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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CURSO DE MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL
SID MARQUES FONSECA JUNIOR
A APLICAÇÃO DOS ACORDOS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE COMÉRCIO PELO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO
NATAL/RN 2017
SID MARQUES FONSECA JUNIOR
A APLICAÇÃO DOS ACORDOS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE COMÉRCIO PELO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Doutor Jahyr-Philippe Bichara.
NATAL/RN 2017
SID MARQUES FONSECA JUNIOR
A APLICAÇÃO DOS ACORDOS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE COMÉRCIO PELO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________ Prof. Doutor Jahyr-Philippe Bichara
(Orientador)
_______________________________________ Prof. Doutor Marco Bruno Miranda Clementino
(Membro Interno)
_______________________________________ Prof. Doutor Sébastien Kiwonghi Bizawu
(Membro Externo) Escola Superior Dom Helder Câmara
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Fonseca Junior, Sid Marques.
A aplicação dos acordos da organização mundial de comércio pelo poder judiciário brasileiro / Sid Marques Fonseca Junior. - Natal, 2017.
171f.: il.
Orientador: Prof. Dr. Jahyr-Philippe Bichara.
Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em Direito.
1. Acordos comerciais - Dissertação. 2. Organização Mundial do Comércio
(OMC) - Dissertação. 3. Juiz brasileiro - Dissertação. 4. Acordo antidumping -
Dissertação. 5. General Agreement on Tariffs and Trade (GATT) - Dissertação. I.
Bichara, Jahyr-Philippe. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA CDU 346.93:341.1
Dedico ao meu núcleo familiar: Ana Paula, Bernardo, Ana Julia e Sarah.
AGRADECIMENTOS Toda honra e toda glória ao Autor da vida, Deus, fonte de fé. Quando tudo parecia não ter mais jeito, Ele estendeu a mão. A conquista dessa etapa não teria sido possível sem o auxílio, paciência e orientação do Professor Dr. Jahyr-Philippe Bichara, a quem rendo minha gratidão por proporcionar, com metodologia criteriosa e o exemplo de pesquisador, um ambiente de produção acadêmica. Obrigado, professor, por me fazer acreditar que o meu sonho era possível de realizar. Agradeço à coordenação Profa. Maria dos Remédios Fontes Silva e aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFRN, com os quais mantive contato nas disciplinas e nos seminários, destacando o Prof. Dr. Marco Bruno Miranda Clementino, incentivador da pesquisa, que me proporcionou apresentação conjunta de trabalho em Lisboa e, ainda, por ter aceitado o convite para participar da banca de qualificação. Agradeço ao Professor Dr. Vladimir da Rocha França, por ter aceitado o convite para participar da banca de qualificação, e por ter contribuído na minha formação liberal apresentando-me a obra de Mises, além de ter dedicado seu tempo para contribuir com aprimoramento deste trabalho . Agradeço ao Professor Dr. Sébastien Kiwonghi Bizawu, a aceitação do convite para a Banca examinadora final, contribuindo consubstancialmente para o aprimoramento do presente trabalho. Agradeço à Professora Dra. Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya, por ter participado da banca de qualificação, sempre prestativa e auxiliando com correções precisas para melhorar este trabalho. Ao amigo-irmão, Professor Msc. Rodrigo Ribeiro Vitor, a minha gratidão pelas dicas pontuais e estímulo nos momentos difíceis. Aos demais colegas de turma de mestrado cuja companhia tornou mais suave o árduo período de pesquisa. À colega Luma Diniz Lúcio pela presteza na segunda leitura crítica. Ao meu pai, Sid Marques Fonseca, e à minha mãe, Thelma Câmara Fonseca, aos meus irmãos, Ana Helena, Thiago e Sérgio, à minha sogra, Maria de Lourdes Leão Maia, aos meus cunhados, que suportaram e sentiram a minha ausência quando da dedicação para a realização dessa pesquisa. Aos funcionários das bibliotecas da UFRN e da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que me auxiliaram na pesquisa bibliográfica. Agradeço aos funcionários do PPGD/UFRN, em especial, a Lígia e Igor, que demonstraram presteza para resolução das ações corriqueiras administrativas. Aos mestres da vida, José de Lima Souza e Flavio Roberto Bezerra de Queiroz, Oficiais de Cristo, pelo companheirismo e amizade, que sentiram minha
ausência ao café às tardes.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ALADI – Associação Latino-Americana de Integração
ALCA – Área de Livre Comércio das Américas ou FTAA – Free trade Agreement of the Americas
AMF – Acordo Multifibras sobre produtos têxteis
APEC – Asian Pacific Economic Cooperation
ASEAN – Association of South East Asian Nations
BOP – Balance of Payment Agreement
EFTA – European Free Trade Association
FAO – Food and Agriculture Organization of the Union Nations
FMI – Fundo Monetário Internacional
GATT – General Agreement on Tariffs and Trade
GATS –General Agreement on Trade and Services
GRUPO DE CAIRNS – grupo criado na cidade de Cairns, na Austrália, formado por 20 países exportadores.
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
NAFTA – North American Free Trade
NMF – Princípio da Nação Mais Favorecida
OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou OECD – Organization for Economic Cooperation and Development
OIC – Organização Internacional do Comércio
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OMC – Organização Mundial do Comércio, ou WTO – World Trade Organization
OMPI – Organização Mundial de Propriedade Intelectual, ou WIPO – World Intelectual Property Organization
OMT – Órgão de Monitoramento de Têxteis da OMC
ONG – Organização Não Governamental, ou NGO – Non Governmental Organization
ONU – Organização das Nações Unidas, ou UN – United Nations
OSC – Órgão de Solução de Controvérsias da OMC
PD – Países Desenvolvidos
PMD – Países Menos Desenvolvidos
SGP – Sistema Geral de Preferências
TPRM – Trade Policy Review Mechanism
TRIMS – Trade Related Investment Measures
TRIPs – Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights
UNCTAD – United Nations Conference on Trade and Development
WTO – World Trade Organization, ou OMC – Organização Mundial do Comércio
RESUMO A Organização Mundial do Comércio (OMC), criada pelo Tratado de Marrakesh de 06 de abril de 1994, começou a funcionar em 1º de janeiro de 1995, sucedendo o GATT/1947. Atualmente, consiste no principal foro de discussão do comércio multilateral. A OMC possui em seu organograma dois principais órgãos de execução: um de revisão das políticas comerciais e outro de solução de controvérsias. No contexto internacional, a responsabilidade dos Estados Membros é imposta após a instauração de painel pelo Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), ao final se submetendo às sanções previstas nos acordos da OMC. O Estado brasileiro está sujeito às sanções em caso de descumprimento dessas normas, uma vez que o acordo constitutivo da OMC, seus anexos e os acordos plurilaterais, firmados sob sua égide, foram internalizados a partir do Decreto n. 1.355/1994, vigorando desde o início da organização. Nessa perspectiva, espera-se a adoção de medidas internas pelo Estado, a fim de evitar que as sanções se concretizem. Desse modo, o Poder Executivo realiza a fiscalização e a atuação das normas por meio de órgãos como DECON e CAMEX. Além disso, mediante Decretos, regulamenta a tributação, igualando ou diferenciando dos produtos importados. O Poder Judiciário consiste, quando provocado a rever os atos do Executivo, em mais uma alternativa para enquadrar o país nas normas oriundas da OMC. A pesquisa se propõe a analisar se o Poder Judiciário brasileiro vem aplicando corretamente os dois principais acordos da OMC: o Acordo geral sobre tarifas e comércio (GATT/1994) e o Acordo Antidumping. Os objetivos deste trabalho são descrever o funcionamento, a estrutura e as normas da OMC, explicitar a responsabilização internacional em matéria de direito internacional econômico, especificamente as normas da OMC, e analisar decisões judiciais brasileiras, a fim de averiguar se elas aplicam corretamente as normas da OMC. Palavras-chave: OMC. Juiz brasileiro. Acordos comerciais. Acordo Antidumping. GATT.
ABSTRACT
The World Trade Organization-WTO, created by the Marrakesh Treaty of 06 April 1994, began operating on January 1, 1995, succeeding the GATT / 1947 and is the main forum for discussion of multilateral trade. The WTO has in its organizational chart two main enforcement agencies a review of trade policies and other dispute resolution. In the international context, the responsibility of Member States is imposed after the opening panel by the DSB, the end submitting the sanctions provided for in the WTO agreements. The Brazilian State is subject to penalties for non-compliance with those rules, since the Agreement establishing the WTO, its annexes and plurilateral agreements under its auspices were internalized from Decree n. 1.355 / 1994, in force since the organization. In this perspective, it is expected to adopt internal measures by the state to avoid the penalties are realized. Thus, the Executive Branch carries out the inspection and performance standards through DECON organs, CAMEX, and through Decree regulates the taxation equaling or differentiating of imported products. The judiciary is, when provoked to review the acts of the Executive, in an alternative to frame the country to the rules arising from the WTO. The research aims to analyze whether the Brazilian judiciary is correctly applying the two main WTO agreements, the General Agreement on Tariffs and Trade (GATT / 1994) and the Anti-Dumping Agreement. The objectives are to describe the function, structure and rules of the WTO, explicit international accountability in international economic law, specifically WTO rules, analyze Brazilian judicial decisions in order to ascertain whether they correctly apply WTO rules. Key words: WTO. Brazilian Judge. Trade Treaties. Anti Dumping Agreement.
GATT.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 12
PRIMEIRA PARTE ................................................................................................ 16
AS OBRIGAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO .................................................................................. 16
CAPÍTULO 2. O ESTADO BRASILEIRO NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO ........................................................................................................... 17
Seção 1. Estrutura Institucional e Funcionamento da Omc ......................... 18 § 1º Conferência Ministerial ............................................................................... 19 A) Composição e Competência ......................................................................... 20 B) A trajetória das Conferências Ministeriais de Singapura a Nairóbi ....... 22 § 2º Conselho Geral............................................................................................. 32 A. Órgão de Exame de Políticas Comerciais .................................................. 33 B. Órgão de Solução de Controvérsias ........................................................... 35 § 3º Órgãos Secundários da OMC .................................................................... 37 B. Secretaria ......................................................................................................... 38 Seção 2. Os Principais Acordos Comerciais da OMC ................................... 40 § 2º O Acordo sobre a implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio de 1994 (Acordo Antidumping – ADA) .......................... 44 § 3º O Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias ....................... 46 § 4º O Acordo sobre Agricultura ....................................................................... 47
CAPÍTULO 3. O CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES PELAS INSTÂNCIAS ADMINISTRATIVAS BRASILEIRAS ................................................................... 50
Seção 1. A Legislação Interna de Regulamentação dos Acordos Da OMC ...................................................................................................................51 § 1º Decreto n. 1.355, de 30 de dezembro de 1994 ......................................... 52 § 2º Lei n. 9.019, de 30 de março de 1995 ........................................................ 54 § 3º Decreto n. 8.058 de 26 de julho de 2013 ................................................... 58 Seção 2. Órgãos da União .................................................................................. 59 § 1º A responsabilidade dos Ministérios do Governo Federal brasileiro ... 60 § 2º Órgãos administrativos competentes para fiscalizar o cumprimento dos acordos da OMC .......................................................................................... 63 A. Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) ..................................................... 64 B. Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) .................................................. 66 C. Departamento de Operações de Comércio Exterior (DECEX) ................. 67 D. Departamento de Negociações Internacionais (DEINT) ........................... 68 E. Departamento de Planejamento e Desenvolvimento do Comércio Exterior (DEPLA).................................................................................................. 69 F. Departamento de Defesa Comercial (DECOM) ........................................... 69
CAPÍTULO 4. A RESPONSABILIDADE DO ESTADO BRASILEIRO NA OMC...... .............................................................................................................72
Seção 1. As Regras Gerais da Responsabilidade Internacional ................. 73 § 1º Violação do Direito por omissão ou ação ................................................ 74 § 2º Imputabilidade .............................................................................................. 75 A. Atos internacionalmente ilícitos .................................................................. 76
B. Atos não proibidos causadores de danos.................................................. 77 § 3º Danos ............................................................................................................. 79 Seção 2. A Responsabilidade perante o Órgão de Solução de Controvérsias ...................................................................................................................80 § 1º O Processo na OMC .................................................................................... 81 § 2º Órgão de Apelação ...................................................................................... 86 Seção 3. Sanções ................................................................................................ 89 § 1º Compensações tarifárias e outras medidas ............................................ 90 A. Compensações ............................................................................................... 91 B. Contramedidas ................................................................................................ 93
SEGUNDA PARTE ............................................................................................... 96
O CONTROLE EXERCIDO PELO JUIZ BRASILEIRO NA APLICAÇÃO DOS PRINCIPAIS ACORDOS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO .... 96
CAPÍTULO 5. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA COMPETÊNCIA DO JUIZ BRASILEIRO ................................................................................................ 98
Seção 1. O Controle Jurisdicional sobre o Direito Internacional ................ 99
§ 1º Origem e desenvolvimento do Controle Jurisdicional .......................... 99 § 2º A primazia do Direito Internacional (normas da OMC) sobre o Direito Interno.............................................................................................................101Seção 2. A Competência da Justiça Estadual para aplicar as normas da OMC .................................................................................................................103 § 1º Princípio da Inafastabilidade ................................................................... 105 § 2º Controle de convencionalidade e legalidade dos tratados internacionais..................................................................................................... 106 § 3º A formação técnica dos operadores do Direito no Brasil ................... 108 Seção 3. A Competência do Juiz Federal para aplicar as normas da OMC .................................................................................................................110 § 1º O alcance do Artigo 109, III da Constituição brasileira ....................... 111 § 2º Da necessidade de criação de Varas Especializadas .......................... 113 Seção 4 – As Cortes Domésticas .................................................................... 115 § 1º Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.......................... 115 § 2º Superior Tribunal de Justiça (STJ) ......................................................... 116 § 3º Supremo Tribunal Federal (STF) ............................................................. 117
CAPÍTULO 6. O CONTROLE JURISDICIONAL DO ACORDO GATT ........... 120
Seção 1. Da aplicabilidade do GATT na ordem interna ............................... 121 §1º Origem do GATT ......................................................................................... 121 § 2º Função do GATT de 1994 ......................................................................... 122 § 3º Estrutura do GATT de 1994 ...................................................................... 125 Seção 2. Aplicação pragmática ....................................................................... 126 §1º O Princípio do Tratamento da Nação Mais Favorecida ....................... 127 § 2º O Princípio do Tratamento Nacional....................................................... 129 Seção 3. Casos na Jurisprudência brasileira ............................................... 135 § 1º Casos no STF ............................................................................................. 135 § 2º Casos no STJ.............................................................................................. 136 § 3º Casos nos TJ e TRF .................................................................................. 138
CAPÍTULO 7. O CONTROLE JURISDICIONAL DO ACORDO ANTIDUMPING 140
Seção 1. Considerações sobre o Acordo Antidumping .............................. 141 § 1º Conceito de dumping ................................................................................ 141 A. Conceito econômico .................................................................................... 141 B. Conceito jurídico do dumping .................................................................... 144 C. Definição legal prevista no Acordo da OMC ............................................ 145 § 2º Legislação brasileira sobre medidas antidumping .............................. 146 Seção 2. Decisões acertadas sobre o Dumping ........................................... 149 Seção 3. Decisões não coerentes com o Acordo Antidumping - AAD ..... 151 § 1º Falta de tecnicidade .................................................................................. 152 § 2º Não implementação da revisão judicial prevista no Artigo 13 ........... 154 A. Casos jurisprudenciais referentes a não aplicação do Artigo 13 do acordo antidumping .......................................................................................... 156
8 CONCLUSÃO ................................................................................................... 159
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 163
12
1 INTRODUÇÃO
A Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada através do
Tratado de Marrakesh, celebrado em 15 de abril de 1994, passando a vigorar
em 1º de janeiro de 1995. Esse foi um marco divisor de águas nas relações
comerciais internacionais, uma vez que corrigiu as deficiências do sistema
anterior estipulado pelo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, de 1947
(General Agreement on Tariffs and Trade – GATT).
Com efeito, quando os Estados resolveram fundar uma nova
organização internacional capaz de zelar pelo cumprimento de suas prescrições
e administrar os conflitos entre os membros, criou-se um novo sistema de
condução do comércio multilateral, caracterizado por um maior grau de
segurança jurídica nas transações internacionais. Essa mudança adveio de uma
negociação, denominada rodada do Uruguai, que durou cerca de sete anos e
meio, culminando com a celebração do tratado supracitado.
O multilateralismo é, segundo Dominique Carreau, o mecanismo pelo
qual os problemas internacionais exigem soluções consensuais com base na
liberalização, igualdade e reciprocidade entre uma pluralidade de estados ou
entre todos os estados1.
No sistema GATT, as relações comerciais multilaterais se restringiam às
mercadorias, ao passo que, no sistema OMC, o organismo internacional passou
a cuidar de matérias novas como o comércio internacional dos serviços, os
investimentos relacionados ao comércio e a propriedade intelectual.
Nesse contexto, além do próprio GATT de 1947, agora denominado
GATT de 1994, também fazem parte do sistema OMC o Acordo sobre o
Comércio de Serviços (GATS), do inglês General Agreement on Trade in
Services, o Acordo sobre Propriedade Intelectual, o Acordo sobre Medidas de
Investimentos Relacionados ao Comércio (TRIMS), o Acordo sobre Subsídios,
Acordo sobre Antidumping, dentre outros. Diversos temas foram detalhadamente
alvos de tratados específicos nas searas têxtil, agrícola e de medidas sanitárias
e fitossanitárias.
1 CARREAU, Dominique; JUILLARD, Patrick. Droit international économique. 4. ed. Paris:
Dalloz, 2010. p. 52-54.
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Uma das relevantes inovações trazidas pela OMC diz respeito à criação
do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), que é uma espécie de jurisdição
que recebe as reclamações dos países membros em desfavor de membros que
estejam transgredindo algum dos tratados celebrados no âmbito da aludida
organização.
As Rodadas do GATT/1947 deram lugar às Conferências Ministeriais,
órgão máximo da OMC, cujos poderes plenos incluem o de suspender a
autorização prevista pela conclusão do painel instalado pelo Órgão de Solução
de Controvérsias. Além de admitir novos membros, nessas conferências são
traçados os temas a serem debatidos. Até a presente data, ocorreram dez
Conferências Ministeriais e em todas foram admitidos novos membros, o que
demonstra a expansão da liberalização do comércio mundial.
O Brasil, enquanto membro fundador da OMC, deve seguir as diretrizes
que ali foram postas em razão da regra pacta sunt servanda, o que se firma com
a incorporação desses acordos ao ordenamento jurídico brasileiro, realizado
através do Decreto n. 1.355, de 30 de dezembro de 1994.
A aplicação das regras insculpidas nos acordos travados no âmbito da
Organização independe da corrente adotada pela Constituição ou pelos
aplicadores do Direito, se monista ou dualista, posto que ambas convergem para
o cumprimento da norma internacional internalizada, sob pena de o Estado arcar
com as restrições decorrentes do descumprimento previstas nos próprios
acordos.
Pelo fato de o Brasil ser um Estado de Direito, a observância às normas
não se restringe ao Poder Executivo e Legislativo. A função jurisdicional do
Estado visa não somente à preservação de direitos individuais no âmbito do
processo judicial, mas também ao controle dos atos da administração pública
como mecanismo de defesa contra eventuais abusos decorrentes de atos
discricionários, o que, em respeito ao princípio da separação dos poderes, finda
acontecendo somente no tocante à conformação do ato à norma.
Nesse sentido, no direito brasileiro, todo juiz recebe da Constituição o
poder de zelar pelo seu cumprimento, atuando no controle da efetividade de
quaisquer regras em vigor, incluindo as de direito internacional. Tal fato implica,
sendo esse aspecto muitas vezes esquecido, que a expressão jurisdicional do
Estado deve constituir uma garantia de aplicação das normas internacionais no
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seu território, isto é, da obrigação de cumprir o que foi formalmente pactuado no
plano internacional ou o que é reconhecido internacionalmente como sendo
válido em qualquer ordem jurídica interna, em virtude do alto teor ético valorativo
de uma norma internacional, como aquelas de jus cogens.
O mecanismo de controle jurisdicional interno configura, por outro lado,
aspecto importante da soberania do Estado no exercício do seu poder
jurisdicional, muitas vezes fixado nos tratados internacionais que instauram um
sistema de resolução de controvérsias com o intuito de atrelar à norma
internacional a coercibilidade necessária à sua efetividade. É notadamente o que
revela o princípio geral do prévio esgotamento dos recursos internos, que impõe
que o controle da aplicação do direito internacional pelo Poder Judiciário nacional
seja a primeira jurisdição a ser consultada, constituindo, dessa forma, uma
manifestação do respeito à soberania jurisdicional do Estado-parte em relação a
um tratado.
Em que pese a aplicação do princípio geral do prévio esgotamento dos
recursos internos em questões envolvendo os direitos humanos, na seara do
Direito Internacional Econômico, tal princípio comumente não é exigido, de modo
que nenhum membro da OMC criou objeções quanto à legitimidade de
reclamação no Órgão de Solução de Controvérsias alegando suposta violação
ao princípio do esgotamento de recursos internos.
Todas essas regras reforçam o compromisso assumido perante a
comunidade internacional, para a aplicação do direito internacional no território,
ultrapassadas todas as esferas jurídicas internas. Sendo assim, o que se espera
do Estado jurisdicional é a execução de medidas coercitivas para que o Estado
e os particulares se submetam às normas internacionais postas.
Como regra geral, a Constituição Federal brasileira de 1988, em seu
artigo 21, inciso I, atribui à União os poderes para manter as relações com
Estados Estrangeiros e participar de organizações internacionais. Decorrem
desse dispositivo duas sentenças: a primeira está voltada para quem é dirigida
a titularidade do poder-fazer, in casu, para a União; e a segunda trata da
submissão às normas decorrentes do compromisso assumido pela União na
participação de organizações internacionais, o qual é extensivo aos demais
entes da federação (estados e municípios), de modo que não cabe ao juiz
15
estadual desconhecer o direito posto nas relações internacionais, pois não fica
restrita ao Juízo Federal a proteção do Estado brasileiro.
O controle da aplicação do direito internacional pelo Poder Judiciário
brasileiro está, portanto, inscrito na Constituição, concernente às várias
jurisdições e a todos os graus jurisdicionais. A esse respeito, traz-nos a
Constituição Federal de 1988 duas esferas de manifestação do poder
jurisdicional: uma estadual, decorrente do princípio da inafastabilidade (artigo 5º,
XXXV), e uma federal, nas causas fundadas em tratados (artigo109, III), atuando
como revisor delas o Superior Tribunal de Justiça (STJ), sendo, eventualmente,
apreciada a matéria pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando infringir a
Constituição e incorrer em repercussão geral.
O cerne da questão é saber como o Poder Judiciário brasileiro participa
do controle de efetivação das normas da OMC em seu território. Logo, diante
dos numerosos acordos celebrados no âmbito da OMC e da limitação espaço-
temporal concernente ao mestrado, optou-se pelo estudo dos acordos mais
significativos, dentre os quais se destacam o GATT de 1994 e o Acordo
Antidumping.
O corte epistemológico direcionado a esses acordos justifica-se pela sua
repercussão socioeconômica e pela quantidade excessiva de demandas
judiciais questionando a sua aplicação pelo Poder Executivo, bem como por ter
sido observada durante a pesquisa jurisprudencial a existência de dissonância
de algumas decisões com o disposto no âmbito da OMC.
Em face desse contexto, são objetivos deste trabalho descrever as
obrigações do Estado brasileiro no seio da OMC, para, em sequência, analisar
como ocorre o controle exercido pelos juízes brasileiros, respondendo a hipótese
se estar a desempenhar corretamente, como um mecanismo de prevenção, a
eventual responsabilização do Brasil no plano internacional em caso de
descumprimento desses acordos.
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PRIMEIRA PARTE
AS OBRIGAÇÕES DO ESTADO BRASILEIRO NA ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DO COMÉRCIO
A condição de membro da Organização Mundial do Comércio (OMC)
impõe ao Estado brasileiro obrigações a serem cumpridas com base nos acordos
incorporados ao ordenamento jurídico. A exceção à regra ocorre no caso dos
acordos plurilaterais, os quais somente se direcionam aos membros que os
assinarem.
No primeiro capítulo, é explicado o funcionamento da OMC, incluindo os
destaques da participação do Brasil nos órgãos que compõem a estrutura dessa
Organização, sobressaindo as Conferências Ministeriais, o Conselho Geral, o
Secretariado, os Comitês e os Conselhos. O país tem se projetado mundialmente
em integrar esses órgãos, com elevado número de participação nos casos como
querelante, querelado e terceiro interessado, além de ter inclusive um
embaixador brasileiro ocupando a Direção Geral. A compreensão dos órgãos
diretivos é tida a partir do estatuto da OMC, que destaca a Conferência
Ministerial e o Conselho Geral como órgão supremo e órgão decisório,
respectivamente.
O cumprimento das normas da OMC no plano interno é explorado no
segundo capítulo, no qual são descritas as instâncias administrativas brasileiras
responsáveis pela aplicação, fiscalização e controle das aludidas normas.
Importante deixar claro que, num primeiro momento, cabe ao Poder Executivo
cumpri-las e, em seguida, proporcionar aos particulares nacionais e estrangeiros
as obrigações decorrentes das normas da OMC.
Desse modo, finaliza-se a primeira parte deste trabalho com a
responsabilidade do Estado brasileiro na OMC, informando significativa
mudança no âmbito das organizações relativa às disputas comerciais, com a
criação de um órgão jurídico que confere consequências de caráter punitivo, no
caso, trata-se das retaliações que podem ser praticadas pelo vencedor aos
membros que infringirem as normas pactuadas.
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Capítulo 2. O ESTADO BRASILEIRO NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO
COMÉRCIO
O Estado brasileiro participa da Organização Mundial do Comércio
desde sua fundação. Desse modo, em face da condição de país dependente de
exportações de produtos primários e de país em desenvolvimento, submeter-se
às regras da OMC é vantajoso para o Brasil, que tem a oportunidade de estar
inserido no sistema multilateral do comércio, bem como de gozar de proteção
contra as medidas que inviabilizam ou restringem o comércio, como subsídios
ou antidumping.
Estudar a participação do Brasil na OMC requer o conhecimento prévio
da estrutura institucional e do funcionamento dessa organização. Por essa
razão, descrevem-se os órgãos superiores, os quais se distribuem em órgãos de
direção, administração e processamento e julgamento de casos (painéis2), bem
como os órgãos secundários, que auxiliam os órgãos mencionados.
Ante a vultosa quantidade de acordos, e por questões didáticas, foram
eleitos para verificação de sua aplicação pelo juiz brasileiro os acordos mais
significativos sob a perspectiva do (des)cumprimento pelo Estado brasileiro.
Nesse caso, são julgados os acordos comerciais da OMC descritos na seção 2
deste capítulo, entendidos como os que gozam de maior repercussão
econômica, política e jurídica.
Nessa perspectiva, destacam-se do Estatuto da OMC os seguintes
acordos: o anexo 1 A, que versa sobre o Acordo Geral sobre tarifas e comércio
de1994 (GATT), o Acordo sobre a implementação do artigo VI do acordo GATT
de 1994 (Acordo Antidumping), o Acordo sobre Subsídios e medidas
compensatórias e o Acordo sobre Agricultura, cuja relevância para o Estado
2 A nomenclatura utilizada nos textos originais da OMC inclui duas formas: panel, em inglês, e painel, em espanhol. A tradução literal para o português, painel, conforme explica José Cretella Neto (CRETELA NETO, José. Curso de Direito Internacional Econômico. São Paulo: Saraiva,
2012. p. 439), não reflete o sentido ao qual se propõe, já que o termo “painel” não é utilizado no português com significado de caso jurídico. Nesse sentido, ele cita o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa e o Dicionário Houaiss, que trazem as acepções da palavra painel utilizadas no Brasil, além de mencionar o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa. Ele conclui que houve um falso cognato. Confira o significado no Essential English Dictionary: “panel is a group of people selected for a special purpose, e. to judge a contest […]”. Em uma tradução livre, panel é um grupo de pessoas designadas para um propósito
especial, como julgar uma contestação. Esse significado não consta em nenhum dos dicionários da língua portuguesa.
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brasileiro é notória por impactar as finanças públicas e privadas do país, que é
um dos maiores exportadores agrícolas mundiais.
Seção 1. Estrutura institucional e funcionamento da OMC
A Organização Mundial do Comércio é formada por 162 membros,
configurando-se o principal órgão internacional, cujas normas regulamentam o
comércio internacional com aceitação dos membros. Nesse contexto, estão
inseridas as normas referentes ao comércio de mercadorias e serviços.
A estrutura da OMC engloba a Conferência Ministerial, o Conselho
Geral, os Conselhos e os Comitês, tendo como órgão administrativo e financeiro
a Secretaria, cuja direção é atribuída ao Diretor-Geral.
O funcionamento da OMC ocorre em níveis hierárquicos, sendo o órgão
supremo a Conferência Ministerial, composta pelos Ministros das Relações
Exteriores ou Comércio Internacional, seguida do Conselho Geral, cuja
composição envolve os Embaixadores dos Estados Membros lotados em
Genebra. Os Conselhos e Comitês são formados por técnicos dos países
membros.
A participação do Estado brasileiro vem sendo destacada desde o início
da OMC, tornando-se relevante com a ocupação das primeiras posições nos
casos do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), tanto como demandante
quanto como demandado, ressaltando também a participação do embaixador
brasileiro Roberto Azevedo, que ocupa, desde setembro de 2013, o cargo de
Diretor-geral da OMC.
Destaca-se a participação do Brasil nas Conferências Ministeriais como
conciliador, atuando na formação de grupos3, e no Conselho Geral,
apresentando respostas formuladas pelos comitês e transparência quanto à
3 A título de exemplo, um dos grupos encabeçados pelo Brasil nas Conferências Ministeriais foi o G20+, composto por mais de 20 países que fizeram frente às principais potências econômicas. MOTTA VEIGA, Pedro da. Brazil and the G20 group of developing countries. In: GALLAGHER, Peter; LOW, Patrick; STOLER, Andrew. Managing the challenge of WTO participation. 45 case studies. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. Disponível em:
<http://www.wto.org/english/res_e/booksp_e/casestudies_e/case7_e.htm>. Acesso em: 10 out. 2016.
19
legislação inerente ao comércio exterior, em face da exigência do Órgão Revisor
de Políticas Comerciais. Ainda há a participação brasileira no órgão jurídico da
OMC, o Órgão de Resolução de Controvérsias.
Diferentemente do seu antecessor, o GATT, que era apenas um acordo,
a OMC passa a ser uma pessoa jurídica internacional com poderes coercitivos.
A parte de estrutura física foi absorvida pelo GATT em Genebra. No tocante aos
órgãos que foram criados, passaram a funcionar exclusivamente em Genebra,
não havendo escritórios em outros lugares. As Conferências Ministeriais, no
entanto, acontecem em diversos lugares como forma de privilegiar os Ministros
dos países anfitriões que as presidem e coordenam os trabalhos. Já as
inspeções do Órgão de Exame das Políticas Comerciais ocorrem nos países
membros e são desenvolvidas pelo Conselho Geral.
Em concreto, a OMC pretende que as relações entre países na esfera
da atividade comercial contribuam para: 1) elevar os níveis de vida; 2)
desenvolver o pleno emprego; 3) conseguir um volume considerável e um
aumento constante dos ingressos reais, bem como a demanda efetiva; 4)
aumentar a produção e o comércio de bens e serviços; 5) utilizar de forma
adequada os recursos mundiais e estabelecer elo em conformidade com o
objetivo de um desenvolvimento sustentável, procurando proteger e preservar o
meio ambiente4.
§ 1º Conferência Ministerial
O órgão máximo da OMC responsável pelas decisões é a Conferência
Ministerial, composta por todos os membros com poder de voto igualitário. Tendo
em vista a importância desse órgão, o fato de o Diretor-geral da OMC não possuir
poderes para decidir sobre questões de mérito dos acordos permite à
4 WTO. Acordo constitutivo da OMC. Preâmbulo. Disponível em:
<https://www.wto.org/spanish/docs_s/legal_s/04-wto_s.htm>. Acesso em: 29 fev. 2016.
20
Conferência Ministerial resguardar o firme cumprimento e a adoção de acordos
gerais impositivos a todos os membros.
A respeito desse assunto, o item a seguir descreve a composição e as
atribuições dessa Conferência. Em um segundo momento, em uma narrativa
histórica, expõem-se as propostas e os resultados de cada uma das dez
conferências ocorridas até então, contextualizando-as e demarcando os
resultados mais importantes para os membros e a participação do Brasil nelas.
A) Composição e Competência
Na estrutura da OMC, não há um presidente que a dirija, ou um grupo
de países, diferentemente do que acontece com o FMI, com o Banco Mundial ou
com outras organizações internacionais. Na OMC, todos os seus membros
compõem por meio de representantes a instância máxima denominada de
Conferência Ministerial, na qual cada país membro tem direito a voto,
independentemente do seu tamanho. A tomada de decisão é por consenso,
assim como ocorria no GATT de 19475.
A Conferência Ministerial, segundo o artigo IV, item 1, do Acordo
Constitutivo da Organização Mundial de Comércio, tem competência para
exercer as funções da OMC, adotando as disposições necessárias para tais fins.
Prossegue o referido dispositivo atribuindo como competência da Conferência o
poder de tratar sobre decisão de qualquer dos Acordos comerciais multilaterais.
Outra destacada função está na admissão de novo membro da Organização,
posto que, nos termos do artigo XII, Item 2, do Acordo Constitutivo da OMC, a
decisão sobre a acessão é exceção à regra geral e se fará por maioria de dois
terços dos Membros6.
A periodicidade das Conferências Ministeriais é a cada dois anos, tendo
a primeira ocorrido em Singapura, de 9 a 13 de dezembro de 1996, a segunda
5 O papel do Diretor-geral da OMC é de um coordenador que executa as determinações da Conferência Ministerial e do Conselho Geral. Cf. §3º deste mesmo capítulo. 6 Acordo Constitutivo da OMC, Artigo IV, “1. Estabelecer-se-á uma Conferência Ministerial composta por representantes de todos os Membros que se reunirá ao menos uma vez cada dois anos. A Conferência Ministerial desempenhará as funções da OMC e adotará as disposições necessárias para tais fins. A Conferência Ministerial terá a faculdade de adotar decisões sobre todos os assuntos compreendidos no âmbito de qualquer dos Acordos Comerciais Multilaterais caso assim o solicite um membro em conformidade com o estipulado especificamente em matéria de adoção de decisões no presente Acordo e no Acordo comercial multilateral relevante”.
21
em Genebra, de 18 a 20 de maio de 1998, a terceira em Seattle, de 30 de
novembro a 3 de dezembro de 1999, a quarta em Doha, de 9 a 13 de dezembro
de 2005, a quinta em Cancun, de 10 a 14 de setembro de 2005, a sexta em
Hong Kong, de 13 a 18 de dezembro de 2005, a sétima em Genebra, de 30 de
novembro a 2 de dezembro 2009, a oitava em Genebra, de 15 a 17 de dezembro
de 2011, a nona em Bali, de 3 a 6 de dezembro de 2013, e a décima em Nairóbi,
de 15 a 18 de dezembro de 2015.
Verificando as datas dos eventos acima, observa-se que não foi atendido
o prazo interstício de dois anos entre as conferências em duas ocasiões, na
terceira e na sétima conferência, tendo a primeira sido antecipada em um ano, a
fim de coincidir a data com as comemorações de 50 anos do sistema multilateral.
Por sua vez, na sétima conferência, houve um retardo de quatro anos
em virtude do esfriamento no comércio multilateral à época e do fortalecimento
do comércio regional, a exemplo do MERCOSUL e da União Europeia, ou entre
Grupos econômicos, como, por exemplo, a Parceria Transpacífica7 e as
tratativas entre NAFTA (North American Free Trade Agreement) e União
Europeia, bem como da formação, ainda que informal, do BRICS8.
O Estado Brasileiro, membro fundador, fez-se presente em todas as
conferências, exercendo papel de destaque pelos avanços nas tratativas de
formalização dos acordos referentes ao comércio de bens e serviços. Tal
assertiva é reforçada com a atitude política do embaixador brasileiro Roberto
Azevedo, Diretor-Geral, que conseguiu, coordenando um lento processo,
finalizar o primeiro acordo da OMC, desde a sua criação.
A ideia inicial da criação da OMC, defendida por alguns membros,
segundo Vera Thorstensen, era de que a partir daquela data não seriam
necessárias novas rodadas, “uma vez que a organização estaria capacitada para
analisar todos os temas de seu interesse e iniciar negociações de acordos sobre
eles, desde que houvesse acordos sobre eles”. No entanto, os diversos membros
7 A Parceria Transpacífica (Trans-Pacific Partnership –TPP) consiste em um bloco de 12 nações
que inclui, dentre outros, os Estados Unidos, Austrália e Japão e constitui atualmente uma das grandes ameaças ao comércio multilateral, nas palavras do Diretor-geral Roberto Azevedo em entrevista ao jornal digital Extra, publicado em 13/02/2016. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/ economia/politicas-fiscais-monetarias-estao-no-limite-diz-diretor-geral-da-omc-18665876.html>. Acesso em: 27 fev. 2016. 8 O BRICS, acrônimo que significa as iniciais de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (South Africa), não possui um documento formal, tipo estatuto ou acordo, em que figure sua constituição
formal, embora, os seus integrantes tenham fundado um banco com cotas de cada um deles.
22
da OMC não concordaram com a ideia e “passaram a discutir a questão sempre
com o entendimento de que os custos e os benefícios de cada tema negociado
seriam balanceados, e que ao final do processo, todos poderiam ter ganhos
equivalentes nas atividades do comércio exterior”9.
O relato dos temas tratados nas Conferências Ministeriais está inserido
nas Declarações Ministeriais, que são as inovações normativas e obrigações
decorrentes para os membros. Faz-se necessário conhecer, portanto, quais os
temas escolhidos para as discussões comerciais e o modo como ocorre a
participação do Brasil no processo de negociação.
É possível perceber que em algumas Conferências sequer fora emitida
declaração ministerial. Um dos motivos principais para o impasse deve-se ao
fato de o processo decisório ser o consensual, atribuindo a cada membro o
direito de um voto. Não obstante tal dificuldade, nas mais recentes Conferências,
houve uma retomada das negociações satisfativas, com a finalização do primeiro
acordo desde a fundação da OMC, que foi denominado “Pacote Bali”. O avanço
prosseguiu também com a aprovação da Conferência de Nairóbi, em dezembro
de 2015.
B) A trajetória das Conferências Ministeriais de Singapura a Nairóbi
A primeira Conferência Ministerial ocorreu em Singapura, em dezembro
de 1996, e três pontos podem ser destacados a partir desse evento: a revisão
dos acordos e negociações em curso, um programa de trabalho e a análise do
desenvolvimento do comércio mundial e os seus desafios10.
De acordo com Vera Thorstensen, a declaração constatou que o
crescimento do comércio mundial elevou a remuneração dos trabalhadores,
existindo um compromisso em tornar o sistema multilateral como vetor de
9 THORSTENSEN, Vera. OMC – A Organização Mundial do Comércio: as Regras do Comércio
Internacional e a Nova Rodada de Negociações Multilaterais. 2. ed. São Paulo: Aduaneiras, 2001. p. 406. 10 WTO, sítio da Organização Mundial do comércio. Disponível em: <https://www.wto.org/english/thewto_e/minist_e/min96_e/wtodec_e.htm>. Acesso em: 01 fev. 2016.
23
crescimento e desenvolvimento sustentável, o que contribui para a estabilidade
e segurança nas relações internacionais11.
Os compromissos assumidos, de um modo geral, versam sobre a
liberalização progressiva e a eliminação das tarifas e barreiras não tarifárias no
comércio de bens, a rejeição de todas as formas de protecionismo, o enfoque
para integração dos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos e de
economias em transição dentro do sistema multilateral e o maior nível possível
de transparência12.
Foi tema de discussão a padronização do trabalho, o qual foi remetido
pela Declaração da Conferência à Organização Internacional (OIT), que seria o
foro competente para tal discussão. Segundo Thorstensen, houve uma rejeição
do uso de padrões como forma protecionista, refutando a comparação salarial
feita pelos países em desenvolvimento13.
Depreende-se da Declaração que os ministros reconheceram o papel do
Comitê sobre Acordos regionais, havendo um comprometimento com a primazia
do sistema multilateral, de modo que esses acordos sejam complementares ao
sistema e consistente com suas regras14.
Foi reconhecido o esforço dos países em desenvolvimento em assumir
novos compromissos. Ficou acordado, ainda, um plano de ação para auxílio aos
países menos desenvolvidos (PMD), listando-se por Thorstensen três medidas
a serem adotadas: “acesso livre para melhorar a capacidade de responder as
oportunidades oferecidas pelo sistema de comércio, fortalecimento de condições
para os investimentos e organização de encontros com as agências de
financiamento multilaterais”. A finalidade é auxiliar os PMD a aproveitarem
melhor suas oportunidades de comércio internacional15.
