certaines de ses
écritures ici: “Práticas e costumes afro-brasileiros (Inédito), A tradição do
maracatu, Aboios de vaqueiro paraibano” ( Pratiques et moeurs Afro-
Brésiliens (inedit), La tradition du maracatu, “Aboios”de vacher de la
Paraiba., Légendes et superstitions: Histoires populaires brésiliennes.) Les
textes avaient été employés comme une possibilité pour démasquer la
culture populaire dans les premières décennies du siècle XX dans le Paraíba
représenté dans l'oeuvre d'Ademar Vidal. La contribution que nous avons
l'intention de donner à l'étude en question est en récupérant les écritures de
l'auteur les précisant dans le confluent entre la culture et la littérature.
L’approche thématique, c'est-à-dire, les mémoires populaires avaient donné
ls direction à l'analyse développée, entre les usages, coutumes et tradition
qui peuplent la production étudiée. Avec cette approche il était possible de
former une image significative des manifestations culturelles populaires
dans la Paraíba dans la période mentionnée.
Paulo, Que compartilha minhas angústias, sonhos e contentamentos. A cada dia esticamos mais o fio que sempre nos unira.
Pablo e Conrad, Pelo amor que enche a vida de sentido.
Alice Vidal, Que me ajudou a tecer fios e desatar nós. A cada telefonema; cada material que chegava pelo correio, laços se fortaleciam imprimindo amizade e confiança.
Agradecimentos
O trabalho de tese é um processo que tem dois lados: o escritor e o leitor. A
incumbência do leitor deve ser tão ativa quanto à do escritor, pela possibilidade de recriar a
obra pela leitura e ampliar as intenções do autor. Na relação entre autor e leitor, há um
saber inconsciente circulando no texto. Concordo com Clarice Lispector quando diz que
escrever é o modo de quem tem a palavra como isca, “uma vez que se pesca a entrelinha,
não a palavra, pode-se com alívio jogá-la fora. Mas a não – palavra, porque ao morder a
isca acaba incorporando-a” (Folha de São Paulo, outubro, 1976).
O trabalho de tese é assim: construção de uma experiência individual, porém
compartilhada; um caminho pelo qual procurei não me desviar, mesmo que tecido nas teias
da dúvida, da fragilidade e da angústia, mas certamente, à espera da celebração. Bem sei
que não poderia empreender essa pesquisa, se não tivesse para delas me valer, muitas
pessoas. Portanto, agradeço.
À Professora Maria Ignez Novais Ayala, minha orientadora, por compartilhar
comigo um tema que lhe é tão caro, bem como pela liberdade que me concedeu para
escolher o caminho que julgasse mais conveniente dentre alguns que me ofereceu. Queria
agradecer por sua confiança em meu trabalho e pela leveza na condução das nossas
discussões;
Ao Professor Paulo Rosa, com quem aprendi a ler os implícitos na obra de Ademar
Vidal e, fora a orientadora, talvez tenha me dado as mais significativas sugestões;
Ao Professor Marcos Ayala, pela participação na banca de qualificação e pela
agudeza de suas observações. Agradeço ainda o material de pesquisa que me cedeu (xerox
de textos) bastante utilizado neste trabalho;
Ao Professor Diógenes A V. Maciel, pelas sugestões imprescindíveis feitas durante
o exame de qualificação;
À Professora Beliza Áurea, por incentivar-me a levar adiante o estudo sobre a obra
de Ademar Vidal, quando tudo parecia conspirar contrariamente, e ainda, pelo empréstimo
de alguns livros, raros até;
À Professora Ana Cristina Marinho, que tive a grata satisfação de conviver por dois
semestres consecutivos, durante o Estágio Docência e cujas aulas vieram ampliar as minhas
expectativas em literatura popular;
À Professora Bernardina Freire, que cuidou, gentilmente, de organizar as notas e
referências bibliográficas, desempenhando com rigor e competência;
Ao Instituto Histórico Geográfico na Paraíba – IHGP, cuja abertura do Acervo
Ademar Vidal tornou possível uma acumulação de material de estudo;
Ao Conrad coube a confecção de fotos e mapas;
Ao Pablo, a árdua tarefa de formatação e impressão da tese;
Aos colegas Ione Severo, sempre disposta em contribuir para ampliação do meu
acervo sobre Ademar Vidal; Andrey Oliveira, que fez as primeiras leituras da tese, quando
esta ainda engatinhava; Cida, a mineirinha que sonhou o sonho do doutorado no CCHLA/
UFPB, porém o “risco do bordado” mostrou que não é a gente que o traça; Tânia Correa,
que proporcionou o meu primeiro encontro com a Professora Maria Ignez Ayala; desse
encontro, a orientação da tese;
Liése Carneiro e Maria de Barros, pela transcrição dos textos de Ademar Vidal,
Lilian Rodrigues com quem confabulei por telefone vários momentos de alegria e também
de angústia;
Dos funcionários das instituições por onde passei recebi um apoio fundamental:
Biblioteca Central da UFPB; Arquivos Públicos de João Pessoa; Arquivo Histórico da
Polícia Militar da Paraíba; Biblioteca Estadual José Lins do Rego; Instituto Histórico e
Geográfico na Paraíba; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; Biblioteca Teotônio Vilela,
no Senado Federal.
À Capes pela concessão da bolsa de estudos; ao programa de Pós-Graduação em
Letras, UFPB pela acolhida;
Ao Dr. Fernando Vidal Filho, neto de Ademar Vidal, que desmistificou o IEB/ USP,
colocando em minhas mãos as cartas de Ademar Vidal para Mário de Andrade no momento
em que já estava desistindo desse material, devido às barreiras ao seu acesso;
À Alice Vidal, que cuida com esmero pela memória do seu pai, Ademar Vidal, a
possibilidade que me proporcionou de enriquecer esta tese com valioso material. Enfim, à
Família Vidal, pela acolhida e por viverem comigo o entusiasmo deste trabalho.
SUMÁRIO
V O L U M E 1 Introdução................................................................................................................. 10 1 Tecendo fios, desatando nós.................................................................................. 16
1.1 O arquivo Ademar Vidal no IHGP................................................................... 16 1.2 A família Vidal................................................................................................ 18 1.3 Trajetórias de vida........................................................................................... 19 1.4 O autor, a obra e a crítica................................................................................ 22 1.5 Por dentro dos inéditos.................................................................................... 38
2 A pretexto da modernização................................................................................. 47 2.1 A cultura popular e os diversos olhares........................................................... 47 2.2 Atravessando as barreiras................................................................................ 52 2.3 O fio da lembrança: os anos vinte na Paraíba.................................................. 56 2.4 A viagem de Mário de Andrade ao Nordeste.................................................. 67 2.5 O encontro entre Mário e Ademar................................................................... 72 2.6 Ademar Vidal e a Missão: acolhimento........................................................... 82
3 Entre a vivência e o registro.................................................................................. 103
3.1 Em cena o afro-brasileiro................................................................................. 103 3.2 Festas e brincadeiras: o tecido de sua rememoração....................................... 111 3.3 Cantos de trabalho........................................................................................... 122
4 Contar... recontar histórias .................................................................................... 130 Considerações Finais................................................................................................. 155 Referências Bibliográficas ........................................................................................ 158 V O L U M E 2 Anexos 1 Fontes consultadas da produção de Ademar Vidal 2 Fotografias que estão na memória
É assim que eu gostaria de saber ser lido
esse meu trabalho: sentidos que chegam
com a mesma incerteza do viajante que
acaba por dizer sobretudo o que não sabe
sobre aquilo que, desconhecido veio a
conhecer.
Eni Pulcinelli Orlandi, 1990
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Introdução
O interesse pela obra de Ademar Vidal surgiu em uma das reuniões que acontecem no
LEO – Laboratório de Estudos da Oralidade (CCHLA/UFPB), quando a professora Maria
Ignez Novais Ayala falou sobre o escritor paraibano; até então, não o conhecia. Indagamos
sobre a sua obra e, entre outras coisas, ela disse da preferência desse autor pelo registro da
história dos negros e da cultura. Como sempre tivemos interesse pela cultura popular
brasileira em suas mais diversas manifestações, a obra de Ademar Vidal passou a fazer parte
do nosso foco de estudo. A partir daí iniciamos uma busca para especular em seguida sobre a
sua produção. Ao deixar-nos tocar por seus escritos, na verdade buscamos um vasto trajeto:
usos, costumes e lugares da Paraíba, tão incorporados à alma do autor quanto as pessoas que
cruzaram seu caminho. Assim, procuramos ler a cultura popular buscando sempre propor que
ela é foco convergente de pólos culturais diversos e não uma cultura à margem das
transformações sociais e culturais.
Neste trabalho preferimos jogar com a dúvida em lugar da afirmação, no entanto, a
dúvida não apanha o leitor desprevenido, ao contrário, vai sendo comparada pelas descrições,
explicações e registros das observações feitas por Ademar Vidal. Sendo desta forma, o lado
inquietante da pesquisa se alvoroçou e o lado intempestivo da pesquisadora acenava que
fôssemos devagar. Eis que surge o primeiro obstáculo. Ouvimos de um dos professores na
Pós-graduação, que a “obra de Ademar Vidal é pobre”. Como se não bastasse outro
comentário, também de um dos professores da Pós, se faz presente: “vejam, agora Ademar
Vidal é tema de tese”. Nenhuma lição efetiva nisso, mas a afirmação de uma possibilidade e
uma espécie de provocação.
O segundo desafio veio, quando iniciamos a pesquisa na Academia Paraibana de
Letras e um dos funcionários disse-nos para pensar bastante, se compensaria pesquisar sobre
um autor que não é benquisto na Paraíba. Naquele momento nada entendemos; algum tempo
depois percebemos que ainda se tratava de resquícios, possivelmente da Revolução de 30 na
Paraíba.
Ora, bastava ir adiante, para percebermos a impertinência de tais afirmações. A obra
de Ademar Vidal, não sendo uma obra magistral, mas uma obra que focaliza o contexto sócio-
histórico no Nordeste, nunca é uma obra irrelevante, mas um convite à literatura. Em se
tratando de uma crítica que se queira orientadora, no sentido construtivo, uma das primeiras
condições é de que as obras sejam tratadas com o rigor necessário e só através da análise
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sejam recusadas. Neste trabalho, procuramos captar a importância da obra nas relações que
ela mantém com as tendências de sua época, ou seja, as possíveis relações entre a obra
literária e o universo representado nela. Nesse caminho, procuramos entender como os
escritos de Ademar Vidal se situam no contexto da produção intelectual da Paraíba e qual a
sua especificidade.
A trajetória literária de Ademar Vidal esteve sempre associada a uma postura em
defesa da modernização. Fazendo obra moderna, sem abandonar o tradicional, sentiu e
escreveu como um homem de seu tempo, mas guardando aquilo que a sensibilidade de um
povo foi acumulando ao longo da vida. Pode-se dizer que Ademar Vidal é moderno porque
possui um crivo crítico, entendendo que o homem não pode escapar à sua época.
Na pesquisa de fontes, trabalhar na linha dialética exige que os dados sejam assumidos
como uma construção do pesquisador, pois a realidade existe em permanente transformação,
atendendo às solicitações do presente. Este posicionamento requer uma estrita atenção ao
processo através do qual os dados são organizados: leituras para seleção de textos, estudando,
vivendo os diversos momentos na história, identificando tendências para apreender a
representação da vivência de uma época. Nesse trajeto o terceiro desafio veio, quando
buscamos uma aproximação com o texto de Ademar Vidal publicado no jornal A União – PB
entre 1920 e 1950, época de produção significativa do autor em relação à cultura popular.
Entre crônicas, artigos, ensaios nós deveríamos selecionar aqueles textos que tratassem das
manifestações culturais populares. Eis que a primeira porta se fecha. O jornal A União, por
razões que desconhecemos, adiava sempre a possibilidade de se iniciar a pesquisa por lá.
Neste ínterim, uma bibliotecária da Universidade Federal da Paraíba – UFPB aconselho-nos a
procurar a Biblioteca Estadual José Lins do Rego no Espaço Cultural. Deu certo. Agora o
desafio já não era o de romper obstáculos, mas o de trabalhar com material bastante
danificado, faltando páginas inteiras ou mesmo pedaços de páginas arrancados.
Desde o início, então, parecia-nos um desafio muito grande apresentarmos uma
interpretação da obra de Ademar Vidal. No entanto, motivados por estas questões, iniciamos
uma investigação na qual recuperamos centenas de textos do autor. Lemos volume por
volume (pois se agrupam as folhas de jornal, de um mesmo ano, em um único volume),
datados entre 1920 e 1980, para selecionarmos textos relativos à memória popular. O marco
temporal se deu no intuito de percebermos, ao longo da carreira do autor, se havia ainda
interesse de sua parte pelas manifestações culturais populares. Essa pesquisa durou cerca de
um ano, entre abril de 2002 a abril de 2003.
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Inicialmente, pensávamos trabalhar só as crônicas de Ademar Vidal publicadas no
jornal A União. À medida que se ampliava a pesquisa, percebemos a existência de outro
material, também relevante, que deveria ser enfocado na tese: os inéditos. Já estava decidido
que ampliaríamos o corpus da pesquisa. Trabalharíamos não apenas a crônica, mas a obra
como um todo. A partir daí passamos a selecionar os textos a serem analisados no decorrer do
estudo.
Foi, então, que (re)iniciamos o caminho, agora pesquisando o Arquivo Ademar Vidal
no Instituto Histórico e Geográfico na Paraíba – IHGP. Assim sendo, investimos nossos
esforços em um estudo mais aprofundado sobre as manifestações culturais populares
representadas na obra de Ademar Vidal. Nas primeiras visitas ao Instituto colocaram à nossa
disposição dois livros e um trabalho sobre o autor realizado por um dos membros do IHGP.
Após várias visitas é que pudemos ter acesso ao Arquivo Ademar Vidal.
Por certo, o prazer da leitura garantiu um trabalho paciente: o de seleção de textos
(nem sempre contando com silêncio apropriado à pesquisa), o de extensas anotações e o ato
de fotografar – trabalho exaustivo – tendo muitas vezes de se repetir para se ter texto e foto
com mais qualidade.
A decisão de ampliarmos a nossa busca parecia adequada para assinalarmos os usos,
costumes e tradição, retratados por Ademar Vidal nas primeiras décadas do século XX na
Paraíba. Era preciso, primeiramente, conhecermos o autor por meio de seus escritos, para em
seguida estudarmos a sua forma de divulgação da cultura popular. Ao fim do conjunto de
leituras que fizemos restou como saldo a indagação: O que dá, senão garantia, pelo menos
peculiaridade à obra vidaliana, como obra de destaque. O problema que impulsionou foi o da
memória popular, e com ele como norteador, partimos para nossa leitura. Queríamos saber se
Ademar Vidal, um homem que ocupa posição dominante na sociedade, poderia contribuir
para divulgar uma cultura de “necessidade”, para utilizarmos a expressão de Maria Ignez
Novais Ayala; como pensava essa cultura; como foi criando uma concepção de cultura
popular, principalmente por meio da convivência com Mário de Andrade; e ainda, com que
densidade insere-se no modernismo.
Para entendermos essas questões em Ademar Vidal penetramos fundo no amplo
movimento de busca e descoberta. Era preciso captar o código social do autor, a estrutura de
significados e traduzi-los. Trata-se de uma tradução, com base na linguagem, nos temas
recorrentes e sobre seu modo de experienciar a vida. Evitamos definições rígidas,
premeditações conceituais. Vamos ao encontro do que está registrado. O material coletado é
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de extrema riqueza. Tínhamos diante de nós uma produção com registros os mais diversos.
Por onde começar? Fixamo-nos em tudo que diz respeito à cultura popular.
Desse modo procuramos analisar a cultura popular no conjunto da obra, buscando o
conteúdo historicamente dado, que está na consciência da cultura e o conteúdo imaginário. O
primeiro é substância do homem pobre nordestino, seu modo de vida, o sistema de dominação
vigente e a violência que o cerca. É destaque nessa produção a história do cangaço,
evidenciando o cangaceiro como “homem dotado de brio”, e ainda o registro da história dos
negros incluindo os usos, costumes e crenças; já o conteúdo imaginário sobrevive na tradição
oral e na memória popular.
Sabe-se que o princípio organizador de sua construção literária é a percepção da
diversidade e está vinculado à sinalização das coisas que o povo vive, pensa e cria,
identificado ao homem simples do sertão, que proclama a sua crença naquilo que a
sensibilidade de um povo foi acumulando ao longo do tempo. Pois, neste contexto oral que é
escrito, transparente, como processo histórico, que se encontra, afinal, a sua posição de
escritor, que expõe e pratica um esforço ao mesmo tempo obstinado e modesto em favor da
cultura popular.
Uma espécie de perversão literária caracteriza a obra de Ademar Vidal, principalmente
por transgredir as normas literárias, ou melhor, por não se preocupar com normas literárias,
exaltando gêneros e recriando-os. Em nossas análises, identificamos recusas por parte do
autor à padronização da linguagem, a premeditações conceituais, a sentimentos xenófobos. À
medida que buscávamos verificar como ele retratava a cultura do povo, o cotidiano do homem
sertanejo, bem como as festas e brincadeiras, lendas e crenças populares verificamos, em
maior ou menor proporção, a sua ligação com sua terra natal, João Pessoa, sendo por isso,
retratada em sua paisagem natural e sociocultural. As peculiaridades naturais do Nordeste, em
especial do estado da Paraíba, e as características das pessoas que nele vivem são, portanto,
traços marcantes da obra vidaliana.
De todo modo, cremos que o sentido deste estudo está na reinserção de um escritor
que, até os nossos dias, não se apreciou suficientemente e na atenção sobre seus escritos para
divulgar e preservar o seu legado. Tais ações darão maior visibilidade à obra de Ademar Vidal
que, mesmo figurando entre os nomes da literatura brasileira do século XX, permaneceu à
margem do público em geral. A condição de certa marginalidade de sua produção é atribuída,
possivelmente, às imagens equivocadas que alguns formadores de opinião fazem dessa
produção como um “gênero menor” da literatura.
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Os meandros da cultura popular traduzem-se numa tarefa instigante, que nos remetem
a muitas categorias em torno das quais agrupam-se autores que têm trazido importantes
contribuições a esse campo. Destacam-se como nossos referenciais, de crítica e estudos das
manifestações culturais populares, como parte de um contexto sociocultural historicamente
determinado, os trabalhos de Alfredo Bosi, Marilena Chauí, Eunice Durham, Maria Ignez
Novais Ayala, além dos textos de Antonio Candido, Nestor Garcia Canclini e Luigi Maria
Lombardi Satriani. No que se refere ao folclore como concepção do mundo e da vida dos
grupos sociais subalternos, além da leitura de Antonio Gramsci, buscamos o uso de suas
propostas, nos textos já referenciados e nos estudos de Stuart Hall. Para retratarmos a cultura
popular, nas primeiras décadas do século XX na Paraíba, utilizamos os apontamentos e as
observações de Ademar Vidal, bem como os textos de Mário de Andrade.
Nosso trabalho não se limita à discussão e conceituação da cultura popular. É, antes de
tudo, uma tentativa de entendimento desse conceito para que, a partir dele, possamos
apreender a sociedade, as relações sociais, os usos, costumes e crenças, representados na obra
de Ademar Vidal. Apesar da delimitação temporal (1920-1950), temos consciência que o
processo cultural não acontece em linha seqüenciada, pois imprime uma recuperação com a
devida atualização. Desse modo, conscientizamo-nos da amplitude e da variedade da
produção do autor. Nela, a escrita e a memória se cruzam por meio de narrativas populares,
nos limites da cultura e da literatura.
Aqui está um esboço de uma linha significativa de pensamento dos estudos de Ademar
Vidal, e que se revelou central, para a compreensão da sua obra, para cuja interpretação
seguiremos o plano. Nosso trabalho se divide em quatro capítulos. Dentro de cada capítulo, a
unidade se encontra ora nas situações motivadoras, ora nos temas.
No primeiro capítulo (Tecendo fios, desatando nós) buscaremos revelar a essência do
autor e da obra: o completo interesse pela cultura popular – característica fundamental de seus
escritos – , e um homem que experimentou o poder e soube perdê-lo. Não se pode dissociar o
nome de Ademar Vidal da saga da Revolução de 30 na Paraíba, e tampouco se pode
desvincular sua legenda da imprensa paraibana. Encerrou seu trajeto fazendo o que mais
apreciava: escrevendo. Este capítulo, além de percorrer a trajetória de vida de Ademar Vidal,
trata de uma visão crítica acerca de sua produção, bem como o que já foi escrito sobre sua
obra.
No segundo capítulo (A pretexto da modernização) julgamos por bem imprimir
algumas considerações sobre cultura popular, os anseios de intelectuais por reproduzir uma
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modernização da inteligência nacional nos moldes modernistas; os anos vinte na Paraíba – um
período fértil em migração de idéias – e, por fim, a viagem de Mário de Andrade ao Nordeste
e o encontro com Ademar Vidal.
A cultura popular, como meio de expressão na obra de Ademar Vidal, é o objeto do
terceiro capítulo no qual reunimos para análise, o Inédito “Práticas e costumes afro-
brasileiros”, além dos textos “Aboios de vaqueiro paraibano” e “A tradição do maracatu”.
Nesse percurso, destacaremos a predileção do autor pela cultura dos negros, a ênfase dada aos
seus usos e costumes, bem como às diversas manifestações culturais populares.
Ganham novos contornos no capítulo em que apresentamos e colocamos em discussão,
narrativas extraídas de Lendas e superstições: contos populares brasileiros. A partir de
histórias que tratam de temas como almas penadas, natureza denunciante, entre outras que
surgem como marcas da intervenção divina em nosso mundo, nos ocuparemos das criações
míticas de uma cultura mestiça e híbrida, ou seja, histórias de certas crenças que vicejam pela
Paraíba.
Por tratar-se de texto inédito, no caso “Práticas e costumes afro-brasileiros”, e de obras
com publicação esgotada, como Lendas e superstições, incluiremos anexas cópias do que foi
analisado nos itens descritos anteriormente, compondo o segundo volume da tese. Será,
enfim, a constatação do interesse do autor pelas tradições e formas de vida das camadas
populares e pela história a ser transmitida, não como o registro descritivo – o que poderia ter o
efeito de congelar a cultura popular em uma porção descritiva –, mas as relações que
aproximam e afastam o domínio da cultura em suas características preferenciais e residuais.
Assim, observando a lacuna de pesquisa sobre cultura popular representada na obra de
Ademar Vidal, justifica-se o desenvolvimento desse estudo a seguir. Essas perspectivas
delimitarão o alcance da obra de Ademar Vidal. Registros memoráveis. É desses registros e
das perspectivas que elas abrem que vamos nos ocupar neste trabalho.
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1 Tecendo fios, desatando nós
É tempo de viver e contar. Certas histórias não se perderam.
Drummond, Nosso Tempo
1.1 O arquivo Ademar Vidal no IHGP
O corpo principal das idéias de Ademar Vidal está espalhado em ensaios, crônicas,
artigos, livros e inéditos que podem ser encontrados no Instituto Histórico e Geográfico da
Paraíba – IHGP, que clamam por uma edição crítica. Os inéditos são, em geral, fragmentários
na forma – textos inacabados e por vezes desencontrados –, porém constituem documentos
preciosos da literatura, apesar de escritos sem obediência a um plano preconcebido. Por outro
lado, também revelam o quanto ele apreciava as manifestações culturais no sentido de que
desenvolveu suas idéias dentro do quadro da cultura popular.
Em 1995, com a criação do primeiro Curso de Especialização em Organização de
Arquivos pela UFPB – Universidade Federal da Paraíba, o IHGP atendeu solicitação da
Coordenação CEOARQ – Centro de Organização de Arquivo – servindo de laboratório para
os estudantes desse curso. A equipe optou pela organização do arquivo privado do escritor
paraibano Ademar Vidal1, doado ao Instituto pela família do ex-sócio. A organização de
documentos do autor contou com a orientação da bibliotecária Tânia Maria da Silva e das
estagiárias Fátima Christiana e Iris Casimiro, sob a coordenação das professoras Lúcia de
Fátima Guerra e Dulce Amélia.
Com esses apoios, somados à competência e dedicação do grupo de pesquisa, o
trabalho tomou forma: inventário do arquivo Dr. Ademar Vidal [Victor de Menezes] – 1996.
Nele, pressupostos arquivísticos juntam-se a procedimentos adaptados ao material. Esta série
constitui-se de onze pastas, que contêm cerca de 3.497 documentos, guardados em envelopes
de papel neutro, protegidos com etiquetas que ajudam a manter a inteireza física do
documento.
Os originais envolvem matérias resultantes de escritos literários, de pesquisas e
estudos realizados por Ademar Vidal. Há também trechos de conferências, relatórios,
pareceres e citações de autores lidos. Os assuntos são os mais diversos, envolvendo política,
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anotações de provérbios, usos e costumes, além de conversas com o cantador João Barbosa da
Silva.
O percurso de vida de Ademar Vidal, aparentemente sossegado, é porém bastante
atribulado por questões políticas, como sua participação efetiva na Revolução de 30 na
Paraíba, mudanças provisórias do seu Estado, até se fixar no Rio de Janeiro em 1944. As
viagens aos recônditos do Brasil e também ao exterior, explicam o conjunto abundante do
acervo por ele deixado.
Após o arranjo geral, definiram-se algumas séries, encontrando-se, assim, dispostas no
Arquivo Ademar Vidal, no IHGP.
A Produção Literária envolve quarenta e sete pastas:
Originais de livros (dezesseis pastas contendo manuscritos do autor); Poemas (uma pasta); Discursos (uma pasta); Entrevistas (uma pasta); Artigos/Textos (dez pastas); Anotações/Rascunho (quinze pastas); Pensamentos/Provérbios (uma pasta); Trabalhos de terceiros (uma pasta); Relatórios/Atas (uma pasta).
Além da Produção Literária, encontram-se as correspondências Expedidas e
Recebidas (quatro pastas), Fotografias (quatro pastas), Dossiê (duas pastas), Diversos (uma
pasta), Documentação Pessoal (sete pastas), Procurador da República (seis pastas).
A vasta produção literária do autor incluindo artigos, ensaios, crônicas, recortes de
jornais de texto do autor, recorte de jornais sobre o autor e inéditos em fase de organização e
divulgação, preenche um total de 83 pastas. Em sua maior parte o acervo é composto por
documentos impressos,2 inseridos na data-limite 1920/1986. O que restou de seus escritos –
obras completas ou fragmentos –, reflete traços marcantes na vida literária do escritor e
contribui para ultrapassarmos o procedimento arquivístico, sinalizando informações
importantes à nossa pesquisa.
1 Ademar Vidal foi eleito presidente do IHGP para o período 1943/44 e ocupou a Cadeira 46. Não chegou ao fim de seu mandato, pois assumira o cargo de Procurador da República no Rio de Janeiro, sendo substituído por Florentino Barbosa. 2 Após o falecimento de Ademar Vidal, muitos dos seus manuscritos foram datilografados por iniciativa de Alice Vidal Vieira Ribeiro, e os originais desfeitos. Ao solicitarmos esses originais à filha do escritor, ela relatou-nos que teve a iniciativa de datilografá -los devido à letra de seu pai ser difícil de decifrar. Alguns dos originais, segundo Alice Vidal, não foram devolvidos pela datilógrafa que veio a falecer algum tempo depois, por isso não foi possível a recuperação desse material.
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Encontra-se, portanto, no Acervo de Ademar Vidal, a afirmação de caminhos
relevantes para seguirmos com nosso trabalho. A sua obra desenha uma direção até hoje
significativa, na produção intelectual do IHGP: os estudos voltados para as vanguardas
político-culturais; a sua produção historiográfica sobre a Revolução de 1930 na Paraíba e a
apreciação dos aspectos da sociologia dos engenhos e do folclore.
Partindo da atenção à produção do autor, passamos à sua seleção. Em função da
diversidade de enfoques que validem a existência desta produção no seu rigor construtivo de
um pensamento documentado, priorizamos os textos relacionados à cultura popular, o que
facilita a oportunidade de procedermos a uma exposição crítica da sua obra, reconhecendo
nela não apenas um conceito histórico, mas alguma coisa viva e atuante que nos estimulou na
elaboração desta pesquisa.
1.2 A família Vidal
A família Vidal foi sob vários aspectos representativa do jornalismo da Paraíba,
realizando sua ascensão por quatro gerações: ainda no Império, o bisavô e o avô de Ademar,
Firmino Vidal; o pai Francisco Victor de Assis Vidal, posteriormente Ademar Vidal e seu
irmão Francisco Vidal Filho. Segundo Adauto Ramos,3 Francisco Victor de Assis Vidal
abraçou o jornalismo em 1906, sendo Redator -gerente do Estado da Paraíba. Foi também
redator de O Commercio, Avante, A União e Jornal do Comércio , além de Jornal Liberal e A
República. Foi jornalista de oposição, por isso teve quatro ou cinco jornais empastelados ou
incendiados pela polícia.
A história de Ademar Vidal vai sendo assim construída: quando menino fazia jornal
em casa para espalhar entre os colegas de escola. Aos doze anos entrou no jornal A União,
como estudante e revisor, vindo a ser mais tarde diretor desse jornal. Sua participação política
no Estado foi intensa durante pouco tempo, entre 1929 e 1931. Quando criança, conviveu
sempre com livros e poesia, posto que seu pai era poeta, deixando livros de poesia inéditos.
Conforme a expressão do crítico literário Guimarães Barreto:
Assis Vidal, no período de 1888 a 1891, entre os dezessete e vinte anos escreveu versos, alguns deles dignos de antologia, compondo o soneto ‘A República’. Pois esse Assis Vidal, atarefadíssimo com os serviços de árdua profissão de jornalista, e jornalista de oposição, ainda tinha vagares para fazer versos .4
3 RAMOS, A. Ademar Vidal: súmula bio-bibliográfica. João Pessoa: s/ed. 1999. 4 GUIMARÃES BARRETO. Expansão pelo reino das trovas. Rio de Janeiro: s/ed. 1962.
19
Há na obra de Ademar Vidal a presença de um conjunto de idéias, algumas vezes
indicando as contradições do Nordeste entre modernização e pobreza. Esta constatação aponta
para a relação intelectual que existiu entre Ademar Vidal e sua família, mais especificamente
entre ele e seu pai Assis Vidal, que abriu ao filho as idéias para compor seus mundos
imaginativos de fragmentos do mundo real e certamente terá exercido forte influência sobre a
sua formação, sobre a visão do mundo que, então, elaborava. Também foi salutar a
convivência com seus irmãos mais jovens Francisco Vidal Filho, professor catedrático da
Universidade local – até 1960 era chamada Universidade da Paraíba – e Epitácio, que morreu
muito moço, “mas teve oportunidade de, como redator da revista Era Nova, demonstrar
aptidões jornalísticas”, destaca Adauto Ramos. No registro dessa relação familiar completam-
se disposição jornalística e aptidão literária, sendo nosso autor herdeiro direto de ambas.
1.3 Trajetórias de vida
No ambiente propício às letras e ao sonho, na Parahyba, hoje cidade de João Pessoa,
em 1897 nasce Ademar Vidal. Ao lado de seus pais, o jornalista e poeta Francisco de Assis
Vidal e Amélia Augusta de Menezes Vidal, ambos pertencentes a tradicionais famílias do
litoral e alto sertão da Paraíba, mais cinco irmãos, desfrutara dias de ventura de que guardava
recordação dos sobrados, das igrejas, da casa à rua Direita, hoje , Duque de Caxias, bem
pertinho da casa do seu poeta maior Augusto dos Anjos. Ali viveu os dias de infância,
resguardados por Antonio Pacífico – um desses amos que “garantem as crianças medos e
afetos”5 – ouvindo histórias, narradas numa linguagem viva dos bons contadores de história e
de versos sob repentes. “Versos de origem espanhola – dizia tia Delinha – cantava-se desde o
Império e, até hoje, a gente costuma cantá-los.”6 Já moço, suas divagações de jovem deveriam
florescer na carreira literária entre crônicas, poemas e ensaios. Foi seu professor de
preparação para ingressar no Liceu Paraibano o poeta Augusto dos Anjos. Mas, antes veio a
escola particular de Dona Alice Pinto Pessoa, o Colégio Nossa Senhora das Neves e o Colégio
Diocesano Pio XI. Depois, estudou Direito na Faculdade do Recife, sendo aprovado com
distinção ao defender Tese de Direito Internacional intitulada “Campos de Limitação”.
5 VIDAL, A. A memória tem sete faces. Inédito, manuscrito, s.d. Esse inédito encontra-se na série Produção Literária: originais de livros, pasta 1 (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 6 Ibidem.
20
Presença marcante na vida de Ademar foi Maria do Céu Lins Vidal, com quem se
casou em 1926, no Rio de Janeiro, senhora de Engenho e de família de usineiros na Várzea do
rio Paraíba, amiga desvelada de todos os momentos e que Ademar cantou em versos:
Estamos hoje no fim do caminho, sempre andando juntos e vivendo um para o outro, desejos e aspirações comuns. Depois de tudo aonde nos encontraremos?7
Deu-lhe cinco filhos que aí estão perpetuando o nome Lins Vidal. A segunda filha,
Alice Vidal, já teve seu momento literário, firmando-se como cronista. O tempo, ao
transcorrer de sessenta anos, mostrou que Dona Maria do Céu, como afirma Ademar Vidal, é
“a melhor das mães e a melhor companheira”. Dedicava-se à casa, aos filhos, ao marido;
dedicou-se também à pintura em porcelana, uma prática quase inconsciente de fazer o tempo
passar mais depressa, ou quem sabe, uma maneira de amenizar as ausências do companheiro
maior, tão devotado que era às suas atividades de Procurador da República, Presidente do
Conselho Nacional da Casa Popular, Conferencista em todo o país e também nas
Universidades de Montevidéu, México, Canadá, Califórnia e Aspen (Institute For Humanistic
Studies); Secretário do Interior e Segurança no governo João Pessoa; observador político de
reuniões da ONU em Paris e Nova York. Acrescente-se, ainda aí, a intensa produção literária.
Enquanto o ambiente exterior e o convívio com grandes personalidades do meio
artístico e político no próprio meio familiar o predispunha para os problemas nacionais,
recorria a escrever para representar uma realidade, às vezes cruel. Assim, o menino
transfigurava-se no escritor. Iniciava-se a vida de identificação com as letras. A convivência
intelectual com os amigos de adolescência Antenor Navarro e Mário Pedrosa, de certo modo o
animava. Aliás, Ademar Vidal ligara-se aos dois por uma destas amizades sólidas, e faziam
parte da sua vida de estudante. Os três amigos reuniam-se sempre à hora do recreio para falar,
entre outras coisas, de poesia. Certa vez tiveram a idéia de apostar qual dos três seria capaz de
escrever o maior número de poemas em determinado lapso de tempo. O resultado dessa
aposta é o próprio Ademar quem relata na crônica “Bissextos”, escrita em 1947, uma espécie
de carta ao autor de Antologia dos poetas bissextos Manuel Bandeira, e que nos permitimos
transcrever um trecho:
7 Ibidem.
21
Recordo o mês de abril de 1927, na Paraíba, quando Mário Pedrosa, Antenor Navarro e eu promovemos o mais estranho concurso que já houve no assunto, isto é, apostamos para ver quem mais produzia, num momento de veia poética, louvando as coisas da nossa terra. Reflexo do movimento modernista de São Paulo. Pedrosa fez inúmeras poesias em perfeito francês – aonde andam esses versos? Direi por igual de Antenor, mais secas e não obstante, cheias de idéias e de inteligência. Quanto a mim cheguei a colecionar o que fiz. E se você tem curiosidade Manuel Bandeira, é só dizer, irá ver o que jamais foi revelado, senão àqueles amigos, tão bissextos quanto eu, pois nem antes nem depois daquela data fomos assaltados por febre tamanha. Lendo agora essa Antologia de Manuel Bandeira, olhei esta manhã tão bonita e tão parecida com as manhãs de minha casa nas Trincheiras, meu bairro paraibano, que o transbordamento advindo da leitura de páginas vivas e fortes me fez escrever essas vagas impressões, sem ordem e sem cor, mas que são palavras de apoio a inventiva feliz e oportuna. Outros bissextos poderão figurar em futuras coletâneas (...). É assim que me lembro da Paraíba com os bissextos que lá viveram: meu pai Assis Vidal, Rodrigo de Carvalho, Elizeu César, tantos outros como José Américo de Almeida – e quem diria? - Também Epitácio Pessoa, sim Senhor que foi poeta de fazer versos, e bissextos de verdade. E outros, muitos outros8.
Escritor de flagrantes, marcou época nos anais do jornalismo, pela sua feição literária.
A sensibilidade de Ademar é aí revelada em centenas de crônicas que expressam elementos
fundamentais da vida brasileira, principalmente da vida nordestina. O desejo de evadir-se da
realidade, de sentir algo que talvez não encontrava no seu cotidiano, o conduzira a diferentes
paragens literárias e as narrativas organizam-se a partir da retomada dos fatos e dos
episódios.Tratava-se de buscar o caminho para a memória, a qual se processa por meio da
vivência, sendo seu principal núcleo temático o cenário do Nordeste, condição essencial para
que o autor buscasse os fragmentos da sua lembrança como se estivesse impregnada nos
acontecimentos revisitados. Mas para quem escreve memórias:
Onde acaba a lembrança? Onde começa a ficção? Talvez sejam inseparáveis. Os fatos da realidade são como pedra, tijolo − argamassados, virados parede (...) pelo reboco da verossimilhança − manipulados pela imaginação criadora (...). Minha opção é sempre a segunda, porque só há dignidade na recriação. O resto é relatório.9
A literatura é em Ademar Vidal uma atividade de crescimento, e em plena posse de
seus dons literários encontrará nela o caminho adequado para realizar a obra de escritor, o que
lhe assegura posição relevante na história das letras. Desde a significação de seus escritos
feitos de sentimento pela terra natal e também de abandono e renúncia até a forma de que se
8 VIDAL, A. Bissextos. Crônica. O Jornal do Rio de Janeiro, s.d. Recortes de jornais – 1924/1946, pasta 1 (Arquivo Ademar Vidal, IHGP). Bissextos refere-se ao poeta que se dedica à literatura, produzindo pouco e, por essa escassez, de quatro em quatro anos acrescenta-se um dia ao mês de fevereiro.
22
revestem, imagens, palavras, ritual, contentamentos, e opressão. Colorido tênue – tudo
recorda a Paraíba. De certa maneira, as recordações da sua terra ajudaram-no a compor a obra,
numa participação mais íntima com suas crenças: uma exaltação sentida e vivida em
plenitude, embora afastado dessa terra tão cantada em sua prosa.
1.4 O autor, a obra e a crítica
Compreendendo este capítulo como um caminho conduzindo à produção literária do
escritor e à crítica, procuramos aqui conceber uma apreciação dessa produção, onde se
registrem os aspectos da memória, das lembranças e testemunho, das sombras e clarividências
que culminam no sentimento à terra natal. Cada palavra, cada expressão do autor vale pelo
seu poder sugestivo, de reminiscências ao lugar no qual viveu por um período de sua vida, ou
seja, entre 1897 e 1944.
Ademar Vidal procurou registrar o que viu e ouviu sobre a cultura do povo paraibano,
contudo, apesar de ter viajado bastante, buscando as peculiaridades da sua terra e da sua
gente, precisou de informações que lhe chegavam através de cartas, quando não lhe era
possível coletar material in loco. Um de seus correspondentes é o poeta paraibano Padre
Manoel Octaviano Tavares, de Piancó, que assim relata em carta:
Já estou velho e nunca perdi o fio reto da tradição sobre coisas do meu velho sertão. Sempre conservei de memória as histórias dos velhos que, de outros velhos, aprenderam o que me contavam [...] Sinto, pois, meu caro amigo, Dr. Ademar Vidal, não lhe poder ser útil à medida de seu desejo, pois o peso dos anos já me empurrou muito para baixo e eu já estou vendo mais a terra do que o céu. Heresia? Não. Realidade física.10
Como todo escritor, Ademar também produzia sempre aquilo que acreditava e lhe
fazia bem ao espírito, como mostram suas produções, escritas inicialmente em 1920
estendendo-se até 1986, pouco antes de seu falecimento. Não resta dúvida, na travessia do
tempo é possível observar uma mudança significativa na sua maneira de olhar o mundo.
Buscar sincronia nessa produção não é tarefa fácil, bem como realçar o que a crítica observou
e demonstrou sobre sua obra. Esse trajeto não nos permite uma linha seqüenciada11, mas
9 NAVA, P. Balão cativo: memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 10 Carta de Padre Manoel Tavares para Ademar Vidal. Piancó, 7 de fevereiro de 1963. Série Correspondências Recebidas, 1920/1968, pasta 2. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 11 Apesar da produção de Ademar Vidal não ter sido escolhida aleatoriamente, conforme está demonstrada no corpo do trabalho, traçaremos uma ordem cronológica apenas no quesito Bibliografia do autor, facilitando, assim, nosso estudo.
23
apenas um pulsar no espaço e no tempo e estes se incumbem em tornar maior o nome de
Ademar Vidal. Até hoje, muito embora a crítica tenha lhe dado atenção, ninguém lhe estudou
a obra de modo completo.
A Fortuna crítica de Ademar Vidal, incluindo notas em jornais, depoimentos, artigos e
breves resenhas críticas após a publicação de cada obra, pode ser caracterizada pelo critério
qualitativo, a partir do espaço, local ou nacional, onde foi produzida. Sabe-se que obra
literária e crítica estão interligadas, não havendo independência absoluta entre ambas, por isso
as reações aos seus escritos variam desde as reações provincianas até as mais consistentes e
teoricamente fundamentadas. As abordagens que fazemos da obra do autor, elaboradas dentro
de uma orientação que recusa adotar uma postura apenas literária em prol do estudo de uma
prática de língua oral, certamente possuem características que passam pela situação histórico-
social na qual ele estava inserido e pela identificação com os costumes e tradições.
A escolha de sua obra como objeto de estudo e de indagação crítica foi motivada pela
importância que ele dispensou à literatura popular como uma forma de cultura. Os princípios
literários que orientam sua produção vão compondo para o leitor uma narrativa atraente,
tematizando ao sabor dos fatos e dos episódios. Boa parte dessa produção se cerca ao mundo
do homem sertanejo, do cangaço e do negro na Paraíba, revelando preocupações de melhor
retratar as culturas desses povos. Esses aspectos permitiram a Ademar Vidal construir não
somente a leitura do lugar, mas também daquelas pessoas que ele percebia manter a
regionalidade como força íntima de vida cotidiana. É o caso da obra Assis Chateaubriand por
ele mesmo que, na opinião de Theophilo de Andrade, a obra de Ademar Vidal bem vale a
homenagem-memória ao admirável conterrâneo do autor.
Desde as suas primeiras produções em 1920, Ademar Vidal não parou de escrever,
diversificando muitas vezes os temas, mas voltando sempre ao contexto da cultura popular.
Embora nossa análise privilegie certos escritos em detrimento de outros, é a totalidade
literária que nos interessa, inclusive os textos nunca editorialmente divulgados, atentando para
a lógica interna da escrita, nas frases que poderão estar encadeadas de modo explícito, ou
temporariamente dispersas, analisando o percurso dessa escrita.
Um levantamento avaliativo dessa produção, levando em conta o alvo dos enfoques
dos críticos em relação à obra de Ademar Vidal, pode indicar não uma análise profunda, mas
algumas considerações a respeito do conteúdo, do estilo, da contextualização da obra e sua
importância literária. Alguns críticos literários, ao incluírem estes elementos em sua leitura
24
acreditam que, por implicações, já deveriam conter toda uma estética consciente da
significação da obra. No caso de Ademar Vidal, percebemos que o cotidiano, a história, o
tempo e o espaço, o homem social e político, a vida urbana e sertaneja são elementos
apresentados pela crítica como motivação do universo literário do autor, variando em
conformidade com cada crítico.
Alguns pesquisadores se interessam pela obra de determinado escritor, na medida em
que ela permite aclarar o conhecimento dos fatos políticos, econômicos e sociais da época em
que foi escrita. Antonio Candido,12 ao delinear o caminho da literatura no Brasil, revela que
os pesquisadores geralmente partem do pressuposto de que a criação literária é o reflexo de
uma dada sociedade num tempo histórico determinado, associando a obra do autor e a sua
sociedade ao fato social, acreditando que ela representa os interesses de uma classe já
definida, seus modos de pensar, de sentir e de agir.
Quer na configuração histórica e geográfica, quer nas manifestações da vida do
homem nordestino, a produção de Ademar Vidal revela-se equilibrada e consciente.
Concorreram de certo para o refinamento do escritor a autocrítica, a noção de justiça, a
prudência e o interesse pelas tradições. Ademar Vidal, ao contrário do que muitos pensam,
não era um reacionário, suas posições e atuações, em um momento decisivo da História
paraibana e brasileira, foram fundamentais para que se compreendesse a dinâmica do processo
social, político e cultural das primeiras décadas do século XX. Compenetrado na literatura,
concentrava seus esforços cada vez mais nas forças de liberdade que residem nesse campo e
que não dependem do engajamento político do escritor, nem mesmo do conteúdo doutrinal da
sua obra, mas do trabalho de deslocamento exercido sobre ela como forma de conhecimento
da realidade.
