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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Centro de Pesquisa
Programa Voluntário de Iniciação Científica
Roberto Assunção Motta da Rocha
Técnica e Ontologia em Heidegger: Caminhos de Pensamento
São Paulo, 2008
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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU Centro de Pesquisa
Programa Voluntário de Iniciação Científica
Roberto Assunção Motta da Rocha
Técnica e Ontologia em Heidegger: Caminhos de Pensamento
São Paulo, 2008
Relatório final de pesquisa apresentado ao Programa Voluntário de Iniciação Científica do Centro de Pesquisa da Universidade São Judas Tadeu. Orientadora: Professora Dra. Regina Andrés Rebollo
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RESUMO
Tendo por fio condutor o ensaio “A questão da técnica” (HEIDEGGER, 2001) busco entender conceitos e categorias desvelados por Heidegger ao questionar a natureza da técnica e como estes conceitos e categorias estariam presentes no debate filosófico contemporâneo envolvendo propostas de controle ético sobre a técnica moderna.
ABSTRACT
Using the essay “The question concerning technology” (HEIDEGGER, 2001), I try to understand how concepts and categories used by Heidegger can help us to question the essence of technique, and contribute to ethic philosophical debate concerning control of modern technique effects.
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Agradecimentos
À UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU PELA BOLSA DE GRADUAÇÃO AO CENTRO DE PESQUISA DA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PELA OPORTUNIDADE DE PARTICIPAR NO PROGRAMA VOLUNTÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA. AOS PROFESSORES DO CURSO DE FILOSOFIA, PELO EMPENHO, DEDICAÇÃO E COMPETÊNCIA, EM ESPECIAL À PROFESSORA DRA. YOLANDA GLÓRIA GAMBOA MUNÕZ. À TEREZINHA FERRARI E AOS AMIGOS DO GRUPO DE PESQUISA CIDADE, TRABALHO E TÉCNICA PELO CONVÍVIO FRUTÍFERO E AGRADÁVEL. À PROFESSORA DRA. REGINA REBOLLO, PELA FIRMEZA E DELICADEZA DA ORIENTAÇÃO.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 6 ESCOPO E OBJETIVOS . 6 POR QUE QUESTIONAR A TÉCNICA ? 8 POR QUE HEIDEGGER? 10 A CONFERÊNCIA “A QUESTÃO DA TÉCNICA ” 12 CAMINHOS DE PENSAMENTO EM HEIDEGGER . 14
A ESSÊNCIA DA TÉCNICA. 16 DETERMINAÇÃO INSTRUMENTAL E ANTROPOLÓGICA DA TÉCNICA 16 CRÍTICA DA DETERMINAÇÃO INSTRUMENTAL 18 TÉCNICA E CAUSALIDADE : AITION E CRÍTICA DA HEGEMONIA DA CAUSA EFICIENTE . 20 CAUSALIDADE , POIESIS, PRODUÇÃO E ALETHÉIA . 23 ESSÊNCIA DA TÉCNICA : TECHNE, DESENCOBRIMENTO E VERDADE . 24
TÉCNICA MODERNA: PERIGOS E SOLUÇÕES 26 ESSÊNCIA DA TÉCNICA MODERNA 26 PERIGOS DA TÉCNICA MODERNA 31 ONDE MORA O PERIGO , CRESCE A SOLUÇÃO . 33 TÉCNICA E METAFÍSICA EM HEIDEGGER . 36 CONSUMAÇÃO DA METAFÍSICA : DESCARTES E NIETZSCHE . 38
CONCLUSÕES 42 ÉTICA NA OBRA DE HEIDEGGER 42 ÉTICA E DETERMINAÇÃO INSTRUMENTAL DA TÉCNICA . 43 ÉTICA E ENVIO DO SER. 45 SE A TÉCNICA NÃO FOR SÓ UM INSTRUMENTO , COMO FICAM AS PROPOSTAS DE CONTROLE? 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS 51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 52
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APRESENTAÇÃO
Escopo e Objetivos.
A preocupação de Heidegger com a técnica aparece bem cedo, mas, na última fase de
sua obra, elaborada principalmente pós-Segunda Guerra Mundial, esta preocupação fica mais
explícita e mais intensa. Segundo Loparic, se o trabalho artesanal marca o uso cotidiano dos
objetos em Ser e Tempo, este panorama mudaria após 1930, quando Heidegger “começa a
perceber que o que caracteriza a nossa época não é o cotidiano caseiro, analisado em Ser e
Tempo, mas a técnica, tal qual descrita por Ernst Jünger, em seu artigo A mobilização total. A
leitura de Jünger teria levado Heidegger a concluir que, por ser ingênua, sua “fenomenologia
da faticidade (do cotidiano) de 1927 /.../ não representa um ponto de partida adequado para
formular a questão do ser nos dias de hoje“. Ao invés disso, “a técnica moderna, pensada no
horizonte da metafísica nietzschiana da vontade de poder, é o sentido que prevalece /.../ e que,
portanto, Nietzsche é o pensador decisivo a ser consultado em qualquer tentativa de
compreender e ultrapassar esse sentido do ser” (cf. LOPARIC, 2002:218).
A conferência “A questão da técnica” (HEIDEGGER, 2007), proferida em 1953 na
Universidade Técnica de Munique, é ponto de partida, fio condutor e ponto de chegada desta
pesquisa. Embora outras obras de Heidegger tenham sido consultadas, não há pretensão de
tentar um estudo exaustivo dos escritos deste filósofo sobre o tema da técnica devido não só às
limitações do escriba no idioma alemão, mas também por este trabalho ter sido produzido no
contexto de uma pesquisa de iniciação científica com duração de 12 meses durante um curso
de graduação em Filosofia. Segundo Heidegger, como teremos oportunidade de expor mais
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adiante, a essência da técnica e a da técnica moderna revela-se por caminhos de pensamento;
desde já: caminhos de pensamento para este filósofo não são jogos de linguagem, percursos
lógicos, silogismos ou seqüências de argumentos que nos levariam à explicação do que está
sendo questionado – estas ações, pelo contrário, simplesmente ocultariam os caminhos de
pensamento pelos quais a essência da técnica chega até nós. Nas palavras de Heidegger, estes
caminhos abrem nossa presença à essência da técnica. Na companhia de Heidegger, usando
como fio condutor sua conferência “A questão da técnica”, construiremos em caminhos de
pensamento pelos quais a essência da técnica nos busca, mesmo quando supomos que nós a
estamos buscando...
Embora Heidegger tenha se referido à técnica em grande quantidade de textos ao longo
de sua obra composta de alguns livros e muitos ensaios e conferências, “A questão da
técnica”, que, repetimos, é ponto de partida, fio condutor e ponto de chegada desta pesquisa, é
o mais extenso, o mais explícito e o mais denso escrito pelo qual nos chegam caminhos de
pensamento do filósofo ao questionar a técnica; nesta conferência Heidegger pensa a natureza
da técnica e da técnica moderna. Pensar, como várias outras palavras, tem para Heidegger um
significado pouco usual e mais originário: pensar é a atividade pela qual, através da
linguagem, nos colocamos na clareira do ser. O pensar é o ato de oferecer a linguagem para
que o ser se revele; se abra à nossa presença.
Heidegger construiu uma das mais conhecidas e contundentes críticas à técnica
moderna, porém, raramente derivou destas críticas alguma ilação referente à ética; apesar, e
por causa disso, busquei nos caminhos desvelados por ele em seus questionamentos da
natureza da técnica, possíveis contribuições para os debates contemporâneos que tratam de um
controle ético aplicável ao desenvolvimento e às aplicações da técnica moderna.
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O caminho desta pesquisa foi, então, utilizar o famoso ensaio “A questão da técnica”
como roteiro e mote inicial para visitar outras obras do autor que questionam a técnica,
buscando compreender o que se desvelou para ele como essência da técnica moderna;
finalmente, de posse desta compreensão, e localizando alguns raros momentos em que
Heidegger discorre sobre questões éticas ligadas à técnica, arrisco algumas especulações.
Nosso questionamento nesta pesquisa pode ser expresso indicando que buscamos as
respostas heideggerianas, em algumas obras do Heidegger maduro, às perguntas: Qual a
natureza da técnica? Qual a natureza da técnica moderna? Como e porque a técnica
moderna é uma ameaça? Quais as possíveis soluções? Quais as possibilidades e possíveis
limites das propostas de controle ético sobre o desenvolvimento e aplicações da técnica
moderna?
Por que Questionar a Técnica?
Técnica: um tema que me fascina e busco compreender desde o início da década de 70
do século passado por ocasião de uma graduação em Engenharia Eletrônica na PUC/RJ. Fora
eu um heideggeriano convicto, o que estou, acredito, longe de ser, seria fácil desvelar o
motivo do fascínio e do interesse permanentes nestes mais de 30 anos: embora correta, a
afirmação de que busquei compreender a natureza da técnica não revelaria a verdade. Para um
heideggeriano, mais que buscar, eu teria sido “buscado” pelo tema; embora fosse
rigorosamente correto dizer que eu escolhi questionar a natureza da técnica, o rigor desta
exatidão não poderia ocultar a verdade de que a técnica é que teria me escolhido... e aberto
caminhos de pensamento pelos quais sua essência teria chegado até minha presença. Como
nos últimos trinta anos busquei entender a natureza da técnica, ou fui por ela buscado,
considerei natural, em minha graduação em Filosofia, escolher este tema – ou fui escolhido?
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Ao longo do século XX, direta ou indiretamente, discussões sobre a técnica foram
relevantes no debate filosófico tanto pelas ameaças de destruição do planeta por armas
nucleares quanto pela maquinização do homem, reduzido à condição de “apêndice de
máquinas”, para usar uma expressão de Marx já no século XIX. Não é difícil apontar a
importância da categoria da técnica nos debates filosóficos do século passado. Benjamin,
Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros filósofos da Escola de Frankfurt bem como filósofos e
pensadores tão diversos quanto Spengler, Jünger, Pirandello, Jaspers, Ortega y Gasset, Sartre
entre outros, pensaram as conseqüências para os seres humanos em geral dos
desenvolvimentos da técnica moderna, das técnicas de produção em massa e dos artefatos
mortíferos das duas guerras mundiais.
Se já no século passado o desenvolvimento e uso da técnica moderna motivaram
discussões éticas, o âmbito filosófico contemporâneo exige continuação e aprofundamento
destas discussões, pois, neste início de terceiro milênio não diminuiu a importância da
categoria da técnica nos debates filosóficos relacionados às perspectivas de destruição do
planeta e alterações na sociabilidade. Os efeitos do aquecimento global, da tele-informática, da
robótica, da cibernética, da engenharia genética bem como algumas reflexões da chamada
filosofia da mente relacionando mente/cérebro com software/hardware, indicam claramente
que, também neste século XXI a categoria da técnica, e em especial a técnica moderna, não
pode ser tratada apenas como assunto de antropologia filosófica, ou como um saber prático
que, fecundado pela ciência moderna, desembocou na tecnociência. Existe um aparente
consenso – mesmo entre posições supostamente tão opostas quanto tecnofobia e tecnofilia –
da necessidade, utilidade e mesmo urgência de um controle ético sobre diversos aspectos da
técnica moderna, em alguns casos vedando seu desenvolvimento, em outros, limitando sua
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aplicação; torna-se importante conhecer a natureza do que estaria sendo controlado ou
limitado; Bacon, já em seu tempo, indicava: “sendo a causa ignorada o efeito é frustrado” (cf.