O Comitê sobre comércio e meio ambiente teve seu reconhecimento no
importante papel de coordenação de políticas nacionais de comércio junto com
as de meio ambiente. Houve uma concordância dos ministros, segundo
Thorstensen, no estabelecimento de três grupos de trabalho: “comércio e
11 THORSTENSEN, Vera. Op cit., p. 400. 12 Ibidem, p. 400. 13 Ibidem, p. 400. 14 WTO, Declaração da 1ª Conferência, retirada do sítio da OMC, Disponível em: <https://www.wto.org/english/thew to_e/minist_e/min96_e/wtodec_e.htm>. Acesso em: 01 fev. 2016 15 THORSTENSEN, Vera. Op. cit., p. 401.
24
investimento, comércio e política de concorrência, e transparência nas práticas
de compras governamentais”16.
A segunda Conferência Ministerial, ocorrida em maio de 1998, em
Genebra, foi escolhida para coincidir com a data de 50 anos do sistema
multilateral do comércio, que teve início com o GATT de 1948.
A Declaração Ministerial apontou a rejeição ao uso de qualquer medida
protecionista, ficando acordado que a OMC iria trabalhar em conjunto com o FMI
e o Banco Mundial. No parágrafo 9, estabeleceu que o Conselho Geral dirigirá
um procedimento para assegurar a implementação completa e fiel dos acordos
existentes, preparando-se para a terceira conferência.
No item “b” do parágrafo 9, a Declaração sugere recomendações
relativas aos trabalhos iniciados em Singapura, que são matérias de
investimentos, concorrência, transparência em compras governamentais e
facilitação do Comércio. Nos parágrafos 10 e 11, a Declaração afirma que o
Conselho Geral deveria apresentar um programa de trabalho para a terceira
Conferência Ministerial. Nesse sentido, Thorstensen explica que deveria incluir
a abrangência, estrutura e prazos, com o intuito de iniciá-la e terminá-la
rapidamente e ter como objetivo a realização de um balanço geral de interesse
de todos os membros17.
A terceira Conferência Ministerial, que ocorreu em novembro de 1999,
na cidade de Seattle (EUA), não foi conclusiva em razão do impasse gerado
entre os membros, uma vez que as decisões das conferências sobre as pautas
a serem negociadas devem ser tomadas por consenso e não por maioria, o que
tornam ainda mais exigíveis as obrigações da organização.
Esse impasse serviu para refletir sobre o modelo adotado pela OMC para
firmar acordos, bem como para que se fizessem ajustes, proporcionando
confiança aos países menos desenvolvidos, no intuito de que a abertura de suas
fronteiras não lhes seja prejudicial, fazendo crer que lhes seja facilitado o acesso
ao mercado dos países desenvolvidos.
Algumas matérias, como agricultura, subsídios, antidumping, tiveram
posicionamentos extremados, somadas à movimentação de manifestantes nas
ruas de Seattle, levando ao fracasso da conferência. No discurso da Presidenta
16 Ibidem, p. 402. 17 Ibidem, p. 405.
25
da conferência, Charlene Barshefsky, foi notada a falta de harmonia e inovação
de ideias entre os membros. Além disso, ela ressaltou a incumbência do diretor-
geral em consultar os membros e encontrar caminhos criativos para esse tipo de
impasse18.
A Presidente da Conferência prosseguiu afirmando que as questões
colocadas diante deles são diversas e complexas, de modo que reconhece ser
necessário um processo que tivesse um maior grau de transparência interna e
de inclusão para acomodar uma sociedade maior e mais diversificada. Finalizou
explicando que seria melhor dar uma pausa, realizar consultas mútuas entre os
membros, para encontrar uma mudança criativa na conclusão do acordo19.
A proposição norte-americana de padronização das normas trabalhistas
e meio ambiente foi veemente negada pelos países em desenvolvimento e
países menos desenvolvidos, dentre eles o Brasil.
Para Marcelo Abreu, não é a primeira vez que o protagonismo da
política interna norte-americana implica indesejável resultado para o sistema
multilateral de comércio, relembrando assim que em 1948 não foi ratificado pelo
Congresso dos EUA o acordo que criou a Organização Internacional do
Comércio 20.
Tal opinião também é verificada no relatório do Ministério da Economia,
Comércio e Indústria do Japão, numa tradução livre: “Alguns são da opinião que
o país presidente da mesa, os Estados Unidos, não conseguiu exercer liderança
suficiente, e que alguns países estavam muito intransigentes nas
negociações”21.
18 “Con el tiempo hemos visto que las diferencias de opinión se mantenían y no sería posible superarlas rápidamente. Llegamos a una conclusión común, compartida por el Director General [de la OMC], los presidentes y copresidentes de los grupos de trabajo y los Miembros en general, que lo mejor sería abrir un intermedio, consultarnos mutuamente y encontrar medios originales para terminar el trabajo”. WTO, Sítio da OMC. Disponível em:
<https://www.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/min99_s/spanish / about_s/resum03_s.htm>. Acesso em: 02 fev. 2016. 19 Ibidem. 20 ABREU, Marcelo de Paiva. OMC, baderna e paroquialismo dos EUA. O Estado de São Paulo.
23/12/1999. 21 “Some are also of the opinion that chair country of the meeting, the United States, failed to exert sufficient leadership, and that some countries were too uncompromising in the discussions of the Ministerial Declaration.” Relatório do Ministério da economia, comércio e indústria do
Japão, Capítulo 17. Disponível em: <http://www.meti.go.jp/english/report/downloadfiles/gCT0017e.pdf>. Acesso em: 01 fev. 2016.
26
A quarta Conferência Ministerial ocorreu em novembro de 2001, em
Doha, no Qatar, e quase foi adiada ante a possível não participação norte-
americana, em razão de ameaças de ataque terrorista. No tocante ao seu
conteúdo, deixou de lado o tema da agricultura, cujo desfecho teria o mesmo
impasse ocorrido na Conferência anterior, incorporando temas não controversos,
tais como o acesso ao mercado de produtos não agrícolas, os direitos de
propriedade intelectual e a facilitação do comércio.
A Declaração Ministerial de Doha expõe que os membros se
comprometem em realizar negociações abrangentes visando: melhorias
substanciais no acesso aos mercados; reduções, com vistas à eliminação
gradual, de todas as formas de subsídios à exportação; e reduções substanciais
no apoio doméstico distorcido ao comércio22.
Sabendo-se que a repetição do fracasso levaria ao descrédito do
sistema multilateral do comércio, foi determinada uma dilação no prazo para a
conclusão do programa do trabalho, passando-se a ter uma rodada denominada
de Rodada Doha sobre a agricultura cuja conclusão ocorreu em dezembro de
2013 na 9ª Conferência Ministerial.
Em Doha, foram aprovadas decisões sobre temas e preocupações
relacionadas à implementação (Implemetation-Related Issues and Concerns);
Declaração sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública (Declaration on the Trips
Agreement and Public Health).
Contudo, diante da necessidade de os países menos desenvolvidos
terem acesso ao mercado, é retomada a pauta da agricultura, lançando
esperanças para sua concretização. A Declaração ressalta o compromisso de os
membros realizarem negociações com o objetivo de “mejoras sustanciales del
acceso a los mercados; reducciones de todas las formas de subvenciones a la
exportación, con miras a su remoción progresiva; y reducciones sustanciales de
la ayuda interna causante de distorsión del comercio”23.
Destaca Rabih Ali Nasser, sobre a Rodada Doha, que “os países
assumem apenas a obrigação de negociar esses temas, sem se comprometer
22 WTO, Declaração Ministerial de Doha 2001. Sítio da OMC. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/min01_s/min01_s.htm>. Acesso em: 03 fev. 2016 23 Ibidem.
27
com resultados”24, de modo que a ausência desse compromisso com resultados
fez com que a rodada Doha se estendesse até 2013, finalizando-a na 9ª
conferência ministerial em Bali.
A quinta Conferência Ministerial foi realizada em dezembro de 2003, em
Cancun, no México. O momento histórico internacional, do pós-ataque terrorista
de 11 de setembro de 2001, retraiu de modo geral as relações internacionais,
sendo apresentado pelas nações desenvolvidas um forte incentivo às suas
produções internas, o que resultou no fracasso tanto nas questões suscitadas
na presente Conferência como nas anteriores. Nesse contexto, eram esperadas
duas decisões, conforme aponta Amado Luiz Cervo.
O primeiro tema focou no comércio de produtos agrícolas, agendado na
rodada DOHA, de 2001, já o segundo tema, previsto na Conferência Ministerial
de Singapura de 1996, versa sobre a sujeição de investimentos, concorrência,
compras governamentais e facilitações das trocas às regras do próprio comércio
internacional25.
Nessa Conferência Ministerial, foi formado o Grupo de 21 países
capitaneados pela China, Índia e Brasil, para fazer frente ao discurso dos países
desenvolvidos, especialmente à proposta da União Europeia e dos Estados
Unidos, de modo que não houve resultados, culminando em um impasse que
impediu a conclusão dos trabalhos, o que foi emitido numa nota em meados de
200426.
A sexta Conferência Ministerial da OMC ocorreu em Hong Kong, em
2005, e conforme a pauta predefinida, objetivava acordos em questões relativas
à agricultura, aos subsídios, ao setor têxtil, às barreiras técnicas ao comércio e
às medidas em matéria de investimentos relacionadas com o comércio.
Em razão do insucesso da Conferência anterior, em Cancun, a OMC
estava passando por um momento decisivo, da mesma forma que o sistema
multilateral de comércio, a fim de consolidar-se como foro viável para
24 NASSER, Rabih Ali. A OMC e os Países em Desenvolvimento. São Paulo: Aduaneiras. 2003. p. 268. 25 CERVO, Amado Luiz. Um balanço da reunião da OMC em Cancun. Meridiano 47 - Journal of Global Studies, [S.l.], v. 4, n. 38-39, p. 1-3, out. 203. ISSN 1518-1219 Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/4271>. Acesso em: 29 fev. 2016. 26 WTO, sítio eletrônico. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/min03_s/min03_s.htm>. Acesso em: 29 fev. 2016.
28
regulamentação do comércio global. Essa foi uma das razões para que os
principais atores propusessem passos que serviriam para a retomada de
negociações no SMC, razão pela qual foram determinados prazos para
demonstrar pragmaticidade e resultado dos acordos firmados durante a
Conferência. Ela deu um avanço significativo na questão dos subsídios
agrícolas, dando passos concretos para o fim dessa prática e estipulando ações
e datas27.
A data prevista para uma redução substancial dos subsídios à
exportação de produtos agrícolas era o ano de 2010, sendo o prazo limite para
sua completa extinção o ano de 2013. Contudo, não foi o que ocorreu, o que
gerou certo descrédito e enfraquecimento da OMC28.
A sétima Conferência Ministerial acontecida em Genebra, no ano de
2009, fracassou nas negociações da retomada da pauta da Rodada Doha. Os
países desenvolvidos não externaram o compromisso firmado de redução dos
subsídios. O contexto histórico da crise econômica que surgiu nos Estados
Unidos e atingiu os demais países foi um dos fatores que impediram o
cumprimento da agenda da OMC, com uma pauta de liberalização.
Sem Declaração Ministerial, não houve progresso na conferência.
Analisando-a, Steffen Grammiling afirma: “o principal objetivo da Sétima
Conferência Ministerial da OMC foi permitir aos ministros discutir, analisar e
fornecer orientações sobre todas as atividades da OMC. Assim, para a
Conferência foi dado o amplo título de ‘A OMC, o sistema multilateral de
comércio e o ambiente econômico global atual’”29.
Muitos membros reafirmaram o seu compromisso de concluírem a
rodada Doha em 2010, mas o fato de estarem todos presos às suas posições
arraigadas causou impasse na negociação. O Ministro Celso Amorim declarou
que seria “irrazoável esperar que a conclusão da Rodada envolveria concessões
unilaterais adicionais de países em desenvolvimento”30.
27 WTO, Declaração Ministerial de Hong Kong, 18/03/2005. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/min05_s/final_text_s.htm>. Acesso em: 03 fev. 2016. 28 Ibidem. 29 GRAMMLING, Steffen. The Seventh WTO Ministerial Conference: a “housekeeping” exercise in Dialogue on Globalization; December, 2009. Disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/genf/06930.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2016. p. 2 30 WTO. Sétima Conferência Ministerial. Disponível em: <https://w. ww.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/min09_s/min09_s.htm>. Acesso em: 19 fev. 2016.
29
A oitava Conferência Ministerial foi realizada na cidade de Genebra, em
dezembro de 2011, ainda dentro do contexto histórico de crise econômica,
sentida na maioria dos países desenvolvidos, semelhante à conferência anterior.
De modo geral, deixa de avançar no Programa de Desenvolvimento de Doha,
estando pendente desde 2001.
No entanto, a Conferência traz inovação com a aprovação de novas
matérias, como propriedade intelectual, comércio eletrônico, revisões de
políticas comerciais, havendo ainda a ampliação da moratória sobre o Acordo
TRIPS de não violação e situação de queixas; a decisão por um programa de
trabalho sobre as pequenas economias; uma ampliação no período de transição
para os países menos desenvolvidos; a adesão de países menos desenvolvidos
à Organização; e o tratamento preferencial aos serviços e prestadores de
serviços de países menos desenvolvidos31.
A Conferência admitiu como novos membros da OMC três países, a
saber: Rússia, Montenegro e Samoa, destacando-se entre eles a Rússia, a
última grande economia que ainda não fazia parte da OMC32.
A nona Conferência Ministerial ocorreu em Bali, na Indonésia. Aprazada
para os dias 3 a 5 de dezembro de 2013, foi prorrogada para mais um dia,
quando foi finalizado o Programa para o Desenvolvimento firmado em Doha, em
2001. O Ministro das Relações Exteriores Luís Alberto Figueiredo participou
como representante do Estado brasileiro e narrou que o impasse do acordo girou
em torno da Índia e dos EUA para finalizar o texto do pacote de Bali33.
Com um texto aberto, o denominado Pacote de Bali foi um marco na
OMC, posto que finalizou o primeiro grande acordo desde a sua inauguração em
1995. Tal fato foi possível devido ao tripé formado pelo Diretor-geral, Roberto
Azevedo, pelo país anfitrião e pelo presidente da conferência, Gita Wirjawan,
Ministro do Comércio da Indonésia.
O ambiente onde se instalou a conferência trouxe o renascimento da
política econômica multilateral e o crédito de que, quanto aos países em
desenvolvimento, vale a pena participar e praticar as normas acordadas no
31 WTO. Oitava Conferência Ministerial. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s /minist_s/min11_s/min11_s.htm>. Acesso em: 19 fev. 2016. 32 Ibidem. 33 BRASIL. ITAMARATY. Disponível em: <www.itamaraty.gov.br>. Acesso em: 29 fev. 2016.
30
âmbito da OMC. Atualmente, o pacote de Bali já foi ratificado por três países:
Estados Unidos, Indonésia e Singapura. No Brasil, foi encaminhado pela
Presidente da República ao Congresso o projeto de Lei que incorpora ao estatuto
da OMC o acordo firmado em Bali. O processo foi aprovado no plenário da
Câmara, tendo sido encaminhado para o Senado, que aguarda a votação34.
O Pacote de Bali é um acordo abrangente de facilitação do comércio
global por meio da redução das barreiras comerciais. Nele, incluem-se temas
sensíveis, como a agricultura, e temas gerais relacionados ao comércio e ao
desenvolvimento.
Em relação ao tema de facilitação de comércio, o foco é simplificar
procedimentos aduaneiros (incluindo liberação, despacho e trânsito de
mercadorias) através da redução de custos, maximização de eficiência e
velocidade, abrangendo praticamente todos os produtos, desde matérias-primas
a serviços financeiros e telecomunicações. No que concerne à assistência a
países em desenvolvimento, avançou-se em prospectos de medidas voltadas
para a melhoria na infraestrutura, treinamento de funcionários alfandegários,
além de previsão de ajudas de custo na implementação de acordos35.
A décima Conferência Ministerial aconteceu em Nairóbi, no Quênia, em
dezembro de 2015, avançando na liberalização do comércio. A revista Valor
Econômico aponta que a OMC vinha sendo pouco prestigiada em razão da
proliferação de acordos bilaterais e da iniciativa dos mega acordos
transregionais. Visando manter-se influente no cenário do comércio internacional
e fugir da insignificância, as decisões serviram para revigorar a organização36.
A delegação brasileira, chefiada pelo Ministro Mauro Vieira, externa que
foram positivos para o país os resultados37. Segundo a Declaração Ministerial da
34 Brasil. Projeto de Decreto Legislativo n. 244/2015. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2017939>. Acesso em: 19 fev. 2016 35 WTO. Pacote de Bali. Disponível em:
<https://www.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/mc9_s/balipackage_s.htm>. Acesso em: 19 fev. 2016. 36 VALOR ECONÔMICO. Opinião. Rota da diplomacia comercial brasileira começa a mudar. Disponível em: <http://www.valor.com.br/opiniao/4368516/rota-da-diplomacia-comercial-brasileira-comeca-mudar>. Acesso em: 23 dez. 2015. 37 BRASIL. Itamaraty. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/index.php?option=com_ content&view=article&id=12765:resultados-da-x-conferencia-ministerial-da-organizacao-mundial-do-comercio-nairobi-15-a-18-de-dezembro-de-2015&catid=42&lang=pt-BR&Itemid=280>. Acesso em: 20 fev. de 2016.
31
décima Conferência e o Pacote de Nairóbi, os pontos principais acordados são:
a proibição imediata de conceder subsídios à exportação de produtos agrícolas
por países desenvolvidos e, em três anos, por países em desenvolvimento, com
algumas exceções38.
O pacote define disciplina de financiamento das exportações de
produtos agrícolas com apoio oficial, que passam a estar limitadas a 18 meses
de prazo, de modo a evitar distorções nas exportações por meio de crédito
subsidiado. Prevê ainda uma obrigatoriedade de equilíbrio de longo prazo no
seguro de crédito para produtos agrícolas e de cobrar prêmios proporcionais ao
risco, de forma que os produtos agrícolas não ganhem competitividade com base
no poder dos tesouros públicos39.
Regulamenta ainda situações para evitar que empresas estatais
exportadoras de produtos agrícolas concedam subsídios disfarçados, propondo
um programa de trabalho para desenvolvê-las, bem como para evitar que a ajuda
alimentar distorça a concorrência e afete os mercados locais dos países para
onde segue o auxílio. O pacote prevê disciplinas sobre regras de origem para
mecanismos de preferência tarifária em favor de países de menor
desenvolvimento relativo40.
O Pacote de Nairóbi prolonga a “waiver” que permite a concessão de
preferências no comércio de serviços para os países de menor desenvolvimento
relativo. Prevê também a extensão da moratória sobre a cobrança de tarifas no
comércio eletrônico, além do prolongamento da moratória de abertura de
controvérsias, denominada de “não violação” na área da propriedade intelectual.
Atribui um “waiver” para países de menor desenvolvimento relativo na
implementação de certos dispositivos do Acordo de Direitos de Propriedade
Intelectual relacionados ao Comércio da OMC41.
38 WTO. Pacote de Nairóbi. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s/minist_s/mc10_s /nairobipackage_s.htm>. Acesso em: 20 fev. 2016. 39 ITAMARATY, Op. cit. 40 WTO. Op. cit. 41 Pelo glossário do sítio eletrônico da OMC, define-se o termo “waiver” como uma permissão
garantida pela OMC para que os membros não sejam obrigados aos acordos. Tem tempo limitado e sua prorrogação deve ser justificada. Disponível em: <https://www.wto.org/english/thewto_e/glossary_e/waiver_e.htmplywithnormalcommitments>. Acesso em: 20 fev. 2016.
32
Constata-se que o Brasil como participante das Conferências
Ministeriais consentiu para todos os acordos firmados, gerando as Declarações
Ministeriais, ficando, assim, obrigado a submeter-se a estes. Não apenas pelo
princípio do pacta sunt servanda, mas também pelo disposto no acordo
constitutivo da OMC, pelo qual ficam todos os membros submissos às decisões
tomadas pelas Conferências Ministeriais.
§ 2º Conselho Geral
O Estatuto da OMC prevê no artigo IV, item 2, na sua estrutura
organizacional, o Conselho Geral, órgão imediatamente abaixo da Conferência
Ministerial. Trata-se de um órgão decisório de mais alto nível da OMC, sendo
formado geralmente por embaixadores de todos os países membros. Suas
reuniões são periódicas para desempenhar as funções da OMC, tendo a
faculdade de atuar na representação da Conferência Ministerial que se reúne
unicamente uma vez a cada dois anos. Atualmente, o Presidente é o embaixador
mexicano Fernando de Mateo42.
O Conselho Geral assume duas principais funções, como destaca
Bernard Hoekman, ao fazer uma descrição do disposto no estatuto. Além disso,
aponta alguns de seus membros para formarem o Órgão de Solução de
Controvérsias e o Órgão de Exame de Políticas Comerciais dos países
membros43.
As reuniões do Conselho Geral servem para executar os temas definidos
nas Conferências Ministeriais e garantir a aplicação do que foi decidido e
transformado em acordo. Assim, o papel de órgão de exame de políticas
comerciais deve ser preventivo e o do Órgão de solução de controvérsias deve
ser no sentido de remediar transgressões.
42 WTO. O Conselho Geral da OMC. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s/ gcounc_s/gcounc_shtm>. Acesso em: 19 fev. 2016 43 HOEKMAN, Bernard. The WTO: functions and basic principles. In: HOEKMAN, Bernard;
MATTOO, Aaditya; ENGLISH, Philip. Editors. Washington: The World Bank, 2002. p. 47.
33
A. Órgão de Exame de Políticas Comerciais
A Rodada Uruguai criou em 1988 a prática de exames das políticas
comerciais de cada membro. Segundo Vera Thorstensen, as primeiras revisões
foram apresentadas já no ano seguinte, em 1989. O Acordo Constitutivo da
OMC, no artigo 3, parágrafo 4, manteve a prática, estabelecendo o mecanismo
de exame de políticas e atribuindo ao Conselho Geral, no artigo 4, item 4, a
competência para exercer as funções do Órgão revisor44.
No anexo 3 do referido acordo, consta a regulamentação do mecanismo
de exame de políticas comerciais, cujo objetivo é “contribuir para a melhor
adesão dos membros às regras, disciplinas e compromissos assumidos”, bem
como aperfeiçoar o sistema multilateral do comércio.
O princípio da transparência torna-se destaque no objetivo, quando
permite ao exame de políticas comerciais o conhecimento coletivo e regular do
conjunto das políticas comerciais de cada Membro e de seu impacto sobre o
funcionamento do sistema multilateral de comércio.
Destaca o texto do anexo 3 que os relatórios não objetivam servir de
base para o cumprimento de obrigações específicas estabelecidas pelos
acordos, ou como base do procedimento de solução de controvérsias. Desse
modo, fica compreendido que a revisão serve a um objetivo de transparência
coletiva.
A periodicidade do exame é dividida em três faixas de países, cujo
critério utilizado é o da participação de cada membro no comércio internacional,
de modo que os quatro primeiros membros são avaliados a cada dois anos e os
dezesseis maiores membros seguintes aos primeiros, grupo que inclui o Brasil,
são examinados a cada quatro anos, e os demais membros, de seis em seis
anos45.
Já ocorreram seis revisões da política comercial brasileira, encerrando-
se a última no final de junho de 2013. O processo de revisão ocorrido durante
dois dias envolveu cerca de 800 questões formuladas por representantes de 43
44 THORSTENSEN, Vera. Op. cit., p. 389. 45 WTO. Acordo da OMC. Anexo 3, Item II.
34
delegações sobre temas como desempenho macroeconômico, infraestrutura,
defesa comercial, tributação e licenciamento de importações46.
Em relatório de conclusão, os membros integrantes do Órgão que
compareceram ao país teceram elogios ao desempenho econômico do Brasil,
tendo sido destacado o modo de enfrentamento da crise econômica
internacional. Restaram reconhecidos os avanços na diversificação do comércio
exterior e o potencial de desenvolvimento do país47. Para o período
compreendido entre 2009 e 2013, foi percebida uma melhoria nos indicadores
sociais, em face das políticas públicas de combate à pobreza e redução da
desigualdade e do desemprego. Tal análise não está se repetindo no momento
atual, ante a crise política e econômica vivenciada em 2015. O governo brasileiro
fez mudanças na sua política externa para tentar reverter o quadro de crise
econômica48.
Em que pesem os elogios, houve questionamentos em algumas áreas
da política comercial brasileira, bem como solicitação de aperfeiçoamentos para
evitar o protecionismo e elevar a transparência e previsibilidade das medidas
internas, com destaque para: tarifas e outros encargos que afetam as
importações; procedimentos aduaneiros e licenciamento de importações;
mecanismos de estímulo e programas de crédito; compras governamentais;
propriedade intelectual; agricultura; investimentos e serviços49.
A valorização ao princípio da transparência, um dos pilares do sistema
multilateral do comércio, pode ser vista no compromisso de o Estado brasileiro,
ao fornecer reduções de imposto sobre produtos industrializados (IPI), atuar
mediante ampla divulgação, sem subterfúgios. Ainda assim, não deixou de ser
alvo de queixa no Órgão de Solução de Controvérsias pelos países membros
46 ITAMARATY. Sítio Eletrônico. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/index.php?option =comcontent&view=article&id=3479:revisao-da-politica-comercial-do-brasil-na-omc&catid=42&lang= pt-BR&Itemid=280>. Acesso em: 25 fev. 2016. 47 WTO. Observações formuladas pelo Presidente do órgão de exame das políticas comerciais no Brasil em 2013, a título de conclusão. Disponível em: <https://www.wto.org/english/tratop_e/tpr_e/tp383_crc_e.htm>. Acesso em: 25 fev. 2016. 48 Jornal Valor Econômico. Opinião. Rota da diplomacia comercial brasileira começa a mudar.
Op. cit. 49 ITAMARATY. Sítio eletrônico: <http://www.itamaraty.gov.br/index.php?option=com_content& view=article&id=3479:revisao-da-politica-comercial-do-brasil-na-omc&catid=42&lang=pt-BR&Itemid=280>. Acesso em: 25 fev. 2016.
35
que tiveram prejuízos em investimentos nos setores de automóveis, indústria
eletrônica e tecnológica e zona de livre comércio50.
B. O Órgão de Solução de Controvérsias
A criação do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) na Organização
Mundial do Comércio é um dos grandes avanços em relação ao acordo
GATT/1947, cujos conflitos eram solucionados somente por meio de consenso.
Em outras palavras, não era um órgão que de fato solucionava as controvérsias
com imposição de medidas sancionatórias, caso lhe fossem necessárias.
O Órgão de Solução de Controvérsias, nas palavras de Vera
Thorstensen, pode ser considerado como o tribunal da OMC, segundo o qual há
muito vem sendo expresso que a OMC passou a ter “dentes”, o que aludiria
também à “espada de Themis”, por meio da qual o direito aplica a coerção
quando é necessário o uso da força para garantir o cumprimento de suas
normas51.
O OSC integra o mecanismo de Solução de Controvérsias do qual
também faz parte o Órgão de Apelação52, que aprecia os recursos às decisões
dos Painéis. É reconhecido o avanço, no cenário internacional, no
processamento e julgamento dos casos, pois até então a figura do Direito
Internacional era tida como não exigível, contudo, quando um Estado fica
submetido às sanções53 impostas pelo vencedor, observa-se a força coercitiva
que se dá mediante retaliação. Uma das formas dessa retaliação pode ser a
suspensão de benefícios ao Estado vencido, até que cesse o descumprimento
das regras do sistema multilateral54.
A finalidade primordial buscada através do Órgão de Solução de
Controvérsias é, conforme seu próprio nome, a resolução de disputa entre
membros, e não a de efetuar uma punição, tanto é que, porventura o Estado
50 A ser aprofundado no tópico a seguir. WTO. Solução de Controvérsias. DS 472. Disponível
em: <https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds472_e.htm>. Acesso em: 25 fev. 2016. 51 Acepção “Tribunal da OMC” atribuída a Vera Thorstensen (THORSTENSEN, Vera. Op. cit. p. 371). Sobre “os dentes da OMC”, Cf. MORA, Miquel Montana I. A GATT with teeth: law wins over politics in the resolution of international trade disputes. Columbia Journal of Transnational Law,
v. 31, n. 1, p. 103-180, 1993. 52 Sobre o Órgão de Apelação, ver Capítulo 4, Seção 2, §3. 53 Sobre as sanções da OMC contra os membros que as descumprem, cf. capítulo 3, seção 3. 54 THORTENSEN, Vera. Op. cit., p. 371.
36
demandado venha a abster-se de continuar com o comportamento questionado
perante a OSC, terá por finda a disputa e será encerrado o painel.
O Órgão de Solução de Controvérsias adota o sistema de consenso
negativo, que implica afirmar que, para uma decisão de um painel vir a ter
validade, ela precisa ser consensuada por todos os membros, devendo sua
rejeição ser feita também em consenso por todos. Em nota explicativa, esclarece
que o OSC decidirá por consenso negativo, inclusive pelo estado que apresentou
a queixa, o que resta quase impossível, não tendo ocorrido tal episódio desde a
criação da OMC.
Segundo ressalta Vera Thorstensen, a atividade de maior relevância do
OSC é a de supervisionar os trabalhos dos painéis e do Órgão de Apelação. Os
membros ficam cientes do andamento dos trabalhos durante as reuniões do OSC
através dos membros que são os integrantes dos painéis55.
A periodicidade das reuniões do OSC fica em torno de uma vez por mês,
segundo consta no acordo, sendo que em 2015 o lapso entre as reuniões foi de
dois meses. Já o item 1, do artigo 2º, expõe as atribuições do OSC, sendo elas:
o estabelecimento de casos (panels), o acatamento de relatórios destes e do
Órgão de Apelação (OA), a supervisão da aplicação das decisões e
recomendações e a autoridade para suspender as concessões e outras
obrigações abrangidas pelos acordos.
O número de integrantes do OSC inclui todos os membros, mas para o
painel são eleitos entre 3 e 5 membros, excluindo-se o País Membro querelante
e o querelado. Não existindo consenso na escolha dos membros do painel,
passa a ser atribuição do Diretor-geral a designação destes. A execução será
realizada pelo país vencedor, que aplicará, mediante autorização do Conselho
Geral, sanções que podem chegar à elevação de tarifas em desfavor do país
perdedor56.
O Conselho Geral também formará um Órgão revisor das decisões
denominado Órgão de Apelação57. O Entendimento de Solução de Controvérsias
aponta inicialmente uma fase denominada de consultas, antes da instalação do
caso (panel). Posteriormente, com o painel sendo aberto, tem-se a todo o
55 THORSTENSEN, Vera. Op. cit., p. 378. 56 Sobre sanções na OMC, cf. o capítulo 4. 57 Sobre o processo no órgão de solução de controvérsias e a apelação, cf. capítulo 3.
37
instante a possibilidade de encerramento do caso facultado ao Estado que sofreu
a queixa, deixando de realizar os atos que estejam em desacordo com os
princípios e normas do sistema multilateral de comércio.
A participação do Estado brasileiro ocorre com 27 processos como
demandante, 16 processos como demandado e 99 processos como terceiro
interessado58. Segundo Roberto Azevedo, “o compromisso do Brasil com o
multilateralismo e contra o unilateralismo fica mais evidente quando o país
submete suas disputas às regras do sistema multilateral”59.
§ 3º Órgãos Secundários da OMC
A composição da OMC completa-se somando à Conferência Ministerial e
ao Conselho Geral vários órgãos auxiliares, cujas competências incidem
precipuamente no conhecimento técnico das matérias às quais se dedicam.
Encontra-se nesse patamar a Secretaria da OMC, cujo papel de coordenação
auxilia sobremaneira nos trabalhos dos Estados membros da organização.
A. Comitês e Conselhos
Subordinados à Conferência Ministerial e ao Conselho Geral, os Comitês
e Conselhos são divididos por temas e integrados pelos auxiliares dos
embaixadores dos Países Membros em Genebra, conforme o Organograma
disponibilizado no sítio da OMC: Órgãos Comitês de Comércio e Meio Ambiente,
e Comitê de Comércio e Desenvolvimento. Neste, encontram-se o subcomitê de
países menos desenvolvidos; o Comitê de Acordos Comerciais Regionais; o
Comitê de Restrição por Balança de pagamentos; o Comitê de Assuntos
Orçamentários, Financeiros e Administrativos, havendo ainda os Grupos de
Trabalho sobre Adesões; Comércio, Dívidas e Finanças; Comércio e
58WTO. Site oficial. Disponível em: <https://www.wto.org/english/thewto_e/countries_e/brazil_e.htm>. Acesso em: 03 dez. 2016. 59 AZEVEDO, Roberto Carvalho; RIBEIRO, Haroldo de Macedo. O Brasil e o mecanismo de Solução de Controvérsias na OMC. In: LIMA, Maria Lúcia L. M. Pádua; ROSENBERG, Bárbara (Org.). O Brasil e o Contencioso na OMC. Tomo I. São Paulo: Saraiva, 2009.
38
Transferência de Tecnologia. Todos esses órgãos são diretamente vinculados
ao Conselho Geral60.
Há o Conselho do Comércio de Mercadorias, ao qual se submetem os
Comitês de Acesso aos Mercados, Agricultura, Medidas Sanitárias e
Fitossanitárias, Barreiras Técnicas ao Comércio, Subsídios e Medidas
Compensatórias, Práticas Antidumping, Valoração Aduaneira, Regras de
Origem, Licenças de Importação, Medidas de Investimento relacionadas com o
Comércio, Salvaguardas e o Grupo de Trabalho sobre Empresas Estatais61.
Foi criado também o Conselho do Comércio de Serviços, que tem sob
sua responsabilidade dois Comitês: um de Comércio de Serviços Financeiros e
outro de Compromissos Específicos, bem como dois Grupos de Trabalho sobre
a regulamentação nacional e as normas do Acordo Geral sobre Comércio e
Serviços62.
Complementa-se a estrutura organizacional com o Conselho dos
Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio
e com os acordos plurilaterais, sendo a estes a adesão facultativa, porém o
membro que o aderir estará a ele submisso. Os órgãos dos acordos plurilaterais
são comitês do Acordo sobre Tecnologia da Informação, do Comércio de
Aeronaves Civis e de Contratação Pública, que se submetem ao Conselho Geral
e ao Conselho do Comércio de Mercadorias63.
São órgãos eminentemente técnicos e suas funções são de
assessoramento, realização de estudos, pesquisa sobre o tema para o qual
foram criados, bem como prestação de informações aos Órgãos principais aos
quais estão subordinados.
B. Secretaria
O estatuto da OMC designou a criação de um órgão para executar as
tarefas administrativas determinadas pela Conferência Ministerial e pelo
60 WTO. Sítio eletrônico. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s/whatis_s/tif_s/ org2_s.htm>. Acesso em: 27 fev. 2016. 61 Ibidem. 62 Cuja terminologia em inglês é General Agreement on Trade in Service (GATS). 63WTO. Sítio eletrônico. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s/whatis_s/tif_s/org2_s. htm>. Acesso em: 27 fev. 2016
39
Conselho Geral, sendo a Secretaria dirigida por um Diretor-Geral cujos poderes
definidos não dispõem de ingerência nas normas da OMC, mas exerce um papel
de intermediador, negociador e precipuamente de exequente das normas da
OMC.
As despesas da OMC são custeadas pelos países integrantes de acordo
com as possibilidades econômicas de cada um, no entanto, frise-se que cada
país possui o mesmo valor de voto na Conferência Ministerial, o que permite,
democraticamente, a permanência na OMC dos países com menos recursos64.
A responsabilidade da Secretaria da OMC é, segundo o sítio da
organização, oferecer um apoio independente e da mais alta qualidade aos
governos Membros da OMC em todas as atividades realizadas pela Organização
e prestar serviços à OMC com profissionalismo, imparcialidade e integridade65.
A Secretaria é, nas palavras do sítio da OMC, uma equipe multicultural
de pessoas altamente qualificadas que possuem a ampla gama de aptidões,
conhecimentos e experiência que se requerem para fazer frente às
responsabilidades da Secretaria e cooperar entre si com uma administração
pública internacional eficaz e diligente66.
A Secretaria da OMC, que somente possui oficinas em Genebra, conta
com um corpo de 634 funcionários, encabeçada por um Diretor-geral. Sua função
principal é prestar serviços de apoio para as atividades da OMC, de acordo com
William Davey, podendo ser consideradas como tais: negociações em questões
comerciais, comissões de fiscalização, processos de resolução de litígios,
cooperação técnica e cursos de política comercial para os funcionários dos
países em desenvolvimento67.
Ainda sobre os funcionários que integram o quadro, o estatuto da OMC
prevê que devem exercer o mister “exclusivamente de caráter Internacional”.
64 Recentemente, o Governo Federal brasileiro, segundo informações da Agência Reuters, afirmou que pretendia diminuir a participação do país nos Organismos internacionais como forma de amenizar os custos. Porém, no caso da OMC, é vantajoso para os cofres públicos, pois possui retorno financeiro e desenvolvimento do país, não sendo cogitada a saída da OMC. REUTERS Brasil. Disponível em <http://br.reuters.com/article/topNews/idBRKCN0Z22Y2? pageNumber=2&virtualBrandChannel=0>. Acesso em: 03 dez. 2016. 65 WTO. Disponível em: <https://www.wto.org/spanish/thewto_s/secre_s/intro_s.htm>. Acesso em: 26 fev. 2016. 66 Ibidem. 67 DAVEY, William J. Institutional Framework. In: MACRORY, Patrick F. J.; APPLETON, Arthur E.; PLUMMER, Michael G. The World Trade Organization: legal, economic and political
analysis. v. I. New York: Springer. 2005. p. 71.
40
Davey ensina que eles não devem solicitar ou aceitar instruções de nenhum
governo ou outra autoridade externa, tendo os membros da OMC a obrigação de
não procurar influenciar o pessoal no exercício das suas funções68.
O Diretor-geral, que é escolhido pela Conferência Ministerial, possui um
mandato de três anos. A disputa em torno do nome para encabeçar a direção
geral não se dá por consenso, podendo ocorrer disputa, como aconteceu no caso
do Diplomata brasileiro Roberto Carvalho de Azevedo, eleito para um mandato
de quatro anos, vencendo o mexicano Herminio Blanco69.
As atribuições dadas ao Diretor-geral são comumente estabelecidas nas
Conferências Ministeriais, atuando como fomentador de coalizão para a
conclusão de acordos. Um dos destaques da atuação do Diretor Roberto
Azevedo foi a conclusão da Rodada Doha, em dezembro de 2013, poucos meses
após a sua posse ocorrida em setembro do mesmo ano.
O papel exercido pelo Diretor-geral na ocasião foi proporcionar,
juntamente com o presidente da Conferência Ministerial, um ambiente propício
às negociações, de modo que venha a ocorrer o desfecho de acordos com
repercussão positiva para os membros da OMC. Além disso, ele não impõe a
negociação de nenhum tema sem que os próprios membros se sintam
interessados. Compete ainda ao Diretor-geral a nomeação dos funcionários cujo
trabalho proporcionará auxílio nas funções administrativas da organização.
Seção 2. Os principais acordos comerciais da OMC
Os parâmetros para escolha dos acordos descritos a seguir firmam-se
em dois eixos: o primeiro refere-se à sua importância para o sistema brasileiro
de comércio exterior e o segundo diz respeito ao volume de ocorrências e à
incidência desses acordos na jurisprudência brasileira. Assim, foram elencados
o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), o Acordo Antidumping, o
Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias e o Acordo sobre
Agricultura, esse último em razão da importância do tema para a economia do
68 Ibidem. 69 WTO. Sítio eletrônico. Disponível em: <www.wto.org>. Acesso em: 27 fev. 2016.
41
Brasil e suas relações internacionais.
§ 1º O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT de 1994
O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, mais conhecido pela sua sigla
em inglês GATT, trata-se do Anexo 1A do Estatuto da OMC. A matéria desse
acordo visa delimitar as ações dos membros para promover a liberalização das
barreiras tributárias, além de manter as diretrizes gerais. Ele encontra-se dividido
em três partes, com um total de 27 artigos. Neste texto, será feito um breve
resumo de cada artigo70.
O artigo 1º versa sobre o Tratamento Geral de Nação mais Favorecida,
havendo nele definição do conceito de tratamento de nação mais favorecida
(NMF ou, em inglês, MFN), por meio do qual, conforme Robert Read, as
concessões comerciais concedidas a um Membro são aplicadas imediatamente
e sem condições a todos os outros membros, salvo algumas exceções como a
participação nos acordos regionais (por exemplo, União Europeia, MERCOSUL)
ou parcerias comerciais (Parceria Transpacífico)71.
Sobre o assunto, Vera Kanas Grytz e Felipe de Andrade Krausz apontam
que os Painéis e Órgão de apelação construíram uma interpretação desse artigo
com base nos seguintes elementos: “a) objeto e finalidade, b) âmbito de
aplicação, c) Ordem de exame, d) qualquer vantagem, favor, privilégio ou
imunidade concedida por qualquer País Membro: i) geral, ii) Atribuição de quotas
tarifárias, e) Produtos similares, f) Qualquer produto originário ou destinado para
outro país; e g) Será outorgada imediatamente e incondicionalmente”72.