Nesse sentido, o que buscamos reconhecer não é apenas a importância de Ademar
Vidal na literatura no Nordeste, mas principalmente o seu papel, se não pioneiro, porém
seguidor de uma tomada de consciência nacional, de escritor. Já nas suas primeiras
publicações, em 1922, sua imagem cresce enormemente. Foi a partir dessa época que Vidal
intensificou seus escritos, de forma que podia estar em dois ou mais jornais, ao mesmo tempo,
divulgando as suas crônicas, seus ensaios, seus estudos.
A oportunidade de ocupar cargo diplomático veio após um mês dos desfechos da
Revolução de 1930, quando seu velho companheiro Antenor Navarro o convida para exercer
12 CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.
25
missão importante na Europa, mas Ademar recusou. Em março do ano seguinte, outro convite
lhe foi feito pelo então Ministro da Justiça Osvaldo Aranha, também para ocupar cargo
diplomático. Ademar Vidal novamente recusou. A terceira tentativa veio dessa vez do Palácio
do Catete, e nas palavras de Getúlio Vargas: “Senhor Doutor Ademar Vidal, a Revolução tem
deveres para com o Senhor”,13 devendo ser nomeado no dia 12 de setembro de 1954, o que
não aconteceu devido ao trágico falecimento do então Presidente da República em vinte e
quatro de agosto desse mesmo ano.
Ademar vai recompondo-se na paisagem de origem da infância à idade adulta, e o que
fica no mundo sentimental avulta-se a transformações posteriores. É o que deixa transparecer
nesse trecho:
A minha vida prática ativa se resume apenas ao ano da Revolução. Vivo afastado voluntariamente das competições partidárias [...]. Carregamos a terra para onde vamos [...]. Atravessamos agora uma fase de ventos desencantados que antecedem os temporais. Torna-se preciso contê-los sem a ajuda coletiva talvez não se possa remover as dificuldades.14
Obra que rendeu a Ademar Vidal vasta produção crítica é O outro eu de Augusto dos
Anjos, escrita e publicada em 1967. Abstraindo caminhos historiográficos, escreveu extensa
biografia sobre o seu “inesquecível mestre”, contribuindo para que certos informes
biográficos servissem à crítica atuante como fonte para análises literárias em torno desse
“excepcional poeta paraibano”. Nacionalmente, vinham referências à obra, de forma bastante
acentuada, como essa de Pedro Vergara:
Gostei muito do Outro eu de Augusto do Anjos e devo confessar sinceramente que me surpreendeu, deveras, a penetração crítica de Ademar Vidal num gênero literário, como é a poesia, que supunha estranho aos seus estudos e preocupações culturais constantes (...). E verdade, na posse de dados objetivos, resultantes de uma observação direta e ainda de uma pesquisa inexausta, criteriosa, verídica e fecunda (...), o que saiu foi um desentranhamento de vivências (...). Mando a Ademar Vidal meu abraço por esse trabalho fruto de seu talento e de sua porfia (...). Melhor julgamento dos grandes valores da cultura nacional. 15
13 Ademar Victor de Menezes Vidal. “Depoimento”, 1979. Rio, FGV/CPDOC – História Oral, 1983, Convênio UFPB/CPDOC. 14 VIDAL, A. Mensagem aos paraibanos. Crônica. O Jornal do Rio de Janeiro, s.d. Série Recortes de Jornais – 1947/48, pasta 5. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 15 VERGARA, P. O outro eu de Augusto dos Anjos. O Jornal do Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1968. Série Recorte de Jornais, 1947/86, pasta 5. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP).
26
Ainda fora do contexto da província, o crítico Eduardo Muniz, escrevendo para O
Jornal de Porto Alegre em 7/7/1967, realça que a obra intitulada O outro eu ..., de Ademar
Vidal, apresenta uma face nova de personalidade do poeta. Sobre essa obra, O Correio do
Povo em 1967 divulga: “acaba de sair o novo livro de Ademar Vidal, O outro eu de Augusto
dos Anjos, poeta paraibano, cuja glória literária ficou marcada por um só livro. A obra de
Ademar Vidal oferece valiosa contribuição para o conhecimento da personalidade do poeta”.
O Diário de Montes Claros, de Minas Gerais em 21/11/1968, na palavra de João Valle
Maurício: “Ademar Vidal é sem dúvida, autoridade para nos fornecer essa fonte de
informação a respeito do imortal poeta do Eu”. Da Lavoura e Comércio, de Uberaba em
7/10/1967 surge a nota: “o escritor Ademar Vidal proporciona aos estudiosos da vida e obra
do grande poeta paraibano valiosa contribuição de natureza biográfica, importante pela
documentação inédita”. O Jornal do Brasil Suplemento do Livro em 21/10/1967 registra que
o “O outro eu de Augusto dos Anjos de Ademar Vidal lança novas luzes sobre a
personalidade controvertida do autor de Eu”. A Gazeta Esportiva de São Paulo em 26/8/1967
também faz referência à obra de Ademar Vidal ressaltando a “importante contribuição para
uma melhor análise e compreensão do poeta Augusto dos Anjos [...]. Um livro de ensaio
biográfico de profunda repercussão”.
Incluem-se, ainda, O Jornal do Commércio de Pernambuco na coluna Gazetilha
Literária em 3/9/1967, 9/9/1967, 6/10/1967, e 23/11/1968; A Gazeta de São Paulo em
16/7/1967; A Tribuna Popular de Feira de Santana em 11/7/1968 e O Pergaminho, de
Ribeirão Preto e O Estado de São Paulo, que também divulgaram a obra O outro Eu [...], de
Ademar Vidal. Há que se destacar as observações feitas pela Manchete Livros a respeito dessa
obra e seu autor pela maneira pitoresca de se expressar:
O Outro Eu (...), de Ademar Vidal, um dos maiores talentos críticos e literários que a terra de Epitácio e José Américo já deu. Seu livro é uma viva defesa do poeta, desfazendo informações inexatas e interpretações tendenciosas, como por exemplo, a de Artur Ramos, para quem o autor do Eu era um louco.16
Em trabalho publicado no jornal A União da Paraíba em 5/5/1985 a jornalista e
escritora paraibana Maria de Fátima Araújo destaca que a produção literária de Ademar Vidal
inclui “ensaios de História, Direito, Folclore e Literatura perfazendo um total de dezesseis
livros, a maioria dos quais bem recebida pela crítica abalizadora no país”.
16 Manchete Livros. O outro eu, 1968. Série Recortes de Jornais, 1947/86, pasta 5. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP).
27
Referências à obra O outro eu [...] continuavam de modo freqüente. Eudes Barros em
A poesia de Augusto do Anjos: uma análise de psicologia e estilo (1974) pontua que a crítica,
ao afirmar categoricamente algumas verdades, acaba distorcendo, como é o caso da biografia
de Ademar Vidal sobre Augusto dos Anjos. É interessante destacar que Barros critica a obra
de Ademar Vidal, porém incide em deturpações de julgamento e de informação, mas que não
cabe aqui detalhar.
Em janeiro de 1968 Eudes Barros escreve a Ademar, desta vez considerando o autor
como “um espírito pioneiramente renovador na literatura na Paraíba”, mas insiste Eudes em
dizer que o livro o Outro eu... é mais um:
Depoimento de um paraibano tentando decifrar a esfinge psíquica do Eu. Achei, porém, de escrever algo sobre as tuas memórias em torno de Augusto, discordando de ti, mas sempre com a minha velha simpatia intelectual pelo autor de O incrível João Pessoa. Desde os tempos em que, jovens, vivíamos na Paraíba [...]. Fizeste bem em escrever sobre Augusto (refere-se ao poeta Augusto do Anjos). Teu livro é mais o depoimento de um paraibano tentando decifrar a esfinge psíquica do Eu [...]. Você e Gilberto Freyre não envelhecem nunca; permanecem aqueles mesmos jovens de audazes renovações culturais da década de 20.17
Em 1944 Ademar Vidal publica Terra de homens18, que lhe rendeu significativa
produção crítica no espaço provinciano e nacional. O livro recebeu Prefácio de Afonso Arinos
de Melo Franco, que considera a obra como um dos mais compreensivos livros até hoje
publicados “sobre o homem que trocou o trabalho para trabalhar e criar um tipo social agitado
e histórico”. O leitor observa nos conceitos de Ademar, sobre o assunto, “uma agitada
combinação de julgamento intelectual com sentimento popular”.
Em breve nota de sua coluna “A cena e os livros” José Lucas, editor de O Jornal do
Rio de Janeiro em 22 de outubro de 1944 apontava em relação à Terra de Homens, que “O Sr.
Ademar Vidal escolheu o título sugestivo para falar sobre a Paraíba, não se aprofundando em
cansativas digressões científicas”. Para José Lucas, “o autor consegue em narrativas simples e
ligeiras estudar a revolução social e humana do povo de seu Estado: a terra e o homem do
cangaço, a vida dos sertanejos e todo o mundo palpitante do Nordeste”.
Outro comentário breve e elogioso nos termos jornalísticos é o de Elói Pontes,19
publicado no jornal O Globo na coluna O mundo das letras em 28/3/1945: “encarando melhor
17 Carta do escritor paraibano Eudes Barros dirigida a Ademar Vidal em 1968. Série Correspondências recebidas – 1920/1968, Pasta 2 (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 18 VIDAL, A. Terra de homens. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1944. 19 Interessante destacar que o jornalista Elói Pontes, simpatizante do socialismo russo, tomou os escritos dispersos de Olavo Bilac e escreveu A vida exuberante de Olavo Bilac, em dois volumes, pela Editora José
28
as populações sertanejas e seus meios de vida, sentimos que elas reclamam, sobretudo,
assistência judiciária. É o que explica e demonstra Ademar Vidal em Terra de homens”.
Semelhante opinião sobre a obra de Ademar Vidal é a de Antonio Constantino. Assim
como José Lucas, Constantino, em O Estado de São Paulo 22/10/1944, compreendeu o
interesse de Ademar Vidal em explicar à luz dos fatos, as razões que criaram o cangaceiro,
entendendo que se trata da “história de cangaço, nas origens desde a era colonial, até o
epílogo da aventura de Lampião e o Ademar nos mostra o que é o cangaço e o que é o
banditismo”.
Conjugando costumes e tradições, Ademar Vidal escreve e publica Guia da Paraíba20
em 1943, obra que provocou deleite em Mário de Andrade, tanto que na contra-capa de
Europa21 obra de Ademar Vidal, Mário assim se expressa:
Quem vê esse impassível Ademar Vidal jamais figurará nele a criatura estranhamente capaz de comunicar-se nas emoções por demais aguçadas. Viajar em sua companhia por dentro das páginas que li mergulhando em prazeres e saudades, é uma delícia reconfortadora, muito principalmente para mim que o conheço de perto (Ademar Vidal é a terra nordestina e por isso opinando pela última hipótese: aquele ou este ou os dois num só?) nas riquezas de afeto, graça sensível e capacidade de percussão.22
Destaque ao Guia da Paraíba não se deu apenas por Mário de Andrade. O
antropólogo Edson Carneiro, também na contra-capa de Europa faz alusão à obra e ao autor:
O nome de Ademar Vidal está entre os dos grandes estudiosos do país exatamente pelo fato de se voltar para os assuntos da sua região, de se fazer o porta-voz da sua terra e da sua gente. Já devemos a Ademar Vidal um dos melhores ensaios sobre o homem na Paraíba, sobre a escravidão e sobre a República, no campo e na cidade, trazendo informes e documentos de inestimável valor para o entendimento geral do problema negro em todo país. Mas com este Guia da Paraíba, Ademar Vidal inaugura uma nova fase – mais ampla e mais fecunda da sua atividade.23
Ainda sobre o Guia da Paraíba, em nota ao Diário de Pernambuco em 9 de novembro
de 1949, Edson Carneiro enfatiza que o nome de Ademar Vidal, está “tão intimamente ligado
à história e ao folclore de seu Estado, elaborando um trabalho que pode servir de exemplo a
outros estudiosos”.
Olimpyo em 1944. Esse pendor socialista era freqüente entre os intelectuais do tempo, assim com um certo anarquismo ao qual Ademar Vidal se incluía. 20 Guia da Paraíba de Ademar Vidal ainda não mereceu da crítica local atenção a que tem direito. 21 VIDAL, A. Europa. Rio de Janeiro, Editora Aurora, 1949. 22 ANDRADE, M. Alusão ao Guia da Paraíba. In: VIDAL, A. Europa. Rio de Janeiro, Editora Aurora, 1949. 23 CARNEIRO, E. Sobre o Guia da Paraíba. In: VIDAL, A. Op. cit, 1949.
29
Resultante da linha de estudos “O negro brasileiro”, na qual Ademar se envolveu
obstinadamente, veio o convite do sociólogo Artur Ramos para que Ademar Vidal publicasse
seus estudos sobre a escravatura, e Ademar escreve imediatamente ao amigo:
Recebi a sua carta cheio de sincera alegria. Vejo que de fato se interessa pela sorte dos que se preocupam com assuntos referentes ao negro. A possibilidade de tornar-me autor me enche de grande satisfação. E maior ainda em saber que pela mão generosa de um amigo. Estou com um livro pronto para lhe remeter.24
Em 1941 Artur Ramos sugere o nome do escritor paraibano para compor a Sociedade
Brasileira de Antropologia e Etnografia, como mostram trechos da carta-resposta de Ademar
Vidal:
Quero agradecer a honra que me deu de indicar meu obscuro nome para sócio correspondente da ‘Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia’. Fiquei surpreendido com a distinção imerecida. E sobretudo envaidecido.25
Segue-se cronologicamente a produção de Mundo livre26, Importância do açúcar27,
Espírito de reforma .28 Reunindo ensaios políticos, geográficos e étnicos, Mundo livre, escrito
em 1939, porém editado em 1945 destaca aspectos da civilização continental: problemas,
intenções, sobrevivências e decisão. O segundo, enfatiza a legislação protecionista do IAC –
Instituto do Açúcar e do Álcool; o terceiro, reunindo nove conferências, enaltece a
democracia, elucida noções do liberalismo, oligarquia, ditadura e fascismo e opõe o conceito
de liberdade ao de autoridade. Nota-se nessa produção, a originalidade que permitiu ao autor
transformar em valores literários, expressões tão caras à população. Voz solitária de guia ou
voz coletiva de intérprete? Não importa, nosso autor precisa falar e ser ouvido, e toma sua
parte na tarefa de se readaptar ou de adaptar-se a novas condições de existência, ainda em
elaboração ao mundo que desponta. A esperança está presente nos escritos de Ademar Vidal,
pois, como expressa o autor em Mundo livre, as transformações prodigiosas nas condições do
trabalho, nas noções de propriedade, nos princípios do direito e da moral, elas muito
representam às gerações vindouras.
24 Carta de Ademar Vidal para Artur Ramos. Rio de Janeiro, 1937. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Seção de Documentação. 25 Carta de Ademar Vidal para Artur Ramos, 1941. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Seção de Documentação. 26 VIDAL, A. Mundo livre. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1945. 27 VIDAL, A. Importância do açúcar. Rio de Janeiro: Artes Gráficas, 1945. 28 VIDAL, A. Espírito de reforma. Rio de Janeiro: Artes Gráficas, 1945.
30
Em relação à obra Mundo livre, José Joffily, autor de Anayde, paixão e morte na
Revolução de 30 na Paraíba, obra levada ao cinema com o título de Paraíba mulher macho
em 1983, em carta a Ademar Vidal, afirma que ao reler Mundo livre vê a importância da
reedição do que Ademar escreveu na década de 30, quando denunciava a preparação da
Segunda Grande Guerra que se aproxima a passos largos: “você prevê a ascensão do nazi-
fascismo profetizando a sua hegemonia de curta duração”. Complementa José Joffily:
“importante é que todos os seus temas são de vibrante interesse histórico ou de incontestável
atualidade”.29
Ainda sobre Mundo livre, destaca-se o artigo de Aderbal Jurema, para o Jornal do
Commércio de Pernambuco em 8 de dezembro de 1961, intitulado “Ensaístas políticos” no
qual observa que “Ademar Vidal, com seus ensaios sobre o Continente submarino, lembra a
mesma plasticidade de um Manoel Bonfim30 ao tratar os assuntos como esses”. Para Jurema,
o que mais agrada nesses ensaístas [Ademar Vidal e Manoel Bonfim] é a convicção que
desperta de estarmos diante de intelectuais que não fazem literatura por burocracia e sim por
um imperativo de inteligência. Outros aspectos de Mundo Livre são destacados pelos editores
da obra:
Mundo Livre possui a clareza, a simplicidade e a forma quase fria de ver situações, delas fazendo idéia própria e delas tirando conclusões [...]. O livro encerra alguns estudos sobre o continente americano. Os vários aspectos geográfico, político, sociológico e cultural são apontados em largos traços [...], o elemento étnico não ficou esquecido [...]. Não é apenas a terra mas ainda o homem que surge [...] como um notável agente de progresso e civilização [...]. Repontam, assim nestes estudos as influências do espírito revolucionário do autor, que participou dos movimentos políticos que agitaram o país até 1930, opondo-se, por princípio ao mandonismo personalista do mundo oficial [...]31
No que diz respeito à obra Espírito de reforma , em extensa e consistente Nota,
Barbosa Lima Sobrinho aponta a excelência dessa obra e de seu autor. Na palavra do crítico
pernambucano:
Ademar há poucos meses, dava-nos o resultado de seus estudos sobre diversos problemas sociais da Paraíba – Terra de homens. Reúne agora em volume outros ensaios e conferências, versando temas de cultura política [...]. As conferências pronunciadas entre 1929 e 1938 refletem os anseios da vida
29 Carta de José Joffily dirigida a Ademar Vidal em fevereiro de 1978. Série Correspondência, 1947/87, pasta 5. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 30 Manuel Bonfim, escritor sergipano que em fins de 1901 trabalhou como jornalista e um dos diretores da revista A Universal. Entre os colaboradores Machado de Assis, Amadeu Amaral, Olavo Bilac, Vicente de Carvalho. 31 Notas dos editores de Mundo Livre, op. cit. p. 4.
31
brasileira. E ainda são atuais, como são atuais os postulados do programa, a que o Sr. Ademar Vidal subordina a educação política do Brasil.32
Espírito de reforma é também assunto do jornal Itinerário de Paris33 em 14 de
dezembro de 1946, que considera a obra de Ademar Vidal de “larga capacidade de
readaptação, ou de adaptação a novas condições de existência norteando o escritor o interesse
da cultura”. O volume traz ainda um prefácio do Sr. Dr. Barbosa Lima Sobrinho, pondo em
destaque, no autor, as influências que sobre ele deve ter exercido o “torrão nordestino” onde
nasceu.
Com a despreocupação de quem sempre apreciou registrar o que viu e sentiu; de quem
pretendia conhecer-se fora da pátria, Ademar Vidal escreve em 1944 Europa e como ele
mesmo destaca, é composta de impressões marcadas pela pressa, feitas no momento em que o
autor se acha impregnado de recordações e particularidades que assinalam os passos do
homem e este prefere deixá-los mesmo como se fixaram.
Um fato interessante na vida literária de Ademar Vidal é relatado por Antonio Botto
de Menezes34 numa obra prefaciada por Ademar Vidal. Reconhecendo a força criativa dos
inseparáveis Mario Pedrosa, Ademar Vidal e Antenor Navarro, Menezes relata que, certa
manhã, entrou, na redação de O Combate, da Paraíba, Antenor Navarro, dizendo que
precisava publicar o programa de um jornal que não chegou a sair no Rio. O jornal foi ideado
por mim, Ademar e o Mário, diz Navarro a Menezes. No dia seguinte, 13 de novembro de
1923, estava publicado n’O Combate o programa referido, com a nota que o antecedeu:
“estava feito, entretanto, o seu artigo-programa cheio de idéias modernas, pela solidez e
seriedade de seus fundamentos, baseados nos mais modernos princípios científicos e sociais
[...]”. Bem se pode compreender a exaltação que esse documento provocou, observa Menezes.
Tanto pela diversidade dos interesses que manifestou em sua atividade cultural,
envolvendo etnografia, sociologia, antropologia, história, quanto pelo volume da obra
publicada, Ademar Vidal se situa (ou deveria situar-se) entre as figuras mais importantes na
literatura na Paraíba. Esse reconhecimento não se restringe apenas à sua província, sendo seu
nome destacado no Jornal da Noite, de São Paulo como “presença marcante na literatura
brasileira”:
32 BARBOSA LIMA SOBRINHO. Espírito de Reforma de Ademar Vidal. Jornal do Commércio de Recife, 8 de dezembro de 1946. Série Recortes de Jornais, 1944/72, pasta 4. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 33 Recorte de jornal, cedido por Alice Vidal. 34 MENEZES, A. B. Minha terra, memórias e confissões . Rio de Janeiro: EPASA, 1944. Reed. pela Prefeitura Municipal de João Pessoa, 1992. p. 120.
32
Ademar Vidal, um notável escritor da nova geração, uma das mais vivas inteligências se encontra em São Paulo, em visita a esta Capital [...] sendo-lhe oferecido um jantar íntimo em casa do Dr. Alcântara Machado, ao que comparece elevado número de escritores paulistas [...]35
As referências citadas nessa Nota revelam a estreita relação de Ademar Vidal com os
participantes do movimento modernista –pensamento de vanguarda e tradições populares -,
mais especificamente com Mário de Andrade, e a expectativa do grupo de intelectuais com
relação a ele, em se tratando de um escritor dado às vanguardas e ligado à terra e às tradições
populares. Ademar Vidal descobriu as veredas de sua produção literária ao pensar,
certamente, na cultura do povo, cultivando processos narrativos sugeridos principalmente
pelos narradores orais do Nordeste.
Podemos constatar não apenas pela nota no Jornal da Noite sobre a presença de
Ademar Vidal em São Paulo, mas também, através de um dos inéditos do autor, sem título, a
estreita relação com alguns expoentes do movimento modernista de São Paulo, entre eles
Oswald de Andrade, Raul Bopp, Paulo Prado, a “belíssima” Tarsila do Amaral e a “doce”
Pagu, nas palavras de Ademar Vidal; e, sobretudo, com seu especial amigo Mário de
Andrade.
A trajetória do prestígio que a obra de Ademar Vidal vai assumindo corresponde à sua
ligação com as origens e interpretação de valores e tradições. Na expressão de Gilberto
Freyre:
A reputação de escritor Ademar Vidal não está mais por fazer, tantas já são as demonstrações de seu talento literário [...]. Seu estudo não é decerto o de um rígido especialista – tantos são os aspectos da história do escravo negro na Paraíba que procurou fixar em suas páginas. Mas sempre limitado à área paraibana [...]. A promessa esboçada no trabalho que apresentou ao Congresso de Estudos Afro-brasileiros reunido no Recife no ano já remoto de 1934, Ademar Vidal cumpre-a dez anos depois quer por sua amplitude, por sua riqueza de informações, pela variedade de suas sugestões, é já obra de mestre. 36
De semelhante opinião é Luiz da Câmara Cascudo. Numa carta enviada a Ademar
Vidal, Câmara Cascudo destaca os escritos de Vidal como um trabalho “sedutor de
observação e reminiscência; não precisa de arauto nem de passamento [...] A obra Caju e
cachaça, por exemplo”:
35 Jornal da Noite, de São Paulo, 6 de junho de 1933. Recorte de Jornal cedido por Alice Vidal. 36 FREIRE, G. Novo trabalho de Ademar Vidal. Recife, outubro de 1944. Série Diversos, 1930/85, pasta 1. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP).
33
É um documentário, maciço e lógico [...]. Na edição do meu livro Geografia dos mitos brasileiros, editado pela José Olympio, reaparecem os mitos paraibanos de autoria de Ademar Vidal. Você é um permanente nos meus pobres livros provincianos, embora cariocas e paulistas editorialmente. É um velho bem- querer que o tempo reforça em admiração natural.37
Dialogar com os valores culturais de sua época e afirmar seu vínculo com a realidade
social, eis o caminho palmilhado por Ademar Vidal. Assim, vemos surpreender o jornalista
que se faz ficcionista em 1922, oferecendo aos leitores a revista A Novella , por onde
publicaria seu primeiro livro, intitulado Fome,38 que marcou a última publicação dessa revista,
percebendo a importância que tinha a imprensa de estabelecer maior contato com o povo,
como uma grande expressão da cultura popular na Paraíba.
Capa da primeira edição de A Novela, 1922.
Para os idealizadores de A Novella, Ademar Vidal e Antenor Navarro, “um dos
principais objetivos é interferir modesta e lealmente na educação intelectual da
nacionalidade”. Percebe-se aí o esforço da conquista de Vidal e de Navarro, da possível
recepção do público-leitor. Na palavra de Ademar Vidal, A Novella é “a precursora no
Nordeste, do Movimento Modernista promovido em São Paulo”. A revista marcou época nos
anais do jornalismo da capital, pela sua feição literária, sendo colaboradores Alcides Bezerra,
37 Carta dirigida ao “Jovem amigo velho” Ademar Vidal, como era chamado por Câmara Cascudo. Natal, 4/7/1977 e 20/8/1977. Série Correspondências, 1947/87, pasta 3. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP).
34
que publicou Maria da Glória , José Américo de Almeida com Reflexões de uma cabra e
Carlos Dias Fernandes publicando Algoz de Branca Dias. Devido às dificuldades financeiras
de seus fundadores, como afirma Ademar Vidal em depoimento39, “saíram apenas quatro
exemplares, contudo, o objetivo dessa revista foi concretizado: mostrar o papel da Paraíba no
Nordeste com um movimento modernista, audacioso, estranho aos costumes locais e
regionais”.
Além dos textos apresentados pelos colaboradores, A Novella trazia Notas e
Correspondência de vários autores dos diversos Estados do Brasil e também da América,
Europa e Ásia, conforme aponta o editorial40 referente à primeira edição da revista.
38 VIDAL, A. Fome. João Pessoa, Edição Filippéa, 1922. 39 Ademar Victor de Menezes Vidal. “Depoimento”, 1979. VGV/CPDOC – História Oral, 1983, Convênio UFPB/CPDOC. P.9-10. 40 Devido à ilegibilidade do documento foi feita a sua transcrição que segue após a cópia do original.
35
Editorial referente à 1 edição de A Novella.
36
Direção de ADHEMAR VIDAL A Novella – Secretár io Antenor Navarro Caixa postal n.18 Primeira e única publicação em seu gênero no norte do Brasil
Um dos nossos objetivos é influir modesta e lealmente na educação intelectual da nacionalidade.
Recebemos toda e qualquer colaboração, quer de pequenas notas, quer propriamente de novelas, que, quando publicadas serão devidamente remuneradas.
Fica, entretanto, ao nosso critério a escolha na publicação, sem que tenhamos de devolver os originais Todos os trabalhos devem vir datilografados, com a assinatura e o endereço do autor, para que possam ser aceitos.
Cada edição é de 5000 exemplares tendendo, porém, a aumentar a tiragem, uma vez que A Novella obtenha grande divulgação. Damos inteira liberdade de pensamento aos nossos colaboradores, desde que sejam observados os preceitos de moralidade. No suplemento o leitor encontrará notícias curiosas sobre artes e letras, além de assuntos de plena atualidade. Publicaremos em cada edição uma novela inédita da lavra de conhecidos escritores. Correspondentes d’Novella: No Brasil Pará, Raimundo Morais; Amazonas, Leopoldo Peres; Piauhy, Vieira da Cunha; Maranhão, Domingos Fernandes; Ceará, Leonardo Mota; Recife, Lucilo Varejão; Rio Grande do Norte, Luiz da Câmara Cascudo; Alagoas, Jayme d’Altavilla; Sergipe, Clodomir Silva; Bahia, Homero Pires; São Paulo, Monteiro Lobato; Espírito Santo, Carlos Xavier; Minas Gerais, Roberto de Vasconcellos; Santos, Mário Pedrosa; Rio de Janeiro José Vieira; Santa Catarina, Paulo de Lucena; Rio Grande do Sul, Celso Alfonso Pereira. Na América Argentina, Jose Ingenieros; Uruguay, Luiz Guimarães Filho; Peru, Ruy Pinheiro; México, D Antônio Caso; Whashyngton, Oliveira Lima; Nova York, Gilberto Freire, Chile, Cardoso de Oliveira; Quito, Julio Endar.
Na Europa Londres, Antonio Torres; Paris, Castello Branco Clark; Roma, Teixeira Leite Filho; Lisboa, Aroldo Soares; Bruxellas, A de Magalhaens; Berlin, Muniz de Aragão; San Sebastian, Vinício da Veiga; Bremen, Idephonso Falcão. Na Ásia Pekin, Felippe Silvano Brandão; Japão, Jorge Olyntho de Oliveira. Transcrição do editorial referente à 1 edição de A Novella
A multiplicidade de caminhos, tendências e estilos se cruzam com a produção literária
de Ademar Vidal. Ao lado de obras marcadamente políticas, escreve outras de exploração do
folclore, evidenciando a sua ligação com a cultura popular. Influenciado pela literatura de
37
Monteiro Lobato, Ademar Vidal escreve um curioso trabalho intitulado “Jeca Tatu
pescador”41 e o remete ao escritor de Taubaté.
Em crônica, Ademar registra:
Na maré do Sanhauá eu costumava fazer meus passeios de canoa [...].Quando não saltava na Stuart ou na Tiriri, ficava pelas bordas do mangue e era uma festa acompanhar os pescadores de aratu e caranguejos, o chão forrado de pequenos buracos que davam a impressão de negro lençol de rendas feitas a capricho. Apenas procurei descrever o quadro e foi o bastante para Lobato entrar em correspondência animada.42
O retorno foi surpreendente. De acordo com o jornal A União da Paraíba, Ademar
Vidal, “uma das inteligências mais promissoras da moderna geração de homens de letras do
Norte, recebeu a missiva desse grande escritor paulista, tão interessante pelos conceitos
emitidos em torno do assunto, quanto honrosa para os créditos literários do nosso jovem
companheiro”. A nota divulgada no jornal A União registra ainda o depoimento de Monteiro
Lobato, que nos permitimos citar na íntegra:
São Paulo, 7-2-920 Ilmo. Sr. Adhemar Vidal – Saudações. Recebi o seu Jeca-tatu Pescador, valioso depoimento que vem confirmar a minha fotografia. Infelizmente, meu caro, por mais que o neguem, ele é isso mesmo que, lá, a leste, a oeste.
Vi, pela crônica, que o amigo está talhado para cooperar conosco na Revista Brasil, onde procuramos congregar todos quantos têm a inteligência lúcida e a coragem da verdade. Na primeira oportunidade transcreverei seu artigo na Resenha porque ele, além do valor literário de coisas sinceramente pensadas e lisamente ditas, tem o valor dum documento. Outras coisas que escreva assim-coisas em que não predomine apenas a fantasia, mas haja um reflexo da terra, do homem e das coisas daí, mande-nos sempre.
O mal do Brasil é desconhecer-se a si próprio. O programa da Revista do Brasil é: Conheçamo-nos.
Trabalhemos, pois todos nós, de norte a sul nesta árdua tarefa de criar o espelho onde possamos ver -nos mais espelho fiel, que não entorte as imagens nem as aformoseie.
Adeus, disponha sempre de MONTEIRO LOBATO43.
Está fora de dúvidas que, ao lado das suas posições e ações, Ademar Vidal se
beneficiou do momento em que viveu, construindo obras marcantes. Para entendê-las, torna-
se necessária a busca dos seus motivos íntimos e dos seus impulsos.
41 Esse texto foi publicado originalmente na Revista do Brasil em 1920. Não obstante pesquisas intensivas, não foi possível situá-lo através desse periódico que se editou em São Paulo naquela época. 42 Recorte de jornal, cedido por Alice Vidal.
38
As investidas de leitura da produção crítica, focalizando a obra de Ademar Vidal,
evidenciaram a riqueza e relevância contidas nessa produção analisada. Esses aspectos
possivelmente contribuirão para os caminhos analíticos deste trabalho. Cabe dizer ainda que o
conjunto da produção aqui mencionada e o nosso contato com a fortuna crítica do autor,
consistiram em um dos fatores de estímulo para levarmos adiante um projeto de pesquisa e
apreciação da sua obra. Esse conjunto, nos seus aspectos singulares, deverá fortalecer nossas
discussões a respeito da sensibilidade de Ademar Vidal para com a cultura popular � uma
diferença marcante entre os escritores paraibanos à época �, considerando o tratamento dos
registros que fez da cultura oral popular, em que procurou analisá-los no interior dos grupos
sociais dos quais emergiam, numa aproximação cada vez maior com a moderna antropologia
cultural.
1.5 Por dentro dos inéditos
O povo é o grande livro brasileiro onde nem toda gente lê.
Ademar Vidal, Escritos diversos
As histórias de vida, os costumes, as crenças religiosas, as maneiras de agir, pensar e
sentir são alguns dos temas presentes nos inéditos de Ademar Vidal. É notável a ênfase sobre
os estudos acerca da escravidão na Paraíba, a abordagem de temas polêmicos como raça e
miscigenação e importância do negro, através de seus costumes e de sua cultura, na formação
sociocultural da sociedade brasileira.
Homem culto, escritor sensível, teve muitas vezes os olhos voltados para a cultura do
povo, seus costumes e expressões. Desde muito cedo Ademar travou contatos diretos com
cantadores e recitadores de “bocas anônimas”, com o vaqueiro, cangaceiros e mestres da
escultura, material ou simbólica, que ajudam a modelar o Nordeste.
Chegando mais perto da produção inédita de Ademar Vidal e examinando seu
interesse por um tipo de literatura complexa, logo singular, percebemos a acentuada paixão
por contos, lendas, provérbios e adivinhas, jogos e danças, ritos e mitos, enfim as diversas
manifestações simbólicas capazes de traduzir uma identidade regional. Entrando ainda mais
na intimidade do autor, notamos que cada página escrita representa uma porção organizada,
onde há de tudo: anotações manuscritas e à máquina, emendas, recortes, colagens de papéis
43 Carta de Monteiro Lobato para Ademar Vidal, publicada no jornal A União. Série Recortes de Jornais,
39
escritos, enfim uma mistura de elementos que, em conjunto, dão o efeito de um arranjo
aparentemente anárquico. Nesse primeiro impacto, vemos que o ato de escrever, para nosso
autor, significa deleitar-se com a ocupação, por isso ele volta à mesma página modificando-a
ou acrescentando-lhe novos elementos, novas idéias, o que indica que para ele o ato de
escrever tem um certo encantamento.
Ademar Vidal não se preocupou em estudar profundamente a cultura popular
brasileira, no conjunto, o que aconteceu foi uma verdadeira valorização e divulgação das
tradições culturais populares. Deleitava-se ao coletar a tradição oral, sem, contudo
constranger o homem simples, incorporando ao repertório do seu público-leitor os signos e as
imagens de um estilo de vida peculiar.
Na linha de estudos afro-brasileiros, Ademar Vidal chegou a participar do Livro do
Nordeste, em 1925, alusivo ao centenário do Diário de Pernambuco, e do Primeiro Congresso
Afro-Brasileiro de 1934, também no Recife, organizados por Gilberto Freyre. No primeiro,
Ademar apresenta o texto “Um século de vida paraibana (1825-1925)”,44 e no que se refere ao
Primeiro Congresso Afro-Brasileiro, Ademar expõe seu texto “Três séculos de escravidão na
Paraíba”.45 Nessa linha, ainda situam-se os inéditos O escravo sob o regime econômico
(etnografia e patriarcalismo); Religiões africanas; Práticas e costumes afro-brasileiros.46
Seguindo as trilhas dos inéditos de Ademar Vidal, percebemos que ele observava e
anotava sobre a “diversidade folclórica do sertanejo”, num trabalho que vinha realizando entre
1920 e 1940. Com a participação do prefeito de Taperoá Irineu Rangel de Farias, Ademar
buscou em 1942 preencher o questionário intitulado Inquérito entre os sertanejos, ocupado
em fazer a demonstração documentada.
Houve uma série de razões para esse interesse pela vida dos sertanejos, em um
momento específico de reconstrução do mundo que se aproxima de nós, observa Vidal em
“Estudos de história social do Nordeste”.47 Os usos e costumes desse povo, talvez se vejam
mais marcadamente na obra do autor que admira a tudo que se referisse aos modos de vida do
sertanejo e sugere que nenhuma comunidade pode viver sem poesia popular. “Ela é a mostra
1924/46, pasta 1. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 44 VIDAL, A. Um século de vida paraibana (1825-1925). In: Livro do Nordeste. Recife: Massangana/ Fundação Joaquim Nabuco, 1978. p.140 - 41. 45 VIDAL, A. Três séculos de escravidão na Paraíba. In: Livro do Nordeste. Recife: Massangana/ Fundação Joaquim Nabuco, 1978. p.105 - 152. 46 Trino sem referência de data, porém encontra-se no Arquivo Ademar Vidal, no IHGP, Série Produção Literária: originais de livros, Pasta 9. 47 VIDAL, A. Estudos de história social do Nordeste. Inédito, s.d., datilografado. Série Produção Literária: originais de livros, Pasta 9 (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP).
40
que há de original na alma do povo”.48 Foi nessa atmosfera que ele principiou a recolher
dados sobre cultura popular e, no caso dos sertanejos, o objetivo é o de ilustrar os traços
particulares da vida, que fazem parte de um todo, expressão do espírito de uma região. O
resultado desse Inquérito permeia vários textos de Ademar Vidal e traz inevitavelmente a
marca de um tempo. Ainda assim aponta o mesmo sentido, e este não variou, porque, como
observa Ademar Vidal, “a atualidade que vivemos sem dúvida vem de um passado que se
prolonga”.49
Sabe-se que marchando sobre as terras que iam sendo conquistadas como território, as
pessoas experimentavam novas formas de ocupação do solo e de convívio social. Assim, o
Sertão paraibano absorvia, além dos imigrantes europeus que iriam exercer a direção das
atividades econômicas e administrativas, também os africanos, escravos trazidos para o
trabalho. Conforme Ademar Vidal, a população se reproduzia, envolvendo maior número de
mestiçagens entre brancos, índios e negros. Deslocando-se sobre o sertão que ia sendo
conquistado, iam-se desenvolvendo novas práticas culturais e sociais. Os escritos do autor
qualificam a presença do escravo negro no sertão paraibano, com base em inventários e
documentos cartoriais. Em Estudos de história social do Nordeste, a evocação fundamental é
o modo de vida do sertanejo, em que Ademar volta-se para as mudanças sociais ocorridas no
Sertão, enveredando pela descrição das edificações residenciais, tipos de utensílios
domésticos, alimentação e formas de dormir, enfim a vida sertaneja na “intimidade
doméstica”.
Para Ademar Vidal, as pesquisas contribuem para esclarecimentos sobre a formação
de um povo, seus estilos de vida, detalhes, tudo quanto atestam, “esforço este que cabia à
Sociedade paraibana de folclore”, porém, em “luta individual” foram feitos inquéritos nas
cidades e no interior, “recolhendo informações preciosas”, que resultaram no inédito
“Visitação ao interior do Nordeste”.50 Para ele, o contato com “o material folclórico
nordestino seria uma das formas de se evitar a massificação e a colonização”. A massificação
não se refere apenas a um conjunto de pessoas que promove alguma transformação nas
sociedades; a massificação é um tipo de comportamento coletivo dentro do qual as pessoas
não podem agir isoladamente, elas movem-se, dispersam-se de maneira induzida. Além disso,
Ademar conhecia a necessidade da descolonização que existia em relação aos dois grandes
48 Ibidem. 49 Ibidem.
41
centros culturais, Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente o Rio de Janeiro, pela forte
tendência que a República herdou do Império.
A postura de escritor moderno, como a de Ademar Vidal, evidencia que todos esses
aspectos não lhe passaram despercebidos. Sentia que da idéia do modernismo já estava
impregnado, e logo haveria “de arrebentar na província”. Afinal, a Paraíba é espiritualmente
moderna diz ele enfaticamente em Estudo de história social do Nordeste.51
Ademar Vidal fixou seus estudos histórico-literários no caldeamento de trocas e
confrontos entre culturas populares no nordeste. As lendas, a narração de festas do povo, as
danças, os usos e costumes, a preservação da cultura afro-brasileira no Sertão, interpenetração
cultural das cantigas populares, sincretismo afro-brasileiro dos Caboclinhos, manifestações da
Nau Catarineta e Maracatu, português arcaico do Congo, fusão das Cavalhadas com as festas
religiosas do início do século XX, presença das Cambindas africanas nas ruas da capital,
deram-lhe as bases para a compreensão da forma como se processa a interação ente culturas.
Nesta altura é necessário afirmar que tomamos os Inéditos de Ademar Vidal como um
campo específico de investigação, percebendo que eles reclamam uma confrontação de
métodos e tendências, implicando exame crítico. Buscamos aqui algumas passagens
envolvendo o discurso histórico-literário da primeira metade do século XX na Paraíba.
A originalidade do pensamento de Ademar Vidal pode ser expressa em uma visão
distinta de um culturalismo conservador dado seu caráter revolucionário, como admitiu certa
vez, ao se referir a ele mesmo e a seus amigos Mário Pedrosa e Antenor Navarro. Escreve
Vidal: “Estamos ligados por uma dessas situações intelectuais, nossas leituras eram francesas,
líamos todos os jornais da oposição e no fundo, éramos anarquistas”.
Possivelmente, que ao se referir ao seu próprio ânimo anárquico e ao dos amigos, em
Escritos diversos ,52 Ademar Vidal quisesse dizer que se tratava de uma visão mais libertária
contra a “opressão do ideal organizador da sociedade”, clamando por uma cultura de
emancipação do indivíduo. Deste modo, em vez de “anarquismos”, ele revela qualquer coisa
de substancialmente parecida com o pensamento místico e fraterno de Tolstoi; autor a quem
tanto admirava.
50 Ademar Vidal destaca que andou “quase duas semanas pelo interior de Pernambuco e Paraíba colhendo hábitos e costumes dos sertanejos’’ entre 17 e 27 de abril de 1935. Cf. Vidal, A. “Visitação ao interior do Nordeste”. (Inédito) s.d., datiloscrito. Série Artigos/Textos, pasta 11. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 51 Inédito, s.d. (datilografado, pasta 9). 52 VIDAL, A. Escritos diversos. (Inédito) s.d. Manuscritos. Série Diversos, pasta 11. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP).
42
O fortalecimento das raízes locais, os costumes, a identidade, o folclore brasileiro são
aspectos que fazem eco com análises como a de Ademar Vidal, que distinguiu a
multiplicidade de significados observando o contato direto do indivíduo com todo o cotidiano
em que vive. Ampliando sua perspectiva de interpretações e comparações, Vidal estudou, no
contexto histórico e social do Nordeste, algumas situações que corroboram a idéia de que os
caminhos da penetração sertaneja implicaram no esmagamento do nativo selvagem.
Com um grau variável de encantamento e realismo, os inéditos de Ademar Vidal
apontam para uma reflexão dos problemas sociais, retratando o processo de revolução de toda
a estrutura da paisagem açucareira, latifundiária e patriarcalista da Paraíba, o que inclui os
poderes absolutos do Senhor-de-Engenho; as relações entre negros e brancos, a mestiçagem.
Vê-se, nitidamente, a situação patriarcal - patriarcalista descrita na obra do autor, e quando a
questão é a seca as preocupações sociais de escritor defluem com mais intensidade. Em
Intimidade com a seca, 53 Ademar Vidal relata a viagem que realizou no interior da Paraíba,
como emissário do interventor Antenor Navarro.
Deve ser assinalado que para Ademar Vidal a seca é sempre fenômeno preocupante,
pois facilita a evasão, ou seja, abandono de lar, constituindo-se um fenômeno de densidade
demográfica e cultural. O autor evidencia que “os costumes derivados do mal telúrico se
arraigaram, criando raízes difíceis de extirpar”.54
O inédito E ainda o Nordeste55 marca os estudos sobre “a seca e seus rastros de
tragédia”. É composto de treze capítulos, nos quais destacam-se: A mística da água; Presença
da seca e seus resultados maléficos; Idéias sobre a salvação do problema; Folclore da seca e
escravização dos flagelados, entre outros. Na Apresentação da obra, Ademar Vidal expressa
sentimento por muito amar à sua terra. Vejamos:
A nossa contribuição se tiver algum mérito, credita-se na conta do amor que permanece intacto no espaço e no tempo por tudo quanto diz respeito à Paraíba. Por esse amor, dada a incompreensão de alguns, apesar de carinho manifestado na assistência, é como algo de sagrado.56
53 Intimidade com a seca. (Inédito), 1942. Datilografado. Série Produção Literária, pasta 9. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 54 Ibidem. 55 E ainda o Nordeste. (Inédito) 1940. Datiloscrito. Série Produção Literária, pasta 10. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 56 Ibidem.
43
A saudação em forma de desabafo repete-se em Latifúndio 57: “neste começo de ano
quero saudar a Paraíba e dizer-lhe que minha separação é apenas geográfica. No alvorecer de
1951 novas conquistas são previstas para o nosso povo”.