BACON, 1973: L I § 3).
Por que Heidegger?
Reflexões filosóficas sobre a natureza da técnica têm como premissas (explícitas ou
não) concepções sobre a natureza e sobre o ser humano. Reflexões mais densas e penetrantes,
como é o caso das de Heidegger em sua conferencia “A questão da técnica”, suscitam tanto
aspectos mais datados pelas relações estabelecidas no mundo da vida quanto, principalmente,
aspectos ontológicos, não datados. Assim, para continuar a falar com Heidegger no
questionamento da técnica, os caminhos de pensamento ao passarem de modo extraordinário
pela linguagem, passam, também de modo extraordinário, por problemas atuais.
Heidegger, como qualquer filósofo, foi homem de seu tempo; apesar, e por causa disso,
o ensaio “A questão da técnica” – uma reflexão original sobre a ontologia da técnica – chega
até hoje com muita força. Neste texto, além de uma contribuição categorial para uma ontologia
da técnica, Heidegger expressa idealmente críticas, posições e soluções que, assumidamente
ou não, estão presentes no debate contemporâneo. No tempo de Heidegger a possibilidade,
tida como sempre presente, de um holocausto nuclear apontava para os perigos de um
descontrole da técnica moderna tal qual se apresentava em meados do século XX. Este início
de século XXI também tem suas perguntas e temores, e o caminho revelado pelo filósofo é
ainda trilhável por todos: um questionamento da técnica que permita escutar o que existe de
específico na técnica moderna, para desvelar tanto seus perigos, quanto possibilidades ou
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limites de um controle, e aventar soluções para ameaças ao gênero humano, ao meio ambiente
e eventualmente à vida do planeta.
As idéias de Heidegger estão na base das formulações de diversos filósofos
contemporâneos, embora esta dívida nem sempre seja explicitada ou confessada, em razão do
silêncio auto-imposto pelo pensador após sua participação na vida acadêmica alemã durante o
nazismo. Brüseke considera Heidegger um precursor filosófico do ecologismo cuja orientação
política teria dificultado ou ocultado, até agora, um maior aproveitamento do pensamento e
das meditações deste filósofo (cf. Brüseke, 2001: 58). O mesmo autor aponta, ainda, que
diferenças em outros campos não anulariam perspectivas comuns entre Heidegger e a Escola
de Frankfurt no que se refere à técnica (cf. Brüseke, 2001: 126).
Obras, filosóficas ou não, sobrevivem por conter reflexões que transcendam seu tempo
– o que é certamente o caso do texto em pauta; embora a obra de Heidegger esteja longe de ser
datada, é útil ter em mente em linhas gerais o contexto em que o filósofo escreveu esta
conferência e boa parte de suas obras sobre a técnica e a técnica moderna:
� Duas guerras mundiais com epicentro na Alemanha, sangrentas batalhas na Europa com
milhões de mortos, duas bombas atômicas, arsenais capazes de destruir o mundo
diversas vezes (como se a primeira não bastasse) no bojo de uma intensa guerra “fria”;
� Percepção, comum nos meios intelectuais europeus, de que o mundo marchava
inexoravelmente para o socialismo, entendido como algo semelhante ao apontado pelo
stalinismo e pelos planos qüinqüenais soviéticos: industrialização militarizada, intensa
eletrificação e produção de aço, e o chamado stekanovismo – contrapartida soviética do
taylorismo-fordismo importado do outro lado do Atlântico que invadira a Europa em
geral e a Alemanha em particular. A Alemanha do pós-guerra viveu a tensa proximidade
entre estas duas propostas civilizatórias que, separadas pelo muro de Berlim, disputavam
a hegemonia mundial;
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� A Alemanha, denominada “império do meio”, se encontrava espremida de um lado por
uma revolução socialista, de outro, por países capitalistas unificados em nações antes
mesmo do século XIX, em contraste com a Alemanha, que se unificou muito
tardiamente;
� Na reconstrução do país após a Primeira Guerra Mundial técnicas modernas de produção
em série (linhas de montagem, que já eram antigas nos U.S.A.) invadem a Europa em
geral e a Alemanha em particular e retiram dos trabalhadores diretos e artesãos, o
controle das técnicas do trabalho. O atraso alemão em adotar as modernas técnicas de
produção do taylorismo-fordismo teria sido, na percepção de muitos, fator decisivo na
derrota sofrida nesta primeira Guerra Mundial. Começou, então, uma batalha contra o
tempo “perdido”: em conseqüência, a Floresta Negra (local da infância e moradia do
filósofo) foi invadida por auto-estradas, estradas de ferro, casas de repouso ou laser e
seus rios represados para utilização intensiva como fontes de energia para a
industrialização.
A conferência “A Questão da Técnica”
Se Santo Agostinho consagrou o gênero confissões, Sêneca as cartas, Montaigne os
ensaios, Platão os diálogos – Heidegger consagra o gênero conferência que, longe de ter um
conteúdo permeado de concessões para a platéia, é, nele, um apurado estilo de texto filosófico.
Como nota Stein na introdução de uma de suas traduções, anos de reflexão sobre determinada
questão concentram-se e explodem nestas conferências, resultando em afirmações
surpreendentemente densas, compactas. Não só os anos que antecedem, mas também os anos
decorridos até a publicação das conferências, são certamente plenos de reflexões, de paciente
trabalho de redação (cf. HEIDEGGER, 2006:7).
A conferência “A questão da técnica”, na qual Heidegger indica caminhos de
pensamento que abrem nossa presença à essência da técnica, é composta por 117 parágrafos;
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neles identificamos metaforicamente uma “porta” maciça com algumas “fechaduras”, e quatro
“trechos” de caminho colocados quase linearmente.
A maciça porta encontra-se nos três primeiros parágrafos, que foram associados à idéia
de porta com algumas fechaduras porque, uma vez compreendidos, facilitariam nossa abertura
à essência da técnica; por outro lado, enquanto e se não a abrirmos (se não entendermos estes
três primeiros parágrafos), ficaríamos restritos a uma visão limitada pelos buracos das
fechaduras, vislumbrando apenas alguns trechos do caminho e impedidos de um
relacionamento livre com a técnica. Outro motivo para associar estes três primeiros parágrafos
a uma porta maciça com fechaduras, é que eles são curtos, mas muito densos, exigem
compreensão de palavras e expressões às quais Heidegger atribui um significado específico e
via de regra diferente do usual. As fechaduras que necessitam serem abertas (compreendidas)
são a epistemologia e a ontologia do filósofo. Tentamos facilitar a abertura desta porta, ainda
nesta apresentação, no item CAMINHOS DE PENSAMENTO EM HEIDEGGER. Uma vez aberta esta
porta, nos quatro trechos seguintes do caminho, o texto adquire uma densidade menor – para
os padrões de Heidegger, é claro...
No primeiro destes quatro trechos, que corresponde aos trinta primeiros parágrafos da
conferência, a essência da técnica é identificada com desencobrimento, com a poiesis e a
alethéia gregas. No segundo lance do caminho, que ocupa outros trinta parágrafos, desvela-se
a essência da técnica moderna, associada por Heidegger ao que denomina disponibilidade,
controle, composição. No terceiro trecho Heidegger desvela os perigos implícitos nas
especificidades da técnica moderna e no quarto indica possíveis alternativas para salvação.
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Caminhos de Pensamento em Heidegger.
A seguir, questionaremos a técnica. O questionamento constrói num caminho. Por isso é aconselhável, sobretudo, atentar para o caminho e não permanecer preso a proposições e títulos particulares. O caminho é um caminho de pensamento. Todos os caminhos de pensamento, mais ou menos perceptíveis, passam de modo incomum pela linguagem. Questionaremos a técnica e pretendemos com isso preparar uma livre relação para com ela. A relação é livre se abrir nossa existência à essência da técnica. Caso correspondamos à essência, estaremos aptos a experimentar o técnico em sua delimitação (HEIDEGGER, 2007:375 grifos nossos).
A citação acima é o primeiro parágrafo da conferência “A questão da técnica”. Nele o
autor indica: questionar é construir num caminho de pensamento que passa “de modo
extraordinário pela linguagem”. Mais do que construir um caminho, portanto, construímos
num caminho, construímos em um caminho. O questionar, pois, tanto constrói quanto segue
um caminho. Logo na introdução de O Ser e o Tempo, Heidegger oferece uma análise do ato
de questionar, indicando que perguntar é buscar conhecer o ser do ente com a orientação
prévia do que é buscado – mais do que questionar somos questionados pelo ser. O perguntar
tem enquanto “perguntar por” o seu “aquilo de que se pergunta” – todo “perguntar por” seria
de algum modo um “perguntar a” (cf. HEIDEGGER, 1971:14). A técnica é questionada num
caminho de pensamento que passa de modo extraordinário pela linguagem; o questionar
prepara um “relacionamento livre” que abre “nossa presença à essência da técnica” e, em
conseqüência, possibilita “fazer experiência de tudo que é técnico” (cf. HEIDEGGER,
2001:11).
Somos aconselhados, pois, a considerar, sobretudo, o caminho sem ficarmos presos às
várias sentenças e aos diversos títulos: as diversas sentenças e títulos utilizados em nossas
representações constituem apenas uma das maneiras de pensar, que não é determinada
totalmente por si mesma, mas também por aquilo que ordenou ao pensamento que pensasse:
devemos, pois, ouvi-lo (cf. HEIDEGGER, 1969:16). Nesta escuta, a linguagem é vital: nela
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aparece e se manifesta em sua essência o que, com a utilização de palavras adequadas
pronunciamos em expressões consideradas secundárias e arbitrariamente suprimíveis e
substituíveis por outras. Em outra conferência: Que é isto – A Filosofia, o filósofo faz
referência especial às palavras da língua grega, que, bem entendidas, nos levariam a uma
“esfera privilegiada” pois a língua grega, e somente ela, era logos; o que era dito na língua
grega seria de modo privilegiado “simultaneamente aquilo que em se dizendo se nomeia”.
Palavras gregas, ouvidas de modo grego, nos colocariam “imediatamente em presença da coisa
mesma” e não “apenas diante de uma simples significação verbal” (cf. HEIDEGGER,
2006:21). Para os gregos pré-socráticos, o ser em repouso permanece perfeitamente distinto do
ente mutável. Vista do ente, a diferença para o ser se manifesta como transcendência, como
metafísica (cf. HEIDEGGER, 1969:25). Mas a pergunta pelo ser do ser morre se ela não
abandona a linguagem da metafísica, porque a representação metafísica impede que se pense a
pergunta pelo ser do ser (cf. HEIDEGGER, 1969:38).