O artigo segundo apresenta as condições das listas de concessões, as
quais devem ser indicadas no contrato legal, denominado de taxas consolidadas,
bem como menciona que nenhum membro pode ser tratado de forma menos
favorável do que qualquer taxa de importação. Com a preocupação de não
favorecer os produtos nacionais em detrimento dos importados, no artigo terceiro
70 Tradução de General Agreement on Tariffs and Trade. 71 READ, Robert. A Summary of the GATT Articles. Disponível em:
<www.lancaster.ac.uk/staff/ecarar /gatt%20articles.doc>. Acesso em: 29 fev. 2016. 72 GRYTZ, Vera Kanas; KRAUSZ, Felipe de Andrade. Comentário à análise do artigo 1º. In: THORSTENSEN, Vera; OLIVEIRA, Luciana Maria (Coord.). Releitura dos Acordos da OMC como interpretados pelo Órgão de Apelação: efeitos na aplicação das regras do comércio
internacional. Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994 (GATT 1994).
42
consta que os membros não poderão se utilizar de medidas internas
discriminatórias entre produtos nacionais e importados dos países membros.
O GATT, no seu artigo quinto, prevê que não serão aplicadas medidas
comerciais sobre o trânsito de mercadorias realizadas entre membros73. Ainda,
no artigo VI, prevê a possibilidade de aplicação de medidas antidumping, sendo
sua regulamentação feita através de acordo, sempre que causar prejuízo à
empresa doméstica e desfrutar de subsídios à exportação sujeitos a condições
específicas.
Há regulação acerca do valor aduaneiro e das taxas referentes às
formalidades sobre importação e exportação, as quais devem ser avaliadas de
modo justo e sua utilização não pode ser uma barreira protecionista. Nesse
sentido, deve ser observado o baixo custo na aplicação de marcas de origem,
assim como sua utilização não deve danificar os produtos e sua utilização
fraudulenta deve ser coibida pelos membros.
Um dos princípios do sistema multilateral de comércio é a transparência
das políticas comerciais entre os membros. Nesse sentido, o artigo X do GATT
prevê que todas as medidas comerciais devem ser publicadas atendendo àquele
princípio.
O acordo determina a eliminação geral de restrições quantitativas,
propondo para os membros que as restrições ao comércio ocorram na forma de
impostos, taxas e outros encargos e, em última hipótese, através de quotas,
licenças de importação e de exportação. Há uma permissão específica para
restrições quando necessárias para salvaguardar o balanço de pagamentos, as
chamadas “salvaguardas”74.
No artigo XIII, do GATT 1994, está previsto que a administração não
pode ser discriminatória com restrições quantitativas, o que implica afirmar, em
outras palavras, que qualquer discriminação feita entre os Membros na aplicação
de restrições quantitativas deve refletir as ações comerciais subjacentes. A esse
respeito, Robert Read explica ainda que “as informações acerca de eventuais
restrições devem ser transparentes e negociadas com os Membros afetados”75.
73 GATT 1994, artigo V. 74 GATT 1994, artigo XII. 75 READ, Robert. Op. cit., p. 2.
43
São apresentadas no artigo XIV do acordo as exceções à regra da não
discriminação, aplicando-as aos artigos XII e XVII.
A matéria dos subsídios é tratada no artigo XVI e, de modo geral,
determina-se que, em quaisquer que sejam os casos, a sua aplicação implica
notificação aos Membros cujas importações sejam atingidas. O artigo prescreve
que os Membros devem reconhecer o impacto prejudicial dos subsídios, de
maneira a evitar a sua utilização geral e específica.
Sobre as empresas estatais, tem-se, no artigo XVII, que operações por
meio delas ensejam notificações pelo Membro que as utilizar, devendo abster-
se de conceder auxílio governamental favorável causador de medidas
discriminatórias. No artigo XVIII, está prevista a assistência governamental ao
desenvolvimento econômico. Acerca desse ponto, Road indica o
reconhecimento de que alguns países membros em situação econômica
desfavorável têm a necessidade de derrogações de algumas medidas
comerciais no que diz respeito aos artigos do GATT, incluindo o apoio de
indústrias nascentes e reparação de problemas de balança de pagamento.
Como forma precípua de proteção, o acordo GATT prevê uma ação de
emergência à importação de determinados produtos, que ocorre no âmbito de
medidas corretivas, incluindo a suspensão de medidas comerciais, se as
importações de certos produtos aumentarem de tal forma a prejudicar produtos
similares, produtores nacionais e a concorrência76. Para essa medida, são
apresentadas exceções gerais77.
As Exceções Gerais envolvem a permissão para medidas não arbitrárias
e não discriminatórias contra certas importações, incluindo: razões morais
públicas; saúde; prisões; e histórico/tesouros culturais nacionais78. Há ainda a
espécie de Exceções de Segurança, pela qual se compreende que nenhuma
cláusula do GATT será interpretada de forma contrária à segurança nacional de
um de seus Membros79. Os Membros cujos benefícios no âmbito do Acordo
estão para ser anulados ou prejudicados pela falha de outros membros no
76 GATT 1994, Artigo XIX. 77 GATT 1994, Artigo XX. 78 GATT 1994, Artigo XX. 79 GATT 1994, Artigo XXI.
44
cumprimento de suas obrigações, explica Road, podem se valer de
representações visando buscar uma solução satisfatória80.
Na última Parte do GATT 1994, denominada de comércio e
desenvolvimento, encontram-se os princípios e objetivos, sendo um deles o
compromisso e a ação comum, de modo que a facilitação do progresso
econômico de países em desenvolvimento que sejam Membros possa requerer
deles acesso mais favorável para os mercados mundiais, sem que seja exigida
reciprocidade para compromissos assumidos pelos membros desenvolvidos. Em
outras palavras, o tratamento para os países em desenvolvimento se dá no
âmbito do Sistema Geral de Preferências81.
Os membros mais desenvolvidos devem, no entendimento de Road,
assumir o compromisso de dar maior prioridade e ter especialmente em conta a
eliminação de barreiras comerciais sobre produtos de interesse para os países
em desenvolvimento82. Os países em desenvolvimento também se
comprometem a fazer isso em relação a outros membros em desenvolvimento83.
Nessa perspectiva, o GATT de 1994 termina com a preocupação de uma ação
comum de seus membros na colaboração para avançar a situação dos membros
que se encontram em desenvolvimento em questões relativas ao comércio84.
§ 2º O Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércio de 1994 (Acordo Antidumping – ADA)
No artigo VI, do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, está prevista a
possibilidade de serem aplicadas medidas antidumping, sendo o seu uso
necessário para o fortalecimento do comércio mundial. Além disso, a ausência
das medidas pode acarretar diversos prejuízos à indústria, no âmbito nacional
ou internacional.
As medidas antidumping podem ser consideradas como um dos pilares
do sistema multilateral do comércio, uma vez que impedem a concorrência
desleal pela prática dos preços diferenciados entre exportação e importação. O
80 ROAD, Robert. Op. cit., p. 2. GATT 1994, Artigo XXII. 81 GATT 1994, Artigo XXXVI. 82 ROAD, Robert. Op. cit., p. 3. 83 GATT 1994, Artigo XXXVII. 84 GATT 1994, Artigo XXXVIII.
45
Acordo Antidumping (ADA) é apresentado em três partes divididas em 18 artigos
e dois anexos. A utilização das medidas pelos países membros deve obedecer
ao disposto no ADA, com a finalidade de se evitarem novas barreiras
alfandegárias.
A primeira parte do acordo informa os princípios, a definição e as
medidas a serem aplicadas, incluindo a temporalidade e a descrição delas. As
medidas antidumping devem ser conduzidas observando como princípio o
disposto no artigo VI e conforme as investigações iniciadas e conduzidas
segundo o disposto no ADA85. A determinação do termo dumping é “a oferta de
um produto no comércio de outro país a preço inferior a seu valor normal, no
caso de o preço de exportação do produto ser inferior àquele praticado no curso
normal das atividades comerciais para o mesmo produto quando destinado ao
consumo no país exportador”86.
Denota ressaltar, ab initio, que não há cobrança retroativa, mas sim para
interrupção de dano à indústria doméstica, posto que a simples prática do
dumping, por exemplo, para conquista de mercado de um novo produto
inexistente, ou que não resulte em dano à indústria do país importador, não será,
portanto, caso de medidas antidumping.
O Acordo Antidumping apresenta a definição de dano e de indústria
doméstica e o Órgão de Solução de Controvérsias em painéis também
aperfeiçoou os conceitos desses institutos jurídicos, de maneira a ressaltar o
nexo causal do dano à indústria doméstica pela prática do dumping como sendo
o fato primordial para a aplicação das medidas coercitivas pelo país importador87.
O ADA também explicita o procedimento a ser instaurado, bem como o
meio probatório a ser utilizado nas investigações, sendo possível a utilização de
medidas provisórias que servirão para coibir, liminarmente, o dumping
prejudicial, podendo, no entanto, ser confirmado ou revogado ao final das
investigações88.
A possibilidade da revisão judicial da (in)aplicação das medidas
antidumping é um dos requisitos para que o órgão, independentemente do que
85 Acordo Antidumping – ADA, Artigo 1, do Acordo sobre Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre tarifas e Comércio 1994. 86 Artigo 2, ADA. 87 ADA, Artigos III e IV. 88 ADA, Artigos V e VI.
46
efetuou as investigações, possa analisar e apresentar uma decisão isenta. No
Brasil, o Poder Judiciário, em algumas decisões, imiscuiu-se desse papel,
deixando para o Poder Executivo o recurso por entender que o julgamento era
de caráter técnico. Porém, é aceito de modo geral que cabe ao Poder Judiciário
a Revisão de atos ilegais ou omissivos do Poder Executivo, no tocante a
investigações e medidas antidumping89.
Finalmente, importa destacar que a não observância, por parte de um
país membro, dos dispositivos constantes no ADA poderá ensejar reclamações
perante o Órgão de Solução de Controvérsias, podendo resultar disso
retaliações ao membro desobediente90.
§ 3º O Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias
O Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC) é,
segundo Marianna Perantoni, apontado pela doutrina como contribuinte, dentre
vários conceitos, em determinar o que são subsídios e quais as metodologias
para seu cálculo: “a proibição estendida a países em desenvolvimento, do
subsídio à exportação; a criação do ‘subsídio específico’ enquanto terminologia
jurídica; a classificação dos subsídios proibidos, recorríveis e irrecorríveis”91. Em
muito se assemelha ao ADA, quando esclarece a respeito do que seria um grave
dano autorizador de algum tipo de recurso unilateral ou multilateral, na repetição
do conceito de indústria doméstica.
Ab initio, a definição de subvenções apresentada pelo ASMC refere-se
a todas as possibilidades de o Estado financiar direta ou indiretamente os
destinatários nacionais em detrimento dos produtores estrangeiros92.
O ASMC aponta, no artigo 2º, os subsídios específicos como sendo os
outorgados por uma autoridade a determinada empresa ou grupo limitado de
empresas em seu território. Para ensejar a legalidade do ato, deve o instrumento
jurídico gozar das características básicas de abstração e generalidade93.
89 ADA, Artigo XIII. 90 ADA, Artigo XVII. 91 PERANTONI, Marianna. Os Subsídios no Sistema OMC e a Defesa Comercial no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris., 2014. p. 51. 92 ASMC, artigo 1. 93 PERANTONI, Marianna. Op. cit., p. 55.
47
Tal qual o dumping, os subsídios não são proibidos, como explica
Mariana Perantoni: “as meras condutas, ativas ou passivas, e os seus resultados
serão repreensíveis a partir do momento em que ocasionarem efeitos adversos
e injustos ao funcionamento do mercado”94, de forma que se apresentam os
subsídios proibidos, os recorríveis e os irrecorríveis.
São considerados proibidos, conforme o artigo 3º do ASMC, os subsídios
que estejam vinculados, de fato ou de direito, ao desempenho do exportador ou
também ao conjunto de condicionantes, os quais se encontram previstos no
Anexo I do ASMC. Também é proibido o subsídio que tenha preferência por
produto nacional em detrimento do estrangeiro. Subsídios recorríveis são
aqueles que, além de não serem proibidos em si, podem ser acionados,
porventura, nos termos do artigo 5º, vindo a causar três tipos de consequências
danosas: “prejuízo à indústria nacional do Estado importador; perdas de
comércio para membros exportadores; e, em grave dano aos interesses do
Estado exportador ao enfrentar concorrência desleal de produtos
subvencionados”95.
Os subsídios irrecorríveis são, por sua vez, os auxílios dados pelos
estados, cujos impactos são minimamente perceptíveis no comércio multilateral,
sendo, portanto, imunes às disputas comerciais, tendo em vista que o ASMC
determinou que a possibilidade de subsídios irrecorríveis ocorreria por cinco
anos a partir do início do acordo OMC, qual seja 1º/01/1995. Por esse motivo,
esse tema foi debatido na III Conferência Ministerial de Seattle, ocorrida em
1999, contudo restou-se infrutífero pela ausência de consenso. Somente em
2001, no relatório anual, chega-se à conclusão pela qual se depreende a
permissão de uma única hipótese para os subsídios irrecorríveis, que “será
quando não tiverem a dotação da especificidade”, do contrário será permitido o
acionamento de medidas judiciais e administrativas cabíveis96.
§ 4º O Acordo sobre Agricultura
94 Ibidem, p. 56. 95 Ibidem, p. 59. 96 OMC. Annual Report 2001. Genebra. WTO, 2006. Disponível em:
<http://www.wto.org/english/res_e/boosp_e/anrep_e/wto_anrep01_e.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2016.
48
Na escolha para aprofundamento dos acordos, sobressaem a
relevância do tema e sua ocorrência na jurisprudência brasileira. Apesar da
ausência de disputas judiciais internas em torno da temática prevista no Acordo
sobre Agricultura (ASA) e de a pauta não ter sido alvo de divergências, e diante
da importância do tema afeto ao Brasil em razão da dependência do país da
exportação de produtos agrícolas, tornam-se relevantes o estudo e
aprofundamento acerca do ASA.
Inicialmente, cumpre dizer que não houve avanços significativos
esperados, tais como a extinção dos subsídios aos produtos agrícolas ante a
divergência existente entre os países que compunham o Grupo de CAIRNS, cuja
posição era contrária às subvenções, e os países europeus e os Estados Unidos,
com forte política de incentivo à produção agrícola97.
Os principais alvos do ASA foram os termos acertados em favor da
diminuição das medidas de apoio interno e dos subsídios à exportação. Sobre
esse ponto, Perantoni destaca que não foi o acordo ideal, mas o possível, diante
do contexto bipolarizado, que dividiu os membros da OMC98.
O Acordo sobre Agricultura é um dos acordos plurilaterais firmados no
âmbito da OMC. Ocorre que, quando do seu surgimento, foram deixados alguns
assuntos como tema plurilateral, excetuando-se a regra de observância
obrigatória para os Membros que não o subscrevessem.
Restou assim afirmar, longe do propósito basilar da OMC, que trata
evidentemente da derrubada de barreiras que impeçam a livre concorrência das
mercadorias entre os Estados-membros. Da análise do acordo, destacam-se
quatro principais tópicos: o acesso aos mercados99, as medidas de apoio
doméstico100, subsídios à exportação101 e a Cláusula de Paz102.
Após as propostas firmadas no Acordo sobre agricultura, passou-se à
Rodada Doha, iniciada na Conferência Ministerial ocorrida no Qatar, em 2001,
permanecendo longo período sem evoluir e sendo somente desbloqueada em
2013, quando aconteceu a finalização do primeiro acordo comercial multilateral
97 O Grupo de CAIRNS era formado por 20 países com perfil de exportadores agrícolas, capitaneados por Brasil e Austrália. PERANTONI, Marianna. Op. cit., p. 69. 98 Ibidem. p. 70. 99 A matéria está prevista nos artigos 4º e 5º do Acordo sobre Agricultura. 100 A matéria está prevista nos artigos 6º e 7º do Acordo sobre Agricultura. 101 A matéria está prevista nos artigos 8º ao 10º do Acordo sobre Agricultura. 102 A matéria está prevista no artigo 13º do Acordo sobre Agricultura.
49
desde a criação da Organização, cujo tema de destaque trata da agricultura com
a promessa de redução dos subsídios à exportação. Foi dado o nome de acordo
de Bali, em referência à cidade onde foi subscrito o acordo cujo tema representa
tão somente 10% da audaciosa Rodada Doha. Tendo em vista a limitação do
acordo, alguns o denominaram de “Doha Light”103.
A XI Conferência Ministerial de Nairóbi, avançando ainda mais com a
estipulação de prazos para o fim de medidas distorcidas contra o sistema
multilateral do comércio, dentre elas os subsídios, estipulou um marco definitivo
para que os países possam finalizar as subvenções estatais, surpreendendo
mais uma vez a comunidade internacional com uma pauta que não era proposta
desde a Conferência Ministerial de Bali104.
Em Nairóbi, foi respeitado o princípio de tratamento diferenciado para
os países em desenvolvimento e os desenvolvidos, sendo a esses determinado
o fim dos subsídios, com exceção para os produtores de laticínios, carne de
porco e processados, até o ano de 2020. Por outro lado, foi dado aos países em
desenvolvimento o prazo até dezembro de 2018 para que sejam finalizados os
subsídios, com exceções até 2023, sendo esse o prazo máximo para finalizar
programas destinados a cobrir custos de transporte ou comercialização.
103 Sobre a rodada Doha, ver seção anterior. Em matéria jornalística do Portal da Rádio França Internacional, Simon Evenett afirmou: “É um acordo bem-vindo, mas limitado. Passamos de Doha a Doha light”, na entrevista intitulada OMC conclui acordo histórico sobre comércio mundial. Disponível em: <http://pt.rfi.fr/economia/20131207-omc-conclui-acordo-historico-
sobre-comercio-mundial>. Acesso em: 15 mar. 2016. 104 Sobre as Conferências de Nairóbi e Bali, ver seção anterior.
50
Capítulo 3. O CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES PELAS INSTÂNCIAS
ADMINISTRATIVAS BRASILEIRAS
Após o panorama histórico e legislativo da OMC no que concerne aos
principais acordos firmados no âmbito dessa Organização nos parâmetros
anteriormente definidos, passa-se à descrição da legislação interna brasileira
regulamentadora dos referidos acordos da OMC. Posto que a aplicação dos
acordos firmados é válida, no entender da melhor doutrina desde sua assinatura,
há um rito próprio para a internalização da norma. Tal internalização serve para
dar publicidade aos Órgãos e instuições nacionais dos atos firmados pelo
Executivo no plano internacional, sendo esse mormente o representante do
Estado brasileiro105.
Quando os estados exercem o fiel cumprimento das leis internalizadas
dos acordos firmados no âmbito das organizações internacionais, há uma
confiança mútua e os acordos se revestem de uma função normativa e
uniformizadora relevante no contexto assecuratório dos negócios jurídicos
transfronteiriços.
Finaliza-se a primeira seção com a descrição das principais normas
brasileiras que regulamentam o comércio internacional, destacando-se a defesa
comercial, tais como o Decreto n. 1.355/1994, a Lei 9.019/1994 e o Decreto n.
8.058/2013.
A segunda seção, por sua vez, cuidará da exposição dos Ministérios da
União incubidos de intermediar as negociações entre o Estado Brasileiro e os
organismos Estrangeiros, sendo, na sequência, apresentados os órgãos federais
(SECEX, DECEX, CAMEX e DECON), cujas funções precípuas consistem na
fiscalização da aplicação dos acordos da OMC, realizando a defesa comercial e
a execução do Sistema Brasileiro de Comércio Exterior.
Por fim, será feita uma breve descrição de cada um desses órgãos,
ressaltando-se a origem e as funções precípuas. Tais órgãos, com funções
105 A doutrina capitaneada por Kelsen e Verdross defende a teoria monista, de modo que as normas tidas na esfera internacional guardam supremacia ante as normas internas, sendo o sistema de normas único. Em contraposição a esses autores, tem-se a teoria dualista defendida por Tripel e Anzilotti, para os quais há duas ordens jurídicas: uma interna e outra internacional. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 15. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004. v. 1, p. 111.
51
eminentemente técnicas, auxiliam os Ministérios e atuam como fiscais do
cumprimento das normas, elaborando estudos, pareceres, instaurando
processos, colhendo provas, além de julgar processos administrativos, impondo,
quando cabíveis, as medidas coercitivas.
Seção 1. A legislação interna de regulamentação dos acordos da OMC
As normas de direito internacional passam a vigorar no Estado brasileiro
a partir da sua internalização106. Apesar de a Constituição Federal de 1988 deixar
lacuna sobre a hierarquia normativa dos tratados cuja matéria seja diversa de
direitos humanos, o STF posicionou-se afirmando que o tratado incorporado ao
ordenamento jurídico brasileiro tem valor de lei ordinária107.
As normas da OMC foram internalizadas no momento da sua fundação,
quando um dia antes de sua entrada em vigor fora promulgado o Decreto n.
1.355, de 31 de dezembro de 1994, cujos efeitos foram concomitantes à criação
da OMC, em 1º de janeiro de 1995.
Atualmente, regulando a disciplina do comércio exterior existem cerca
de 70 normas, entre leis complementares, ordinárias e Decretos. Todo esse
arcabouço legislativo deve estar compatível com as normas da OMC, sob pena
de se gerar insegurança nas relações comerciais estrangeiras.
Ante a diversidade de normas, faz-se o corte epistemológico mais uma
vez delimitando o aprofundamento nas principais normas que versam sobre a
matéria do GATT, acrescentando, ainda, as leis que tratam de antidumping e
106 A incorporação de tratado internacional ao direito interno, segundo o STF, ocorre com quatro fases depreendidas da junção dos artigos: 49, I e 84, VIII, da CF/88, denominada Teoria da Junção de Vontades, sendo elas: a) assinatura, b) referendo, c) retificação e d) promulgação. RAMOS, André de Carvalho. Pluralidade das ordens jurídicas: uma nova perspectiva na relação entre o direito internacional e o direito constitucional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP, São Paulo, v. 106/107, p 497-524. jan./dez. 2011/2012. 107 O STF, a partir do julgamento do RE 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier Albuquerque, julgado em 1º de junho de 1977, entendeu que, ao tratar-se de matéria não relativa de direitos humanos, terá efeito infraconstitucional, rompendo até então o entendimento de que os tratados internacionais prevaleciam ante as leis internas. Frise-se, contudo, que há ao longo do texto constitucional algumas exceções, por exemplo, em matéria sobre transporte aéreo, que atribui a prevalência do tratado sobre as leis internas. Sobre o transporte aéreo, ver BICHARA, Jahyr-Philippe; FONSECA JUNIOR, Sid Marques. Análise crítica da jurisprudência relativa à aplicação da Convenção de Montreal para a unificação das regras relativas ao transporte aéreo internacional de 1999. In: PALUMA, Thiago; MENEZES, Wagner; MARTINS, Fernando (Org.). Estudos Avançados em Direito Internacional. Belo Horizonte: Arraes, 2015. v. 1, p. 254-263.
52
subsídios e medidas compensatórias, por serem esses os Acordos da OMC que
causam maiores quantidades de demandas judiciais no Estado brasileiro.
O Acordo Relativo à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre
Tarifas Aduaneiras e Comércio-GATT/1994 (Acordo Antidumping) e o acordo
sobre subsídios e medidas compensatórias são regulamentados no
ordenamento jurídico brasileiro por meio dos seguintes diplomas legais: Decreto
Legislativo n. 30, de 15 de dezembro de 1994, promulgado pelo Decreto n. 1.355,
de 30 de dezembro de 1994; e Lei n. 9.019, de 30 de março de 1995. A mais
recente inovação legislativa ocorreu com a regulamentação da redução do prazo
de investigação para aplicação das medidas antidumping pelo Decreto n. 8.058,
de 26 de julho de 2013.
Importa que detalhemos os principais dispositivos dos referidos diplomas
legais, uma vez que a compreensão desses instrumentos torna-se fundamental
para a aplicação pelo Poder Judiciário das normas da OMC. Não obstante, as
decisões que versem sobre matérias de direito internacional devem se basear
nos princípios e regras gerais da OMC, posto que as transgressões às normas
firmadas no âmbito dos acordos da OMC ensejarão reclamações no Órgão de
Solução de Controvérsias, detentor de papel fiscalizador e sancionador da
própria organização.
§ 1º Decreto n. 1.355, de 30 de dezembro de 1994
O acordo constitutivo da OMC foi internalizado no ordenamento jurídico
brasileiro a partir do Decreto n 1.355, de 30 de dezembro de 1994. Sua
aprovação significa a continuidade do avanço da participação brasileira na
abertura de suas fronteiras para as mercadorias estrangeiras, bem como a
facilitação do comércio de produtos brasileiros nos países membros da OMC.
O Decreto n 1.355 é a promulgação da Ata final dos resultados da
Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT/1947. Até
então vigorava no país, quanto ao comércio multilateral, o Decreto n. 313/48,
cujo teor resguarda a aceitação do texto do GATT/1947 pelo Estado brasileiro.
O Decreto não dispõe de maiores explicações acerca da incorporação
da Ata Final da Rodada Uruguai, cujo efeito maior foi a criação da OMC. Aponta
53
para cumprimento a partir de sua publicação, que ocorreu em 31 de dezembro
de 1994108.
A ata fruto da Rodada Uruguai foi anexada ao Decreto quando de sua
publicação no Diário Oficial da União109. Os textos anexados correspondem aos
acordos obrigatórios da OMC e aos facultativos subscritos pelo representante do
Brasil.
Os textos anexados compreendem: a Ata final; o Acordo constitutivo da
Organização Mundial do Comércio (OMC); os anexos 1 e1A; os Acordos
Multilaterais sobre o Comércio de Bens; o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
de 1994 (GATT 1994), do qual decorre o Entendimento sobre a interpretação do
artigo II, 1(b), do Acordo Geral sobre tarifas e comércio de 1994; o Entendimento
sobre a interpretação do artigo XVII do Acordo Geral sobre tarifas e comércio
1994; o Entendimento sobre as Disposições Relativas a Balanço de Pagamento
do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio de 1994; o Entendimento sobre a
Interpretação do Artigo XXIV do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio de 1994;
o Entendimento sobre Derrogações (waivers) de Obrigações sob o Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio de 1994; o Entendimento sobre a interpretação do
Artigo XXXV do Acordo Geral sobre Tarifas e comércio de 1994; o Entendimento
sobre a interpretação do artigo XXXV do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
de 1994; o Protocolo de Marrakesh do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
de 1994.
Constituem ainda parte integrante da referida ata final o Acordo sobre
Agricultura, o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias,
o Acordo sobre Têxteis e Vestuário, o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao
Comércio, o Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio,
o Acordo sobre a implementação do artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio 1994, o Acordo sobre a implementação do artigo VII do GATT 1994, o
Acordo sobre Inspeção Pré-Embarque, o Acordo sobre Regras de Origem, o
Acordo sobre Procedimentos para o Licenciamento de Importações, o Acordo
sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, o Acordo sobre Salvaguardas, de
modo que todos compõem o anexo 1 A do acordo constitutivo.
108 Artigos 1º e 2º do Decreto n. 1.355/94 109 Diário Oficial da União, n. 248-A, Seção 1, pág. 21.394, Brasília-DF, 31/12/1994.
54
Há, ainda, outros anexos, tais como: o Anexo 1B, Acordo Geral sobre
Comércio de Serviços (GATS); o o Anexo 1C, Acordo sobre Aspectos dos
Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. O Anexo 2 é o
Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de
Controvérsias, já o Anexo 3 trata sobre o Mecanismo de Exame de Políticas
Comerciais.
O Anexo 4 versa sobre os acordos comerciais plurilaterais, os quais não
são obrigatórios, tendo o Brasil assinado somente um dos acordos previstos no
anexo 4, inserido no item da letra (d), cujo objeto é o Acordo Internacional sobre
Carne Bovina.
Esses Acordos firmados no âmbito da OMC foram, portanto, como
informado anteriormente, inseridos no ordenamento jurídico brasileiro e, como
tal, devem ser observados pelos juizes e tribunais brasileiros quando da
aplicação do direito nos casos a eles submetidos. Eles possuem princípios
norteadores para questões de lide que versem sobre o Direito Internacional
Econômico e Direito internacional do Comércio.
Outras normas foram sendo expedidas para regulamentar a contento as
específicas exigências das regras gerais do acordo constitutivo da OMC. Traz-
se, pois, nesse contexto de regras específicas, a seguir, uma breve explicação
das leis internalizadoras de princípios e regras da OMC.
As normas que guardam relação com as demandas judiciais mais
comumentes impetradas no judiciário brasileiro, questionando-se o cumprimento
das normas da OMC, são as que violam os dispositivos do Acordo sobre a
implementação do artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994 e
do Acordo sobre a implementação do artigo VII do GATT 1994. Tais matérias
foram reguladas em diversas leis, das quais se destacam as principais: a Lei n.
9.019/1995 e a Lei n. 8.058/2013.
§ 2º Lei n. 9.019, de 30 de março de 1995
A Lei n. 9.019/1995 surgiu em um momento histórico no qual se
pretendia conferir efetividade à proteção da defesa comercial, consignando no
sistema normativo medidas intervencionistas visando proteger a indústria
55
nacional, além de ofertar proteção aos importadores, atribuindo-lhes a atuação
no mercado com segurança jurídica e estabilidade, princípios da OMC.
Houve um lapso temporal de oito anos para a expedição da lei
regulamentadora sobre antidumping e medidas compensatórias e subsídios,
tendo em vista que, desde a Rodada de Tóquio, ocorrida em 1979, o Estado
brasileiro já havia subscrito o acordo que versava sobre o antidumping.
Aparentemente, a demora para produção legislativa não teve sua
ausência reclamada pela indústria local, em razão de a característica marcante
na economia da década de 1980 ter sido extremamente fechada, pautada pelo
modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações, sendo
estas admitidas excepcionalmente quando fossem complementares à demanda
local, ou destinadas à produção de bens exportáveis110.
O conteúdo da norma inclui as medidas compensatórias e as
antidumping, inaugurando a regulamentação do Acordo Antidumping e do
Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, antevendo a possibilidade
de aplicação provisória de medidas antidumping, bem como das
compensações111.
Essa lei possibilitou a aplicação provisória dos direitos antidumping e das
medidas compensatórias, de modo a permitir que os direitos compensatórios
poderão subsistir independentemente das obrigações de natureza tributária112.
A aplicação desses direitos pode ocorrer durante investigação, se constatados
preliminarmente indícios da prática de dumping ou de concessão de subsídios,
e desde que de tais práticas haja dano, ou ameaça de dano, à indústria
doméstica113.
A exigibilidade dos direitos provisórios poderá ser suspensa por meio de
duas condições a critério da CAMEX e do oferecimento pelo importador de
garantia equivalente ao valor intergral da obrigação e demais encargos legais,
110 FONSECA, Hugo Soares Porto. Tensões nas Relações Comerciais Internacionais:
Medidas Antidumping e Protecionismo sob uma perspectiva brasileira. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, 2007, p. 74. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_FonsecaHS_1.pdf>. Acesso em: 15 abr. 2016. 111 Art.1º da Lei 9.019/1995. PERANTONI, Marianna. Op. cit., p. 168. 112 Art. 1º, Parágrafo único, da Lei n. 9.019/1995. 113 Art. 2º, Caput. Explicando os termos dano e indústria doméstica, tem-se no Art. 2º, Parágrafo Único: “Os termos ‘dano’ e ‘indústria doméstica’ deverão ser entendidos conforme o disposto no Acordo Antidumping e no Acordo de Subsídios e Direitos Compensatórios mencionados no art. 1º, abrangendo as empresas produtoras de bens agrícolas, minerais ou industriais”.
56
incluindo a hipótese de pagamento de tributos federais, inclusive juros. A
Secretaria da Receita Federal (SRF), do Ministério da Fazenda, disporá sobre a
liberação da referida garantia, que servirá também para o desembaraço
aduaneiro dos bens objeto da aplicação dos direitos provisórios114.
A lei ventila a hipótese de celebração de compromisso entre o exportador
ou o governo do país exportador, com o fito de eliminar os efeitos prejudiciais
decorrentes da prática de dumping ou de subsídios115. O referido compromisso
deve ser celebrado perante a Secretaria de Comércio Exterior (SECEX) e
submetido à homologação da CAMEX116. Vindo a ser homologado, tal acordo
gera a suspensão da investigação, sem a imposição de direitos provisórios ou
definitivos, excetuando-se os casos previstos no Acordo Antidumping e no
Acordo de Subsídios e Direitos compensatórios117.
A competência para apurar a margem de dumping ou o montante de
subsídio, a existência de dano e a relação causal entre esses é atribuída à
SECEX118. A lei determina que a fixação dos direitos provisórios ou definitivos e
a decisão sobre a suspensão da exigibilidade dos direitos provisórios são
atribuídas à CAMEX119. Especificando acerca das exigências do ato de
imposição de direitos antidumping ou compensatórios, provisórios ou definitivos,
a lei determina que devem ser indicados o prazo de vigência, o produto atingido,
o valor da obrigação, a origem, bem como a motivação da decisão e, se possível,
o nome dos exportadores120.
O artigo 7º, da Lei n. 9.019/1995, destaca a condição legal para a
admissão de produtos objeto de dumping ou subsídio, a de que sejam cumpridas
as obrigações definitivas ou provisórias cobradas pela Secretaria da Receita
Federal quando tratar-se de valor em dinheiro, sendo devidas a partir da data do
registro da declaração de importação121.
Acerca das consequências do descumprimento do recolhimento de
direitos antidumping ou de direitos compensatórios, verifica-se que acarretarão,
114 Art. 3º, Caput, §1º, §2º e §3º. 115 Art. 4º, Caput. 116 Art. 4º, §1º. 117 Art. 4º, §2º. 118 Art.5º. Sobre a SECEX, ver seção 2, §2 deste capítulo. 119 Art. 6º. Sobre CAMEX, ver seção 2, §2 deste capítulo. 120 Art. 6º, Parágrafo único. 121 Art.7º, §1º e §2º.
57
sobre o valor não recolhido, a incidência de multa e juros de mora122. A multa
não ultrapassará 20% quando for declarada pelo próprio importador; no caso de
ela ser exigida de ofício, será de 75%. Ela será exigida isoladamente, sem os
acréscimos moratórios, caso os direitos antidumping ou direitos compensatórios
tenham sido pagos após o registro da declaração de importação123.
O parágro 5º do artigo 7º estabelece que no prazo de 5 (cinco) anos,
contados da data de registro da declaração de importação, o Auditor-Fiscal da
Receita Federal formalizará a exigência de ofício de direitos antidumping ou de
direitos compensatórios e decorrentes acréscimos moratórios e penalidades,
conforme o Decreto n. 70.235, de 6 de março de 1972124. Caso não sejam
adimplidos esses direitos, caberá à Secretaria da Receita Federal encaminhar o
débito à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, para inscrição em Dívida
Ativa da União e respectiva cobrança, observado o prazo de prescrição de 5
(cinco) anos125.
Há a proteção ao princípio da irretroatividade para aplicação dos direitos
antidumping ou compensatório, cuja aplicação ocorre a partir da data da
publicação do ato que os estabelecer, ressalvando-se os casos de retroatividade
previstos nos Acordos Antidumping e nos Acordos de Subsídios e Direitos
compensatórios126. Nesses casos de retroatividade, no prazo de 30 (trinta) dias,
ocorrerá a intimação do responsável pela Secretaria da Receita Federal, para
pagar os direitos antidumping ou compensatório sem a incidência de quaisquer
acréscimos moratórios. Vencido o prazo, serão exigíveis a multa e os juros de
mora previstos no inciso II do §3º do art. 7º.
De acordo com o Art. 9º, os direitos terão vigência temporária, a ser
definida no ato de seu estabelecimento, observando que os provisórios de
direitos compensatórios terão vigência não superior a cento e vinte dias e, no
caso de direitos antidumping, poderão vigorar por um período de até duzentos e
122 Art. 7º, §3º, I: “a) a incidência de multa de mora, calculada à taxa de 0,33% (trinta e três centésimos por cento), por dia de atraso, a partir do 1o (primeiro) dia subsequente ao do registro da declaração de importação até o dia em que ocorrer o seu pagamento, limitada a 20% (vinte por cento); e b) a incidência de juros de mora calculados à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, para títulos federais, acumulada mensalmente, a partir do 1o (primeiro) dia do mês subsequente ao do registro da declaração de importação até o último dia do mês anterior ao do pagamento e de 1% (um por cento) no mês do pagamento” 123 Art. 7º §4º. 124 Art. 7º §5º. 125 Art. 7º §6º. 126 Art. 8, Caput.
58
setenta dias, por decisão da CAMEX. Os direitos definitivos ou compromisso
homologado permanecerão até que se eliminem ou neutralizem as práticas de
dumping e a concessão de subsídios causadoras do dano. Esses direitos não
vigorarão por mais de cinco anos, excetuando-se, após revisão, se necessário
mantê-los para impedir a continuação do dumping.
É facultado, ainda, aos exportadores beneficiários das medidas
solicitarem a prorrogação por até seis meses, devendo fazê-lo por solicitação
formal à SECEX no prazo de 30 (trinta) dias127. As medidas antidumping e
compensatórias podem também ser aplicadas a outros países, além do país de
origem da importação, se porventura vier a ser constatada a existência de
práticas evasivas para frustar a aplicação das referidas medidas128.
A Lei n. 9.019 disciplina que o processo administrativo referido nos arts.
1º e 5º seguirá o disposto na Resolução n. 1.227, de 14 de maio de 1987, com
as alterações da Resolução n. 1.582, de 17 de fevereiro de 1989, ambas da
extinta Comissão de Política Aduaneira (CPA)129.
§ 3º Decreto n. 8.058 de 26 de julho de 2013
Os procedimentos administrativos relativos à investigação e à aplicação
de medidas antidumping são regulamentados pelo Decreto n. 8.058, de 26 de
julho de 2013130, que substitui o Decreto n. 1.602/95. A partir desse decreto,
houve grande avanço, quantitativo e qualitativo. No diploma substituído,
constavam apenas 73 artigos cujo teor não atendia a detalhes necessários ao
fiscalizador, sendo tais brechas preenchidas ao longo dos 201 artigos do atual
instrumento legal.
Há muito essa regulamentação era esperada para colocar o Estado
brasileiro na condição de assegurador dos compromissos assumidos perante a
comunidade internacional, assim como na condição de membro da OMC, sendo
127 Art. 9º, Parágrafo único. 128 Art. 10 A. 129 Art. 12. 130 A norma interna que regulamenta os procedimentos administrativos necessários e investigações sobre medidas compensatórias e subsídios corresponde ao Decreto n. 1.751, de 19 de dezembro de 1995, não tendo sido objeto de análise em razão de não ter sido encontrada divergência jurisprudencial sobre este.
59
esperada a adoção de medidas internas necessárias para o cumprimento das
regras postas nos seus acordos.
As regras trazidas pelo Decreto n. 8.058/2013 serão aprofundadas no
capítulo referente ao acordo antidumping131. Faz-se a seguir a enumeração dos
títulos de cada capítulo, a saber: os princípios e as competências dos órgãos
responsáveis pela fiscalização e execução das medidas antidumping elecandas
do artigo 1º ao 6º. O capítulo 2, intitulado “da determinação de dumping”, a partir
do artigo 7º até o artigo 28, especifica os conceitos vagos apontados nas regras
gerais132.
A legislação em comento está conforme as regras da OMC, tendo sido
inclusive objeto de análise da Organização, através da revisão de políticas
comerciais feita sistematicamente pela OMC133.
As formalidades previstas em lei muitas vezes são deixadas de lado
durante o processo administrativo instaurado pelo órgão do executivo, o que
resulta em prejuízo ao empresário, pois ao se socorrer do Poder Judiciário, este
deve estar atento àquelas exigências, as quais devem estar consoantes com os
princípios gerais do Acordo sobre a implementação do artigo VI do Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio 1994. Importa, portanto, conhecer quais os órgãos e
suas competências, a fim de se realizar a fiscalização deles e demandá-los
quando necessário perante o Judiciário134.
Seção 2. Órgãos da União
131 As regras específicas do Decreto 8.058/2013 serão detalhadas no capítulo VI referente ao Acordo Antidumping. 132 Sobre a Lei 9.019/2014, há, ainda, diversos temas, como os descritos a seguir: o capítulo III, cujo título é da determinação do dano, inicia-se no artigo 29 e segue até o artigo 33; o capítulo IV trata do conceito da indústria doméstica, partindo do artigo 34 ao artigo 36; o capítulo V disciplina a investigação, do artigo 37 ao artigo 77; o capítulo VI, da aplicação e cobrança dos direitos antidumping, parte do artigo 78 ao artigo 91; o capítulo VII, da duração dos direitos antidumping e dos compromissos de preço, artigos 92 e 93; o capítulo VIII, da revisão dos direitos antidumping e dos compromissos de preço, do artigo 94 ao artigo 145; o capítulo IX, da avaliação de escopo e da redeterminação, do artigo 146 ao artigo 160; o capítulo X, da publicidade, do artigo 161 ao artigo 169; o capítulo XI, da forma dos atos e dos termos processuais, do artigo 170; o capítulo XII, do processo decisório, do artigo 171 ao artigo 174; o capítulo XIII, das verificações in loco, do artigo 175 ao artigo 178; o capítulo XIX, da melhor informação disponível, do artigo 179 ao artigo 184; o capítulo XX, das disposições gerais, do artigo 185 ao artigo 201. 133 Sobre o Órgão revisor de políticas comerciais, ver capítulo 2. 134 Sobre a competência do Poder Judiciário, ver capítulo 5.