Na linha dos inéditos, destaca-se também, ainda Binômio imbatível: caju e cachaça58,
onde o autor evidencia a substituição dos alambiques de barro para os de cobre, para
fabricação da cachaça. Assim como Gilberto Freyre em Açúcar (seu quarto livro, publicado
em 1939), Ademar Vidal procurou retratar a importância do cultivo da cana-de-açúcar,
ressaltando que o açúcar permitiu ao Nordeste se consolidar economicamente no cenário
nacional.
No inédito Dentro (e fora) do Brasil: curvas do tempo59, o autor aborda figuras
populares que circulavam na capital paraibana por volta de 1920, não se preocupando em
tratar especificamente a existência de “tipos diferentes”, mas indicar, sobretudo, o caráter
ambíguo da vida cultural. Ademar Vidal salienta que a “cultura é um termo que se põe em
ação permanentemente”, sendo modificado por pessoas que “desempenham papéis
específicos”. Cremos que, com a exibição de figuras populares, o interesse maior de Ademar
Vidal é guardar em narrativas a memória popular, isto é, os fragmentos da história do
cotidiano dos tipos de rua, “calcada em injustiças”. Nisso reside a força persuasiva dos seus
escritos, com o olhar de sabedor dessa cultura e a consciência histórica valorizando as pessoas
mais ignoradas, por serem pobres, ou negras, ou figuras de rua, em histórias convencionais.
O segundo grupo de inéditos abrange as produções de História e especialmente a
história da Paraíba, a origem do nome da cidade, descrição das casas antigas, a cerâmica
sertaneja, o tijolo para ladrilho, a cobertura das casas, alpendres, rodapés de um metro, os
armadores para rede, a iluminação das casas, enfim os usos e costumes do sertanejo.60
No curso da travessia dos inéditos de Ademar Vidal, deparamos com “A veia literária
de um autor”. Seus escritos têm sido expressão do Nordeste através de um republicano da
Paraíba em que, desde os dias de mocidade, procurou interpretar sua gente e seu tempo com
espírito humanista cultivado tanto no Curso de Direito na Faculdade do Recife, como na
57 VIDAL, A. Latifúndio. . (Inédito) Rio de Janeiro, 1951. Datiloscrito. Série Produção Literária, pasta 10. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 58 VIDAL, A. Binômio imbatível: caju e cachaça, 1940. (Inédito) s.d. Série Produção Literária, pasta 9. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 59 VIDAL, A. Dentro e “fora” do Brasil: curvas do tempo, 1940. (Inédito) s.d., série Produção Literária, pasta 1. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 60 Vale ressaltar que muitos dos temas tratados nesse Inédito (sem denominação) encontram-se também no Guia da Paraíba - itinerário de história e geografia, de política e sentimentalismo - de Ademar Vidal, atendendo solicitação de Epitácio Pessoa. C.f. VIDAL, A. Guia da Paraíba, Rio de Janeiro, 1943.
44
Paraíba. Esses requisitos conduziram Ademar Vidal à Literatura a que pertencem sete
inéditos, com denominações por vezes desencontradas, exigindo, por isso, um estudo mais
detalhado.
Sabe-se que os acontecimentos suscitados em São Paulo em torno da proposta de
desorganização consciente da arte produzida até então atingem muitos dos escritores no
Nordeste, entre eles Ademar Vidal, seja pelo contato com a proposta
regionalista/tradicionalista de Gilberto Freyre, seja pelo contato direto com os modernistas
Oswald de Andrade, Paulo Prado, Guilherme de Almeida e, especialmente, Mário de
Andrade. Por essa época, Ademar já palmilhava existências diferentes, expressando uma
atitude “antipassadista e premonitória da revolução literária dos anos 20 e 30”, para utilizar a
expressão de Alfredo Bosi.
Os inéditos mostram bem essa questão na sua vida de escritor comprometido com a
cultura do povo e mantendo contato com a participação popular. Os inéditos de Ademar Vidal
revelam que, desde cedo, ele aprendeu a criar predileções pelo afro-brasileiro e servis,
principalmente Práticas e costumes afro-brasileiros61 saboreando-lhes as expressões, os usos
e costumes, retendo em menino, que se tornaria escritor, uma identificação que é o viés pelo
qual ele vê o típico popular e viria a ser característica de sua expressão literária.
Ademar Vidal atentava para os processos simbólicos, e as condições concretas de
sociabilidade da vida popular e todo o caminho de escritor seria marcado por uma visada
interior, graças à sua afeição para com os elementos da cultura popular e exterior, mediante
compreensão e descrição construídas a partir de histórias de vida, de documentos, de
inquéritos e de trocas afetivas entre as personagens sociais e também à estreita relação com
poetas populares, entre eles, João Barbosa da Silva, que Ademar ouviu no Engenho Novo em
26 de julho de 1939.
Em um manuscrito de 14 páginas, Ademar Vidal registra os versos do poeta popular e
narra o encontro: “João Barbosa da Silva entrou e sentou-se à mesa do almoço. Convido-o a
se servir, agradece: – ‘Já estou de estômago forrado’ e animado vai logo entregando um
caderno com versos que ele compôs sobre História do mundo”. Segue-se o diálogo:
“– Você onde aprendeu isso?
– Foi ouvindo doutor, na escola de Pilar.”
61 Nesse Inédito que iremos analisar no Capítulo III, Ademar Vidal apresenta os aspectos da cultura afro-brasileira, relacionando os elementos coletados na pesquisa que realizou no Estado da Paraíba com um aspecto mais global da cultura popular.
45
Dono de boa memória, como observa Ademar, João Barbosa da Silva escreveu longo
poema contendo o que aprendeu: “simplesmente uma geografia quase inteira do mundo”. Do
Coco e da Embolada, muitos compositores populares brasileiros têm se utilizado. “O Coco
sem coreografia é a Embolada, e João B. da Silva aproveita-se disso mostrando uma criação
digna de nota”.62
Do que foi explicitado por Ademar Vidal, podemos entender que João Barbosa da
Silva vai construindo uma geografia que pode não valer como verdade científica, mas que,
nem por isso, é menos verdadeira, já que é rica porque intensa e pessoal de percepção do
mundo. Seus versos transitam do espaço vivido – a escola de Pilar – ao espaço imaginado.
Assim, a palavra movente dos “versos” se transforma e se adapta, apresentando um
conhecimento que opera pela intimidade com a natureza.
Pode-se dizer, então, que essa geografia, contada em versos por João Barbosa da Silva
é uma metáfora do conhecimento que se faz pela intimidade com a natureza, compondo com
seus signos e símbolos, uma verdade coerente, porém as coisas verdadeiras podem não ser
verossímeis. Assim, o poeta popular segue o discurso da imaginação, mas legitima o modo
livre de tratar o fluxo da memória, tanto que “pediu a um dos circunstantes que lesse o índice
de um dos livros que Getúlio Vargas publicou e foi a conta, abriu a boca no mundo e começou
a cantar”:63
Sou eu João Barbosa Um poeta popular Me interessei a versar Minhas rimas caprichosas Estas palavras ditosas Quero guardar na história Vou ver se ganho vitória Como um poeta trovador Meu improviso de valor Feito de minha memória.
Os versos engendrados e cantados por João Barbosa da Silva, parecem constituir um
fenômeno que casa memória individual com história. Ademar coloca isto em evidência e
aproveita o momento para captar a essência da linguagem falada, seus ritmos e modulações, e
afirma: “João Barbosa da Silva é um homem do povo, sempre munido de um ganzá faz versos
62 Cf. VIDAL, A. Versos de João Barbosa da Silva. (Inédito) 1939. Série Produção Literária, pasta 11. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). 63 VIDAL, idem.
46
que contam a geografia do mundo”.64 Neles perpassam o pulsar e a sonoridade das palavras
ouvidas no sertão paraibano.
As páginas mais atraentes dos escritos de Ademar Vidal, considerando aqui não
apenas os inéditos, mas a obra literária como um todo, são aquelas em que o autor tenta
elucidar as relações mais simples da vida, ou seja, os costumes do povo, porém encontrando-
se aí o seu vigor, isto é, práticas sociais e simbólicas da sociedade paraibana como reveladoras
das condições concretas de sociabilidade da vida popular.
64 Idem, ibidem.
47
2 A pretexto da modernização
A história deixa de ser a única soberana, a guardiã do único sentido legítimo dos acontecimentos, e multiplica-se nas histórias possíveis, em confronto e litígio, que buscam e defendem sua mais-verdade (a história oficial, a dos vencedores, a dos vencidos etc.).
Motta Pessanha, Cultura como ruptura 1987. 2.1 A cultura popular e os diversos olhares
Para entendermos, de fato, as manifestações culturais populares, torna-se necessário
fazer uma revisão conceitual, na qual se esclareça o que efetivamente implicam os conceitos
de cultura e cultura popular sem pretender aqui esgotar o tema, limitando-nos a salientar as
críticas feitas em favor e contra tais interpretações.
A cultura popular se institui basicamente pela tradição oral, “que se mistura com a
cultura de massa; esta com a cultura erudita e vice-versa”, como aponta Bosi.65 Para o autor, a
definição de cultura popular depende da escolha de um ponto de vista e, em geral, implica em
uma tomada de posição.
A expressão cultura popular é realmente de difícil definição, salienta Chauí, no entanto
a autora faz um retrospecto da cultura popular a partir do surgimento da concepção moderna
de cultura e seus laços com a Civilização e História. Nesse percurso, ela aborda a cultura
popular como “um conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência que
possuem lógica própria, distinguindo-se da cultura dominante exatamente por essa lógica”. 66
Tentando fugir de alguns equívocos bastante freqüentes na conceituação de cultura
popular, como o de pensá-la como sobrevivências do passado no presente, como práticas
imutáveis, Marcos Ayala e Maria Ignez Ayala procuram indícios do que vem a ser cultura
popular, tratando-a como “uma prática própria de grupos subalternos da sociedade”. Para os
autores, “esta característica tem implicações importantes na análise das condições de
produção da cultura popular”. 67
65 Bosi, A. Plural, mas não caótico. In: Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. p.7. 66 CHAUÍ, M. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. p.25. 67 AYALA, M; AYALA, M.I. Cultura popular no Brasil: perspectiva de análise. São Paulo: Ática, 1995. p.9.
48
As práticas sociais “são sempre sínteses de múltiplas determinações e sempre
necessariamente simbólicas”, como aponta Eunice Durham. 68 Logo, serão estas práticas que
vão criar o universo cultural de um povo dentro de um determinado espaço-tempo social.
Stuart Hall,69 nos seus estudos sobre cultura popular e identidade, evidencia que
atualmente são reconhecidas as sociedades capitalistas industriais como lugares de divisões
desiguais, no que refere a etnia, sexo, divisões de gerações e de classe. A cultura é um dos
principais locus em que são estabelecidas tais divisões, mas também em que elas podem ser
construídas. Segundo Hall, é na cultura que se dá a luta pela significação, na qual os grupos
subordinados tentam resistir à imposição de significados que sustentem os interesses dos
grupos dominantes.
De todo modo, na linha geral das concepções sobre cultura popular podemos dizer que
ela é uma cultura desagregada, se entendida como sedimentação de culturas de épocas
passadas ou, como a entende Gramsci, “um aglomerado de fragmentos de todas as concepções
do mundo e da vida que se sucederam na história, sendo que tão-somente no folclore – que
está sempre ligado à cultura da classe dominante – podem ser encontrados os documentos que
sobreviveram da maior parte dessas concepções”. 70
Como se pode ver, Gramsci evidencia que o folclore está ligado à cultura da classe
dominante, isto é, à “cultura hegemônica e, a seu modo, dela tem retirado motivos que se têm
inserido em combinações como as tradições precedentes”.71 O legado da tradição gramsciana,
que nos chega por meio dessa idéia, indica a diversificação de concepções, motivos e
aspirações no interior dos diferentes grupos e classes sociais, considerando que as relações
sociais carregam consigo um tempo histórico porque contêm, ao mesmo tempo, o real e o
possível, o revelado e oculto.
Nesse sentido, podemos dizer como Satriani que, “se a característica dos fatos
folclóricos é dada pela sua diversidade, entende-se que eles sejam compreensíveis somente
quando referidos aos produtos de cultura hegemônica em relação aos quais são, precisamente,
diversos”. 72 As concepções, motivos e aspirações dos diferentes grupos e classes subalternas
levam a diferentes resultados históricos. Assim, como reforça Satriani, é necessário
compreender que “as contradições que dizem respeito aos materiais folclóricos são superadas
68 DURHAM, E. A dinâmica cultural na sociedade moderna. Arte em revista, 2(3), 1980. p.13-14. 69 HALL, S. Da diáspora: identidades e meditações culturais. Trad. Adelaine La Guardia R. Et. al. Belo horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. 70 GRAMSCI, A. Literatura e vida nacional. Trad. de Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. p. 184. 71 Idem, ibidem.
49
por uma visão de conjunto, em razão da qual são ressaltadas as mobilidades através das quais
as classes subalternas podem vir a tornar-se hegemônicas”.73
Para o fio de nossa exposição, importante sublinhar que as chamadas classes
subalternas possuem uma cultura bem peculiar, não sendo, pois, um simples reflexo das
classes dominantes. Essa cultura possui um arranjo coerente que lhe serve de apoio e que não
age apenas com porções da realidade, mas vê a sociedade como um todo orgânico. Esse
arranjo funciona para os grupos e classes dirigentes como fatores de ligação interna, enquanto
operam sobre os grupos e classes subalternos como força política externa e logo como
elemento de subordinação a uma “hegemonia exterior”, que limita o pensamento original das
classes populares.
Tal idéia prefigura a diversidade das situações de subalternidade, a sua condição
histórica, cultural e política, o que nos leva a entender a diversificação de concepções,
motivos, aspirações no interior dos diferentes grupos e classes sociais.
Sabe-se que o crescimento cultural das classes dominantes, isto é, o crescimento de
relações de hegemonia e contra-hegemonia é, muitas das vezes, a causa da desagregação
cultural das classes subalternas. Essa relação de dependência entre as duas culturas revela
uma subordinação social e econômica, contudo, essa subordinação cultural das classes menos
favorecidas é apenas na sua aparência, um problema cultural, exigindo uma desobrigação de
ordem cultural, isto é, uma ação sobre o campo e com os instrumentos escolhidos pela cultura
dominante. Chauí vê que, por tratar-se de um conflito entre hegemonias, o campo de ação é
sempre um campo político. Para ela, “todo processo hegemônico precisa ser especialmente
atento e capaz de responder às alternativas e oposições que questionam e desafiam sua
dominação”. 74
Gramsci observa que a não separação do espaço político e cultural é que nos permite
ter uma visão dialética do processo hegemônico da classe dominante e atribui à instância
político-ideológica a dupla função de preservar e propagar as estruturas capitalistas. Para ele,
a contradição que se manifesta no domínio hegemônico da classe dominante com a mediação
do Estado pode ser explorada de maneira consciente pelas classes subalternas. Desse modo, as
circunstâncias político-ideológicas, na condição de instrumentos de fixação de conteúdos
ideológicos, estão sensíveis às modificações da relação de forças na luta pela hegemonia
72 SATRIANI, L.M., Antropologia cultural e análise da cultura subalterna. São Paulo: Hucitec, 1986. p.29. 73 Ibidem, p. 33. 74 CHAUÍ, M. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 23.
50
sobre a sociedade, abrindo espaços para as classes subalternas elaborarem e divulgarem uma
contra-ideologia, concretizando a possibilidade de instituição de uma nova hegemonia.
Quando Gramsci estabelece o conceito de hegemonia, ele tem em mente que ela é a
forma assumida pela cultura numa sociedade de classes, entendendo que a hegemonia
corresponde às forças sociais e materiais, intensas que são os elementos necessários ao
processo hegemônico donde “as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a
forma”.75 Depreendemos daí que noção de hegemonia serve para indicar que o decisivo, na
sociedade de classes, não é somente o sistema de idéias e crenças, mas todo o processo social
vivido e organizado por significados e valores específicos e dominantes e, enquanto um
processo amplo, hegemonia designa o que é cultura na sociedade de classes.
À parte as implicações sociais, políticas, econômicas, ideológicas, que entram como
componentes na formação do conceito de cultura e de cultura popular, devemos imprimir uma
ação simbólica e material do cotidiano no sentido de facilitar a percepção do modo como as
pessoas dão sentido à sua vida e ao mundo. No caso da cultura popular, como aponta Bosi,
“não há uma separação entre uma esfera puramente material da existência e uma esfera
simbólica, pois cultura popular implica os diferentes modos de ser e de viver”. 76
No campo das distinções entre o que pode ser chamado de popular, tendo sua oposição
ao que não o é, existem várias interpretações que buscam estabelecer limites com base
principalmente na produção e consumo. Algumas interpretações apontam para o processo de
apropriação a partir de que um grupo apropria-se das práticas culturais de outro grupo
ajustando-as aos seus interesses; outras apontam para os processos produtivos e outras, para o
consumo da produção. Entendida a cultura, como parte das diferentes manifestações das
experiências de diferentes grupos face à vida cotidiana, há que considerar que sua
característica fundamental, que a diferencia das demais culturas, é sua possibilidade de ser
organizada em torno da convivência diária das pessoas e de suas práticas como algo dinâmico,
isto é, práticas culturais populares consideradas como processo. Nesse sentido Adorno destaca
que o conteúdo da cultura “não reside exclusivamente em si mesma, mas em sua relação com
algo que é o seu reverso, o processo material da vida”. 77 Podemos dizer então que nas
relações sociais é que essa cultura vai se definir, a partir das características próprias, que o
processo de decisão social assume em cada situação histórica. Assim, cultura e cultura
75 GRAMSCI, A. Op. cit., 1986. p. 63. 76 BOSI, A. Dialética da colonização.São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 324. 77 ADORNO, T. W. Prismas; la critica de la cultura y la sociedad. Barcelona, Ediciones Ariel, 1962. p. 22.
51
popular são expressões diversas de uma mesma sociedade e encontram-se influenciadas
mutuamente, embora a cultura dominante possua mecanismos mais fortes de expressão.
Associadas às duas dimensões de cultura, as manifestações culturais populares são,
segundo Marcos Ayala e Maria Ignez N. Ayala “de certa forma, dispersas, elaboradas com
maior desconhecimento de sua própria produção anterior e de outras manifestações
produzidas por integrantes dos mesmos grupos subalternos, às vezes em locais bastante
próximos e com características estéticas e ideológicas semelhantes”. 78 Esta maneira de
abordar a questão fica mais complexa a partir da consideração de que os valores incorporados
pela cultura popular e seus usos, costumes, saberes, representações, constituem uma oposição
aos valores das culturas de elite.
Como podemos ver, a cultura popular é constituída de práticas que refletem a
capacidade criativa do povo. É possível que ela contenha aspectos de uma imaginação
coletiva capaz de fazer com que as pessoas ultrapassem o conhecimento e a tradição
recebidos. Nesse sentido, a cultura popular poderá revelar aspectos de um contra -discurso,
reagindo contra relações de dominação. Uma coisa parece certa: a prática cultural depende da
rede de relações sociais e ideológicas em que está inserida como conseqüência das formas
pelas quais ela se articula com outras práticas, em determinada circunstância. Isso contribui
para o entendimento de que determinada prática cultural popular pode alimentar formas
vigentes de dominação, mas é ao mesmo tempo forma de resistência. Contudo, é necessário
que se perceba a multiplicidade de articulações que tecem as várias camadas sociais e a
complexidade que lhes é própria. Recriar a nossa história, acenando para os diversos
acontecimentos é, pois, um caminho que precisa continuar a ser percorrido.
2.2 Atravessando as barreiras
Pela diversidade e abrangência dos aspectos que compõem as artes literária e plástica
modernas, é difícil caracterizá-las do mesmo modo que se caracterizam os momentos
anteriores com a mesma objetividade. Alfredo Bosi79 destaca que “o Modernismo, pela sua
própria dinâmica de vanguarda, suscitou uma série de atitudes críticas rentes, por sua vez, às
obras de poesia e de prosa que o movimento ia produzindo”. Esse processo cultural, sem se
78 AYALA, M. e AYALA, M. I. N, op.cit. São Paulo: Ática, 1995. p. 67. 79 BOSI, A. Por um historicismo renovado. In: Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 22.
52
ligar diretamente aos acontecimentos políticos do País, permite perceber que o Brasil vivia
transformações acentuadas.
Não interferindo no processo histórico, nem sendo resultado direto dele, a arte
modernista brasileira origina-se e solidifica-se em meio a contradições e rupturas. O
Modernismo no Brasil, como observa Mário de Andrade, “foi uma ruptura [...]; foi uma
revolta contra o que era a Inteligência nacional”, 80 ou mesmo indignação contra a Academia
Brasileira de Letras, estendendo-se também à Academia Nacional de Belas Artes. Até as
últimas décadas do século XIX, a formação dos intelectuais nacionais estava quase que
exclusivamente voltada para a administração pública ou para a vida parlamentar.
É oportuno chamar a atenção para a formalização de um momento da vida nacional de
grande mudança social. Um momento que prenunciava alterar o sentido histórico e,
conseqüentemente, a forma tradicional da sociabilidade brasileira, a qual seria a própria
identidade cultural do país. A proposta de produzir obras, influenciada não por modelos
estrangeiros mas por exemplos nacionais, significa o estabelecimento do que se poderia
chamar de “causalidade interna”, como expressa Antonio Candido, tornando mais férteis os
usos e costumes tomados às outras culturas.
De toda forma, os modernistas pretendem renovar o Brasil, proceder a uma crítica das
estruturas envelhecidas, buscando um código artístico que fosse novo e marcadamente
brasileiro. Sabe-se que o movimento de 22 propôs uma nova linguagem, na poesia e na prosa,
e como proposta estética, queria ser moderno e mimetizar os novos meios de comunicação,
fazendo surgir a linguagem rápida e a fragmentação do discurso. No terreno social e político,
o País atrasado e novo precisava ser nacionalista; mas no terreno cultural precisava receber
incessantemente a contribuição dos países ricos, embora se saiba que essa questão vai se
modificando gradativamente. Antonio Candido81 associa ao modernismo a atitude crítica e
esclarece que na história brasileira do século XX as pulsações do nacionalismo se sucedem ou
se combinam, de modo que por vezes é harmonioso, por vezes, incoerente. Esta variedade
mostra que se trata de uma palavra arraigada na própria pulsação da nossa sociedade e da
nossa vida cultural.
É de se considerar que o Modernismo representou um momento ímpar do sistema
literário brasileiro, que se realiza por meio da “dialética do localismo e do cosmopolitismo.82”
80 ANDRADE, M. de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo, Editora Martins, 1974. p. 235. 81 CANDIDO, A. Uma palavra inseparável. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1985. p. 304–5. 82 Segundo Antonio Candido pode-se chamar esse processo dialético porque ele consiste numa integração progressiva de experiência literária e espiritual, por meio da atenção entre o dado local (que se apresenta como
53
Antonio Candido entende que o peso da realidade local produz uma espécie de legitimação da
influência retardada, que adquire sentido inovador, pois o que era imitação vai cada vez mais
virando assimilação recíproca; o que parece ser afirmação da identidade nacional, pode ser, na
verdade, um modo insuspeito de oferecer à sensibilidade européia o exotismo que ela
desejava como desfastio.
No caso específico da compreensão das realidades regionais, por parte do movimento
modernista, tal processo envolveu toda uma produção literária que emergiu do debate interno
entre as idéias modernistas e o alardeamento do regionalismo. De todo modo, ao fim da
década de vinte as propostas difundidas tanto pelo modernismo como pelo regionalismo
geraram produções que introduziram no sistema literário elementos até então inexistentes
como programa estético na literatura brasileira.
Coerentes com a idéia de que nas variações do nosso nacionalismo se cruzam a
postura crítica e estratos afetivos, e considerando a importância de seus idealizadores, para o
Modernismo brasileiro, vários elementos se impõem como fundamentais para a compreensão
das repercussões do referido movimento nas diversas regiões brasileiras. Humberto
Hermenegildo de Araújo83 destaca que esses elementos “vão desde a conceituação mais ampla
do que seria a ‘brasilidade’ até a leitura das obras dos novos poetas e prosadores que surgiam
no final da década de 20”. Na verdade, uma maneira de desfazer-se dos aprisionamentos da
literatura de extração européia, vinculando as técnicas mais modernas de composição ao
modo primitivo de recuperar a individualidade do intelectual brasileiro, deslocado em sua
realidade em confronto com aquelas mesmas técnicas.
Atente-se para os criadores do Modernismo que, reconhecendo a complexidade da
obra de arte, percorriam um caminho exemplar na busca de integração dos níveis estético e
social, determinando em grande parte o processo de enaltecimento de autores e de textos
modernistas. Esses autores e textos, para serem escolhidos como parte dessa exceção,
dependiam dos grupos institucionalmente poderosos de leitores que, na década de vinte,
situavam-se no espaço hierarquizado [de inclusão e de exclusão] dos jornais e das revistas
literárias. O eco das idéias aí veiculadas chega ao Nordeste, onde encontra um ambiente
propício para se desenvolver.
substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como forma de expressão). Cf. CANDIDO, A. Literatura e cultura �de 1900 a 1945, In: Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965. p. 132-34. 83 ARAÚJO, H. H. DE. O lirismo nos quintais pobres: a poesia de Jorge Fernandes. Natal: Fundação José Augusto, 1997. p. 19.
54
Ao analisar a história da literatura no Brasil verificamos que nas primeiras décadas do
século XX, o país assistiu a propagação do regionalismo nordestino, apoiado em um
movimento intelectual e político, que visava estabelecer as bases simbólicas e identitárias do
Nordeste, como região dotada de características próprias em relação às demais. A necessidade
das elites em conter o conhecimento local, impõe não apenas o domínio do conteúdo desses
conhecimentos, mas dos meios para a sua produção. Nele vamos encontrar a resposta criadora
do modernismo à problemática de autolegitimação cultural do Brasil, ainda que ao ritmo e
impacto diversos da modernidade socioeconômica de uma região agrária. O que soava como
simples passadismo em São Paulo era, em boa medida, conservadorismo estratégico no
Nordeste.
A principal preocupação colocada por intelectuais e políticos locais é a de construir e
explicar os traços definidores do Nordeste. As raízes desta preocupação devem ser buscadas
ainda no século XIX, a partir da elaboração por alguns escritores românticos de uma temática
nordestina, como a temática da seca e da migração, porém a ausência de uma relação concreta
entre o homem e o meio, teria obstruído uma elaboração mais definida de um programa
literário específico, que só viria por meio da ficção regionalista moderna. Nesse sentido,
técnicas e recursos da vanguarda artística da época, como o verso livre, a linguagem
coloquial, o cotidiano serão utilizados na defesa de um ethos cultural nordestino, como uma
cultura identificadora de um ethos nacional.
O mergulho, em diversos âmbitos temporais e espaciais, leva a perceber que a idéia de
regionalismo já estava impregnada na intelectualidade local. Em 1924, é criado o Centro
Regionalista do Nordeste, com sede em Recife. A entidade estava organizada sob o princípio
de desenvolver o sentimento de unidade do Nordeste, bem como inventariar e disseminar os
elementos da vida e da cultura nordestina, por meio de conferências, exposições, excursões.
Apesar de buscarem uma legitimidade para ser trabalhada, os intelectuais dessa época
esbarraram na falta de representatividade de sua produção. Na grande maioria, os trabalhos
estavam direcionados à realidade pernambucana, particularmente a recifense, com suas
temáticas definidas, voltadas mais para a sociedade açucareira daquele Estado. A publicação
do Livro do Nordeste – marco de reforma ou renovação – e os trabalhos de Gilberto Freyre
55
são, talvez, exemplos mais expressivos desse momento literário, incluindo, nesse rol, Estudos
afro-brasileiros84 dentre os quais Ademar Vidal participa ativamente.
A leitura dos ensaios reunidos em o Livro do Nordeste permite uma visão sobre um
século de vida nordestina, nos seus mais diversos aspectos: agricultura e pecuária, medicina,
economia, história, política, música, folclore, sociologia, literatura. O “espírito de fraternidade
regional” impulsionou a realização do livro. Nele, como já nos referimos anteriormente,
Ademar Vidal assina um dos ensaios intitulado “Um século de vida parahybana (1825-1925)”.
Na verdade os ensaios, escritos por diversos autores e publicados no Livro do
Nordeste, assinalam a expressão das tendências do Modernismo, a que deram rematamento
sistemático, ao criticarem os modelos importados, sejam de Paris, de Portugal ou do Oriente,
e ao estudarem com livre fantasia o papel do negro, do índio e do colonizador na formação de
uma sociedade ajustada às condições do meio tropical e da economia latifundiária. Esses
temas também estão coroados em Estudos afro-brasileiros nos quais destaca-se o ensaio de
Ademar Vidal intitulado “Três séculos de escravidão na Parahyba”, composto de 147 laudas
em que o autor dedica a atenção ao negro do Brasil abordando as profundas alterações
sofridas na ordem social, e as mudanças ocorridas no Nordeste fins do século XIX e início do
século XX, além de estudar os elementos africanos incorporados à nacionalidade. Um tom de
poesia popular entremeia o texto, acentuando-se quando Ademar destaca:
Guardamos lembrança viva que nos começos deste século chegamos a ouvir o chiar monótono daquele carro de boi dentro da madrugada repleta das visões de medo que encheram a nossa primeira infância. Ursulino ficou ocupando largos espaços nas histórias contadas pelos criados favoritos.85
A preocupação de Ademar Vidal fica mais vulnerável ao focalizar o negro no Brasil.
Isso deve-se ao reconhecimento de que o negro brasileiro deveria expressar-se como
brasileiro e não como um intruso étnico e cultural. Em perspectiva mais geral, o que interessa
na produção vidaliana é a soma da mensagem. Em última análise, o amor às raízes, o que
indica um certo conservadorismo revolucionário, porém consciente de que a tradição está
dividida entre o passado, e o presente e o futuro. A simbiose afro-brasileira envolve diferentes
aspectos: os de ordem natural até os de índole social, cultural e religiosa. Ninguém ignora o
vigor com que Ademar reuniu e registrou os contatos raciais e os elementos de cultura que os
84 Relativo ao Primeiro Congresso afro-brasileiro de 1934, no Recife, recebendo nova publicação em 1988, por meio da editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco. 85 VIDAL, A. Três séculos de escravidão na Paraíba. In: Estudos afro-brasileiros, 1934. Recife, Editora Massangana, 1988. p. 121. v. VI
56
acompanham. Diante de um campo tão vasto, limitamo-nos a trazer um exemplo da maneira
como ele trata esse assunto, mantendo o foco no imaginário popular. Vejamos:
Quando se queria ameaçar um negro bastava dizer que ele ia ser vendido ao major Ursulino [...]. Homem tirano para a escravaria. Conta-se que a sua maldade chegava ao limite de pregar na parede, e pelas orelhas os escravos, e depois chamá-los. Fazia essa malvadeza com evidente sadismo, rindo-se e prometendo novos, tremendos castigos, os quais punha sempre em prática [...]. Acrescentam os mais antigos que muito pedaço de orelha ficou agarrado na taipa do engenho.86
2.3 O fio da lembrança: os anos vinte na Paraíba
Sem perspectivas de ruptura com as estruturas arcaicas e opressivas, a Paraíba, no
início dos anos vinte, vivia momentos difíceis, decorrentes ainda da decadência da economia
açucareira, não escapando às conseqüências de um longo período de depressão econômica.
Consciente do atraso em que se encontrava o Nordeste em relação ao Sul, as elites
reclamavam por mudanças nos aspectos político, econômico e social, aspirando, do ponto de
vista social, novas formas de manifestação, e do ponto de vista literário, novas formas de
representação, significando uma abertura para a difusão de idéias novas, que somente se
viabilizam nos anos vinte, devido a algumas condições mais ou menos favoráveis à vida
cultural e literária.
Todas as mudanças sociais, políticas e culturais vão-se refletir na imprensa da época,
que assume o papel de levar cultura para o povo, oferecer-lhe leitura fácil ou de interesse
prático, de cunho essencialmente popular, designando edições populares para o grande
público. A imprensa local, além de noticiar o sucesso da burguesia da época, critica as ações
dos governantes, compreendendo e divulgando as fases de impulso do açúcar e do algodão,
carros-chefes, respectivamente, da zona da mata e do sertão.
Ao longo dos anos vinte, foram surgindo na Paraíba alternativas para a vida literária e
para a produção cultural, o que facilitou a chegada do movimento modernista naqueles anos.
Embora visto confusamente por uma significativa parcela da sociedade paraibana, o
modernismo não era de todo desconhecido, reagindo junto com São Paulo em favor de uma
literatura menos piegas, acompanhando a proposta do texto que já se estabelecia, de frases
curtas, linguagem sóbria e estilo simples.
86 Ibidem.
57
Nessa década, a ação reprodutora das revistas literárias levou ao Brasil como um todo
a variedade das produções regionais. Humberto H. de Araújo87 traça um panorama da
contribuição regional compondo em seguida um quadro que engloba as revistas de expressão
nacional com outras de expressão local. O espaço das revistas, como realça Araújo, seria
como campo de ensaio onde se publicavam textos que foram aproveitados em livros, como
espaço de divulgação das obras já publicadas.
Algumas revistas eram publicadas nas províncias como variantes do contexto local,
mais vulneráveis à pregação regionalista e pelo esforço nacionalista entre elas está Era Nova,
na Paraíba, que contou com a colaboração de escritores como José Américo de Almeida, José
Lins do Rego, Carlos Dias Fernandes e Ademar Vidal, permanecendo entre 1921 e 1925.88
A revista Era Nova, dirigida por Severino Lucena e Sinésio Guimarães, aplaudia o
movimento renovador que já se processava no Sul, abrindo caminhos para novos talentos e
servindo de porta-voz dos “clamores de renovação”.89 Contudo, Era Nova não tinha uma linha
estética definida – imprimindo em suas páginas colaborações passadistas, nacionalistas,
regionalistas, modernistas – como também não publicava informações precisas sobre o
movimento que se processava no Brasil. Fechando-se para o interesse localista, buscava
valorizar escritores e assuntos da Paraíba, talvez, por isso, tenha alçado pequenos vôos.
Considere-se, ainda, o fato de que a Paraíba possuía à época dois grupos de intelectuais, o de
Era Nova (1921) e a força ainda dominante do jornal A União (1891). Embora de tendências
estéticas em muitos pontos divergentes, esses veículos de comunicação foram decisivos para o
incremento das correntes vanguardistas no Nordeste, pois eram geradores de atitudes,
procedimentos literários, polêmicos e manifestos artístico-culturais e políticos. Esses
empreendimentos, dos quais Ademar Vidal participou ativamente, possibilitaram a divulgação
do movimento modernista, colocando para o campo social o tema “modernismo” na Paraíba.
Não há dúvida de que os efeitos desses acontecimentos no espírito e na vida de nosso
autor foram de grande monta. Tal importância está revelada nos seus escritos, assim, não será
de estranhar o amálgama de elementos modernistas e regionalistas na sua produção, podendo-
se considerar Ademar Vidal como um dos antecipadores do Modernismo na Paraíba,
principalmente com a criação da revista A Novella , em 1922, introduzindo temas e estilo já
87 Araújo, op. cit. 1997. 88 Na pesquisa feita com vista à colaboração de Ademar Vidal na revista Era Nova, foram identificados doze números com publicações do Autor, sendo quatro publicações em 1921 (N 1, 2, 13, 17 e 18), cinco em 1922 (N 21, 22, 23, 26 e 31), uma publicação em 1923 (Nº 55) e a última publicação em 1925 (Nº 75). No que se refere ao jornal A União encontram-se publicadas centenas de crônicas e ensaios de Ademar Vidal.
58
afastados da pompa que dominava a cultura brasileira da época. Esse será o momento de
Ademar Vidal, e será o momento do modernismo na Paraíba. Contudo, a intenção de seus
criadores, Ademar Vidal e Antenor Navarro, concretiza-se quando a revista oferece informe,
apresenta matéria identificada com os propósitos de renovação, rumando para dar à revista
uma feição cultural genuinamente nacional.
Nota-se nos veículos de comunicação escrita a presença de artigos, aspirando por algo
que pudesse mudar substancialmente a vida política, a vida econômica, as relações sociais, a
cultura e a literatura. Assim, como o jornal A União e as revistas Era Nova e A Novella, a
Paraíba presenciava a eclosão de outra publicações de natureza variadas. São folhetos, livros,
jornais, revistas e almanaques, em processo de buscar e apresentar a informação, de modo a
impressionar e esclarecer o público.
Os jornais e revistas eram, pois, os veículos de divulgação dos passos da Revolução
Cultural que se aproximava. Como diria Brito Broca90 A Novella , pela irreverência, anunciava
o Modernismo no que este apresentou de essencialmente demolidor; Era Nova vinha antes
preparar o terreno para a fase produtiva que havia de se seguir à demolição.
Entre as inovações da imprensa na Paraíba, em relação à literatura, pode-se destacar o
declínio do folhetim, que evoluiu para a crônica de uma coluna focalizando um assunto, e
depois para a reportagem e a crítica literária em caráter mais regular e permanente. Os jornais
passam a solicitar crônicas mais curtas, ganhando ao mesmo tempo em caráter informativo.
Quanto à crítica literária, atendia às necessidades modernas da imprensa, a de orientar os
leitores sobre o que se publicava no mundo das letras.
No processo de realização da crítica literária, Ademar Vidal empreendeu intensa
atividade, sendo, por isso, indicado seu nome para compor a Sociedade Felipe d’Oliveira na
Paraíba, o qual foi aceito unanimemente numa reunião realizada em julho de 1936. O
exemplar dos Estatutos a seguir resume os fins e os intuitos dessa Sociedade da qual Ademar
Vidal passou a fazer parte.
89 Cf. Era Nova, n. 62, João Pessoa, 15 de maio de 1924. 90 BRITO BROCA. A vida literária no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1975.
59
Correspondência da Sociedade Felippe d’Oliveira a Ademar Vidal
60
Em 1937, Mário de Andrade convida Ademar Vidal para participar do Congresso da
Língua Nacional Cantada, o que demonstra a personalidade intelectual que deu à literatura na
Paraíba. Atendendo ao convite Ademar escreve ao amigo Mário de Andrade que a Paraíba
não poderia achar-se ausente de tamanha iniciativa patriótica, como a do congresso de Língua
Cantada e revela: “Tenho uns papéis que encerram coisas muito interessantes e que bem
poderiam figurar na lista que lhe mando. Ficam para outra vez”, como mostra a carta a seguir:
Carta de Ademar Vidal para Mário de Andrade, datada de 16 de junho de 1937. Reprodução cedida IEB/USP.
61
João Pessôa:/16/6/1937
Mario: um abraço afetuoso.
Ha tempos recebi um convite seu para tomar parte no congresso da lingoa nacional cantada. Eu sempre tenho grande desejo de ser agradável a você. E desta vez procuro sel-o até inconcientemente. Pois não é que me meti a escrever qualquer coisa a titulo de tese? Mas olhe, as tiras seguem sob a condição especial de um compromisso de sua parte: rasgue, bote fóra, faça delas o que bem quizer. E se (a coisa está é aqui) você resolver aproveital-as fará isto: riscará as besteiras e poderá fazer os encaixes que entender. Veja bem. Como vae tenho completa conciencia que não presta. Precisa que você entre a operar algum milagre. Ficarei muito agradecido se o querido amigo seguir minha vontade. Tudo isto sabe porque? Alem de não ter o menor gosto pelo o assunto, isto é o estudo da lingoa, ha muito tempo que me encontro acamado, com o movimento privado. Sofri um acidente e estou com o pé esquerdo no aparelho de gesso. Houve fratura e há necessidade de consolidação. Esta em gente velha depende de muito tempo. Vivo num impaciencia medonha. Nada posso fazer. Ando chateadissimo. As tiras que lhe envio, imagine, foram ditadas pra Maria, que ainda está batendo esta carta na maquina. Quero que você sinta a plenitude de minha boa vontade. Demais a Parahyba não poderia achar-se ausente de tamanha iniciativa patriótica como a do congresso da lingoa nacional cantada. Espero, porem, de sua amizade, de sua otima camaradagem, o favor de riscar tudo e fazer o que bem entender. Não tenho nem-uma vaidade literária. Faça o que quizer. Dou-lhe carta branca para agir de acordo com o pedido sincero que lhe estou fazendo. Porque me falte movimento livre não vae uma lista enorme de locuções e vocabulos do nordeste muito usuaes. Tenho uns papeis que encerram coisas muito interessantes e que bem poderiam figurar na lista que lhe mando. Fica para outra vez. Mario velho, renovo a recomendação: risque tudo e faça o que achar mais inteligente. Sei que não me deixará em situação inferior num congresso de gente que sabe onde tem as ventas. Hoje só quiz escrever-lhe sobre este ponto por me achar preocupado: fiz um trabalho péssimo, incompleto, com o fim unico de ser-lhe agradavel e ver, por outro lado, a Parahyba figurar no congresso, mas condignamente graças á sua batuta de critico. Bem, adeus. Abraços nossos. Assim que me levantar escreverei longamente.
Transcrição da carta de Ademar Vidal para Mário de Andrade, datada de 16 de junho de 1937 Reprodução cedida IEB/USP.
Apesar dos esforços de nossa parte em tentar localizar o trabalho de Ademar Vidal,
apresentado ao Congresso da Língua Nacional Cantada, não obtivemos êxito. Possivelmente
encontra-se no Arquivo Mário de Andrade no IEB/USP, posto que tivemos acesso apenas à
correspondência entre Ademar e Mário. Contudo, o certificado de participação foi enviado ao
autor e pode ser visto a seguir:
62
Certificado de participação no Congresso da Língua Nacional Cantada.
O Congresso de Língua Cantada faz parte de um projeto idealizado nos anos 20 por
Mário de Andrade, em que propunha a criação de uma linguagem literária experimental a
partir da fala do povo brasileiro. Foi um projeto estético nacionalista, tendendo a uma
diversificação bem variada de registros. No Posfácio, de Amar verbo intransitivo, Mário de
Andrade declara que não quis criar língua nenhuma, apenas pretendia usar os materiais que a
terra lhe dava, do Amazonas ao Prata. O autor reforça que partiu ignorante, porém com
coragem, tropeçando, tentando sempre até o fim. O projeto da Língua Nacional Cantada é um
projeto que propunha encurtar as distâncias entre língua brasileira e a língua literária.
Quase sem exceção os autores, na Paraíba, começam colaborando na imprensa. Alguns
se tornam essencialmente poetas, outros primordialmente romancistas, outros ainda críticos
literários. Considerando o que aqui se produziu em termos literários, o regionalismo
predominou, principalmente nas décadas 30 e 40.
Podemos dizer que nos quatro últimos governos da República Velha, a preocupação
maior é a de estimular e divulgar os valores literários locais. Assumindo a direção de A
União, durante a administração de Castro Pinto no governo da Paraíba, Carlos Dias Fernandes
63
procurou divulgar a cultura erudita e a popular com a impressão de livros, revistas, panfletos e
cordel, contudo a aceitação do saber popular não se fazia de modo unânime entre os
intelectuais da época. A União, que na década de 20 contou com colaboração de autores como
José Américo de Almeida, Raul Machado, Eudes Barros, Antonio Botto, Ademar Vidal,
apenas para citar alguns.
Ainda na República Velha, como aponta a história oficial, a Paraíba viveu a presença
da Coluna Prestes – movimento de inspiração anti-oligárquica e de repercussão nacional – e a
presença do cangaço –, que não é uma criação da geografia, mas forçada decorrência de
determinadas condições históricas, na expressão de Afonso Arinos –, tendo como líderes
Antonio Silvino, Chico Pereira e Lampião, articulados às oligarquias regionais e combatidos
em âmbito estadual, principalmente no governo de João Pessoa.
Na época em que o cangaço teve seu auge, Ademar Vidal ocupava a pasta de
Secretário do Interior e Justiça e Secretário da Segurança Pública no governo de João Pessoa.
Posteriormente, e de forma paradoxal, em Terra de homens, Ademar Vidal situa o fato
cangaço como um fenômeno fora do plano jurídico-penal, considerando que a
responsabilidade da situação poderia estar ligada a condições no plano étnico e mesmo
histórico-social. Com esta visão, o autor aponta que os cangaceiros são mais vítimas que
causadores, e anuncia que a gênese do cangaço está relacionada a fatos políticos. Destaca
ainda que a relação dos brancos europeus no Norte do Brasil, dava-se de modo unilateral com
os homens autóctones91, verdadeiros guerreiros que faziam frente a outros europeus, na
tentativa de ocupar os domínios da coroa portuguesa.