No pensar, é consumada a relação do ser com a essência do homem, todavia o pensar
não produz esta relação, somente a oferece ao ser, como aquilo que lhe foi confiado pelo ser.
A oferta se manifesta pelo fato de que, no pensar, o ser tem acesso à linguagem. “A linguagem
é a casa do ser. Nesta habitação mora o homem. Os pensadores e poetas são os guardas desta
habitação”. Fornecendo-lhe a linguagem, o pensar deixa-se requisitar para dizer a verdade do
ser. Assim, os caminhos de pensamento devem abrir nossa presença à essência da técnica,
para que, respondendo à sua essência, possamos fazer experiência de tudo que é técnico. O
acesso à linguagem que o pensar oferece ao ser, consuma, pois, o acesso do ser ao homem.
Mais do que buscar a verdade do ser, o homem é atingido por ela, pelo envio do ser (cf.
HEIDEGGER, 2005:5).
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A ESSÊNCIA DA TÉCNICA .
Determinação instrumental e antropológica da técnica
Nos parágrafos iniciais do ensaio, Heidegger apresenta a determinação instrumental e
antropológica da técnica: se conforme uma antiga lição, a essência de alguma coisa é o que ela
é, então, questionar a técnica significa “perguntar o que ela é” e, as respostas, são bem
conhecidas; uma delas diz que “técnica é um meio para um fim”, a outra diz “técnica é uma
atividade do homem”. Estas duas respostas se pertencem, pois estabelecer fins, procurar e usar
meios para alcançá-los é uma atividade humana. A concepção corrente de que a técnica é “um
meio e uma atividade humana pode se chamar, portanto, determinação instrumental e
antropológica da técnica” (cf. HEIDEGGER, 2001:12).
Pertencem à técnica a produção e o uso de ferramentas, aparelhos e máquinas,
como a ela pertencem estes produtos e utensílios em si mesmos e as necessidades
a que eles servem. O conjunto de tudo isto é a técnica. A própria técnica é também
um instrumento, em latim instrumentum (HEIDEGGER, 2001:12).
A determinação instrumental e antropológica é importante, pois, está na base das
concepções de controle e limite ético à técnica moderna: códigos, leis e normas de conduta
disciplinadora coibiriam, regulamentariam o uso da técnica, ou, em alguns casos,
implantariam uma proibição total quando se considerasse que o uso fosse demasiadamente
inseguro. Assim, se “a técnica moderna é meio para um fim /.../ a concepção instrumental da
técnica guia todo esforço para colocar o homem num relacionamento direto com a técnica”.
Portanto “tudo depende de se manipular a técnica, enquanto meio e instrumento, da maneira
devida”. Deve-se “manusear com espírito a técnica”. Pretende-se “dominar a técnica”. Isto é
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tão mais urgente “quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do homem” (cf.
HEIDEGGER, 2001:12).
Assim, levando-se em conta, como é comum, somente a determinação instrumental,
apenas o uso da técnica estaria em pauta – como é usada, para que é usada, por quem é usada,
no interesse de quem é usada. Estas condições de uso seriam determinantes nos efeitos tanto
sobre os homens, quanto sobre o meio ambiente. Em conseqüência, valores éticos e morais de
produtores e consumidores teriam centralidade na discussão, e a solução mais indicada
apontaria para códigos de ética com auto-regulação ou multas e outras medidas reguladoras e
eventualmente punitivas aos infratores.
Considerar que a essência da técnica se esgota em sua determinação instrumental, ou
dar centralidade a esta determinação, facilita a caracterização do fazer técnico como fazer
objetivo, neutro – a ocorrência de qualquer problema associado à técnica, portanto, seria
decorrente de uso descuidado ou irresponsável devido à autonomia dos que a desenvolvem ou
manipulam; controle e limite significam, então, restrições à autonomia do fazer técnico
empresarial, em nome de princípios tais como responsabilidades com o meio ambiente e
compatibilidade com a vida no planeta em condições dignas. Assim postas, estas restrições
em geral são consideradas problemáticas e inadmissíveis pelos que, supondo-se autônomos em
seu fazer e na apropriação privada dos resultados deste fazer, vêem-se limitados e controlados
em sua autonomia, em seu fazer supostamente neutro, objetivo e, portanto, sem relação direta
com os problemas causados. Os que têm a presumida autonomia restringida julgam que
controles e limites são improcedentes e inúteis e, portanto, injustos e ineficientes.
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Crítica da determinação instrumental
Inquestionavelmente, para Heidegger, a concepção corrente da técnica baseada na
determinação instrumental (meio para um fim) e antropológica (atividade do homem) é
correta, enquanto “algo exato e acertado naquilo que se dá e está em frente”. Ninguém pode
pretender negar que ela é correta, pois, “se adapta ao que se tem diante dos olhos quando se
fala de técnica”. Tal qual a técnica antiga, a moderna também é meio para que os homens
atinjam fins: assim como cata-ventos, monjolos e os moinhos de vento, também as usinas
hidroelétricas, os aviões a jato e radares são meios feitos pelos homens, para fins estabelecidos
pelos homens. Porém, se a determinação instrumental é correta no sentido de ser algo exato,
preciso no que se dá e está em frente, se esta determinação é correta por dar conta com
eficiência de tudo que é constatado empiricamente, “o meramente correto ainda não é o
verdadeiro” e somente o verdadeiro “nos leva a uma atitude livre com aquilo que, a partir de
sua própria essência, nos concerne”. “Para chegarmos à essência /.../ temos de procurar o
verdadeiro através e por dentro do correto” (cf. HEIDEGGER, 2001:13).
O correto não é suficiente, pois reduz o ser à certeza de uma representação, reduz o ser
à vontade de um sujeito; sujeito que, na filosofia moderna, significa exclusivamente o eu do
homem. Nesta tradição, a realidade é a que se mostra e se demonstra como tal ao sujeito: o que
constitui a realidade, o que é verdadeiro, é exatamente a certeza que o sujeito tem, do que é
claro e distinto, correto, portanto. Desta forma, o ser identifica-se com o ente, como presença;
como conseqüência, o ser é associado a uma evidência: não seria necessário ir além do
correto, pois o ser seria aquilo pelo qual as coisas são evidentes. (cf. COCCO, 2006)
Em O Ser e o Tempo, Heidegger estabelece a conexão entre ser e entes, indicando que
o ser dos entes não “é” ele mesmo um ente, e que o ser, enquanto aquilo de que se pergunta,
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se questiona, “requer uma forma peculiar de mostrá-lo, que se diferencia essencialmente do
descobrimento dos entes” (cf. HEIDEGGER, 1971:15). Esta conexão é lembrada nos
primeiros parágrafos de “A questão da técnica”, quando o filósofo afirma não ser a técnica
igual à essência da técnica. “Quando procuramos a essência de uma árvore, temos de perceber
que aquilo que rege toda árvore, como árvore, não é, em si mesmo, uma árvore que se pudesse
encontrar entre as árvores”. Como “a essência da técnica não é, de forma alguma, nada de
técnico”, nunca faremos a experiência de nosso relacionamento com a essência da técnica
enquanto lidarmos apenas com o que é técnico: limitar-nos-emos a afirmações ou negações
apaixonadas, “ficando presos sem liberdade à técnica /.../ a maneira mais teimosa, porém, de
nos entregarmos à técnica é considerá-la neutra, pois essa concepção, que hoje goza de um
favor especial, nos torna inteiramente cegos para a essência da técnica” (cf. HEIDEGGER,
2001:11).
Assim, se a essência da técnica não é, de forma alguma, nada de técnico, se ficarmos
presos aos aparatos, aparelhos, normas, equipamentos, procedimentos e sistemas técnicos, não
conseguiremos escapar de uma cilada - Cila ou Caríbdis: tecnofobia ou tecnofilia; mais ainda,
o que pareceria uma solução, uma suposição de neutralidade advinda da centralidade da
determinação instrumental seria, para Heidegger, a cegueira maior para a essência da técnica,
a atitude mais escamoteadora. A concepção de que basta o simplesmente correto é amplificada
pela tecnificação do mundo, efetivação da idéia de que o homem, a partir de seu
desenvolvimento racional, pensa o ser das coisas como algo dependente dele próprio, reduzido
aos entes que tem à sua frente.
Devemos, pois, pensar o verdadeiro, por dentro e além do simplesmente correto.
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Ao encerrar sua caracterização da determinação instrumental da técnica, Heidegger
pergunta, sem responder explicitamente em nenhum lugar deste ensaio: “Mas, supondo que a
técnica não seja um mero meio, como se coloca a vontade de dominá-la?”.
Técnica e causalidade: aition e crítica da hegemonia da causa eficiente.
No caso da técnica, procurar o verdadeiro dentro do correto significa perguntar: “o que
é o instrumental em si mesmo? A que pertence meio e fim?”.
Um meio é algo pelo qual algo ocorre como conseqüência; o que ocorre como
conseqüência, é efeito; aquilo que tem o efeito como conseqüência, é sua causa. Assim, se
meio é aquilo pelo qual se faz e obtém alguma coisa, então meio tem a ver com causa, já que
se chama causa o que tem como conseqüência obter um efeito ou alguma coisa. Causa,
todavia, não é apenas alguma coisa que provoca outra; causa é também “o fim com que se
determina o tipo de meio utilizado” . “Onde se perseguem fins, aplicam-se meios, onde reina a
instrumentalidade, aí também impera a causalidade”. A determinação instrumental nos leva,
portanto, ao que há séculos a filosofia nos ensina sobre causa, a saber, que existem quatro
delas: a causa materialis, a causa formalis, a causa finalis e a causa efficiens. Tomando
como exemplo um cálice de prata utilizado em rituais cristãos, o material, a prata do cálice
seria a causa materialis; a forma, a figura em que se insere a prata seria a causa formalis; o
culto do sacrifício que determina a forma e a matéria do cálice seria a causa formalis e, por
último, o ourives seria a causa efficiens que produz o efeito, o cálice realizado, pronto, a partir
da matéria prata, com a forma determinada pelo culto. Descobrimos, concebemos, então, a
técnica como meio, “reconduzindo a instrumentalidade às quatro causas” .
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Apesar da doutrina das quatro causas ser tomada há séculos como “uma verdade caída
do céu, clara como a luz do sol”, Heidegger considera ter chegado o tempo de indagar: “E se a
causalidade for obscura justamente em sua essência, naquilo que ela é?”. “Porque existem
precisamente quatro causas?”. “No tocante às quatro causas, o que significa causa em sentido
próprio?” “De onde se determina o caráter de causa das quatro causas de modo tão uniforme a
ponto de se pertencerem uma à outra numa coerência?”. Para Heidegger a causalidade e, com
ela, a determinação corrente da técnica (instrumental) permanecerá “obscura e sem
fundamento /.../ enquanto não nos empenharmos nestas perguntas”, principalmente porque,
desde Descartes se dá o predomínio da causa efficiens. “A causa efficiens, uma das quatro
causas, determina de maneira decisiva toda causalidade. E isso a tal ponto que já não se conta
mais a causa finalis entre as causas” . A partir principalmente de Descartes, considera-se causa
como o que é eficiente, no sentido de alcançar, obter resultados e efeitos, porém, na doutrina
das quatro causas que remonta aos gregos e à Aristóteles, “causalidade nada tem a ver com a
eficiência e a eficácia de um fazer” (cf. HEIDEGGER, 2001:12 e passim).