60
O controle do Estado brasileiro sobre os acordos firmados no âmbito da
OMC fica a cargo da União. Importa destacar que não se restringe ao papel
fiscalizador e executório das demandas provenientes da Organização a cargo de
um único Ministério, no entanto, o que se identifica é a distribuição às mais
diversas pastas ministeriais, à medida que vai se relacionando à determinada
matéria referente ao ministério. Assim, com a especificidade do assunto, passa-
se a haver a interação de técnicos dos mais distintos ramos.
Na primeira seção, buscar-se-á enumerar os ministérios federais
brasileiros com competência para atuar nos assuntos oriundos da OMC,
descrevendo nesse item a atuação prática desses órgãos.
O Ministério de referência para os assuntos internacionais é comumente
o Ministério das Relações Exteriores, no caso da OMC, sendo substituído pelo
Ministério de Comércio Internacional, ante a especificidade, o que não é o caso
do Estado brasileiro. O Comércio Exterior é exercido pelo Ministério do
Desenvolvimento, Industria e Comércio (MDIC). A diferença está nas relações
da OMC, que demonstra uma política multilateral de relações exteriores,
porquanto o MDIC atém-se à execução daqueles acordos.
O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio desempenha
preponderantes funções executivas, possuindo em seus quadros diversos
órgãos administrativos. A estrutura organizacional dos órgãos federais com
atribuições de fiscalização, investigações, aplicações de sanções às empresas
nacionais ou estrageiras, constante no MDIC, será objeto de estudo do §2º desta
seção.
§ 1º A responsabilidade dos Ministérios do Governo Federal brasileiro
A OMC relaciona-se com o Estado membro na figura de seu
representante. Na hipótese do Estado brasileiro, esse representante é o Ministro
das Relações Exteriores. O auxílio ao executivo para representar o Estado não
se limita ao Ministério das Relações Exteriores, posto que, para a aplicação das
normas da OMC no Estado brasileiro, é necessária a participação de outros
ministérios, os quais possuem órgãos anuentes de licenças para a
comercialização de mercadorias advindas do exterior.
61
Ante a importância de saber qual ministério ou órgão é competente para
anuir a licença, identificam-se a seguir os Ministérios e seus respectivos órgãos
com capacidade de expedir a licença de importação para o Brasil.
O Ministério da Justiça tem como órgão anuente o Departamento de
Polícia Federal (DPF) que atua na fiscalização do ingresso e saída de pessoas
e de armas, servindo ainda para auxiliar o trabalho da Receita Federal nas
fronteiras.
O Mistério da Saúde, com a ANVISA, responsabiliza-se pelas medidas
fitossanitárias é de suma importância para o controle de qualidade de ingresso
das mercadorias no país.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA), com o IBAMA, fiscaliza a flora e
a fauna, destacando-se o trabalho para coibir a agressão ao meio ambiente,
permitindo o desenvolvimento sustentável do comércio internacional.
O Ministério de Ciência e Tecnologia, com o ONEM e o INMETRO,
órgãos fiscalizadores de pesos e medidas, aborda temas atinentes ao comércio
internacional.
O Ministério da Defesa participa com o Exército e a Força Aérea,
respectivamente, na anuência de licenças para o comércio de armas e para a
aquisição de aeronaves.
O Ministério das Relações Exteriores participa enviando às Conferências
ministeriais, como representante, o titular da pasta ou substituto legal, fato
ocorrido até então em todas as Conferências Ministeriais realizadas pela
OMC135. Ressalta-se também a iniciativa de ter um diplomata do seu quadro
eleito para o cargo de diretor-geral da OMC136.
O Ministério da Fazenda (MF) participa das políticas de comércio
internacionais com o Banco Central, constituindo-se como fiscalizador do
investimento estrangeiro direto, especificamente em se tratando de capital, além
da Secretaria da Receita Federal.
O Ministério da Agricultura participa ativamente da promoção e das
negociações, no âmbito da OMC, das exportações de produtos do agronegócio,
chegando a exportar para mais 200 países. Um dos órgãos desse Ministério, a
Secretaria de Relações Internacionais do Agronegócio (SRI), atua na elaboração
135 Sobre Conferências Ministeriais, ver capítulo 2. 136 Sobre o Diretor-Geral, ver capítulo anterior.
62
de propostas para negociações de acordos sanitários e fitossanitários e analisa
deliberações relativas às exigências fitossanitárias que envolvem assuntos de
interesse do setor agropecuário brasileiro137.
Os representantes da SRI têm entre as atribuições intermediar
conversas em fóruns bilaterais e multilaterais, como Organização Mundial do
Comércio (OMC), Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e Codex
Alimentarius. Além disso, acompanham e participam das decisões tomadas pela
Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) e atuam diretamente em negociações
no âmbito do Mercosul.
Outra atribuição da SRI é articular ações relacionadas à promoção dos
produtos e serviços do agronegócio para estimular a sua comercialização
externa, consolidando a imagem do Brasil como provedor de alimentos seguros
e de qualidade. Para tanto, periodicamente, o ministério organiza ações em
parceria com outros órgãos de governo, como o Ministério das Relações
Exteriores (MRE), a Agência Brasileira de Promoção de Exportação e
Investimentos (Apex). Na esteira dos bons negócios e sob a coordenação do
Mapa, companhias de diversos setores do agronegócio participam anualmente
de feiras e eventos em países como Emirados Árabes, Indonésia, China, África
do Sul, Arábia Saudita, Vietnã e Rússia.
Considerando a pasta preponderante na matéria de comércio exterior,
tem-se a criação em 1995 do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior (MDIC), que possui como órgãos atuantes: SECEX, DECEX,
DEPLA e SUPRAMA, além de contar com o DECON.
A importação compreendida como a entrada temporária ou definitiva em
território nacional de bens originários ou procedentes de outros países é alvo de
fiscalização para proteção tanto da indústria nacional como da garantia da livre
concorrência, constituindo-se um dos pilares do Sistema Multilateral do
Comércio.
As regras para importação devem ser claras e objetivas e não impedir a
livre concorrência por meios de barreiras não tarifárias, quais sejam: a burocracia
para o desembaraço aduaneiro ou, ainda, a exigência de documentos que
inviabilizem a entrada de produtos estrangeiros. Diante dessa sensível matéria,
137 Ministério da Agricultura. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/internacional>. Acesso em: 28 abr. 2016.
63
passa-se à descrição passo a passo da importação de mercadorias. Para realizar
a importação de uma mercadoria para o Brasil, em primeiro lugar, deve-se
verificar a classificação fiscal do produto (código NCM – Nomenclatura Comum
do Mercosul). A consulta inicial pode ser feita na lista da Tarifa Externa Comum
(TEC), em que também consta a alíquota do imposto de importação de cada
produto138.
Conhecida a classificação do produto, o importador deve consultar o
módulo “Tratamento Administrativo” do Sistema Integrado de Comércio Exterior
(SISCOMEX), para verificar se a importação está sujeita a licenciamento e, em
caso positivo, qual órgão do governo é responsável pela anuência da Licença de
Importação (LI). Caso haja necessidade de anuência de algum órgão, o
importador (ou seu representante legal) deverá registrar a LI no SISCOMEX.
Cada órgão anuente possui sua própria legislação. A norma que contém as
regras de importação no âmbito da Secretaria de Comércio Exterior é a Portaria
SECEX n. 23/2011.
O MDIC atua também na fiscalização de ocorrência de dumping, de
subsídios ilegais a produtos importados para o Brasil, possuindo em sua
estrutura organizacional diversos órgãos tratados no tópico a seguir.
§ 2º Órgãos administrativos competentes para fiscalizar o cumprimento
dos acordos da OMC
O Sistema Brasileiro de Comércio Exterior está inserido nas
competências do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior,
além de atuar em quatro eixos principais, conforme a enumeração feita por
Leonardo Vizeu Figueiredo, quais sejam: a) Operações de Comércio Exterior; b)
Negociações Internacionais; c) Planejamento e Desenvolvimento do Comércio
Exterior; e d) Defesa Comercial139.
O estudo dos órgãos executórios do Ministério de Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior, no contexto do Comércio Exterior, compõe, além
das atividades burocráticas necessárias para o mister público, as atividades fins,
138 Disponível em: <www.mdic.gov.br>. 139 FIGUEREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010. p. 478.
64
sendo a Câmara de Comércio Exterior o órgão superior que reúne vários
ministros de Estados e determina as resoluções que serão executadas pela
SECEX, posto que a competência é a marca de cada um dos órgãos da
Secretaria de Comércio Exterior (SECEX), que se divide nos seguintes órgãos:
Departamento de Operações de Comércio Exterior (DECEX); Departamento de
Negociações Internacionais (DEINT); Departamento de Planejamento e
Desenvolvimento do Comércio Exterior (DEPLA); Departamento de Defesa
Comercial (DECON).
A. Câmara de Comércio Exterior (CAMEX)
O Conselho de Governo da Presidência da República Federativa do
Brasil possui na sua estrutura organizacional a Câmara de Comércio Exterior,
cuja evolução histórica, desde a criação até seu atual formato, apresenta as
atribuições que lhe foram acrescidas e suprimidas ao longo do tempo140.
A CAMEX foi criada através do Decreto n. 1.386, de 06 de fevereiro de
1995, inicialmente presidida pelo Ministro de Estado Chefe da Casa Civil. A partir
de 1999, passou a ser presidida pelo Ministro de Estado da Indústria, do
Comércio e do Turismo. Em 2001, o Decreto n. 3.756 realizou novas alterações
nas atribuições da CAMEX, como a possibilidade de também decidir a respeito
das políticas e atividades de comércio exterior. Houve um momento de
enfraquecimento das atividades da CAMEX, em razão da expedição do Decreto
n. 3.981, de outubro de 2001, quando lhe foi retirada a competência de
formulação de política exterior141.
No modelo atual, a CAMEX encontra-se regulamentada pelo Decreto n.
4.732, de 10 de junho de 2003, que contém as atribuições, além de sua
constituição e funcionamento. A Câmara é responsável pela formulação de
140 Sobre o histórico da CAMEX, conferir RAMOS, Guilherme Cantarino da Costa. Comércio Internacional, Política Comercial Brasileira e a Atuação da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) na condução das Políticas para o Setor. Dissertação de Mestrado apresentada à Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV. Rio de Janeiro, 2008. p. 170. FERNANDES, Ivan Filipe de Almeida Lopes. Burocracia e política: a construção institucional
da política comercial brasileira pós-abertura econômica. 2010. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-26082010-132117/>. Acesso em: 05 maio 2016. p. 77 e ss. 141 RAMOS, Guilherme Cantarino da Costa. Op. cit., p. 174.
65
diretrizes, visando à implementação de políticas e programas de comércio
exterior de bens e serviços, além de coordenar os demais órgãos que atuem
nessa área, aos quais se propõem as medidas de caráter fiscal e cambial, de
financiamento, de recuperação de créditos à exportação de seguro de
transportes, de modo que haja melhoria de serviços portuários e de promoção
comercial142.
A CAMEX é composta pelo Conselho de Ministros, Secretaria Executiva,
Comitê Executivo de Gestão (GECEX), Comitê de Financiamento e Garantia das
Exportações (COFIG), Conselho Consultivo do Setor Privado (CONEX)143.
Desses órgãos, tem-se como o principal, com função deliberativa, o Conselho
de Ministros, formado das mais variadas pastas, participando dele o Ministro de
Estado do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, responsável pela
presidência do Conselho, sendo seus membros os Ministros de Estado Chefe da
Casa Civil; das Relações Exteriores; da Fazenda; da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento; do Planejamento, Orçamento e Gestão; e do Desenvolvimento
Agrário. Acrescentam-se a essa composição representantes de outros órgãos
do executivo federal, mormente quando o tema a ser discutido é inerente a esses
órgãos144.
Consoante à atuação dos órgãos supramencionados, compõem ainda a
Câmara diversos grupos temáticos validando a postura técnica desenvolvida por
ela. Dentre essa variedade de grupos, Marianna Perantoni enfatiza o importante
Grupo Técnico de Defesa Comercial (GTDC), criado pela Resolução n. 82/2011,
cuja função primária consiste na análise prévia do estabelecimento de direitos
antidumping e compensatórios, de natureza provisória ou definitiva, bem como
das medidas de salvaguarda145.
As funções da CAMEX estão inseridas no artigo 2º do Decreto n.
4.732/2003, destacando-se as relacionadas a medidas de defesa comercial:
“estabelecer diretrizes e procedimentos para investigações relativas a práticas
desleais de comércio exterior”; “fixar direitos antidumping e compensatórios,
142 GOYOS JUNIOR, Durval de Noronha; GABRIEL, Amélia Regina Mussi; CARVALHO, Carolina Monteiro; NEGRINI, Maria Carolina Briza. Tratado de defesa comercial: antidumping,
compensatórias e salvaguardas. São Paulo: Observador Legal, 2003. p. 120-121. 143 Regimento Interno da CAMEX, Resolução n. 11, de 25 de abril de 2005. 144 Artigo 4º do Decreto n. 4.732/2003. 145 PERANTONI, Marianna. Op. cit., p. 163 e Artigo 2º, XV, do Decreto n. 4.732/2003.
66
provisórios ou definitivos, e salvaguardas”; “decidir sobre a suspensão da
exigibilidade dos direitos provisórios”146.
B. Secretaria de Comércio Exterior (SECEX)
Em 1990, com a nova formação administrativa do executivo federal, foi
criado no âmbito da Secretaria Nacional de Economia, vinculada ao então
Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, o Departamento de Comércio
Exterior, atual Secretaria do Comércio Exterior. Era composto de duas áreas: a
Coordenação Técnica de Intercâmbio Comercial (CTIC), que assumiu
atribuições da antiga CACEX, e a Coordenação Técnica de Tarifas (CTT),
responsável por funções anteriormente conferidas à Comissão de Política
Aduaneira147.
Foi criada com a atual nomenclatura, a SECEX, a partir do dispositivo
legal inserido no artigo 19, X, e da Lei 8.490, de 19 de novembro de 1992,
concomitantemente com a criação à época do Ministério da Indústria, Comércio
e Turismo, vindo posteriormente a se tornar órgão do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, através do Decreto 5.532 de 06
de setembro de 2005. A SECEX apresenta entre suas funções precípuas a
condução das políticas de comércio exterior e gestão do controle comercial. As
funções da SECEX podem ser compreendidas pela composição dos seus órgãos
DECEX, DEINT, DEPLA e DECOM, consistindo em normatizar, supervisionar,
orientar, planejar, controlar e avaliar as atividades de comércio exterior.
Entre suas atividades, estão: participar das negociações dos
acordos comerciais internacionais do governo brasileiro; promover a cultura
exportadora; deferir atos concessórios de drawback; anuir operações de
exportação e importação; promover o exame de similaridade para averiguação
de produção nacional; compilar a balança comercial; promover a defesa
comercial do país; administrar e normatizar o Sistema Integrado de Comércio
Exterior (SISCOMEX).
146 Ibidem. Artigo 2º, VIII, XV e XVI. 147 Notícia publicada no sítio eletrônico <www.exponews.com.br>. Acesso em: 03 nov. 2010.
67
As normas emitidas pela SECEX têm impacto direto nas relações
comerciais multilaterais. Desse modo, constata-se a partir de levantamento
jurisprudencial148 das decisões emanadas pelos juízes brasileiros que,
mormente, as referidas regras são questionadas na justiça, por ferirem os
dispositivos dos acordos firmados na OMC.
C. Departamento de Operações de Comércio Exterior (DECEX)
O Departamento de Operações de Comércio Exterior é o órgão
regulador das operações de comércio exterior, sendo sua atuação norteada
pelos desafios de expansão das vendas externas brasileiras. Compete a ele
desenvolver, executar e acompanhar políticas e programas de
operacionalização do comércio exterior e estabelecer normas e procedimentos
necessários à sua implantação149.
As atribuições do DECEX consistem, ainda, na implementação de
diretrizes setoriais de comércio exterior e decisões provenientes de acordos
internacionais e de legislação nacional referentes à comercialização de produtos.
Outras obrigações são o acompanhamento, a participação e a implementação
de ações de comércio exterior relacionadas com acordos internacionais que
envolvam comercialização de produtos ou setores específicos referentes à área
de atuação do departamento.
O DECEX coordena ações sobre o acordo de procedimentos de
licenciamentos das importações junto a blocos econômicos e à Organização
Mundial do Comércio, sendo também atribuição do DECEX a participação nos
eventos nacionais e internacionais e, ainda, o desenvolvimento, a execução, a
administração e o acompanhamento do desempenho operacional do comércio
exterior, bem como seus sistemas operacionais150.
Constitui sua competência a fiscalização de preços, pesos, medidas,
classificação, qualidades e tipos, declarados nas operações de exportação e
importação, diretamente ou em articulação com outros órgãos governamentais,
observadas as atribuições das repartições aduaneiras. O DECEX analisa
148 Ver capítulos 6 e 7. 149 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Op. cit., p. 479. 150 Idem, Ibidem.
68
pedidos de redução da alíquota do imposto de renda nas remessas financeiras
ao exterior dirigidas ao pagamento de despesas vinculadas à promoção de
produtos brasileiros realizada no exterior151.
O DECEX é ouvido sobre normas para o Programa de Financiamento às
Exportações (PROEX) atinentes a aspectos comerciais. Ele coordena o
desenvolvimento, implantação e administração de módulos operacionais do
Sistema Integrado de Comércio Exterior em sede do Ministério, bem como a
atuação dos demais órgãos anuentes de comércio exterior, visando a
harmonização e operacionalização de procedimentos de licenciamento de
operações cursadas naquele ambiente.
Leonardo Figueiredo acrescenta como sendo deveres do DECEX:
coordenar a atuação dos agentes externos autorizados a processar operações
de comércio exterior; ter como função representar o Ministério nas reuniões de
coordenação do SISCOMEX; realizar a manutenção e atualização do Cadastro
de Exportadores e Importadores da Secretaria de Comércio Exterior152.
Atribui-se ao DECEX examinar pedidos de inscrição, atualização e
cancelamento de Registro de Empresas Comerciais Exportadoras, constituídas
nos termos da legislação específica, cabendo a ele o exame e a apuração de
fraudes no Comércio Exterior e a proposição de aplicação de penalidades153.
D. Departamento de Negociações Internacionais (DEINT)
O Departamento de Negociações Internacionais tem por finalidade
regular, como seu próprio nome indica, as negociações internacionais em que
haja a presença do Estado brasileiro, de modo que esse Departamento zele
pelos interesses nacionais.
As competências do DEINT apresentadas por Leonardo Vizeu
Figueiredo são negociar e promover estudos e iniciativas internas destinadas a
apoio, informação e orientação da participação brasileira em negociações de
comércio exterior, desenvolvimento de atividades de comércio exterior perante
organismos e participação nos acordos internacionais.
151 Idem, Ibidem, p. 479. 152 Idem, Ibidem, p. 479. 153 Ibidem, p. 479.
69
Possui como atribuições a coordenação, no plano interno, de trabalhos
preparatórios da participação brasileira nas negociações de tarifas ocorridas no
cenário internacional, bem como emitir opiniões sobre a extensão e a retirada de
concessões.
E. Departamento de Planejamento e Desenvolvimento do Comércio
Exterior (DEPLA)
O Departamento responsável pelo planejamento e desenvolvimento do
Comércio Exterior possui as funções de executar políticas e programas de
comércio exterior, formulando propostas de planejamento da ação
governamental no que tange ao comércio exterior.
O DEPLA desenvolve estudos de mercados e produtos estratégicos para
expansão das exportações brasileiras. Constituem ainda suas atribuições
planejar e executar programas de capacitação em comércio exterior para
fomentar as exportações nas pequenas e médias empresas, bem como
estimular a manutenção de programas de desenvolvimento da cultura
exportadora. O DEPLA acompanha, através de fóruns e comitês internacionais,
os assuntos relacionados com o comércio internacional e o comércio eletrônico.
O DEPLA elabora e edita material técnico para orientação da atividade
exportadora, além de produzir, analisar, sistematizar e disseminar os dados e
informações estatísticas de comércio exterior. A formulação de estratégias de
parcerias entre órgãos e entidades públicas e privadas, para o desenvolvimento
de ações e programas relacionados com a promoção das exportações, é
também, segundo Leonardo Figueiredo, uma de suas atribuições. Além disso, é
o responsável pela coordenação das atividades, implementação de ações e
prestação de informações sobre comércio exterior.
F. Departamento de Defesa Comercial (DECOM)
O Departamento de Defesa Comercial foi criado por meio do Decreto n.
1.757/1995, o qual já foi alterado por inúmeros outros decretos, sendo,
atualmente, regido pelo Decreto n. 7.096/2010. O DECOM é a autoridade
investigadora brasileira para fins de inquéritos administrativos de defesa
70
comercial. Ele é parte integrante da Secretaria de Comércio Exterior, do
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio.
A criação do DECOM está situada historicamente no contexto mundial
de maior liberalização do comércio internacional, especialmente no ano de 1995,
quando da criação da OMC e do início do MERCOSUL, estando o Brasil
participando de ambos. Configuram-se uma necessidade da sociedade brasileira
a defesa comercial com a finalidade de evitar a prática predatória de indústria
nacional e a consonância dessa defesa com os acordos multilaterais das
organizações supracitadas.
A responsabilidade pela condução do processo administrativo de defesa
comercial compete ao DECOM, cuja competência abrange desde a instauração
da abertura de investigação até a sua finalização com a formação de juízo sobre
o mérito do processo administrativo.
As principais atribuições do DECOM desenvolvem-se em três vertentes
básicas: investigação sobre as práticas desleais de comércio internacional; apoio
ao exportador; e negociações internacionais no tocante às suas atribuições
próprias. As principais ações do Departamento seguem listadas: examinar a
procedência e o mérito de petições de abertura de investigações de dumping, de
subsídios e de salvaguardas, com vistas à defesa da produção doméstica; propor
a abertura e conduzir investigações para a aplicação de medidas antidumping,
compensatórias e de salvaguardas; recomendar a aplicação das medidas de
defesa comercial previstas nos correspondentes acordos da Organização
Mundial do Comércio (OMC); acompanhar as discussões relativas às normas e
à aplicação dos acordos de defesa comercial junto à OMC; participar em
negociações internacionais relativas à defesa comercial; e acompanhar as
investigações de defesa comercial abertas por terceiros países contra
exportações brasileiras e prestar assistência à defesa do exportador, em
articulação com outros órgãos governamentais e com o setor privado154.
Igualmente, possui como atribuição a participação em negociações
internacionais relacionadas ao seu campo de atuação, elaborando posições
técnicas para a delegação brasileira presente nas negociações nos foros
154 Departamento de Defesa Comercial (DECOM). Apoio ao Exportador. Disponível em:
<http://www.desenvolvimento.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=5&menu=3961>. Acesso em: 09 maio 2016.
71
internacionais155. A participação do DECOM se dá em conjunto e com a
colaboração do Ministério das Relações Exteriores.
155 FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Sistema brasileiro de comércio exterior e de defesa comercial: principais aspectos jurídicos. Op. cit., p. 11.
72
Capítulo 4. A RESPONSABILIDADE DO ESTADO BRASILEIRO NA OMC
A condição de membro da Organização Mundial do Comércio acarreta
sobre o Estado brasileiro responsabilidades a serem assumidas perante a
comunidade internacional. As ações e omissões do Estado membro da OMC que
porventura venham a causar danos a outros países membros, mediante a
violação de regras, princípios ou costumes internacionalmente válidos, poderão
resultar em imputação de sanções, que, via de regra, são medidas, no caso do
contexto do comércio internacional, a objetivar a interrupção do dano causado.
Em um primeiro momento, serão analisadas as regras gerais no que
tange à responsabilidade internacional do ente Estatal. Considera-se para esses
fins a violação de regra de direito internacional por ação ou omissão feita de
modo doloso, em seguida, descreve-se a imputabilidade e por quais danos
provocados aos países membros podem ser demandados os Estados.
No segundo momento, ressalta-se a responsabilidade imputada ao
Estado no foro do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, momento em
que são descritas as fases processuais indicando: o momento de representação;
instalação do painel; participação de terceiros; o recurso ao órgão de apelação;
e, por conseguinte, o processo de implementação da decisão, que corresponde
a medidas sancionatórias.
Em se tratando de medida sancionatória a ser tomada no âmbito da
OMC, esta será punitiva, quando precedida de processo formal promovido no
espaço próprio, qual seja, o Órgão de Solução de Controvérsias, cujos princípios
processuais se assemelham a uma corte judicial, assegurando a ampla defesa.
Assim, esgotada a possibilidade de acordo ou de suspensão da ação infringente
pelo Estado infrator, confere-se ao vencedor a possibilidade de retaliar com
medidas gradativas que podem chegar até ao aumento de tributo, a fim de cessar
o comportamento transgressor.
No terceiro tópico, na aplicação das regras da OMC, tendo ocorrido todo
o processo, o país vencedor poderá, perante o vencido, deixar de executar, caso
haja alguma compensação. Tal fato ocorreu no caso Algodão, promovido pelo
Brasil versus EUA, em que ficou acordado o valor de US$300 milhões para a
criação de um fundo de amparo ao trabalhador rural que lida com a plantação de
algodão. Diante disso, depreende-se que antes de chegar o processo na OMC
73
movido pelo Estado membro, a parte interessada muitas das vezes ingressou
com ações buscando por meio do Poder Judiciário local uma prestação de um
direito assegurado nas normas da OMC, já internalizado, como mencionado no
capítulo 2. No entanto, em alguns casos, o juiz de primeira instância ou até
mesmo as Cortes superiores julgam de modo diverso, longe da expectativa
projetada para o demandante que espera uma atuação jurisdicional compatível
com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro no âmbito das
negociações multilaterais.
Seção 1. As regras gerais da Responsabilidade internacional
A atribuição da responsabilidade é pressuposto da noção de sujeito de
direito, ou seja, quem possui direitos e deveres perante a ordem jurídica
internacional. De modo geral, Jorge Miranda define que “sempre que um sujeito
de Direito viola uma norma ou um dever que está ligado em relação com outro
sujeito ou sempre que, por qualquer forma, causa-lhe um prejuízo, incorre em
responsabilidade; fica constituído em dever específico para com o lesado”156.
Dessa forma, Celso Mello apresenta como imprescindível ante o
reconhecimento da personalidade jurídica do Estado a atribuição da
responsabilidade. Assim, complementa, de tal modo por ser o Estado uma
pessoa jurídica, este goza de direitos e, por conseguinte, decorrem deveres, o
que, nos dizeres de Mello: “é a violação de uma norma jurídica internacional que
tem o Estado como seu destinatário, que é o principal elemento da
responsabilidade”157.
A responsabilidade internacional de um Estado perante a comunidade
internacional possui nuances gerais e específicas, de maneira que pode ocorrê-
la envolvendo as mais diversas organizações internacionais, tais como a
Organização das Nações Unidas (ONU), a Corte Internacional de Justiça (CIJ) e
a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), dentre outras. Nessa seara,
delimita-se a apresentar as violações às normas da OMC, sendo demonstrada a
156 MIRANDA, Jorge. Sobre a responsabilidade internacional em geral. Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, v. 20, Brasília, jul./dez. 2002. p. 305. 157 MELLO, Celso D. Albuquerque. Responsabilidade internacional do estado. Rio de Janeiro:
Renovar, 1995. p.9.
74
violação do direito, em suas espécies por omissão ou por ação infrigida pelos
Estados que assumiram na condição de membro adotar os seus estatutos.
A seguir, são descritos os elementos caracterizadores da
responsabilidade sobre imputabilidade ao Estado da conduta ilícita na esfera
internacional, bem como das condutas não proibidas, mas ensejadoras de
danos, considerando esse como pessoa capaz de ser responsabilizada na
esfera internacional.
Ademais, é necessário expor quais os danos que porventura venham a
ser causados que ensejam a possibilidade de responsabilização do Estado,
exemplificando para tanto as ocorrências no Órgão de Solução de Controvérsias
da OMC.
§ 1º Violação do direito por omissão ou ação
Um Estado viola uma norma por duas formas: por atos dos agentes, a
chamada forma comissiva; e por inércia na implementação de políticas públicas
que assegurem determinado direito, sendo uma espécie de ato por omissão.
O Estado nas suas três esferas de atuação, executivo, legislativo e
judiciário, poderá em cada uma das formas de exercício de seu poder realizar
atos comissivos ou omissivos, ilícitos ou lícitos, causadores de eventuais danos.
A Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, através de
Projeto de artigos (Draft Articles), em seu artigo 2º, aponta: “Há um ato
internacionalmente ilícito quando conduta consistindo de uma ação ou omissão”:
(a) É atribuível ao Estado segundo o direito internacional; e (b) Constitui violação
de uma obrigação internacional do Estado”. As possibilidades exposadas nesse
artigo 2º, em ambas as letras: “a” e “b” versam sobre a ilicitude, seja da ação,
seja da omissão praticada pelo Estado158.
158 A CDI é uma comissão que foi criada em 1947 pela Assembleia Geral das Nações Unidas com o objetivo de discussão e codificação do Direito Internacional. Art. 2º do Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional dos Estados, tradutor Aziz Tuffi Saliba. Disponível em: <http: //iusgentium.ufsc.br/wp-content/uploads/2015/09/Projeto-da-CDI-sobreResponsabilidadeInternacional-dos-Estados.pdf>. Acesso em: 13 maio 2016, p. 01. “There is an internationally wrongful act of a State when conduct consisting of an action or omission:(a) Is attributable to the State under international law; and (b) Constitutes a breach of an international obligation of the State”.
75
O artigo 4º, do aludido projeto, expõe em seu item primeiro o que pode
ser considerado ato do Estado, a conduta de qualquer órgão do Estado que
exerça função legislativa, executiva, judicial ou qualquer outra,
independentemente do ente federal ao qual órgão pertença. No item 2, restam
incluídas como órgão qualquer pessoa ou entidade que tenha tal status de
acordo com o direito interno do Estado159.
No caso da aplicação das normas da OMC, a atuação estatal envolvendo
os agentes públicos na aplicação das medidas fiscalizatórias, por exemplo, na
instauração, processamento e julgamento de processo investigativo de prática
de dumping, bem como a aplicação de medidas antidumping que ultrapassem o
previsto no Acordo Antidumping da OMC, constitui nesse caso violação do direito
comissiva, ensejando a hipótese de vir a ser demandado ao país no Órgão de
Solução de Controvérsia da OMC.
Uma outra possibilidade pode ser percebida quando o Estado deixa de
cumprir com as medidas internas necessárias à incorporação dos acordos da
OMC, verificadas através da revisão de políticas comerciais, realizadas
periodicamente pela OMC160.
Há, ainda, o que é o objeto de estudo no capítulo 04, a violação pela
ação do judiciário dissoante das normas da OMC, em que o magistrado não
aplica corretamente os princípios do comércio multilateral, por diversas razões,
tais como protecionismo nacionalista ou falta de conhecimento técnico para a
aplicação correta do direito internacional econômico.
§ 2º Imputabilidade
A possibilidade de se imputar a algum ente a realização de conduta ilícita
no plano internacional consiste no reconhecimento pelo agente transgressor de
uma ordem jurídica além da ordem interna que o responsabilize por esse ato. O
agente não se restringe a pessoa privada, física ou jurídica, mas inclui também
159 Art. 4º do Projeto da Comissão de Direito internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade internacional dos Estados. Tradutor Aziz Tuffi Saliba. Disponível em: <http://iusgentium.ufsc.br/wp-content/uploads/2015/09/Projeto-da-CDI-sobre-Responsabilidade-Internacional-dos-Estados.pdf>. Acesso em: 13 maio 2016, p. 01. 160 No original em inglês Trade Policy Review.
76
o Estado, porquanto, é pessoa jurídica de direito público e internacionalmente
reconhecido, podendo sobre ele recair imputação.
A possibilidade de se imputar tem se elevado a partir da globalização
cujas consequências diretas trazem para as relações internacionais e,
especificamente, na responsabilidade internacional, a ampliação do rol de atores
ativos e passivos, admitindo-se, ocasionalmente, pessoas físicas ou jurídicas de
direito privado, além ds movimentos de libertação nacional, não se furtando a
essa responsabilidade o Estado e as organizações internacionais, que, segundo
a doutrina, têm sido apontados como entes aptos à responsabilidade
internacional161.
O ato é internacionalmente ilícito a partir da existência de dois
elementos: o objetivo, o que no caso específico consiste numa violação das
obrigações assumidas perante a OMC; e o subjetivo, que implica a atribuição da
conduta ilícita ao Estado, conhecido também como “fato do Estado”162. A sua
imputação é tida a partir de institutos legais, por exemplo, os estatutos da OMC
e as normas que o compõem.
O Projeto da Comissão de Direito Internacional da Organização das
Nações Unidas (CDI), cuja função visa à promoção do desenvolvimento
progressivo do direito internacional e de sua codificação, não expõe uma regra
geral163. Há na realidade duas espécies: a responsabilidade por atos
internacionalmente ilícitos (internationally wrongful acts), conforme expressa a
CDI, e, diversos destes, os atos não proibidos, ou responsabilidade por
consequências de atos não proibidos pelo direito internacional164.
A. Atos internacionalmente ilícitos
O Projeto da CDI expressa no artigo 1º, de modo direto, que todo ato
ilícito internacional cometido por um Estado resulta na responsabilidade
161 BARTASSON, Vilma Aparecida Moreira. A Responsabilidade Internacional do Estado à luz do Direito Internacional Público Contemporâneo. COMMUNITAS – Revista de Direito, v. 1, n. 2, jul./dez. 2010, p. 48. 162 ARANTES NETO, Adelino. Responsabilidade do Estado no Direito Internacional e na OMC. 2. Ed . Juruá. Curitiba, 2008. p. 82. 163 GARCIA, Marcio. p. 277. 164 LAWSON, Michael Nunes. A reclamação de não violação no GATT/OMC. Dissertação de
Mestrado. UFRS. 188 páginas. Porto Alegre, 2009. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/ bitstream/handle/10183/18273/000728343.pdf?sequence=1>. Acesso em: 13 mai 2016. p. 31.
77
internacional daquele que praticou tal ato165. As condições gerais fomentadoras
do ato internacionalmente ilícito estão previstas no artigo 2º do referido Projeto,
apresentando-se em duas condicionantes. A primeira aponta que o ato seja
atribuível ao Estado de acordo com o direito internacional e concomitantemente
constitua violação de uma obrigação internacional do Estado166.
Outro princípio relacionado à ocorrência do ato internacionalmente ilícito
é, no entendimento de Adelino Arantes Neto, ao comentar o artigo 3º do Projeto
da CDI: “a caraterização do ato ilícito, nos seus elementos objetivos e subjetivos
é operada exclusivamente pelo direito internacional e independe de sua
qualificação em direito interno”. Desse modo, não afeta a ilicitude do ato
internacional que porventura venha este a contrariar a lei interna do Estado,
ainda que no plano constitucional ou ordinário, nas esferas estadual ou
municipal167.
B. Atos não proibidos causadores de danos
A regra geral, conforme explorado no item anterior, é de que o ato
internacionalmente gerador da responsabilidade estatal é o ato ilícito, prevista a
transgressão a alguma norma previamente codificada, de modo que é
excepcional a responsabilização do Estado por ato lícito.
O direito internacional apresenta diversas áreas cuja proteção tem em
sua finalidade a proteção do bem jurídico tutelado, tendo o direito internacional
do meio ambiente, dos espaços internacionais e, neste objeto de estudo, o direito
internacional econômico, com o princípio da “responsabilidade por não violação”,
presente no ordenamento jurídico da OMC.
A definição e a compreensão da caracterização de um ato ilícito referem-
se à sua transgressão à norma. De outro modo, em se tratando de ato lícito, a
responsabilidade somente ocorre com a sua consequência danosa. A esse
respeito, Adelino Arantes Neto explica que nesse caso a responsabilidade
subsiste pelo simples fato da ocorrência do dano, sendo desnecessário o
165 Art. 1º, do Projeto da CDI, Op. cit. 166 Art. 2º, Projeto da CDI. Op. cit. 167 ARANTES NETO, Adelino. Op. cit., p. 54.
78
estabelecimento da proveniência do dano, se oriunda de ato lícito ou de ato
ilícito168.
O nexo causal, que é a correlação existente entre o ato e o dano, não é
exigível nem mensurado nesse desiderato, uma vez que o que está se
responsabilizando ao Estado é o dano causado, e não o ato por ele cometido ou
deixado de realizar. A reparação é uma imposição diante do prejuízo e dano
causado.
A responsabilidade por ato lícito possui o caráter objetivo e absoluto,
diverso do que ocorre com a reponsabilidade por ato internacionalmente ilícito,
mediante o qual não são admitidas escusas relativas à ausência de culpa ou de
ilicitude169.
Diante da ausência de um ilícito, imperiosa é a necessidade de prova do
dano para que haja a responsabilização do Estado por ato lícito, de modo que,
não restando suficientemente comprovado o dano, não há como pretender que
se suspenda o ato lícito ou pleitei-se a reparação pretensa.
No trabalho desenvolvido pela CDI, cuja temática versa sobre
responsabilidade internacional por consequências danosas em decorrência de
atos não proibidos pelo direito internacional, incluindo o Projeto de princípios
sobre a alocação de prejuízo no caso de dano transfronteiriço decorrente de
atividades perigosas. Nele, restaram-se de fora essas espécies de
responsabilização (por danos transfronteiriços), assim, quando ocorrer, deverá
ser objeto de normas convencionadas entre os Estados envolvidos170.
A condição primeira para qualquer imputabilidade é a existência
irrefutável de um dever decorrente ao menos de uma das fontes de Direito
Internacional, previstas exemplificativamente no Artigo 38 do Estatuto da CIJ171.
Adelino Arantes Neto, referindo-se ao artigo XXIII.1 “a”, aduz que, nos
casos de violação deste artigo, “presume-se a ocorrência de uma anulação ou
prejuízo de benefício, cabendo ao Estado violador provar o contrário”. Esse
princípio, conforme Arantes Neto explica, “afasta o sistema GATT e a OMC da
168 Ibidem. p. 205. 169 Ibidem, p. 206. 170 LAWSON, Michael Nunes. A reclamação de não violação no GATT/OMC. Dissertação de
Mestrado. UFRS. 188 páginas. Porto Alegre, 2009. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/ bitstream/handle/10183/18273/000728343.pdf?sequence=1>. Acesso em: 13 maio 2016. p. 47. 171 BROWNLIE, Ian. Princípios de direito internacional público. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997, p. 4-5.
79
lógica do foro de negociações, cuja finalidade é preservar o equilíbrio de
concessões, e os aproxima da lógica da implementação estrita do direito e da
solução de controvérsias com referência à norma jurídica”172.
Impera, ainda, destacar os casos previstos nas alíneas “b” e “c” do artigo
XXIII:1 do GATT/94, que prevê expressamente a possibilidade de disputa
independente de ter ocorrido violação, são os denominados “casos de não
violação”.
Observando o dispositivo supracitado, artigo XXIII do GATT/94, tem-se
assegurada a instauração de controvérsia caso um Estado membro considere
que qualquer benefício do acordo esteja sendo, direta ou indiretamente,
diminuído ou anulado bem como tenha obstado qualquer objetivo em face da
ação de outro membro, ainda que seja lícita173.
§ 3º Danos
O dano, a priori, é inexigível como pressuposto da responsabilidade
internacional, a partir da compreensão do artigo 1º do Projeto da CDI. Também
a esse respeito, Patrick Daillier, Nguyen Quoc Dinh e Alain Pellet afirmam ser o
fato internacionalmente ilícito “condição necessária e suficiente para o
comprometimento da responsabilidade. Dele se deduz que a responsabilidade
comprometida independentemente das suas eventuais consequências”174.
A teoria da reparação dos danos advém da possibilidade de se deixar o
mais próximo do estado inicial, o status quo ante, do prejudicado, de modo que
a sua exarcebação acarretará locupletamento ilícito. Impera relatar, contudo, que
não há na esfera internacional a exigência do dano para que se constranja ao
Estado medida coercitiva. Não obstante essa observação da inexigibilidade do
dano, o mesmo não ocorre quando se trata de medidas antidumping175.
A proteção da ordem jurídica internacional e das obrigações
internacionais ocorre independentemente das consequências da sua violação, o
que se dá pela prescindibilidade do dano. Adelino Arantes Neto aponta, contudo,
172 ARANTES NETO, Adelino. Op.cit., p. 237. 173 Artigo XXIII:1, GATT/1994. 174 DAILLIER, Patrick; DINH, Nguyen Quoc; PELLET, Alain. Direito Internacional Público. 2.
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 778. 175 Sobre Antidumping ver capítulo 7.
80
que o dano é utilizado como critério para a obrigação de reparação, quando é
responsável pela determinação da responsabilização decorrente da prática de
ato lícito176.