Em mais um momento, Ademar Vidal retomará a este tema do cangaço marcado pela
defesa da honra, argumentando sobre seu próprio interesse pela história do cangaço. Ele diz
que no encontro com o cangaceiro Antonio Silvino, quando este cumpria pena na cadeia de
Recife, pôde entender que:
O legítimo cangaceiro não furtava, não saqueava, não estuprava [...]. Porém a intenção do cangaceiro se firmava nisto: a vingança, o pagamento da traição que sofrera e, sobretudo, o cumprimento da palavra dada de que um dia ajustaria contas com o algoz. Ninguém de sangue quente quereria ficar desonrado, pois o cangaceiro vivendo em sociedade em que a justiça não é distribuída sem se reparar que vai agravar este ou aquele fazia justiça com as próprias mãos.92
91 “Vale a pena vez por outra mergulhar a alma em sonhos de enlevo. Piragibe e Zorobabe foram dois legítimos cangaceiros. Ambos serviram ao Rei; aind a serviram a Portugal. Zorobabe foi infeliz. Acabou os dias em Èvora, de onde, por não ser ponto de mar, não corria o risco de fugir num navio para o Brasil”. VIDAL, A. Terra de homens, 1944. p. 26 – 7. 92 VIDAL, A. Terras de homens, 1944. p. 102.
64
Esse comentário coloca frente a frente dois períodos da vida intelectual de Ademar
Vidal: o primeiro, já marcado pela posição que ocupava no governo de João Pessoa entre
1929 e 1930, e aquele outro, de 1944, quando de sua entrada como espectador no cenário
nordestino. Surge aí, no julgamento de uma época sobre a outra, a sua posição de observador,
que caminha das reflexões políticas para o processo cultural, significando-lhe que tal
fenômeno era propulsor de idéias literárias. Assim sendo, Ademar Vidal, que em muitos
momentos transgride e/ou perpassa o veio político-administrativo, é também observador,
apoiado em experiência do meio, em virtudes pessoais de compreensão e sensibilidade sobre
o que é espontâneo, por isso popular, transmigrando sua alma da administração pública para a
literatura.
Cangaço e literatura serão, para Ademar Vidal, referenciais permanentes. A sua
matéria-prima se obtém mediante dois pontos diferentes: o da esfera pública-administrativa na
implementação da moral republicana que se sedimentava e o de agente literário em que o
popular era concernente, por isso, ele via o cangaço como expressão das injustiças sociais, dos
latifúndios e das rixas estabelecidas pelos coronéis cujas conseqüências estão ligadas às
vaidades e veleidades do poder. Como bem demonstra em Terra de homens, o cangaceiro é
apenas homem de brio, que procura resolver os casos por sua própria conta e risco. A má
distribuição de justiça, segundo Ademar Vidal, teria sido a causa do aparecimento do
cangaceiro.
Como podemos ver, o cangaço é um dos temas principais da produção de Ademar
Vidal. A princípio, o que parece chamar atenção para a imagem do cangaço, construída em
Terra de homens, é a preocupação do autor em evidenciar tanto a figura do cangaceiro –,
herói das aventuras épicas, e sua disposição psicológica –, bem como o meio em que evolui e
sobre o qual pode zombar da ordem social. O tratamento dado por Ademar Vidal ao tema,
como pontua Afonso Arinos, “desliza das reflexões psicológicas e sociológicas, com que situa
tão bem o problema, para a tolerância e, por vez, ele acoima de fantasiar tudo que ocorre
sobre a barbaridade de Lampião”.93
Procedendo-se a uma reconstituição da conversa de Mário de Andrade com Henrique
Castriciano, sobre o cangaceirismo nordestino, relatado em O Turista aprendiz, 94 percebemos
que a visão do escritor potiguar não difere muito do olhar de Ademar Vidal sobre esse tema.
Para Castriciano, conforme relata Mário de Andrade, o cangaceiro de antes era diferente. A
93 FRANCO, A.A. de Melo. Prefácio. In: Vidal, A. Terra de homens, 1944. 94 ANDRADE, M. de. O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
65
transformação foi acentuada por Lampião e os companheiros dele, ‘verdadeiros salteadores,
roubadores, gente ruim’. Antes, o cangaceiro no geral era cavalheiresco, ‘protegendo as
mulheres, não roubando propriamente, apenas se apropriando de posses alheias nas
vinganças’. Ninguém se fazia cangaceiro; viraria cangaceiro para justificar. “Justifica, o que
quer dizer que ficava formada justiça”. Era o cangaço.
Independente das tendências peculiares a cada um dos veículos de comunicação na
Paraíba – sejam revistas ou jornais – e da sua ligação com os grupos locais que representavam
os diversos segmentos do movimento cultural, é possível que, em todos eles, o apelo ao
regional estivesse presente, impulsionado pela força do nacionalismo característico da época,
agindo no movimento literário. A postura nacionalista no fim dos anos 20 apresenta duas
vertentes: de um lado, um nacionalismo crítico, consciente, de denúncia da realidade
brasileira; de outro, um nacionalismo exagerado, utópico, identificado com as correntes
políticas de extrema direita.
Pode-se dizer que a cultura regional era forçada pela estrutura do poder local, e por
outro a influência da modernidade chegava de modo intenso na província. Na própria
estrutura de poder local registra-se o incentivo à prática artística e literária, proporcionado
principalmente pela administração do então presidente Solon de Lucena. No teatro, por
exemplo, eram significativas as apresentações de revistas de costumes regionais, as peças
escritas por autores locais eram exibidas ao público. Nas reuniões que aconteciam geralmente
nos “cafés” era comum a presença de cantadores e contadores de histórias.
Na Paraíba, a influência intelectual de Pernambuco provoca algumas adesões, embora
insuficientes para impressionar a feição literária da época, dominada – como toda a esfera
cultural brasileira – pelo apego às formas tradicionais do verso e ao convencionalismo da
prosa subjugada à forma erudita. Mesmo sem a ruptura com o passado, alguns sinais,
provenientes da influência de Pernambuco tornam-se decisivos para desencadear as propostas
regionalistas dos anos 30. O semanário Dom Casmurro, editado em Recife, registra anúncios
sobre publicações de livros de autores paraibanos, algumas vezes acompanhado de breves
comentários, entre eles Fome (1922) de Ademar Vidal e A bagaceira (1928) de José Américo
de Almeida. A crítica resumia-se praticamente a comentários, quase sempre elogiosos aos
poucos livros que se publicavam, sendo estes, em geral, comentados na imprensa.
De todo modo, o que podemos dizer é que tal, postura antes firmada pelo sertanismo
romântico, adquire nova concepção estética com os ideais do Modernismo nos anos vinte. A
independência das normas fixas e preestabelecidas coincide com a liberdade de explosão dos
temas regionais. Assim, a Paraíba absorve a exaltação do movimento, inspirando relativo
66
número de escritores que se voltam para o drama da seca, as dificuldades sociais, a relação
homem-natureza, visando superar certas concepções deterministas que ainda se faziam
presentes na época, e também a formação do homem paraibano. As sugestões são postas em
diversos itens que cobrem a realidade brasileira como um todo e nos seus aspectos regionais,
sendo a preocupação nacionalista e por parte de alguns intelectuais a tendência republicana, o
caminho para a orientação regionalista.
Em síntese, podemos afirmar que havia na Paraíba, nas primeiras décadas do século
XX, uma forte inclinação para a valorização das realidades locais. Da mesma forma podemos
dizer que o Modernismo e o Regionalismo, existentes no Nordeste brasileiro, apresentaram
manifestações na Paraíba. Apesar das dificuldades para se difundir o movimento que emergia
no Sul, o Modernismo encontrou na Paraíba as condições de se manifestar de modo mais
organizado, devido aos esforços de renovação de alguns simpatizantes do movimento, em
situação diferente daquela anterior, que era influenciada pela oligarquia rural e que,
certamente, seria mais favorável ao fortalecimento da corrente regionalista.
Humberto H. de Araújo 95 observa que estabelecer um limite entre as duas vertentes –
Modernismo e Regionalismo –, no espaço cultural do Nordeste, não é tarefa fácil. Contudo, o
que podemos destacar em relação à literatura na Paraíba, é a forte inclinação a ambas as
perspectivas, apresentando momentos de equilíbrio ideal entre elas num processo que se pode
chamar dialético. Tal processo tem consistido num aproveitamento literário das matrizes
regionais e a justificada proposta dos anos de 1920 em São Paulo, sendo a obra de Mário de
Andrade reveladora dessa dialética, pois, como realça Antonio Candido96, Mário é homem de
requintada cultura européia, e ao mesmo tempo conhecedor profundo das nossas tradições
populares.
Sem sombra de dúvida, podemos dizer que, na Paraíba, Ademar Vidal é um dos que
melhor realizam a tarefa de filtrar dialeticamente as vanguardas européias e, na exploração do
primitivismo, partir para a descoberta de vida no Brasil. Em certa medida, Ademar Vidal
contribui, com uma discreta veia antropológica, ampliando as interpretações do popular.
95 ARAÚJO, op. cit. 96 CANDIDO, A. Uma palavra inseparável. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1985.
67
2.4 A viagem de Mário de Andrade ao Nordeste
O importante é se adaptar, ser lógico com a sua terra e o seu povo.
Mário de Andrade, 1926.
Sabe-se que em dezembro de 1928, Mário de Andrade dá início a tão idealizada
viagem ao Nordeste, saindo do Rio de Janeiro, a bordo do Manaus. “Ausente de
compromissos oficiais, visitará Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas e Paraíba,
convivendo com seus amigos Ascenso Ferreira, Antonio Bento de Araújo Lima, Cícero Dias e
Ademar Vidal”.97 O conteúdo da viagem está registrado em O turista aprendiz e Mário
empregará a expressão “viagem etnográfica” para explicitar a natureza de suas excursões. É
justamente por não se ocupar da tarefa de descrever “oficialmente” a viagem, que a
reconstrução de seu relato adquire sabor especial.
A visita de Mário de Andrade à Paraíba é destaque no jornal A União:
Tivemos ontem a visita pessoal de Mário de Andrade e Antonio Bento, ilustres intelectuais que a Paraíba tem a honra de hospedar. Eles estiveram em nosso escritório em companhia de confrades conterrâneos José Américo de Almeida, Silvino Olavo e Ademar Vidal, fazendo todos n’A União um excelente momento.98
Podemos imaginar o quanto agradou aos adeptos do modernismo na Paraíba a visita de
Mário de Andrade ao Nordeste. Mas, antes da viagem à Paraíba, Mário vai a Natal, hospeda-
se com Luís da Câmara Cascudo, 99 e em companhia do poeta Antonio Bento chega à Paraíba,
ali permanecendo por quinze dias, buscando analisar as condições de vida da região, numa
perspectiva nova que, segundo Lopez, deseja abandonar a caracterização do regional através
do “exótico e do pitoresco”. Mário se empenhará contra essa perspectiva, numa atitude
consciente que explica todo um estilo, seleção e organização dos relatos.
Era, portanto, um olhar atento do poeta modernista ao conhecimento do concreto que
passava pela vida popular das regiões, cuidando para não tender à dispersão erudita ou ao
saudosismo. Esse olhar atento o aproxima da idéia de definir o caráter nacional e o modo de
ser brasileiro, daí a associação que ele faz entre cultura popular e questão nacional, integrando
97 Cf. LOPEZ, T.P.A. Viagens etnográficas de Mário de Andrade. In: ANDRADE, M. O turista aprendiz , 1983. p.29. 98 A União, Coluna Visitantes, de Mário Dalva. João Pessoa, 30 de janeiro de 1929. (Arquivo do jornal A União). 99 Os dois escritores já se correspondiam, por carta, desde o ano de 1925. Cf. Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. Belo Horizonte Rio de Janeiro: Vila Rica, 1991.
68
os impasses da nacionalidade. Em Mário de Andrade essa consciência é bastante aclamada
desde as primeiras décadas do século XX, principalmente por considerá-la um dos centros
nervosos de um complexo ideológico em que não é fácil distinguir o sentimento de
inferioridade de um nacionalismo romântico. Sabe disso qualquer um que tenha lido seus
poemas, romances, cartas e que tenha percebido a ênfase dada à particularidade e
potencialidade das manifestações populares como força transformadora da sociedade. Dentro
deste contexto, o trabalho de Mário de Andrade tem um papel preponderante.
Durante a visita de Mário de Andrade ao Nordeste entre novembro de 1928 e fevereiro
de 1929 ele sentiu a necessidade de aclarar a experiência vivida, contudo, como ele próprio
destaca, “sem nenhuma intenção da obra-de-arte, reservada para elaborações futuras, nem
com a menor intenção de dar a conhecer aos outros a terra viajada”.100 Essa atitude
impulsiona Mário a compreender o desconhecido de seu país, na busca das tradições
populares; uma experiência da realidade cotidiana da viagem que contribui para aguçar cada
vez mais a consciência crítica desse viajante.
Entre as muitas considerações que podem ser direcionadas à visita de Mário de
Andrade ao Nordeste, destaca-se uma: a realidade dos acontecimentos posta em O turista
aprendiz. Os temas estão ali, vivos, com o rigor que não consiste na exatidão porque as
realidades são inexatas tornando-se mais nítidas quando o observador-narrador revela que
anda “misturando tanto as coisas, deixando de ser um indivíduo compreensivo para tornar-se
essencialmente, unicamente mesmo, sensitivo”.101
A experiência de Mário e suas observações revelam, em geral, que a arte tem a ver
com a intuição, a imaginação, a percepção. A intuição, por sua vez, é o fundamento da arte,
por isso as suas imagens não precisam passar pelo crivo de verificação da realidade. Nesse
sentido tem-se a narrativa da “viagem”, ligada à fixação do real e do verídico, mas
conscientemente “elástica”, na palavra de Telê Ancona Lopez, a ponto de permitir que a
subjetividade possa dissolver o dado na impressão ou valorizá-lo no discurso poético.
De fato, a realidade colocada no diário e o referencial pertencente aos informes de
viagem, embora filtrados pela arte ainda permanecem como elementos do real, dado o
hibridismo do gênero, entre a literatura e o documento histórico, porém a seu lado está a
imaginação. O resultado é a escritura trabalhada não só com a memória das coisas realmente
100 ANDRADE, op cit., p. 295. 101 Idem.
69
acontecidas, mas com todo o universo do possível e do imaginável. O sentido de tudo isso
está, principalmente, no valor atribuído à literatura praticada com base na experiência vivida.
Ao buscar conhecer a região Nordeste por meio de suas peculiaridades, Mário logo
percebe que esta não se esgota em si mesma, é parte do Brasil, tem conexões íntimas com as
outras regiões do Brasil. Assim sendo, e por isso mesmo, sente-se bem acomodado, pois ser
antes brasileiro que paulista deixa-o à vontade para compreender o povo nordestino, para falar
sobre o povo nordestino, esboçar um momento vivenciado, marcado pela busca de um registro
poético que não ignore a poetização da natureza. Possivelmente, esta seria a potência histórica
e social de suas acomodações. Contudo, neste sentido, é muito interessante a leitura feita por
Mário de Andrade, sobre os caminhos por onde passou, em O turista aprendiz. Vale ressaltar
que não pretendemos aqui resumir o conteúdo dos episódios narrados por Mário, mas apenas
constatar que eles confirmam as suas indagações sobre a cultura do povo, mostrando a
permeabilidade que manteve com essa cultura. Exemplar, entre outros:
Entramos na Paraíba [...]. A viagem segue apreensiva. Estamos em plena região de cangaço [...]. Estamos em Catolé do Rocha, com procissão do orago, rojões, gente bêbada e mendigos. Catolé do Rocha, capital do cangaço paraibano, é meio espandogada no jeito, com duas praças grandes, contíguas e em plano diferente.102
Se se pode dizer com Alfredo Bosi, que Mário é um pescador de momentos singulares
cheios de significação, pode-se afirmar que O turista aprendiz realmente capta uma realidade
irremediavelmente prosaica, ao mesmo tempo recortada por instantes de exceção:
Nas sombras das casas um carrinho de mão tem uma aleijada dentro. [...]. Junto dela está uma velha sentada no chão, coberta quase a cara toda com chale. Chale de lã! Quando a esmola cai na cuia, a boba pega o dinheiro depressa e dá pra velha. Então esta canta um “bendito” de gratidão [...]. Alimentamos a continuação deles com esmolas enquanto pego meu caderno pautado, e anoto a cantiga. O povo me cerca sarapantado.103
Eis o “bendito”:
Deus li pague a santa esmola Deus li leve no andô, Acumpanhado di anjo Acirculado di flô, Assentado à mão direita, Aos péis di Nosso Sinhô.
102 Idem, p. 293. 103 Idem. Ibidem.
70
Nos relatos de Mário de Andrade, nascidos das entranhas da vida popular, o que salta
aos olhos é a identificação de um povo a partir da sua feição natural, ou seja, da sua marca
individual, porém acrescentada com o que lhe vem pela tradição. São episódios a mostrar a
permeabilidade que Mário manteve com a cultura do povo, ficando maravilhado, por
exemplo, com a simplicidade genial da melodia desse bendito: “Que perfeição de linha, que
equilíbrio de composição!” Em Mário, a atitude intelectual vai mais fundo à raiz dos
acontecimentos e, neste ponto, valoriza as coisas simples; revela a verdadeira significação.
Aos episódios presenciados “na capital do cangaço – em que as pessoas pretendem nos pegar
numa resposta falsa, descobrir em nós cangaceiros montados na Oakland” – junta-se a
picardia do observador que faz uma reflexão sobre a melodia cantada pela velha: “Canto em
maior rejeição e apesar disso duma dor magnífica, pobre, mesquinha, triste mesmo”.104 Não
faltou a Mário a possibilidade para captar o universo da cultura popular, prenhe de sentidos,
explorando pontos-de-vista, que representavam, no tempo, uma revolução das principais bases
teóricas em que se fundavam os estudos do Folclore.
Como já dissemos, a grande estratégia de Mário de Andrade ao tentar apreender as
condições de vida do Nordeste é que ele não se preocupou com a caracterização do exótico e
do pitoresco – fruto direto da estética romântica, como diria Antonio Candido –, porém
buscou focalizar, em sua divisão estrategicamente modernista, o que é mais peculiar à região
e ao povo, reconhecendo que há entre ambos um caráter político que não deve ser ignorado.
Ligado por visceral vocação às tradições brasileiras, fazendo incursão na literatura e na
música, Mário sempre acreditou que o investimento nas situações simples produziria os
maiores dividendos à sociedade. E exemplifica:
Chico Antonio105 veio se despedir de mim [...]. Tirou o Boi Tungão, certamente um dos cantos mais sublimes que conheço, principiou por uma firmata solene, que ninguém esperava: Boi Tung ã ã ã ã ão!... e foi falando. E falou duma comoção tão simples, dita com a verdade verdadeira dos homens simples; disse que quando eu chegasse na minha terra havia de ter saudades dele. Então principiou se despedindo: Adeus sala! adeus cadera!
104 Idem, ibidem. 105 Francisco Antonio Moreira (1904-1993), cantador de coco de embolada, que ultrapassa de muito os que Mário escutou, “pela força viva do que inventa e a perfeição com que embola”. Cf. ANDRADE, M. Op cit. p. 278.
71
Adeus piano de tocá! Adeus tinta de iscrevê! Adeus papé de assentá! � Boi Tungão!... Estava despedido. Estendeu a mão comprida num adeus de árvore e lá foi-se embora no passinho esquipado come-légua dos cavalos daqui.
Percebemos nesse trecho que a imagem em Mário de Andrade, não é recurso retórico,
mas algo que atinge tanto a forma exterior como a interior, e a substituição é dada na medida
da palavra e do objeto. Com essa convicção permeou o Nordeste, vivendo o contato com o
povo e valorizando as suas tradições “móveis” – aquelas que, segundo o autor, devemos
conservar tal qual porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm.
Assim, por exemplo, a cantiga, a poesia, as danças populares – , diferenciando-se das tradições
“imóveis” que não evoluem por si mesmas. Destas, só se pode apreender o espírito, a
psicologia e não a forma abstrata.
Não será difícil reconhecer essa busca da forma e a insistência crítica no relato de
Mário. Na cidade de Natal, o Congo chama sua atenção como um dos reisados mais curiosos
do Nordeste, chegando a considerar a versão que colhera uma “preciosidade folclórica”. E
dum cômico esplêndido declara: “ninguém poderá falar que o modernismo não teve projetos
no Brasil, ante um documento destes”. Vejamos:
Sinhô! Sou um homem monstro sem igual [...]. Fiu eu o mesmo deus Ielêu A Oropa que me trive os pés do reis inimigo Fiu ome, fiu trigue e fiu dragão E oje que mais sou o própi Napulião.106
Em relação aos Cabocolinhos, Mário reclama a pouca divulgação dessa dança
dramática e culpa os folcloristas, “quase todos exclusivamente literários”, de registrar nos
livros de folclore quase que unicamente a manifestação intelectual do povo, rezas, romances,
poesias líricas, desafios, parlendas. Na Paraíba, ele observa que Cabocolinhos se dança, não
têm cantigas e só de longe uma fala:
Piramingu! Sinhô Mataram nosso Matroá.107
106 Idem, p. 305. 107 Idem, p. 320.
72
Tem-se aqui o olhar do sabedor do folclore e a consciência de um dos mais atuantes
espectadores da cultura do povo, graças à sua permeabilidade com o imaginário da existência
popular. Mário observa que a dança, a música e outras manifestações artísticas praticadas pelo
povo, revelam o momento privilegiado de uma celebração coletiva. Ele tem consciência de
que a produção – seja ela elaborada ou não, cerimonial ou ritualística – pertence a um mundo
complexo da sociedade que a produz e, por isso, requer uma avaliação como produção
cultural e expressão de um povo. Cabe salientar que O turista aprendiz representa o esforço
de um intelectual em direção ao que acredita, unindo a referencialidade à poeticidade;
representa ainda uma sondagem das crenças e superstições e da poesia popular. Era um
escutar atento às Emboladas, aos Catimbós, aos Cabocolinhos, e também às Melodias de
Carregar Piano e de Boi Tungão. Era um olhar atento à paisagem natural e à arquitetura da
cidade, a exemplo do Convento de São Francisco, na Paraíba, que tanto despertou à atenção
de Mário de Andrade principalmente pela “sua graciosidade”. Era um olhar distanciado, que
do sonho nordestino da casa de Mário de Andrade, na praia de Tambaú, restam apenas
lembranças bem marcantes na obra de Ademar Vidal, ressaltadas em crônicas de Drummond:
Tenho à minha frente Ademar Vidal, que dá novas informações sobre as casas imaginárias do Nordeste, onde Mário de Andrade gostaria de passar, e não passou, os últimos dias de vida. Mário foi hóspede do escritor paraibano que lembra coisas perdidas no tempo.108
2.5 O encontro entre Mário e Ademar
Pegou o sol com a mão ainda nas barras da madrugada, que vieram lhe despertar tanto a sensibilidade. Ademar Vidal. Mário de Andrade e o Nordeste, 1967.
O crítico de artes Antonio Bento de Araújo Lima foi o ponto da amizade entre Mário
de Andrade e Ademar Vidal. Mas, foi também o crítico de arte pernambucano Mário Pedrosa
quem revelou à Paraíba Mário de Andrade. Em meio de livros e papéis escritos, vez por outra
Mário Pedrosa mostrava a Ademar Vidal e a Antenor Navarro cartas de Mário de Andrade.
Desde então Ademar passou a admirar o autor de Macunaíma, de quem recebeu o livro com
dedicatória.
108 Cf. Andrade, C. D. Uma casa sonhada em Tambaú. Jornal do Brasil, 16 de dezembro de 1982.
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Como já evidenciamos, em fins de 1928, Mário de Andrade visita o Nordeste,
demorou-se em Natal, ao lado de Luís da Câmara Cascudo e lá um dia, chegou à Paraíba em
companhia de Antonio Bento. No entanto, como esclarece Ademar Vidal no artigo “Mário de
Andrade e o Nordeste”,109 convivendo em São Paulo nos meios em que Mário convivia entre
1924 e 1928, nunca tivera ensejo de ser apresentado ao “escritor revolucionário”. Na Paraíba
é que se deu a aproximação e Mário tornou-se seu hóspede.
Desde o primeiro contato com a terra e a gente nordestinas, Mário procurou
personificar tudo quanto o Nordeste tem de específico. Talvez, por isso, a amizade entre
Mário e Ademar tenha se estreitado tanto, mantendo-se na correspondência, 110 com extensa
exposição de idéias e de fatos, quando não abundantes confissões, como esta de Mário
dirigida a Ademar:
É camarada velho e se eu carecer um dia é possível que você até assuste, porém aparece na sua casa uma carta minha contando queixa grossa dessa vida que vivo. São as paciências que você há de ter por mais um amigo verdadeiro. Bem, já falei o que mais afogado estava em mim.111
Está nítido que a correspondência é uma oportunidade para que se testemunhe a
conversa interessantíssima, que certamente se ia travar entre Mário e Ademar. A discussão
sobre temas brasileiros – a definição de caráter nacional, o modo de ser brasileiro, as
manifestações da vida simbólica popular – tudo isso marcou a existência dos dois escritores e
era ao mesmo tempo um elemento agregador. De Mário vieram cartas para se juntar a outras
anteriores, diz Ademar Vidal. Cartas de quem não se cansa de expor e perguntar pelas coisas
simples da vida. A coleção era grande: os retratos na rua, em casa, por todos os cantos. E
Mário escrevia “naquele envelope comercial de papel verde ou pardo ou cor-de-rosa muito
fino. E dentro aquele outro papel grosso com uma assinatura onde se divisaram apenas um M,
um ponto e um traço. O bastante para a demonstração da mais sentida amizade”.112
Por esse tempo, dirá Ademar Vidal que Mário de Andrade achava que impunemente,
não se pode contrair laços afetivos sem conhecer e sem se aprofundar nos segredos. Isto sob o
ponto de vista humano. E também no que relacionam à terra, mesmo que não seja a terra
natal. Nas cartas que escreveu para Ademar, Mário de Andrade lembrava sempre a “futura
109 VIDAL, A. Mario de Andrade e o nordeste, Revista do livro, Rio de Janeiro, n. 31, 1967. p. 24. 110 As cartas de Mário de Andrade dirigidas a Ademar Vidal, entre 1929 e 1943, foram publicadas em 1967 na Revista do livro por Ademar Vidal, totalizando quinze cartas. Já as cartas de Ademar dirigidas a Mário, nos foram cedidas pelo IEB/USP – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, por intermédio de Rodrigo Vidal, Neto de Ademar Vidal, totalizando dezesseis cartas manuscritas e treze datiloscritas. 111 Carta de Mário de Andrade dirigida a Ademar Vidal. São Paulo, 1929. In Revista do livro,p. 24.
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choupana”, onde pensava encontrar repouso, a “tranqüilidade desfalecente” e onde pretendia
terminar “os dias de aventura paulista”. Isso se passou em princípios de 1929. E Mário não
voltou para ocupar a tão sonhada casa de Tambaú. Estava longe – relembra Ademar Vidal –
quando soube, pela Embaixada do Brasil, que ele falecera. Ainda em vida, o tempo para
Mário foi passando, preenchido por uma evasiva esperança, de duração interminável, pois
tempo compensador é o tempo que se sonha.
Em 1943, dois anos antes de falecer, Mário escrevia a Ademar: “não esqueço um
minuto os passeios na praia de Tambaú e naquelas proximidades do Cabo Branco os seus
silêncios bucólicos de aberto amor com o oceano”. E acrescenta sonhando: “nesse recanto
maravilhoso é onde irei viver os restantes dias de minha velhice que anda comigo desde os
vinte anos”. Sonho, como bem disse Carlos Drummond de Andrade em crônica “Uma casa
sonhada em Tambaú” (1982). A sorte decidiu em contrário.
Ao lado de Assis Chateaubriand, Ademar Vidal compunha o célebre cenáculo de
intelectuais que residiam ou circulavam freqüentemente por São Paulo, e que era composto
“por Oswald de Andrade, por Raul Bopp, por Jayme Adour da Câmara, por Monteiro Lobato,
por Guilherme de Almeida, e ainda por Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Mário com
Antonio [Antonio Alcântara Machado] à parte, formando a dupla que, afinal se retirou do
cenário geral para melhor viver a seu modo”.113 Contudo, a grande aproximação histórica de
Mário e Ademar será feita a partir do Nordeste, mais especificamente da Paraíba, em cujo
ambiente Mário se sentiu tão bem instalado, encontrando aí o que é mais próprio do brasileiro.
Tanto que diz não saber ter saudades do Sul. Sentia -se bem na Paraíba da mesma forma que
se estivesse entre os gaúchos.
Como se sabe, a admiração de Ademar Vidal por Mário de Andrade principia com o
grande amigo de juventude Mário Pedrosa. Depois, com o movimento modernista de São
Paulo que se refletia no Nordeste. Este, segundo o escritor paraibano, é uma espécie de
câmara acústica do que se passa no país. Está claro que as posições de Ademar Vidal e as de
Mário de Andrade, não obstante a participação direta e intensa de Mário no movimento,
ambos caminham na mesma direção: buscam as manifestações culturais populares, a ruptura
com as estruturas ligadas ao passado. Havia por parte dos dois escritores a preocupação,
voltada para a construção de uma língua próxima do falar do povo bem como para a
construção da identidade brasileira. Para eles, esta era a expressão de uma rica cultura já
112 VIDAL, A. Revista do livro, 1967. p. 21. 113 VIDAL, A. Mario de Andrade e o nordeste, Revista do livro, Rio de Janeiro, n. 31, 1967. p. 21.
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existente. Ademar dizia que de São Paulo vinham sinais de reformas, muito mais que do Rio,
alegando ser esta província uma burguesia abastada, comprometida em manter a instituição
cultural, ou sejam, as academias. Desse modo, diz Ademar que o Rio já não despertava tanto a
atenção da juventude paraibana insuflada pela participação de escritores surgidos durante ou
depois da Primeira Guerra Mundial.
Parece que Ademar Vidal tem razão. No que diz respeito ao Rio de Janeiro, o
depoimento de Mário de Andrade proferido no auditório da Biblioteca do Itamaraty em 30 de
abril de 1942, a convite da Casa do Estudante do Brasil – hoje um dos capítulos de Aspectos
da literatura brasileira, “O movimento modernista” – é categórico no que se refere ao
aburguesamento do modernismo. Para ele, a ruptura modernista foi essencialmente com a
forma da hegemonia carioca. Rompendo com as Academias da “Corte” os usos e costumes
passariam a “vir diretamente importados da Europa”, isto é, sem a mediação tradicional
carioca. Lá está:
Se quisermos ser funcionalmente verdadeiros, e não nos tornarmos murumbavas inermes e bobos da corte, como os primitivos de todas as nacionalidades e períodos históricos universais, nós temos que adotar os princípios da arte-ação. Sacrificar as nossas liberdades [...] e colocar como cânone absoluto de nossa estética o princípio de utilidade.114
A argumentação de Mário de Andrade conduz à evidência de um período histórico de
constante interferência nas liberdades individuais, em que a aspiração à liberdade de criação
transforma-se em entrave quando confrontada com a manipulação ideológica do objeto
estético. Em 1934, Walter Benjamin115 atentava para o aspecto da liberdade de criação num
mundo marcado por adversidades entre dominantes e dominado, realidade que conduzia ao
ajustamento de um ou outro dentre os espaços em conflito. No caso das artes, nota-se que são
momentos de afirmação e independência de uma classe que ao se reconhecer como tal, esboça
a idéia de um mundo que torna objeto de um sujeito capaz de estabelecer uma relação
transformadora.
Registre-se que os autores do movimento contavam com outros recursos de
inteligência e economia – São Paulo atravessava o período florescente na vida do café,
sustentado pelo Tesouro Nacional –, por isso os resultados obtidos com um caráter de
determinação. Com a ascensão do café paulista, acelera-se ao mesmo tempo o declínio da
114 ANDRADE, M. de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira, 1974. p. 130. 115 BENJAMIN, W. O autor como produtor. In: Obras escolhidas, v.1, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1986. p 120-136.
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cultura canavieira do Nordeste que não pôde competir nem em capitais nem em mão-de-obra,
pois a burguesia paulista já contava com um número significativo de colonos atuando na
colheita do café. Acrescente-se aí a crise do açúcar no século XIX, perdendo o mercado para
o exterior.
Um olhar, ainda que ligeiro para esse conjunto mostra que a oligarquia do café vai
construindo um programa político-econômico que, ao ser colocado em prática, mudou os
rumos da própria história do país. A abolição do trabalho escravo, a queda da Monarquia e,
conseqüentemente, a Proclamação da República são expressões de uma classe que age
conforme um interesse manifestado.
Depreende-se daí que o discurso modernista dos anos 20 foi uma tentativa de colocar
definitivamente o Brasil no centro do debate. No que diz respeito ao projeto nacionalista do
movimento havia a carência de um conteúdo utópico. No entanto, como pontua Alfredo
Bosi,116 esse projeto teve a marca otimista de valorização do país e foi similar o desejo de
libertar-se da tutela européia saturada de cultura. Bosi realça que a Paulo Prado deve-se, em
parte, a própria realização da Semana, que ele apoiou não só material como espiritualmente, e
a Sérgio Milliet, que compartilhou com os novos escritores de antes e depois da Segunda
Guerra as indecisões da arte na sociedade. Daí o movimento alternado da sua crítica, “ora
negando ora admitindo a poesia pura, o abstracionismo e as aventuras mais radicais das
vanguardas”. Considere-se, em termos gerais, a eclosão da Segunda Guerra Mundial que
transformou as relações entre a Europa e o “resto” do mundo, abrangendo épocas de
transformação política, econômica, social e artístico-literária.
Nesse sentido, convém indagar a respeito de São Paulo em relação ao “resto” do país
aos olhos do movimento modernista. Na concepção de Bosi, a partir da crise de 30 até o pós-
guerra, a prosa do resto do Brasil falou pela boca de um realismo ora ingênuo ora crítico, já
não modernista em sentido limitado, mas certamente moderno, ou seja, uma visão profunda
da realidade brasileira, fundamentalmente, da inteligência artística, a estabilização de uma
consciência criadora nacional, o direito à pesquisa estética. Bosi vê o modernismo como uma
porta aberta, mas esclarece que o caminho era o da cultura como inteligência histórica de toda
a realidade brasileira presente, isto é, aquele imenso e difícil ‘resto’, aquele denso intervalo
físico e social que se estende entre os extremos do mundo indígena e do mundo industrial.
116 BOSI, A. História concisa da literatura. São Paulo: Cultrix, 1984.
77
Analisando as relações entre a guerra e a literatura, Alceu Amoroso Lima117 previa o
momento marcante do regionalismo a se instalar novamente na literatura brasileira. Diz ele:
“graças, em parte, à guerra, acentuamos a tendência ao regionalismo a que já nos conduziram
nossa própria evolução”. Disso apercebeu-se Ademar Vidal e precisamente dentro desse fio
de atenção que cabe assinalar a importância da atuação do nosso autor, posto que, na sua
atividade literária levou em conta a realidade tradicional da região, não omitindo sequer uma
interpretação histórica do passado, não apenas pelos olhos das políticas à época, mas também
oferecendo outras interpretações. Assim, Ademar Vidal não fica procurando explicar as coisas
por muito tempo, acabando por se tornar definitivo e, portanto, congelado. Para ele, contentar-
se somente com a tarefa de identificação de componentes de uma tradição não basta, é preciso
ver o que há por trás dos dados compilados, tanto diferenças como semelhanças. Como se
pode ver, em carta a Mário de Andrade escreve Ademar Vidal:
Por via das dúvidas eu vou pôr minha gente de sobreaviso para mostrar que existe ainda novidade nos cantares do povo.
117 LIMA, A. A. Estudos literários, v.1. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966. p. 85-90.
78
Carta de Ademar Vidal dirigida a Mário de Andrade datada de João Pessoa, 28/8/1933. Reprodução cedida pelo IEB/USP.
79
João Pessôa. 28.8.933 Mario velho. Já me encontro nesta terra desde o dia 6 de agosto e, devo dizer, á sua espera. Ante-hontem escrevi ao Alcântara falando na viagem. Agora escrevo a você mais longamente por que fui passar alguns dias na Fazenda inteiramente retirado e á vontade até que uma tarde regressei á nossa casa aonde encontrei tudo em desordem. Mas quando vocês chegarem acharão as coisas nos seus logares. Desejo saber como essa viagem ao nordeste vae ser feita e o seu programa para que eu satisfaça uma natural curiosidade. Vão obedecer o antigo plano ? Directmente ao Rio Grande do Norte e depois Parahyba e daqui cortar o sertão com destino á Cachoeira de Paulo Affonso e de lá Maceió e Recife. Na volta saltar na Bahia. Será ainda assim ? Ha uma viagem penosa que é a de cortar o sertão em destino ao interior alagoano : longa e massante, pezar de pittoresca e movimentada dentro da melancolia do ambiente egual, sempre a mesma coisa. Preciso saber o que resolveream. Eu quero tomar sentoma. Queria ver vocês pegando um calorsinho de sertão sem poder dar nenhum geito para então sentir de verdade se é ou não heroismo se viver nestas bandas do Brasil desconhecido. No fim do anno ha calor mesmo. Não é conversa não. Quando a gente entra na baixada é que se sente a differença. Em cima da Borborema nem tanto mas, ao se transpor o limite, decendo a Viração com destino a Patos, é que a imaginação escalda e o corpo não encontra solução para suportar o forno. Não é sempre assim. Varia muito. Por vezes a fresca é deliciosa. O panasco todo deitado á violência da viração. E é só chegar um phosphoro para se ver a extensão da calamidade no deserto. Façam um plano de viagem com intervalos para que possam espiar de preferencia os ajuntamentos de povo por que assim terão a idéa precisa do que vem a ser isto que a literatura de ficção tem disvirtuado tanto. As feiras offerecem a melhor opportunidade para se fazer uma verificação legal. Por via das duvidas eu vou pôr minha gente de sobreaviso para mostrar que existe ainda novidade nos cantares do povo. Ando desgostoso é com a luz que encontrei. Muito ruim e quase que não se vê nem para uma leitura ligeira. Espero em todo caso que daqui pra lá teremos luz melhor e que não faça muita vergonha deante de paulistas tão ilustres. Acredite que não sahio á noite para não morrer por engano por que agora andam matando pelas ruas sem haver lucta. Matando de emboscada. E não me parece negocio se morrer por engano quando se tem tanta coisa a se fazer como ajuste de contas. Não tenho tido descanço seu Mario. Este povo gosta mesmo de mim e a prova é não me deixar em repouso um momento que seja. Nada posso fazer por elle. Entretanto não esmorece o seu carinho por mim. Quando deixei S. Paulo lhe escrevi ao chegar ao Rio de Janeiro e tambem ao Alcantara. Depois mandei para ambos meu livreco sobre a revolução. E nada. Até hoje não sei se receberam cartas e livros. É verdade que naquelle tempo eu estava sempre para viajar no dia seguinte e talvez isso houvesse feito com que se esperasse por uma participação certa de meu paradeiro. Agora creio não existir mais duvida nenhuma. Estou na Parahyba, na capital, em Trincheira, 554. Aguardo noticias suas e sobretudo não esqueça de falar-me de sua proxima viagem e de Alcântara e demais amigos seus para o nordeste. Já temos cajá, manga, abacaxi, tudo quanto é de fructa tropical que você gosta tanto. Veja se traz também o Antonio Bento. Seria bem bom por que elle conhece bastante e mais do que eu estas novidades da terra. Escreva a elle. Como vae o Assis? Lembre-me á sua digna familia, á Lolita, ao Assis, ao Alcântara. Espero carta sua e tambem do Alcântara, a quem escrevi com o proprio endereço do apartamento da rua Benjamin Constant.
Transcrição carta de Ademar Vidal dirigida a Mário de Andrade datada de João Pessoa, 28/8/1933. Reprodução cedida pelo IEB/USP.
80
Como se pode ver, na correspondência entre Ademar e Mário existe uma estreita
relação de amizade. O montante da carta refere-se à vinda da Missão de Pesquisas Folclóricas
ao Nordeste. A que tudo indica, Ademar já estava por dentro do plano inicial da vinda da
Missão, tanto que indaga a Mário se “vão obedecer ao antigo plano”. Mais adiante está:
“Preciso saber o que resolveram. Preciso tomar sintoma”. Isso revela a disposição de Ademar
Vidal em colaborar com Mário de Andrade nessa empreitada. E escreve: “Espero todo caso
que daqui pra lá tenhamos luz melhor e que não faça muita vergonha diante de paulistas tão
ilustres”, referindo-se, nesse caso, à precariedade do abastecimento de energia elétrica na
região.
De qualquer modo, o que emerge daqui é o desejo de Ademar Vidal em colaborar. O
caminho percorrido indica a existência de outros caminhos no interior da mesma trajetória,118
contribuindo assim para promover novas maneiras de pensar. A formação de intelectuais era
fundamental naquele momento para uma região que buscava a definição de seus respectivos
espaços culturais e literários, e tal reconhecimento só poderia ser instituído e legitimado a
partir da formação de um conjunto de elementos simbólicos identitários dessa região. Esta foi,
sem dúvida, uma das grandes preocupações colocadas por intelectuais e políticos locais.119
Ademar Vidal evidencia em seus primeiros escritos que o contraste permite
caracterizar as diferenças, contudo, há indícios de que as concepções de Mário tenham
contribuído para a afirmação desse pensamento, influenciando inclusive a sua vida literária,
principalmente no que diz respeito ao modo de ver a tradição, sempre como uma coisa viva.
Influíram não apenas as concepções de Mário, mas também a participação do movimento
modernista paulista que Ademar considerou “benéfica e necessária” por abrir outros espaços e
tratar de assuntos mais interessantes relacionados com a existência do homem, revelando que
“o puro sentido de ficção cede lugar à lógica da vida”. Em Mário de Andrade e o Nordeste
Ademar Vidal declara:
118 Gramsci chama atenção para os limites ‘máximos’ de acepção de intelectual e indaga: “É possível encontrar um critério unitário para caracterizar igualmente todas as diversas e variadas atividades intelectuais e para distingui-las, ao mesmo tempo e de modo essencial, dos outros agrupamentos sociais.” Continua o autor: o erro metodológico mais difundido ao que parece, consiste em se ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais, ao invés de buscá-la no conjunto no sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto os grupos que a personificam) se encontram, no conjunto geral das relações sociais”. Ver: GRAMSC, A. Os intelectuais e a formação da cultura, 1979. p. 6-7. 119 Para uma análise mais específica sobre a trajetória política e cultural da região Nordeste e um quadro dos elementos simbólicos identitários na Paraíba ver: D’Andréa (1992), Araújo (1997), Silveira (1984), conforme discriminados na bibliografia geral.
81
Se já conhecia bem certos pontos de vista gerais, como escritor, melhor fiquei admirando-o pessoalmente, pois que Mário timbrava em manter a sua força de originalidade [...]. Era um espírito voltado para aquilo denominado de autêntico. Tinha compreensão do original, empenhou-se em trazê-lo ao conhecimento de todos [...]. Constitui personalidade à parte na vida intelectual brasileira. Poderia ter encontrado imitadores, mas ninguém, por certo, pôde acompanhá-lo no passo ascendente. As suas obras ficarão como destaque de qualidades no sentido folclórico sensível.120
Por esse ou outro ângulo de leitura, a idéia da arte como ligação para constituição de
uma consciência de povo, de nação, de cultura parece ser um fio que aproxima Mário e
Ademar. A afirmação de uma diversidade cultural do país fez estreitar muito mais a
convivência entre ambos, que privilegiaram, no modernismo, a leitura pelo viés das escolhas,
dos compromissos, da legitimidade. Para Mário de Andrade, que voltava de uma viagem de
reconhecimento pelo Nordeste, trabalhando em folclore, não lhe faltou entusiasmo para falar
ao amigo paraibano da sua alegria e gratidão pela tão calorosa hospedagem:
Desço do bonde, bato palmas, só mesmo por bater, vou entrando, chamo Adilão do Jacaré, me instalo e trabalho, nem dou satisfação. Foi assim. Tomei posse da casa de vocês, do piano, da mesa, da tinta e até do ‘papé de assentar’. Mandava vir até café quando queria. Tudo isso aliás você sabe porque viu e deixou.121
Falamos de Ademar e Mário, com isso, não pretendemos confrontá-los. Ambos têm o
seu valor, a sua esfera de autonomia pessoal como escritores. Sabemos da simpatia nutrida
por Mário em relação a Ademar. O mesmo acontece com Ademar em relação a Mário. É
óbvio que Mário de Andrade é uma figura ímpar na história da literatura brasileira e Ademar
reconheceu e proclamou isso, considerando-o “como um gênio servido pela sutileza na
apreciação”, do qual ele teve sorte de partilhar o convívio. Uma coisa parece certa: Mário e
Ademar conceberam o desenvolvimento da nossa própria sociedade e cultura procurando
apreender as diversidades, penetrando na experiência de um povo para posteriormente relatá-
la. Convivência fraterna; momentos; transitoriedade em que se mesclam afinidades.
120 VIDAL, A. Mário de Andrade e o Nordeste, Revista do livro, Rio de Janeiro, n. 31, 1967. p. 12-3. 121 Carta de Mário a Ademar datada de 6 de março de 1929. VIDAL, A. Mário de Andrade e o Nordeste. Revista do livro Rio de Janeiro, n.31, 1967.
82
2.6 Ademar Vidal e a Missão: acolhimento
Adiantou querer saber muita coisa? O senhor sabia, lá para cima, me disseram. Mas, de repente chegou nesse sertão, viu tudo diverso diferente, o que nunca tinha visto.