Ursache que os alemães chamam de causa, foi chamado pelos gregos aition – aquilo
pelo que outro responde e deve: Heidegger refaz a discussão das quatro causas a partir de um
questionamento do sentido de responder e dever. O entendimento de responder e dever como
culpa no sentido moral ou como ação, obstruiria “o caminho para o sentido originário do que
se chamou posteriormente causalidade. Enquanto este caminho não se abrir, também não
perceberemos o que é propriamente a instrumentalidade do que repousa na causa” (cf.
HEIDEGGER, 2001:15).
Em um primeiro modo de responder, tomando o exemplo de um cálice sacrificial, a
prata, uma matéria determinada – hyle, responde pelo cálice. O cálice deve à prata aquilo de
22
que consta e é feito. Mas, no cálice, o que se deve à prata não aparece na figura de um prato ou
um anel: o utensílio também deve o que é a um segundo modo, ao perfil – eidos, de cálice.
“Tanto a prata em que entra o perfil do cálice, como o perfil, em que a prata aparece,
respondem, cada uma a seu modo, pelo utensílio de sacrifício” . Existe um terceiro modo
responsável pelo cálice: o que o define previamente e o coloca “na esfera do sagrado e da
libação”. Com este modo – o telos, “o utensílio não termina ou deixa de ser, mas começa a ser
o que será depois de pronto. É, portanto, o que consuma, no sentido de levar à plenitude, o
que, em grego, se diz com a palavra telos”. As interpretações de telos como “fim”, “meta”,
“finalidade” traduzem mal esta palavra. “O telos responde pelo que, na matéria e no perfil,
também responde pelo utensílio sacrificial’” (cf. HEIDEGGER, 2001:14).
Para Heidegger, o quarto modo, o que responde pela integração do utensílio pronto, o
ourives, fazendo com que, pelo trabalho, o cálice pronto seja efeito de uma atividade, de
forma alguma é causa efficiens: “a doutrina de Aristóteles não conhece uma causa chamada
eficiente e nem usa uma palavra grega que lhe corresponda” . O ourives “reflete e recolhe
numa unidade os três modos mencionados de responder e dever” . Refletir se diz, em grego,
legein, logos e se funda no fazer aparecer, no apophainesthai, "trazer à luz". Os modos
anteriores de responder (hylé, eidos e telos) devem ao logos, do ourives, “à reflexão do ourives
o fato e o modo em que eles aparecem e entram no jogo de pro-dução do cálice sacrificial” (cf.
HEIDEGGER, 2007:378).
Os modos acima mencionados, que respondem pelo dar-se e propor-se, designam a
vigência de algo que está em vigor: é que os quatro modos de responder e dever levam alguma
coisa a parecer, deixam que algo venha a viger, soltam algo numa vigência, deixam viger em
seu pleno advento.
23
Causalidade, poiesis, produção e alethéia.
Para se articularem, desvelando, trazendo à luz, levando à frente, deixando viger o que
ainda não vige estes quatro modos “são regidos e atravessados de uma maneira uniforme por
uma condução que conduz o vigente a aparecer”. Os quatro modos, pois, “deixam vir à
presença, o que ainda não se apresenta”. Em Platão, no Banquete (205b), “todo deixar-viger o
que passa e procede do não vigente para a vigência é poiesis, é produção”. (cf. HEIDEGGER,
2001:16)
O pensar de Heidegger, questionando a essência da técnica, chega, pois, na produção,
no produzir, no sentido da poiesis grega, significando mais que a produção artesanal e mais
que apenas levar a aparecer e conformar poética e artisticamente; também a physys, surgindo e
elevando-se por si mesma é poiesis: é até a máxima poiesis, pois tem o eclodir da produção em
si mesma. Um cálice de prata, por exemplo, não possui o eclodir da produção em si mesmo,
mas em outro, no caso, o artesão (cf. HEIDEGGER, 2007:379).
A poiesis é, pois, onde jogam as quatro causas, os modos de deixar viger: por força da
poiesis advém tanto o que cresce na natureza e eleva-se por si mesmo (physis) quanto o que
não tem o eclodir da produção em si mesmo (techne). Este deixar viger conduz à vigência o
que, na produção, chega a aparecer, a apresentar-se – a produção se dá no sentido do
encobrimento para o desencobrimento. Poiesis acontece enquanto e na medida em que algo
encoberto chega a desencobrir-se. Para o descobrimento, os gregos tinham uma palavra:
alethéia.
O produzir leva do ocultamento para o descobrimento. O trazer à frente somente
se dá na medida em que algo oculto chega ao desencobrimento. Este surgir
repousa e vibra naquilo que denominamos o desabrigar. Os gregos têm para isso
24
a palavra alethéia. Os romanos a traduzem por veritas. Nós dizemos “´verdade”
/.../ (HEIDEGGER, 2007:380).
Pensando a determinação instrumental, passando às quatro causas e à poiesis,
Heidegger chega ao que considera ser a essência da técnica: a verdade no sentido de alethéia,
trazer à frente, desocultar, desvelar; portanto, um sentido totalmente diferente da exatidão de
uma representação, que é o que costumeiramente entendemos por “verdade”.
Essência da técnica: techne, desencobrimento e verdade.
O caminho de pensamento no questionamento da técnica nos revelou a alethéia como
essência; não é difícil construir no caminho inverso: sendo alethéia desencobrimento, nele se
funda toda a poiesis, toda a produção que recolhe em si e é atravessada pelas quatro causas,
que deixa viger a causalidade – à esfera da causalidade pertencem meios, fins e
instrumentalidade, traços fundamentais da técnica.
Sendo, pois, forma de desencobrimento, verdade, alethéia, a técnica não é simples
meio; abre-se para nós outro âmbito: o âmbito do “desencobrimento, isto é, da verdade”.
Pode-se compreender melhor, agora, porque a determinação instrumental da técnica apesar de
correta, não desoculta a essência da técnica.
A própria palavra grega techne, da maneira que os gregos a determinam, indica que
técnica é forma de desencobrimento, onde acontece a alethéia, a verdade: técnica provém do
grego technoi, dizendo o que pertence à techne. No sentido grego, pertencem à techne tanto a
habilidade artesanal quanto o fazer da grande arte, das belas artes: A techne pertence à
produção, à poiesis, no sentido de descobrir. A techne, pois, como forma de alethéia,
desencobre o que não se produz por si mesmo ”e ainda não se dá e propõe, podendo assim
apresentar-se e sair, ora num ora em outro perfil”. Cálices, espadas e pratos de metal,
25
desencobrem-se ao serem produzidas em diferentes perspectivas dos quatro modos de deixar
viger. Estes desencobrimentos recolhem “antecipadamente numa unidade o perfil e a matéria”
“numa coisa pronta e acabada e determina daí o modo de elaboração”. “O decisivo na techne
não reside, pois no fazer e manusear, nem na aplicação de meios, mas no desencobrimento
mencionado. É neste desencobrimento e não na elaboração que a techne se constitui e cumpre
uma produção”.
Heidegger considera importante a consideração de que techne e episteme ocorriam
juntas, desde cedo até o tempo de Platão, sendo ambas “nomes para o conhecer em sentido
mais amplo /.../ o conhecer enquanto tal é um desabrigar.” Desabrigando, conhecimento é um
desencobrimento. Aristóteles, na Ética à Nicômaco, VI, 3 e 4 distingue episteme de techne
“em referência a como e ao que elas desabrigam” (HEIDEGGER, 2007:380).
Temos, pois, três formas de desocultamento onde ocorre a poiesis, três modos de
alethéia. O primeiro se revelaria na physys, por exemplo, na auto poiesis de uma rosa ao
florescer; A techne, segunda forma de desocultamento, segundo modo de alethéia, que
denominamos técnica é a produção do artesão que fabrica o utensílio, o vaso ou o cálice; nesta
segunda forma, existe a produção do que não viria à luz por si mesmo. O terceiro modo é a
episteme, o conhecimento desta produção (LEOPOLDO E SILVA, 2007:370).
26
TÉCNICA MODERNA: PERIGOS E SOLUÇÕES
Essência da Técnica Moderna
Poder-se-ia dizer que a determinação do âmbito da essência da técnica como
desencobrimento vale apenas para o pensamento grego, ou, no melhor dos casos “pode servir
para a técnica artesanal, mas não alcança a técnica moderna caracterizada pela máquina e
aparelhagens”. Sendo a técnica em sua essência uma forma de alethéia, estando a técnica
presente no âmbito onde acontece o desocultar e o desencobrimento do ser, em que consistiria
a essência da técnica moderna? A resposta, para Heidegger, é que também a técnica moderna
é desocultamento, é trazer à luz, porém, o modo de desocultamento da técnica moderna possui
algumas especificidades e “somente quando se perceber este traço fundamental [também ela
ser um desencobrimento] é que se mostra a novidade e o novo da técnica moderna” (cf.
HEIDEGGER, 2001:21).
A especificidade da técnica moderna é que - sendo também um desencobrimento, não
se desenvolve no sentido da poiesis, mas no sentido de exploração, de tornar a natureza
disponível tratando-a como estoque, disponibilidade de energia e matérias primas. Neste
sentido, como veremos adiante, o próprio homem, sem se reduzir a isso, estaria passível de ser
tratado como estoque, como matéria prima (material humano, recursos humanos, talentos
humanos). Tome-se a produção de energia, por exemplo: um moinho, confia suas asas ao
vento ou às águas do rio, utilizando energia da natureza para a moagem de grãos; compare-se
com uma usina hidroelétrica, onde o rio é cercado, controlado, manietado, represado, para o
armazenamento de grandes volumes de água de modo a dispor-se continuamente de energia
potencial hidráulica que, convertida em energia elétrica esteja disponível para transporte,
27
transformação, beneficiamento e armazenamento de enormes quantidades de coisas (inclusive
moagem e estocagem de grãos). O moinho de vento “não extrai energia das correntes de ar
para armazená-la, suas alas giram ao vento e são diretamente confiadas a seu sopro”. O
desocultar da técnica moderna não se caracteriza por uma poiesis, por uma criação, mas sim
por uma provocação que exige e retira da natureza, energias e coisas para serem fomentadas,
armazenadas: postas à disposição. O desencobrimento da técnica moderna tem como principal
característica o “por”, no sentido de “explorar”, “armazenar”, “colocar à disposição”. Energias
e materiais são extraídos da natureza, “o extraído vê-se transformado, o transformado,
estocado, o estocado, distribuído, o distribuído reprocessado. Extrair, transformar, estocar,
distribuir, reprocessar são todos modos do desencobrimento” (cf. HEIDEGGER, 2001:20).