A reparação dos danos deve ser feita levando-se em conta o nexo de
causalidade entre o ato ilícito e a exata extensão do dano causado. Os danos
reparáveis são causados a outro Estado, via de regra, este é o principal sujeito
nas relações de direito internacional. Não obstante, conforme Adelino Arantes
Neto, poderá um particular, pessoa física ou jurídica, por intermédio do
mecanismo jurídico da proteção diplomática, invocar a responsabilidade
internacional do Estado que lhe causou dano177.
No caso de violações às regras da OMC que impliquem danos imediatos
aos particulares, somente poderão ser reparadas através do seu Estado, que
buscará a via da solução de controvérsias para a reparação do dano e a
suspensão do ato. Nesse sentido, rememora-se o caso dos produtores de
algodão brasileiros que foram prejudicados pelos subsídios agrícolas realizados
pelos Estados Unidos da América. Os direitos daqueles produtores foram
protegidos por intermédio do Estado brasileiro no Órgão de Solução de
Controvérsias (OSC), tendo se consagrado vencedor no painel e recebido o
direito de retaliar os EUA178 .
Seção 2. A responsabilidade perante o Órgão de Solução de Controvérsias
O estatuto da OMC inovou em comparação ao GATT/47, quando da
criação do Órgão de Solução de Controvérsias, atribui-lhe comportamentos mais
próximos de um tribunal, por exemplo, a mudança para o consentimento
negativo, consistindo em que todos os Estados membros, caso desejem abster-
se de aplicar a pena, devem votar pela negativa todos, inclusive o país delator.
Antes, no GATT, bastava que um dos países membros votasse pela não
aplicação, o que tornava muito difíceis as ocorrências de punições.
As decisões sobre contenciosos comerciais passaram, segundo Daniel
Arbix, a ser “ousadas por contrariar parceiros econômicos fortes”. Prossegue
176 ARANTES NETO, Adelino. Op. cit., p. 119. 177 Ibidem, p. 121. 178 WTO. Cotton – USA x Brazil. (WTO/DS267) decisão 03/03/2005.
81
afirmando que “devem ser também audaciosas pela transparência”, a fim de que
as empresas integrantes dos setores exportadores do país se dediquem à
integração no processo decisório e às disputas no sistema multilateral do
comércio179.
A prerrogativa de se ingressar com reclamações perante o OSC é
exclusiva dos Estados membros da OMC, podendo ocorrer uma demanda com
múltiplos autores, respeitados os dispositivos do Entendimento relativo às
Normas e procedimentos sobre Solução de Controvérsias, sendo este o anexo
2 do acordo constitutivo da OMC, cuja observância se destina a todos os
membros.
Por se tratar de um Órgão que ao final impõe sanções, o Órgão de
Solução de Controvérsias obedece o desenvolvimento em regras e prazos que
contribuem para uma decisão célere, com a finalidade de promover
conformidade dos atos praticados pelos membros com o disposto no Estatuto da
OMC.
O processo na OMC divide-se em uma parte prévia denominada
consultas bilaterais e prossegue com a instauração de Painel, com a formação
de grupo especial, composto por experts e levando o relatório para votação de
todos os membros da OMC. A resignação da parte vencida pode ser
demonstrada com a apresentação de recurso da decisão do painel ao Órgão de
apelação, que proferirá a decisão final.
A judicialização da observância das regras da OMC tem contribuído para
que nações desenvolvidas respeitem as normas firmadas, posto que o seu poder
econômico não causa influência nos julgamentos que visam à tecnicidade por
parte dos painelistas.
§ 1º O Processo na OMC
O mecanismo de solução de controvérsias da OMC se divide em duas
fases, sendo elas de natureza política e jurídica, havendo, em razão disso,
179 ARBIX, Daniel. Contenciosos brasileiros na Organização Mundial do Comércio (OMC): pauta comercial, política e instituições. Contexto internacional, Rio de Janeiro, v. 30, n. 3, p. 655-
699, Dez. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S010285292008000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 09 maio 2016.
82
constantemente, a possibilidade de se negociar o término da querela com a
melhor saída para os Estados envolvidos. Essa hipótese conciliatória pode
acontecer em qualquer das fases do processo, considerando a oferta de
proposta aceita por ambas as partes.
O processo se inicia com uma queixa apresentada por um ou mais
Estados Membros ao Presidente do Orgão de Solução de Controvérsias180. Há
uma primeira rodada de consultas bilaterais, de acordo com Celso Lafer: “elas
são uma ocasião para fact finding, e representam uma forma estruturada de
inquérito conjunto, que pode levar, pela negociação, à conciliação dos
interesses”181.
O Presidente do OSC, atendendo a solicitação do querelente, intimará o
querelado para apresentar justificativas do ato praticado, ou informar as razões
que o levaram a deixar de praticar ato previsto nos acordos firmados na OMC.
Nesse momento, pode-se ainda propor acordo entre as partes, além de as partes
avaliarem os argumentos contrários e as chances de vencer a controvérsia,
podendo antecipar conciliação182.
Pode ocorrer de um terceiro membro ter interesse na disputa, por
demonstrar interesse como parte prejudicada ou beneficiária da medida
qestionada. Para ser inserido nas consultas, esse membro terá o prazo de 10
(dez) dias a contar da data de divulgação da solicitação de consultas original aos
membros da OMC, devendo para tanto obter a aceitação pelo demandado183.
Caso a parte requerida não aceite o ingresso do terceiro interessado na
controvérsia, não restará para o terceiro nenhum recurso, contudo poderá
ingressar com a sua própria demanda.
180 A denominação original do Órgão de Solução de Controvérsias é Dispute Settlement Body. O Ministério das relações exteriores preferiu a tradução do termo “Dispute” por “controvérsias”, o
que ensejou críticas por doutrinadores que preferem uma nomenclatura mais próxima da terminologia adotada nos tribunais, como, por exemplo, litígios. Conferir: VARELLA, Marcelo Dias. Efetividade do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio: uma análise sobre os seus doze primeiros anos de existência e das propostas para seu aperfeiçoamento. Revista brasileira de política internacional, Brasília, v. 52, n. 2, p. 5-21,
dez. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292009000200001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 06 jun. 2016. 181 LAFER, Celso. O sistema de solução de controvérsias da organização mundial do comércio. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 91, p.
461-488, jan. 1996. ISSN 2318-8235. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67346/69956>. Acesso em: 12 jun. 2016. p. 471. 182 BRAZ, Mário Sérgio Araújo. Retaliação na OMC. Curitiba: Juruá, 2006. p. 60. 183 Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC), art. 4.11
83
Findo o prazo de 60 (sessenta) dias a contar da solicitação de consultas
bilaterais, sem que tenha sido solucionada a controvérsia, poderá ser solicitada
pela parte reclamante a formação de um grupo especial que decidirá a
questão184.
Após aceita, por consenso do OSC, a solicitação da formação do grupo
especial, cuja função precípua é de auxiliar o OSC, é formado com 3 ou 5
integrantes. A escolha de seus integrantes deve ser feita com o saber
reconhecido185, podendo ser funcionários governamentais, o que também se
levará em conta a participação deles em outros grupos especiais, como membro
ou como consultor, ainda a atuação como representante de uma parte
contratante do GATT 1947, ou como representante de Conselho ou Comitê, ou
ainda, tenha tido atuação no Secretariado, bem como exercido a docência ou
desenvolvido artigos sobre direito, economia ou política comercial internacional,
ou que tenha sido alto funcionário na área de política comercial de um dos
membros186.
A composição do grupo especial pode ser indicada a partir da lista
mantida pela Secretaria Geral da OMC, cujos integrantes possuem plenas
qualificações para exercer o mister. O Artigo 8.6 do ESC determina que o
Secretariado deve propor indicações de componentes do grupo especial para as
partes envolvidas na disputa e tal indicação não deve ser recusada, salvo por
motivos convincentes, o que se tem percebido é que não tem se restringido às
indicações feitas pelo secretariado, tampouco à lista por ele mantida187.
Terceiros interessados podem ingressar como participantes dos grupos
especiais, assim como é permitida a pluralidade de partes reclamantes, o que
ensejará a concentração de questões idênticas no mesmo Grupo Especial, bem
explica tal questão Selma Ferreira Lemes ao comentar o artigo 9.3 do
184 ESC, art. 4.7. 185 RODRIGUES, Alberto Silva. O sistema de solução de controvérsias da OMC: Um Estudo de Caso sobre os Subsídios da União Europeia ao Açúcar. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE, 2005. Disponível em: <http://repositorio.ufpe.br:8080/bitstream/handle/123456789/4411/arquivo5999_1.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 06 jun. 2016. p. 45. 186 SILVA, Elaine Cristina Gonzaga. Juridicização das Relações Internacionais e Solução de Controvérsias: Análise do Sistema Multilateral de Comércio. Dissertação de Mestrado em
Direito apresentado à Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. p. 67. E ESC, art.8.1. 187 BRAZ, Mário Sérgio Araújo. Op. cit., p. 65.
84
Entendimento sobre Solução de Controvérsias cuja finalidade predispõe a
maximizar o tempo e a concentração de julgados.188
A função auxiliar de um Grupo Especial consiste nas obrigações contidas
no ESC bem como nos acordos abrangidos, além de “fazer uma avaliação
objetiva do assunto que lhe seja submetido, incluindo uma avaliação objetiva dos
fatos, da aplicabilidade e concordância com os acordos abrangidos pertinentes,
e formular conclusões que auxiliem o OSC”. Cabe ainda ao OSC realizar as
recomendações ou emissão de decisões previstas nos acordos abrangidos.
Considerando o princípio do melhor resultado para ambas as partes, os grupos
especiais regularmente devem realizar consultas às partes envolvidas na
controvérsia, propiciando oportunidade para encontrar a solução satisfatória
para todos os envolvidos189.
O processo do painel deverá seguir um cronograma, em condições
normais, a não exceder seis meses, ressalvando-se os casos de urgência, que
serão em três meses. Esses prazos devem ser estabelecidos em um cronograma
de trabalho e observados de modo rígido, com o objetivo de o processo ser
célere190.
Os artigos de 12 a 15, juntamente com o apêndice 3, todos do ESC,
detalham os procedimentos do grupo especial. Esse processo envolve os
seguintes passos: 1) o recebimento das argumentações escritas das partes e
terceiros, e 2) as audiências com a oitiva das partes e dos terceiros191. Quanto
aos procedimentos, podem ser flexibilizados após ouvidas as partes para adotar
procedimento diverso do previsto no ESC, a fim de assegurar a qualidade do
relatório, sem, no entanto, comprometer o cumprimento do prazo final de sua
conclusão192.
O recebimento das petições pelo grupo especial, em regra, obedecem à
seguinte ordem: primeiro, o demandante deposita seus argumentos e,
posteriormente, o demandado apresenta suas argumentações de defesa, salvo
188 LEMES, Selma M. Ferreira. Estudo Comparativo entre o Grupo Especial (Panel) da OMC e um Tribunal Arbitral. São Paulo, 2001. Disponível em: <http//www.selmalemes.adv.br/artigos/ artigo_juri27.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2016. 189 ESC, Art.11. 190 ESC., Art.12.8 191 MATSUSHITA, Matsuo; SCHOENBAUM, Thomas J.; MAVROIDIS, Petros C. THE WORLD TRADE ORGANIZATION: law, practice and policy. 2. ed. New York: The Oxford International
Law Library, 2006. p. 116. 192 BRAZ, Mário Sérgio Araújo. Op. cit., p. 66.
85
quando o grupo especial decide pelo prazo comum, quando serão apresentadas
concomitantemente193.
O artigo 14 do ESC aponta o caráter confidencial das deliberações do
grupo especial, bem como afirma que as opiniões individuais de seus integrantes
serão mantidas anônimas.
Encerrada a segunda audiência, após um prazo de cerca de dois a três
meses, é entregue somente às partes na disputa um relatório provisório, no qual
o grupo especial expõe suas constações e conclusões194. As partes na disputa
poderão “apresentar por escrito solicitação para que o grupo especial reveja
aspectos específicos do relatório provisório antes da distribuição do relatório
definitivo aos Membros”195.
Como já afirmado, o reexame somente se refere a “aspectos concretos”
do relatório. Em outras palavras, as partes não podem aproveitar a etapa
provisória de reexame para conseguir que se retome a análise integral do
relatório196. Observando um caso prático, a Austrália solicitou tal reexame em
um caso em disputa com o Canadá, que versava sobre as normas vigentes na
Austrália para a importação de salmão. Neste, o Órgão de Apelação decidiu que
não era esse o objetivo da etapa do relatório provisório197.
Sobre a eficácia e manutenção do relatório provisório, foi sugerido por
alguns membros que essa etapa fosse eliminada sob a alegação de que não
resultava útil, já que existe um mecanismo de apelação, e ainda pelo fato de sua
eliminação resultar em ganho de tempo. A respeito dessa proposta, Valerie
Hugues afirma: “Creio que esta proposta tem um fundamento, posto que a
estratégia de reservar toda a munição para a apelação pode ser muito mais
efetiva do que fazer suprimir do relatório do grupo especial aquele conteúdo que
possam ser objeto de apelação”198.
193 ESC, Art.12.6 194 HUGHES. Valerie. El Sistema de Solución de difencias de La OMC: una experiencia exitosa. In: LACARTE, Julio; GRANADOS, Jaime (Ed.). Solución de Controversias Comerciales Inter-Gubernamentales: enfoques multilaterales y regionales. Buenos Aires: BID-INTAL, 2004. p. 70. 195 ESC, Art. 15.2 196 HUGUES, Valerie. Op. cit., p. 70. 197 Informe do Órgão de Apelação, Austrália – Medidas que afetam a importação de salmão (Austrália-Salmão), WT/DS18/AB/R, adotado em 06 de novembro de 1998, DSR 1998: VIII, 3327. 198 “Creo que esta propuesta tiene fundamento, puesto que la estratégia de reservar toda la artillería para la apelación puede ser mucho más efectiva que la de hacer suprimir del informe del grupo especial aquellos contenidos que puedan ser objeto de uma apelación”, HUGUES,
Valerie. Op cit., p. 70.
86
Finalizados os prazos da revisão preliminar, com o apontamento das
partes e posteriores correções pelo grupo especial ou sem que tenha ocorrido
manifestação de qualquer das partes, o relatório será tido como final e será
apresentado a todos os demais membros da OMC199.
Somente após 20 dias, contados da distribuição aos membros, é que o
relatório poderá ser adotado pelo OSC. Como já mencionado, o relatório
somente poderá ser obstado caso haja o consenso de todos os membros,
inclusive do demandante, é a denominda regra do consenso negativo, o que
torna improvável a obstenção, uma vez que resulta em contradição o reclamante
denunciar e ao mesmo tempo obstar o prosseguimento da demanda.
Caso decorram sessenta dias sem que nenhuma das partes manifeste o
desejo de recorrer, o OSC poderá adotar o relatório. Contudo, caso seja utilizado
o direito à apelação por alguma das partes, não serão aplicadas ainda as
medidas propostas pelo grupo especial.
§ 2º Órgão de Apelação
Constituindo-se em relevante inovação, o Órgão de Apelação (OA) não
existia no acordo GATT de 1947, ele vem a fortalecer ainda mais a segurança e
a previsibilidade do sistema multilateral de comércio. Diversamente do grupo
especial formado para o painel, o Órgão de Apelação é um órgão permanente
mantido pelo OSC.
Tal órgão, de acordo com Thortensen, Ramos e Müller, “é um
mecanismo único no sistema internacional, uma vez que medidas consideradas
inconsistentes com as regras do sistema multilateral do comércio devem ser
modificadas, para não serem passíveis de retaliação comercial”. Com isso,
atribui-se “um poder significativo à OMC e a distingue das demais organizações
internacionais que não possuem tal poder de sanção”200.
199 ESC, Art. 12.2. 200 THORSTENSEN, Vera; RAMOS, Daniel; MÜLLER, Carolina. O Órgão de Apelação frente à fragmentação da regulação do comércio global. Disponível em: <http://ccgi.fgv.br/sites/ccgi.fgv.br/files/file/O%20papel%20do%20orgao%20de%20apelacao%20frente%20a%20fragmentacao%20da%20regulacao%20do%20comercio%20global.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2016.
87
Na descrição da delimitação da atuação do Órgão de Apelação, Alberto
Amaral Júnior explica que este “não se ocupa do deslinde de questões fáticas,
mas apenas de questões jurídicas concernentes à interpretação dos tratados da
OMC. Efetua nessa condição um controle de legalidade ao verificar se o direito
da OMC foi corretamente interpretado”201.
Quanto à interpretação do direito no OSC, vale trazer ensinamento de
Vera Thorstensen, que o considera “sui generis, uma vez que aplica
conjuntamente princípios e práticas tanto do Civil Law como do Common Law”.
Embora as decisões dos painéis e das apelações somente se apliquem ao caso
em disputa, complementa a autora, “são transformadas em jurisprudência do
sistema e passam a orientar as futuras decisões” do OSC. Desse modo, a
aplicação das normas do comércio internacional, atualmente, não consiste
apenas na leitura dos acordos existentes, “mas também na interpretação do
Órgão de Apelação. O conhecimento e a análise de tal jurisprudência se tornam,
assim, essenciais para o entendimento da regulação multilateral”202.
Vale salientar ainda que o limite do mandato do OA é, segundo Carla
Junqueira, “bastante preciso e limitado”, sendo definido nos artigos 3.2, 17.13 e
17.6 do ESC, os quais dispõem que “não poderá promover o aumento ou
diminuição dos direitos e obrigações negociados pelos Membros nos acordos
abrangidos”203.
A importância, portanto, da atuação do OA na confirmação ou contra o
relatório final do grupo especial repercute de maneira ampla nas demais
decisões, devendo, pois, se ater a questões de direito e de interpretação dos
textos legais envolvidos, de modo que gere segurança e estabilidade no sistema
multilateral do comércio.
O ESC, em seu artigo 16.4, estabelece que apenas as partes envolvidas
na disputa gozarão do direito de apelar da decisão do grupo especial. Não
201 AMARAL JUNIOR, Alberto. A Solução de Controvérsias na OMC. São Paulo: Atlas, 2008.
p. 383 202 THORSTENSEN, Vera. O Multissistema da Regulação do Comércio Global: proposta de
novo referencial teórico e nova metodologia de análise. Janeiro de 2011. Disponível em : <http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/114213/mod_resource/content/2/o_muti-sistema_com-glo-25-01-2011_1_1_.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016. 203 JUNQUEIRA, Carla Amaral de Andrade. A técnica interpretativa do órgão de apelação da Organização Mundial do Comércio. 2010. Tese (Doutorado em Direito Internacional) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2135/tde-31012011-151312/>. Acesso em: 15 jun. 2016. p. 32.
88
obstante a vedação de tal direito por terceiros, estes poderão submeter e ser
ouvidos pelo OA caso tenham participado dos procedimentos perante o grupo
especial, nos termos do artigo 10.2, que permite a participação. Contudo, o
terceiro não gozará de tal benefício, caso queira ingressar no procedimento
apenas na fase da apelação, devendo, como já afirmado, ter participado da
primeira instância.
O recurso de apelação pode ser interposto por uma ou por ambas as
partes, nesse caso, quando a decisão se referir apenas, parcialmente, às
medidas questionadas. O anexo sobre os Procedimentos de Trabalho do Órgão
de Apelação informa duas opções de início. A primeira ocorre com a notificação
de uma das partes, tida como recurso propriamente dito; ao tomar conhecimento,
a parte contrária interpõe seus argumentos de apelação, gerando assim uma
expansão do escopo do recurso, de acordo com a regra estipulada no art. 23.1
dos Procedimentos do Trabalho204. A segunda acontece quando ambas as
partes optam, simultaneamente, pelo recurso de apelação, conforme o art.16.4;
nesse caso, de acordo com as regras do artigo 23, itens 3 e 4, o OA vai lidar com
as apelações de uma única vez.
O OA é constituído de sete membros, sendo que três deles atuam em
cada caso205. Mantém-se a exigência de total independência dos membros do
OA, tal qual para os membros do Grupo Especial, em relação aos governos de
seus países de origem, bem como de quaisquer organizações governamentais
ou não governamentais e, ainda, de interesses de grupos econômicos, os quais,
muitas vezes, são os reais interessados das demandas e provocadores delas no
âmbito da OMC.
Um detalhe esquecido de se ressaltar no rol de qualificação dos
membros do Órgão de Apelação é a ausência de regra proibindo, ou restringindo,
que a apreciação do caso se dê por nacional de alguma das partes206.
As opiniões e os votos dos membros do OA emitidos nos casos são
mantidos sob rigoroso sigilo, de tal modo que se evite a previsibilidade de
decisões por futuros apelantes207.
204 BRAZ, Mário Sérgio Araújo. Op. cit., p. 73. 205 ESC, Art. 17.1. 206 BRAZ, Mario Sérgio Araújo. Op. cit., p. 74. 207 Ibidem, p. 74.
89
Um efeito marcante do recurso ao Órgão de Apelação é a suspensão do
que fora decidido pelo OSC em consonância com as medidas sugeridas pelo
Grupo especial. Assim, enquanto estiver transcorrendo o processo em curso no
OA, serão suspensos os efeitos de decisão do OSC. O prazo para os
procedimentos não poderá exceder sessenta dias, no entanto, o OA poderá,
fundamentademente, solicitar prorrogação por mais 30 dias, caso julgue
insuficiente aquele prazo208.
O relatório, após emitido pelo Órgão de Apelação, com a manutenção
ou retificação do relatório do grupo especial, será disponibilizado a todos os
membros, para que, no prazo de trinta dias, o OSC realize uma sessão que o
adotará ou o rejeitará por consenso209.
Seção 3. Sanções
A retaliação é outra inovação que o sistema GATT tinha dificuldade de
implementar. Ela consiste em direito conferido às partes vencedoras, sendo,
muitas vezes, formulado um acordo, que envolve um prazo para que a medida
contestada venha a suspender a sua prática, pois é muito forte a característica
de manter as relações comerciais da melhor forma entre os litigantes.
Os principais doutrinadores aduzem que a OMC passou a ter “dentes e
garras”, o que se refere ao poder de aplicar sanções mesmo contra a vontade
do trangressor da norma e, ainda, independentemente do poderio econômico
que este possa ter. Aqui se rememora o já mencionado caso no qual o Brasil
questionou os subsídios agrícolas no setor de produção de algodão, rendendo-
lhe uma decisão para retaliar os Estados Unidos em até U$ 600.000.000,00
(seiscentos milhões de doláres).
O Brasil realizou um acordo com os Estados Unidos e criou um fundo de
amparo ao produtor brasileiro, que passou a receber quantias dos Estados
Unidos, dando assim por encerrada a disputa. Nesse sentido, os EUA foram
coagidos a reformular sua política de subsídio ao algodão contrária às normas
da OMC210.
208 ESC, art. 17.5 209 ESC, Art.17.14. BRAZ, Mario Sérgio Araújo. Op. cit., p. 75. 210 BUSCH, Marc L.; REINHARDT, Eric. The Evolution of GATT/WTO Dispute Settlement. In: CURTIS, John M.; CIURIAK, Dan (Ed.). Trade Policy Research. Department of Foreign Affairs and International Trade. Ottawa, 2003. Disponível em:
90
O grupo especial do painel pode determinar apenas que a parte sobreste
os atos que estão causando dano; assim o fazendo, o querelante pode se dar
por satisfeito e solicitar a desistência do painel. No procedimento da OMC, vigora
um princípio pelo qual não será a decisão necessariamente aplicada, outrossim,
será a interpretação que melhor se aplique para ambos. Desse modo, mesmo
após a decisão, as partes podem negociar e encontrar solução diversa, levando
à finalização do litígio.
§ 1º Compensações tarifárias e outras medidas
As medidas impostas aos Estados membros que mais causam impacto
e reação para o seu cumprimento são as de poder econômico. A OMC procurou
elencar rol não taxativo de medidas a serem aplicadas a fim de reestabelecer o
status quo ante da infração.
Observa-se que, dentre as medidas passíveis de serem aplicadas por
um Estado membro vencedor de uma disputa, a mais drástica é a majoração das
tarifas sobre os produtos do Estado vencido. Há uma crítica de que, em se
tratando de país em desenvolvimento versus país desenvolvido, não surtirá
muito efeito a medida, posto que, a depender da diferença econômica entre eles,
torna-se irrisória a aplicação de sobretaxa. “A efetividade da implementação da
maioria das decisões da OMC se realiza por vários motivos. Os principais são a
manutenção da confiança no sistema como um todo, o aumento dos custos de
não implementação e a consolidação da imagem de um tribunal rápido, eficiente
e com densidade técnico-jurídica”211.
As sanções previstas pelos acordos da OMC são aplicadas pelos
Membros sob a autorização do Órgão de Solução de Controvérsias somente
quando o Estado transgressor porventura continue com as práticas
incompatíveis com os acordos da OMC, nos termos do art. 3.7 do ESC212.
<http://faculty.georgetown.edu/mlb66/TPR2003_ Busch_Reinhardt.pdf>. Acesso em: 09 jul. 2016. 211 VARELLA, Marcelo D. Dificuldades de implementação das decisões da OMC: um estudo de caso a partir do contencioso pneus. Revista de Direito GV, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 53-
68, jun. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322014000100003&ln g=pt&nrm=iso>. Acesso em: 23 jul. 2016. 212 A terminologia utilizada pelo ESC é, no original inglês, suspension of concenssions or other obligations, o que seria suspensão de concessões ou outras obrigações; a jurisprudência do OSC sempre faz referências com o termo, original em inglês, countermeasures, traduzido por
91
As ações sugeridas pelo relatório do painel, ou pelo órgão de apelação,
devem ser implementadas segundo o ESC, em um prazo razoável, em que pese
a vagueza do termo temporal. O próprio ESC apresenta três marcos temporais
para determinação do prazo: a) o Membro interessado poderá propor um prazo,
desde que este seja aprovado pelo OSC, ou não havendo tal aprovação; b) um
prazo mutuamente acordado pelas partes em controvérsia dentro de 45 dias a
partir da data de adoção das recomendações e decisões, ou não havendo tal
acordo; c) um prazo determinado mediante arbitragem compulsória dentro de 90
dias após a data de adoção das recomendações e decisões213.
As medidas sancionatórias podem ser compreendidas como medidas de
compensação e suspensão de concessões, que podem ocorrer no mesmo setor,
no mesmo acordo; caso não seja possível, ainda pode se dar por retaliação
cruzada.
Há, ainda, outras formas de retaliações que acontecem sem a
participação do órgão de solução de controvérsias, que são as medidas
antidumping e as medidas compensatórias, aplicadas diretamente pelos países
membros seguindo as normas previstas nos acordos específicos,
respectivamente, o Acordo sobre Antidumping e o Acordo sobre Subsídios e
Medidas compensatórias.
A. Compensações
A primeira das medidas a serem tomadas no início da etapa executória
do contencioso da OMC pode ser vista não como uma sanção propriamente dita,
mas como uma medida compensatória face à transgressão à norma violada, uma
contramedidas. Eles não fazem uso da palavra sanção, contudo a adotamos, pois, no direito brasileiro, o operador jurídico é mais afeto à consequência da infração à sanção. E ESC: Art. 3.7 – “[...] Na impossibilidade de uma solução mutuamente acordada, o primeiro objetivo do mecanismo de solução de controvérsias será geralmente o de conseguir a supressão das medidas de que se trata, caso se verifique que estas são incompatíveis com as disposições de qualquer dos acordos abrangidos. Não se deverá recorrer à compensação a não ser nos casos em que não seja factível a supressão imediata das medidas incompatíveis com o acordo abrangido e como solução provisória até a supressão dessas medidas. O último recurso previsto no presente Entendimento para o Membro que invoque os procedimentos de solução de controvérsias é a possibilidade de suspender, de maneira discriminatória contra o outro Membro, a aplicação de concessões ou o cumprimento de outras obrigações no âmbito dos acordos abrangidos, caso o OSC autorize a adoção de tais medidas”. 213 ESC. Art. 21. 3, a, b e c.
92
vez que o membro reclamado voluntariamente apresentará “compensações
mutuamente satisfatórias” quando provocado pela parte reclamante214.
A compensação tem sua duração e momento de aplicação previstos nos
artigos 3.7 e 22.1 do ESC, pelos quais se compreende tratar-se de medida
temporária à qual se deve recorrer na impossibilidade da “supressão imediata
das medidas incompatíveis com o acordo abrangido”215.
Impõe-se acentuar características não correspondentes à
compensação. Ela não apresenta natureza indenizatória, ou seja, não busca
reparar os danos causados retroativamente pelo ato ilícito, mas reinstaurar o
equilíbrio desfeito pelo dano decorrente do ato incompatível com as normas da
OMC216.
Um dos fatores a serem observados quando da aplicação da medida
compensatória é sua estreita compatibilidade com os acordos abrangidos pela
OMC, de modo que tal medida não esteja a transgredir nenhuma de suas
cláusulas. Assim, caso algum outro Estado membro se sinta prejudicado,
poderá, com base na cláusula da nação mais favorecida, requerer os benefícios
da concessão para ele também.
Nesse cotejo, Adelino Neto aponta que poderá ocorrer um efeito
multiplicador para os demais membros, que buscarão ser atendidos com os
mesmos benefícios que foram atribuídos àqueles membros satisfeitos com as
medidas compensatórias.
Em contrapartida, a compensação não foca na solução da controvérsia
original. Por ser voluntária, a área que o Estado demandado oferece para sofrer
a retaliação não lhe causa efeito coercitivo de sobrestar a transgressão à norma
da OMC, frustrando de tal modo um dos principais objetivo pretendidos com a
aplicação de sanção 217.
214 ESC: Art. 22.2 – “Se o Membro afetado não adaptar a um acordo abrangido a medida considerada incompatível ou não cumprir de outro modo as recomendações e decisões adotadas dentro do prazo razoável determinado conforme o § 3º do art. 21, tal Membro deverá se assim for solicitado, e em período não superior à expiração do prazo razoável, entabular negociações com quaisquer das partes que hajam recorrido ao procedimento de solução de controvérsias, tendo em vista a fixação de compensações mutuamente satisfatórias [...]”. 215 ESC, Art. 22.1. 216 ARANTES NETO, Adelino. Op. cit., p. 357. 217 Ibidem, p. 357.
93
B. Contramedidas
As retaliações mais severas a serem utilizadas pelos países membros
são as suspensões de concessões ou aplicação de outras medidas, conforme
previsto no ESC art. 22.2218. As sanções aqui relacionadas consistem no
principal avanço evolutivo do GATT de 1947 para a OMC, uma vez que são
coercitivamente impostas aos membros transgressores. Ainda que não sejam
aplicadas pela própria OMC, há a necessidade de outorga pelo OSC, conferindo
uma espécie de controle institucional, que fiscaliza os valores e as medidas
impostas219.
As retaliações podem ser aplicadas após ultrapassado o prazo de vinte
dias da expiração do prazo razoável para a parte vencida apresentar o
cumprimento das recomendações do painel, ou as compensações.
As contramedidas se constituem em vantagens tanto para o demandante
como para o demandado. Conforme relaciona Mário Braz, um dos benefícios das
contramedidas para o Estado que sofreu o dano diz respeito à agilidade na
imposição, posto que são implementadas unilateralmente pelo demandante, não
havendo a necessidade de serem acordadas, como ocorre na compensação220.
As contramedidas geram benefícios políticos internos. Desse modo,
diante da pressão sofrida pelo setor atingido, o resultado econômico obtido pelo
estado demandante pode ser revertido para esse setor em compensações
econômicas. Ainda, causa um efeito moral da notoriedade da violação,
consistindo em um fator de pressão para os demais Membros da OMC
cumprirem os compromissos assumidos221.
§ 2º O papel do juiz brasileiro como mecanismo preventivo às demandas no OSC
A doutrina brasileira pouco se debruçou, ainda, sobre o assunto da
aplicação do juiz brasileiro das normas da OMC. Hodiernamente, o juiz possui
218 ESC, Art.22.2 219 BRAZ, Mário Sérgio Araújo. Op. cit., p. 145. 220 Ibidem, p. 141. 221 Ibidem, p. 144.
94
mais pró-atividade no exercício de suas funções, resguardados os tradicionais
princípios da oficialidade e da inércia, pelo qual se escusa de agir de ofício. Ainda
assim, cabe ao magistrado exercer o seu mister de modo a proteger o bem
jurídico público quando as eventuais consequências da decisão proferida
venham a atingir o erário público. Uma das hipóteses em que isso pode ocorrer
refere-se ao descumprimento das regras da OMC. No caso de o Estado brasileiro
ser vencido numa eventual disputa no Órgão de Solução de Controvérsias,
conforme mencionado, o Estado membro vencido deverá despender milhões
para reparar os danos que porventura venha causando ao Estado vencedor222.
O Poder Judiciário brasileiro, ao se deparar com as demandas afetas às
matérias da OMC, poderá evitar que entes estatais ou privados descumpram
com as normas da OMC. A esse respeito, Marcelo Varella aduz que vários são
os óbices de aplicação das normas da OMC pelo juiz brasileiro, em que a maioria
dos magistrados desconhece a OMC, bem como as determinações dela
decorrentes223.
Outra dificuldade suscitada por Marcelo Varella é o prazo de
implementação das normas da OMC, visto que um processo dura cerca de doze
meses, e o prazo razoável para sua implementação, a exemplo do que ocorreu
no caso da importação de pneus usados, deu-se em 15 meses, ao passo que
um processo no Brasil leva em média, superior a cinco anos 224.
O processo decisório do judiciário brasileiro necessita ser adaptado aos
compromissos assumidos perante os demais organismos internacionais, de
modo que a decisão vá além dos critérios domésticos, não se limitando à
conveniência político-nacional. De acordo com Ênio Leão, a questão concerne a
como conseguir adequadamente a atuação do judiciário nesse contexto de
222 Sobre o Assunto: AMARAL Junior, Alberto. Curso de Direito Internacional. São Paulo: Atlas,
2015, Capítulo 17. BICHARA, Jahyr-Philippe. O controle da aplicação do direito internacional pelo poder judiciário brasileiro: uma análise crítica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 958,
p. 233-268, 2015. Em contrapartida à atuação do juiz brasileiro como promovente das medidas da OMC: ZANDAVALI, Marcelo F. O Juiz Brasileiro e as Normas da OMC. Revista CEJ, Brasília,
ano XVII, n. 61, p. 47-58, set./dez. 2013. A atualidade do tema foi debatida no 16º Seminário sobre comércio Internacional, tendo um dos painéis com o tema: O Comércio Internacional e Poder Judiciário, Moderador Rabih Nasser. Palestrantes: Cynthia Kramer, Daniela Arruda Benjamin, Marcelo Zandavali e Aluísio de Lima-Campos. São Paulo, 10/06/2016. 223 Varella, Marcelo D. Op. cit., p. 2. 224 Ibidem, p. 2.
95
avanços de internacionalização225.
Ainda, Ênio Leão ressalta que “o STF, às vezes, tem criado a esdrúxula
situação de vigência de um tratado dentro e fora do país, mas de não aplicação
do mesmo pelas instituições judiciárias, sem a denúncia do tratado”226. Isso pode
gerar, além dos problemas de credibilidade para o representante do Estado nas
negociações internacionais, sanções e retaliações cabíveis.
O Judiciário tem se tornado um ator importante para o processo de
formulação da política externa, atuando, principalmente, durante o processo de
implementação desta e por meio da revisão judicial.
Uma análise quantitativa da jurisprudência do STF, segundo Ênio Leão,
demonstra ser considerável a aplicação dos tratados internacionais subscritos
pelo Brasil na maioria dos casos por ele analisados, denotando-se obediência à
ordem internacional e o cumprimento dos compromissos internacionais
assumidos pelo país por parte dos Tribunais brasileiros. Contudo, em diversas
matérias, a Justiça brasileira deixou de aplicar os tratados por ele assinado, o
que levou o país a ser demandado nas cortes internacionais227.
Na medida em que são realizados debates e pesquisas sobre a temática
da aplicação do direito internacional econômico, passa-se a ser divulgada a
preocupação dos internacionalistas em difundir a compreensão do direito
internacional público, de modo que os demais poderes estejam consoantes em
cumprir os acordos ou, em desejando refutá-los, o façam mediante a denúncia
ou saída dos organismos, tal como dispõem os estatutos e acordos firmados pelo
representante do Estado Brasileiro.
225 LEÃO, Ênio Saraiva. O Poder Judiciário como um novo tomador de decisão na Política Externa Brasileira pós 1988. 2012. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de
Ciência Política, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012. Disponível em: <http://repositorio.ufpe.br/bitstream/handle/123456789/10394/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20%20% C3%8Anio%20Saraiva%20Le%C3%A3o.pdf?sequence=1&isAllowed=y/>. Acesso em: 23 jul. 2016. p. 66. 226 Ibidem, p. 66. 227 Ibidem, p. 68.
96
SEGUNDA PARTE
O CONTROLE EXERCIDO PELO JUIZ BRASILEIRO NA APLICAÇÃO
DOS PRINCIPAIS ACORDOS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO
A primeira parte debruçou-se sobre a exposição geral do funcionamento
da Organização Mundial do Comércio, detendo-se de modo especial em torno
do Orgão de Solução de Controvérsias (OSC), cujos avanços trazidos ao
Sistema Multilateral do Comércio são, dentre outros, a coercibilidade e a
punibilidade das suas decisões.
Esta segunda parte inicia-se com o capítulo 5, no qual se discorre sobre
os fundamentos legais do Poder Judiciário brasileiro, de matriz constitucional,
seja de competência estadual ou federal, seja de primeira ou segunda instância,
a competência para aplicar os acordos firmados no âmbito da OMC, uma vez
que, como visto no capítulo 4, sendo condenado pelo OSC/OMC, o Estado
brasileiro poderá arcar com valores vultosos de reparações ou contramedidas
que representam uma limitação à exportação, além do estremecimento das
relações internacionais.
No capítulo 6, após uma sucinta explanação a respeito das obrigações
contidas no Acordo Geral sobre Tarifa e Comércio (GATT), tem-se uma
coletânea jurisprudencial, na qual diversas vezes o Poder Judiciário brasileiro se
omitiu de, mesmo quando lhe fora apresentada a transgressão ao GATT, reparar
a afronta. Houve, porém, casos em que o acordo GATT foi aplicado corretamente
pelo juiz brasileiro.
Por sua vez, o capítulo 7, seguindo a demada recorrente revelada na
pesquisa jurisprudencial, dedica-se ao tema do antidumping, cuja utilização deve
ser feita com observância às regras da OMC, sob pena de constituir-se em um
instituto de restrição às importações. No levantamento jurisprudencial, percebe-
se que em todos os Tribunais Regionais Federais encontram-se acórdãos ou
decisões individuais sobre o tema, tendo tal matéria também sido alvo de
apreciação do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Não
obstante considerável número de decisões sobre o assunto, notou-se
atecnicidade sobre o tema em algumas decisões.
97
Finalmente, constata-se que o conhecimento da coercibilidade do direito
internacional econômico vem se expandindo na jurisprudência brasileira, não
sendo ainda algo consolidado em diversas decisões que contrariam o direito
posto na Organização Mundial do Comércio. Algumas justificativas nesse
sentido são encontradas, tais como o desconhecimento pelos operadores do
direito da disciplina de direito internacional econômico (DIE) decorrente da
ausência de incentivo nas grades curriculares pelas escolas das magistraturas
no Brasil.
Inobstante tal ausência, pari passu, há timidamente a expansão do
conhecimento técnico do DIE. Isto tem ocorrido com o processo de facilitação
das informações através de meios eletrônicos, da world wide web e, ainda, com
o acesso de brasileiros a postos considerados relevantes no comércio
internacional, dentre os quais podem ser destacados Luís Olavo Baptista, ex-juiz
do Órgão de Apelação, e o Embaixador Roberto Azevedo, atual Diretor-Geral da
OMC.
98
Capítulo 5. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA COMPETÊNCIA DO
JUIZ BRASILEIRO
A aplicação dos tratados internacionais pelo Poder Judiciário é mais um
dos meios preventivos internos de cumprir os estatutos internacionais firmados
pelo representante do Estado brasileiro e admitido no ordenamento jurídico
através das formalidades que tornam os acordos internacionais atos que
obrigam ao Estado e aos particulares.
No presente capítulo, será abordada a fundamentação da aplicação do
direito internacional público, especificamente quanto às normas oriundas da
Organização Mundial do Comércio pelo Poder Judiciário brasileiro, envolvendo
os juízes estaduais e federais, os respectivos Tribunais, bem como o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF)228.
A competência jurisdicional para o juiz brasileiro aplicar as normas da
OMC independe de qualquer requisito prévio dessa Organização, sendo tais
normas aplicadas e interpretadas em conformidade com os princípios do direito
internacional econômico, devendo ainda serem consideradas as interpretações
atribuídas a elas pelo Órgão de Apelação do OSC/OMC.
Em seguida, discorre-se sobre a competência processual dos
magistrados prevista na Constituição Federal, somando-se a outros atos
normativos que emprestam tal respaldo, como o Código de Processo Civil, além
da jurisprudência dos Tribunais Superiores, em cujas matérias determinam a
competência dos ramos da Justiça”229.