Guimarães Rosa, Obras Completas
Conforme nos é dado observar pela vida de Ademar Vidal, desde o momento em que
ele trava conhecimento com Mário de Andrade entre 1929 e 1945, quando da morte do amigo
paulistano, sua participação e importância na colaboração da Missão inegavelmente estiveram
vinculadas a uma estreita colaboração com Mário. Diz Ademar:
Lá um dia, ele [Mário de Andrade] envia Luís Saia ao Nordeste para serviço da maior importância para o Brasil. Mário de Andrade fundara e dirigia o Departamento Municipal de Folclore em suas variadas manifestações. Proporcionei ao visitante todas as facilidades. Creio que nada lhe faltou. O trabalho realizado na Paraíba, se não foi completo, muito teria se aproximado de sua exata finalidade [...]. Luís Saia cumpriu as determinações orientadas por Mário de Andrade, e assim, conseguiu reunir de sua viagem precioso acervo folclórico.122
Não podemos deixar de reconhecer a colaboração de Ademar Vidal entre março e
julho de 1938 junto à Missão de Pesquisas Folclóricas no Nordeste, atendendo ao pedido de
Mário de Andrade para auxiliar o grupo nesse encargo. Em seu papel também de anfitrião que
desempenhou durante a permanência de dois meses dos pesquisadores na Paraíba, Ademar
Vidal auxiliou, enviando cartas a prefeitos que recebiam os integrantes da Missão de
Pesquisas Folclóricas nos municípios, contribuindo para o bom êxito do grupo.
Diante da necessidade de divulgar a chegada do grupo paulistano à Paraíba, o jornal A
União publica algumas notas destacando a importância de se filmar e gravar os Caboclinhos
paraibanos, os Congos e outras manifestações folclóricas de interesse do Estado. De todo
modo, os pesquisadores da Missão pretendiam reunir de sua viagem ao Nordeste as riquezas
da imaginação popular, bem como os usos e costumes de um povo. Ressaltamos que, devido à
ilegibilidade das Notas colhidas no jornal A União, fizemos as transcrições que seguem após
as cópias dos originais.
122 VIDAL, A. Mário de Andrade e o Nordeste, Revista do livro, Rio de Janeiro, n. 31, 1967. p. 22.
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Jornal A União, Paraíba, ano XLVI, n.34, 11 de fevereiro de 1938.
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Vem ao Norte uma missão de pesquisas folclóricas de São Paulo
Dentro de breves dias deverá chegar a esta cidade uma Missão de Pesquisas folclóricas, do departamento de cultura de São Paulo, que, chefiada pelo engenheiro e folclorista paulista Luís Saia virá filmar e gravar os “Caboclinhos” paraibanos que constituem entre nós um acontecimento de nota durante os dias do Carnaval.
Ainda traz a Missão de Pesquisas Folclóricas, de São Paulo, o objetivo de observar, filmar e gravar outros grupos regionais como os “Bumba-meu-boi”, “Congos” e outros blocos que tanto divertem nossa gente no Carnaval.
Segundo comunicação recebida nesta capital, a Missão de Pesquisas Folclóricas, agirá em colaboração com o Departamento de Estatística e Propaganda, que deverá colher dados e informações úteis ao desempenho completo do programa que nos traz aqui essa comissão de intelectuais paulistas, todos vivamente interessados pelas coisas de nossa terra.
Por nosso intermédio o diretor do Departamento de Estatística e Propaganda, avisa que, todos os dias úteis no primeiro e segundo expediente, ele se encontra à disposição de todos os interessados no assunto, a fim de entrar em entendimento com os organizadores destes ranchos e blocos carnavalescos, para que a Missão de Pesquisas Folclóricas, que já se encontra de viagem para cá, encontre facilmente às mãos tudo que mais lhe possa interessar neste particular. Jornal A União, Paraíba, Ano XLVI, n 34, 11 de fevereiro de 1938. (Transcrição).
Jornal A União, Paraíba, ano XLVI, n.35, 12 de fevereiro de 1938
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A MISSÃO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS Um aviso do Departamento de Estatística e Publicidade
Já se encontrando de viagem para o Norte a Missão de Pesquisas Folclóricas que nos envia o Departamento Municipal de Cultura de São Paulo e sendo a Paraíba um dos pontos objetivados para as observações e pesquisas dessa ilustre comissão de intelectuais paulistas, o Departamento de Estatística e Publicidade convida para um entendimento todos os organizadores de ranchos, blocos e outras associações carnavalescas tipicamente regionais, no intuito de colher dados, informações e material, a fim de proporcionar aos visitantes os meios necessários para o cumprimento integral de seu programa de ação em nosso estado.
Na Diretoria Geral do Departamento de Estatística, Planejamento e Publicidade, em uma das salas do Palácio da Redenção, os interessados poderão se dirigir ao Dr. Abelardo Jurema, designado pelo Sr. Diretor para esse fim, que explicará detalhadamente a todos o que é preciso se fazer para melhor colaborarmos junto à Missão de Pesquisa Folclórica de São Paulo. Jornal A União, Paraíba, Ano XLVI, n 35, 12 de fevereiro de 1938. (Transcrição)
Ademar Vidal estava por demais envolvido com a Missão de Pesquisas Folclóricas e
com as manifestações culturais populares no Nordeste, buscando a interação com a cultura
oral, que é patrimônio do povo com quem ela se relacionava. Nesse trajeto várias
personalidades contribuíram para o bom andamento da Missão, contudo, podemos afirmar,
sem dúvida, que Ademar Vidal foi um dos maiores entusiastas desse movimento na Paraíba,
com a determinação de contribuir para o registro da cultura brasileira. À época, Ademar
estava de todo contagiado pelo entusiasmo dos paulistas, porém essa atitude não o impedia de
assumir uma posição crítica diante dos feitos que presenciava e das idéias que assimilava,
reconhecendo que as riquezas de imaginação popular, criações artísticas em assuntos de
música e arquitetura, canto e escultura, nada ficou por registrar. Para ele, as “velhas” tradições
do povo, que andavam desaparecendo à falta do que por eles se interesse, essas tradições se
acham agora recolhidas.
Em visita à cidade de Pombal, Luís Saia é entrevistado pelo correspondente do jornal
A União Mário Dalva que sugere ao chefe da Missão realizar uma conferência sobre o seu
contato com os cantadores sertanejos, mas a sugestão só foi aceita pelo folclorista paulistano
após receber o aval de Mário de Andrade. Assim, o jornal A União publica os principais
objetivos da Missão no Nordeste e faz um resumo da entrevista com Luís Saia, Vejamos.
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Jornal A União, Paraíba, ano XLVI, n. 47, 24 de fevereiro de 1938.
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VISITOU ONTEM, ESTA CAPITAL, O CHEFE DA MISSÃO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS DE SÃO PAULO OS PRINCIPAIS OBJETIVOS DA MISSÃO DO DEPARTAMENTO DE CULTURA DE SÃO PAULO Esteve ontem à noite, em vista a esta folha o dr. Luís Saia, que se fez acompanhar do escritor Adhemar Vidal e do dr. Abelardo jurema. O Dr. Luís Saia chefia a Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo que, no momento, se encontra em Recife, colhendo vasta documentação folclórica, filmando e gravando as mais variadas organizações carnavalescas, como maracatus, ranchos, etc. Em curta palestra com um dos nossos redatores o Dr. Luís Saia disse que a sua visita agora a Paraíba era curta, pois deverá seguir hoje cedo para a vizinha capital do Sul, a fim de continuar o seu programa de ação ali, afirmando que tinha vindo preparar o ambiente para a próxima chegada a João Pessoa da Missão de Pesquisas Folclóricas que se realizará no começo de março, logo depois do carnaval. Continuando disse o Dr. Luís Saia, que em Recife a Missão já havia conseguido muita coisa interessante para o Departamento de Cultura de São Paulo, inclusive um vasta documentação sobre os xangôs pernambucanos, um material abundante sobre o canto dos carregadores de piano, hoje já em declínio, canções do “bumba-meu-boi”, estando quase pronto tudo o que há em Recife sobre os “Maracatus”, “Cheganças”, “Caboclinhos” e outros blocos e ranchos tipicamente regionais que abrilhantam excepcionalmente o carnaval de Pernambuco. O chefe da Missão de Pesquisas Folclóricas declarou que pretende ir até Águas Belas, onde a cinematografará e gravará os “Torés”, danças religiosas e guerreiras dos índios que ainda existem naquela parte do território do Estado do Sul. Afora todo o material existente sobre o folclore musical, disse o Dr. Luís Saia, interessa a Missão tudo o que se refere a arte técnica popular, principalmente a arquitetura, certas técnicas de trabalho manual e monumentos históricos, enfim, o que seja característico da formação brasileira. Aqui na Paraíba, a Missão de Pesquisas folclóricas, pretende – afirmou o Dr. Luís Saia – gravar e cinematografar, sobretudo, os “caboclinhos”, “Cabinda”, e “Bumba-meu-Boi”, porque são os mais puros, os que conservam mais a originalidade e a tradição, devendo ainda visitar o interior do Estado para conseguir vasta reportagem cinematográfica dos cantadores regionais e repentistas. Terminando a sua breve palestra, o Dr. Luís Saia se despediu dos que fazem esta folha, dizendo que, apesar das poucas horas que passou em nossa capital, pôde afirmar sem receio que tudo o que viu aqui muito o surpreendeu, principalmente pelo aspecto geral que apresenta a cidade de João Pessoa, uma cidade que se renova e que proporciona ao visitante os momentos mais agradáveis. Jornal A União, Paraíba, Ano XLVI. n°47, 24 de fevereiro de 1938.
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Jornal A União, Paraíba, ano XLVI, n. 50, 27 de março de 1938.
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PESQUISANDO O FOLCLORE NORTISTA
Está nesta capital a Missão do departamento de Cultura da municipalidade de São Paulo .
Chegou ontem a esta capital a Missão de Pesquisas Folclóricas, do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, composta dos Srs. Luís Saia, seu chefe, Martin Braunwiser, técnico de música popular, Benedito Pacheco, de gravação e Antonio Ladeira, auxiliar de pesquisa. A Missão que se encontra no Nordeste há mais de um mês, esteve durante todo esse tempo em permanência em Pernambuco, colhendo um vasto material de arte e técnica popular, desde canto de carregador de piano até processos primitivos de trabalho. Em conversa conosco na noite de ontem, o Dr. Luís Saia, disse que está muito curioso de observar e colher tudo o que for expressivo no colorido da paisagem humana de nossa terra. Mário de Andrade, diretor do Departamento a que pertence a Missão, – nome por demais conhecido em todo o Brasil – que aqui esteve nos começos de 1929, é um entusiasta da riqueza folclórica paraibana. Daí a esperança de que a Paraíba seja um dos Estados nortistas que mais contribua para a pesquisa. VÃO SER FILMADAS AS DANÇAS DOS “CABOCLINHOS” Iniciando, desde logo, os trabalhos, a Missão vai se pôr em contato hoje à tarde, mais ou menos às 14 horas, com um dos blocos de “caboclinhos”, para a filmagem de duas danças características. Através da P.R.I. – 4, rádio Tabajara da Paraíba, o Departamento de Publicidade e Propaganda do Estado está convocando, desde ontem, todos aqueles que tenham uma contribuição regional a dar a Missão Folclórica de São Paulo que, no seu objetivo, merece o mais decidido apoio de nossos conterrâneos, uma vez que a Paraíba, quanto maior for o material fornecido no vasto campo das danças, da música e do canto tradicional, mais se classificará entre as outras zonas a serem percorridas e pesquisadas. O GOVERNO PRESTIGIA A MISSÃO Logo após a sua chegada a João Pessoa ontem, pela manhã, os componentes da Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura de São Paulo, estiveram no Palácio da Redenção, em visita de cordialidade ao interventor Argemiro de Figueiredo que lhes assegurou todo o apoio moral e material da Paraíba para objetivação do seu programa. Jornal A União, Paraíba, Ano XLVI, n°50, 27 de março de 1938. (Transcrição)
Após a Missão percorrer algumas cidades do interior do Estado da Paraíba, o jornal A
União faz uma síntese do relato de Luís Saia. Vejamos:
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Jornal A União, Paraíba, ano XLVI, n. 81, 27 de abril de 1938.
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OBTEVE PLENO ÊXITO NO INTERIOR PARAIBANO A MISSÃO FOLCLÓRICA DA MUNICIPALIDADE DE SÃO PAULO
Entrevistado pela A UNIÃO, o Dr. Luís Saia, presidente da Missão, declarou-nos: “O interesse que tomou pelo nosso trabalho o governo de Argemiro de Figueiredo foi e está sendo um fator predominante na quantidade e qualidade da matéria até agora colhida, e naquele que temos em perspectivas para colher. Desta maneira quero frisar o reconhecimento e a gratidão mais sincera da nossa parte a s. excelência. De regresso pela sua excursão no interior do Estado, encontra-se nesta capital a Missão Folclórica do Estado de São Paulo, que aqui veio com aparelhamentos adequados acompanhar ao vivo “instantâneos” da música popular brasileira. Entre nós, o retorno de sua viagem pelo “hinterland” da Paraíba, o Dr. Luís Saia, chefe da referida Missão de estudos, falou-nos a respeito de suas impressões, colhidas nos locais onde se demorou a serviço daquele empreendimento artístico, dizendo-nos o seguinte: UMA RAZÃO DO NOSSO ÊXITO
– Acabamos de chegar do sertão e trazemos dele uma profunda impressão, um entusiasmo aumentado pela gente nordestina, e um sincero reconhecimento às autoridades das cidades visitadas, que dispensaram aos componentes de nossa Missão, a mais carinhosa acolhida. Quero mesmo frisar, antes do mais, um ponto importante: é a compreensão e o espírito de colaboração que estamos encontrando nas autoridades paraibanas, pois daí vem predominantemente o êxito que vimos obtendo em nossos trabalhos. Tínhamos certeza de encontrar aqui a hospitalidade que caracteriza o nordestino, porém confesso que alegremente vimos superadas as nossas expectativas nesse sentido, pois além da amizade e camaradagem, esperadas viemos encontrar nas autoridades deste Estado, administradores admiráveis que desde logo demonstraram uma noção tão compreensiva e uma capacidade de colaboração tão eficiente nas nossas pesquisas. O interesse que tomou pelo nosso trabalho o governo Argemiro de Figueiredo foi e está sendo um fator predominante na quantidade e qualidade do material até agora colhido, e naquele que temos perspectiva para colher. Desta maneira quero frisar o reconhecimento e a gratidão mais sincera de nossa parte a s. excelência. O ITINERÁRIO DA NOSSA MISSÃO E A GENTIL ACOLHIDA DISPENSADA – A viagem que acabamos de realizar, focalizou, sobretudo, a zona do sertão. Partimos no dia 1° de abril e, ciceroneados pelo amigo Pedro Batista, visitamos Campina grande e o cariri. Neste último lugar, além de material de música popular, tivemos a oportunidade de fixar inscrições rupestres na Fazenda Pedreira. Do Cariri descendo a “viração” entramos no sertão. A primeira localidade visitada foi Patos. Aí o prefeito do Dr. Clóvis Sátiro, nos esperava com uma porção de surpresas agradáveis. Na Fazenda “S.
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Jose” pudemos colher logo no dia seguinte a nossa chegada, os primeiros aboios paraibanos e fixar aspectos interessantíssimos de uma vaquejada, onde fomos surpreender, pessoalmente a prodigiosa riqueza do sertanejo nordestino, fazendo verdadeiras loucuras de destrezas que justificam plenamente a demagogia de Euclides da Cunha disse deles. De volta a Patos iniciamos o nosso trabalho, colhendo cocos, aboios e moda de viola. A camaradagem do prefeito de Santa Luzia, nos proporcionou, aí, a oportunidade de iniciar nossa pesquisa sobre a técnica do cantador trazendo daquele município o Aleixo Criança. Também o prefeito Montenegro, de Piancó, veio nos visitar em Patos, e combinamos o trabalho naquela cidade. Infelizmente, circunstância alheia a nossa vontade, impediu uma visita a Piancó. Deixamos aqui, entretanto, o nosso reconhecimento e gratidão o interesse demonstrado pelo amigo Montenegro. Certamente, não esqueceremos nunca a atenção que dispensou a nossa empreitada. AS NOSSAS GRAVAÇÕES DO “BUMBA-MEU-BOI” E OUTRAS À noite, em Patos, roubávamos um tempo ao serviço de gravação, para acompanhar os ensaios do “Bumba-meu-boi”, que assistíamos sempre acompanhados pelo amigo Ernani Sátiro. Fixamos mais tarde nossa peça e partimos para Pombal com a nossa bagagem aumentada de mais de cinqüenta gravações. Em Pombal nos esperava um colaborador extremamente eficiente: o prefeito Sá Cavalcanti. Mais de uma centena de gravações executadas aí constituem uma valiosa documentação. Sobretudo, o “Rei de Congo”, colhido completamente, em filme e gravação, e a quantidade muita de cocos considero importante. Despedimo-nos do pessoal da terra, demos um abraço no Sá Cavalcanti e rumamos para Sousa. ENCONTRAMOS UM SERTÃO ABSOLUTAMENTE FLORESCIDO
Sempre, em todos os pontos atingidos, encontramos telegramas carinhosos e encorajados do Dr. Raul de Góis e José Mariz. É necessário uma circunstância importante. O inverno está ótimo no sertão. Encontramos um sertão absolutamente florescido, e funcionando fertilmente nos roçados, contrastando com descrições lidas que contavam com sertões de galhos secos, sem água, gado magro. Naturalmente o pessoal que mais podia nos fornecer material aproveitava o inverno nas lavouras. No entanto, em toda a parte a boa vontade nos trazia a gente do povo para os aparelhos gravarem coisas da sua música e da sua tradição.
Em Souza fomos encontrar os auxiliares do prefeito Euládio Melo, trabalhando na preparação de nossa colheita. Quando Euládio chegou, já estávamos colhendo cocos, modinhas imperiais, lundus, toadas de ouro, “Reis de Congo”, e fazendo camaradagem com o “Chico-pé-torto”.que nos prepararia, para mais tarde, um “Brinquedo do boi”. Estivemos na Serra do comissário e partimos da terra de Romeu Mariz, admirável perfilador de cantadores e sertanejos, com um aumento de mais de 70 gravações.
Para Cajazeiras rumamos, no sábado de Aleluia. Ainda nem bem chegados, recebemos aí a gentilíssima visita do prefeito Matos. No dia seguinte fomos a Piranhas e, de volta, trabalhamos importante documentação do cantor repentista “Mané” Galdino.
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O REGRESSO DE NOSSA MISSÃO E A NOSSA PESQUISA NESTA CAPITAL A turma de rapazes de Cajazeiras nos proporcionou uma acolhida realmente carinhosa. A nossa vontade era aproveitar a proximidade para dar um pulo a Juazeiro do Padre Cícero. Porém Juazeiro é no Ceará, e a gente tem que caminhar por partes. Aliás, já estávamos no décimo nono dia de viagem e precisávamos tratar do retorno. De Cajazeiras partimos para Coremas. Aí, a camaradagem e gentileza do atual mestre de obras, Dr. Amorim, nos trouxe facilidades e daí a dois dias partimos de Coremas com a bagagem aumentada de um “reisado” toadas dos carregadores de pedra e cocos. Voltamos para filmar e gravar o “Bumba-meu-boi” e outras coisas que deixáramos preparadas. Então tivemos o prazer de receber a gentilíssima visita do Dr. Milton de Oliveira. À tardinha, fomos abraçar os amigos e partimos rumo a Campina Grande. Na passagem do rio Piranhas encontramos e abraçamos o Dr. José Mariz que estava a caminho de Sousa. Em Pombal tiramos um dedo de prosa com o Sá Cavalcante e quando atingimos Patos, já era tarde demais e só pudemos deixar um abraço ao prefeito Clóvis e ao Ernani Sátiro. De madrugada estávamos em Campina Grande, depois de uma conversa com o Dr. Hortêncio Ribeiro, rumamos par Alagoa Nova e Grande e Brejo de Areias, para combinar com os prefeitos dessa localidades o trabalho a realizar dentro de poucos dias, quando também pretendemos fazer uma visita a Serra do Fagundes, acompanhados, gentilmente por Fagundes Viana. Nesta zona há coisa muito a colher: “Bumba-meu-boi”, juremeiros, caboclinhos, coquistas e cantadores. Lá para as onze horas atingimos afinal esta capital, depois de uma viagem cansativa, porém riquíssima de uma colheita. Hoje descansamos e amanhã pretendemos entrar novamente em atividades na fixação da “barca” e outras coisas nesta capital. Jornal A União, Paraíba, Ano XLVI, n°81, 27 de abril de 1938. (Transcrição)
Sabe-se que Mário de Andrade coloca o Município de São Paulo como fonte de
amparo do folclore e da música, artes que para ele possuíam uma força socializante, posto que
não pensava a cultura elitizante, mas sim, a disseminação da cultura popular. Com este
propósito e com o cuidado de investigar os aspectos formadores da identidade nacional, é que
a Missão de Pesquisas Folclóricas foi enviada ao Nordeste brasileiro. A equipe registrou em
disco, fotografou, filmou e anotou em cadernetas de campo as manifestações populares
encontradas na região. Na verdade, a Missão testemunha os saberes apropriando-se do que já
existe, com o sentido de recriar, futuramente, o já existente.
De todo modo, existe um esforço por parte da Missão em reconhecer a importância das
manifestações culturais populares como uma etapa do conhecimento popular num dado local
e tempo. Muito do seu trabalho sobre o folclore, sobre a tradição oral no Nordeste, traz uma
imagem romântica dos costumes, principalmente quando admite que as tradições populares
são quase sempre “ingênuas e poéticas”.
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Percorrendo as Notas no jornal A União, que focalizam o trabalho da Missão na
Paraíba, temos uma idéia da atuação do grupo no Estado, imprimindo um método de pesquisa
explícito na coleta dos dados e, por isso, podemos dizer que a metodologia utilizada consiste
em colher um rico material sobre as manifestações populares, por meio da observação. Assim,
a Missão pôde recolher o que havia de mais significativo na cultura da época, interrogando as
pessoas que contavam o que haviam aprendido das gerações passadas e que estava inscrito na
memória, e também presente nas manifestações registradas. Nesse sentido, o esforço
registrador identifica-se à idéia de preservação e a tarefa é considerar a cultura como
patrimônio histórico.
À parte isso, em carta para Mário de Andrade em agosto de 1936 Ademar Vidal
comentava sobre a carta que recebera de Oneyda Alvarenga datada de 17 de dezembro de
1935.123 Nela, Ademar prometia a Mário atender às solicitações de Oneyda feitas para o
Departamento de Cultura e Recreação, e ressalta que está pronto para realizar tudo quanto for
possível, mormente quando se trata de interesse que de perto diz respeito a Mário de Andrade.
E complementa: “Creia que recebi somente ontem, uma carta que me escreveu dona Oneyda
Alvarenga com data de 17 de dezembro de 1935 [...] Procuro fazer o que é possível contanto
que os amigos fiquem satisfeitos e sintam a sinceridade da minha boa vontade de servir”,
como se pode ver na carta a seguir.
123 Não conseguimos localizar no Arquivo Ademar Vidal, no IHGP, a carta de Oneyda Alvarenga para Ademar Vidal.
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Carta de Ademar Vidal para Mário de Andrade escrita em 1936. Reprodução cedida pelo IEB/USP.
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Em 31 de Agosto de 1936. Querido Mario: se eu não lhe escrever nunca terei o prazer de conseguir noticias suas. Que é isso? Já esqueceu o amigo perdido nestes cantos nacionaes? Não repare um silencio sem significação que ás vezes se faz imprevistamente. Não tenho podido dar vencimento ao trabalho. A minha capacidade é muito reduzida por causa da saúde sobretudo. Nestes ultimos meses sofri golpes cureis. Perdi meu velho pae que era um grande amigo meu. Devotava-me uma paixão conhecida por toda a cidade. Ainda não estou conformado com a separação definitiva. O outro golpe foi a morte de meu sogro que tambem era uma pae. Tudo isso perturbou grandemente o ritimo de minha vida intima. Vamos adeante, Mario. Creia que recebi hontem, somente hontem, uma carta que me escreveu d. Oneyda Alvarenga, com data de 17 de dezembro de 1935. Como se explica tamanha demora? Será possivel que o correio a tenha retido por causa de máo serviço ou teria sido esquecimento da sinataria de colocal-a na caixa? De qualquer forma é inacreditavel a demora e só porisso se conclue de não haver eu dito coisa alguma. Vou pedir desculpas a ela e procurar atender a todas as solicitações que me faz para o Departamento de Cultura e Recreação. Estou sempre pronto para realizar tudo quanto fôr possivel, mormente quando se trata de interesse que de perto lhe diz respeito. Ainda ha uma semana tive que mandar para Rodrigo M. F. de Andrade um grande numero de retratos de obras de arte antiga existente nesta capital. Já providenciei para serem tiradas fotografias no interior do Estado.Procuro fazer o que é possivel com tanto que os amigos fiquem satisfeitos e sintam a sinceridade da minha bôa vontade de servir. Ele escreveu-me sobre o Departamento que dirige no Rio e que é conseqüência do vasto plano cultural organisado por você. Peçõ-lhe para me dizer minunciosamente de que se trata, isto é, qual o programa, se abrange o paiz todo, enfim me forneça uma orientação, pois com a carta de Rodrigo compreendi que o serviço por ele dirigido é nacional e o que você superintende se limita a S. Paulo. Desejo uma explicação esclarecedora. Podemos fazer muita coisa por aqui. Eu mesmo me encarregarei. Mas como sabe umas tantas medidas dependem de orientação e é exatamente o que me falta. Estou gastando dinheiro a tôa. Por intermédio de Helena de Magalhães Castro tive noticias suas e o mesmo aconteceu com o casal Botelho. Este ficou de voltar aqui com o fim adquirir mobilia de jacarandá. Até hoje eu espero. Gostei muito dos Botelhos e Helena. Quanto a você é que o tempo se fechou de vez para a menor noticia. Como é que se faz isso sem razões plausíveis? Já nem falo mais na sua encruada viagem ao norte. Você anda fôrro, não quer mais saber do norte quanto mais de Paraíba! Podia bem dar um passeio para organisar núcleos regionaes que fossem remetendo regularmente o necessario para a grande obra que você esta realizando. Mas não quer mais saber daqui, quer é sul, clima bom, facilidade de civilização, saúde, prolongamento de vida, isto sim, e não o norte doentio, insalubre, feio, abandonado. E acredite, querido Mario, que não o condeno poristo, pelo contrario, acho que você tem lá suas razões. Diga-me: que se fez até agora sobre o Antonio de Alcântara Machado? Sentira se não fosse incluido em qualquer iniciativa dos amigos que signifique sincero culto á sua memoria. Escreva-me sobre este ponto pelo qual tenho particular interesse,
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pois gostava muito dele, tinha-lhe admiração e fiquei desolado com a sua morte injusta. Não sei se viu os “Estudos Afro-Brasileiros”. Dentro deles você achará um negocio que escrevi e sustentei no Congresso de Recife. Longo demais. Gostaria de saber se você chegou a ler o meu trabalho e o que acha dele. Por sua vez queira mandar-me o que tem escrito de um ano para cá. Nunca mais vi nada seu. Tambem vivo tão distante dos acontecimentos que não estranho tanta ignorancia. Você deve estar ligadissimo ao Serviço que dirige. Deve estar muito devotado. Entretanto veja se pode descançar un dias e voar até á praia de Tambaú para beber agua de côco verde e ver o povo dansar livremente por baixo do coqueiral. Seotimo. Venha. Aguardo-o com um afetuoso abraço o seu devotado amigo. Lembranças de Maria e do casal de tapuias que já tenho.
Transcrição da carta de Ademar Vidal para Mário de Andrade escrita em 1936. Reprodução cedida pelo IEB/USP.
De todo modo, Ademar Vidal já estava informado das atividades de Pesquisas
Folclóricas comandadas por Mário de Andrade no Município de São Paulo antes mesmo da
concretização em 1938. Como se pode perceber, a história da expedição paulista na Paraíba é
também parte da história da vida de Ademar Vidal. É possível que Ademar Vidal tenha
colhido alguns louros da sua colaboração nesse projeto, mesmo por momentos ínfimos como
este, em que visitou tempos depois, em São Paulo, o Departamento conduzido por Oneyda
Alvarenga, quando pôde conferir o resultado de um trabalho notável, que envolve as
manifestações culturais populares e está intimamente ligado ao projeto artístico de Mário de
Andrade. Diz Ademar:
Ouvi e recordei a alma popular de nossa gente por meio da música e do canto, Barca, Bumba-meu-boi, Maracatu e Congo – tudo lá se encontra perfeito nos discos, nos estudos de observação e crítica, nas variantes de beleza inconfundível e também nas múltiplas manifestações da sensibilidade popular.124
Em entrevista ao Jornal do Commércio de Pernambuco e ao jornal A União da
Paraíba, Luís Saia afirma que a Missão já havia conseguido muita coisa interessante para o
Departamento de Cultura de São Paulo, destacando que tudo o que se refere à arte técnica
popular, tudo que seja dado característico da formação brasileira interessa ao grupo. Além dos
Caboclinhos, os pesquisadores coletaram dados sobre Cambinda, Bumba-meu-boi, Samba de
roda (Coco) e ouviram poetas populares, cantadores e repentistas. O caminho percorrido pela
missão no Estado da Paraíba pode ser visualizado nas figuras a seguir.
124 VIDAL, A. Mário de Andrade e o Nordeste, Revista do livro, Rio de Janeiro, n. 31, 1967. p. 22.
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Mapa com o itinerário da Missão de Pesquisa Folclórica na Paraíba.
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Mapa com o itinerário da Missão de Pesquisa Folclórica na Paraíba.
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Não pretendemos realizar, no âmbito deste trabalho, uma discussão detalhada dos
elementos da cultura popular colhidos pela Missão de Pesquisas Folclóricas no Nordeste.
Cabe destacar que para compreender a atuação deste grupo de pesquisa, nas diferentes regiões
do Brasil, é preciso conhecer a vinculação do pesquisador com o Departamento de Cultura de
São Paulo, estando à frente como coordenador Mário de Andrade entre 1935 e 1938.
Juntamente com colaboradores, várias pesquisas etnográficas foram realizadas em São
Paulo e Estados do Sudeste, Norte, Nordeste e Centro-Oeste brasileiros. Trata-se, como
observa o então Secretário Municipal de Cultura em 2002 Rodolfo Konder, ao prefaciar a
obra Acervo de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade: 1935-1938, de um projeto
hegemônico de formar uma identidade nacional, a partir de elementos folclóricos tradicionais.
Essas pesquisas eram feitas pela Subdivisão de Documentação Social e Estatísticas Municipal
– Departamento de Cultura – , que tinha a incumbência de realizar levantamento das situações
sociais e econômicas da cidade de São Paulo. Vale ressaltar que o registro da diversidade dos
gêneros de vida e da cultura material do povo brasileiro era harmonizado com a intenção do
Estado Novo (1937 – 1945) de valorizar as práticas populares e não somente o erudito e a
elite letrada. Por isso é evidente a ênfase na herança cultural comum aos brasileiros em todas
as regiões do Brasil.
Relacionando o termo “cultura” à atividade de pesquisa folclórica no Nordeste
podemos dizer que a ênfase ao termo cultura nos conduz ao seu entendimento como categoria
de compreensão não apenas de um campo específico da realidade social, mas como a extensão
em que tal realidade e todos os seus campos são constituídos, significativamente, de
experiências e práticas efetivas. A organização da cultura em campos sociais contribui para
recepção dos bens culturais pelas camadas sociais favorecidas de meios sociais e
institucionais. Tais organizações podem ser compreendidas através do que Bourdieu125
denomina constituição de um capital social objetivado e institucionalizado, isto é, a tutela da
elite sobre as representações simbólicas de um povo. Assim sendo, a transformação do
“capital cultural” em privilégios e distinções sociais cria um “mercado simbólico” em que o
valor de uma produção cultural é determinado pelo julgamento de instituições que detêm a
autoridade oficial para tal domínio, a exemplo dos museus, bibliotecas, centros de
documentação, entre outros organismos culturais.
125 BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.
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Neste contexto a Missão de Pesquisas Folclóricas desempenhou um papel instrumental
na aproximação da riqueza simbólica do Nordeste, contribuindo para reforçar os valores de
uma tradição cultural, capazes de emoldurar o perfil de uma região e participar do processo de
organização da sua identidade.
Um olhar atento sobre os centros de cultura poderia indicar que esses centros, hoje,
passam a ser o lugar em que se acumula um patrimônio imaterial, ou seja, um tipo de espaço
de consagração da memória popular. Esse espaço impõe, até hoje, certa dificuldade de
aproximação por parte dos pesquisadores e visitantes atuais e sugere, ao final da visitação, a
apreensão de uma certa cultura que repousa nessa documentação. Tudo leva a crer que tal
documentação favorecia-se da proposta que conciliava o conhecimento das manifestações
populares particularizado por regiões. Não parece haver dúvida no fato de que entre os
objetivos da Missão estivesse o atendimento da proposta da antiga Discoteca Municipal:
apresentar ao público, aspectos do Brasil.
No caso específico do trabalho da Missão de Pesquisas Folclóricas na Paraíba, há uma
intenção coletiva voltada para a sensibilidade popular, ou seja, uma preferência pelas coisas
simples que os olhos dos pesquisadores paulistas viam e que os ouvidos ouviam. A
apropriação das manifestações populares pelos pesquisadores, como parte do processo de
construção do conhecimento indica que esse próprio processo tenha sido conduzido numa
relação não de igualdade, mas sim, de abertura entre os pesquisadores e as pessoas com as
quais conviveram. Embora a relação entre as duas partes não signifique, necessariamente, um
conflito de classe, é natural que muitas das contradições inerentes nesta relação tenham a ver
com perspectivas diferentes de classes e visões de mundo.
Sabemos que o trabalho da Missão se reveste de um conteúdo impressionista, mesmo
assim, não deixa de traçar observações fecundas sobre as manifestações culturais, que quis
conhecer de perto, para melhor colher suas impressões oferecendo contribuição importante
para entender a arte brasileira como amálgama do Brasil. Fic a nítido que as décadas de trinta e
quarenta eram muito ricas de valorização da cultura brasileira e as manifestações culturais
populares aí contidas, intensificaram o repertório coletado pela Missão na Paraíba.
No sentido da tarefa da Missão ao Nordeste, acreditamos que o esforço maior do
grupo, foi a construção de uma documentação de uma tradição sistematizada e consciente. De
certa forma, o que prevalece nessa construção de dados é o ponto de vista popular, isto é, as
perspectivas a partir das manifestações culturais populares.
Os registros do grupo de pesquisas folclóricas são, a um só tempo, resultado do
trabalho de recolhimento e de transmissão da experiência social e oportunidade para retomada
102
dos modos de ser e de pensar de um povo diante de um mundo mais abrangente. Devemos
arrematar, lembrando não apenas a atuação dos pesquisadores no Nordeste, mas incluir, nessa
etapa, a colaboração de Ademar Vidal e seu compromisso com Mário de Andrade, em prol do
registro das manifestações culturais populares na Paraíba.
É nesse contexto que vemos a obra de Ademar Vidal, comprometida não apenas em
estender e aprofundar o projeto da Missão na Paraíba, mas principalmente, em oferecer a
possibilidade para a organização de vivência em formas e práticas sociais. Essa idéia de
colaboração por parte de Ademar Vidal está enraizada em uma visão de cultura na qual o
significado é unido a um projeto que dá prioridade às manifestações culturais populares. Em
seu trabalho de escritor, sempre buscava atar pontas através da palavra simples extraída do
povo, acreditando que a palavra é o campo partilhado pelo autor e pelo leitor, este como um
produtor ativo de significados. Nesse sentido, os escritos de Ademar Vidal são importantes
porque captam o espontâneo e revelam esse espontâneo.
103
3 Entre a Vivência e o Registro
A Paraíba tem o privilégio de contar com boas fontes cristalinas para investigações, sem tocar em possibilidades outras como cultura popular de uma riqueza essencial, possibilidades escondidas, bastando que leiam e examinem o que ela tem de sobra.
Ademar Vidal Inédito, 1979 3.1 Em cena o afro-brasileiro
As obras de Ademar Vidal não são obras que possam ser tomadas totalmente em
separado. As idéias desenvolvidas em escritos anteriores são retomadas por ele em escritos
seguintes – sempre volta aos mesmos temas, às mesmas questões –, e apontam uma
disposição que não é eventual. Essa disposição traz consigo uma consciência histórica e
presente, de formas diferentes, nas idéias da intelectualidade brasileira e, de modo especial,
nas transformações que vinham ocorrendo de maneira dispersa na sociedade e que apontavam
para os primeiros passos do modernismo no Brasil.
A ênfase na cultura popular é outra singularidade na obra de Ademar Vidal. A
sustentação de fundo vem do diálogo que ele mantém com a tradição mais literária que
científica do ensaísmo nacionalista, colocando seus escritos na fronteira viva da literatura de
investigação com a literatura de expressão, de modo que se volta a muitos momentos da vida
diante dos quais a cultura erudita não se manifesta. No momento de avaliar, e não apenas
compreender, a contribuição vidaliana, o que importa é o resultado; este em grande parte se
deve à sutileza com que Ademar Vidal soube manter o foco na reescritura de fatos históricos
dando nova ênfase aos fatos observados.
Um olhar atento à vida e expressão do afro-brasileiro leva Ademar Vidal a organizar o
tema de modo mais qualificado, não se preocupando apenas em apagar as atitudes do branco
perante o negro, porém disseminando as manifestações culturais populares nos seus diferentes
âmbitos: costumes, festas, celebrações, danças, brincadeiras. Os escritos sobre os negros, que
Ademar cuidou de envolver tantas vozes e ritmos, servem de indícios para uma decifração
mais completa do seu pensamento, lembrando que é a memória da infância, principalmente o
convívio com seu amo Antônio Pacífico, as histórias que ouvia quando criança e as
brincadeiras na rua da Areia seu mais forte condutor.
104
No que se refere ao Inédito, Práticas e costumes afro-brasileiros e/ou Sobre cultura
popular, o que conduz os capítulos é a confluência com as culturas portuguesas, de povos
africanos e nativos. Olhar estratégico do autor porque soube atender aos seus anseios e porque
foi capaz de levar à identificação da cultura nordestina com seus próprios valores simbólicos,
o que faz dessa produção um texto marcante no direcionamento do trabalho de Ademar Vidal.
Importante esclarecer que o Inédito encontra-se sob o título Comentários sobre etnia e
cultura popular , contudo podemos ver que no original (ver volume 2) a palavra
“comentários” está riscada e na palavra “sobre” o “s” maiúsculo é substituído por “s”
minúsculo. Também a palavra “etnia” está riscada ficando apenas “Sobre cultura popular”.
Trabalharíamos, naturalmente, o texto sob este título, se não houvesse a indicação de um
outro, “Prática e costumes afro-brasileiros”.
Na série “Produção Literária”, sub-série “Originais de Livros”, compondo o Arquivo
Ademar Vidal, no IHGP, encontram-se partes desse inédito, manuscritas ou mesmo
datiloscritas com a indicação: Práticas e costumes afro-brasileiros. Ensaiando uma
apresentação para o texto, Ademar escreve: “Dessa união de sensibilidade popular e erudição
brotaram estes escritos de observação empática e interpretação atilada que se chamam
Práticas e Costumes afro-brasileiros. Ambos os títulos evidenciam o esforço do autor em dar
a conhecer alguns aspectos da cultura popular na Paraíba e, sobretudo, da história dos negros.
Se nós optamos por Práticas e costumes...,126 é porque encontramos referências sobre esse
inédito (e não “Sobre cultura popular”) na pasta Produção Literária, no Arquivo Ademar
Vidal, no IHGP. Recuperar esta obra significa interpretar formas e processos de sobrevivência
resistentes da cultura afro-brasileira na Paraíba.
Como já dissemos, por detrás das concepções que envolvem cada um dos escritos está
sua adesão às culturas populares e também a preocupação em situar temáticas regionais,
construídas sob um conjunto de idéias que se vem estudando até agora. O resultado básico a
que Ademar Vidal chegou é de que o Nordeste, reduzido a expressão do meio geográfico e
político, carecia da dimensão social, por isso dava aos seus escritos o critério da peculiaridade
da região, da sua gente, do seu povo, ora denunciando o caráter ornamental da cultura
nordestina, onde prevalece a tutela da elite sobre as manifestações populares, ora destacando
os valores coletivamente nordestinos de cultura.
126 Uma explicação se faz necessária: pelo fato desse inédito, possuir duas numerações diferentes numa mesma página, e até desencontradas, optamos por renumerá-las, no sentido de facilitar a localização e o entendimento de alguns trechos tomados como referência.
105
Em Práticas e costumes afro-brasileiros, Ademar Vidal registra por volta de 1920 –
1940, em áreas sertanejas e litorâneas do Estado da Paraíba, aspectos das manifestações
populares, como o Congo, a Cavalhada, o Maracatu, a Cambinda, a Nau Catarineta e tantos
outros que, na expressão do autor, “não fogem ao tema das tradições, ocupado em fazer a
demonstração documentada”.127 Assim ele designa, a seu juízo, as origens das populações do
sertão paraibano e o seu cruzamento; o problema da luta pela terra no sertão, gerando o
cangaço; e ainda o caldeamento das raças e sub-raças, sempre atento aos laços que unem os
processos simbólicos às situações de vida popular.
Considerando esses aspectos como os de maior destaque para a sua obra, Ademar
Vidal vai empregá-los em todo o seu texto, o que dará aos escritos uma certa dose de
redundância. “Os capítulos que se seguem – práticas e costumes com forte colaboração do
negro – são independentes entre si, mas unidos nos seus fins, os quais se restringem à
apresentação de espetáculos públicos tradicionais” (p.2). Caracterizados já folcloricamente
obedecem a influências regionais, locais e até de ruas.
Cada um dos capítulos que compõem a obra parte de um tema diverso, mas todos
convergem para a idéia geral: o negro na tradição da cultura nordestina. Seguindo a indicação
temática fornecida pelo próprio autor optamos por evidenciar esse traço básico que conduziu a
obra. O caminho assinalado, ao qual Ademar juntou noções particulares, concretas, revela
uma produção que em sua qualidade de conjunto representa a singularidade de um povo: o
afro-brasileiro nordestino.
Organizando-se, conforme suas próprias convicções, por vezes quase intuições,
Ademar Vidal declara haver buscado idéias para concretizar seus escritos numa “memória
que, saindo dos arquivos, fosse um pouco intuitiva e não apenas memória fixada em
documentos” (p. 4). Por isso, uma das questões mais importantes que podemos extrair desses
escritos é a constatação de que, neles, Ademar Vidal reconhece a necessidade de conceder um
destaque na memória popular, para o africano “que guardou no peito longos anos de
escravidão”, antecipando o que virá a dizer na sua trajetória de historiador (p. 12).
A propósito, disse-me certa vez, em conversa informal, o Presidente do IHGP Dr.
Hugo Guimarães, de sua admiração pela obra de Ademar Vidal, porque, há nela uma forma
própria, substância de sua vida cotidiana e ao mesmo tempo condicionamento, de trilhar pela
127 VIDAL, A. Práticas e costumes afro-brasileiros. Inédito, s.d. p. 2. A partir dessa citação indicaremos apenas o número da página entre parênteses, logo após o trecho citado.
106
história. Para Guimarães, Ademar Vidal revela-se como ensaísta da história disseminando
uma cultura da memória.
Como podemos ver, a obra de Ademar Vidal envolve diferentes aspectos que sua
mente compreensiva seguiu, como os de índole social, cultural e histórica. Justamente estes
aspectos de sua produção constituem uma das contribuições por ele feitas aos estudos sobre
cultura popular na Paraíba. Os elementos que compõem a substância dessa produção parecem
radicalizar dois tipos de temas, à primeira vista opostos, mas que na verdade são
convergentes: o primeiro como o próprio autor indica, “é exigido por um estudo
convencionalmente histórico em sua estrutura, propósito e emprego de material”; o outro,
trata da “zona de vida”. De fato, esses dois temas apresentam-se de modo que um pressupõe o
outro. Precisamente nessa extensão de zona do passado que expõe do negro e do escravo na
Paraíba, está uma das singularidades de sua obra. Assim Ademar escreve:
As cantigas populares vieram do tempo da colonização. Não houve cuidado em fixá-las através de vários séculos. Muita coisa se perdeu, que poderia agora estar fazendo ou concorrendo para certos esclarecimentos da história [...]. Perderam-se, entre eles, as origens africanas e indígena, conhecendo-se apenas as portuguesas ou outras que sofreram influência ligeira dos negros da escravidão. Este regime se fez sentir forte em certas áreas sertanejas [...]. Do açúcar e da escravidão saíram danças e músicas dos Congos e Maracatus que encheram a sociedade do tempo à margem de autos ibéricos ou pelo menos com essa origem a Nau Catarineta, Bumba-meu-boi e a Lapinha (p. 31-2).