Heidegger questiona a afirmação de que “a técnica moderna surgiu apenas quando
pode se apoiar nas modernas ciências da natureza”; a essência da técnica moderna já estaria
atuando na física e nas ciências modernas muito antes disso. Portanto, para ele, também aqui o
correto não corresponde ao verdadeiro, a constatação externa dos fatos não corresponde ao
dinamismo histórico mais profundo; em outros termos, a afirmação seria historiograficamente
correta, mas, pensado historicamente não corresponderia à verdade. E mais, isto não
aconteceria apenas com a técnica: a essência, embora atue primeiramente, permanece oculta
por muito tempo, antes de consumar-se. A essência da técnica moderna se encontra já na
concepção metafísica da realidade que lhe é muito anterior. “A questão decisiva permanece
sendo: de que essência é a técnica moderna para poder chegar a utilizar as ciências exatas da
natureza?” (cf. HEIDEGGER, 2001:18).
Na técnica moderna, o homem se coloca em posição de controle sobre tudo o que se
lhe presenta. A técnica moderna trata tudo com “objetividade”. O técnico moderno espera, e
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espera-se dele, ser capaz de impor ordem em todos os dados, “processar” todos os tipos de
entidades, humanas ou não, e divisar soluções para todos os tipos de problemas. Ele está
sempre colocando as coisas sob controle.
Heidegger vê em cada aspecto da vida moderna marcas evidentes da vigência da
essência da técnica moderna que empurra na direção do domínio do homem como
autoconsciência: não apenas a técnica e a ciência, mas também a arte, religião e cultura
entendida como busca de bens superiores. São encontradas em todos os lugares a justaposição
de sujeito e objeto, e a dependência da experiência e avaliação do sujeito é decisiva.
A técnica moderna é em sua essência oposição à revelação. Ela implica o oposto de
tudo que é, pois ela controla tudo impondo exigências, capturando, apoderando-se e a tudo
requisitando para armazenagem e disposição para uso. Sob esta dominação, a nada é
permitido se revelar como é. A regência de tal modo de revelação é vista quando o homem se
torna sujeito, quando de dentro de sua consciência ele assume controle sobre tudo fora de si,
quando ele representa e objetifica, e, objetificando, começa a controlar tudo. Isto se consuma
quando, como crescentemente é o caso em nossa época, as coisas não são nem mesmo olhadas
como objetos, pois a única qualidade importante se tornou disposição para uso. Hoje todas as
coisas estão sendo arrastadas por uma vasta rede na qual seu único significado repousa em
estar disponível para servir a algum uso que também será direcionado a ter todas as coisas sob
controle. Heidegger chama este fundo indiferenciado de suprimento de coisas disponíveis, de
reserva permanente.
A disposição de tudo como “reserva permanente” é uma manifestação de um destino
epocal: é antes de tudo a fruição de um modo de revelação que é dado a tudo que é pelo
próprio Ser em uma época. Mas como tal, não acontece fora, ou separado do homem. O
29
mesmo destino que dá este modo de aparecer a tudo que é, também o rege, provocando-o a
dispor de tudo desta forma, como “reserva permanente”.
Duas palavras em alemão foram re-significadas por Heidegger, no caminho do
desvelamento da técnica moderna: Bestand e Gestell. Referindo-se ao modo de tratar a
natureza e tudo mais como fundo de reserva, referindo-se ao fato de, assim, o objeto perder
seu caráter de objeto para assumir uma disponibilidade, Heidegger diz:
Mas que tipo de descobrimento é próprio do que vem à luz através do pôr
desafiante? Por toda parte ele é requerido, para ficar posto imediatamente para
um pôr e, na verdade, numa tal disposição, para novamente ser passível de
encomenda para uma encomenda ulterior. O que assim é invocado tem sua
própria posição. Nomeamos esta posição de subsistência <Bestand>
(HEIDEGGER, 2007:383).
O termo Bestand, utilizado por Heidegger ao se referir à essência da técnica moderna,
que conforme temos tentado indicar nos parágrafos anteriores, tem o sentido de
disponibilidade, estar disponível para uso, é traduzido por Marco Aurélio Werle, como
indicado acima, por subsistência. Ernildo Stein, na tradução do mesmo texto, traduz Bestand
por composição.
Para designar a forma pela qual o homem é solicitado pela técnica, o solicitar mais
originário, Heidegger introduz o conceito de Gestell. Como é comum com os neologismos de
Heidegger, este termo possui um significado diferente na língua alemã corrente. Gestell
significaria o conjunto dos modos do por (Stellen) que provocam: “Gestell significa a reunião
daquele por, que põe ao homem, isto é, que o provoca para que descubra o real no modo de
solicitar como Bestand. Gestell significa o modo do desocultar que atua na essência da técnica
moderna que nele mesmo não é nada de técnico”.
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Um dos fundamentos do pensamento de Heidegger é esta justaposição do destino do
Ser e do fazer do homem: além de agir por si, o próprio homem é controlado pelo modo do
Ser se revelar; esta intimação, regendo na técnica moderna, é um modo do Ser se revelar.
Ordenador e ordenado são compelidos por esta provocação.
O presentar-se de tudo que é teria sido cortado pela raiz. Diz Heidegger, no seu texto
sobre a questão da técnica: “Parece que o homem encontra a si mesmo sempre e em todos os
lugares”. Tal impressão é, porém, uma ilusão. O homem, de fato, “nunca pode encontrar
apenas a si mesmo”, pois está solicitado, chamado, pelo desafio de revelação, mesmo quando
pensa que não, mesmo quando pensa sozinho, ou em seus maiores sonhos de controlar o
mundo. Por estar completamente comprometido com aquela dominação, o homem estaria
impedido de prestar atenção em sua essência: não se conheceria como aquele que está sendo
levado a se relacionar com o ser, isto é, não se reconheceria como homem. Regido desta
forma, o homem hoje, apesar do que lhe parece verdadeiro, nunca se encontraria.
Em um texto de 1957, Identidade e Diferença, Heidegger faz um aprofundamento
sobre o Gestell ou essência da técnica. Lá, ele fala do co-pertecimento entre o ser e o homem.
Na época da técnica se daria entre eles uma provocação mútua, isto seria Gestell; neste escrito,
o ser já não seria o conceito fundamental na filosofia de Heidegger, mas sim o conceito de
evento (Ereignis), que é o que se dá, o que faz com que “haja” homem e ser, e este dar
acontece também como destino.
O questionamento da técnica moderna leva Heidegger, então, a vê-la como um destino,
como um envio do evento ou acontecer originário da abertura do mundo e da história, do
acontecer primeiro da verdade. Este destino põe o homem em diferentes caminhos, o que faz
com que a verdade aconteça de diferentes modos: como Gestell, que o leva a considerar tudo
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como Bestand na técnica moderna; ou como poiesis no sentido geral, que compreende a
abertura da natureza e da arte.
Perigos da Técnica Moderna
O perigo da técnica moderna se funda em seu modo de tratar a natureza como
disposição, como fundo de reserva: o objeto perde sua característica de objeto. O solicitado
pelo desocultar provocativo característico da técnica moderna perde sua própria condição de
objeto, e é rebaixado à condição de disponibilidade (Bestand), meramente utilizável. Isto,
porém, não seria algo limitado aos instrumentos e objetos técnicos: ao contrário, se entenderia
também aos seres vivos, aos recursos naturais e aos seres humanos. Assim as ameaças “não
viriam em primeiro lugar das máquinas e equipamentos técnicos”, tais ameaças já teriam
atingido a “essência do homem”. Enquanto velamento, encobrimento do ser, a técnica
moderna tem a mesma origem do niilismo, como ele, ela já está instalada e já não “adianta
apontar-lhe a porta, pois ela já a muito tempo e de modo invisível, percorre a casa toda” (cf.
HEIDEGGER, 1969:15).
Mais do que isso: como o câncer, a técnica moderna e o niilismo não são tampouco
algo doentio, pois pertencem a características do próprio organismo. Sendo assim, a definição
precisa do niilismo e da técnica moderna seria comparável ao descobrimento do agente
cancerígeno, no sentido de que “não significaria já uma cura, mas ao menos seus pressupostos,
na medida em que homens afinal colaboram nisto. Trata-se de um processo que ultrapassa
amplamente a história”(cf. HEIDEGGER, 1969:15). Tanto quanto o agente cancerígeno é
urgente sua identificação, embora não caibam as classificações de curável ou incurável. Como
o niilismo, os perigos da técnica moderna adquiriram um caráter planetário mais evidente,
32
incontrolável e multifacetário que a tudo corrói. No entanto, é impossível negar que isto, das
formas mais diversas e camufladas torna-se o “estado normal” da humanidade (cf.
HEIDEGGER, 1969:21).
O ser humano tem, assim, uma dupla postura frente à técnica – por um lado, ele mesmo
solicita e provoca a natureza, por outro lado, para fazer isso, tem de ser provocado. “Somente
à medida que o homem já foi desafiado a explorar as energias da natureza é que se pode dar e
acontecer o desencobrimento da disposição. Se o homem é, porém, desafiado e disposto,
não será, então, que mais originariamente do que a natureza, ele, o homem, pertence à
disponibilidade? As expressões de material humano, de material clínico falam neste
sentido” (cf. HEIDEGGER, 2001:21 grifos nossos). Nesta unidade ambivalente de um lado o
ser humano solicita, provoca, controla, no outro, é ele mesmo reduzido à condição de
disponibilidade (Bestand).
No pensamento ocidental, predomina um modo de acontecer da verdade, próprio da
essência da técnica, predomínio este que atingiu na atualidade proporções alarmantes. “Pois a
humanidade chegou tão longe que denomina em que seu Dasein histórico entrou segundo a
energia atômica que se fez distribuir. Isto significa: estamos na era atômica...”. O homem
determina uma época de seu Dasein histórico a partir da influencia e disponibilidade de uma
energia natural. O Dasein humano cunhado pelo átomo. Com efeito, a denominação de uma
época como era atômica alcança provavelmente o existente. “Pois o restante que ainda existe
e que o homem chama de cultura: teatro, arte, cinema e rádio, mas também literatura e
filosofia, e inclusive a fé e a religião, tudo isto vai claudicando em todas as partes atrás
daquilo que atribui à época o selo de era atômica”.
33
Onde Mora o Perigo, Cresce a Solução.
Na parte final do texto “A questão da técnica”, reveladas as ameaças e as fontes do
perigo, Heidegger indica um poder salvador que poderia ser encontrado no retorno à poiesis,
propiciado pela arte.
O filósofo considera que a técnica moderna e o niilismo atingem a perfeição ao
envolver a todos, surgir em toda parte, tornando-se a situação normal que não admite exceção.