No tocante aos Tribunais Superiores, concentra-se no STJ a
competência dos recursos especiais envolvendo a matéria de direito
228 A clássica divisão dicotômica entre direito público e direito privado, nesse contexto, entende-se como sendo as matérias atinentes ao direito internacional econômico, como ramo do direito internacional público, por envolver relações entre os Estados e as organizações internacionais. Por sua vez, o direito internacional privado consiste na regulação do conflito normativo no espaço, quando o caso concreto versa entre pessoas privadas, vincula-se a mais de uma norma originária de mais de um Estado. Philip Jessup, ultrapassando a nomenclatura, atribui a junção de ambos os ramos do direito internacional e nomeia de “Direito Transnacional” as relações que envolvem Estados e sujeitos privados. AMARAL JUNIOR, Alberto. Op. cit. p.19-20 e JESSUP, Philip C. Direito transnacional. Tradução de Carlos Ramires Pinheiro da Silva. São Paulo:
Fundo de Cultura, 1965. p. 12. 229 O termo Justiça aqui é aplicado com sentido de esfera de atuação. Nesse sentido, ensina Pontes de Miranda que somente há uma jurisdição uma e indivisível (PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 171-
172).
99
internacional; por sua vez, no STF, nos termos do artigo 102, da Constituição
Federal dentre diversas competências do STF destaca-se para estudo da
aplicação do direito internacional a promoção do controle de constitucionalidade
concentrado e difuso, além dos eventuais recursos extraordinários com
repercussão geral e que infrinjam o texto constitucional.
Seção 1. O controle jurisdicional sobre o Direito Internacional
A atuação do Poder Judiciário é inicialmente coercitiva punitiva,
atribuindo-se uma conotação preventiva diante da aplicação futura de sanções
oriundas da OMC. A punição ao agente transgressor das normas internacionais
aplicadas pelo Judiciário servirá previamente para impedir que os danos venham
a ser contabilizados e exigíveis pelos Membros prejudicados pela OMC.
Com o intuito de compreender a competência do Poder Judiciário
brasileiro para aplicar as normas de direito internacional, prima face, faz-se
necessário revelar a origem do controle jurisdicional, de modo que, ancorando-
se na contemporaneidade, seja possível apreender os fundamentos da primazia
do direito internacional ante o direito interno.
§ 1º Origem e desenvolvimento do Controle Jurisdicional
A atuação do Poder absolutista foi se descentralizando ao longo do
tempo com o avanço da classe burguesa e substituição pelo poder democrático,
ao passo que teóricos arquitetaram a separação do exercício do Poder. Em um
período bastante anterior ao efetivo fim do absolutismo, já se teorizava sobre a
divisão das funções do Poder Estatal.
Nesse contexto, podem-se destacar dentre os principais autores
Aristóteles230, na Grécia Antiga, São Tomás de Aquino231 e Marsílio de Pádua232,
230 Aristóteles aponta no capítulo X, do Livro III, titulado de Dos Governos, os três poderes existentes em toda forma de governo (ARISTÓTELES, A Política, Trad. Roberto Leal Ferreira, 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 128). 231 TOMÁS DE AQUINO, S. Suma teológica. Vols. II e III. Trad. Carlos-Josaphat P. de Oliveira
(Coord.). São Paulo: Loyola, 2002. 232 PÁDUA, Marsílio de. O defensor da paz. Trad. Antonio C. R. Souza. Petrópolis: Vozes, 1995.
100
na Idade Média, John Locke233, na era moderna, até chegar a Charles-Louis de
Secondat, o Barão de Montesquieu, a quem se tributa a demonstração clara que
cada um dos poderes deveria exercer funções distintas. Em sua obra O espírito
das leis, delineia as competências de cada um dos poderes que constituem o
Estado, o executivo, o legislativo e o judiciário234. Nesse desiderato, atribui-se o
controle de um poder sobre o outro harmoniosamente, qual seja, o surgimento
do sistema checks and balances235.
O Poder é uma característica do Estado, ele é uno e indivisível, sendo
possível ser separado o exercício de sua função. A importância da implantação
em uma sociedade da tripartição dos poderes é tamanha que hoje é inegável
como característica do Estado contemporâneo de Direito que as funções
executória, legislativa e judiciária sejam desempenhadas por três diferentes
Órgãos.
Cada um dos poderes projeta uma predominância no exercício de suas
competências. Desse modo, ao Executivo compete a administração e a captação
dos recursos; ao Legislativo, a promulgação de leis que conduzirão os atos dos
particulares e do próprio Estado; e, ao Judiciário, nas palavras do Barão de
Montesquieu, aplicar as leis quando houver litígio entre os particulares, ou entre
estes e o Estado236.
O Estado brasileiro, firmado em Estado Democrático de Direito, possui a
função Jurisdicional não apenas para dirimir conflitos entre os particulares, mas,
sobretudo, para garantir direitos contra os atos arbitrários dos demais poderes.
A convivência harmoniosa dos poderes independentes entre si, no Estado de
Direito, garante o exercício da função judicial, a qual se encontra baseada na
Constituição Federal, recebendo desta o poder de zelar pelo seu cumprimento e
de todo o ordenamento jurídico, no qual se inclui o direito internacional237.
Nesse ponto, Jahyr-Philippe Bichara ressalta que “a função jurisdicional
do Estado deve constituir uma garantia de aplicação das normas internacionais
233 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. Tradução de Júlio Fischer e Introdução de
Peter Laslett. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 234 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron. O Espírito das Leis. Tradução de Cristina
Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 167-168. 235 RESURREIÇÃO, Valéria Carneiro Lages. Estado de Direito, separação de poderes e controle de constitucionalidade da norma pelo administrador destinatário. Dissertação apresentada a Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Recife, 2002. 236 MONTESQUIEU. Op. cit., p. 168. 237 Constituição Federal, art. 1°.
101
no seu território”. Em outras palavras, obrigar o cumprimento do que fora
pactuado entre os demais Estados e Organizações constitui-se numa relevante
observância a ser considerada pelo magistrado238, sendo sua aplicação tão
necessária e relevante reforçando a participação brasileira na sociedade
internacional.
§ 2º A primazia do Direito Internacional (normas da OMC) sobre o Direito Interno
A autonomia do Poder Judiciário, decorrente de um dos elementos
formadores do Estado – a soberania – não é mitigada, ou diminuída para julgar
as questões que envolvam as matérias de direito internacional e tenham que
aplicá-las precipuamente em dissonância com o direito interno. No entanto,
destaca-se a possibilidade de o Estado vir a responder pelo descumprimento do
pactuado no plano internacional, podendo tal descumprimento advir inclusive de
julgamentos contrários aos tratados internacionais.
Nessa perspectiva, espera-se que o Poder Judiciário, como integrante
da estrutura constitutiva do Estado, exerça coerentemente sua jurisdição
conforme o direito internacional. Afinal, decorrente do compromisso tem-se a
regra do princípio do pacta sunt servanda ao estabelecer que o Estado se obriga
a cumprir com o pactuado no plano internacional aliado ao princípio da boa-fé,
por meio do qual o Estado não deixará de cumprir as obrigações, escusando-se
através de medidas internas. Aplicam-se esses dois princípios também ao
magistrado.
Dentre as competências inerentes ao cargo ocupado pelo juiz, deve
observar que as normas internacionais possuem um grau de imperatividade e
inderrogabilidade, se não obtida pelo pacta sunt servanda, consistente nos
tratados firmados. Tal se afirma com base no ideário monista, teoria capitaneada
por Kelsen e Verdross, na qual consiste a existência de uma única ordem
jurídica, em que as normas internacionais gozam de primazia sobre as normas
238 BICHARA, Jahyr-Philippe. O controle da aplicação do direito internacional pelo poder judiciário brasileiro: uma análise crítica. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 958, p. 233-268, 2015.
102
internas e a participação no plano internacional ocorre com a independência de
cada um dos Estados soberanos pertencentes à sociedade internacional239.
A primazia do direito internacional é fundamentada pelos defensores da
corrente monista, pela qual o fundamento central consiste em uma única ordem
jurídica em que se inserem o direito internacional e o direito interno, sendo
aquele, nas palavras de Kelsen, a norma hipotética fundamental240, cuja validade
é atribuída pelas constituições dos Estados.
A teoria formulada por Kelsen é reforçada nas palavras de Verdross: “Se
reconhecermos que a regra do pacta sunt servanda é superior à vontade dos
Estados, é fácil provar que as estipulações entre os Estados em virtude dessas
regras lhes são igualmente superiores. Porque a norma ‘pacta sunt servanda’
obriga os Estados a cumprir as regras estabelecidas por acordo entre eles”241.
As normas da OMC são consideradas, além do princípio do pacta sunt
servanda, também pela sua internalização nos ordenamentos dos países
membros, cabendo aos magistrados observar tais normas; os demais poderes
também devem cumpri-las, bem como legislar novas normas compatíveis com o
direito internacional, a fim de que normas internas não contrariem o firmado no
seio da Organização.
O Direito Internacional possui meios distintos para cobrança do
cumprimento de suas normas, o que não implica que não exista o Direito
internacional, mas sim que este é desenvolvido de modo diverso nos
ordenamentos jurídicos internos. Nesse contexto, a OMC inova, firmando,
através do Entendimento sobre Solução de Controvérsia (ESC), que o país
membro pode reclamar ou ser reclamado perante o Órgão de Solução de
Controvérsia.
Em face do mencionado, cabe ao Estado, de modo geral, adotar todas
as medidas administrativas cabíveis para cumprir as determinações
internacionais assumidas. Essa responsabilidade é do Poder Executivo ou do
239 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; VERDROSS, Alfred. Le fondement du droit international. Recueil de Cours de l’Académie de Droit International, Paris, 1927. p. 325-384. Tradução de Marcelo Dias Varella
(coordenador), Amábile Pierroti, Luiza Nogueira e Marlon Tomazette. O Fundamento do Direito Internacional. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 10, n. 2, 2013. 240 Kelsen, Hans. Op. cit., p. 150. 241 VERDROSS, Alfred. Op. cit., p. 18.
103
Poder Legislativo que, eventualmente, pode publicar uma lei regulamentadora
que fixa as obrigações do Estado e os direitos das pessoas. Esses poderes têm
atuado no âmbito das relações comerciais internacionais para especificar as
condições de implementação dos acordos da OMC.
Compreendida a divisão das funções a serem desempenhadas por cada
componente do Poder, tem-se a distribuição de competências de modo a melhor
desempenhar a atividade primordial. No Estado Federal brasileiro, existem três
esferas de poder – A Federal, a Estadual e a Municipal. No caso, o federalismo
brasileiro não contempla ao Poder Judiciário, a esfera municipal. Restando
apenas os níveis: Federal e Estadual ou Distrital, em razão do ente federativo.
Seção 2. A competência da Justiça Estadual para aplicar as normas da
OMC
O Poder Judiciário, de acordo com o artigo 2º da Constituição Federal,
constitui um dos poderes independentes e convive harmoniosamente com os
Poderes Executivo e Legislativo. Sempre que um dos Poderes excede sua
competência ou exerce atos ilegais, será possível ao Poder Judiciário o controle
de tais atos, conforme disposto no art. 5º, XXXV, da CF: “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Depreende-se
desses dois artigos que o Poder Judiciário poderá exercer o controle de
legalidade de atos, incluindo a conformação com os tratados.
A divisão de competências para a aplicação do direito internacional é
matéria de direito interno que resguarda salutar importância quando tais
mecanismos são utilizados para solucionar situações provocadas por agentes
estatais com o intuito de retardar ou inviabilizar o cumprimento de obrigações
assumidas pelo Estado perante as organizações internacionais.
Antes de sequenciar com as descrições da atuação jurisdicional, importa
trazer explicação de Pontes de Miranda sobre a diferença entre jurisdição e
competência, atribuindo à primeira “competência judiciária distribuída a cada
Estado pela ordem supra estatal”. Trata-se, pois, do poder que o Estado tem de
julgar, indiferente à repartição. O jurista prossegue: “quando o Estado reparte
104
essa jurisdição, essa iudicius dandi licentia, então se chama, ao poder de julgar
“repartido”, competência”242.
A Constituição Federal distribui a competência (função) sobre diversos
órgãos do Poder Judiciário; por sua vez, a jurisdição é una e indivisível. Os
órgãos que compõem o judiciário brasileiro são: o Supremo Tribunal Federal, o
Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais,
os Tribunais Regionais e Juízes do Trabalho, os Tribunais e Juízes Eleitorais, os
Tribunais e Juízes Militares e os Tribunais e os Juízes dos Estados e do Distrito
Federal243.
A pesquisa feita a respeito das decisões jurisprudenciais constatou
diversas ocorrências do descumprimento por parte de órgãos do Poder
Executivo, em especial os que atuam na área do fisco, seja federal, seja
estadual. Nesse sentido, observa-se quão importante é o papel do Poder
Judiciário, federal ou estadual, no exercício de sua jurisdição, aplicar o direito
interno em consonância com os tratados internacionais244.
A competência no Brasil para aplicar o gênero Direito Internacional
Público, em sua espécie Direito Internacional Econômico, no qual se inserem as
normas da OMC, é precipuamente da Justiça Federal, nos termos do artigo 109,
III, da Constituição Federal. No entanto, tal competência não exclui de
apreciação pela Justiça Estadual, desde que não esteja a discutir aspectos de
validade dos Tratados245.
A atuação jurisdicional da Justiça Estadual é de competência comum, ou
seja, a matéria que for excepcionada para os demais ramos do Poder Judiciário
(federal, trabalhista e militar), em razão da matéria ou da pessoa, caberá aos
juízes ou Tribunais dos Estados a apreciação e o julgamento. Pode-se afirmar
que a competência da Justiça Estadual é residual246 ou classificada por
exclusão247. Desse modo, os magistrados estaduais possuem competência para
242 PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil. T. II. Rio de Janeiro:
Forense, 1973. p. 171-172. 243 Brasil. Constituição Federal. Art. 92. 244 Levantamento jurisprudencial constante nos capítulos 6 e 7. 245 BAPTISTA, Luiz Olavo. A Solução Arbitral. Revista do Centro de Estudos Judiciários Conselho da Justiça Federal, São Paulo, p. 38, 1997. 246 DIDIER JUNIOR, Freddie. Curso de Direito Processual Civil. v. 1. 13. ed. Salvador: JusPODIVM, 2011. p. 128. 247 CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
p. 30.
105
aplicar as normas que constituem o ordenamento jurídico brasileiro, dentre elas
as normas internalizadas de Direito Internacional Público, em que se incluem as
normas da OMC.
Nas hipóteses em que o Estado transgrida as normas da OMC
praticando atos administrativos eivados de vícios, isso poderá ensejar a
demanda de ações judiciais contra os referidos atos.
Nesse cortejo, identifica-se em pesquisa realizada no sítio Jus Brasil a
ocorrência de 4.950 processos, somente na seara dos Tribunais de Justiça
Estaduais, constando o teor das expressões GATT e ICMS. Verificou-se que
constam em 17 Tribunais de Justiças, cuja maioria versa sobre manutenção de
decisões proferidas acertadamente por juízes de primeira instância sobre
isenção de ICMS a ser concedida a produto importado de país membro da
OMC248.
A aplicação do Direito Internacional, em especial das normas da OMC,
pelas Cortes domésticas, nos seus mais diversos órgãos jurisdicionais, não
depende de nenhuma autorização prévia desse órgão. Desse modo, estando o
Brasil na condição de membro da OMC, e seu acordo constitutivo (Protocolo de
Marrakesh) já tendo sido devidamente internalizado desde 1994, resta ao Poder
Judiciário, na condição de integrante do Estado exercendo suas funções, aplicar
o acordo da OMC.
§ 1º Princípio da Inafastabilidade
A Constituição Federal instituiu como princípio para garantir a
apreciação pelo Poder Judiciário sobre quaisquer questões o princípio da
inafastabilidade, previsto no já citado artigo 5°, XXXV: “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O princípio é também
conhecido como princípio da acessibilidade ampla ao Poder Judiciário.
Outra característica decorrente desse princípio é a definitividade como
elemento da jurisdição. Assim, a solução de litígios pela administração, a
248 Sítio eletrônico do Jusbrasil. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/busca?q=GATT+e+ICMS>. Acesso em: 27 ago. 2016.
106
aplicação de qualquer norma e a expedição de atos administrativos não serão
consideradas definitivas, posto que poderão ser questionadas no Poder
Judiciário, cuja decisão se reveste de definitividade. Reforça-se aqui que o
magistrado não poderá declinar de sua competência para dizer o direito, e
espera-se que sua decisão esteja consoante com as normas internacionais249.
Teoricamente, a norma internacional está apta à produção de efeitos
diretos na ordem interna, sem que haja a necessidade de prévia autorização da
Organização internacional. Nas palavras de Dominique Carreau e Jahyr-Philippe
Bichara: “no que tange às regras não escritas do direito internacional, caberá ao
juiz nacional determinar se o costume ou o princípio geral invocado por uma
parte tem aplicação direta e, por conseguinte, força executória”. Nesse contexto,
note-se a importância do papel do juiz nacional na aplicação das normas de
direito internacional250.
A função assecuratória da aplicabilidade do direito pelo juiz nacional
significa que deve contemplar o direito internacional em sua primazia ante o
direito interno. Desse modo, conforme Dominique Carreau e Jahyr-Philippe
Bichara: “O juiz nacional contribui para o desenvolvimento do direito
internacional, devendo proceder ao controle de sua execução. Vale ressaltar que
essa competência não é própria do juiz internacional, cujo acesso não é
automático, fazendo do juiz interno um importante mecanismo de controle de
legalidade internacional”251.
§ 2º Controle de convencionalidade e legalidade dos tratados internacionais
Conforme anteriormente ressaltado, o descumprimento às normas da
OMC enseja responsabilidade econômica, além de constrangimento aos
negociadores perante a OMC. Portanto, constitui-se em um dever, quando da
aplicação de normas infraconstitucionais, a realização do controle difuso de
legalidade, submetendo-se, se for o caso, à conformidade do tratado.
249 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p. 172. 250 CARREAU, Dominique; BICHARA, Jahyr-Philippe. Direito Internacional. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2015. p. 570. 251 Ibidem, p. 718.
107
Impera nesse sentido trazer à baila o posicionamento de Valério
Mazzuoli, ao discorrer acerca do controle de convencionalidade e do controle de
legalidade das normas infraconstitucionais. O primeiro ocorre quando os tratados
versam sobre matéria de direitos humanos, e a segunda hipótese é atribuída aos
juízes e tribunais, tal qual o controle de constitucionalidade via difuso252.
Sobre o controle de convencionalidade, Valério Mazzuoli expõe que “é a
compatibilização das normas de direito interno com os tratados de direitos
humanos ratificados pelo governo e em vigor no país”253.
Seguindo esse esteio, o exercício das ações de controle concentrado
consistirá na possibilidade de valer-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade
com o objetivo de invalidar pela inconvencionalidade uma norma
infraconstitucional; a Ação declaratória de constitucionalidade poderá ser
demandada com efeito de garantir à norma infraconstitucional a compatibilidade
vertical com um tratado de direitos humanos, aprovado com maioria de 3/5, cujo
valor será de norma constitucional; finalmente, será plausível a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) quando houver a
necessidade de cumprimento de um “preceito fundamental” presente em tratado
de direitos humanos também de status constitucional nos termos do artigo 5º, §
3º, da Constituição Federal254.
O controle de legalidade consiste em quando o magistrado se deparar
com qualquer caso afeto à matéria de um acordo ou tratado, este deverá
compatibilizar a aplicação dessas espécies normativas com as normas internas.
Surge, nesse momento, a seguinte questão: sendo a lei posterior ao tratado, e
contrária a este, qual a solução a ser dada? Nesse ponto, o magistrado deve
aplicar o tratado, primeiramente em razão do princípio do pacta sunt servanda;
em segundo lugar por tais normas estarem internalizadas; por fim, por entender
que o Estado brasileiro pode sofrer sanções no caso de essas normas serem
emanadas do acordo da OMC. As sanções, que já foram descriminadas no
capítulo anterior, podem resultar em retaliações comerciais encarecendo
substancialmente as exportações do país transgressor das normas da OMC.
252 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 46, n. 181, p. 129, jan./mar. 2009. 253 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 73. 254 Ibidem, p. 147.
108
§ 3º A formação técnica dos Operadores do Direito no Brasil
Não é comum na seara estadual a aplicação do direito internacional, não
obstante a facilidade e os avanços tecnológicos das trocas de informações entre
Órgãos jurisdicionais venha crescendo a aplicabilidade das normas de direito
internacional. Tal constatação foi evidenciada por Wellington Beckman Saraiva,
ao pesquisar o currículo do curso de formação da Escola da Magistratura do
Estado do Rio de Janeiro, na qual não faziam parte as disciplinas de Direito
internacional, Direito econômico, ou de comércio internacional255.
Na tradição jurídica brasileira, não integram o rol de disciplinas
oferecidas pelas Faculdades de Direito espalhadas pelo país, tampouco nos
cursos de formação de magistrados estaduais, a instrução detalhada dos
tratados firmados pelo Brasil e um aprofundamento sobre o Direito Internacional
Econômico. Nesse contexto, o aprimoramento da formação dos magistrados
deve ir além do conhecimento positivista pátrio, de modo a prezar-se o
conhecimento interdisciplinar por meio de disciplinas de economia internacional
e comércio internacional. A ausência da oferta da disciplina de Direito
Internacional Econômico no curso de formação dos magistrados implica
eventuais falhas na aplicação das normas que versem sobre o assunto256.
O conhecimento do direito internacional econômico é esperado dos
magistrados estaduais, uma vez que, lidando com causas que envolvem isenção
tributária de produtos estrangeiros decorrente da aplicação dos princípios do
tratamento nacional e da não discriminação, inseridos no GATT de 1994, são
lhes exigidos conhecimentos específicos sobre a matéria.
Outra expectativa depositada no Poder Judiciário se firma na aplicação
do direito internacional em conformidade com as interpretações sobre os
dispositivos emanados pelo Órgão de Apelação da OMC. Para tanto, o
magistrado deve estar atualizado não apenas com o conhecimento positivo das
normas da OMC, mas também com a jurisprudência da OMC, de modo que isso
255 SARAIVA, Wellington Beckman. Poder Judiciário fluminense e capixaba diante do comércio internacional do pré-sal: novos desafios. Dissertação de mestrado em Poder Judiciário. FGV Direito Rio. Rio de Janeiro, 2012. 256 No capítulo 7, são relatadas algumas deficiências encontradas na jurisprudência pátria sobre a aplicação das medidas antidumping.
109
vai refletir “a consistência da conduta brasileira frente às obrigações assumidas
no plano internacional”257.
Quando um juiz brasileiro, seja estadual, seja federal, depara-se com
uma questão que envolva matéria constante dos acordos da OMC e aplica seus
dispositivos em conformidade com o Órgão de Apelação, estar-se-á evitando ab
initio estremecimento nas relações diplomáticas comerciais. Em segundo lugar,
está contribuindo para a ampliação da segurança jurídica do sistema multilateral
do comércio; por fim, evita eventual demanda desfavorável contra o Brasil
perante o OSC/OMC.
A matéria de direito internacional econômico sobre OMC e seus acordos
é precipuamente oriunda do direito internacional, vindo a internalizar-se. Desse
modo, a Justiça Estadual possui competência para aplicar as normas que
constituem o ordenamento jurídico brasileiro, dentre elas as normas de Direito
Internacional Público, em que se incluem as normas da OMC.
O Poder Judiciário brasileiro deve participar, preventivamente, de
maneira ativa no cumprimento das normas da OMC, independentemente de sua
esfera de atuação (estadual ou federal). As causas fundamentadas em tratado,
o que é a hipótese das normas da OMC, são de competência tanto da Justiça
Federal quanto da Justiça Estadual. Uma vez que as demandas perante cada
uma dessas seara seguem regras de competências previstas tanto na carta
magna como nas leis processuais.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 trouxe diferentes institutos
jurídicos assecuratórios dos direitos das pessoas, sejam físicas, sejam jurídicas.
Um deles é o Mandado de Segurança contra ato ilegal praticado por qualquer
agente estatal. A regulamentação do Mandado de Segurança está na Lei
12016/2009. Sobre a competência, o texto da lei silencia, tampouco o CPC o
menciona, de modo que a jurisprudência firmou entendimento de que, seja quem
for a autoridade coatora, será o elemento decisório para competência do
Mandado de Segurança. Nesse sentido, segundo a decisão do Ministro
257 LUPI, André Luiz Pinto Basto; BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto. A interpretação da norma internacional em conformidade com seu contexto: uma proposta para aplicação do direito internacional pelos tribunais brasileiros. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI 17., Brasília. Anais... Florianópolis: Fundação José Boiteux, 2008. p. 2490-2513.
110
Napoleão Nunes Maia Filho, no Conflito de Competência n. 108.886-CE258, “a
competência para conhecer e processar Mandado de Segurança é aferida a
partir da categoria funcional da autoridade apontada como coatora”. Assim, em
se tratando de Mandado de Segurança que verse sobre acordo da OMC e seja
a autoridade coatora estadual, será competente a Justiça Estadual.
Decorre da participação do Brasil como país-Membro da OMC a
submissão dos seus agentes ao cumprimento das normas dela originadas, de
maneira que é esperado dos magistrados estaduais não apenas o conhecimento
em Direito Internacional Econômico, mas, de fato, a sua aplicação nas causas
que envolvam tal direito, respeitando-se princípios gerais, pacta sunt servanda e
boa-fé, bem como princípios específicos contidos nos acordos, por exemplo,
princípio da Nação mais favorecida, princípio do tratamento nacional.
Até março de 2015, o Estado Brasileiro precisava contratar escritório de
advocacia no exterior para realizar sua defesa perante o Órgão de Solução de
Controvérsias da OMC, denotando a escassa afeição à matéria entre os
operadores jurídicos brasileiros, fruto de uma Escola doutrinária que privilegia a
atenção às normas cujas fontes sejam tão somente as estatais internas. Nesse
sentido, apresentava claro preconceito às normas advindas das Organizações
internacionais.
Seção 3. A competência do juiz federal para aplicar as normas da OMC
A Carta Magna reservou para os membros da Justiça Federal
expressamente a competência para aplicar os tratados internacionais de modo
genérico, sem distinguir as espécies de tratado-lei e tratado-contrato. Essa
questão será esclarecida no ponto a seguir. Subsequentemente, formula-se uma
alternativa ante o crescente número de ações judiciais envolvendo o tema do
direito internacional econômico, que é a criação de varas especializadas, embora
se reconheça a inviabilidade para alguns órgãos jurisdicionais Federais que
258 STJ. Conflito de Competência n. 108.886 – CE (2009/0219625-8). Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. 09/02/2010. Publicado no DJU 24/02/2010. No mesmo sentido, STJ. Conflito de Competência n. 19.543/DF. Relator Ministro Fernando Gonçalves. Publicado no DJU 30.06.2003.
111
possuam baixa demanda, que é o caso da Seção judiciária do Rio Grande do
Norte.
§ 1º O alcance do Artigo 109, III da Constituição brasileira
A obrigação do Estado brasileiro de exercer a função jurisdicional
aplicando o direito internacional pode ser realizada pelo Juiz Federal em três
casos previstos na Constituição, no artigo 109, incisos III, V e V-A. As hipóteses
dos incisos V e V-A versam sobre hipóteses de crimes previstos em tratado ou
convenção internacional e causas relativas a direitos humanos, respectivamente.
Todavia, importa deter-se no inciso III, do artigo 109, considerando que a
aplicação dos acordos da OMC está contemplada nesse inciso, ao revelar ser
competente o juiz federal para julgar as causas fundadas em tratado.
A regra da kompetenzkompetenz, de origem alemã, afirma que todo juiz
possui competência para afirmar a sua competência. 259 No direito brasileiro, ela
se aplica ao Juiz Federal para apontar se a causa é de sua competência ou não.
Pelas decisões do STJ, cabe ao juiz federal confirmar sua competência quando
constatar que a análise de mérito do pedido esteja respaldada em tratado
internacional.
A competência para o Juiz Federal para aplicar o direito internacional
econômico, além dos mesmos dispositivos já expostos para o juiz estadual,
acrescenta-se, expressamente, o dispositivo do texto constitucional, do qual se
extrai serem os juízes federais competentes para processar e julgar “as causas
fundadas em tratado ou em contrato da União com Estado estrangeiro ou com
organismo internacional”260.
Ab initio, é necessário apresentar a definição de tratado e contrato
internacional, posto que os termos utilizados possuem amplitude, conforme se
depreende dos artigos extraídos da Convenção de Viena de 1969 e da
Convenção de Viena de 1986. A convenção de Viena de 1969 sobre Direito dos
Tratados menciona que tratado “significa um acordo internacional celebrado
259 MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 3. ed. São Paulo:
Revistas dos Tribunais, 2004. p. 51. 260 Constituição Federal, art. 109, III.
112
entre Estados em forma escrita e regido pelo direito internacional, que conste,
ou de um instrumento único ou de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer
que seja sua denominação específica”261.
A Convenção de Viena de 1986, sobre Direito dos Tratados entre
Estados e Organizações Internacionais, definiu, semelhante à Convenção
anterior, que tratado é o acordo internacional “regido pelo Direito Internacional e
celebrado por escrito: i) entre um ou mais Estados e uma ou mais organizações
internacionais; ou ii) entre organizações internacionais, quer este acordo conste
de um único instrumento ou de dois ou mais instrumentos conexos e qualquer
que seja sua denominação específica”262.
Ambas as convenções, em sua parte final, ressaltam que serão
considerados tratados, independentemente da “denominação específica”, o que
ocorre em razão dos inúmeros termos que podem ser utilizados com o sentido
atribuído ao vocábulo “tratado”, dentre os quais se destacam: convenção,
declaração, ato, pacto, estatuto, protocolo, acordo, modus vivendi, concordata,
compromisso, troca de notas, acordos em forma simplificada, carta, convênio,
acomodação e compromisso263. Inexiste regulamentação específica quanto ao
uso dessas terminologias, sendo utilizadas livremente pelos Estados e
Organizações Internacionais.
Discorrendo sobre a aplicação do Artigo 109, III da Constituição Federal,
Odilon Romano Neto apresenta a distinção do Tratado quanto à matéria,
apontando a clássica divisão entre tratado-lei e tratado-contrato264.
O tratado-lei, segundo Celso Mello, seria “fonte do direito internacional
público e nos quais se manifestaria a vontade coletiva de conteúdo idêntico”,
estabelecendo “uma situação jurídica impessoal e objetiva”265.
261 Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, celebrada em 1969, Artigo 1º. 262 Convenção de Viena sobre os Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais de 1986, Artigo 2º. 263 MELLO, Celso D. Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público.15. ed. v. 1. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004. 264 ROMANO NETO, Odilon. Competência da Justiça Federal fundada em tratados internacionais. Revista eletrônica de Direito Processual – REDP. v. 5, n. 5, p. 453-483. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/23100/16453>. Acesso em: 23 set. 2016. 265 MELLO, Celso D. de Albuquerque, Op. cit., p. 219.
113
Por outro lado, os tratados-contratos regulariam interesses de natureza
bilateral ou multilateral dos Estados, criando situações jurídicas subjetivas,
assim, diversamente das normas de conduta, teriam finalidades de acordos de
comércio, de aliança, de cessão territorial.
A previsão constitucional para a Justiça Federal julgar as causas
fundadas em tratados não ocorreu para que se aglomerasse essa justiça, mas
sim considerasse de sua matéria as causas que versem sobre os tratados-
contratos, de modo que os tratados-leis devem ser aplicados por todo e qualquer
juiz, seja qual for sua jurisdição, posto que esses tratados-leis visam definir
regras de condutas, de caráter normativo geral. Tal conclusão realizada por
Odilon Romano Neto não é pacífica, na jurisprudência do STJ não encontra-se
solidez para definir a questão, e ainda não há na doutrina uma posição
consolidada sobre o assunto, acrescenta-se aunda que não há norma que verse
especificamente sobre o assunto266.
O acordo da OMC é considerado um tratado-lei, por consistir em normas
de caráter geral e abstrato, e dirige-se a todas as pessoas dos países signatários
incluindo o próprio Estado. No caso dos acordos que constituem a OMC, estão
já internalizados por meio de Decreto, de modo que sequer resta dúvida da sua
aplicação pelo magistrado brasileiro, tendo em vista o crescimento e
fortalecimento das relações comerciais internacionais, intensificando-se a
invocação dos dispositivos do referido acordo267.
§ 2º Da necessidade de criação de Varas Especializadas
Ante o crescente número de demandas judiciais sobre a matéria de
direito comercial internacional e direito internacional econômico, há a
preocupação de que a resposta dada pelos juízes, enquanto poder constituído e
integrante do Estado, no exercício das suas atribuições, contribua para o
266 ROMANO NETO, Odilon, Op. cit., p. 463. 267 Decreto n. 1355 de 30 de dezembro de 1994.
114
fortalecimento das relações diplomáticas do Estado brasileiro, para evitar a
condenação no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.
A proposta de criação de varas especializadas para a justiça federal a
fim de evitar prejuízos ao país, e como forma de ofertar a melhor prestação
jurisdicional envolvendo uma matéria tão específica quanto é o Direito
internacional econômico, atende um viés importante no país, que é a
manutenção das relações internacionais268.
A justiça federal, cuja competência para apreciar os feitos em que
configure parte a União, tem sido palco de diversas ações envolvendo a temática
de assuntos regulados pela OMC, tais como o GATT de 1994, o Acordo
Antidumping, porquanto tenha o Poder Executivo, quando da aplicação das
normas da OMC, as descumprido, o que tem ensejado o ajuizamento das
ações269.
A doutrina fixa critérios para aplicar o dispositivo art. 109, III da
Constituição Federal, de modo a somente justificar a competência da Justiça
Federal quando houver efetivo interesse internacional, referindo-se, portanto, ao
tratado-contrato, e não a um tratado-lei, acrescendo-se ainda que a controvérsia
deve cingir-se às disposições contidas no próprio tratado.
Assim, o critério para determinar a competência da Justiça Federal em
face do enunciado legal do art. 109, III, não se cinge à incidência na causa de
um tratado internacional, considerando este a causa de pedir, ou sua
fundamentação, além de levar em conta a repercussão internacional da matéria
discutida e constatar que se trata de um tratado na modalidade contrato. Vale
salientar que poderão ocorrer hipóteses do tratado-lei comum em qualquer
esfera de justiça que esteja aplicando o direito internacional.
Reconhece-se que tal proposta poderá ser economicamente inviável em
algumas seções judiciárias em razão da ausência de números de processos cujo
teor sejam a matéria de direito internacional econômico justifiquem a
exclusividade de uma vara especializada, o que não afasta porém a sua criação
nos Tribunais Regionais Federais que lidam com o elevado número.
268 Nesse sentido, KRAMER, Cynthia. Medidas antidumping: devido processo legal à luz das
regras da OMC. 2012. Tese (Doutorado em Direito Internacional) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: doi:10.11606/T.2.2012.tde-14062013-133021. Acesso em: 23 set. 2016. p. 179. 269 Brasil. Constituição Federal, Art. 109, I.
115
SEÇÃO 4 – AS CORTES DOMÉSTICAS
Considerando os fundamentos constitucionais do Estado brasileiro em
que configura presente a possibilidade de se recorrer das decisões monocráticas
para uma corte colegiada, é premente a necessidade de informar o fundamento
de aplicação do direito internacional por esses Tribunais, cujas competências
residem no controle difuso e concentrado de constitucionalidade das normas.
Além disso, deve realizar o controle de convencionalidade.
§ 1º Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais
As cortes domésticas – Tribunais de Justiças, Tribunais Regionais
Federais – possuem a competência de revisar a matéria julgada pelos juízes
monocráticos estaduais e federais, em segunda instância respectivamente.
Embora não se restrinjam à revisão, por vezes são considerados foro inicial em
demandas contra atos de autoridades cuja competência demande o ajuizamento
nos Tribunais referidos.
A importância desses tribunais em aplicar o direito internacional consiste
em ser, especialmente no caso dos Tribunais de Justiça, a última palavra a ser
dada quando se referir a questionamento de normas estaduais. Diversas ações
foram ajuizadas contra atos de órgãos estaduais que, no exercício de suas
funções, discriminaram produtos importados em relação aos produtos nacionais,
incorrendo em violação às normas do GATT e do Acordo Antidumping. Sendo o
Tribunal de Justiça a corte máxima a dizer o direito no que tange às normas
estaduais, reclama-se que seja feita a aplicação do direito internacional posto,
contribuindo desse modo para o cumprimento das obrigações assumidas
mediante os acordos internacionais.
A aplicação do direito internacional deve considerar, além dos tratados,
os princípios, pacta sunt servanda, da boa-fé, bem como observar as decisões
do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Discorrendo sobre um método
de aplicação do direito internacional pelos tribunais brasileiros, André Lupi e Luiz
Bastos Junior apontam que a interpretação dada pelos tribunais em
116
conformidade com o Direito Internacional resulta em benefícios, tais como: “a
maior uniformidade de interpretação (eis que mantém o mesmo referente), a
compatibilização com a interpretação que deve ser dada por outros tribunais de
outros países em caso de interesse do Brasil (o que garante a reciprocidade das
obrigações) e a consistência da conduta brasileira frente às obrigações
assumidas no plano internacional”270.
§ 2º Superior Tribunal de Justiça (STJ)
O STJ adquire competência para conservar a aplicação dos tratados
internacionais decorrentes do dispositivo constitucional, artigo 105, III, “a”, da
Constituição Federal. Tem-se no dispositivo o fato de ser atribuída competência
ao STJ para julgar, sob a via de recurso especial, as causas decididas, em única
ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territórios, mormente a decisão recorrida
contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhe vigência.
O STJ, na estrutura organizacional do Poder Judiciário brasileiro, possui
competência para processar e julgar demandas originárias em razão do foro
privativo de autoridades (por exemplo, Ministros de Estado) e realiza o controle
das normas federais, sendo a instância a emitir em grau de recurso a última
sentença em questões envolvendo o controle de legalidade de tratados.
Em uma observação pontual, Jahyr-Philippe Bichara chama a atenção
para a ausência de “distinção entre tratados internacionais de direitos humanos
e tratados internacionais comuns”, no texto constitucional, conferindo ao STJ o
poder de solucionar no País a resolução de situações sobre a OMC, caso a
demanda verse acerca de algum de seus acordos. Em razão de estar no patamar
mais alto, caso o tratado não viole norma de direito constitucional, cuja
consequência resultaria em recurso extraordinário, ter-se-á no STJ a palavra
final para a quase totalidade dos litígios envolvendo os acordos da OMC, posto
que o Decreto n. 1.355/1994 não teve questionada a sua constitucionalidade271
270 LUPI, André Luiz Pinto Basto; BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto, Op. cit., p. 2500. 271 Jahyr-Philippe Bichara exemplifica como sendo tratados internacionais comuns os que versam sobre comércio, cooperação econômica, cooperação judiciária ou ambiental. BICHARA, Jahyr-Philippe, Op. cit., p. 27.
117
A comunidade internacional está preocupada com o desfecho dos
processos, para verificar se estão sendo violadas ou não as normas
internacionais, de modo que a importância dessa última instância jurisdicional
reside em garantir a aplicação do direito internacional, mesmo que tenham sido
equivocadas as decisões das instâncias inferiores, a ponto de refletir o papel
cumpridor das obrigações assumidas no plano internacional.
Diante do contexto apresentado, Jahyr-Philippe Bichara enumera três
possibilidades que podem ocorrer diante da aplicação do direito internacional
pelo STJ: a) o STJ poderá constatar a inaplicabilidade de um tratado
internacional por considerar ausente na reivindicação de uma das partes
litigantes o direito previsto no tratado, estando em jogo não um eventual conflito
de normas, mas a devida aplicação do direito como um todo; b) o STJ, ao atuar
na função revisora, pode vir a aplicar um tratado que tenha sido negado na
primeira instância, de modo a conciliar o requerido por uma das partes com os
tratados internacionais firmados e internacionalizados pelo Brasil; c) o STJ pode,
com fundamentação destoante da doutrina que afirma a primazia dos tratados
internacionais, manter a recusa de aplicação do tratado internacional272.
No primeiro e no segundo casos, a atuação do STJ ensejará
credibilidade, segurança jurídica e cumprimento das obrigações pactuadas no
seio das Organizações Internacionais ou com outros Países. Já no terceiro caso,
em se tratando de normas da OMC, como visto no capítulo 4, será possível a
aplicação de medidas sancionatórias, além de constranger os negociadores à
frente das relações comerciais, por quebra de compromisso assumido.
§ 3º SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF)
Nos termos do artigo 102 da Constituição Federal, compete ao Supremo
Tribunal Federal a guarda da Constituição. A partir da emenda constitucional nº.
45/2004, o STF passou a ser uma autêntica Corte Constitucional, tendo a
competência predominante de matérias constitucionais, realizando o controle de
constitucionalidade por via das Ações Direta de inconstitucionalidade e
Declaratória de constitucionalidade. De um modo geral, o STF aprecia causas
272 Ibidem.
118
cujo teor esboce violação à Carta Magna, somando a esse requisito a exigência
de demonstração de repercussão geral no controle difuso para admissibilidade
do recurso extraordinário, quando no controle de constitucionalidade difuso.