Como destaca Gilberto Freyre, 128 “o trabalho de Ademar Vidal não representa o
estudo de um rígido especialista tantos são os aspectos da história do escravo negro na Paraíba
que procurou fixar em suas obras”. Para Freyre, Ademar Vidal serviu-se não apenas de
informações que possam ser consideradas pelas críticas mais severas de “fontes históricas
quimicamente puras”; serviu-se também de “informações impuras”, misturadas com
“evidentes fantasias inventadas pela imaginação do povo e coloridas pelos exageros em que às
vezes se extrema o folclore”. Freyre considera Ademar Vidal um dos pesquisadores
brasileiros entre 1924 e 1934 que fizeram do “emprego histórico-antropológico dos anúncios
de jornal quase uma especialidade que interessa não só à história social como à história sexual
do brasileiro das áreas escravocratas”.
Toda essa busca dos modos de vida do afro-brasileiro na Paraíba tenderia à dispersão
histórica ou ao saudosismo, se Ademar não tivesse procurado juntar os fios dos princípios
128 Em 1944 Gilberto Freyre escreve uma carta aberta intitulada o Novo trabalho de Ademar Vidal, comentando o artigo do Autor O negro: cativeiro liberdade. Série Correspondência pasta 2. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP).
107
éticos e políticos aos fios daquelas manifestações da vida simbólica popular, interessando-se
não apenas pelas situações nas quais os fatos emergem, mas também, pela superação de
barreiras econômicas e sociais entre os indivíduos. Esse fio possivelmente o aproxima da
obsessão de escrever sobre as culturas afro-nordestinas, partindo da empatia através da qual
procura ver essa realidade considerando-a sob vários aspectos: o do homem branco, o do
negro, o do escravo entre outros.
No levantamento de tradições cantadas e dançadas, ouvindo e anotando sobre a
diversidade cultural do sertanejo na Paraíba, está a afirmação e o desenvolvimento da tese de
Ademar Vidal: a de que o negro no sertão conserva alguma coisa de seus costumes africanos,
e estes por sua vez são explicados a partir das circunstâncias históricas de que o negro escravo
avulta com mais peso que o índio e o português na formação cultural brasileira.
É possível que se veja nessa tese um ponto de convergência de toda a indagação sobre
a história do Brasil asseverada pela história oficial, mas sobretudo, a relação com os saberes
populares que mesclam as tradições. Nada mais oportuno nisso que reatar o fio cindido e
reaver uma identidade distanciada. São anseios básicos da obra de Ademar Vidal que reuniu
histórias e relatos sertanejos, coletou documentos, retirou “causos” do fundo da memória,
como diria Pedro Nava, procurando demonstrar como a força da narrativa é atuante nas
histórias populares que ficaram na lembrança dos narradores e na sua própria lembrança.
Essa perspectiva, que inclui a identificação de valores culturais permanentes,
atemporais, Ademar registrou nas suas leituras do homem nordestino e das coisas que o
cercam. Mais do que saber e conhecer esse homem em suas estruturas formais ele se volta
para o que há de mais peculiar na cultura do povo. Nesse volume, o autor dedica-se às
narrativas populares e ao registro da história dos negros, especificamente dos ritmos, sabores,
festas, brincadeiras, e faz isto ao evidenciar em dezenas de páginas que é por meio do
processo ativo que os homens fazem sua história.
Em Práticas e costumes afro-brasileiros, está o esboço de uma linha significativa de
exposição da cultura popular: práticas sociais, atividade humana, modo de vida, experiência.
A exposição, em suas várias formas, sugere a cultura como algo que se entrelaça a todas as
práticas sociais; como uma forma comum de atividade humana. Atividade por meio da qual
homens e mulheres fazem a história, envolvendo os sentidos e valores que nascem entre
grupos sociais diferentes, com base em suas relações e condições históricas. Assim, Ademar
Vidal junta “atividade” e “modos de vida” em torno da própria idéia de cultura popular, e aqui
108
acrescentamos o conceito de “experiência”.129 Mas, quaisquer que sejam os termos que se
usem, eles indicam as posições de como essas práticas são exercidas , vividas, experimentadas.
Assim, recuperam-se
As tradições cantadas, dançadas e tremendamente influenciadas no sentido musical [...], levado pela amostra das peculiaridades não registradas ainda e, em boa parte, constantes numa área de riquezas folclóricas, como se revela e se encontra à mão no ocidente do nosso país (p. 3).
Freqüentemente, Ademar Vidal justifica seu interesse em colher dados relativos à
cultura do povo, como uma necessidade de registrar elementos aparentemente sem maior
importância, mas, na verdade, bastante significativos. Vejamos:
A propósito devo até dizer que em outubro passado andei na zona do Piancó. Ao meio-dia tem algo de fornalha, mas na madrugada tem que lançar mão do cobertor de lã. Nesses segredos sertanejos talvez resida o amor sentido que experimentam os que vivem por lá tão apegadamente à terra. E onde o sofrimento é condição humana de resignadas melancolias. Onde a incerteza tem destaque e permanência (p.5).
Se focalizarmos a observação ao nível da “resignação” do sertanejo, da clara
consciência de sua particularidade, surge o desdobramento da noção de fidelidade à sua terra e
às tradições, tudo isso permanente na “alma sertaneja”. Mesmo não tratando de modo
explícito as qualidades do clima semi-árido, Ademar Vidal procura relacionar o
temperamento melancólico do homem do sertão às condições da paisagem natural.
Corroborado ao discurso do modo de vida do sertanejo, encontramos outro correlato
importante, definido pela necessidade de expressar que esse homem “vive mergulhado num
ambiente em que ele se basta a si mesmo por mais que pareça o contrário”.Assim,
aprimorando essas qualidades Ademar declara: “Até nos tempos ruins de seca ele encontra
jeito de não sair para outro lugar. Vai resistindo, não quer de modo algum abandonar a terra
onde nasceu, onde vive e onde pretende morrer” (p.29).
Quando a questão é ainda a seca, outro correlato é estabelecido:
Se a seca assola o ano é claro que a “festa” (do natal) será triste em relação ao que se conhece de outras vezes. Porém se realiza de qualquer forma. Apenas o sertanejo não se apresenta com roupa nova ou com a família vestida direitinho. Não fuma o charuto, que é sintoma de abastança, fuma o cachimbo de barro ou
129 O termo experiência é aqui utilizado com base no pensamento de E. P. Thompson, que se volta para a sociedade inglesa do século XVIII, restringindo-se à cultura política da classe operária, mas suas reflexões dizem respeito a uma questão bem mais ampla: trata-se do uso da experiência no sentido mais comum de consciência, como os meios coletivos pelos quais os homens lidam com suas condições de vida ao mesmo tempo transmitem ou distorcem essas condições. THOMPSON, E.P., Costumes em Comum, 2002: 13-24.
109
de pau, o mapiguinho picado, meio oleoso. E vai ainda tomar parte nas conversas do pátio da igreja somente para manter o hábito, animado que sempre se acha em continuar a existência legada pelos antepassados, aguardando “festas” melhor, com fartura que vem do trato da terra ajudado pelo inverno (p.29-30).
A tentativa de temporalizar a memória, no que se refere ao espaço e tempo vivido é,
em Ademar Vidal, uma recriação dos costumes, práticas, superstições, provérbios,
brincadeiras, baladas, dos tempos antigos, que se encontram espalhados na memória das
pessoas. O trabalho, diz Vidal, “não pode cessar quando existe um mundo de mistérios a ser
desvendado com paciência” (p.1).
Desse modo, o caminho percorrido por Ademar Vidal se dá não no sentido de
recuperar o passado na sua inteireza – porque, como diria Pedro Nava “é impossível restaurar
o passado em estados de pureza. Basta que ele tenha existido para que a memória o corrompa
com lembranças superpostas”.130 – mas sim, na recuperação de uma memória da tradição, que
é a memória coletiva de cada sociedade. Assim, seu campo de referência perpassa as
comunidades do sertão da Paraíba estendendo-se ao litoral paraibano e inclui as práticas e
costumes do afro-brasileiro e suas expressões de cultura no período da escravidão, até as
formas de cultura mediadas pela imagem e formas mais modernas. Para o autor:
Outrora, os cânticos que se ouviam eram simples e monótonos, quase não variavam: o tempo não permitia largos fôlegos, mesmo não havia a colaboração que se nota hoje em dia. O cinema traz muitas novidades que o povo apanha e adota, transformando com a participação do tempero local ou regional não esquecido. Sem dúvida que ambos são agentes poderosos de novas formas nos estilos de vida nordestina [..]. No entanto, o povo vai conservando alguma coisa do seu caráter primitivo (p.78).
As manifestações populares descritas no texto de Ademar Vidal carregam uma
vibração afirmativa, justamente porque têm sempre sua base em experiências, memórias e
tradições do povo. Elas têm ligação com as aspirações e cenários locais que são práticas e
experiências cotidianas de pessoas comuns.131 Ele registra:
Na verdade, antes do sino tocar, o povo está todo esperando a hora de ouvir-se o galo no seu cântico, quer o povo tomar parte na festa. O ambiente não anda
130 NAVA, op. cit., p.282. 131 As pessoas comuns são, para Stuart Hall (op. cit, 254-55), “perfeitamente capazes de reconhecer como as realidades da vida são reorganizadas e reconstruídas pela maneira como são representadas. As indústrias culturais têm de fato o poder de remodelar constantemente o que representam e, pela seleção, impor e implantar definições. Estas, invadem as contradições internas dos sentidos e percepções das pessoas comuns. Afirmar que essas formas impostas não influenciam equivale a dizer que a cultura do povo pode existir como um fato isolado, fora das relações de força cultural”.
110
mais parecido com o que se informa através da tradição oral [...]. Ainda assim a festa do Natal é mantida em bases de um caráter indestrutível (p.31).
Ademar Vidal, organizando-se conforme suas próprias convicções para a redação das
Práticas e costumes, declara haver buscado entre 1920 e 1940 as crenças, os valores e as
tradições dos grupos que produziam a literatura oral na Paraíba. A história contada e as
normas sociais de quem as relata, no caso Ademar Vidal, colocam em relevo o significado
presente e atuante das histórias e lendas, dos “causos”, das danças e músicas, enfim, das
manifestações populares aí descritas. Enquanto houver o interesse pela cultura popular, diz o
autor, a tradição se reelabora, não como reprodução do passado, mas como “resposta às
privações sofridas pelo povo”. E porque a cultura popular sempre encontra meios de
sobreviver, Ademar Vidal registra várias tradições cantadas e dançadas no Nordeste, mais
especificamente na Paraíba, como o Maxixe, o Coco, o Xaxado e o Samba.
Na apresentação das “Danças Rurais”, parte de Práticas e costumes afro-brasileiros
Ademar Vidal registra:
Não é somente o coco que o homem nordestino prefere, também o maxixe, e o samba, danças muito comuns nas praias, na Várzea e zona da Mata. No sertão dança-se menos. A questão é haver inverno, boa safra [.. .]. O panorama social se modifica com a safra boa (p.99).
E mais adiante:
Outras danças, além das mencionadas, são preferidas como a quadrilha do litoral, que, em épocas passadas, dava tanta graça aos salões de elegância, tendo agora emigrado da capital para o interior, de uma forma terrivelmente deturpada (p.99).
Como diria Bourdieu,132 uma forma de assegurar a produção, a reprodução, a
conservação e a difusão dos bens religiosos. Pode-se considerar como fator de
homogeneização social a Lapinha de moças , também descrita por Ademar em Práticas e
costumes. Lapinha de moças é, na realidade, manifestação religiosa em que o povo busca uma
forma de reivindicar suas crenças religiosas. Assim o povo, como participante, produz e
reproduz um espaço religioso no qual os símbolos são recobertos com os nomes do sagrado.
São práticas que se constituem em um repertório de crenças e ritos recriados na memória
coletiva popular.
132 BOURDIEU, op. cit.
111
A Lapinha, por toda parte encontrada, apresenta certas características comuns, como já
pudemos observar em cidades mineiras e goianas. A Festa descrita por Ademar Vidal não é
diferente:
Lapinha é um altar com o Menino Deus entronizado entre flores e arrumações inerentes a um berço enfeitado com um halo de glória. Por fora se faz rodeado de novos enfeites enchendo o ambiente de luzes e um elevado de madeira onde as pastoras dançam. Festa que só se realiza à noite. Dançam as pastorinhas no exato ritmo musical que acompanham cantando suas cantorias apropriadas (p.93).
Ao se aproximar das manifestações culturais populares, Ademar Vidal se aproxima
também da noção antropológica de cultura ressaltando, principalmente, os valores e os
costumes do povo, aquilo que exprime seu modo característico de vida, baseando-se em
“material colhido, informações através de leituras avulsas e ainda outra com a assistência
pessoal do autor, que teve o cuidado de anotar o que viu e ouviu” (p.3). Nesse sentido, o que
procuramos situar na obra do autor não é a descrição da cultura por ele feita, o que resultaria
no congelamento dessa cultura em um modelo descritivo, mas sim, a compreensão das
manifestações e atividades culturais como um processo, ou seja, como um espaço de
atividades culturais sempre variável.
Não pretendemos resumir o conteúdo das tradições descritas por ele, o que perderia
em uma síntese a nosso ver irrecuperável. Limitaremos a constatar que elas confirmam as suas
indagações interpretativas da cultura popular na Paraíba, baseadas na tese da miscigenação
racial brasileira e das relações entre negros e brancos no país. Assim, é possível lançar um
olhar sobre o significado desses elementos populares revisitados por Ademar Vidal em
Práticas e costumes, a exemplo de Nau Catarineta, Maracatu, Congos, Caboclinhos,
Cambinda, e que veremos a seguir.
3.2 – Festas e brincadeiras: o tecido de sua rememoração
Sabe-se que a Nau Catarineta é um dos romances mais conhecidos do folclore da
língua portuguesa e narra a travessia do Atlântico, em circunstâncias trágicas, e cada Estado
brasileiro compõe sua versão.
Segundo Ademar Vidal, no caso da Nau Catarineta, em sua versão paraibana, “achava-
se no século XX a mais rica no espetáculo, contudo sem mais aquele travo gostoso de outrora,
o que se deve considerar o meio ambiente agora sujeito a experiência de novos fatores de
influência”. Mesmo assim, como observa o autor:
112
Não encobriu o extraordinário poder de sentimentalismo na construção teatral de maior espetáculo público do Nordeste. Tive cuidado de pegá-lo com extremosa dedicação para que melhor ficasse fielmente retratado na sua verdadeira linguagem. Sem enxertos como se canta e se representa mesmo (p.32).
É, talvez, o traço mais marcante de Práticas e costumes, a integração dos dados
narrativos, confundindo-se com as memórias do autor que conta o que extrai da sua própria
experiência ou aquelas contadas por outros. É aqui precisamente que é possível perceber a
parte essencial dessa obra: ver e ouvir misturam-se no longínquo da lembrança. Lembranças
fragmentárias. Recordações da exposição da Nau Catarineta com a “marujada cantando”,
percorrendo as ruas principais da cidade, a multidão acompanhando-a em noites do mês da
festa, ou seja, dezembro. Com o tempo “mudaram os costumes, diz Ademar, mas a Nau
Catarineta não morreu. Os versos ainda podem ser ouvidos através das negras na cozinha ou
como canções para adormecer as crianças”. O ritmo dos versos, nesse caso, é acompanhado
pela cadência do trabalho:
Gajeiro, meu gajeirinho, Meu gajeirinho real, Vê se vês terras de Espanha E areias de Portugal (p. 43).
Após a vinda da Missão de Pesquisas Folclóricas no Nordeste em 1938, a Nau
Catarineta e outras manifestações culturais populares encontram-se registradas em discos do
Departamento de Cultura de São Paulo, os quais, como dissemos, puderam ser ouvidos por
Ademar Vidal no momento de sua visita a esse departamento, porém, “sem aquele sabor
antigo em que sua representação na rua Direita (hoje, Duque de Caxias) vibrava de
entusiasmo sob as ordens do ‘almirante’ Agostinho Lacerda” (p.38).
Note-se que a escrita da memória não é involuntária. É um esforço contra o
esquecimento instalado em seu interior, o problema é sobre o que se tira do passado. No que é
possível dizer, são reproduções do real fixadas pelo autor com o olhar:
O soberbo ‘almirante’ Agostinho se retirava com solenidade. Parece que estamos a vê-lo saindo de nossa residência com a compostura das grandes autoridades. Voltava ao comando de seu navio e já agora toda marinhagem, por sua vez, entrava na linha, recepcionando-o no convés, em continência, ao som da música marcial (p.36-7).
A memória tem uma dimensão coletiva, embora o foco seja o do autor:
Então o ‘almirante’ passava em revista a marujada e depois mandava começar as manobras do estilo para sair rua Direita afora numa algazarra de alegria
113
popular. Ia funcionar a Nau Catarineta mais adiante, sendo de praxe escolher antecipadamente os cavalheiros que seriam dignos de homenagem para que, já prevenidos arrumassem mesa e preparassem bebidas. E o envelope de praxe. Nada de surpresas porque senão, claro, as conseqüências mater iais não seriam favoráveis (p.37).
Como podemos ver, a apresentação da Nau Catarineta relaciona-se, de uma maneira
ou de outra ao cotidiano daqueles que compõem seu público. De um lado, os abastados de
acordo com a escala econômica local, possuindo certa folga em dinheiro. De outro, uma
camada muito mais extensa que a primeira, composta por pessoas comuns que vão participar
do espetáculo, e ainda, o público identificado com os organizadores e com os participantes do
espetáculo. O mesmo ocorre com uma cantoria, um desafio, uma procissão, uma congada.
Pelo que se pôde perceber, nos escritos de Ademar Vidal sobre a Nau Catarineta, também as
qualidades pessoais dos indivíduos fazem com que sejam considerados “de bom conselho”, é
o caso do barbeiro Agostinho Lacerda, “pessoa modesta que vivia do honrado trabalho”
(p.36).
Uma leitura mais atenta do Inédito nos leva a perceber a perspectiva metalingüística
assumida por Ademar Vidal, conservando o que viu e ouviu. Nele, o autor tematiza,
abrangendo inclusive reflexõ es sobre os locais e condições de performance, a memória e a
história privilegiando as manifestações culturais populares na Paraíba. Os espaços de atuação
da Nau Catarineta, também conhecida como Barca, são descritas nos mínimos detalhes
envolvendo performance, as interações espaço/público, público/apresentadores, disciplina,
condições técnicas, enfim, “como teatro nada mais se avantaja à sua representação pública”
(p.37).
Hoje os espaços que acolhem a Nau Catarineta são muito diversificados, no entanto,
como observa Maria Ignez N. Ayala continuam “impressionando pela variedade e beleza de
seus cantos narrativos, dança e entrechos dramáticos que representam as idas e vindas da
embarcação, que fica perdida no mar por muito tempo”. Ayala confirma: “a importância da
Nau Catarineta, sobretudo, como luta para manter um lugar na memória, livre do
esquecimento, a vida difícil dos trabalhadores do mar.133 Apesar da existência, hoje, de
práticas como essas, observa-se certo risco de “distanciamento”, se o turismo tomar conta
dessas práticas, fazendo com que “a festa, exibida, mas não partilhada”, se torne espetáculo.
133 AYALA, M.I.N. A poética das navegações na cultura popular na Paraíba. In: Jornal da Paraíba. Suplemento Cultural Augusto. Domingo, 14 de agosto de 2005. p.3.
114
Como destaca Alfredo Bosi, “nesse momento, o capitalismo se apropria do folclore, ocultando
o seu teor original de enraizamento”.134
São muitas as questões colocadas por Ademar Vidal em Práticas e Costumes que
merecem nossa atenção. Ao descrever algumas das manifestações culturais populares na
Paraíba, o autor vai tecendo lembranças de festas e brincadeiras, entre elas o Maracatu, uma
forma de dança que surgiu das procissões dos negros em louvor a Nossa Senhora do Rosário
em Pernambuco. Os componentes formam uma sociedade denominada nação. O cortejo é
assim composto: na frente, o embaixador trazendo o estandarte da nação. A baliza abre a
passagem e, em seguida, vem o cortejo real. A figura de maior destaque é a Dama do passo
que carrega a calunga.
A Dama do passo, como destaca Mário de Andrade em “A Calunga dos Maracatus”,135
tem como obrigação carregar uma boneca, de sexo feminino, ricamente enfeitada, que é
reminiscência de cultos fetichistas afro-americanos. Essa boneca chamam-na, geralmente, de
calunga.
O valor simbólico desse boneco [sic], estudado por Mário de Andrade no Maracatu do
Sol Nascente, quando esteve em Recife, por volta de 1928, indica o aparecimento da calunga
na sede, antes da partida do rancho, com um verdadeiro ritual: a Dama do passo sai da sede
carregando a calunga e entra no cordão. Enquanto isso se vai entoando uma melodia própria
da calunga. Ao se colocar no interior do cordão, a Dama do passo entrega a boneca a uma das
baianas; a calunga passa de mão em mão e, por fim, é recolhida, levada para a sede e colocada
sobre a mesa. “Como se vê é um legítimo ritual que vem concordar com os estudiosos do
feiticismo [sic] afro-americano”, diz Mário de Andrade.136
Certamente as tradições do afro-brasileiro sofrem modificações provenientes de
imposições naturais. O resultado, conforme Ademar Vidal, é que não se encontra Maracatu
com as mesmas características de antes, nem Congo, nem Caboclinhos, pois que estas
tradições se apresentam diferentes, não só quanto ao primitivo como ainda naquilo que diz
respeito aos lugares onde são representadas. Isso nos leva a concordar com Ademar Vidal,
principalmente quando afirma que “a tradição não está associada à persis tência das velhas
formas”,137 sendo então, receptivo à modernidade, não abrindo mão das coisas simples, que
perpassam toda a sua obra. A tradição, diz ele, não se fixa para sempre, embora guarde
134 BOSI, A. Plural, mas não caótico. In: Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. v. 11. 135 Texto apresentado ao Primeiro Congresso – Afro-Brasileiro no Recife em 1934. Recife. Fundação Joaquim Nabuco. Ed. Massangana, 1988. p. 45, v.VI. 136 Ibidem. p. 45.
115
capacidade de resistência, pelo menos em termos de uma postura universal em relação a um
único grupo, a um único evento, pois as culturas não são concebidas apenas como modos de
vida, mas também como formas de conflito e de resistência. Um dos elementos que podem
resistir habita na memória histórica das culturas que, ao longo de vários anos de dominação,
construíram um imaginário que continua a integrar as populações.
Esses aspectos fazem eco com análises como a de E.P. Thompson, que salientou o
modo como as pessoas experimentam suas condições de vida, como as definem e a elas
respondem. Isso é o que vai definir a razão de cada modo de produção ser também uma
cultura, e cada luta entre as classes ser sempre uma luta entre formas culturais. Ampliando
suas perspectivas de análise sobre as classes enquanto relações históricas de consciência e as
culturas de classe em sua particularidade histórica, o autor revela a existência de uma cultura
de “formas conservadoras”, que recorria aos “costumes tradicionais” reforçando-os. A cultura
conservadora da “plebe”, diz Thompson, “quase sempre resiste, em nome do costume às
inovações”. A inovação, por sua vez, “é mais evidente na camada superior da sociedade”. 138
Consideremos também:
A cultura popular é rebelde, mas é em defesa dos costumes (que por sua natureza, o costume é conservador). Esses pertencem ao povo e alguns deles se baseiam realmente em reivindicações muito recentes. Contudo, quando procura legitimar seus protestos, o povo retoma freqüentemente às regras paternalistas de uma sociedade mais autoritária, selecionando as que melhor defende seus interesses atuais. 139
Tomando por base os escritos de E.P. Thompson (embora ele não enfoque o conceito
de tradição diretamente em suas análises, trabalhando com costumes e crenças em formações
sociais específicas), podemos inferir que o termo “tradição” guarda relações intrínsecas com o
termo popular, mas nem sempre ela está lá, com sua cultura intocada; nem sempre ela volta à
cena. Ainda no que diz respeito à tradição, Roberto da Mata 140 aponta que toda tradição é um
fato da consciência e uma seleção, sendo resultado de uma complexa dialética entre essas
duas modalidades de percepção. Uma tradição implica investimentos no quadro de
possibilidades sociais e experiências históricas. Nesse sentido os escritos de Ademar Vidal
são fecundos, pois levam à concepção de que toda tradição exprime o que deve ser lembrado e
137 VIDAL, A. Escritos diversos. (Inédito). Série Produção Literária: originais de livros, Pasta 11. 138 THOMPSON, E.P., Costumes em Comum. p. 13-21. 139 Id. p. 19. 140 MATA, R. da. Por uma antropologia da tradição brasileira. In: Conta de mentiroso. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
116
o que deve ser esquecido, no caso específico, fala-se da movência e da possibilidade de
modificações. Vejamos:
Recordo-me de em criança haver assistido a uma exibição do Maracatu na porta da igreja da Misericórdia [...]. Também paravam em frente à igreja do Rosário, para uma homenagem à Nossa Senhora que protege os pretos [...]. Os Maracatus só eram dançados diante dos templos cristãos. A cena repetia-se pelo Natal, pelo Carnaval, ou nos festejos de São João [...]. De uns tempos pra cá o Maracatu foi se distanciando dos seus primitivos fins de natureza religiosa. Não se conhece mais qualquer organização destinada à sua prática (p.45-49).
A tradição do Maracatu141 (T.M.) é também registrada por Ademar na revista
Atlântico, o que nos leva a crer que esse ensaio possivelmente seja uma extensão do que ele
escreveu em “Práticas e costumes”, ou vice-versa. Tanto neste, como no texto publicado na
revista Atlântico, a questão do negro torna-se o eixo principal. Ao chamar à atenção para a
vivência social, com força nas comunidades afro-brasileiras, a exigência teórica do autor seria
a de elucidar o complexo laço que une o grupo ao conjunto das tradições, oferecendo pelo
menos um exemplo: “rebelde a todas as formas de expressão social, porém singularmente e
religiosamente apegados aos ensinamentos de suas tradições”.142
Destacar o que está registrado na “Tradição do Maracatu” pode tornar-se redundante,
uma vez que Ademar reproduz, com algumas alterações, o que está registrado em “Práticas e
costumes afro-brasileiros”. Dela podemos dizer, seguindo Tomachevski, que “no decorrer do
processo artístico as frases particulares combinam-se entre si seguindo seu sentido e realizam
uma certa construção na qual se unem através de um idéia ou tema comum”. Reafirmamos
que o negro é tema recorrente na obra de Ademar Vidal e “a significação dos elementos ali
encontrados constituem uma unidade, que é o tema (aquilo de que se fala)”.143
As práticas sociais vividas através das festas populares repousam sobre os ritos
tradicionais e se apóiam nas representações simbólicas do povo. No entanto, observam-se
algumas transformações que a arte contemporânea realiza tornando possível uma ruptura em
relação à tradição, mesmo respe itando, de certo modo, sua continuidade. No caso da tradição
do Maracatu, como realça Ademar Vidal, “um ponto jamais deixou de haver modificação”:
É que o pau gemia à vontade na cabeça dos partidários, como acontece agora nas lapinhas. Não havia defesa de cordão encarnado nem cordão azul, mas o
141 VIDAL, A. A tradição do Maracatu. ATLÂNTICO. Revista Luso-Brasileira: Lisboa- Rio de Janeiro, n. 5, 1944. p. 41. 142 Idem, p. 41. 143 TOMACHEVSKI, B. Temática. In: EIKENBAUM, et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1970. p.169.
117
‘sereno’ tinha suas preferências exigentes, o que determinava barulhos em que o sangue era derramado na certa [...]. Perturbações da ordem eram tão freqüentes que o delegado Santos Coelho resolveu acabar com o Maracatu e outras tradições do paraibano tão apegado ao passado (T.M., p.42).
Buscando a origem da estética dionisíaca, numa arqueologia das imagens – imagem
simbólica da exuberância da natureza, análoga à simbologia expressa no mito de Dionísio,
revelando a forma da exaltação comunitária – , Ademar aponta:
Tudo muito importante. Os negros vestidos a rigor nas suas túnicas bordadas a vermelho e amarelo. As mulheres de saias largas, traziam turbantes e corpetes vistosos. O vidrilho à luz dos archotes, umas enormes lamparinas de azeite de carrapato e querosene. Extravagantes imagens religiosas indicando a influência fálica preponderante [...] Essas imagens fálicas nunca se acham ausentes da tradições conhecidas e praticadas pelo nosso povo (T.M., p. 43-4).
As linhas gerais do Maracatu não sofriam modificações que viessem afetar a sua
essência, destaca Ademar Vidal. As modificações se davam “conforme as novidades na
música e nas canções, nos cocos, conforme também o jeito do maracatu se apresentar dentro
da nova or dem. Assim é que”:
Letras conhecidas de cocos praieiros passavam a ser cantadas, notando-se, porém, uma particularidade no estribilho invariável e sempre o mesmo; servia para acompanhar toda e qualquer manifestação dessa natureza. Um estribilho que não escondia a procedência legítima do maracatu (T. M., p. 45).
Mesclas ainda mais fortes, explicitadas no Maracatu, se encontram no comentário
seguinte:
As variações não podiam dispensar essa presença. Talvez que fosse uma memória de ‘marca registrada’ no intuito de mostrar que nem tudo fora sofisticado; havia uma coisa de verdade. Tal como se faz com o bumba-meu-boi que se apodera do que ‘existe de novo’ [...], mas não relaxa um ponto, e que é aquele de revelar a pureza da tradição quando entra no principal ‘momento da representação’. É o momento em que se sente o regime fechado a todas intromissões fora do estilo (T.M. p. 45).
Estas formas de produção artística são tão complexas quanto reveladoras da sociedade
que as produz. Conforme Stuart Hall,144 é no espaço de manifestação cultural que se dão as
relações dos grupos subalternos com o mundo material e com os grupos hegemônicos,
considerando ainda que esse espaço não é apenas adaptativo, mas também um espaço de
conflitos. Se assim é, devemos ressaltar que a cultura de grupos subalternos só pode ser
144 Cultura popular e identidade. In: Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFM G, 2003.
118
entendida a partir do processo conflitivo no qual ela está mergulhada na atualidade. Para
Néstor García Canclini145 há, de um lado, o popular como memória de outra realidade e como
resistência ao discurso hegemônico; de outro, como a oposição ao discurso que nega essa
cultura. No espaço conflitivo e adaptativo, os grupos subalternos estruturam o seu mundo a
partir de uma existência não harmoniosa com outras culturas.
Sob a perspectiva dos grupos e classes subalternos, também sob a rubrica de
espetáculo, tem-se o Congo, a festa do rei africano, que se realiza no dia de Nossa Senhora do
Rosário, na cidade de Pombal, na Paraíba. As personagens da peça são rei e rainha, secretário
e dançarinos, cujo número varia entre nove e doze. Nota-se ainda a presença do violeiro, o
qual se senta junto ao rei.146
O tema é a luta do Bem contra o Mal, terminando com o batismo dos infiéis e todos
juntos fazendo a festa em louvor a São Benedito, considerado protetor dos negros. É costume,
nas portas de igrejas a coroação simbólica do rei negro pelo padre. Conta-se que a festa de Rei
do Congo aconteceu na capital paraibana em 1927 e desde então nunca mais se realizou outra,
observa Ademar Vidal. Essa manifestação foi por ele encontrada no interior do Estado, nas
cidades de Pombal e Alagoa Nova.
Ao visitar Alagoa Nova por volta de 1940, Ademar Vidal percebe que a tradição
coreográfica e cantada do Rei de Congo já estava bastante deformada. Nesse sentido escreve
que “as toadas vêm quase por completo, independentes umas das outras. E não sem a devida
ordem por motivo desta peça, já muito sofisticada, havia perdido a estrutura permitida”.147
O Congo que se dança em Pombal é mais completo, no sentido de conservar melhor
conformidade com o rito, existindo mais base exata nas disposições de encenação. Lá, diz
Ademar Vidal, dança-se e canta-se exclusivamente com o intuito de conservar as informações
tradicionais.148
Nesse contexto cada indivíduo ou cada grupo se aproveita dos costumes do outro.
Contando sempre com a morte, os mais velhos negros costumam preparar os mais jovens para
as eventualidades, instruindo-os nas peculiaridades do Rei do Congo de modo a ir eternizando
a tradição. “Os mais velhos têm medo que desapareçam os derradeiros vestígios dos
antepassados de quem receberam a herança”.149
145 GARCÍA CANCLINI, N. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983. 146 VIDAL, A. Práticas e costumes afro-brasileiros. p. 51. 147 Idem, p.56. 148 VIDAL, A. Práticas e costumes afro-brasileiros. p. 61. 149 Idem, p.60.
119
Notadamente, o que distingue o “tradicional” e o mundo moderno são tanto as
“necessidades” como também a destruição das expectativas baseada nos costumes. Como
observa E. P. Thompson, “as gerações sucessivas já não se colocam em posição de aprendizes
umas das outras”.150 A remodelagem da necessidade e a elaboração do limiar das expectativas
materiais, juntamente com a desvalorização das satisfações culturais tradicionais, prosseguem
hoje com pressão acelerada em toda a parte pelos meios de comunicação universalmente
disponíveis.151 A verdade é que a força dos meios de comunicação reside em seu acordo com
as necessidades criadas e não na simples oposição quanto a estas.
No que se refere à aprendizagem de gerações sucessivas, Carlos R. Brandão aponta
que o verdadeiro conhecimento das tradições se dá a partir do diálogo fundado sobre as
matrizes e representações das experiências vividas por cada sujeito, em cada cultura. No seu
livro Lutar com a palavra: escritos sobre o trabalho do educador, Brandão observa que a
aprendizagem se dá mediante a imitação. É o que confirma Antonio Cícero de Souza ao ser
indagado pelo autor sobre o modo como os indivíduos viraram foliões, isto é, “como as
pessoas vão sabendo o que não sabiam”:152
Vai ouvindo, presta atenção, aqui, ali. Vai aprendendo [...]. De ver os mais velhos, de fazer igual, errando, pelejando.
De modo semelhante, Alba Cleide C. Wanderley caracteriza esse tipo de associação,
no que diz respeito aos negros da Irmandade do Rosário e seus grupos, as experiências de
aprender com os “outros”.153 Para Wanderley, essa ação, determinada pelo conhecimento da
realidade, é um ato dinâmico e permanente no processo de descoberta e de construção coletiva
do conhecimento, que está inserida no universo cultural.
Para finalizar a discussão a respeito das festas e das brincadeiras, descrita em “Práticas
e costumes afro-brasileiros”, destacamos a Cambinda.154 De acordo com Ademar Vidal, nas
primeiras décadas do século XX na Paraíba não faltava no círculo do Natal e também nos dias
carnavalescos, cultivando bailados e cantorias. Havia influência nova, perdendo as primitivas
características tribais, mas de qualquer maneira não estiveram ausentes das ruas nordestinas.
Cambinda foi também a denominação adotada por diversos grupos de Maracatu de
150 THOMPSON, E.P. op cit, p. 23. 151 Idem, ibidem. 152 BRANDÃO. C. R. Lutar com a palavra: escritos sobre o trabalho do educador. São Paulo: Graal, 1985.p. 162. 153 WANDERLEY, A. C. Memórias sobre a construção da Irmandade do Rosário de Pombal - PB como experiência em educação popular. Centro de Educação/UFPB. João Pessoa, 2004 (Dissertação de mestrado). 154 Palavra variante de Cabinda, região da África, hoje integrada à República de Angola.
120
Pernambuco. Os Cambindas se ligavam diretamente a uma nação africana e surgem com suas
danças parecidas com a dos índios fixando-se na memória do autor, tanto que expressa:
Lembro-me que os cambindas dançavam acocorados, pintavam-se de manchas brancas e vermelhas, surgiam com barbichas de capim seco, trazendo à mão direita pequeno porrete enfeitado de bugigangas. Cantavam e faziam seus volteios de corpo ao som de batuques monótono, igual, ora baixo ora mais alto, porém sempre o mesmo som (p.76).´
Como observa Ademar Vidal, entre 1920-1940 podia-se sentir ainda a presença da
cambinda na área da cana-de-açúcar influenciando fortemente a escravaria nos trabalhos de
eito, bagaceira e moenda, garantindo fidelidade às tradições, e os negros costumam cantar:
Cambiteiros, cambiteiros Onde foram cambitar? Cambita cana caiana Bota pro engenho Tapuá (p. 78).
Do que Ademar Vidal viu, ouviu e registrou sobre os Cambindas na Paraíba podemos
encadear sobre o momento privilegiado de celebração coletiva desses grupos, parando em
frente das casas residenciais, prestando homenagens aos hospedeiros que, agradecidos,
distribuíam pequenas quantias em dinheiro, o que os animava ainda mais. Nesse espaço
ritualístico, diz Vidal:
Tantos os Cambindas como os demais grupos, africanos ou não, quase exigiam atenções em moeda sonante, a título de auxílio por causa dos gastos feitos com a montagem de organização (...). Recompensa indispensável por parte de quem recebia, porquanto teria a certeza que no ‘ano que vem’ essa gente voltará a esta casa abençoada (p.77).
Seguindo as trilhas de Ademar Vidal podemos dizer que, no caso específico das
Cambindas, os versos e danças exibidos nas ruas da Paraíba já não seguiam com rigor às
tradições. Nos dizeres do autor, “não apenas obedeciam datas reguladas previamente para
saírem à rua nos espetáculos públicos como, outrossim, não ficavam dependentes de receber
dinheiro alheio, agora tudo se modificou”,
Formaram os sobreviventes comissões procurando pessoas que podem ajudar, levando listas e, em alguns casos, implicando a polícia nos seus negócios mal amparados (P e C, p. 77).
e isso levava a uma realidade deturpada:
Assim, a coisa invés de melhorar piorou. E piorou em tudo, sob qualquer aspecto, porquanto os grupos e associações de hoje não obedecem às tradições,
121
tratam é de apresentar espetáculos muito distantes dos autos antigos, como Bumba meu boi, Maracatu e Congo (Idem,p.77).
Tudo indica que esses grupos e associações foram escasseando na capital paraibana, o
que explica o restrito número de versos colhidos por Ademar Vidal, entre eles ressaltam-se os
versos guardados na memória de Herolides de Menezes Pontes, tia nonagenária de Ademar
Vidal, fornecidos por solicitação do autor para compor Práticas e costumes. Lá estão:
Cambinda negra Estréia teu pavilhão Nossa bandeira cambinda Causa inveja a outra nação. Vamos cambinda negra Voltar para nossa terra Que terra de branco É terra de guerra (p.78).
É recorrente nos versos coletados por Ademar Vidal a evidência do desejo utópico do
negro escravo de voltar à terra pátria: “Vamos cambinda negra voltar para a nossa terra”.
Note-se que o processo histórico é convertido em memória e sua importância está no fato
dessa memória nunca ser contínua, devido ao próprio esquecimento da memória. Semelhante
processo verifica-se ao lermos o texto de Roger Bastide155 em relação ao africano
transportado como escravo. Naturalmente, não tinha noção absoluta de tudo o que acontecera,
por isso lançava mão de alguma coisa que pudesse ajudá-lo a disseminar a sua história,
criando, portanto, um tempo e um espaço, revisitando a pátria feita de pensamento. Esta
epopéia textualiza a memória, ao estabelecer uma relação com o retorno à terra natal.
3.3 Cantos de trabalho
Partindo de uma situação definida por uma relação específica do homem com as
manifestações populares – relações que se tornam manifestas por um tipo de trabalho –
Ademar Vidal reconstrói, por uma narrativa coerente, os múltiplos domínios da atividade real,
e também dos sonhos, encontrando aí o conjunto da sociedade viva de todas as manifestações
de vida comum. Atrás desse ofício brotam os “cantos de trabalho” tão enfatizados por
Ademar.
155 BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilização. São Paulo: Pioneira: EDUSP, 1971. 2 v.
122
A Paraíba guarda uma riqueza cultural, principalmente quando a dança e a músicas se
constituem em movimento coletivo, como é a maioria das manifestações de origem indígena e
africana. Em fins do século XIX, como descrito em Práticas e costumes, ainda constituíam
espetáculo comum alguns negros cantando no Varadouro – são os carregadores de pipas de
vinho tinto português que chegavam nos navios atracados em Cabedelo ou no porto da capital
paraibana.
Para Ademar Vidal, a festa do vinho na Paraíba era um prolongamento do que existia
na Península por ocasião da colheita da uva. O costume foi introduzido pelos portugueses,
porém sob forma diferente, “isenta daquela efusiva manifestação das mulheres e homens
dançando e bebendo à vontade. Tal como se faz na Península quando as uvas estão maduras e
prontas para a fabricação do vinho quando com o fim de ganhar tempo e fabricar os seus
cauins de primeira”. Assim, os carregadores de pipa a um trabalho de horas, sempre
acompanhado de muito canto, realizam o prolongamento de felicidade coletiva. Essa sensação
brota de uma experiência de trabalho vivida em comum e “se fazia ouvir nos versos de Coco,
com estribilho tirado da multidão”:156
Os Cabelinhos dela pisa pilão. Foram bem avaliados pisa pilão. Cada cacho cem mil réis pisa pilão. Cada cabelo um cruzado pisa pilão.
Olha os pezinhos dela sabiá gongá. Como sapateia sabiá gongá. Como dança bem sabiá gongá. Como sabe beber vinho sabiá gongá (p. 84).
Outro tipo de trabalho descrito em “Práticas e costumes” é os dos britadores de
pedras que também têm o hábito de cantar quando se encontram no seu ofício. Não
demonstram preferência nos versos, “cantam o que está na moda, na boca de toda gente”. No
caso específico dos britadores na Paraíba, observa Ademar Vidal, eles trabalham quase
sempre sentados ou de cócoras e enquanto se acham no ofício comunicam-se entre si, através
de cantos em que existem relações com os trabalhadores e o objeto de serviço. “Inventam
muito. Improvisam, como nestes versos”:
Dá na pedra, vira a pedra, Depressa pr’a não errar. Dar na pedra é muito duro É pior que dor de dente
156 VIDAL, A. Praticas e costumes afro-brasileiros. p. 84.
123
Quando pega em penetrar. Dá na pedra, Vira a pedra (p. 86).
Inclui-se nos cantos de trabalho registrados em Práticas e costumes o ofício dos
padeiros. Nas padarias, os operários noturnos cantavam “como desenganados. Nus da cintura
para cima, calças arregaçadas, molhadas de suor, dançavam sobre a massa de bolacha e de
brote, cantando as suas árias prediletas” (p. 86).
Isso se deu em um “tempo longínquo”, porém no início do século XX como observa
Ademar Vidal, “não há mais registro dessa paisagem social”. Os operários figuram no
trabalho vestidos e debaixo de fiscalização rigorosa achando-se harmonizados com o novo
regime. Contudo, “apesar de modernos estilos, sobrevive o jeito de cantar quando trabalham.
Não dispensam a ajuda de versos ditos em conjunto desde que seja correspondida em um coro
atento” (p. 86).
E afirmava convicto:
É a velha certeza de que trabalho sem cantiga se torna mais pesado. Uma cantoria em comum nunca será desprezada pelo fato de constituir uma necessidade imperiosa: regula o pensamento de que o peso diminui se houver gente cantando (p. 86 - 7).
Da mesma forma, o trabalho dos carregadores de piano “não escapa à ordem das
coisas”. Ademar Vidal registra que em 1920 ainda se encontravam grupos de seis a oito
carregadores cantando em ruas do centro da cidade para não sentir o peso do objeto e também
para obter do proprietário mais dinheiro que o preço estabelecido para o transporte. É
possivelmente, na crença nesta mágica solução que os trabalhadores procuravam potenciar o
trabalho, sem dúvida, uma mediação entre o tempo e o ofício. “Apreciavam cantar servindo
do que sabem e lhes vêm à memória”, como para se distrair, reforçando a alienação do prazer
em trabalhar deste modo. O que não deixa de ser verdade, pois o incentivo maior dos
trabalhadores era sustentado pelos ganhos extras. Mas não apenas, é igualmente verdade que
os ritmos coletivos eram invocados como evidência comprovadora da satisfação,
compartilhando a alegria do trabalho. Assim confirma a tradição oral e Ademar Vidal registra
em Práticas e costumes:
Meu canário de gaiola – Ei canário, Ei canário. Meu canário beija-flor (p.80).
124
De acordo com Ademar Vidal, os carregadores de piano cantam gemendo numa voz
nasalada, imitando aboio, cujo ritmo inspira uma suave melancolia. A palavra “canário”
refere-se ao proprietário do piano, e como para agradá-lo cantam:
Meu canário num bica – Ei canário, Ei canário (idem).
Importante enfatizar que o dono da casa de onde sai o piano somente se torna “canário
quando promete, por fora, um agrado para matar o bicho”, ou seja, “para tomar cachaça”. Se o
piano é consignado a novo dono, os carregadores “matam o bicho por duas vezes”. Como
esclarece Vidal, “O meu canário num bica”, não é permanente, os carregadores costumam
variar com grande riqueza de liberdade. Vejamos:
Bota a mão no argolão Sinhazinha vai tocar, Afinador vem afinar, Sinhazinha vai pagar (p. 81).