Porém, esta situação normal é apenas a realização da perfeição, não sendo seu fim. Nem
mesmo as duas grandes guerras mundiais do século passado detiveram seu movimento ou lhe
imprimiram outra direção (cf. HEIDEGGER, 1969:23).
Heidegger vê a unilateralidade da técnica como um perigo: precisamente porque o
destino leva o homem em cada caso a um caminho do desocultar, o homem se encontra
sempre próximo da possibilidade de segui-lo unilateralmente e dedicar-se apenas ao
descoberto neste modo de acontecer da verdade, tomando-o como norma do todo.”O destino
do desocultamento é como tal em cada um de seus modos e por isso necessariamente perigo”.
O perigo da unilateralidade do pensar técnico moderno é expresso em uma conferencia
em 1955 de uma forma muito mais alarmante: ”O homem se encontra sobre a terra em uma
situação perigosa? Porque? Só porque poderia estalar de repente uma terceira guerra mundial
que teria como conseqüência a aniquilação da humanidade e a devastação da terra? Não. Na
era atômica que se inicia, ameaça um perigo muito maior /.../ Uma afirmação rara /.../ Em que
medida tem validez esta afirmação que acabamos de fazer? Tem validez tanto quanto a
revolução técnica que chega na era atômica poderia acorrentar, enfeitiçar, ofuscar e cegar ao
homem de tal maneira que um dia o pensar calculador permanecesse como o único com
34
validez e em exercício”. Uma explosão atômica seria a última conseqüência de uma visão do
real que privou o ente e a coisa de seu caráter enquanto tais. Esta maneira de vê-las “aniquilou
as coisas como coisas já muito antes que explodisse a bomba atômica” .
Aparentemente o filósofo é pessimista diante deste estado de coisas e afirma que
ninguém será capaz de dominar este processo: “Nenhum indivíduo, nenhum grupo humano,
nenhuma comissão de importantes homens de estado, pesquisadores ou técnicos, nenhuma
conferencia /.../ pode frear ou guiar o curso histórico da era atômica” . Contudo, não haveria
que ser pessimista. O destino não atuaria com violência surda, nem nos levaria a nos
dedicarmos cegamente à técnica, nem a nos levantarmos contra ela, condenando-a como uma
obra diabólica. “O perigoso não é a técnica. Não há nenhum demônio na técnica, mas sim, o
mistério de sua essência”. A essência da técnica é secreta e misteriosa. Se nos abrirmos a ela,
nos encontramos inesperadamente diante de uma perspectiva libertadora. E Heidegger cita
neste ponto os versos de Hölderlin:
“Onde mora o perigo, cresce também o que salva”
O crescimento, explica Heidegger, se dá a partir das raízes profundas e ocultas, por
isso, segundo Hölderlin, não podemos esperar ver estas raízes imediatamente, mas sim
prepararmo-nos. Justamente nesta essência oculta e profunda está o que liberta. A essência da
técnica não deveria ser vista apenas como o que provoca, mas como um modo de acontecer da
verdade entre outros, o que nos leva às idéias de ser, de evento e de destino e da possibilidade
de uma “virada”. “Na essência do perigo se oculta a possibilidade de uma virada (Kehre), na
35
qual o esquecimento da essência do ser faz uma virada tal que com esta volta, a verdade da
essência do ser entra propriamente no ente”.
Como superar o perigo? Caracteristicamente, Heidegger não dá respostas precisas,
objetivas, objetivantes. “O fazer humano não pode afrontar de modo imediato este perigo. A
obra humana apenas não pode nunca conjurar o perigo /.../ Poderia talvez um desocultamento
mais originário levar o que liberta a um primeiro resplendor no meio do perigo” . Parece
animador, mas, como poderia ocorrer este desocultamento originário? Seria porventura
resultado de um novo destino, de um novo envio do ser?
Lembrando que a téchne grega incluía também a arte, estaria Heidegger indicando que
a arte poderia ser o caminho para a superação? O filósofo não afirma nem nega: “Se à arte é
outorgada esta suprema possibilidade de sua essência no meio do extremo perigo, ninguém
pode saber. Sem dúvida poderíamos nos assombrar. Com o que? Com a outra possibilidade de
que a fúria da técnica se instale por todas as partes até que um dia, através de tudo que é
técnico, se faça presente a essência da técnica no evento da verdade”. Aqui parece novamente
que a superação da técnica remete a um novo destino, mas, de novo fica em aberto em que
consiste este destino, e como chegará.
Fica claro que Heidegger não pensa na técnica como algo autônomo e demoníaco que
possa ser eliminado por algum tipo de procedimento, exorcismo ou fórmula mágica; em vez
disso o filósofo parece esperar e desejar que um acontecer mais originário da verdade leve “o
que liberta a um primeiro resplendor em meio ao perigo” . Tendo o destino como última
palavra de sua filosofia, construída como consumação do envio do ser, Heidegger não poderia
dar respostas concretas sobre a superação do perigo; dizer mais do que disse seria ultrapassar
seus limites.
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Técnica e Metafísica em Heidegger.
Se metafísica é encobrimento da diferença ontológica entre ser e ente, se
linguagem é casa do ser (nesta habitação mora o homem) e se poetas e
pensadores são guardiões desta casa, as metafísicas expressas por Descartes e
Nietzsche, por exemplo, não são apenas metafísicas de Descartes e Nietzsche, mas
sim formas de encobrimento do ser em suas épocas. Por isso, ao longo da história,
técnica e metafísica co-respondem, ambas respondem à mesma essência em cada
época historial, já que a essência da técnica é alethéia, desencobrimento.
Como exposto acima, talvez haja dificuldade em questionarmos porque, para
Heidegger, técnica e metafísica co-respondem, porque respondem à mesma essência.
Tentemos outros caminhos pelos quais seu pensamento possa chegar até nós... Sem buscar
clareza e distinção cartesianas, pois, segundo o filósofo da Floresta Negra discursos
objetivantes, dos quais Descartes teria sido precursor, se prestam ao ocultamento e não à
revelação do que é essencial. A elaboração de um discurso objetivante, mesmo que correto,
sobre o pensamento de Heidegger, já nos colocaria fora dele... Tentemos, pois, caminhos de
pensamentos de onde possamos escutá-lo.
Para Heidegger houve uma época que teria sido pré-metafísica, onde o ser se revelava
diretamente na linguagem; a língua grega era logos: o dito nesta língua era também “o que em
se dizendo se nomeia”. Uma palavra grega, escutada de maneira grega, nos colocava
“imediatamente em presença da coisa mesma, aí diante de nós, e não primeiro apenas diante
de uma simples significação verbal” (cf. HEIDEGGER, 2006:21). Heráclito e Parmênides,
sendo os “maiores” pensadores, não eram filósofos, pois, “ainda se situavam no acordo com o
logos” (cf. HEIDEGGER, 2006:23). Após estes tempos pré-metafísicos a filosofia aparece
como techné, como técnica de pensar. Já em Platão, o pensamento se transforma em téchne,
subsumindo o verdadeiro pensar, convertido em metafísica: a questão da essência se torna
37
viva quando justamente “aquilo por cuja essência se interroga se obscurece, se confunde,
quando ao mesmo tempo a relação do homem para com o que é questionado se torna vacilante
e abalada”.
O passo para a “filosofia”, preparado pelos sofistas, teria sido realizado por Sócrates, o
projeto histórico da metafísica ocidental se perfaz desde seu início com Platão e Aristóteles; a
partir da transformação do ser em um ente entre outros, a partir da assunção do ser como ente
supremo, como o sumamente ente, como uma presença de tipo tão peculiar que se mantém
eternamente idêntica a si mesma e subsiste constantemente apesar de todas as transformações
do mundo fenomênico. No interior deste projeto, o ser mesmo nunca estaria em questão,
porque o ser seria incessantemente tomado pelo ser do ente e desconsiderado em sua diferença
própria. Metafísica é entendida por Heidegger como esquecimento da diferença ontológica:
toma-se o ser pelo ser do ente, desconsiderada sua diferença própria.
Heidegger considera a linguagem como casa do ser: pensar é o ato de oferecer a
linguagem para que o ser se desoculte; por isso, pensadores e poetas desempenham o papel
daqueles que dão abertura do ser do ente na totalidade e que tem por tarefa principal colocar a
questão sobre a verdade, não de um setor particular da totalidade ou de um conjunto de
regiões ônticas específicas, mas sobre a alethéia, sobre a verdade do ser do ente na totalidade.
A metafísica de cada pensador indica, pois, como em cada época historial se manifesta, se
desoculta, se revela, o encobrimento do ser; como se manifesta em cada época a diferença
ontológica. A este velamento, a essa ocultação da diferença ontológica entre o ser e o ente
caracterizados em cada época pelas formas como o encobrimento se revela, associa-se a
alethéia, verdade, no sentido de revelação, desocultamento. Em cada época, a metafísica de
cada pensador nos revela o modo pelo qual a ocultação do ser se desoculta. Heidegger, em
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seus caminhos de pensamento, considera a alethéia como essência da técnica, portanto, o que
rege na essência da técnica (alethéia, desocultamento) aparece também na metafísica de cada
época historial, tal qual revelada por seus pensadores: respondendo, pois, à mesma essência,
a técnica está presente desde o início e ao largo de toda a história da metafísica ocidental.
Consumação da Metafísica: Descartes e Nietzsche.
Descartes e o início da Consumação da Metafísica Ocidental.
A tendência presente na metafísica desde seu início com os gregos, quando a própria
filosofia vira techné, começa a se consumar na idade moderna com Descartes.
No período medieval, havia preocupação de relacionar-se corretamente com Deus em
busca de segurança e salvação; já na modernidade, são lançadas outras bases, não teológicas,
para a busca de segurança, garantia e convicção da retidão do homem; filosoficamente,
sabemos, estas novas bases aparecem no pensamento de Descartes: sua metafísica exprime a
mudança de perspectiva já ocorrida. A partir da metafísica cartesiana, o homem encontra no
cogito a segurança e certeza buscadas. A certeza da existência humana e da realidade buscadas
metodicamente é concebida como representável e captável como objeto do pensamento: a
atenção é focada não para uma realidade transcendente, mas para o que está presente como sua
própria consciência e dentro dela. Pelas idéias claras e distintas, o homem moderno, já em
Descartes, passa a se considerar centro determinante da realidade – torna-se o que tem sido
desde então até a época contemporânea: sujeito, formador autoconsciente, avalista, fiador de
tudo que lhe aparece.
Descartes é o ponto focal do início da idade moderna, a partir dele, o presentar-se de
tudo que é teria sido cortado pela raiz. Diz Heidegger, no seu texto sobre a questão da técnica:
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“Parece que o homem encontra a si mesmo sempre e em todos os lugares”. Tal impressão é,
porém, uma ilusão. O homem, de fato, “nunca pode encontrar apenas a si mesmo”, pois está
solicitado, chamado, pelo desafio de revelação, mesmo quando pensa que não, mesmo quando
pensa sozinho, ou em seus maiores sonhos de controlar o mundo. Tão completamente está
comprometido com aquela dominação que está impedido de prestar atenção em sua essência.