Nesse contexto, esse será o remédio constitucional no qual o STF verificará a
constitucionalidade dos tratados internacionais.273
No rol do artigo 102, está previsto no inciso III, b, que compete ao STF
julgar, mediante recurso extraordinário, os litígios em única ou última instância,
mormente a decisão recorrida declare a inconstitucionalidade de tratado ou lei
federal. Em outras palavras, ao STF cabe apenas apreciar recurso cujo objeto
da decisão recorrida afirme a inconstitucionalidade de um tratado de modo a
concretizar o controle jurisdicional, conforme o texto da Constituição Federal.
A jurisprudência assentada do STF em torno da aplicação do artigo 102,
III, b, informa uma decisão sobre o controle de constitucionalidade de tratado
incorporado ao ordenamento jurídico: “Controle de constitucionalidade de
tratados internacionais no sistema jurídico brasileiro. O Poder Judiciário –
fundado na supremacia da Constituição Federal – dispõe de competência, para,
quer em sede de fiscalização abstrata, quer no âmbito do controle difuso, efetuar
o exame de constitucionalidade dos tratados ou convenções internacionais já
incorporados ao sistema de direito positivo interno”274.
Contudo, no que tange à aplicabilidade das normas da OMC, as
posições adotadas pelo STF não interferem na aplicação do direito internacional,
posto que já houve a expedição de decreto pelo Presidente da República.
Inobstante, destacam-se, ainda, as normas posteriores que contrariem o acordo
GATT/1994 e sejam de teor tributário. Tais leis não prevalecem sobre o acordo,
consoante o Código Tributário Nacional275.
273 Posição não aceita por José Afonso da Silva em razão do controle difuso de constitucionalidade, pelo qual qualquer juiz brasileiro poderá exercer o controle de constitucionalidade (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed.
São Paulo: Malheiros, 2010. p. 558-559. Já para Gilmar Mendes, o STF vem avançando no seu papel de corte constitucional. MENDES, Gilmar. Controle de Constitucionalidade e Processo de Deliberação: legitimidade, transparência e segurança jurídica nas decisões das cortes
supremas. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo /cms/noticiaNoticiaStf/anexo/EUA_GM.pdf>. Acesso em: 27 set. 2016. p. 7. 274 STF. ADI 1.480-MC, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 4-9-1997, Plenário, DJ de 18-5-2001. 275 Código Tributário Nacional, “Art. 98. Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.
119
Nessa perspectiva, restam a todos os magistrados do País a disposição
e a responsabilidade para colocar em prática as normas da OMC. Afinal, não
fora de modo coativo que o país se tornou membro, antes pelo contrário, “cada
Estado, como membro da comunidade internacional, é dotado de autoridade
para declarar e tornar efetivo o direito nacional e internacional”276. Desse modo,
o Brasil goza de contrapartida por participar da Organização Mundial do
Comércio com os benefícios de impetrar ações contra os demais membros em
caso de descumprimento, podendo ser demandado caso também não cumpra
as regras do sistema multilateral do comércio.
276 MAGALHÃES, José Carlos. Op.cit. p. 30.
120
Capítulo 6. O CONTROLE JURISDICIONAL DO ACORDO GATT
O Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio (General Agreement on Tarifs
and Trade – GATT) de 1994, como já exposado no capítulo 2, é parte integrante
do acordo fundante da OMC. Sucessor do GATT de 1947, elenca diversas regras
sobre o comércio multilateral e deve ser observado por todos os seus membros,
nos quais se inclui o Brasil.
O Poder Judiciário brasileiro, conforme visto no capítulo anterior, possui
competência para realizar o controle preventivo a fim de se evitar que o Estado
Brasileiro incorra em transgressão ao acordo do GATT de 1994, que constituti
um dos acordos da OMC.
O conhecimento do acordo GATT de 1994 levará os magistrados à
compreensão de princípios e normas do comércio multilateral que, diante de
diversas situações fáticas, constatados a partir de casos concretos e julgados
pelos juízes e tribunais brasileiros, poderão conduzir o julgamento de modo a
levar o Estado brasileiro (incluindo aqui todos os seus entes – União, estados e
municípios) a cumprir com as normas estabelecidas nos tratados internacionais,
evitando assim a condição de reclamado no OSC.
Neste capítulo, buscar-se-á enfatizar as regras do GATT de 1994, as
quais devem ser utilizadas pelos magistrados brasileiros com o intuito de
resguardar futuras representações contra o Brasil perante o OSC. Inicia-se,
assim, dicorrendo sobre a origem do GATT de 1994 desde seu antecessor GATT
de 1947, conceituando-se seus principais institutos e princípios e informando sua
função facilitadora no comércio multilateral.
Prossegue-se com a aplicação pragmática do GATT de 1994, listando
as principais ocorrências na jurisprudência brasileira, analisando como decorreu
a atuação do judiciário brasileiro na aplicação dos princípios e normas do GATT
de 1994 e invocando julgados referentes ao GATT de 1947 que servem ainda ao
GATT de 1994 em razão da absorção deste.
Finaliza-se o capítulo com comentários acerca do levantamento
estatístico das decisões juridicionais exaradas pelos Tribunais regionais federais
e tribunais de justiça, além do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal, cujo teor envolva o GATT de 1994.
121
Seção 1. Da Aplicabilidade do GATT na ordem interna
Os acordos obrigatórios que compõem o ordenamento jurídico da OMC
devem ser objeto de detalhado estudo pelos operadores do direito. Assim, nesta
seção, abordam-se a origem, a função e a estrutura do GATT, a fim de subsidiar
a compreensão dos precedentes pesquisadas ao final do capítulo.
§1º Origem do GATT
O escorço histórico do GATT de 1947 remete à necessidade da criação
de um braço comercial para assegurar o fluxo das relações comerciais, uma vez
já criado um Fundo Monetário Internacional para garantir a balança de
pagamentos dos países que participaram da Segunda Grande Guerra de 1945,
além do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, atual Banco
Mundial, com a função de emprestar aos países aliados devastados condições
de resconstruírem seus parques industriais e desenvolverem suas economias277.
Faltava, pois, para a consolidação do tripé, o braço da regulação
comercial multilateral, de modo que facilitasse as transações comerciais entre as
nações, com o objetivo de evitar barreiras comerciais. Eis que surge a
Organização Internacional do Comércio (OIC), fundada com a Carta de Havana,
em 1947. Contudo, os Estados Unidos foram signatários da Carta, mas o
Congresso não ratificou.
O primeiro GATT surgiu em 1947 como acordo provisório antes de se
anunciar o insucesso da criação da Organização Internacional do Comércio,
criada na Carta de Havana, cuja presença dos Estados Unidos foi mitigada pela
falta de ratificação pelo Congresso Americano, que refutou o ingresso dos EUA
à OIC. Creditavam a participação do EUA a provável impedimento ao
crescimento da economia norte-americana, ante o momento favorável de
expansão comercial propiciado pelo pós-Segunda Grande Guerra.
O texto do GATT de 1947 tinha o intuito de ser provisório, no entanto
perdurou até 1994, quando da fundação da OMC, tendo sido o seu texto anexado
ao GATT de 1994, e constitiui acordo da OMC. A OMC possui acordos que são
277 NASSER, Rabih Ali. A OMC e os Países em Desenvolvimento. São Paulo: Aduaneira, 2003.
p. 34.
122
obrigatórios aos seus membros e alguns acordos (os plurilaterais) que são de
adesão facultativa, nesse caso, o GATT de 1994 é acordo de observância
obrigatória.
A nomenclatura atribuída ao Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio é
comumente representada por sua sigla GATT, acrescida do ano de 1994,
servindo para diferenciar do seu antecessor (GATT de 1947). O GATT de 1994
é um acordo da OMC que trata exclusivamente do comércio de bens, mas não
é o único acordo sobre o tema de bens, visto que há outros que versam também
sobre o assunto no Anexo 1A. Ele visa uma maior liberalização do comércio de
bens por meio de redução de tarifas e outras barreiras ao comércio, refutando
ainda o protecionismo aos produtos nacionais que venham a gerar discriminação
sobre os bens importados278.
§ 2º Função do GATT de 1994
O GATT de 1994 possui importantes funções que, na visão de Paulo
Estivallet de Mesquita, podem se traduzir em quatro regras gerais: “(1) cláusula
de nação mais favorecida, para equalizar as condições de concorrência entre os
fornecedores externos; (2) tratamento nacional, para que, uma vez superados os
obstáculos na fronteira, o produto importado não seja discriminado em relação
ao doméstico; (3) proteção exclusivamente por meio de tarifas e (4)
transparência, para assegurar previsibilidade”279.
Apresenta relevante destaque o princípio da não discriminação inferido
a partir do princípio da Nação Mais Favorecida. Nas lições de Vera Thorstensen,
Daniel Ramos e Carolina Muller, inicialmente, fica garantido que nenhum país
exercerá vantagem comercial em suas relações com outro membro da OMC,
278 O Anexo 1A do acordo constitutivo da OMC elenca os Acordos Multilaterais sobre Comércio de Bens: Acordo sobre Agricultura; Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias; Acordo sobre Têxteis e Vestuário; Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio; Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio; Acordo sobre a Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio1994 (também conhecido como Acordo Antidumping); Acordo sobre a Implementação do Artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio 1994 (também conhecido como Acordo sobre Valoração Aduaneira); Acordo sobre Inspeção Pré-Embarque; Acordo sobre Regras de Origem; Acordo sobre Procedimentos para o Licenciamento de Importações; Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias; e Acordo sobre Salvaguardas. 279 MESQUITA, Paulo Estivallet. A Organização Mundial do Comércio. Brasília: Fundação
Alexandre Gusmão, 2013. p. 28-29.
123
posto que poderia decorrer “em tensões e em desvio de comércio”. Trata-se, nas
palavras dos autores, “de uma garantia ampla, que engloba qualquer tipo de
benefício que possa ser concedido por uma parte contratante a outra”. Segundo
esses autores, objetiva-se precaver uma destinação arbitrária dos fluxos de
comércio entre os membros, de sorte que afetaria os benefícios almejados pela
concorrência no comércio internacional280.
Outro intuito relevante diz respeito à proteção à estabilidade do sistema
multilateral do comércio global regido pela OMC. Conforme explicam
Thorstensen, Ramos e Muller, o produtor, ciente do tratamento isonômico nas
mesmas barreiras tarifárias, quando exportar a um determinado país,
independentemente de sua origem, “ele será capaz de decidir o melhor local
para produzir, sem levar em consideração as tarifas aplicadas”281.
O princípio retromencionado também corteja a previsibilidade ao deixar
um espaço favorável à escolha do local a ser encaminhada a mercardoria pelos
exportadores de acordo com as ofertas e incentivos ao comércio. Thorstensen,
Ramos e Müller expõem que “o princípio NMF é um dos principais pilares do
sistema multilateral de comércio, estabelecido após a Segunda Guerra Mundial,
em resposta à turbulência econômica dos anos 1930, fortalecida por medidas
protecionistas e arbitrárias implementadas na época”282.
Uma das peculiaridades do GATT de 1994 está na sua constituição, em
que são diversas as origens de suas fontes. Tem-se, pois, integrando o GATT
de 1994, os dispositivos do GATT de 1947, instrumentos legais celebrados sob
o GATT de 1947, e as resoluções denominadas “Entendimentos”, firmadas
durante a Rodada Uruguai, esclarecendo a natureza e extensão das obrigações
estabelecidas nos dispositivos do GATT 1947, e pelo Protocolo de Marrakesh
sobre Concessões Tarifárias283.
O GATT de 1994 incorporou na íntegra os dispositivos do GATT de 1947,
conforme já mencionado, por meio dos “Entendimentos” e outros instumentos
legais houve intereferências no texto do GATT 1947, como, por exemplo, a
280 THORSTENSEN, Vera; RAMOS, Daniel; MÜLLER, Carolina. O Princípio da Nação Mais Favorecida e os desalinhamentos cambiais. Nota Técnica n. 6 - Dinte, IPEA, Brasília,
dezembro de 2011. p. 3. 281 Ibidem, p. 3. 282 Ibidem, p. 3. 283 NAÇÕES UNIDAS. Relatório da UNCTAD. Disponível em: <http://unctad.org/pt/docs/edmmisc232add33_pt.pdf>.
124
alteração dos termos “partes contrantes”, passando-se a utilizar os termos
“membros”284.
Na relação entre o GATT 1994 e os outros acordos específicos da OMC,
quando conflitarem entre si, prevalece sempre o acordo específico, conforme
definido em interpretação do Órgão de Apelação do OSC, que afirma que o
acordo sobre bens do GATT do 1994 não se sobrepõe a nenhum outro acordo
cujo tema verse também sobre bens285.
Questão por vezes controversa é a situação envolvendo serviço e
mercadoria, nesse sentido, o Órgão de Apelação do OSC/OMC no Caso EC-
Bananas III teve a oportunidade de analisar o eventual conflito de competência
dos acordos GATT (mercadorias) e GATS (serviços)286.
O Órgão de Apelação reforça que o GATS não se destina a tratar do
mesmo tema substantivo do GATT 1994, qual seja o seu objeto, o comércio de
serviços. O GATS, ao regular a prestação de serviços, aplica tanto o tratamento
da nação mais favorecida quanto o tratamento nacional para serviços e
fornecedores de serviços. Nessa perspectiva, pode ocorrer uma sobreposição
de acordos sobre um determinado evento, a depender das medidas em
questão287.
O Órgão de Apelação discorre sobre três hipóteses: uma que envolve
medidas apenas do GATT 1994, por abranger o comércio de bens; uma segunda
hipótese com medidas submetidas exclusivamente ao acordo GATS quando
versarem sobre o fornecimento de serviços; por fim, medidas que englobem
serviço relativo a um bem em particular ou um serviço fornecido em conjunção
com um bem em particular, quando se referissem tanto ao GATT 1994 como ao
GATS288.
A conclusão que aponta o Órgão de Apelação sobre a questão
sobreposta de ambos os acordos se dá na análise da medida sob cada um dos
acordos, de modo que as medidas determinadas poderiam ser diferentes.
284 WTO. Protocolo de Marrakesh. Anexo 1-A. GATT de 1994. Nota explicativa n. 2. 285 Relatório do Órgão de Apelação, Guatemala–Investigação Antidumping relativa ao Cimento Portland do México (“Guatemala – CementI”), WT/DS60/AB/R, adotado em 25 de novembro de 1998, para. 65. 286 Relatório do Órgão de Apelação, Comunidades Europeias – Regime para a Importação, Venda e Distribuição de Bananas (“EC-Bananas III”), WT/DS27/AB/R, adotado em 25 de setembro de 1997, 287 Ibidem. 288 Ibidem.
125
§ 3º Estrutura do GATT de 1994
A Estrutura do GATT de 1947 reproduzida no GATT de 1994 está
dividida em 30 artigos, distribuídos em quatro partes. A primeira parte contém
somente dois artigos, não obstante deles se extraírem princípios como o da não
discriminação, uma das colunas do sistema multilateral de comércio objetivada
pela OMC. Os artigos integrantes da Parte I são o Artigo I, que estipula a
obrigação de tratamento da nação mais favorecida, e o Artigo II, que estabelece
as obrigações aplicáveis às Listas de Concessões de cada Membro da OMC289.
A segunda parte do GATT de 1994 é a mais longa, incluindo-se os
Artigos III a XXIII. O Artigo III regulamenta a obrigação de tratamento nacional.
Os Artigos IV a XIX discorrem sobre barreiras e medidas não tarifárias, tais como
as práticas desleais de comércio (dumping e subsídios à exportação), restrições
quantitativas, restrições por razões de balanço de pagamentos, empresas
comerciais estatais, assistência governamental ao desenvolvimento econômico
e medidas de salvaguarda emergenciais.
Essa matéria disciplinada no artigo VI sobre Dumping guarda uma
importância para o magistrado brasileiro. Em razão de ser alvo de diversas
demandas judiciais no Brasil, a atuação de medidas antidumping destoa do
acordo firmado290.
Ademais, nesta parte também estão inclusas disposições relacionadas
à aplicação de medidas de fronteira. Os artigos XX e XXI versam sobre eventuais
exceções ao GATT de 1994, mais precisamente exceções gerais e por motivos
de segurança. Os Artigos XXII e XXIII tratam de procedimentos para a solução
de controvérsias, os quais estão mais detalhados no Entendimento sobre os
Princípios que Governam a Solução de Controvérsias (“ESC”)291.
A terceira parte do GATT de 1994 consiste nos Artigos XXIV a XXXV. O
Artigo XXIV refere-se a uniões alfandegárias e áreas de livre comércio, além da
responsabilidade dos Membros pelos atos dos governos regionais e locais
existentes dentro do seu território. Frise-se que tal dispositivo é dos
289 Oito artigos do GATT de 1947 foram derrogados pelo Acordo geral da OMC. 290 Vide capítulo 7 sobre antidumping. 291 Apresentado no capítulo 4.
126
fundamentadores da responsabilidade da atuação do juiz brasileiro como um
agente preventivo às demandas contra o Brasil perante a OMC. Os Artigos
XXVIII e XXVIII (bis) consistem na negociação e renegociação de concessões
tarifárias.
A última parte do GATT de 1994 é intitulada “Comércio e
Desenvolvimento” e tem como objetivo o aumento das oportunidades comerciais
para os Estados Membros em desenvolvimento, propondo para tanto várias
formas relacionadas na Parte IV.
Os dispositivos cujos conteúdos visavam aspectos procedimentais de
funcionamento, tais como da entrada em vigor, acessão, alterações, retiradas,
não aplicação e ação conjunta, foram derrogados pelos dispositivos relevantes
similares do Acordo da OMC (Protocolo de Marrakesh).
Observado um panorama geral das partes que compõem o GATT de
1994, passa-se à análise dos principais dispositivos que implicam demandas
judiciais, ocorrendo inclusive diversas ações judiciais contra os agentes públicos
que descumprem tais normas, além das demandas internacionais interpostas
pelos Membros contra o Estado Brasileiro na OSC.
Direciona-se a pesquisa para os artigos que têm uma aplicação
pragmática no cotidiano jurídico nos quais se destacam a obrigação de
Tratamento da Nação mais Favorecida, o princípio da não discriminação, o
princípio de acesso ao mercado, nos quais se aplicam as barreiras tarifárias ou
não tarifárias, tais como restrições quantitativas.Prossegue-se com as exceções
à aplicação das disciplinas do GATT de 1994, dentre as quais se evidenciam
medidas de segurança e proteção a vida e saúde humana, animal e vegetal,
medidas de salvaguarda, integração regional, em que estão inseridos a
Comunidade Europeia e o MERCOSUL, restrições de balança de pagamento.
Seção 2. Aplicação pragmática
Ultrapassada a explanação geral sobre o GATT de 1994, com sua
origem, conceituação e finalidade, debruça-se com mais atenção em torno de
dispositivos que implicam diversas demandas judiciais, fazendo-se necessário o
seu prévio conhecimento pelos magistrados brasileiros que, como já observado,
127
estão aptos para exercer um controle preventivo à responsabilização
internacional do país perante o OSC da OMC.
§1º O Princípio do Tratamento da Nação mais favorecida
O Artigo I.1, do GATT 1994, traz em seu título “tratamento da nação mais
favorecida”, do qual decorre o princípio da não discriminação, pelo qual os
membros da OMC estão vedados de tratar desfavoravelmente os bens
originados de outros membros292. Esse princípio deve ser objeto de atenção aos
aplicadores do direito brasileiro, posto que diversas demandas judiciais se
solucionariam satisfatoriamente respeitando as normas da OMC com sua
aplicação, compreendendo ainda o fato de ser considerado a pedra angular do
sistema multilateral de comércio da OMC. A obrigação de não discriminação,
conforme o relatório da UNCTAD, órgão das Nações Unidas, contribui para
garantir que “as relações comerciais sejam justas previsíveis”293.
A obrigação de tratamento da nação mais favorecida, prevista no título
do artigo I:1, traz em seu cortejo que os membros da OMC estão obrigados a
tratar igualmente produtos originados em ou destinados a diferentes países. O
objetivo deste artigo é garantir a igualdade de oportunidades para todos os
Membros da OMC, na importação ou exportação294.
Assim sendo, Pedro Infante da Mota explica sobre a proibição de “um
Membro da OMC (País A) tratar mais favoravelmente os produtos originários de
outro País em relação aos produtos similares originários de todos os outros
Membros da OMC”295.
O Artigo I:1, do GATT de 1994, expõe uma técnica para constatar se há
violação da obrigação de tratamento da Nação Mais favorecida, em explanação
de Peter Van den Bossche, sendo conhecida por teste das três fases. Nesse
sentido, devem ser respondidas três perguntas: 1º) A medida questionada atribui
292 WTO, Anexo 1A ao Acordo da OMC. GATT de 1994, Artigo Primeiro. 293 NAÇÕES UNIDAS. UNCTAD. Op. cit. p.14 294 GATT de 1994, Art. I, parágrafo 1º. [...] “qualquer vantagem, benefício, privilégio ou imunidade concedida por qualquer [Membro] a qualquer produto originado em ou destinado a qualquer outro país será conferido imediatamente e automaticamente aos produtos equivalentes originados em ou destinados aos territórios de todos os outros [Membros]”. 295 MOTA, Pedro Infante. A Organização Mundial do Comércio e os Blocos Econômicos Regionais. Cadernos PROLAM/USP, ano 3, v. 2, p. 103-104, 2004. Disponível em:
<www.usp.br/prolam/dow nloads/2004_2_5.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2016.
128
uma “vantagem” aos produtos originados em ou destinados aos territórios de
todos os outros Membros? 2º) Os produtos na disputa são “similares”? 3º) A
vantagem questionada foi concedida “imediata e incondicionalmente” a todos os
produtos similares? A resposta à primeira pergunta vai ao encontro da vantagem
atribuída por um Membro, por intermédio de uma gama de medidas, a qualquer
produto originado em ou destinado a qualquer outro país. Ressalta-se que as
vantagens podem ser tarifas e taxas de qualquer tipo impostas em conexão com
importação e exportação; o método de imposição dessas tarifas e taxas; regras
e formalidades relacionadas a importação e exportação; tributos internos e taxas
incidentes sobre bens importados; leis internas, regulamentos e requisitos que
afetem as vendas296.
A expressão “qualquer outro país” considera que se um Membro da OMC
atribui qualquer vantagem a produtos de origem ou destinados a um país não
membro, obrigar-se-á tal Membro a estender a todos os demais Membros da
OMC.
No caso EC-Bananas III, o Órgão de Apelação, observando que a
Comunidade Europeia fazia distinção entre países ao impor determinados
requisitos a um certo grupo de países, assim concluiu que a Comunidade
Europeia agiu de modo incompatível com o artigo I:1 do GATT de 1994, ao
conferir vantagens às bananas importadas de um grupo de estados, mesmo
sendo este diverso dos Membros da OMC297.
A segunda questão para ser respondida requer o conhecimento do
conceito de “produtos similares”, o qual não consta em nenhum dispositivo do
GATT de 1994, sendo esclarecido em relatórios da OMC.
Em Spain – Unroasted Coffee, o Painel determinou critérios para
configurar a ocorrência de produtos similares, considerando, para tanto, além
das caractéristicas dos produtos, sua utilização final e a incidência de tributos
por outros Membros. O caso tratava se as diferentes espécies de tipos de café
não torrado eram similares nos termos propostos pelo Artigo I:1, do GATT de
1994298.
296 VAN DEN BOSSCHE, Peter. The Law and Policy of the World Trade Organization: text,
cases and materials. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 325. 297 WTO. Relatório do Órgão de Apelação, EC – Bananas III, parágrafo. 206. 298 WTO. Relatório do Painel, Espanha – Tratamento Tarifário do Café Não torrado (“Spain – Unroasted Coffee”), adotado em 19 de junho de 1981, BISD 28S/102, parágrafo. 4.11.
129
A Espanha apresentou diversos argumentos com o intuito de respaldar
uma diferenciação na aplicação das tarifas para os diversos tipos de café não
torrado. De acordo com o relatório, os argumentos se fundavam principalmente
em diversidades decorrentes de fatores geográficos, métodos de cultivo,
processamento da semente e fator genético.
Em sua conclusão, o Painel não considerou suficientes tais diferenças a
fim de permitir um tratamento não isonômico para os produtos. O Painel
considerou relevante o fato de ser vendido na forma de misturas, combinando
vários tipos de café, e que o “seu uso final era visto como um produto único e
bem-definido, feito para ser bebido”299. Houve também a constatação pelo Painel
de que nenhum outro país realizava distinção entre o café não torrado e não
descafeinado quanto à aplicação de tarifas distintas300.
A resposta à terceira pergunta do teste dos três consiste em auferir se a
vantagem foi conferida “imediatamente e incondicionalmente”. Denota-se
constatado por um Membro da OMC que qualquer outro Membro que concedeu
vantagem a qualquer outro país deverá, sem impor condições, estender o
benefício da vantagem a todos os outros Membros da OMC.
§ 2º O Princípio do Tratamento nacional
No artigo III, do GATT de 1994, é apresentada a obrigação de tratamento
nacional, pela qual fica condicionada a não discriminação de produtos
importados após seu ingresso no mercado nacional. Nos termos do Artigo III:1,
tem-se: “1.Os Membros reconhecem que tributos internos e outros encargos
internos, e leis, regulamentos e requisitos que afetem a venda interna [...] não
devem ser aplicados a produtos importados ou domésticos de modo a conferir
proteção à produção doméstica”.
O caso Japan – Alcoholic Beverages II ilustra bem o que o Órgão de
Apelação destacou como sendo a finalidade do Artigo III, qual seja, combater o
299 Ibidem. 300 Ibidem.
130
protecionismo e “fornecer igualdade de condições competitivas para produtos
importados em relação a produtos domésticos”301.
Quando da requisição via judicial de aplicação de concessão de
tratamento isonômico em face dos dispositivos supracitados, é de bom alvitre
que o juiz aplique a norma da OMC, posto que sua não observância levará a
consequências pecuniárias e, muito provalvemente, a um estremecimento nas
relações diplomáticas, prejudicando o Estado brasileiro no cenário internacional,
do qual depende sensivelmente para o seu crescimento econômico.
Ainda sob a influência e direção do princípio de não discriminação,
prosseguem os demais parágrafos do artigo III. O artigo III:2 do GATT 1994302
discorre sobre a aplicação de tributos internos ou outra taxa interna de qualquer
tipo, sobre produtos similares. Como explicitam Matsuo Matsushita, Thomas
Shoenbaum e Petros Mavroidis a respeito dos produtos diferentes, é possível
existir a distinção tributária303. Diversamente do Artigo I, o Artigo III:2 foca em
duas sentenças, estabelecendo-se, portanto, segundo Van den Bossche, “um
teste de duas fases”304, a fim de que, quando respondidas as duas questões,
seja, portanto, determinada a existência de violação ao citado artigo.
A primeira sentença consiste em duas partes, inicialmente em
determinar se os produtos importado e doméstico são produtos similares, e, por
último, averiguar se os tributos sobre os bens importados encontram-se acima
dos bens domésticos. O Magistrado brasileiro deve observar, quando provocado
sobre esse dispositivo, que toda e qualquer medida interna com cunho fiscal se
enquadrará na incidência desse artigo. Ressalta-se que, caso não seja aplicada
a compra, depósitos de segurança não são considerados como ato tributário305.
301 Relatório do Órgão de Apelação, Japão – Impostos sobre Bebidas Alcoólicas (“Japan-Alcoholic Beverages II”), WT/DS8/AB/R, WT/DS10/AB/R, WT/DS11/AB/R, adotado em 1º de
novembro de 1996. p.16. 302 GATT/1994, artigo III: “2. Os produtos do território de qualquer [Membro] importados para o território de qualquer outro [Membro] não serão sujeitos, direta ou indiretamente, a tributos internos ou outros encargos internos de qualquer tipo superiores àqueles aplicados, direta ou indiretamente, a produtos domésticos similares. Além disso, nenhum [Membro] aplicará tributos internos ou outros encargos internos a produtos importados ou domésticos de forma contrária aos princípios estabelecidos no parágrafo 1”. 303 MATSUSHITA, Mitsuo, SCHOENBAUM, Thomas J.; MAVROIDIS, Petros C. Op. cit. p. 236. 304 VAN DEN BOSSCHE, Peter. Op. cit., p. 349. 305 WTO. Relatório do Painel, Medidas da Comunidade Econômica Europeia sobre Proteínas para Ração Animal (“EEC – Animal Feed Proteins”), adotado em 14 de março de 1978, BISD
25S/49, parágrafo. 4.4.
131
No artigo I, do GATT 1994, a similaridade é questionada entre produtos
externos, por sua vez, no artigo III, a similaridade a ser alcançada ocorre entre o
bem doméstico e o bem importado. Também importante é a definição do que
seja produto similar, cuja ausência no texto do acordo do GATT remete para
vários relatórios de Paineis e do Órgão de Apelação, sem, contudo, ter sido
apresentada uma definição pronta e acabada. Segundo Carolina Machado.
“quanto mais abrangente for considerado o conceito de produto similar, maior
será a invocação da cláusula do tratamento nacional”306.
Assim, a constatação da similitude não está enclausurada em um
conceito pré-determinado, de modo que restará variável, uma vez que serão
levados em conta, a depender do contexto, as características do produto, seu
uso final e o regime tributário de outros membros.
O magistrado brasileiro se depara, por vezes, com questões envolvendo
a aplicação de isenções tributárias com base na similitude. Uma dessas
questões resultou, inclusive, em súmula do STJ307 tratando da similitude de peixe
bacalhau com o peixe salgado produzido pelo mercado interno. Uma vez que o
Brasil não tem em seu litoral o peixe de água fria (bacalhau) pescado nas águas
de países como Noruega, Inglaterra, entre outros, os ministros do STJ
entenderam, ante o contexto da comercialização do peixe salgado brasileiro com
a mesma finalidade do peixe bacalhau, estender os benefícios fiscais atribuídos
pelos estados. Tal entendimento serve preventivamente para evitar as
demandas contra o Estado brasileiro perante o OSC.
Exemplificando a atuação do Órgão de Apelação, Stephanie Cartier 308
destaca o caso Japan – Alcoholic Beverages II309, cujo cerne era aferir se as
bebidas shochu e vodka tratavam-se ou não de produtos considerados
similiares. Como não há uma definição prévia sobre o assunto, restando a
análise do caso concreto para determinar a similitude, o Painel desenvolveu uma
linha de raciocínio e, considerando o compartilhamento da maior quantidade de
características físicas entre as duas bebidas, afastou como elemento
306 MACHADO, Carolina de Paiva Queiroz. O Princípio do Tratamento Nacional e a edição da súmula 71 do Superior Tribunal de Justiça: um estudo de caso: importação de bacalhau de países signatários do GATT. Revista do Mestrado em Direito da Unversidade de Brasília,
Brasília, v. 3, n. 1, p. 86, 2009. 307 STJ. Súmula n. 71. 308 CARTIER, Stephanie. Op. cit., p. 24. 309 WTO, Relatório do Órgão de Apelação Japan – Alcoholic Bevereges II. Op. cit., p. 19-20.
132
diferenciador o fato de as bebidas não possuírem o mesmo teor alcoólico e
apontou ao final que o sochu japonês e a vodka são “similares”, excluindo da
similitude outras bebidas alcoólicas, tais como whisk e brandy, em face da
aparência e processos de fabricação. Por causa do uso de aditivos, desqualificou
os licores, gin e genever e, pela utilização de ingredientes, desqualificou o
rum310.
Espera-se do magistrado brasileiro uma sensibilidade ao se deparar com
as demandas propostas por importadores que almejam o reconhecimento da
similitude entre o produto estrangeiro e o nacional, para auferir benefício dado a
situações análogas, com o fito de poupar o Brasil de eventuais demandas.
Retomando a análise do artigo III:2 do GATT de 1994, a segunda
sentença aponta: “Ademais, nenhum [Membro] deverá de outro modo aplicar
taxas internas ou outros encargos internos para produtos importados ou
domésticos de maneira contrária aos princípios estabelecidos no parágrafo 1”311.
A segunda sentença do artigo III:2, conforme o Órgão de Apelação, pode
ser averiguada ao aplicar o teste de três fases, com três questões, que,
conforme o Órgão de Apelação, são: “1ª) Os produtos importados e os produtos
domésticos são ‘produtos diretamente concorrentes ou substituíveis’ que estão
em concorrência entre si; 2ª) os produtos importados e domésticos, diretamente
concorrentes ou substituíveis, ‘não são similarmente taxados’; e 3ª) a taxação
não-similar dos produtos importados e domésticos, diretamente concorrentes ou
substituíveis, é aplicada de modo a sustentar proteção à produção doméstica”312.
O dispositivo III:4, do GATT de 1994, ao ser questionado por qualquer
dos membros da OMC, e para ter sua aplicabilidade efetivada, deverá ser
submetido a um teste de três fases, conforme ensina Stephanie Cartier citando
o caso Korea - Beef313, que lista as seguintes perguntas: “1) se a medida em
questão é uma “lei, regulamento ou requisito afetando sua venda interna, oferta
para venda, compra, transporte, distribuição ou uso”; 2) se os produtos
importados e domésticos em questão são produtos similares; 3) se o tratamento
310 Ibidem, parágrafo 6.23. 311 WTO. GATT de 1994, Artigo III:2. Segunda sentença. 312 WTO, Relatório do Órgão de Apelação Japan – Alcoholic Bevereges II. Op. cit. p. 21. 313 WTO. Relatório do Órgão de Apelação, Coreia – Medidas que afetam as Importações de Carne Bovina Fresca, Resfriada e Congelada (“Korea – Beef ”), WT/DS161/AB/R,
WT/DS169/AB/R, adotado em 10 de janeiro de 2001, par. 133.
133
concedido aos produtos importados é menos favorável do que aquele concedido
a produtos similares domésticos.
A aplicação do conceito de produtos similares, quando interpretado o
art.III:4 do GATT de 1994, pelo Orgão de apelação no caso EC-Asbestos314,
diferenciou-se dos demais artigos, pois foram apresentados quatro critérios
gerais: i) as propriedades, natureza e qualidade dos produtos; ii) os usos finais
dos produtos; iii) gostos e hábitos dos consumidores; iv) a classificação tarifária
dos produtos. Desse modo, tem-se que, no Art. III:2, o sentido de produtos
similares é mais restritos do que o previsto no artigo III:4315.
A aplicação desses critérios deve ser considerada pelo juiz brasileiro
ante o pleito de tramento igualitário nas tarifas sobre produtos estrangeiros e
seus similares nacionais. É comum o ajuizamento de ações por empresas
importadoras quando os órgãos executivos realizam a distinção entre produtos
quando em relação à origem316.
Em que pese o avançado estágio do processo de globalização, ainda
são presentes as barreiras contestadas pelo Princípio de acesso a mercados.
Esse é mais um dos princípios norteadores do GATT de 1994, o qual visa
salientar quais as regras e tarifas exigidas para ingresso dos produtos. As tarifas
ou taxas alfandegárias incidem sobre os produtos quando de sua importação,
sendo preferidas pela OMC em razão de deixar claro, em se tratando de
impedimento, qual a barreira que está sendo posta, além de restar mais fácil sua
retirada ou a punição do país no caso de condenação no OSC por violação ao
ordenamento da OMC.
Além das barreiras fiscais, existem muitas outras barreiras não tarifárias
que impedem o acesso ao mercado de países membros da OMC, destacando-
se os procedimentos aduaneiros, as medidas sanitárias e fitossanitárias, as
medidas antidumping317 e de salvaguarda sobre serviços prestados318. A
dificuldade de se constatar a barreira não fiscal como uma transgressão às
normas da OMC resulta na preferência pelas tarifas aduaneiras.
314 EC – Measures Affecting Asbestos and Asbestos – containing Products, Report of the Appellate Body (AB – 2000 – 11) 12 Mar 2001. WT/DS135/AB/R, 01-1157 (EC – Asbestos). 315 CARTIER, Stephanie. Op. cit., p. 38. 316 Como já citado, o caso da isenção de ICMS sobre o bacalhau importado será aprofundado no tópico sobre jurisprudências. 317 As medidas antidumping serão abordadas no capítulo 7. 318 CARTIER, Stephanie. Op. cit., p. 52.
134
Há exceções aos princípios anteriormente expostos (não discriminação,
Nação mais favorecida, tratamento nacional e acesso a mercados), não sendo,
portanto, absolutos, podendo os Membros da OMC se absterem de praticá-los
nas hipóteses listadas no artigo XX do GATT de 1994: a) necessárias à proteção
da moralidade pública; b) necessárias à proteção da saúde e da vida das
pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais; c) que se relacionem à
exportação e à importação do ouro e da prata; d) necessárias para assegurar a
aplicação das leis e regulamentos que não sejam incompatíveis com as
disposições do presente acordo [...]; e) relativas aos artigos fabricados nas
prisões; (f) impostas para a proteção de tesouros nacionais de valor artístico,
histórico ou arqueológico; g) relativas à conservação dos recursos naturais
esgotáveis, se tais medidas forem aplicadas conjuntamente com restrições à
produção ou ao consumo nacionais; h) tomadas em execução de compromissos
contraídos em virtude de um Acordo intergovernamental sobre um produto de
base [...]; i) que impliquem restrições à exportação de matérias-primas
produzidas no interior do país e necessárias para assegurar a uma indústria
nacional de transformação as quantidades essenciais das referidas matérias-
primas durante os períodos nos quais o preço nacional seja mantido abaixo do
preço mundial, em execução de um plano governamental de estabilização; sob
reserva de que essas restrições não tenham por efeito reforçar a exportação ou
a proteção concedida à referida indústria nacional e não sejam contrárias às
disposições do presente Acordo relativas a não discriminação; j) essenciais à
aquisição ou à distribuição de produtos dos quais se faz sentir uma penúria geral
ou local319.
Como foi ressalvada a importância dos princípios que norteiam o Acordo
GATT de 1994, ao magistrado brasileiro cabe também conferir se presente a
ocorrência de algum excludente previsto no Artigo XX do GATT de 1994. Isso
posto, tal qual deve o juiz quando provocado prevenir eventual demanda perante
a OSC, também manter a medida idônea, cujo respaldo se dá em razão das
exceções previstas no Artigo XX supramencionado.
Para melhor compreender a incidência dos despositivos e princípios
expostos, passa-se ao relato de diferentes casos de jurisprudências, cuja
319 WTO. Acordo GATT 1994, Artigo XX.
135
fundamentação jurídica repousa sobre as transgressões dos artigos do GATT de
1994.
Seção 3. Casos na jurisprudência brasileira
A atuação do juiz brasileiro sobre a matéria GATT engloba desde o
magistrado de primeira instância Estadual até os Tribunais de Justiça, o juiz
Federal, os Tribunais Regionais Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o
Supremo Tribunal Federal.
O critério para as buscas de decisão foi a digitação do termo “GATT” no
campo pesquisa livre de jurisprudência de cada Tribunal de Justiça, Tribunal
Regional Federal, STJ e STF. Em seguida, foi realizado o destacamento das
decisões mais recentes, bem como de todas as súmulas.
§ 1º Casos no STF
O Supremo Tribunal Federal atualmente analisa apenas as questões
atinentes ao direito internacional econômico, se porventura forem ofensivas ao
texto constitucional e constituam repercussão geral, não obstante tenham sido
expedidas algumas súmulas sobre o GATT.
A primeira Súmula editada foi a 88, do STF, com o texto: “É válida a
majoração da tarifa alfandegária, resultante da Lei 3244, de 14/8/1957, que
modificou o acordo geral sobre tarifas aduaneiras e comércio (GATT), aprovado
pela Lei 313, de 30/7/1948”; subsequentemente, veio a Súmula 130, com a
seguinte redação: “A taxa de despacho aduaneiro (art. 66 da Lei 3244, de
14/8/1957) continua a ser exigível após o Decreto Legislativo 14, de 25/8/1960,
que aprovou alterações introduzidas no acordo geral sobre tarifas aduaneiras e
comércio (GATT)”.
Além das já destacadas, foi expedida também a Súmula 131, com os
seguintes dizeres: “A taxa de despacho aduaneiro (art. 66 da lei 3244, de
14/8/1957) continua a ser exigível após o Decreto Legislativo 14, de 25/8/1960,
mesmo para as mercadorias incluídas na vigente lista III do acordo geral sobre
tarifas aduaneiras e comércio (GATT)”.
136
Ainda, há a Súmula 575, por meio da qual ficou estabelecido: “À
mercadoria importada de país signatário do GATT, ou membro da ALALC,
estende-se a isenção do imposto de circulação de mercadorias concedida a
similar nacional”. Referente a essa Súmula 575, tem sido uma matéria corrente
nos Tribunais de Justiça dos Estados a que versa sobre a extensão do benefício
de isenção de ICMS concedido a produto nacional para produto importado.
§ 2º Casos no STJ
Um caso que chama a atenção, julgado no STJ, para a interpretação e
conceituação do termo “produto similar”, ocorreu em uma Ação Rescisória
proposta pelo Estado de Pernambuco em desfavor da Empresa Júlio e Manoela
Importadora e Exportadora Ltda320. Versou o caso sobre a importação do boldo
proveniente do Chile, país membro tanto do Mercosul como da OMC. O acórdão
entendeu que, em razão de a importação ser feita para uso de chá, com função
medicinal, tendo para tanto submetido, assim por processo de industrialização,
e os produtos beneficiados pela isenção do Decreto estadual n. 14.876/91, prevê
que serão isentos os alimentos, os quais devem estar in natura, o que restou
constatado que as folhas do boldo do Chile não vêm in natura, não havendo
produto similar isento no Estado de Pernambuco. O assunto também foi objeto
no STJ, através de Recurso Especial321, cujo entendimento foi o mesmo daquela
Ação Rescisória.