Ademar Vidal amplia o tema, isto é, cantos de trabalho, em “Aboios de vaqueiro
paraibano” 157 e afirma que a diversão é o prolongamento do labor. É procurada pelos que
querem diminuir o peso de suas tarefas. Assim,
O dó-de-peito pode ir até o fim sem encontrar embaraços (p. 14).
em todos os serviços que dependem de esforço físico exaustivo, os trabalhadores não
dispensavam a ajuda de sua voz; “uma voz tocada de sentimentalidade à procura de distração
e partilhada igualmente no carregamento” (p. 81). A cantiga, como que faz descansar o corpo,
torna o esforço menor. É a sabedoria do homem sobre o tempo, no gozo da vida.
Os cantos, conforme Ayala, acontecem durante as jornadas de trabalho, como
atividade auxiliar em práticas comunitárias. Escreve Ayala:
O trabalho demorado e cansativo de plantar, fiar, tecer, carregar piano, como reforça a autora, possibilitou o aprendizado de diversos cantos. Assim, além de auxiliarem na manutenção do ritmo do trabalho coletivo e de espantarem a
157 VIDAL, A. Aboios de vaqueiro paraibano in: Revista Atlântico. Rio de Janeiro/Lisboa. Nova série, n. 3, 1947. p. 13-19. A partir desta citação, indicaremos apenas o número da página, entre parênteses, logos após o trecho citado.
125
fadiga e o tédio, encontram nessa situação um importante contexto para o desenvolvimento e a memorização cultural.158
E. P. Thompson, ao estudar a história social inglesa do século XVIII observa, com
relação ao tempo, que “na comunidade em que a orientação pelas tarefas é comum parece
haver pouca separação entre o ‘trabalho’ e a ‘vida”. As relações sociais e o trabalho, diz
Thompson, são misturadas. “O dia de trabalho se prolonga ou se contrai segundo a tarefa e
não há grande senso de conflito entre o trabalho e ‘passar do dia” 159. Esta realidade é
temporal, porém do tempo vivente, não do tempo especializado, do relógio. Com efeito,
quanto mais avança o cientificismo do século XIX mais ordenadas pelo calendário e pelo
relógio são as convivências de trabalho. É esse um aspecto importante para ser observado em
relação ao tempo, no qual a existência decorre.
Em se tratando dos escritos de Ademar Vidal, mais especificamente “Aboios de
vaqueiro paraibano”, há alguns recursos de que lança mão para “fixar” o tempo, ou para
“registrar” o processo temporal vivido pelos atores sociais. Ele escreve:
A passagem das horas é marcada pela sucessão dos dias e noites; pela sucessão
cíclica das estações (marcadamente a estação da seca); do movimento dos
astros; a importância capital do sol como fonte de vida; as estrelas como
orientadoras de caminhos e de horas, de modo que o aboio tem de sofrer tais
influências (p. 19).
Cremos que a visão do tempo em Ademar Vidal coincide com a visão descrita por
Thompson, principalmente quando observa e registra ritmos de trabalho semelhantes,
acompanhando ocupações rurais. Se o autor não aprofundou o tema em Práticas e costumes,
ele o fez em Aboios de vaqueiro paraibano, aproximando “o trabalho do vaqueiro com sinais
de poesia”, voltando-se, também, ao “processo de transformação social”, o que orienta as
relações dos senhores para com os seus subordinados; ou seja, relações de poder que garantem
a manutenção de um regime de exploração. Tal poder vem se manifestar através do controle
disciplinar sobre o processo de trabalho, controlando tempo e ritmos, no entanto, o autor se
preocupa muito mais com a maneira de viver das pessoas, que se engendra com raízes
populares, num jogo entre tempo linear e um tempo percebido de maneira dinâmica; um
tempo que, de certa forma, a experiência seleciona e ordena. Assim, ganha importância no
158 AYALA, M.I.N. O conto popular: um fazer dentro da vida. Anais do IV Encontro Nacional da AMPOLL. São Paulo, 26 a 28 de julho de 1989. p. 260 -67. 159 THOMPSON, op. cit. p. 271-2.
126
tempo aquilo que objetivamente adquire importância na vivência de cada indivíduo.
Experiência que não se distingue daquela que relata Ademar Vidal sobre o tangedor de bois.
Viver e trabalhar aboiando implicava surpreender o seu ritmo e adequar-se a ele:
Serviço contínuo, dia e noite, com revezamento dos animais [...]. Rola essa vida durante a moagem da safra, uns dois ou três meses, o bastante, porém, para o aniquilamento de todas as forças. E o homem não se fez esperar [...]. Inventou uma forma de se fazer compreender por intermédio do canto (p.13).
É principalmente o lugar de trabalho e de que forma o indivíduo se organiza em
função dele, que desperta maiores interesses, isto é, que tem importância para que esse
indivíduo transcenda à organização natural que o tempo opera na memória. Por isso mesmo,
A variação de motivos depende apenas da riqueza improvisada da inteligência. Muita coisa não é repetida, perdendo-se no instante em que é cantada (p. 14).
a feitura dos versos é precedida pelo “sentimento poético”, pelo lirismo que entra como
principal razão de ser dessas composições populares. Como observa Ademar Vidal, “cada
cantador é um especialista na arte dos repentes quando em serviço de tanger gado”, como é o
caso do negro Alípio, o vaqueiro do Itaipu, que “possui uma voz de aboio magnífica, tem suas
criações pessoais, revelando-se um poeta de mão-cheia” (p. 15).
Uma simples trova para ser dita pelo aboiador “passa no mínimo uns três minutos, e
isto porque a demora na voz se apresenta como um dos segredos do movimento”. No caso de
ser assim,
Se para recitar um verso se faz preciso um jogo de voz que se levanta imprevista e logo desce ao ponto máximo, o final em que entra ‘ô mana, ma-ná’, requer fôlego, reclama respiração para o maior tempo possível, pois do contrário o aboio não poderá sair com perfeição desejada (p. 16).
As reflexões realizadas por Ademar, nas primeiras décadas do século XX, permitiram-
lhe fazer a distinção entre o aboiador e o cantador de viola. Na arte do aboiador entra somente
a participação vocal na musicabilidade ressonante das notas vogais nasaladas, não tem a
participação de instrumentação de corda ou de sopro. O autor observa ainda que os versos
cantados são aqueles que andam vivendo na imaginação popular:
São clássicos, toda a gente os canta nos Cocos e no Samba. Não têm o sabor da improvisação. Vêm do passado e não se sabe quem os inventou. Andam já nas páginas de livros como vivas demonstrações do espírito de um povo feito na pecuária das caatingas e nos imprevistos da lavoura sujeita aos caprichos da chuva ou da seca (p. 16).
127
Ao escrever principalmente “Aboios de vaqueiro paraibano”, talvez Ademar Vidal
pensasse apenas em uma narrativa voltada para as experiências de visitas ao Engenho Novo.
Mas não se conteve; cedeu à virtualidade de narrador, reafirmando o que já dissera em um de
seus inéditos: “O escritor procura sempre dizer tudo, mas muita coisa está a depender de
riqueza dos sentimentos, ou melhor, de lirismo variável”.160 Como reflexo de um escritor
identificado com aspectos da paisagem nordestina, o que impressiona é a força de recriação e
de espontaneidade, possivelmente ligada ao desejo de escrever umas histórias que fossem as
de todos os vaqueiros dos engenhos nordestinos. É uma unidade que se abre para a
diversidade, numa visão fortalecida pela tradição e pela riqueza de conteúdo humano.
Ademar serviu-se dos fatos e das situações de momentos singulares com cantador de
viola e aboiador, levando-nos ao convívio nos engenhos tradicionais. Possivelmente, a
simplicidade do recontador deva muito às impressões que lhe deixaram a oralidade das
narrativas populares do Nordeste, complementada pelas características do estilo – o
coloquialismo – por conviver com o que estão nas ruas, nas festas populares, enfim,
compartilhando experiências. Seus escritos apresentam tanto aspectos da tradicionalidade
quanto da modernidade, que vão se completando no decorrer do tempo, permitindo considerar
o movimento cultural que se sustenta na tensão dialética entre modernidade e tradição.
Possuem os escritos de Ademar Vidal, uma certa recusa à orientação para o futuro que
caracteriza em geral a modernidade, voltando-se mais para a recuperação de uma dívida que a
atualidade tem contraído com o passado. Do que podemos depreender dos registros do autor
sobre cantador e aboiador na Paraíba, havia por parte desses atores sociais a tentativa, mesmo
que intencional, de bem conviver com a modernidade, ou ao menos de encontrar os meios de
minimizar seus “perigos”, pois que eram também atingidos pelas influências desta
contemporaneidade. Assim Ademar Vidal, percebendo esses fatores de mudança, tenta
estabelecer uma ligação direta entre as transformações das sociedades modernas e a forma
desses indivíduos de expressar o seu trabalho:
Na várzea, os engenhos de bestas são agora contados nos dedos. A grande maioria é ‘a vapor’ as usinas já engoliram inúmeros, fazendo uma devastação completa e impiedosa (p. 13).
160 VIDAL, A. Adeus em silêncio (manuscritos). Originais de livros, Inédito, s. d. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP).
128
Se estas palavras caracterizam os avanços tecnológicos e as alterações pelo
capitalismo do tempo de trabalho, para utilizar as palavras de E.P. Thompson, Ademar reforça
a idéia de que uma coisa tais avanços não conseguiram extinguir:
A lembrança de um passado cheio de lirismo e de beleza. São coisas que a usina não conhece na sua cegueira de açambarcar e arranjar dinheiro com uma ganância doentia. Quando se quer achar pitoresco, personalidade, doçura e a vida mais perto da terra, o jeito é uma volta ao engenho, cuja economia se mescla de forte dose de humanidade (p.13).
Estas abordagens são fundamentais e nos dão uma idéia da consciência que o autor
possui das transformações que o progresso pode alterar na vida das pessoas e nas forma de
trabalho, ao mesmo tempo reconhece a importância de tais mudanças, principalmente na vida
daqueles de cujo sacrifício depende o projeto de futuro. De fato, são preocupações assinaladas
por Ademar, embora, como já dissemos, ele não aborde diretamente o assunto, voltando-se
muito mais às formas de arte do aboiador:
O homem transportou o aboio do campo para o rumoroso ambiente do engenho. E veio mais íntimo, as sílabas se prolongando muito mais, tudo indicando o sentido de animar com uma voz melancolizada e sobretudo musical (p. 15).
Ampliando o quadro proposto, isto é, as formas de arte do aboiador, Ademar aponta
aquilo que explica, a partir da influência do negro, a riqueza do aboio, “que se encontra
também e principalmente na voz e na resistência de mestre Alípio do Itaipu, negro mestiçado,
bastante entendido em gado” e escreve:
Sendo aquela (voz) suave e sem tropeços, e esta (resistência) capaz de ter o que se diz dos sete fôlegos do gato, então o caráter não faltará: o dono dessa voz e dessa importância de fôlego terá a fama que um Alípio de Itaipu desfruta com real merecimento (p. 15).
A arte da comunicação e transmissão realiza-se através de um processo que envolve o
contar “histórias deliciosas pelo pitoresco da linguagem e construção arbitrária”. Assim,
Ademar registra:
Alípio nunca viu o mar. Nunca saiu de perto de onde nasceu. É o folclore vivo, senão em pessoa; fonte onde sempre procuro me abastecer, passando de ordinário minhas férias no Engenho Novo sem dispensá-lo na companhia, pondo-se a ‘cantar no seco’ para mim, enquanto vou tomando notas apressadas (p.14).
Ao considerar mestre Alípio como parte do “folclore vivo senão em pessoa”, Ademar
Vidal esboça uma admiração romântica, explorando o pitoresco das imagens. No entanto, uma
129
leitura atenta de todos os escritos do autor (incluindo textos publicados e também inéditos)
revelou seu interesse pelas tradições populares tratando-as não como uma cultura homogênea,
mas, como diria Bosi, como a “coexistência” de várias culturas. Cremos que essa atitude
possa expressar sua preocupação com o contexto social, os usos e costumes veiculados por
essas práticas culturais, mesmo que, por vezes, esbarre numa visão romântica do folclore.
Sociabilidade, espontaneidade, diferença são elementos que irão compor o léxico do autor,
mas, como já dissemos anteriormente, sempre atento aos processos simbólicos e às condições
concretas de vida popular. É dentro deste contexto, que se descortina a produção de Ademar
Vidal: ora reforçando tendências líricas de um povo que ama a terra e se sente muito familiar
com o movimento dos astros, por exemplo, ora considerando as culturas em sua natureza e
poder de “resistência e subordinação”.
A proposta vidaliana se assemelha em muito à concepção de Mário de Andrade, pela
reflexão sobre as particularidades das manifestações populares. Nela se exprimem as crenças,
os costumes, os pensamentos da coletividade, a história de um povo enfim. Seus escritos
indicam a preocupação em coletar memórias populares que pertencem à tradição oral
diretamente da boca dos cantadores: “isto foi observado de perto” (p.17), ou assistindo a
espetáculos públicos como o Maracatu, registrando o que viu, sem omitir nenhum detalhe por
exemplo, variações pelas quais passam as manifestações populares, no caso o Maracatu que
fez variações para ganhar dinheiro. Vejamos:
Não é só nas portas das igrejas que o Maracatu parava para uma representação. Costuma ainda parar em frente das casas dos poderosos no dinheiro e na política. Aqui já estava evidentemente se distanciando de seus primitivos fins de natureza religiosa para uma demonstração que não correspondia à pureza de tradição.161
Uma análise breve desta ação faz surgir o seguinte: o autor pretende ampliar sua
aptidão para contar as histórias por ter sido antes ouvinte e, antes ainda, observador direto no
ofício de anotar, separar as fontes e explicitá-las. Assim, a narrativa é anunciada como relato,
mesmo se a performance narrativa é bastante criativa. Há também nesses escritos , a presença
de uma coletividade que faz desse “contar”, a necessidade de recordar-se do seu passado
encontrando o autor, exatamente aí, a matéria do seu vínculo social. A preferência pelas
narrativas pertence ao tempo passado, mas, na realidade, é sempre contemporânea desta ação
que se estende entre o ver, ouvir e registrar
161 VIDAL, A. Práticas e Costumes afro-brasileiros. p. 48.
130
4 Contar ... recontar histórias
Não houve quem já dissesse que a lenda é a parte mais bonita da verdade?
Ademar Vidal, 1949
Contar é prática antiga. A literatura oral transmite de povo a povo, de indivíduo a
indivíduo as narrativas que se constituíram em algo fundamental à vida, e que os homens,
através dos tempos, selecionaram pela experiência. Desse modo as histórias permanecem no
mundo pela tradição oral.
A reminiscência é a base da tradição que transmite os acontecimentos mais
importantes de geração a geração.162 Em sua prática, o contador de histórias reúne imagens e
idéias de suas lembranças, ajustando-as às determinações contextuais e verbais de seu grupo,
sob o ponto de vista cultural e ideológico de sua comunidade. Essa vivência favorece a troca
de conhecimento, ou seja, a de trocar pelas palavras experiências vividas.
Portanto, contar e recontar histórias significa partilhar a lembrança das experiências do
dia-a-dia e a sabedoria adquirida ao longo da vida. O ato de contar faz parte do cotidiano de
grupos sociais que se juntam durante o trabalho, ou nos momentos de folga163 – como
expressa Ademar Vidal – , para conversar, contar histórias, escutar e trocar experiências.
Nessa prática, se ritualizam os costumes e hábito originários de uma comunidade. São os dias
da lembrança que, muitas vezes não são assinalados por uma vivência mas, ao contrário,
destacam-se do tempo.164
Buscando o passado tão recente, 1920 – 1950, que ao mesmo tempo nos parece tão
remoto, percebemos a proximidade de alguns autores com o saber popular e com as camadas
mais simples da sociedade, entre eles Ademar Vidal. As histórias recolhidas por Vidal avivam
a memória popular, por isso merecem destaque, quando menos, elas marcam uma etapa de
vida na Paraíba no período mencionado.
162 BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. In Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 211. v. 1. 163 Podemos dizer que os momentos de folga, diferentemente daqueles que não são percebidos pelo trabalho, dependerão da “situação geral da sociedade e não significam menos do que, mesmo onde o encantamento se atenua e as pessoas estão ao menos subjetivamente convictas de que agem por vontade própria, essa vontade é modelada por aquilo de que desejam estar livres do horário de trabalho”. ADORNO, T. Indústria cultural e sociedade . São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 112. 164 Ver o texto de Walter Benjamim Sobre alguns temas em Baudelaire. In Os Pensadores . São Paulo, Editora Abril, 1975. p.53.
131
Possivelmente, com o intuito de dar a conhecer algumas narrativas populares Ademar
Vidal escreve Lendas e superstições: contos populares brasileiros. Essa obra foi publicada em
1949, mas desde as primeiras décadas do século vinte cogitava de escrever algo nesse sentido,
como revelam seus escritos, 165 ainda desorganizados, porém com intenções explícitas de
reunir em um livro, mitos do litoral, fantasias da várzea e do brejo, lendas do sertão
paraibano:
É fabulário recolhido através de longo tempo de afetuosa continuidade de propósitos. Trabalho que somente pôde tomar a orientação já indicada depois de escritas as histórias uma a uma, lendo depoimentos, ouvindo-os.166
Nesse trabalho, Ademar Vidal reúne histórias pensando não apenas no registro das
manifestações culturais populares, mas, principalmente, por acreditar que o povo tenha a seu
modo, uma peculiaridade artística, uma religião e uma moral diferente daquela imposta pela
cultura dominante. E, frente a esse campo de expectativas e de possibilidades, surge a
variedade de narrativas que espelham a imaginação presente em Lendas e superstições.
Narrativas capazes de subverter combinações hegemônicas do que existe, divulgando fatos da
história “sobrenatural”, que refletem a mentalidade coletiva do homem nordestino, suas
crenças, seus hábitos, seu modo de ser, o modo de sua cultura. O autor denota nisso uma
liberdade intelectual singular, que consiste em não temer os preconceitos ideológicos dos
contemporâneos, valorizando a tradição sem negligenciar a modernidade. Assim, Ademar
sinaliza mudanças dentro de uma continuidade, em direção a um conjunto de condições
sociais reconstituindo o mapa social e cultural do Nordeste.
Os recursos analíticos previstos têm sua formulação inicial nas memórias populares e
se estruturam a partir da continuidade e aproximação dos fenômenos reportados pelas
narrativas. Recorrer à memória popular para direcionar a leitura de uma obra que debruça
sobre crenças, fantasmas, almas do outro mundo, demonstra um esforço de aproximar as
tradições culturais. Assim, por meio de uma série de histórias, Lendas e superstições junta
personagens (humanas e míticas) e lugares em um jogo mimético fixado entre o possível e o
impossível, o tangível e o imaginário, o infortúnio e a sorte, o espiritual e o material, fazendo
de sua representação um procedimento imitativo de práticas que alcançam a margem extrema
do inefável e do misterioso.
165 VIDAL, A. Escritos diversos. Série Produção Literária: originais de livros, pasta 11. Arquivo Ademar Vidal, no IHGP. 166 VIDAL, A. Lenda e superstições:contos populares brasileiros. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1943. p. 23. A partir dessa citação, indicaremos apenas o número da página entre parênteses, logo após o trecho citado.
132
A memória popular será, então, nosso fio condutor da leitura da obra em destaque,
uma vez que o espaço representado em causa se apóia em fragmentos da história do
imaginário, 167 isto é, o conjunto de representações que ultrapassam os limites impostos pelas
comprovações da experiência e de seus encadeamentos lógicos. Fazem parte dessa estratégia a
seleção de textos que compõem Lendas e superstições, cento e setenta narrativas dentre as
quais selecionamos para análise aquelas que tratam de almas penadas; outras em que a
natureza denuncia crimes e castigos; outras ainda, que exudam como marcas da intervenção
divina em nosso mundo.
As páginas que compõem a obra de Ademar Vidal são modestas em suas contribuições
à Sociologia do oculto, ou seja, do sobrenatural, porém apresentam interesse à literatura ou ao
folclore do encantamento e assombrações no Nordeste. Encantamentos e assombrações são,
especialmente, uma perseguição do presente pelo passado: presente imbricado de velhas
culturas ibéricas, indígenas e africanas. Assim, Ademar vasculhou nas tradições populares o
que houvesse de mais interessante sobre o assunto: casas mal assombradas e casos de
assombrações; denúncias contra ruídos de almas penadas, denúncias de feitores cruéis contra
escravos; mistérios indecifráveis; poderes invisíveis.
Os casos que se prendem à tradição popular são muitos e sem eles, o passado
paraibano não seria tão interessante. Não são poucas as representações de tensões sociais que
têm surgido na Paraíba para assombrar “sertanejos ingênuos, pessoas tementes a Deus,
crianças choronas e recatadas donzelas” (p. 20).
São assombrações nascidas das entranhas da Parahyba, à luz (ou seria à sombra?) dos
seus casarios, das suas igrejas, dos seus canaviais, das suas pedras e lajedos, rios e riachos.
Verdadeiros fantasmas disfarçados em animais, negros e negras, velhos e meninos, e tantas
outras representações.
Essa é a Paraíba que, pelos seus encantamentos, existe e subsiste como espaço onde o
mundo não é só o dos seres tidos como naturais. Suas assombrações e seus fantasmas fazem
parte das revelações do homem com a terra e de certas crenças que por aqui vigoram. No
cerne do encantamento, do misterioso, encontram suas raízes históricas na crença popular.
São narrativas que não deixaram jamais de interessar a Ademar Vidal, por isso Lendas e
superstições constituem-se um objeto privilegiado de seus estudos literários.
167 Ver o texto de Evelyni Patlagen sobre l’histoire de L’ Imaginaire. In: Le Goff, J. La nouvelle histoire (Org.) Paris, Retz/ CPL, 1978.
133
Interessando-se fundamentalmente pelas fontes afro-brasileiras, as sobrevivências da
mitologia africana são as mais difundidas na obra em questão. Segundo Ademar Vidal,
“coube às manifestações folclóricas de procedência africana constituir a estrutura do folclore
brasileiro, uma prática do folclore nordestino”.168 Também, coloca em evidência a origem
indígena e ibérica de lendas e contos seja quanto à forma, seja quanto ao fundo. Vale ressaltar
mais uma vez, que Ademar Vidal não vê acabado o processo de incorporação de elementos
provenientes das três culturas. Para ele, as manifestações populares estão em constante
movimento, isto é, em “atuante modificação” (p.23).
Embora nosso procedimento básico possa parecer restritivo, procuramos ampliá-lo
buscando orientação e um entendimento nos argumentos do passado. Para o objetivo a que
nos propomos, o de penetrar com uma veia antropológica nas interpretações de Ademar Vidal
sobre as manifestações culturais populares, o mais prudente é buscar nas histórias por ele
recontadas a marca que a presença dessas histórias desempenha no imaginário das camadas
populares mais tradicionais. Da metáfora e da analogia a todos os vôos que a mente permite:
histórias metaforizadas no encontro com entes prodigiosos, na aparição de fantasmas, no
convívio com almas do outro mundo. Assim, seguiremos as pegadas propostas pelas crenças
populares tentando encontrar uma chave que possa nos abrir as concepções das narrativas aqui
selecionadas.
Entre as mais diversas narrativas, recontadas por Ademar Vidal, que focalizam o negro
e a escravidão e o senhor de engenho, destacam-se Os passeios do vulto branco (p. 349-51),
como caso de visagem paraibano. A escravidão na várzea, como observa Ademar, foi bastante
forte. Os negros penetraram, sobretudo a zona dos engenhos, com a fabricação do açúcar e
por lá se dispersaram. Espalharam-se os sofrimentos atrozes provocados por senhores nos
castigo aos escravos.
Conta-se que no “engenho Santo André havia um proprietário assim. Castigava
demasiadamente os criados, não sabia ter pena de coisa alguma, o coração talvez nem batesse
como relógio. Mas batia. E lá uma tarde”:
Entregou a alma à eternidade. O corpo foi enterrado e certamente que a terra o devorou com sofreguidão. A alma, porém não se foi do lugar onde vivera sempre e onde praticara as suas crueldades, achou de ficar por ali mesmo, metida na estrada, no mato e no canavial. Não existia dúvida de que vivia mais no canavial, escondendo-se durante o dia, com receio da claridade, pois os mortos têm horror à luz do sol (p.349).
168 VIDAL, A. Escritos diversos. Op. cit.
134
As almas penadas, focos de muitas histórias populares brasileiras, são sinais do castigo
após a morte, resultante de atos sem perdão praticados durante a vida. O vulto branco “de
cajado em punho e com ares de quem anda fiscalizando algum serviço, traz os escravos num
cortado rigoroso, continua o que foi em vida e nas noites frias ouve-se até o estalo do chicote
no ar” (p. 350).
Pode-se dizer, com Câmara Cascudo que as narrativas, pela riqueza de detalhes,
constituem a estrutura de suas histórias e sua originalidade é extraída da natureza inconsciente
dos fenômenos coletivos. Elas são parte da idéia de que não se pode viver sem ter
coletivamente uma certa concepção do homem, da natureza, da vida social. 169
Registrar alguns aspectos do passado paraibano, como fez Ademar Vidal, aqueles em
que esse passado se apresenta conduzido pelo sobrenatural é importante para entendermos a
mentalidade de um povo em certa de fase de sua história, principalmente aquela em que as
famílias deixaram sua autonomia de pequenos “feudos” para constituírem uma coletividade.
De alguma maneira, tal registro referente ao sobrenatural cuja presença, real ou suposta é
constituída por meio de testemunhos, de experiências, de aventuras da chamada “natureza
inconsciente” que teriam sido vividos por alguns paraibanos em circunstâncias próprias da
Parahyba: cidade que nasce sem jamais ter sido vila; surge às margens do rio Sanhauá; foi
Província depois de ter sido sede da Capitania e depois capital da Província e do Estado.
Espaço urbano caracterizado por igrejas, conventos e sobrados que retêm seus mistérios e
sugerem muitas crenças populares.
Não há de se surpreender que no âmbito popular, muitas pessoas encontrem uma
inabalável crença nas assombrações, com ela vem uma fé na possibilidade de uma ação
mágica para contra-apreender essas assombrações. E não faltavam histórias observando que
tais aparições eram as almas penadas, incapazes de descansar até terem “expiado seus
pecados”. Vejamos o que diz ainda Ademar Vidal sobre o vulto que passeia:
Fez o diabo quando governava o seu rebanho. Deve ter mexido com muita gente, dando prejuízos sérios, pois ao contrário não estaria nas condições em que se acha: andando sempre, feito judeu errante. E até pior que isso. Anda somente por ali com a impressão de quem administra escravos, nada perdoando, o relho a cantar insolente as suas notas melancólicas. Ainda é feliz porque limita os passeios ao mundo em que viveu (p. 350).
Mas esta não é a história inteira. Falta ainda um trecho que indica ser o ponto mais
importante, pois “tudo tem suas compensações”:
169 CASCUDO, L da C. Geografia dos mitos brasileiros. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília INL,1976.
135
E como especial desígnio conserva a mesma majestade do orgulho, e, talvez por isso, continua no seu vagar eterno, sem mais razão de ser no outro mundo em que a simplicidade e a pureza devem ter soberanias inabaláveis (p. 350-51).
O vulto que passeia evoca castigo pela mão de Deus ou dos Santos. Esse tipo de
narrativa, como observa Câmara Cascudo, pertence a uma “apologética de espírito popular,
com processo especial para a dosagem dos pecados”. 170 Por meio de narrativas como essa,
age a mentalidade coletiva, impondo à personagem ações e sentenças de acordo com o
sentimento local. De certa maneira, são narrativas de encantamentos, mas com o sobrenatural
cristão. A feição moral, assumida pelo narrador, denuncia vestígios de respeito sagrado,
“talvez restos de pregações esquecidas, mas tornadas populares pela sua comunicativa
simplicidade”. 171 Convém lembrar que esses encantamentos, ligados ao imaginário coletivo,
surgem a partir das representações afetivas que guardamos em nossa memória e, quando
ativada, influencia a escolha pertinente, porém individualizada, de representações simbólicas,
em que prevalece o universo valorativo da imaginação e das fantasias que construímos,
principalmente na infância.
Como vimos na história descrita por Ademar Vidal, os limites da memória coletiva
encontram, na individualização, contornos mais nítidos de um passado diluído na consciência
individual do autor, como a vivência nos engenhos de açúcar na Paraíba, imagem que não é
simples produto do imaginário, pois contém elementos comuns do passado vivido por ele.
Contudo, há também o outro lado da história. Em narrativas como esta pode-se verificar que
muitas das visagens são interpretadas como almas de pobres ou inocentes que penaram em
vida, sofrendo pelos atos de violência. Analisando narrativas populares referentes a almas
penadas, Ayala comenta que, por serem “vítimas de alguma opressão em vida, continuam
após a morte. Suas aparições são entendidas como denúncias de atos trágicos sofridos por
crimes, assassinatos, torturas, acidentes”.172
Em se tratando dos “Passeios do vulto branco”, pode-se dizer que esta é mais uma
narrativa exemplar, conforme as recorrências aí contidas, caracterizadas pelo elemento
sobrenatural e ainda pelas injustiças praticadas pelo Senhor provocando sofrimentos atrozes
aos seus escravos; estes, os injustiçados, ficam à espera de justiça extraterrena. Nesse sentido,
o imaginário popula r constrói um tipo de justiça divina, quando não é possível vivenciar
170 CASCUDO, L da C. Literatura oral no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1952. p. 319. 171 Idem, p. 320. 172 AYALA, Maria I. N. Encantamentos e assombrações: representação de tensões sociais em narrativas populares. In: Representação do oprimido. Estudos 2, II série, n.8, 1992. João Pessoa, PB. p. 84.
136
formas de punição contra seus donos no mundo real. Como destaca Maria Ignez N. Ayala, se
o silêncio se impõe aos dominados no campo das “relações sociais concretas, simbolicamente,
conquistam um certo poder à medida que elaboram narrativas, superando o silêncio imposto
pelo domínio”. 173
As crenças, individuais ou coletivas, levam ao entendimento de uma unidade e, nesse
sentido, essas crenças investem no “lado de lá”, isto é, uma vida extraterrena, necessariamente
ligada à vida humana: fé e formas de existência se unem, implicando um número possível de
participações em todas as partes do universo. O fenômeno das crenças pertence a um olhar
temporal duradouro, assim elas se reproduzem com modificações ao longo da história.
Em assuntos de almas penadas, “passeios do vulto branco” revelam razões que a razão
dos homens desconhece, ou melhor, não alcança. Assim sendo, essa narrativa revela o
possível, embora aparentemente alheia à sua absoluta inv iabilidade, à espera da nossa
conivência:
O povo não pensa que o vulto que passeia tanto passeia por prazer, com saudade do tempo passado, gostando de rever aqueles sítios de seu conhecimento particular não pensa assim, não; entende o povo que o vulto que passeia está penando e pagando as culpas que tem por haver praticado o mal (p. 350).
Segue-se o entremeio:
Era o homem que plagiou o ditado: fazer bem não cates a quem, adotando o princípio: ‘fazer mal não cates a qual’, com tamanhos luxos desumanos. Aquilo é pena imposta por infelicidade de seus pecados. Quem quiser que pense o contrário (idem).
A alma do outro mundo ou assombração tem forma humana reconhecível, observa
Câmara Cascudo, e geralmente se apresenta com uma veste branca, até o calcanhar,
materializando-se pela voz. Ela permanece na terra enquanto não cumprir as penas impostas
pelo Criador. Exatamente como a do proprietário do Engenho Santo André, mencionado por
Ademar Vidal em cuja mata achou de ficar, “escondendo-se durante o dia, com receio da
claridade”. Mas, “há quem afirme de pés juntos que não são todos os mortos que têm essa
prevenção” (p. 350).
O que faz de “Os passeios do vulto branco” uma narrativa interessante é, talvez, a
construção da cena nos limites do próprio espaço mítico que guarda a memória dos maus
tratos aos escravos, a injustiça para com os oprimidos, a violência sempre lembrada pelos
acontecimentos trágicos. É no recorte por dentro do sobrenatural e de suas formas explicativas
173 Idem, p. 98.
137
do mundo dos mortos que se dá vida a essa história. O sobrenatural fala de uma encenação
que cria o real e oferece uma leitura possível das relações entre dominante e dominados, ou
melhor, uma leitura possível da sociedade paraibana, em particular, da diversidade das suas
construções socioculturais. Dessa forma, a fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos
deixa de ser limite e distinção para se tornar movimento de aproximação: é encontro de
imaginários; passagem de simbologias; artifício do (re)contador que, com o discurso indireto,
dá a impressão de ausentar-se e de cumprir o que expôs no início da narrativa: “vive-se num
meio de fantasias e superstições que vêm dos antepassados”, demonstrando, assim habilidade
em captar o significado que pode ter a memória popular.
Quando se trata de natureza denunciante, A pedra de Mônica (p. 477-79) é reveladora
desse tipo de história emergindo situações em que a natureza denuncia crimes e castigos.
Conta-se que “lá pelas bandas de São João do Cariri paraibano existem à beira da estrada
pequenos montes de pedra. Pedras que têm a sua história”:
Coisas que o povo vai guardando e passando adiante tal e qual. No meio delas se distingue a denominada ‘pedra da Mônica’ (p. 477).
Pode-se perceber, logo no princípio da narrativa, que o recurso utilizado por Ademar
Vidal para divulgá-la é “sempre a arte de continuar contando”. Ele sabe que “esta se perde
quando as histórias já não são mais retidas”.174 Dessa forma, vai assumindo, por exemplo, um
papel de identificador do “lajedo”, evocando a memória por meio de imagens não de seu
passado, mas sim de uma memória-saber:
Nos tempos da escravidão havia por perto (lá pelas bandas de São João do Cariri) um senhor feroz que queria tudo para si. Fosse bom seria seu. Inclusive a escravinha Mônica, já comprometida com o negro Demétrio. Pensavam viver juntos depois que casassem, mas dependiam da licença de seu amo.
Tudo iria bem, se seu amo não tivesse se aproveitado das escravinha, “agarrando-a”:
Isso provocou o ódio em Demétrio, que quis logo se vingar. Da conversa com o amo resultou a ação mutiladora; depois a fuga.
A história prossegue. Prossegue também o espírito de vingança, que continuava forte
“no desejo de acabar com o negro Demétrio que tivera o atrevimento de tirar-lhe os ‘prazeres
da vida’. E um santo dia”,
174 BENJAMIN, W. O narrador: observações sobre a obra de Nikolai Leskow. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 62.
138
Sem esperar, viu a vontade realizada. O escravo distanciara do seu refúgio, morrendo numa emboscada certeira. Destino traçado (p. 478).
Nesse lugar arquetípico, cria-se o herói trágico e o universo mítico, tecido nessa curta
narrativa. O espaço utilizado para expressar o conflito é mantido como lembrança de um
estado ideal já acabado ou perdido, mas o mundo de Mônica permanece, encantado, porém
reconhecido no lajedo do Cariri. A pedra de Mônica, no entanto, constitui memória evocando
o sobrenatural, como denúncia que rege à tensão entre dominante e dominados.
As histórias têm, ainda hoje, na boca do contador, uma força que atrai a atenção do
ouvinte. O depoimento de seu Severino Cavalcanti da Silva, mais conhecido como seu Biu de
Manu, que mora em um sítio ao lado da Pedra de Mônica, é esclarecedor sobre o aspecto
dinâmico, criador e recriador no ato de contar histórias. Ao ser interrogado sobre a lenda da
Pedra de Mônica ele disse:
O que o povo fala é que a escrava Mônica ficava trancada na furna enquanto o companheiro saía pra buscá alguma coisa. Um belo dia, quando ele chegô em casa [referindo -se à boca da pedra] Mônica estava morta. Tinha sido devorada por uma onça (julho, 2005).
Já seu Valdemar, com oitenta anos de idade, morador de Boa Vista, também ao ser
interrogado sobre a Pedra de Mônica respondeu:
O povo conta que existiu uma escrava que, de tanto sofrer nas mãos do seu dono, refugiou-se para as pedras do Cariri. Mas aqui pouco se fala sobre isso. As pessoas de fora sabem muito mais que as do lugar. Pra uns, a escrava ainda vive na boca da pedra; pra outros, isso é só história. O certo é que quando se começa a falar na escrava, ela começa a aparecer na boca da pedra (julho, 2005).
Através deste depoimento podemos perceber que o imaginário popular desta narrativa
se acentua a partir do interesse das pessoas pela lenda. As palavras de seu Valdemar marcam
bem essa questão e nos leva a perceber a necessidade de se recontar a história para que ela
sobreviva. Só a oralidade desperta a história que está congelada na escrita. Assim, o essencial
na lenda é que nutre nossa experiência, nosso cotidiano, nossos valores, e como prática de
transmissão transforma-se num ambiente que se troca.
A prática da narrativa se descobre como um ordenamento do mundo em um duplo
aspecto temporal e espacial. O tempo da cultura popular, como observa Bosi, é cíclico. Desse
modo “é vivido em áreas rurais mais antigas, em pequenas cidades marginais e em algumas
zonas pobres, mas socialmente estáveis. O seu funcionamento é o retorno de situações e atos
139
que a memória grupal reforça atribuindo-lhes valor”. 175 Seguir a direção do tempo e do
espaço significa a possibilidade de “um retorno cíclico à tradição”, onde os termos
fundamentais ganham a força de seu envolvimento com o presente. Dessa medida própria do
campo da memória popular, é feita a matéria da representação que tece a articulação entre o
mundo material e o sobrenatural. Assim, “A pedra de Mônica” encontra a força de invenção
de suas representações, além do conflito, também na obediência, pois,
O crime de desobediência lhe foi perdoado, mas nunca abandonou a sua pedra, não quis mais deixar os cantos onde vivera em companhia de seu amante (p.478-79).
assim, a personagem tece o lugar do coletivo. Sua obediência é a legenda que exige a
realização da complacência e da aceitação como fundamento da continuidade do coletivo. O
epílogo da história, não vem somente com o perdão/complacência, mas como uma evocação
de outros efeitos da derrota sobre supostos inimigos:
No meio de tudo isso chegaram a falar que ela se transformava num monstro sanguinário de garras muito amoladas [...]. Monstro com a especialidade de mutilar os homens devassos que não respeitassem a honra das moças solteiras ou mulheres casadas [...]. Porém Mônica não se transformava em coisa alguma [...]. O povo estava inventando histórias quando ele diz alguma coisa é porque se trata de realidade (p. 479).
De resto, “A pedra de Mônica ficou simbolizando tudo isso”.
Quando se fala de natureza denunciante, vale lembrar que não apenas as pedras a
compõem; também fazem parte árvores, rios, casas antigas, ruínas e cruzeiros de beira de
estrada. Muitas vezes é essa natureza essencialmente destinada a comprovar um sentimento
moral, de repulsa, de violência, de injustiça, ou apenas fixação de sinais morais. Mas do que
sinais funcionarão como vestígios da memória coletiva. É o caso da história da Porteira (p.
283-85).
Isso de haver porteiras que rangem misteriosamente no silêncio da noite, cheguei a
ouvir quando criança de contadores de “causos” em Minas Gerais. Lendas e superstições
registram crença semelhante nos campos de gado na proximidade de Maraú, região de
engenhos na Paraíba.
É crença de que almas penadas falam através de pancadas secas e rápidas, e a porteira
é um local reservado para os encontros. Não todas as porteiras, afirmam categoricamente os
175 BOSI, A. Plural, mas não caótico. Op cit. 1987. p.11.
140
contadores desse tipo de história. Contudo, garantem que existem algumas delas que
representam marca de sobrenatural, principalmente quando existe alguém enterrado junto à
cerca. A cruz assinalando o túmulo é indício de que ficou mais um “vulto penando sem
encontrar pouso adequado, talvez nem descanso” (p. 283). Durante um tempo a igreja
Católica racionalizou a antiga crença nos fantasmas divulgando que tais aparições eram almas
penadas, incapazes de descansar até terem expiado seus pecados.
Sobre o dever da sepultura Câmara Cascudo aponta que o “cadáver sem a honra
fúnebre do túmulo mesmo sumário tornar-se-ia um espírito malévolo, fantasma opressor,
espavorido e espalhando terrores”.176 Parece ser este o caso do fantasma da “porteira”. Não
que ele espalhasse terrores, mas ficava a lamentar-se através da voz da porteira, precisando
emancipar-se daquela prisão e ir para o cemitério, pois, para utilizar as palavras de Ayala,
“fora do lugar dos mortos fixa-se na natureza”. 177
Nesse sentido, há quem busque amenizar tais assombrações, queimando velas junto à
cerca. Ademar Vidal parece entender que a vela acesa implica em “caridade, luz para o
espírito”, mas reclama por maiores explicações. Foi quando ouviu da boca de José Pequeno,
que o fantasma da porteira existia de fato e que vinha assustando até homens valentes, “por
certo aqueles que almejavam entrar em propriedades alheias sem a permissão dos donos”,
deduz Ademar.
Encostado no pescoço do cavalo para se apoiar no descanso José Pequeno, como relata
Ademar Vidal, dá continuidade dizendo:
Na festa de São João mataram o Nozinho por malquerença tola. O pobre não estava preparado, andava de corpo aberto, pegado de sopetão, coitado ficou à-toa e sem saber para onde ir. Não tinha ninguém por ele. Teve de ficar na estrada esperando quem acendesse vela em sua intenção. Depois de ter chegado um número certo, a alma sai direitinho para o cemitério e, enquanto esse número de velas não for atingido, Nozinho não pode sair da ‘cadeia’. Pelo rangido da porteira se conhece haver alma aqui (p. 285).
Como observa Câmara Cascudo, é costume, em muitos lugares quem passar, atirar
com uma pedra ou ramo para o Cruzeiro, chegando muitas das cruzes da estrada
desaparecerem por entre os objetos depositados pelos que por ali transitam.
Na história recontada por Ademar Vidal, não há presença nem de pedras, nem de
ramos, mas sim de velas depositadas junto à cerca em homenagem ao morto que ali tombou.
176 CASCUDO, L. da C. A pedra na cruz. In: Anúbis e outros ensaios:mitologia e folclore. Rio de janeiro: FUNARTE/INL: Achiamé; Natal: UFRN, 1983. p. 51. 177 AYALA, M. I. N. Op cit. p. 84.
141
“Por certo foram mão piedosas que andaram por aqui, pelo menos pagando alguma promessa. A fé católica impõe deveres de caridade e piedade que são cultivados com entusiasmo fervoroso” (p. 284).
Pedras, ramos, velas constituiriam, talvez, sinais de orações, provas materiais
denunciando a oferenda aos mortos, intenções significando votos para a salvação da alma.
Nesse sentido, podemos dizer com Câmara Cascudo, que esses elementos recordam crenças
religiosas esparsas na memória do homem e no tempo do mundo.
Lucien Fevbre apresenta sua narrativa – O problema da descrença no século
dezesseis178 – em que examina a relação de François Rabelais com um século onde
superstições, pecados e penitências faziam parte de uma antropologia religiosa. Era um século
“que queria crer” e Rabelais teria sido a expressão máxima desta “fé profunda”. Assim como
Fevbre, Keith Thomas é também escritor que debruça sobre a crença que ostentou entre os
séculos dezesseis e dezoito, na tentativa de compreender o sistema das convicções em torno
de fantasmas e duendes, astrologia, assombrações e sua relação com as idéias religiosas do
período, apontando que os fantasmas ingleses “não foram inventados, mas estavam
relacionados a experiências de pessoas reais”. 179 Nesse sentido, a crença pode fazer as vezes
da realidade, se se admite que possa haver ligação por meios psíquicos, mesmo imaginários
de vivos com mortos.
Passados alguns séculos, muitos dos elementos de crença permanecem vivos na
memória popular, servindo para compensar as dificuldades da vida cotidiana, acolhendo os
anseios dos homens, fazendo justiça entre bons e maus e passando avisos e mensagens.
Generosidades funerárias: alimentos, ramos, velas, pertences pessoais ajudariam o morto a
prosseguir sua vida no conforto do túmulo, sob a terra. As sepulturas, por sua vez,
correspondiam à morada do defunto; delas é que saem os fantasmas nos quais se crê e
também se vê.
Não pense, porém, que a tradição paraibana só fale em almas que rondam as bandas
dos engenhos, torres das igrejas, conventos e casarões. Fala também de uma menina que vivia
na região de Patos e fora morta cruelmente; história já consagrada pela literatura em romance
de Flávio Sátiro Fernandes.180
Durante muito tempo a recordação desse mistério poetizou a cidade de Patos, sendo
retratado em versos pelo poeta popular Florivel Belaciel dos Santos. Deu-se então o seguinte
178 FEVBRE, L. Le problème de l’ incroyance au XVI siècle. Paris, Albin Michel, 1942. 179 THOMAS, K. Religião e o declínio da magia. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 475.
142
fato: a menina era filha de um casal de flagelados que fugia da seca. Temendo o pior de tudo
que pudesse acontecer, os pais deram a criança para outro casal criar. Francisca era seu nome,
O pior em sua vida Estava pra acontecer. Foi coisa de arrepiar, Foi grande se padecer. A morte grande alívio, Terminando seu sofrer.181
e no local onde foi enterrada ergueu-se uma cruz, como prova de uma crença; posteriormente
uma capelinha foi erguida, talvez por alguém que obteve uma graça. A história da menina da
cruz é lenda e, por isso, nada poderá significar para a história da cidade e para aqueles que
não se dão conta de que uma lenda é construção de muitos. E, como diria Ademar Vidal,
argumento de quem não vê que “a lenda é a parte mais bonita da verdade”.