O homem não se conhece como aquele que está sendo levado a se relacionar com o ser, isto é,
ele não se reconhece como homem. Regido desta forma, o homem hoje, apesar do que lhe
parece verdadeiro, nunca se encontra. Importante marcar que isto acontece por dois motivos:
pela ação do homem e também porque o próprio homem é controlado pelo modo atual como o
Ser se revela.
Na ciência moderna o real é denominado “representação”, e tem um significado
complexo - “representar significa aqui: Desde si mesmo colocar algo ante si e assegurar o
posto como tal. Este assegurar tem de ser um calcular, porque só a calculabilidade garante de
antemão e constantemente a certeza do que se vai representar”. Esta forma de ver o real é
unilateral e significa degradar e perder de vista sua complexidade. Representar e assegurar
assim o real significa desprezá-lo, reduzi-lo ou degradá-lo.
O que se denomina tecnociência não pode ser entendido apenas como se ciência e
técnica houvessem se juntado, pelo simples fato de que a ciência moderna desenvolveu-se
antes de suas aplicações técnicas – a mera constatação cronológica, historiográfica, é correta
sem dúvida, mas, mais uma vez, o verdadeiro deve ser buscado dentro do correto: a
precedência histórico-cronológica da ciência e sua posterior fusão com a técnica ocultam o
fato de técnica e ciência responderem à mesma provocação. A provocação que intimou o
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homem na direção da ciência moderna é a mesma que fez com que a essência da técnica fosse
de modo a poder utilizar esta ciência.
A essência da técnica moderna já está presente na origem da ciência moderna e
acompanha todo o seu desenvolvimento bem antes de forjar-se a assim chamada tecnociência.
A física moderna como teoria já é mensageira do Gestell, pois já pertence à revelação de uma
visão técnica da natureza, considerada relação de forças calculáveis.
Nietzsche e a técnica moderna: Término da Consumação da Metafísica Ocidental.
Se Descartes é início, Nietzsche é o filósofo cujo pensamento desvela o término da
consumação da metafísica moderna, daquele envio vindo desde os gregos. Vale a pena, aqui,
uma longa citação de um texto de Heidegger, “Carta sobre o Humanismo”, escrito três anos
antes de “A questão de técnica”:
Consumar significa desdobrar alguma coisa até a plenitude, producere. Por isso, apenas pode ser consumado, em sentido próprio, aquilo que já é. O que, todavia”é“, antes de tudo, é o ser. O pensar consuma a relação do ser com a essência do homem. O pensar não produz nem efetua esta relação. Ele apenas a oferece ao ser, como aquilo que a ele próprio foi confiado pelo ser. Esta oferta consiste no fato de, no pensar, o ser ter acesso à linguagem. A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem. Os pensadores e os poetas são a guarda desta morada. A guarda que exercem é o ato de consumar a manifestação do ser, na medida em que a levam à linguagem e nela a conservam”.
O projeto no qual a filosofia de Nietzsche estaria imersa seria o projeto histórico da
metafísica ocidental. “A filosofia de Nietzsche é o fim da metafísica, uma vez que ela retorna
ao início do pensamento grego, assume esse início à sua maneira e assim fecha o anel formado
pelo curso do questionamento do ente como tal na totalidade”.
A filosofia de Nietzsche, sendo o término da consumação da metafísica, seria
consumação da essência da técnica moderna. O além homem de Nietzsche poderia ser
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considerado o homem da técnica moderna par exellence. O nome “além homem” não designa
um indivíduo, mas sim a humanidade que começa agora a entrar na consumação da idade
moderna. O além homem quereria conscientemente e teria domínio e disponibilidade sobre
todas as coisas à medida que manifestasse plenamente a vontade de poder. Este pensamento
que degrada o Ser e, com efeito, o destrói enquanto Ser, não é uma mera ação humana – a obra
de Nietzsche em sua marcante novidade apenas culmina tendências presentes na metafísica
desde seu início, evidencia marcante que a obstrução, a ausência mesma do Ser em sua
manifestação no pensamento ocidental derivam do próprio Ser. É o próprio envio do Ser ele
mesmo que está mantendo o controle mais e mais disseminadamente no mundo moderno,
como desafio de revelação, como potencia que mesmo em seu mais alto pensamento
metafísico empurra o homem na direção da imposição de valores como “solicitação de uso”, e
que simultaneamente faz com que nada que seja possa aparecer como é em si.
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CONCLUSÕES
Ética na Obra de Heidegger
Se talvez não seja consenso caracterizar Heidegger como um pensador marcado por
preocupações com a ética devido à quase ausência de referências explícitas a esta questão em
sua obra, certamente é consenso caracterizá-lo como um dos primeiros e mais radicais críticos
da técnica moderna e seus efeitos. Apesar disso, e por causa disso, arriscamos uma discussão
dos possíveis limites e viabilidade de controle ético dos desenvolvimentos e efeitos da técnica
moderna a partir da obra de Heidegger. Quatro razões nos motivam e justificam o esforço
nesta direção.
Em primeiro lugar, a quase unanimidade sobre a necessidade de controle e limites
éticos às pesquisas e aplicações da técnica moderna - controle e limites que já extrapolam os
debates e se materializam em códigos de ética, auto-regulação, normas e leis. A radicalidade
da crítica heideggeriana à técnica moderna, expressa pioneiramente já na metade do século
XX, nos autoriza a supor que as idéias deste pensador informam pelo menos parcialmente
algumas das posições filosóficas que sustentam o debate ético contemporâneo.
Outra razão que motiva este esforço é que embora a ética não tenha em sua obra,
aparentemente, lugar de destaque, Heidegger, influenciou alguns pensadores como Hanna
Arendt e Levinás e mais recentemente Hans Jonas, claramente preocupados com questões
éticas.
Uma terceira razão é que Heidegger (com a possível exceção de Ortega y Gasset)
talvez seja o único pensador a se colocar seriamente a questão de uma ontologia da técnica; se
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não foi o único, certamente foi o que mais extensa e profundamente tratou o tema.
Finalmente, questões expostas por Heidegger em sua obra tocam também em
contribuições para o questionamento da ciência: embora este questionamento esteja fora de
nosso escopo (restrito à técnica), dada à ligação feita entre ciência e técnica hoje, com a
elaboração de neologismos como tecnociência, por exemplo, os controles éticos propostos
seriam aplicáveis tanto à ciência quanto à técnica moderna, que alguns consideram
inseparáveis. As pretensões de autonomia, imparcialidade e neutralidade reivindicadas por
cientistas seriam fundadas? Seriam extensíveis à chamada tecnociência?
Ética e Determinação Instrumental da Técnica.
A maior parte das propostas de controle e imposição de limites éticos considera a
técnica algo que pode tanto ser “bem” usada quanto “mal” usada. Sendo apenas questão de
uso, códigos de ética, auto-regulação, normas e leis poderiam ter eficácia em proibir ou limitar
tanto desenvolvimentos quanto aplicações da técnica moderna, ou mesmo desenvolvimentos
científicos com potencial uso para o “mal”. Colocamos as palavras “bem” e “mal” entre aspas,
para indicarmos que não faremos uma discussão sobre o que significam, embora, no caso da
técnica, sejam tão importantes quanto a qualidade de vida, quanto a possibilidade mesmo da
vida de seres humanos, quanto a sobrevivência da vida humana no planeta, ou até mesmo a
própria vida no planeta como um todo.
Heidegger reconhece este aspecto utilitário da técnica ao qual chama determinação
instrumental e antropológica, por ser uma determinação que considera a técnica como meio
para atingir fins (instrumento) e também como atividade do homem. Mais do que reconhecer,
Heidegger considera que ninguém pode negar que ela é correta, ela [a determinação
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instrumental] se rege evidentemente pelo que se tem diante dos olhos quando se fala em
técnica. Por ser correta, esta determinação vale tanto para as técnicas artesanais quanto para as
modernas utilizadas em usinas, turbinas, aviões e radares. A determinação instrumental da
técnica guiaria, então, todos os esforços para colocar o homem num relacionamento direto
com a técnica. Tudo depende de se manipular a técnica, enquanto meio e instrumento, da
maneira devida. Pretende-se, como se costuma dizer, “manusear com espírito a técnica”.
Pretende-se dominar a técnica. Numa indicação da gravidade do problema, já naquela época,
Heidegger indica que este querer dominar torna-se tanto mais urgente quanto mais a técnica
ameaça escapar ao controle do homem (cf. HEIDEGGER, 2001:12).
Heidegger afirma, pois, que com certeza a determinação instrumental da técnica é
correta, pois o correto constata sempre algo exato e acertado naquilo que se dá e está em
frente (dele). Porém, constata o filósofo, ser correta não lhe assegura o status de ser
verdadeira, o simplesmente correto ainda não é o verdadeiro. Embora correta a determinação
instrumental estaria longe de nos mostrar a essência da técnica, pois para ser correta a
constatação do certo e do exato não precisa descobrir a essência do que se dá e se apresenta.
Ora, somente onde se der esse descobrir da essência, acontece o verdadeiro em sua
propriedade.
Supondo, pois, que a técnica não seja um simples meio, como fica então a vontade de
dominá-la? (cf. HEIDEGGER, 2001:12).
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Ética e Envio do Ser.
Um envio do Ser nunca seria um destino cego que simplesmente compeliria o homem
para fora de si mesmo. Em vez disso, seria caminho aberto no qual o homem é chamado:
saber-se chamado seria para ele, ser livre. Para Heidegger, liberdade não é uma questão de o
homem querer ou não querer coisas particulares. Liberdade seria a abertura do homem ele
mesmo – submeter-se a si mesmo com atenção desperta – para o envio que lhe é endereçado e
para o caminho no qual já fora enviado.
Na moderna idade científica “cartesiana”, os homens não apenas imporiam suas
próprias construções à realidade – eles elaborariam representações da realidade que
impediriam as coisas de emergir como elas são, impediriam o desvelamento do Ser; antes de
poderem ser vistas, as coisas estariam sendo capturadas e enquadradas em um sistema
conceitual. Porém, isto aconteceria por dois motivos: não só pela ação do homem, mas
também porque o próprio homem seria controlado pelo modo atual como o Ser se revela.
Mesmo quando mais vivamente descreve como o homem enquanto sujeito fez a idade
moderna, como forma e domina os fenômenos, Heidegger sublinha que a relação primordial
entre o homem e o Ser repousa perto do homem, ao alcance da mão e solicita ser levado em
consideração.
Esta justaposição simultânea do destino do Ser e do fazer do homem é um dos
fundamentos do pensamento de Heidegger.
Se técnica é determinação ontológica, sendo sua essência, portanto, independente de
cada um dos grupos humanos existentes, o mesmo não se poderia dizer de cada técnica
determinada; elas não poderiam ser compreendidas fora do envio do destino em cada época.
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Talvez seja esta a verdade do indicado por Heidegger ao afirmar que a essência da técnica não
é nada de técnico (cf. HEIDEGGER, 2001: 12-13).