As narrativas populares mostram que existe uma vida para os mortos, inexplicável é
claro, contudo eles poderão surgir em locais mais apropriados, como sombrios casarões, torres
de igrejas, ruas escuras e desertas para pedir missas e orações que lhes dêem descanso no
além. Acredita o povo que alma do outro mundo, assombração, visagem permanece na terra
enquanto não cumprir os julgamentos que Deus lhes impôs.
Em página ainda calorosa de tradição oral Ademar registra que o Lobisomem (p. 469-
73) “talvez seja o mito popular mais notável, do sertão à faixa Atlântica e, conforme a região,
traz a marca particular”. A diferença do Sertão para o Brejo é pequena nos seus processos. A
forma de encantamento é mais ou menos a mesma:
Encruzilhada de caminhos, meia noite de quinta para sexta-feira, atividade até o primeiro canto do galo, correrias, vigilância e várias chupadas, não havendo escolha do bicho ou do animal. O que se apresentar pela frente será aproveitado (p. 470).
Mas no litoral o mito se apresenta com outras particularidades:
Sabendo que, para virar lobisomem, se torna preciso o indivíduo – sempre amarelo e doente – procurar alguma encruzilhada, cheia de mariscos da praia, onde despe, dando vários nós na camisa e no lenço. Deita-se no chão. Espojando-se como quadrúpede. Uns dizem que ele engole os mariscos do mar. Outros contestam essa versão. Depois entra a fazer desarticulações com as pernas e braços, encostando a cabeça aos pés, remexendo-se para a direita e esquerda, dizendo palavra à-toa: – Encoura, desencoura, encoura, desencoura, encoura (p.471).
180 FERNANDES, F. S. A cruz da menina. 2. ed. João Pessoa: Editora A União, 1996. 181 SANTOS, F. B. dos. Vida, paixão e morte da menina Francisca da Cruz da menina. Poeta de bancada. Patos – PB, Tipografia Minerva, 1933. p. 4. Apud FERNANDES, A. F. S. Op cit.
143
O lobisomem (homem-lobo brasileiro) seria, segundo Câmara Cascudo, 182 filho do
homem nascido depois de uma série de sete filhas. Aos treze anos, numa terça ou sexta feira,
saía de noite, e topando com um lugar onde um jumento se esponjou, começava seu fado. Daí
por diante, nesses dias, da meia noite às duas horas ele fazia a sua visita aos sete adros ou
cemitérios, sete vilas acasteladas, sete partes do mundo, sete outeiros, sete encruzilhadas, até
retomar ao mesmo esponjadouro, onde readquiria a forma humana.
Há uma superstição que para terminar com o Lobisomem basta feri-lo, mas se a pessoa
se manchar com seu sangue, se transformará também em lobisomem. Há quem afirme ter tido
encontros e lutas pessoais com esse ser. Talvez um sinal, saído do próprio subconsciente, para
justificar punição e vingança, conflitos e frustrações.
Delimitado por um espaço diferente, ou não, parece que estamos diante da mesma
personagem que se encontra na mesma situação: “meia noite de quinta para sexta-feira, afinal,
‘desencoura-se’, vira lobisomem [...]. Só se desencanta quando o galo desperta no terreiro” (p.
472). Então, se assim é, quais os sentidos que as mudanças de espaço podem trazer para a
história? Sem dúvida, a configuração do espaço irá determinar muito mais que apenas a
localização espacial da narrativa podendo revelar dados sobre a história íntima do lugar cujo
ambiente está impregnado de mitos, lendas, encantamentos.
Nas narrativas populares, foco de nossa análise, esses elementos se destacam. Sejam
porque eles estão sempre em conflito com o espaço em que habitam, seja porque o espaço
estabelece um lugar de senso-percepção sem o qual as narrativas representadas perdem sua
condição de estabelecer referências à vida real. O espaço cumpre um papel de mediação nas
relações entre a história e o observador -interpretante e clareia a sombra da memória coletiva o
que as narrativas projetam.
Região da várzea, brejo, sertão ou litoral são referências reais de espaço para a
invenção da leitura e da interpretação crítica dos lugares culturais da sociedade paraibana.
Uma memória de tipo folclórico abre campo no enredo do bom senso. “O leitor, na sua voz, é
livre para interpretar a história como quiser” e assim a história narrada atinge “uma amplitude
que não existe na informação”. 183 O mito do lobisomem continua conosco, embora diminuído
pela “luz elétrica” e por muitas outras modificações trazidas pela modernidade. Mas, por que
desconhecê-lo, por que desprezá-lo se a história de lobisomem está sempre em harmonia:
182 CASCUDO, C. L. da. Dicionário do folclore brasileiro. Belo horizonte, Itatiaia, São Paulo, EDUSP, 1988. 183 BENJAMIN, W. O narrador. Op cit. P. 206.
144
Com a ‘verdade nacional que vem do povo’. Este se acha convencido de que o mito existe. Não opõe a menor restrição. Apenas os detalhes é que variam no sertão, no brejo e no litoral (p. 472).
Nas histórias recontadas por Ademar Vidal os demônios são disfarçados, às vezes, em
Cabra Cabriola, Papa-figos, Bode Preto e tantos outros que a tradição guarda a lembrança de
aparições no passado nordestino. Essas narrativas interpretam o imaginário cultural do
português, do africano e do indígena, procurando fixar a efemeridade do processo histórico e
convertê-las em memória; esta, entendida como condutora de uma tradição cultural. É a
literatura como busca das manifestações culturais populares e a verossimilhança, como
método. Na reconstrução da lógica interna da narrativa, aproveitam-se as tradições, a partir da
existência de uma memória coletiva, isto é, de um conjunto de fatos, repetidos, repartilhados,
sem que se possa precisar a fonte exata, nem o autor dessas narrativas, aquilo que Halbwachs
teria chamado de “quadros sociais da memória”.184
Reabre-se, por exemplo, a narrativa Alma de gato (p. 33 e 34) que, no ciclo do medo
infantil é, talvez, a espécie mais curiosa, “não tendo hora para aparecer às crianças
desobedientes”. Alma de gato, como esclarece Ademar Vidal, é uma “sombra que passa numa
esquina de parede, uma sombra que de repente se move atrás de uma porta ou de um móvel,
um barulho que se ouve perto ou longe”. Não tem forma, nem cor e “atua pela força da
invocação. Possivelmente, nessa indeterminação reside a melhor explicação e assombro”,
observa Câmara Cascudo.185 Durante o dia desencanta o mistério, mas quando entra a noite é
que alma de gato começa a ser notada materialmente:
Não se espantem: materialmente. Ela mostra toda a conformação física de um gato comum. O seu destino não é arranhar, morder ou ocasionar males semelhantes. O seu destino tem formas suaves. Ele só se apresenta para despertar medos aos meninos (p.33).
Alma de gato, como ressalta Câmara Cascudo, “passeia pelas inteligências meninas da
Paraíba e Rio Grande do Norte com a grandeza disforme, imprecisa e tremenda, de uma
perpétua ameaça”. Ressalta ainda que o prestígio nebuloso de alma de gato, confundido
aparentemente no felino, “vem de remotas origens do Brasil selvagem, um pavor ancestral,
obstinado e contínuo, de criança em criança, como um traço espiritual indisfarçável e
seguro”.186
184 HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo, Edições Vértice/Editora Revista dos Tribunais, 1990. 185 CASCUDO, L da C. Op cit. P. 182. 186 Idem, p. 138.
145
Em se tratando de adjetivar alma de gato, Ademar Vidal mostra-se mais econômico
que Câmara Cascudo, e destaca que o estranho nesse ser travestido de gato é que nenhum
malefício físico imaginário se pode esperar:
Alma de gato não é como outros fantasmas que costumam carregar as crianças para longe. Alma de gato é como se fosse alma do outro mundo, só faz medo e mais nada. Nem sequer usa da velha frase: ele vem buscar você (p. 34).
“Ele vem buscar você”. Esta expressão nos remete ao mito popular Bicho Papão,
também relatado em Lendas e superstições. Diz a lenda que “sempre à hora de dormir é que a
sua presença se torna indispensável”:
Invoca-se o duende que alguns não sabem que forma venha a ter. Coisa imprecisa.porém, um detalhe não se modificou até agora: ele vem no momento crítico com o fim de impor a sua autoridade. Vem de ponto feito. Assim é que alguém está pondo na cama a criança e esta não quer dormir, faz-se a invocação terrível: – o Bicho Papão vai pegar você. O suficiente para o insone se sentir oprimido (p. 93).
Dizem que o encargo do Bicho Papão é exclusivamente o de “amedrontar os
pequeninos que resistem ao berço”, mas por outro lado:
Há quem sustente que ele infunde pavor na suas visitas noturnas em domicílio: veste camisolão preto, coisa parecida com batina, nariz enorme, que tomou tais proporções em virtude de vício esportivo, o de meter o nariz no berço para exame local (p. 93).
Como não há motivos para discordar da tradição, segundo a qual o conteúdo da
história foi dado, ao menos em parte, podemos admitir que a narrativa constitui em extrair dos
fatos e das pessoas um certo elemento que os aproximou das narrativas populares. Assim, por
exemplo, uma certa criatura, denominada ou não de bruxa, vestindo camisolona preta, começa
a agir no momento propício, carregando crianças para lugares desconhecidos “com o fim de
fazer incisão no aparelho nasal e também na garganta” (p. 94). Dado o caráter da narrativa, é
possível lançar uma ponte para o universo da exemplaridade, passando determinados valores a
serem respeitados pela comunidade ou por cada indivíduo, fazendo com que essa tradição
encontre a substância das tradições populares.
Poderíamos, então, dizer que narrativas como “Alma de gato” e ‘Bicho Papão” são
constituídas, tanto pela associação dos costumes e acontecimentos em uma determinada época
quanto por traços involuntários, manifestados sobretudo na proporção dos atos e das
146
peripécias. Como componente, uma espontaneidade, porém baseada na percepção da
dinâmica social da Paraíba no início do século vinte. Com o tempo, ao se difundirem no meio
popular ou entre as crianças, essas personificações que, originalmente nasceram como
expressão simbólica ou preocupações primordiais, perderam seus verdadeiros valores de base
e só conservam suas prerrogativas em seu poder mágico.
Essas narrativas, hoje, devem soar como algo insólito e engraçado às nossas crianças.
Está claro que com a passagem dos tempos e a transformação dos costumes, perdeu-se a
memória das situações particulares e imediatas que teriam atuado na criação de motivos
originais. Embora tenha desaparecido no tempo a situação particular que provocou a criação
de narrativas, realistas ou fantasistas, tais valores continuam presentes e vivos na linguagem
imagística ou simbólica que as expressam em arte. Essas histórias continuam “falando” às
crianças, pois devido à for ça que imprimem, podem ser continuamente atualizadas, isto é,
podem aludir a outras situações com a mesma verdade com que foram expressas
originalmente. Mudanças ou permanência dependem da visão de mundo impressa em cada
narrativa.187
O certo é que a cultura escrita procura não perder de vista a riqueza das culturas orais.
Sem os escritores atentos à fala das gerações anteriores, muitos dos contos e lendas já
estariam perdidos. Ademar Vidal é um dos escritores que se dedicaram a recolher histórias,
tanto da boca de contadores, como também trabalhou a matéria oral “secundária”, para utilizar
a terminologia de Walter Ong, isto é, trabalhou com uma matéria marcada pela escrita.
Conforme Ong, existem dois tipos de oralidade, a primária e a secundária.188
As escolhas temáticas da produção de Ademar Vidal, como salientamos anteriormente,
estão fincadas nas cenas do cotidiano, na subserviência de alguns, no caráter dominador de
outros, nas raízes ancestrais da Paraíba, na memória da tradição. Nesses escritos, o tempo
alcança uma integração com o espaço, atingindo níveis de representações fantásticas,
abeirando-se das concepções míticas.
Parece-nos necessário refletirmos acerca dos aspectos de algumas lendas e mitos
recolhidos por Ademar Vidal, que nos levam a um conhecimento do eterno feminino, dentro
de um mundo construído e sistematizado pelo poder do homem. Desde sempre, ou pelo
menos, desde a criação do mito bíblico, incorporado na figura de Eva, a mulher teria
187 SISTO, C. Textos e pretextos sobre a arte de contar histórias. Chapecó: Argos, 2001. 188 W. Ong define como “oralidade primária a oralidade de uma cultura totalmente desprovida de qualquer conhecimento da escrita. É primária por oposição à oralidade secundária da atual cultura de alta tecnologia, na qual uma nova oralidade é alimentada”. ONG, W. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998.
147
representado no universo uma força primordial e, ao mesmo tempo temida, por isso
continuamente dominada pelo homem. A partir desse mito, a mulher tornou-se símbolo de
todos os infortúnios, passando a ser vista como um dos agentes do Demônio.
Assim, até os dias atuais, a mulher é vista como transgressora da ordem ao se rebelar
contra os padrões estabelecidos. Ela ameaça e fascina; desta mistura de sentimentos é que
surgem lógicas incoerentes aprendidas nos meandros dos desejos e das necessidades. Aí
temos o enigma que, desde sempre, a mulher teria representado no universo essa força
necessária, que consegue enfeitiçar e seduzir o ser masculino tornando-o frágil e vulnerável.
Foi atentando, talvez, para a figura tão controvertida da mulher que Ademar Vidal
registra algumas narrativas míticas envolvendo esse ser, seja com base nos grandes clássicos
literários ou na memória de comunidades de tradição oral. A mulher e o Demônio, Cotaluna,
Flor do Mato são algumas das histórias recontadas em Lendas e Superstições que colocam
em cena personagens encantadas, sugerindo uma interpretação. O autor mostra que tais
narrativas, quando opõem, por exemplo, a mulher e o demônio, reproduziram na verdade o
mito. Elas são uma fabulação do mito que já encerra em si uma fabulação. Pode-se dizer que
essas narrativas constituem uma revelação significativa das tensões sociais na Paraíba.
Realizando estudo sobre o imaginário ibero-paraibano em que se destacam pactos da
mulher com o diabo, a Professora Beliza Áurea de Arruda Mello traça a freqüência dessas
narrativas em todas as regiões do Estado da Paraíba.189 Entre elas situam-se A mulher e o
demônio (p. 459-62), narrativa recolhida por Ademar Vidal.
Seguindo-se o trajeto dessa narrativa, encontra-se registrada toda a polêmica em torno
da figura da mulher, como rival do diabo. Essa rivalidade entre ambos é que dinamiza a
história, estabelecendo um elo entre imagens passadas e presentes, através do tempo mítico,
incorporando assim as personagens numa época atemporal e projetando-as no tempo da
história exemplar que pode se repetir, ou não, mas que tem sentido na própria repetição.
A mulher com suas sutilezas e provocações e o diabo com suas artimanhas têm ampla
recorrência no imaginário ibérico, atualizando-se no imaginário da Paraíba. Parafraseando
Mello, podemos dizer que é este repertório uma fonte fundamental para compreender-se a
elaboração do imaginário da mulher e do homem nordestinos, sobretudo, do imaginário da
mulher paraibana, salientada e projetada segundo a percepção do homem do campo. Deve-se
dizer que a narrativa aborda a trama das relações e experiências humanas de uma
189 Ver MELLO, B. A. De A. Redemoinhos na encruzilhada do imaginário ibero-paraibano: pactos da mulher com o diabo do medieval aos folhetos de cordel. João Pessoa: CCHLA/UFPB, 1999 (Tese de doutorado) p. 59.
148
cotidianeidade e, por isso, sempre se dirige à expectativa desse coletivo que, no texto
vidaliano, tem raízes no mundo sertanejo:
A lenda corre o mundo do sertão, onde a mulher goza de grande prestígio, onde a mulher domina e onde o cão detestado e temido até então, perdeu as antigas qualidades infernalmente perversas (p. 462).
Seguindo-se esse imaginário, tem-se uma mediação das tensões entre o real e a
projeção desse real, desvelando fragmentos do universo feminino: codificação das
transformações sociais de uma classe de mulheres, de um processo histórico e de mudanças da
sua imagem em confronto com a ordem estabelecida, reivindicando para si um novo campo
social de atuação individual e coletivo.
Note-se que as rivalidades entre a mulher e o diabo assumem, pois, um papel decisivo
no imaginário sertanejo, pelo papel legitimador de dedução da mentalidade coletiva dos
desejos utópicos de renovação social:
Os dois, diabo e mulher, não poderiam operar juntos: um teria de conseguir sobrepor-se ao outro. Veio a derrota. E a mulher triunfou, deixando o demônio em posição inferior, de canto chorado (p. 462).
Podemos dizer com Mello, que se segue no Nordeste do Brasil, a atualização de uma
‘teia de significados’ de um mundo imaginado do ‘Ocidente Faustico’ que, a partir “dos
séculos IX e X, procura abrir espaço na vida socioeconômica, na satisfação dos desejos de
dominar as adversidades”. Essas adversidades, ainda parafraseando Mello, assumem a
trajetória de temas provenientes de várias tradições de culturas com preocupações e propostas
diferentes. Elas são, na verdade, “um ponto de interação de diacronias que apontam a
horizontalidade e a verticalidade do tema”.190
As rivalidades da mulher com o diabo, na narrativa de Ademar Vidal, contribuem para
a identificação de um interesse coletivo em desfazer a lei que sempre fez calar as mulheres.
Ao colocar-se na mesma posição de igualdade a mulher, inconscientemente, tenta subtrair um
pouco da aura de astúcia que a tradição ibérica impôs ao demônio. A identificação das
mulheres com esse ser, torna-as iguais e, desse modo assimilam as múltiplas regras da astúcia
diabólica, intensificando a intuição e astúcia feminina, como podemos ver nesse trecho que
expressa o diálogo entre a mulher e o diabo:
190 Id, p. 76.
149
A moça nem tempo teve de falar. Num instante se viu dentro do vidro [...] fez sinal para o diabo e este, levantando o bastão, e dando um saltinho no ar, ficou rindo de contente. – Agora não sai mais, é minha prisioneira [...]. Horrorizada com a hipótese de não mais obter a liberdade, a detida não perdeu o sangue-frio e, num minuto de inteligência serena, impertubável e maliciosa, deliberou fazer a proposta: – Ora, eu sei fazer a mesma coisa, isto é, pegar você e fazê-lo voltar à situação em que me acho. – Impossível, disse o cão rindo-se. – Experimente e verá que tenho motivos para falar com tamanha segurança, disse a mulher. E perguntou, em tom de ironia: – Está com medo? O diabo ficou ofendido, aceitando logo a proposta. Tirou-a de dentro do garrafão. (p. 463).
O núcleo central da narrativa é a elaboração do ritual manifestado por gestos e
palavras que exprimem uma ordem simbólica, motivada pelo entendimento cordial. Nesse
sentido, a ordem eterna é normativa e sustentação básica das leis temporais, onde o uso dos
costumes tem uma força particular e determina as regras. Pode-se dizer que o trato da mulher
com o diabo, nessa narrativa, obedece aos costumes particulares da suas própria condição
feminina, conseqüência da concepção consuetudinária, isto é, costumeira.
O trato feito entre a mulher e o diabo no imaginário da Literatura Popular é como um
sistema de coerências que se estabelecem por meio de uma ordem que contém a chave
reveladora da não-lógica. Nesse sentido, compreende-se o quanto é importante a astúcia
feminina no conjunto das imagens de trato da mulher com o demônio, porque a astúcia
desconstrói a tensão entre eles, fazendo emergir da obscuridade o poder da mulher e a astúcia
do demônio, que descobre, posteriormente, a impossibilidade de vencer a dialética da trapaça.
Podemos dizer com Mello, que a “ambigüidade estabelecida no ritual dos pactos conduz a
ação e faz a mulher divertir-se brincando com o diabo”. 191 Vejamos um trecho da história
recontada por Ademar Vidal:
Imediatamente entrou na garrafa, acomodando-se com delicadeza, enquanto a mulher, ligeira que só ela, tapava a boca do gargalo, fechando-o com segurança e decisão. Amarrou bem, pôs por cima, como enfeite de segurança, lacre fervendo e carimbou com o ferro de gado que estava perto de sua mão. O demônio dava mostras de sentir-se ruim na posição em que se metera voluntariamente. – Agora saia, intimou a mulher, rindo com evidente malícia de quem se sentia vitoriosa (p. 461-2).
191 Idem, p. 87.
150
Seguindo-se o rastro das narrativas populares, envolvendo a imagem feminina,
Ademar Vidal moldura Cotaluna 192 como fantasma do rio Gramame. Nada mais sobrenatural
do que o seu aparecimento. No verão ela não faz mal. Mas no inverno o negócio é outro.
Muda muito. Torna-se perigosa. Desencanta-se, como expressa Câmara Cascudo no livro
Geografia dos mitos brasileiros. Ou melhor: transforma-se bastante. É mesmo belíssima a flor
d’água. É que pelo inverno ela é uma sereia, meio mulher meio peixe, arrebatando os
banhistas descuidados e mutilando-os
De certo modo, essas narrativas de fantasmas, de seres prodigiosos, de encantamentos,
mostram que é o uso da astúcia feminina – astúcia que permeia tanto a lenda sobre “A mulher
e o demônio” quanta a “Cotaluna” – o componente decisivo na subversão de uma regra e
também o componente de recuperação dos modelos perdidos. Essas narrativas apontam o
desafio pelo qual passam as mulheres na tentativa de reverter o estereótipo histórico da
dominação masculina. Reforçam ainda o papel das mulheres de provocar e legitimar novas
formas de atuação – formas que modelarão uma nova lógica feminina – fazendo surgir, no
inconsciente coletivo, uma produção de mecanismos de defesa que possam deter mudanças a
partir da persuasão.
Em Cotaluna (p. 31-32) a fórmula de seduzir não está claramente fixada. Sabe-se,
somente, que durante os meses de chuva ela é metade mulher, metade sereia, atraente e
sensual, com aparições claras na superfície do rio Gramame. Seu encanto é imediato.
Embriaga os sentidos e os desejos dos homens. Sabe-se, também, que muitos que tiveram
contato com ela voltaram sem memória e sem vontade: deixaram a própria alma nos lábios da
deusa nordestina.
Em vários momentos da narrativa, é visível a preocupação do emissor em informar ao
receptor dos perigos causados por esse ser. O propósito das formas retóricas impregna o
imaginário despertando tensões, medos e desejos, utilizando para isso formas múltiplas,
inserções de imagens estereotipadas como personagem dual (meio mulher meio peixe),
antropofágica, amalgamada como o bruto Ipupiara do século XVI, “devorador de afogados”,
na expressão de Câmara Cascudo. Assim, a estratégia da narrativa possibilitará ao receptor
192 Ademar Vidal publica no jornal A União um Documentário denominado “Algumas lendas locais”. Nele o autor registra a lenda de Mingusoto, um fantasma que “tem um poder apocalíptico”, não se conhece a sua forma exata de gente, mas “pelo nome é que se conclui parecer mais de homem que de mulher. Domina as matas, o mar e os rios. É dono dos elementos”. Complementa o texto ressaltando os mitos Cotaluna e Flor do Mato. Com exceção de Mingosoto, Cotaluna e Flor do Mato podem ser encontrados em Lendas e Superstições, contudo, num condensado, sugere-se a leitura desse documentário. Cf. A União, 10 de outubro de 1938. João Pessoa – PB.
151
estabelecer as articulações indispensáveis para manter a ordem. Como aponta Ademar Vidal,
há quem afirme que:
A mocidade boêmia, principalmente os caboclos que vivem à margem do Gramame, todos, tudo que é homem de verdade, não obstante, se lhe perguntar alguém qual a estação do ano preferida para tomar banho naquele rio impuro, coleante e atormentado, a resposta será imediata: só presta no verão (p. 32).
Corroborando a colocação de Mello, o enfoque sobre as mulheres nos textos populares
sinaliza tensões, contradições e mudanças provocadas pelas inquietações de sociedades
marcadas por fatos históricos interligados com sentimentos mágico-religiosos que permeiam
as narrativas como instrumento de apaziguamento de medos, ansiedades e incertezas. 193
Prefixar esses elementos é responder à necessidade de colocar normas naquilo que amedronta
e responsabilizar, indiretamente, a transgressão feminina causadora da disritmia da ordem
social.
Isto pode ser verificado em Flor do Mato (p. 287- 88), uma dessas personagens de
caráter mítico, em que a mulher é representada com certo domínio, caracterizando a força
protetora da floresta e da vida animal lá existente. Mas, antes da apresentação de Flor do
Mato, tem Ademar Vidal o cuidado de dizer que se trata de mais uma história de caçador,
contada especialmente pelo velho Desidério que se gabava de bem sucedido na última caçada:
Quando vou caçar na mata levo sempre algum pedaço de fumo para agradecer Flor do Mato. Estou fazendo isso de certos tempos para cá. Bem que me diziam: sem esse agrado ela persegue o freguês. Tira vara de marmelos e dá surras mortais nos cachorros (p. 278).
Flor do Mato é a Caipora com esse nome recendente. É louca por fumo e odeia a
pimenta, como o Curupira. É também conhecida por Cumade Fulozinha, pertence à mata e se
“apresenta como se fosse uma menina de doze anos apenas, toda simpática, como asseguram,
com os cabelos louros, estirados e cortados à Joana D’arc. É sempre vista pelos caçadores e
mateiros. Em geral voltam-lhe todos grande admiração e respeito” (p.288). Onde a lembrança
dos cabelos de fogo do Curupira ainda surge, fortemente, como observa Câmara Cascudo, é
ter Flor do Mato os cabelos loiros. Entendemos que a expressão “como asseguram” utilizada
por Ademar Vidal, além de servir de gancho para prender a atenção do leitor, indica ainda, o
tempo indeterminado da narrativa que, conduzida pelo pensamento mágico, não abre lugar
para a noção de evolução temporal. Daí compreendermos que narrativas assim podem se
193 MELLO, B. A. Op cit. P. 113.
152
repetir iguais, sem perderem a força. Contudo, sua repetição por diferentes grupos sociais,
poderá corresponder a um ritual de revivência das experiências passadas cujo ato de contar
corresponde a uma voz familiar, a do contador, que serve de mediador entre a situação
narrada e o ouvinte.
Realizando estudo do imaginário popular no contexto da comunidade de caçadores,
Maria José da Silva observa que Flor do Mato se trata de representação feminina mantendo-se
“em circulação fora do espaço da casa, vivendo em completa liberdade da mata, interferindo
na vida do ser masculino, impondo regras e limites dos caçadores e freqüentadores das
matas”. 194
Cumade Fulozinha e a mata possuem ligação direta. A mata corporifica a expectativa
do acontecimento não como parceira dos caçadores, mas como ethos da personagem. Esta
circunscreve um espaço animado por forças imaginárias e reais que atravessam o cotidiano
popular. Flor do Mato é, então, procedente de autoridade, “corresponde gentilezas, hostiliza
quando se faz necessário” (p. 277). A mata, por sua vez, se torna vivente dessa mensagem
servindo para aludir a experiências e incitar a vivências, além de apresentar-se como uma
condensação das relações, valores, memórias e imagens que marcam o vivido de um grupo
social.
A lenda da Flor do Mato e/ou Cumade Fulozinha, presente em algumas regiões do
Brasil, liga-se à prática de convivência nas matas. Nas narrativas orais ela aparece “ora como
a vilã a impedir à caça, ora como a heroína que ajuda os homens a levar para o seu lar o
complemento de sua alimentação defendendo dos perigos existentes na mata”; 195 só ela é
capaz de ditar normas de convivência no lugar em que habita.
Na história narrada pelo velho Desidério a Ademar Vidal, Flor do Mato assume a
postura de “interesseira”, pois, se o caçador não quer lhe presentear, perde todas ocasiões e
não mata nenhum animal. “E sabe o que Fulozinha faz como defesa?”
Começa, então, a imitar ao longe ou o canto, ou o urro, ou qualquer barulho de bicho. E o caçador leva noite e dia a fazer barulho inútil. Nada consegue apanhar nem vivo, nem morto, é trabalheira inteiramente perdida (p. 272).
Essa “autoridade” que vive na mata demonstra que gosta mesmo é de “brincar,
debicando, ou fazendo com que o homem se canse e nada consiga. Depois assobia, vaiando.
194 SILVA, M. J. da. Cumade Flozinha: estudo do imaginário popular no contexto da comunidade narrativa. João Pessoa: CCHLA/UFPB, 2004 (Dissertação de Mestrado). P. 91. 195 Idem, p. 92.
153
Chega até a dar gostosas gargalhadas de deboche. É assim, menina mesmo de capricho” (p.
277).
É interessante destacar que nas versões apresentadas pelos caçadores da comunidade
de Manecos, recolhidas por Maria José da Silva sobre Cumade Fulozinha, não diferem muito
do apresentado pelo velho Desidério. Nelas, podemos ver que muitas das explicações sobre as
atitudes de Fulozinha coincidem, inclusive quando mencionam já terem ouvido “muito
assobio na mata” e até mesmo a ação de bater nos cachorros. São semelhantes sobre o
favorecimento ao caçador, quando por sua vez se vê beneficiado em alguma coisa. Para deixar
Flor do Mato mansa Desidério explica que só há um je ito:
Boa por derradeiro e ajudando a gente, é necessário levar no bornal qualquer lembrança. Tudo serve como presente, que se bota num pé de pau, e ela vai rente buscar. E como sei que Flor do Mato gosta de muito de fumo mapinguinho, o fumo mapinguinho é sempre o que eu levo sem esquecer (p. 288).
O que afirma Desidério a Ademar Vidal, no início do século XX, não difere muito da
opinião do caçador, entrevistado por Maria José da Silva em agosto de 2002. Vejamos:
O remédio para isso é deixar um cigarro de fumo numa cabeça de uma estaca. Só assim ela deixa a pessoa em paz. E no outro dia o cigarro está todo fumado.
Possivelmente, a força vital de Flor do Mato é a de penetrar na fronteira onde o real e
o imaginário se encontra. Inversamente ao papel de menina indefesa, Flor do Mato se
apresenta, aos olhos dos caçadores, também como mulher, forte e determinada, domina o
lugar, que é o da mata, impõe normas de convivência, tanto para homens como para mulheres,
igualando a todos. Desse modo, ela reivindica o seu direito de viver em liberdade, agindo,
porém, com justiça e com firmeza.
Cumade Fulozinha tem sua história, ou seja, uma memória guardiã feita de tradições
que remontam aborrecimentos distantes, freqüentemente no passado e ocorreram em lugares
específicos cuja existência é garantida por testemunhos. Qualquer que seja o papel
desempenhado pelos lugares, no caso a mata, o que há de particular na narrativa, é que no
discurso da memória popular cada esfera da natureza é dominada ou protegida por seres
sobrenaturais.
É desse jeito que Flor do Mato pode ser entendida, como construção da fantasia
popular, que no nome juntou as características específicas encontradas nas representações
femininas, e na forma assume o “arquétipo da postura vingativa de Ártemis quando desafiava
154
e a postura de Diana quando auxilia os caçadores”. 196 É assim também que, numa relação
semelhante, podemos pensar em Cumade Fulozinha, como imagem máxima da fantasia dos
caçadores. Por tais características, Flor do Mato guarda a natureza de sentido emblemático,
onde o natural e o sobrenatural se juntam. Ligadura possível para os fios de uma narrativa
que, por meio da elaboração da imagem desse ser feminino, revela tanto o medo dos perigos
enfrentados pelos caçadores na mata quanto o respeito pelo lugar de onde retiram parte de sua
sobrevivência.
A configuração da realidade e da fantasia nesse mito representa a escolha de lidar com
o mundo e, sobretudo, a possibilidade de criar laços mais fortes com a cultura popular e suas
formas de invenção do real. Com efeito, contar é uma arte de criação e recontar é evitar que se
silencie essa arte. Contar e recontar constitui verdadeira luta travada pela memória, contra o
esquecimento.
Só nos resta constatar com Walter Benjamin que narrar histórias é, pois, a arte de
continuar contando e esta se perde quando as histórias não são mais retidas. Assim esta
narrativa termina o debate, mas Desidério “prossegue na sua estranha história de matador
certeiro de codornizes e pacas gordas”.
E termina Desidério sentenciado cheio de certeza:
– O caçador malvado pode largar a profissão (se não atender a todos os pedidos de Flor do Mato). Não fará mais nada. Nadinha (p. 288).
Contar é assim: é recontar o mundo.
196 Características específicas encontradas nas representações femininas das narrativas judaico-ocidentais. Cf. SILVA, M.J. da. Op cit. P. 94.
155
Considerações Finais
Antes de construirmos algumas idéias sintetizadoras, que foram surgindo ou se
reforçando na análise, devemos ressaltar que o trabalho desenvolvido aqui gratificou-nos por
várias razões, entre elas por trazer à tona a memória de um escritor que ficou por tanto tempo
esquecido como intelectual. Ao falarmos das manifestações culturais populares no Nordeste
temos que considerar que os escritos de Ademar Vidal são o destinatário desse tema, pois
veiculam usos e costumes do povo nordestino, festas e brincadeiras, rezas e cantos de
trabalho, enfim destacam a cultura popular como meio de expressão de concepções de mundo
e de vida das classes subalternas em sua especificidade artística.
Sendo este estudo da memória popular representada na obra de Ademar Vidal, com
mais razão devem ser evitadas as conclusões apressadas a esse respeito, pois a memória
popular se entrelaça a todas as práticas sociais e, por sua vez, é uma forma comum de
atividade humana por meio da qual os indivíduos fazem a história. A partir deste princípio,
buscamos verificar qual o real sentido de recuperar a obra de Ademar Vidal neste momento e
quais suas contribuições na esfera da literatura popular, e ainda, o que é possível recuperar
junto com o autor. Seguimos, pois, os traços que a obra nos oferece: trajetos pessoais do
escritor, seu papel social e sua prática, repertório e forma de narrar. Assim, o material mais
importante para as análises refere-se ao modo do autor retratar as culturas, bem como as
representações construídas sobre as manifestações culturais populares no Nordeste.
Podemos dizer, de uma certa maneira, que o trabalho de Ademar Vidal sobre as
culturas populares é motivado por sua crença na força dessas culturas, como meio de
expressão de concepções de mundo das classes menos favorecidas. Em vez de cristalizar em
certa ortodoxia as manifestações culturais populares, o autor mergulha na busca de melhor
divulgá-las enfatizando como as camadas populares preservam, transmitem e renovam as
tradições. Há nessa produção uma forma de atividade narrativa que nos permite perceber as
ressurgências da memória coletiva, estabelecida entre presente e passado.
No âmbito dos escritos de Ademar Vidal, encontram-se de um lado, traços das culturas
populares capazes de expressar a situação periférica em que se encontrava a região Nordeste:
era a busca do capital simbólico através da valorização do regional, apresentado como
qualidades comparativas da raça brasileira no conjunto das outras nações. A idéia de cultura
popular é assim revelada sob enfoque de que a cultura é um instrumento voltado para a
compreensão e transformação do sistema social, através do qual é construída a hegemonia de
grupo. Por outro lado encontram-se fatos e acontecimentos do cotidiano daqueles que fazem a
156
cultura popular, como João Barbosa da Silva (o poeta popular), Mestre Alípio (o aboiador que
atuava na região do Cariri paraibano), Desidério (o contador de histórias) e tantos outros que
ocuparam espaços múltiplos e variados constituindo assim uma manifestação social singular.
A obra de Ademar Vidal gira em torno de temas como cultura e literatura e seu
trabalho visa, acima de tudo, à valorização de elementos populares, daí a sua predileção pelas
cantorias, danças, festas religiosas, cantos de trabalho e tantos outros. A epopéia do escritor
seria o crescente interesse pelos costumes e crenças das camadas populares numa
aproximação das concepções do mundo e de vida dessas camadas em suas manifestações
populares. Podemos dizer que um dos focos dessa produção é o modo de vida do homem
sertanejo, fazendo, em alguns de seus trabalhos, um inventário, fundamental para que se
compreenda como as pessoas respondem, em suas versões históricas mais concretas.
Outro exemplo a se destacar é a discussão sobre o cangaço, na qual Ademar tratou o
fenômeno assumindo a efetiva dimensão política e econômica, sem, contudo, negligenciar as
manifestações culturais populares, observando, anotando e documentando a capacidade que o
cangaceiro tem de se tornar “força popular”, pela sua organização e pelas práticas específicas
de atuação. Uma trajetória que objetivava um modelo de organização dos usos e costumes do
cangaceiro baseado mais na documentação, respeitando a forma tal qual ela se oferece. Desse
modo, reuniu material localizado, sólido, esboçando o gênero de vida do cangaceiro ao lado
de sua história.
Em síntese, o que se encontra em destaque na obra de Ademar Vidal é a cultura, vista
como processo, expandida e refinada pela soma de novos conceitos. Nela, julgamentos,
crenças e hábitos estão constantemente em transformação, mas também constantemente em
retorno para recuperar algo que os antepassados deixaram. O seu trabalho não exprime uma
verdade absoluta, e sim uma história que se faz íntima ao próprio escritor, pouco a pouco
desdobrada em descrição e análise, próprias de quem sabe “ler” a cultur a popular. Nesse
sentido, podemos dizer que Ademar Vidal anteviu grande parte das formas que a vontade
política é capaz de gerar, entretanto preferiu seguir os lugares-comuns, evidentemente
considerados inadequados ao modelo global de literatura.
Nosso trabalho não pretendeu ser exaustivo, e a obra de Ademar Vidal ainda pode ser
estudada de modo mais contundente. No entanto, nossa análise coloca em evidência a
natureza e a importância da contribuição de Ademar Vidal à literatura. A sua produção
fornece um conjunto de informações e um quadro histórico, favoráveis à cultura popular.
Muito do seu trabalho constitui fonte de estudo da cultura e das tendências na vida e na
157
sociedade nordestinas, apreciando-se suas concepções em função de uma ótica bastante clara
dos aspectos fundamentais da cultura popular.
Apesar de ser um das referências menos conhecidas na literatura, Ademar Vidal
demonstra ser uma das fontes literárias mais frutíferas de novas idéias e perspectivas nos
estudos contemporâneos das culturas populares no Nordeste. Sob o olhar da contribuição
efetiva, das sugestões que deixa no campo da memória popular e dos caminhos que abre nesse
campo, é que deve ser encarada a sua obra. O que esperamos haver evidenciado aqui é o valor
literário da obra de Ademar Vidal, que está ligado à coerência orgânica entre a visão de
mundo que alimenta o escritor e as soluções estruturais escolhidas por ele, tendo em vista a
época em que escreveu. De alguma maneira, o que fizemos aqui foi mostrar que, mesmo
incorporando alguns traços da cultura erudita, o autor não aboliu o cotidiano das coisas
simples, que perpassam toda a sua produção, ao contrário, procurou reforçá-lo incluindo aí os
valores que orientam a criação cultural.
A partir do estudo minucioso da produção literária de Ademar Vidal foi possível
chegar ao conhecimento da existência de uma obra que se localiza entre a tradição e a
modernidade, uma espécie de fonte por meio da qual o autor se nutre. Cabe-nos, finalmente,
reafirmar que este trabalho foi o primeiro em termos de história literária que assumiu o
interesse de focalizar a obra de Ademar Vidal, construindo, por meio da memória popular,
possibilidades de articulação necessária à iluminação dos textos estudados. E, neste sentido,
este trabalho é um ponto de chegada que pode servir de ponto de partida para uma discussão
sobre os escritos de Ademar Vidal, que reveladores de significação diversa não se esgotam
aqui. Sua produção está enunciada. Se pode servir de roteiro para o leitor, não sabemos. Só
sabemos que, por mais que tracemos caminhos, sempre restarão outros por descobrir. Que o
leitor parta a novas descobertas.
158
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_________. A tradição do maracatu. Revista Atlântico. Luso-brasileira, Lisboa/ Rio de Janeiro. Nova Série, n. 5, 1944. _________. Aboios de vaqueiro paraibano. Revista Atlântico. Luso-brasileira, Lisboa/ Rio de Janeiro. Nova Série, n. 5, 1944. _________. Práticas e costumes afro-brasileiros. Inédito, sd (arquivo Ademar Vidal, IHGP). _________. Um século de vida paraibana (1825 – 1925). In: Livro do Nordeste. Recife: Massangana/ Fundação Joaquim Nabuco, 1979. p. 140 – 41. _________. Três séculos de escravidão na Parahyba. In: Livro do Nordeste. Recife: Massangana/ Fundação Joaquim Nabuco, 1979. p. 105 – 152. VERGARA, Pedro. O outro eu de Augusto dos Anjos, O jornal, do Rio de Janeiro em 5 de outubro de 1968. WANDERLEY, Alba C. Memórias sobre a construção da Irmandade do Rosário de Pombal – PB com experiência em educação popular. João Pessoa – PB / UFPB, 2004. (Dissertação de Mestrado). 2 Outras obras consultadas AYALA, Maria Ignez Novais. Aprendendo a aprender a cultura popular In: Pesquisa em literatura. Hélder Pinheiro (Org.). Campina Grande: Bagagem, 2003. p.83-119. BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1980. BRAGA, Teófilo. O povo português nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Dom Quixote, 1986. v. 1. BURKE, Peter. Cultura popular na idade moderna: Europa, 1500-1800. Trad. Denise Bottman, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Editora Guanabara Koogan, 1989. GUIMARÃES, César. Imagens da memória entre o legível e o visível. Belo Horizonte: Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários – Fale/UFMG, 1987. HOBSBAWM, Eric J. A invenção das tradições . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Perspectiva, 1979. XIDIEH, Oswaldo Elias. Narrativas pias populares. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1967. 3 Bibliografias sobre o autor
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Lendas e superstições. Rio de Janeiro: O cruzeiro, 1950. O Outro eu de Augusto dos Anjos . Ro de Janeiro: Livraria José Olympio, 1967. Mário de Andrade e o Nordeste. Revista do Livro, Rio de Janeiro, n°31, 1967. p. 8-46. Assis Chateaubriand por ele mesmo. (Apresentação de Theophilo de Andrade). Col. Afrânio Peixoto, da Academia Brasileira de Letras, v. XIII, Rio de Janeiro, 1989. Mensagens aos paraibanos. Série Recortes de jornais – 1947/48, Pasta 5. (Arquivo Ademar Vidal, no IHGP). Carta de Ademar Vidal dirigida a Mário de Andrade em 28/08/1933. Reprodução cedida pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo - IEB/USP (datilografada e manuscritas). Carta de Ademar Vidal dirigida a Mário de Andrade em 16/07/1937. Reprodução cedida pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo - IEB/USP (datilografada e manuscritas). 4.2 Inéditos 4.2.1 Série Produção literária 4.2.1.1 Originais de livros
1) Adeus em silêncio (manuscritos). Inédito, s.d. Pasta 1. 2) A memória tem sete faces (manuscritos), s/d. Pasta 1. 3) A nossa casa da Torre: a conquista do Sertão paraibano e nordestino, s/d. Pasta 22. 4) Aqueles dias (manuscritos), s/d. Pasta 3. 5) A seca mina de loucos (datilografado) s/d. Pasta 4. 6) A terra da gente (manuscrito), s/d. Pasta 4. 7) Binômio imbatível: caju e cachaça (datilografado), 1940. Pasta 9. 8) Dentro (e fora) do Brasil: curvas do tempo (datilografado), 1940. Pasta 1. 9) E ainda o Nordeste (datiloscrito), 1940. Pasta 10. 10) Estudos de história social do Nordeste (datilografado), s/d. Pasta 9. 11) Intimidade com a seca (datilografado), 1942. Pasta 9. 12) Latifúndio (datiloscrito), 1951. Pasta 10. 13) O escravo sobre o regime econômico: etnografia e patriarcalismo (datilografado), 1946. Pasta
22. 14) O magistrado jornalista (datilografado), s/d. Pasta 2. 15) Quando os negros chegaram, s/d. Pasta 11. 16) Religiões africanas, s/d. Pasta 9.
4.2.1.2 Poesia
A criação do mundo, s/d. Pasta 5. 4.2.1.3 Artigos/textos
Diversidade folclórica do sertanejo (datilografado), s/d. Pasta 22. Hábitos e costumes no Nordeste brasileiro, s/d. Pasta 7. Inquérito entre os sertanejos. Taperoá, dezembro de 1942. Pasta 22. Lirismo do negro: música e poesia do negro norte-americano (datilografado), 1932. Pasta 7. Mário Pedrosa. Notas biográficas (manuscritos / datilografado), s/d. Pasta 26. Notas para meus verdes anos (datilografado), 1946. Pasta 26.
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Resumo biográfico: informações sobre a antiga Casa de Santa Tereza (datilografado), 1955. Pasta 27.
Sumário das Armadas: fatos sobre a conquista da Paraíba (datilografado), s/d. Pasta 30. 4.2.1.4 Anotações/Rascunhos
A imprensa da Paraíba no Império e na República, s/d. Pasta 38. Chico Altíssimo, s/d. Pasta 41. Economia paraibana e minérios, 1960. Pasta 44. Escritos diversos, s/d (manuscritos). Pasta 11. Versos do poeta popular João Barbosa da Silva, 1939. Pasta 11 Visitação ao interior do Nordeste, 1935. Pasta 11.