Não sendo a essência da técnica nada de técnico, o controle ético da técnica poderia
passar pelo controle de coisas que não têm nada de técnico, e podem afetar de maneira
inesperada para nós, o sucesso, os limites e a própria condição de possibilidade deste controle.
Se a técnica não for só um instrumento, como ficam as propostas de controle?
Perguntado por Jean Beaufret sobre como reatribuir um sentido à palavra
“humanismo”, Heidegger indaga se isso era necessário, e considerou: “Não há dúvida de que
há muito se desconfia dos ´ismos´. Mas o mercado da opinião pública exige constantemente
novos. E sempre se está disposto a cobrir esta necessidade. Também os nomes como ´Lógica`,
´Ética´, ´Física´ apenas surgem quando o pensar originário chega ao fim.” Heidegger foi um
reconhecido e acatado estudioso da filosofia grega, realizou muitos estudos sobre os filósofos
anteriores a Sócrates. Emmanuel Carneiro Leão, heideggeriano brasileiro, produziu um livro
com o título de Pensadores Originários (LEÃO, 1991) contendo a tradução de fragmentos de
pensadores por ele denominados originários: Anaximandro, Parmênides e Heráclito. Na
introdução deste livro, o autor expressa a necessidade de um questionamento que procure
“pensar o pensamento dos primeiros pensadores gregos” (LEÃO, 1991:7).
Na época, denominada pré-metafísica e provavelmente contemporânea àqueles
pensadores, a língua grega era logos, o dito nesta língua era também “o que em se dizendo se
nomeia”. Uma palavra grega, escutada de maneira grega, nos colocava “imediatamente em
presença da coisa mesma, aí diante de nós, e não primeiro apenas diante de uma simples
significação verbal”(cf. HEIDEGGER, 2006:21). Heráclito e Parmênides, sendo os “maiores”
pensadores, não eram filósofos, pois, “ainda se situavam no acordo com o logos” (cf.
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HEIDEGGER, 2006:23). Após estes tempos pré-metafísicos a questão da essência se torna
viva quando justamente “aquilo por cuja essência se interroga se obscurece, se confunde,
quando ao mesmo tempo a relação do homem para com o que é questionado se torna vacilante
e abalada”. Aí então, a filosofia aparece como techne, como técnica de pensar. Já em Platão, o
pensamento se transforma em techne, subsumindo o verdadeiro pensar, convertido em
metafísica.
Sócrates, Platão e Aristóteles, no dizer de Emmanuel Carneiro Leão, inauguram cisões
históricas; com estes filósofos são inauguradas diferenças que, sendo já em si mesmas
metafísicas, instalam “o domínio da filosofia em toda a História do Ocidente”. (LEÃO,
1991:7). Houve a partir de então uma cisão, vigente até hoje, instituidora de dicotomias, se
pronunciando “pelo ser contra o nada, pela essência contra a aparência, pelo bem contra o mal,
pelo inteligível contra o sensível, pelo permanente contra o mutável, pelo verdadeiro contra o
falso, pelo racional contra o animal, pelo necessário contra o contingente, pelo uno contra o
múltiplo, pela sincronia contra a diacronia” (LEÃO, 1991:7). Mesmo ciente da impertinência
de longas citações, é difícil resistir à tentação de mencionar um longo trecho da obra de
Emmanuel Carneiro Leão, que expressa admiravelmente o que é, para Heidegger e seus
seguidores, a diferença entre os tempos dos pensadores originários e a época metafísica que
prosseguiria até hoje. Estou certo que, após a leitura da citação, o leitor me perdoará.
No século VI a religião, a política e a educação gregas exercem determinada
consciência da poesia e mitologia /.../ denunciando a miopia da consciência vigente, os
primeiros pensadores se lançam a pensar reciprocamente as diferenças de religião e
política, de educação e habilidade, de poesia e mito pela identidade do pensamento,
pensando a compertinência de ser e pensar. Para nós, filhos do petróleo e da técnica,
tardos em pensar, se tornou ainda mais difícil este mistério da identidade numa época
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de poluição e consumo. E por que? Porque temos os ouvidos tão poluídos de ciência e
filosofia, temos olhos tão consumidos pelas utilidades que já não podemos ver o
mistério da pobreza nem ouvir a voz do silêncio no alarido do desenvolvimento /.../ O
pensamento está sempre em tensão: com a consciência, a filosofia, a ciência, a técnica,
o bom senso, a ideologia, o mito, a religião, a arte, consigo mesmo. Em todas suas
tensões o pensamento, sendo um apelo e um desafio de libertação, é logo desprezado.
Pois comparado com a moda, nunca está em voga. Para o desenvolvimento econômico
só contribui com o nada. No mundo dos negócios é um ócio do outro mundo. Na vida do
trabalho não serve para bater um prego. De fato com todos esses propósitos não se
poderia dar melhor demonstração da inutilidade do pensamento. Realmente, pensar é
inútil, caso já esteja decidido o que é útil. Realmente, o pensamento é imprestável caso
já esteja estabelecido que tijolo e cimento armado são mais reais do que o mistério do
ser. Realmente, o pensamento é indesejável, caso já esteja acertado que crescer é
aumentar de tamanho ou subir as séries de uma escala. Realmente, pensar é alienante,
caso já esteja descontado o que é o homem. Realmente, pensar é contraproducente, caso
já esteja resolvido que o coração é apenas uma bomba e o homem, um tubo digestivo
com entrada e saída. (LEÃO, 1991:10).
Saindo de seu elemento, começando a chegar ao fim já em Sócrates e Platão, porém
consumando-se em nossa época, o pensar “compensa esta perda valorizando-se como techne,
como instrumento de formação e, por este motivo, como atividade acadêmica e acabando
como atividade cultural. A Filosofia vai transformar-se em uma técnica de explicação pelas
causas últimas. Não se pensa mais; ocupamo-nos de ´Filosofia´. Na concorrência destas
ocupações elas exibem-se publicamente como ´ísmos´, procurando uma sobrepujar a outra”.
Certamente, algumas correntes filosóficas neopositivistas do século XX, que se
mantêm presentes no XXI, tais como o pragmatismo e a filosofia analítica, poderiam se
considerar acima destas críticas, pois em geral exorcizam a procura da “explicação pelas
causas últimas”, porém, dada a relação destas filosofias com a linguagem e dada sua rendição
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ao dado, ao simplesmente correto, e a ausência de críticas em relação às assim chamadas
tecnologias modernas, em especial as tecnologias da informação, não é difícil, a esta altura de
nossa pesquisa, avaliar a opinião de Heidegger sobre elas.
Como resultado desta pesquisa de iniciação científica, indicamos que Heidegger
desdenharia códigos normativos determinando explicitamente como pessoas comuns,
cientistas e principalmente empresas deveriam agir e como não deveriam agir em relação a
desenvolvimentos e aplicações da técnica moderna. Podemos especular que Heidegger não
consideraria possível ao agir humano contrapor-se frontal e totalmente ao envio do ser,
ignorando ou anulando seus efeitos: o envio do ser tal qual se caracterizaria hoje na técnica
moderna limitaria e até mesmo impossibilitaria o controle ético pretendido sobre seus efeitos e
aplicações.
Heidegger voltou a comentar a questão da técnica em uma famosa entrevista concedida
em 23 de setembro de 1966 a uma revista alemã; essa entrevista veio à luz em 31 de maio de
1976, pois, a pedido do filósofo, só deveria ser publicada após sua morte, ocorrida em 26 de
maio de 1976. Nessa ocasião reafirmou suas posições anteriores: a essência da técnica
moderna seria imposição, controle, disposição; considerou também que nos últimos trinta
anos teria ficado cada vez mais claro que o movimento planetário da técnica moderna era um
poder capaz de determinar a história e que hoje em dia seria uma questão decisiva coordenar
um sistema político com a época técnica atual. Na mesma resposta, Heidegger diz não
conhecer tal sistema político, e não estar convencido que seja a democracia. (cf.
HEIDEGGER, 1996a: 68). Reafirma, ainda nessa entrevista, que a técnica moderna “não é um
instrumento e não tem nada a ver com instrumentos”. Referindo-se a algumas concepções
políticas atuais, Heidegger as qualifica de meia tinta porque por trás delas estaria sempre, a
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seu modo de ver, “a idéia de que a essência da técnica é algo que os homens tem em suas
mãos” e isso, em sua opinião, não seria possível, pois, “a técnica em sua essência é algo que o
homem, por si mesmo, não domina” (cf. HEIDEGGER, 1996a: 69).
Questionado pelo entrevistador sobre a possibilidade do indivíduo, da filosofia, ou de
ambos, influírem neste emaranhado de necessidades inevitáveis, na medida em que a filosofia
leva um ou muitos indivíduos a determinadas ações, Heidegger responde:
Com esta pergunta, voltamos ao começo de nossa conversa. Se me permitir
contestar de maneira breve e talvez um pouco tosca, mas que tem por trás uma
larga reflexão: a filosofia não poderá operar nenhuma mudança imediata no atual
estado de coisas do mundo. Isto vale não só para a filosofia, mas também para
todos os esforços e fazeres meramente humanos. Apenas um deus pode ainda nos
salvar. Vejo a única possibilidade de salvação em preparar com o pensamento e a
poesia, uma disposição para a aparição do deus ou para sua ausência no ocaso.
(cf. HEIDEGGER, 1996a: 69).
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Considerações Finais
Os resultados desta pesquisa de iniciação científica apresentados no item anterior nos
colocam uma situação delicada: se a obra de Heidegger, apesar de sua crítica contundente não
autoriza nenhuma ilusão quanto à possibilidade, viabilidade, ou “eficácia” de controle ético
sobre a técnica moderna, só nos restaria fazer versos, poesias e arte enquanto caminhamos
para a catástrofe? Se as conseqüências da técnica moderna são decorrentes de um envio do ser
ao qual o homem não teria nenhum controle, há apenas que esperar (sentados) outro envio do
ser para que nos salvemos? A resposta às duas perguntas acima, para a maioria dos filósofos
que pensam a técnica moderna e suas conseqüências, é um sonoro não. Mesmo, e
principalmente, se estes pensadores foram influenciados ou foram alunos de Heidegger como,
por exemplo, mas não só, Hans Jonas.
Longe de qualquer juízo negativo sobre as múltiplas leituras da crítica de Heidegger à
técnica moderna em busca de fundamentos filosóficos para uma discussão ética, gostaríamos
apenas de concluir que ao elaborar reflexões e princípios éticos, cada pensador que
compartilha no todo ou em parte as críticas de Heidegger à técnica moderna sobrepõe, mescla,
combina partes da obra heideggeriana com seus próprios valores, esperanças, desejos, pontos
de vista e concepções filosóficas. A nosso ver, eventualmente alguns destes valores,
esperanças, desejos, pontos de vista e concepções filosóficas não só não encontram apoio, mas
se chocam contra boa parte da obra de Heidegger.
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