O acordo OMC permite que os produtos diferentes (não similares) sejam
tratados de forma diversa, assim, entende-se que, não ficando comprovada a
presença no Estado de Pernambuco, local onde é concedido o benefício da
isenção a qualquer produto similar ao Boldo, restou acertada a decisão nos
parâmetros do GATT/OMC.
O Superior Tribunal de Justiça já julgou dois Recursos repetitivos que
envolvem dispositivo ou princípios do GATT de 1994. O primeiro322 concerne à
320 TJPE. Ação Rescisória n. 0205845-3 (0000333-55.2010.8.17.0000). Relator Des. Erik de Sousa Dantas Simões. Data do Julgado: 01/04/2015. Data da Publicação 10/04/2015. 321 STJ. Recurso Especial n. 89.582/SP, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 22/08/1996, DJ 14/10/1996, p. 38946. 322 STJ. Embargos no Recurso Especial 1403532/SC, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/ Acórdão Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 14/10/2015, DJe 18/12/2015.
137
incidência do IPI em dois momentos – um quando do ingresso da mercadoria no
País e outro quando da saída do estabelecimento. Um dos pontos questionados
diz respeito a se está sendo aplicado o princípio de tratamento nacional ao
produto importado tal qual é dado ao produto nacional. Para averiguar se os
argumentos do voto vencedor não trangridem as normas do GATT de 1994, não
importam as questões internas, tais como a hipótese de serem dois fatos
geradores distintos, outrossim, a infringência ao somatório do valor dos tributos
atribuídos ao produto importado. O critério confirma o princípio da não
discriminação, uma vez que sobre o produto nacional incide o IPI na saída da
indústria e na saída da venda, assim, quando do desembaraço aduaneiro, seria
análogo ao da saída da indústria brasileira, na medida em que não seria possível
efetuar a cobrança do contra à indústria estrangeira, em face da limitação do
princípio da territorialidade. Nessa direção, foi acertado o entendimento posto
pelo STJ, que considerou o valor final atribuído ao produto como fato
determinante para dirimir o conflito.
O segundo recurso especial323 analisado como representativo de
controvérsia de Recurso repetitivo envolve questão sobre o prazo de aplicação
dos efeitos de isenção de pescado gênero, do qual o bacalhau é espécie. A
controvérsia cinge-se no fato de que o produto tido como similar no país, qual
seja, o pescado, teve a isenção do ICMS finalizada em 30/04/1999, pelo que
restou compreendido que, após essa data, para não gerar benefício superior ao
bacalhau importado, deveria ser aplicado sobre este o mesmo tributo (ICMS) a
partir de 01/05/1999. O pedido era sobre produto importado após 30/04/1999, ao
qual fora indeferida a isenção do ICMS. Assim como guardou tratamento
isonômico aos produtos importado e nacional, guardou o caso conformidade com
o GATT de 1994 a decisão de que, por ser tratar de representativo da
controvérsia, se estenderá o entendimento sobre todos os processos em trâmite
nas instâncias inferiores.
Outras decisões do STJ envolvendo temas disciplinados no acordo
GATT de 1994 prosseguem aplicando corretamente os dispositivos do acordo
OMC. Em um caso que versou acerca do questionamento de aumento de tributo
específico sobre produtos importados COFINS importação, tratando-se de
323 STJ. REsp 871.760/BA, Representativo da controvérsia, Recurso repetitivo. Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Seção, julgado em 11/03/2009, DJe 30/03/2009.
138
recurso especial324, o STJ não aplicou a cláusula da obrigação do tratamento
nacional quando da elevação em 1% do PIS/COFINS importação, ao entender
que a referida cláusula não se aplica sobre essas contribuições, frisando-se que
são compensatórias sobre os produtos produzidos no País.
As exceções da cláusula do tratamento nacional do GATT de 1994 não
contêm diferenciação de tributos quanto ao fato gerador do tributo, mas tão
somente quanto ao valor final, de modo que não configura uma transgressão do
Estado brasileiro às normas da OMC a cobrança de tributos (PIS/COFINS)
sobre os produtos importados em comparação com os nacionais, quando
diferentes outros tributos incidem sobre o produto produzido no Brasil e estes
sofrem aumento, de modo que não há que se falar em transgressão da norma
do GATT de 1994.
§ 3º Casos nos TJ e TRF
A Primeira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de
Pernambuco, em apelação cível325, que configura como apelante o Estado de
Pernambuco e apelado a empresa Brasileiro Coelho Indústria e Comércio Ltda,
foi provocada a se manifestar acerca da isenção de ICMS nas operações de
“painço” 326 importado da China e da Argentina. O Relator fez menção ao fato de
esses países serem signatários do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
(GATT). Poderia ter atualizado os termos ressaltando a condição atual de
membros da OMC, em que um de seus princípios é o da obrigação do tratamento
nacional.
A matéria fática cinge-se da aplicação do benefício previsto no Decreto
Estadual n. 14.876/91, que regulamenta o ICMS no Estado de Pernambuco, que
dispõe em seu art. 9º, V, "c" serem isentos da cobrança do ICMS os produtos:
“destinados exclusivamente ao uso na pecuária e avicultura: rações para
animais, concentrados e suplementos fabricados por indústria de ração animal,
de concentrado ou de suplemento”. O relator aponta que a isenção tributária no
324 STJ. Recurso Especial n. 1513436/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 01/12/2015, DJe 09/12/2015 325 TJPE. 1ª Câmara de Direito Público, Apelação n. 0044153-29.2007.8.17.0001, Rel. Des. Erik de Sousa Dantas Simões. Data do julgado 24/05/2016, Data da publicação: 09/06/2016. 326 Painço é uma espécie de grão utilizado como ração para pássaros e aves.
139
caso é de natureza heterônoma, uma vez que o acordo (GATT) firmado pela
União concedeu a obrigação de tratamento igualitário entre o produto nacional e
o similar importado, devendo, pois, ser isento dos tributos, independentemente
de sua compentência (federal, estadual ou municipal). O painço, apesar de não
ser produzido no Brasil, guarda similitude com o conceito de ração, concentrados
e suplementos apresentado no texto do Decreto que julgou acertadamente
quanto ao assunto e fundamentou ainda com a Súmula n. 575: do STF.
Esse entendimento da aplicação da norma é consolidado em razão da
Súmula 575, de modo que, no mesmo Tribunal, há outros processos julgados
com coerência entre o Acordo da OMC e os procedimentos a serem
desempenhados pelas instituições públicas.
Destaca-se que, no Recurso de Apelação em que são partes o Estado
de Pernambuco e o Rancho Alegre Produtos Agropecuários Ltda. contra a
decisão, estendeu-se o benefício de isenção do ICMS para alpiste importado. No
mérito, a causa se cingia ao questionamento sobre se o alpista era considerado
“produto similar” aos beneficiários, em que o acórdão invocou o texto do Decreto
Estadual n. 14.876/91, art.9º, § 3º, III, que conceituou suplemento, sendo o
alpiste incluso nesse conceito, além de ingrediente capaz de suprir a ração.
Assim, apresentou o julgado aplicação correta dos dispositivos da OMC, sem ter
sido utilizada fundamentação sobre o acordo GATT.
Houve nesse julgamento aplicação coerente conforme as explicações da
seção anterior sobre “produtos similares”, referente ao artigo III do GATT.
Importante destacar que, se porventura houver casos nos quais inexista no texto
do Decreto tal conceituação dos produtos como no caso em análise, deverá o
julgador de qualquer país membro da OMC, quando realizando preventivamente
a aplicação dos acordos da OMC, aplicar as hipóteses e interpretações de
“produtos similares” previstas nos painéis e no Órgão de Apelação a fim de
garantir o cumprimento do acordo GATT de 1994.
Ultrapassada a análise sobre a matéria do GATT de 1994, passa-se à
aplicação do acordo Antidumping pelo Poder Judiciário brasileiro, observando os
aspectos técnicos, bem como os entraves legais para o completo cumprimento
do referido acordo.
140
Capítulo 7. O CONTROLE JURISDICIONAL DO ACORDO ANTIDUMPING
O acordo antidumping, que versa sobre a implementação do artigo VI do
GATT de 1994, é corriqueiramente alvo de ações judiciais perante a Justiça
Federal brasileira em razão dos órgãos do Poder Executivo (CAMEX e DECON)
responsáveis, respectivamente, pela expedição de medidas antidumping e pela
fiscalização e consequente aplicação das medidas antidumping. O aumento das
demandas judiciais está intrinsecamente ligado ao fato de o Brasil ter sido o país
membro da Organização Mundial do Comércio que mais implementou as
medidas antidumping no triênio 2013-2015327.
Conforme apresentado no capítulo 5, a competência para apreciar e
julgar as ações cujo teor sejam os atos expedidos por Órgãos federais e versem
sobre o acordo antidumping será da Justiça Federal. Então, para realizar a
análise das decisões emanadas pelos Tribunais Regionais Federais e pelo STJ,
faz-se imperiosa a exposição inicial do conceito econômico, jurídico e legal do
dumping.
Por esse viés, apontam-se as diferenças entre os conceitos e destacam-
se no conceito legal exposto no artigo VI do acordo GATT de 1994, e no
consequente Acordo Antidumping, os requisitos exigíveis para a implementação
das medidas antidumping, uma vez que o dumping condenável pela OMC está
restrito aos casos em que gere dano à indústria doméstica.
Após a conceituação, as decisões judiciais são explicadas, nas seções
2 e 3, sobre o acordo antidumping. Posteriormente, tem-se a explanação das
decisões acertadas, de modo que são consideradas aquelas cujo teor obedeceu
à legislação pátria e ao Acordo Antidumping. Não obstante, no acerto da maioria
das decisões, foram identificados alguns julgados cuja fundamentação restou
distante do previsto no acordo antidumping, não se coadunando com o acordado
pelo Brasil no sistema multilateral do comércio, chegando em alguns dos casos,
inclusive, abster-se de agir como corte revisional do ato administrativo, em
flagrante inobservância do artigo 13 do Acordo Antidumping.
Considerar-se-á necessária a especialização das cortes domésticas na
matéria de Direito internacional econômico para que sejam aplicadas as normas
327 AZEVEDO, Roberto. Entrevista. Jornal do Comércio. Porto Alegre, 26/07/2016.
141
da OMC, levando em conta seus princípios e a força normativa do direito
internacional, entendendo a primazia e as consequências que podem advir, no
caso de sua inobservância, com demonstrado no capítulo 4.
Seção 1. Considerações sobre o acordo antidumping
A compreensão do acordo antidumping perpassa primeiramente pelo
entendimento do conceito de Dumping, nas acepções econômicas e jurídicas,
além dos requisitos legais para a aplicação de medidas sancionatórias
antidumping. Ultrapassada essa fase, debruça-se sobre a análise do Acordo
sobre a implementação do artigo VI do Acordo GATT, conhecido como Acordo
Antidumping.
§ 1º Conceito de dumping
O termo “dumping”, original do inglês descarte, era utilizado como forma
de despejar no mercado produtos com preços abaixo do custo de produção. Na
legislação brasileira não foi utilizado o termo traduzido, motivo pelo qual se faz
uso do mesmo sem itálico. A conceituação deve ser feita sob duas óticas, uma
econômica e outra jurídica, em razão de o enfoque dado por uma ser diverso da
outra. Quanto à conceituação jurídica, impede que seja posta a definição geral,
prosseguindo com a definição legal prevista no texto da OMC, que é o interesse
deste capítulo.
A. Conceito Econômico
O conceito econômico de dumping consiste em uma discriminação de
preços entre compradores em diferentes mercados nacionais328, característica
que se apresenta em todas as espécies de dumping329: dumping esporádico,
dumping persistente, dumping predatório; mais recentemente, constatam-se
328 VINER, Jacob. Dumping: a problem in international trade. Chicago: University of Chicago Press, 1923. 329 MONTUSCHI, Luisa. De la Retorica del dumping a la practica del antidumping. Analisis de un aspecto del proteccionismo moderno. Revista Económica, La Plata, v. 39, n. 1-2, p. 50, 1993.
142
outras características que geram outras espécies de dumping, tais como o
dumping social, o dumping tecnológico, o dumping ambiental, o dumping fiscal
administrativo.
O dumping esporádico se apresenta ocasionalmente, cuja origem
consiste na necessidade do produtor ou exportador estrangeiro de descartar os
excessos de produção330. Gerado por diversos fatores, como uma espécie de
“liquidação” sobre os produtos não absorvidos pelo mercado interno, o
excedente temporário pode abalar a economia ou determinada área de um país
emergente. Os danos de setores agrícolas cujo momento de venda é pontual
relacionado ao período entre a safra e a colheita, além de indústrias nacionais
que estão se firmando com tecnologias não tão avançadas, requerem a adoção
de medidas para impedir os danos decorrentes331.
Sendo duradoura a prática de oferta de preço menor na exportação do
que no mercado interno de produção, ocorre nesse caso o chamado “dumping
persistente”. Essa forma pode ser decorrente do monopólio da empresa
produtora que, ante a ausência de concorrência interna, elevaria ao máximo o
preço do seu produto. Outro fator que desencadeia são os cálculos envolvendo
a formação do preço do produto para o mercado interno, que cobre, além dos
custos marginais, os custos fixos, aplicando para o mercado exterior somente os
custos marginais, contando para tanto com incentivos governamentais para
garantir os preços elevados no mercado interno332. Em ambos os casos, não há
prejuízo para as empresas do mercado externo.
A doutrina econômica denomina de dumping predatório a forma clássica
de concorrência desleal, na qual uma empresa se utiliza da oferta no exterior do
preço menor do que o produzido em seu país de origem para afastar a
concorrência no mercado externo, com a finalidade de ganhar espaço no
mercado externo, a empresa eleva seus preços quando atinge seu objetivo.
Uma outra forma de dumping vem sendo estudada – o chamado
“dumping social” se dá com prejuízo causado aos concorrentes em razão da
elevada diferença no custo social, direitos e garantias trabalhistas no país de
330 Ibidem. 331 APPLEYARD, Dennis R.; FIELD JUNIOR, Alfred; COBB, Steven L. Economia Internacional. Tradução de André Fernandes Lima, Joaquim Carlos Racy, Marcel Guedes Leite e Márcia Flaire Pedroza. 6. ed. São Paulo: ArtMed, 2010. p. 331. 332 MONTUSCHI, Luisa. Op. cit., p. 52.
143
origem e tem ocorrido no mercado interno com a precarização (ou terceirização)
dos trabalhadores. A China foi duramente criticada por Países membros da
OMC, que alegavam que seu ingresso era inviável pela defasagem salarial e
ausência de direitos trabalhistas naquele país, o que ensejaria o dumping social.
Dumping tecnológico, segundo Alice Rocha Silva, é a espécie na qual,
diante das repentinas mudanças e aperfeiçoamento no campo tecnológico, o
avanço acontece de modo a gerar a redução do custo de produção, tornando o
preço mais baixo, culminando em uma espécie de dumping estratégico333.
O dumping pode ser denominado de dumping ecológico, conhecido
também por dumping ambiental, cuja determinação ocorre pela utilização de
material não reciclável e proveniente de fontes não renováveis. Conforme Alice
Silva, é em sua maioria praticado pelos europeus, podendo ainda se manifestar
com a transferência de uma empresa de um determinado país com exigências
severas contra poluição para outros países com legislação e fiscalização bem
menos onerosas em relação àquelas334.
O Dumping Fiscal constitui-se quando as empresas multinacionais ou
transnacionais, nas palavras de Alexandre Moura, fazem “uso de sofisticados
esquemas de planejamento fiscal internacional, conseguem se aproveitar das
oportunidades oferecidas pelos países engajados na concorrência fiscal e, com
isso, reduzir ou quase eliminar a carga fiscal incidente sobre suas operações”335,
tendo como consequência a oferta de baixos preços ou de lucro aviltante ante a
diminuição do encargo fiscal.
A compreensão do dumping na visão econômica, pelos exemplos acima,
fica sempre a marca, com base em Barral, da “discriminação de preços entre
dois mercados nacionais, entre o mercado exportador e o mercado importador.
Em outras palavras, o preço demandado por um determinado bem, pelo mesmo
produtor, difere entre dois mercados, desconsiderando-se os fatores
relacionados a transporte, tributos etc.”336.
333 SILVA, Alice Rocha. Dumping e Direito Internacional Econômico. Revista do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, Brasília, v. 2, n. 2, p. 400, jul./dez. 2005. 334 Ibidem. 335 MOURA, Alexandre C. F. Concorrência fiscal prejudicial: uma nova proposta de World Tax Organization. Revista Fórum de Direito Tributário–RFDT, Belo Horizonte, ano 12, n. 68, p. 113-158, mar./abr. 2014. 336 BARRAL, Welber. Medidas Antidumping. In: _____. (Org.). O Brasil e a OMC. 2. ed. Curitiba:
Juruá, 2004. p. 217.
144
Na definição econômica do termo dumping, inobstante tenha sido
analisado sob os diversos aspectos que ensejam a sua ocorrência, tem-se que
tais características não são relevantes para a definição jurídica do dumping.
Desse modo, a definição econômica não é necessariamente a mesma para
efeitos jurídicos337, cuja preocupação debruça-se sob dois aspectos, quais
sejam, a sua consequência condenável ou não condenável. Essa consequência
deve ter ainda outro fator preponderante que se trava na verificação da
ocorrência de danos para a indústria doméstica.
Assim, explanada a parte geral e econômica, importante para
fundamentar e caracterizar o instituto do dumping, passa-se à análise do viés
jurídico do conceito do dumping.
B. Conceito Jurídico do dumping
A formação de um conceito jurídico somente é possível após a
constatação de ocorrência de dumping mediante uma investigação que parte da
preexistência de elementos econômicos338. O dumping, no conceito jurídico, é
em linhas gerais a oferta de produtos em um outro país a preço inferior ao “valor
normal”, sendo condenável “se causa ou ameaça causar prejuízo material a uma
indústria estabelecida no território de uma Parte Contratante ou retardar,
sensivelmente o estabelecimento de uma indústria nacional”339.
A definição de “valor normal” passa a ser determinada com a
consideração de duas situações predefinidas, mas, especificamente no caso de
dumping, vem a ser o valor do preço praticado no mercado exterior abaixo do
valor ofertado no seu país de origem, sem considerar os gastos com tributos e
transportes, ou, ainda, uma segunda hipótese diz respeito ao preço ofertado no
mercado externo inferior ao custo de produção340.
337 BAPTISTA, Luiz Olavo. Dumping e Antidumping no Brasil. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto (Coord.). OMC e o comércio internacional. São Paulo: Aduaneiras, 2002. p. 30. 338 SILVA, Alice Rocha. Dumping e Direito Internacional Econômico. Revista do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, Brasília, v. 2, n. 2, p. 400, jul./dez. 2005. 339 WTO. GATT, art. VI. 340 DI SENA JÚNIOR, Roberto. O dumping e as práticas desleais de comércio exterior. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 44, ago. 2000. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/768>. Acesso em: 1 set. 2016.
145
O conceito jurídico do dumping diferencia-se de sua proposição
econômica, uma vez que leva em conta não apenas a discriminação de preços
entre mercados, sendo que na seara do direito são considerados relevantes
outros aspectos, como o valor “normal” da mercadoria, passado despercebido
na proposição conceitual econômica, o que de fato foi ignorado em sua
formulação341.
O estudo sobre o conceito econômico do dumping atribuiu, segundo a
finalidade da prática do dumping, uma divisão e especificação dos tipos de
dumping, conforme fossem sendo o seu modo de diminuir o custo de produção
e consequente oferta predatória de preços. Contudo, no patamar jurídico,
diferentemente do que ocorreu com o conceito econômico, não foi inserida em
sua conceituação a sua finalidade, critério subjetivo, de modo que resultou em
uma definição objetiva342. O conceito jurídico de “dumping”, portanto, coincide
com o disposto no artigo VI do GATT de 1994.
De um modo geral, o conceito jurídico de dumping não se interessa em
constatar apenas se houve discriminação entre os preços do mercado de origem
e de exportação343, mas, essencialmente, se ocorreu, nas palavras de Maria
Carolina Mendonça Barros: “a) venda estipulando o preço de exportação inferior
a seu valor normal; b) se desta prática decorreu dano ou ameaça de dano à
indústria nacional, ou ainda, atraso na implantação da indústria nacional; e por
fim, para alguns autores, acrescente-se um último pressuposto; c) juízo de
conveniência e oportunidade frente ao caso específico”344.
C. Definição Legal prevista no Acordo da OMC
A definição legal de dumping está prevista no artigo VI do Acordo
GATT/1994 e no anexo denominado Acordo sobre a implementação do Artigo VI
341 TOMAZZETE, Marlon. O conceito do dumping para a regulamentação multilateral do comércio internacional. Revista PRISMAS: Direito, Políticas Públicas e Mundialização, Brasília, v. 4, n. 1, p. 194-214, jan./jul. 2007. 342 Ibidem. 343 SANTORO, Valéria Figueiró. Dumping a partir de uma abordagem dogmática e aplicada no âmbito da OMC: Estudo de caso. Dissertação. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. p. 25. 344 BARROS, Maria Carolina de Mendonça. Antidumping e protecionismo. São Paulo:
Aduaneiras, 2004. p. 37.
146
do GATT de 1994345, cujo destaque está para a condição em que se aplicam as
medidas antidumping, além da fundamentação para considerar condenável
somente o dumping que cause dano material à indústria do país importador ou
prejudique a instalação de indústrias no país importador.
Assim, tem-se no artigo VI que nem todo dumping será alvo de medidas
antidumping impostas pelo país importador. Caso exemplar é o envio de
mercadorias a preço abaixo do normal para que a indústria esteja a apresentar
algum produto ao mercado, de maneira que não venha a causar prejuízo à
indústria do país importador ou a instalação industrial neste.
Quando da aplicação de medidas antidumping, uma das discussões
recorrentes reside no caráter discricionário do país investigador, posto que cada
país importador interpreta particularmente o texto do acordo antidumping, o que
enseja o protecionismo346.
§ 2º Legislação brasileira sobre medidas antidumping
O Acordo Relativo à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre
Tarifas Aduaneiras e Comércio - GATT/1994 (Acordo Antidumping) foi aprovado
pelo Decreto Legislativo n. 30, de 15 de dezembro de 1994, e promulgado pelo
Decreto no 1.355, de 30 de dezembro de 1994, e na Lei no 9.019, de 30 de
março de 1995, tendo sido regulamentadas as medidas Antidumping pelo
Decreto n. 1.602/1995, tendo sido posteriormente revogadas pelo Decreto n.
8.058, de 26 de julho de 2013.
O Decreto 8.058/2013 não apenas substitui o Decreto 1.602/1995, que
vigorava desde a criação da OMC, necessitando, portanto, de atualização,
modernização e adequação às mudanças ocorridas no cenário internacional,
bem como no acréscimo da tecnologia e pessoal humano capazes de inovar e
aperfeiçoar o procedimento antidumping.
345 WTO. Anexo 1-A do Acordo constitutivo da OMC. Acordo Antidumping. Disponível em: <https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/19-adp.pdf>. Acesso em: 08 set. 2016. 346 MARQUES, Maria de Fátima Rodrigues. A OMC e as Medidas Antidumping no Brasil. Revista eletrônica do Curso de Direito das Faculdades OPET, Curitiba, ano IV, n. 10, p. 175, jun./dez.
2013.
147
Assim, de forma inovadora, o Decreto n. 8.058/2013, em relação ao
Decreto n. 1.602/1995, impõe ao procedimento de aplicação de medidas
antidumping maior transparência e, além de atender um reclamo do setor privado
nacional e internacional, prevê diminuição da burocracia, com consequências
positivas no custo e tempo previsto nas investigações.
Imperioso avanço tecnológico e acréscimo de pessoal tornaram possível
editar Decreto, cujas consequências positivas foram a redução do prazo de
investigação antidumping e a redução do prazo médio para determinações
preliminares, condição precípua para a aplicação de direitos provisórios,
mormente ainda perdure a fase de investigação.
Portanto, a duração média do prazo de investigação foi de 15 meses
para até 10 meses. Há de se considerar que nos países que mais aplicam as
medidas antidumping tal prazo médio é de 12 a 13 meses. Avançou ainda com
a estipulação do prazo médio para as determinações preliminares, reduzindo-as
de 240 para 120 dias.
Tal iniciativa responde a uma das principais demandas do setor industrial
brasileiro na área de defesa comercial, conforme expõe Tatiana Lacerda
Prazeres: “investigações demoradas e a ausência de proteção durante a
investigação, quando cabível, podem levar, em várias situações, a danos
irreversíveis para empresas brasileiras sujeitas ao dumping”347.
Sobre a inexigibilidade da audiência final com as partes, até então era
obrigatória a presença das partes, que tinham que se deslocar para as
audiências, em que muitas vezes não havia necessidade ante os documentos
postos. Deixava ainda a possibilidade de as partes solicitarem, caso considerem
necessária, a realização de audiências.
A legislação brasileira, ao versar sobre os temas referentes ao comércio
internacional, dentre eles o dumping, deve observar sua consonância com o
texto dos acordos da OMC, posto que serão as normas minuciosamente
analisadas pelo Órgão de Exame Políticas Comerciais da OMC, na medida em
que, como visto no capítulo 2, periodicamente, a OMC, através desse seu Órgão,
revisa a legislação referente ao comércio exterior, estando na 6ª revisão ocorrida
347 PRAZERES, Tatiana Lacerda. A modernização da defesa comercial brasileira. Valor Econômico. 2013. Disponível em: <http://www.valor.com.br/opiniao/3219982/modernizacao-da-
defesa-comercial-brasileira>. Acesso em: 20 set. 2016.
148
no final de junho de 2013, no Brasil, antes da edição do Decreto n. 8058/2013.
Contudo, os encarregados pelo colhimento das informações receberam da
equipe técnica do governo brasileiro previamente o teor do referido Decreto,
reconhecendo, desse modo, o esforço do governo brasileiro em propiciar
qualidade técnica e celeridade nas investigações348.
O 6º relatório do Órgão revisor de políticas comerciais da OMC ainda
destacou, no tocante ao combate brasileiro às práticas desleais e aos efeitos de
distorção do comércio durante o período de 2008 a 2013 analisado, em que os
relatores observaram que o país recorreu a medidas intervencionistas de
comércio, tais como direitos antidumping, em conformidade com as regras da
OMC349.
As normas emandas pelos Órgãos administrativos do Poder Executivo
(CAMEX e SECEX) também vão se somar ao rol de normas a serem requeridas
para a compreensão e devida aplicação das medidas antidumping. Inclusive, no
último relatório do Órgão de Revisão de Política Comercial, foi motivo de
destaque a portaria da SECEX n. 46/2011350. As demandas judiciais que
incorrem em razão das investigações feitas pelo DECON resultam de decisões
tomadas pela SECEX ou pela CAMEX, em cujas atribuições encontra-se a
determinação da aplicação das medidas antidumping.
Os procedimentos administrativos instaurados pelos órgãos brasileiros
que realizam a defesa comercial devem seguir, além da legislação brasileira, as
normas previstas no acordo da OMC, sob pena de realizarem um protecionismo
indevido, pelas vias dos direitos antidumping.
O Poder Judiciário deve ser mais um agente colaborador para o
cumprimento das obrigações assumidas pelo Estado brasileiro perante os
organismos internacionais, de modo que, quando provocado a manifestar-se
348 WTO. Trade Policy Review Body. Relatório: WT/TPR/G/283/Rev. 1. 349WTO. Relatório WT/TPR/G/283/Rev. 1: “4.25. Por lo que respecta a la lucha contra las prácticas desleales y con efectos de distorsión del comercio durante el período examinado, el Brasil recurrió a medidas comerciales correctivas, como los derechos antidumping, de conformidad con las normas pertinentes de la OMC”. 350 WTO. Relatório WT/TPR/G/283/Rev. 1 :4.26. “Para adaptar su marco jurídico a la utilización de esos instrumentos, el Brasil promulgó en 2011 una nueva normativa (Portaria SECEX 46/2011) destinada a aclarar las normas vigentes y a simplificar y acelerar las investigaciones antidumping. En 2012, se promulgó una nueva norma que regulaba la representación de las partes interesadas durante las investigaciones”.
149
sobre procedimentos investigatórios, deve aplicar não apenas a legislação
brasileira, mas também os acordos da OMC.
Seção 2. Decisões acertadas sobre o Dumping
A aplicação correta do direito internacional, em especial, das normas
contidas no Acordo sobre implementação do artigo VI do Acordo GATT de 1994,
foi percebida em sua maioria nas ações que versam sobre medidas antidumping,
não sendo ainda a totalidade, como será visto na seção seguinte.
Corteja de modo exemplificativo, dentre os diversos julgados, o acórdão
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região351, que negou provimento às
apelações interpostas contra a sentença do Juiz Federal da 4ª Vara Federal de
Londrina/PR, que julgou parcialmente procedente a demanda.
O caso, em perfunctório histórico factual, cinge-se à ação proposta por
empresas de produtos eletrônicos em desfavor da União, cujo pleito objetivava-
se ao reconhecimento da inexigibilidade dos direitos antidumping pagos quando
da importação de alto-falantes oriundos da China.
O Juiz Federal Gilson Luiz Inácio, da 4ª Vara Federal, pronunciou, na
parte final do dispositivo sentencial, julgada parcialmente a demanda para
“reconhecer o direito das autoras de não se sujeitarem à incidência dos direitos
antidumping impostos pelo art. 1º da Resolução CAMEX 66, de 11 de dezembro
de 2007, no que se refere aos alto-falantes montados nos seus próprios
receptáculos (NCM 8518.21.00) descritos nas declarações de importação de ev.
1 (OUT25/OUT68)”.
As questões recursais alegadas pelos apelantes autores cingiam-se ao
valor da restituição, e a União alegou que o produto (alto-falantes) ora em
comento não fora excluído da cobrança de direitos antidumping.
Em que pese a questão meritória cingir-se à aplicação de resolução da
CAMEX, n. 66/2007, é certo que a aplicação das medidas antidumping é
autorizada pelo Acordo antidumping, desde que o produto seja precedido de
investigação e, como apontou a resolução, o bem importado pelos autores fora
351 TRF 4 5019975-29.2014.404.7001, Segunda Turma, Relator Rômulo Pizzolatti, juntado aos autos em 14/09/2016
150
excluído expressamente no texto da referida resolução352, por não apresentar os
requisitos necessários de ameaça ou dano à indústria nacional. Acertada, assim,
a decisão do Juiz a quo e a manutenção desta pelo TRF da 4ª Região.
No mesmo sentido, apresenta-se acórdão proferido pelo Tribunal
Regional Federal da 3ª Região, cujas partes figuram como apelante a União e
apelada a empresa do ramo de calçados353.
Nessa questão, cinge-se em torno da aplicação de medidas antidumping
pela União, baseando-se na Resolução CAMEX n. 14/2010, que permite a
aplicação de direitos antidumping sobre calçados importados da China. Contudo,
na mesma Resolução, constam exceções, dentre elas, o inciso IV, do artigo 1º,
que excetua calçados destinados a práticas esportivas, possuindo ou prontos a
receber grampos, no que se enquadram as chuteiras com travas comprovadas
como sendo a mercadoria importada pela parte autora.
A Juíza a quo da 4ª Vara Federal de Santos, ao sentenciar, aplicou a
exceção prevista na Resolução n. 14/2010, da CAMEX, e afastou a aplicação
dos direitos antidumping. O TRF da 4ª manteve a sentença à sua integralidade.
Tal qual a decisão anterior, o mérito da lide firma-se em torno de
Resolução da CAMEX, o que ocorre em razão de o processo investigativo de
dumping finalizar com a Resolução detalhando todos os bens que preenchem os
requisitos para aplicação dos direitos antidumping. Então, quando consta alguma
exceção na Resolução, é pelo fato de não prejudicar a indústria doméstica ou a
implementação dela no país, razões determinantes para a condenação de
dumping.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao apreciar a apelação
cível354 promovida por uma importadora em desfavor de sentença proferida pelo
Juiz Federal da Subseção do Distrito Federal, agiu de modo coerente com o
papel de revisor proposto no artigo 13, do acordo antidumping, a órgão autônomo
diverso da autoridade aplicadora da medida antidumping.
352 CAMEX, Resolução n. 66/2007, Art. 2º Ficam excluídos os alto-falantes para telefonia, para câmeras fotográficas vídeo, para notebooks, para uso em equipamentos de segurança (normas EVAC BS 5839-8, IEC 60849 ou NFPA) e aqueles destinados a aparelhos de áudio e vídeo, que não sejam de uso em veículos automóveis, tratores e outros veículos terrestres. 353 TRF 3ª Região. Sexta Turma, AMS - Apelação Cível - 344826 - 0007277-49.2012.4.03.6104, Rel. Juíza convocada Giselle França, julgado em 19/05/2016, e-djf3 judicial 1 data:01/06/2016 354 TRF 1ª Região. AC 0034374-13.2010.4.01.3400 / DF, Rel. Juiz Federal Rafael Paulo Soares Pinto (CONV.), Sétima Turma, e-DJF1 p.583 de 11/07/2014.
151
Os fatos da querela restringem-se à aplicação do valor a ser aplicado
referente aos direitos antidumping sobre a importação de pneus originários da
China. Em investigação antidumping, o DECOM aplicou para algumas empresas
o valor de direito antidumping na quantia de US$1,12/Kg, sendo que, para as
apelantes, por critérios administrativos (não ter respondido a questionário
enviado pelo DECOM), foi determinado o pagamento de medida antidumping no
valor de US$ 2,59/Kg. A parte apelante pleiteou a aplicação dos princípios
constitucionais da igualdade, proporcionalidade e da livre concorrência, de modo
que fosse determinada a modificação do valor para que a alíquota fosse
analisada em cada operação, e o cálculo fosse a diferença entre o valor normal
do similar nacional, correspondente a US$ 5,00/Kg, e o preço de exportação do
produto estrangeiro, de acordo com parecer n. 9, de 25 de maio de 2009, do
DECOM.
O Magistrado a quo, atuando de modo contrário ao entendimento do
acordo antidumping e do Decreto 1.602/1995, que prevê exatamente no seu
artigo 9º a impossibilidade de cobrança do direito antidumping como medida
punitiva, ela é uma medida de ajuste de valor do preço da mercadoria abaixo do
normal para valor de exportação acrescido dos encargos inerentes (frete, seguro
etc.).
Inova na jurisprudência, sem realizar um ativismo judicial prejudicial ou
imiscuindo-se em searas que não sejam de sua competência, a Sétima Turma
do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, cujo acórdão corrige a retração
do magistrado de primeiro grau, que se absteve a conceder o direito de alteração
do valor da alíquota antidumping aplicada pela SECEX, em razão de esta infringir
princípios constitucionais, norma interna e o acordo antidumping.
Não obstante, a atuação coerente com o direito interno e o direito
internacional de tais decisões observará na próxima seção que houve casos nos
quais o Poder Judiciário se absteve de exercer a análise do mérito da
investigação antidumping sob a alegação de não poder se substituir a SECEX.
Seção 3. Decisões não coerentes com o Acordo Antidumping - AAD
A Justiça Federal brasileira nem sempre exerceu o seu papel de
aplicação do acordo antidumping de modo coerente com o ordenamento jurídico,
152
considerando nesse momento não apenas as normas de direito interno, mas
também as normas de direito internacional. Rememore-se que quando se está a
tratar de aplicação das normas da OMC, estas já foram devidamente
internalizadas pelo processo formal, tendo válida, nos termos do STF, a sua
aplicação com base no Decreto n. 1.355/94.
A incoerência nas decisões, por diversas vezes, não observou a correta
aplicação da terminologia, inclusive não foi dotada de rigor técnico nos conceitos
jurídicos e econômicos a que se referiam os institutos jurídicos, atinente à
matéria do direito internacional econômico, especificamente quando se tratava
de direitos antidumping.
Houve, ainda, decisões que, seguindo a doutrina nacional a respeito do
controle jurisdicional dos atos do Poder Executivo, deixavam de analisar as
matérias referentes ao acordo antidumping, alegando que os órgãos executivos
eram mais bem dotados de competência técnica, o que impedia o magistrado de
agir, transgredindo o artigo 13 do Acordo antidumping.
§ 1º Falta de tecnicidade
A pesquisa debruçada sobre as decisões dos Tribunais Regionais
Federais não foi toda positiva, conforme seção anterior. No entendimento de
Cynthia Kramer, demonstrou “falta de conhecimento técnico”355 em parte das
decisões analisadas. Percebe-se que a conceituação de institutos referentes ao
dumping é apresentada equivocadamente, em descompasso com a doutrina e
até mesmo com as normas internas concernentes ao dumping.
As constatações realizadas por Cynthia Kramer foram nos Tribunais
Regionais Federais da 1ª e 2ª Região. Em um dos casos versando sobre insulina,
apresentou os seguintes dizeres: “Não demonstrados de plano os fundamentos
que revelam o descabimento da Resolução impugnada, quer quanto à existência
de dumping, quer quanto à inadequação das sanções aplicadas, não merece ser
desprestigiada a conclusão administrativa tomada após procedimento
investigatório prévio, que apurou a prática efetiva de preço predatório pela
agravada e impôs medidas corretivas, porquanto insuficientes os elementos
355 KRAMER, Cynthia, Op. Cit. p. 124.
153
apresentados para afastar a presunção de legalidade e legitimidade do ato
administrativo”356.
Infere-se da decisão que o descabimento da Resolução seria apropriado
se comprovada a inexistência de dumping ou sendo inadequadas as sanções
aplicadas. Ficaram ausentes importantes requisitos para configurar a aplicação
de direitos antidumping, tais como o dano e o nexo de causalidade. Kramer
aponta “despreparo do poder judiciário para analisar questões específicas do
comércio internacional”357.
As decisões analisadas por Kramer358 antecedem a expedição do
Decreto n. 8.058, de 26 de julho de 2013. Em uma análise sobre as
jurisprudências posteriores a essa data, constatou-se considerável melhora na
aplicação do Acordo Antidumping, posto que no referido Decreto detalha-se
consubstancialmente o texto do Acordo.
Uma decisão questionável, pelo prisma do direito internacional, com
eventual transgressão ao Acordo Antidumping, está na Apelação cível359
proposta pela empresa PVTEC Indústria e Comércio de Polímeros Ltda. em
desfavor de sentença favorável à União Federal, proferida pela 1ª Vara Federal
de Santos/SP.
O caso versa sobre a importação de PVC, tendo sido realizada
investigação antidumping, chegou-se à conclusão de que seria isenta a empresa
exportadora sul-coreana Hanwha Chemical Corporation, cuja margem de
dumping foi considerada minimis.
A querela reside por terem sido exportadas as mercadorias pela
empresa Hanwha Chemical Corporation, estando isenta de sobretaxa. Contudo,
na declaração de importação os exportadores declarados são Jebsen & Jebsen,
da Alemanha, e Green Corporation Ltda., de Hong Kong, constando a empresa
Hanwha Chemical Corporation como fabricante/produtor.
356 TRF1ª. Agravo n. 200101000201567. Rel. Juíza Mônica J. Sifuentes(Conv). DJ Data 09/01/2002. 357 Kramer, Cynthia, Op. Cit. p. 125. 358 TRF1. Apelação Cível 263669, Proc. N. 2001.02.01.015570-3, Órgão Julgador Sétima Turma Especializada. Data da Decisão 13/05/2009. E TRF2. Agravo nº200302010067616, Relator: Desembargador Federal Benedito Gonçalves, DJU data 11/11/2004. 359 TRF 3ª Região, Sexta Turma, AMS - Apelação Cível - 332108 - 0008052-35.2010.4.03.6104, Rel. Desembargadora Federal Consuelo Yoshida, julgado em 16/06/2016, e-DJF3 Judicial 1 Data:28/06/2016.
154
Os desembargadores no acórdão fundamentaram-se no artigo 111, do
Código Tributário Nacional, segundo o qual a isenção deve ser analisada
restritivamente, não cabendo ao judiciário estendê-la a outros integrantes da
trading comercial, de modo que negaram provimento à apelação.
Não obstante a regra de direito interno, se fosse aplicado o constante
no parágrafo 8, do artigo 5, do Acordo Antidumping, que aponta: “Deverá ocorrer
imediato encerramento da investigação naqueles casos em que as autoridades
determinem que a em de dumping é de minimis [...]”, deveria ser verificado se o
valor da importação é de minimis ou não, e assim aplicar a isenção com base no
Acordo Antidumping, e não o estendendo com base no artigo 111, do Código
Tributário Nacional. Contudo, não foi mencionado o referido dispositivo do
acordo da OMC. É preocupante a não aplicação do direito internacional, em face
das consequências que podem ser advindas por meio das retaliações no seio da
OMC. Frisa-se, ainda, que sequer houve uma argumentação sobre os motivos
que levaram ao afastamento da aplicação do dispositivo da OMC, que consta
também na norma interna no Decreto n. 8.058/2013.
§ 2º Não implementação da revisão judicial prevista no artigo 13
No Acordo Antidumping da OMC (ou AAD), há uma expressa
determinação para a garantia de revisão de julgamento, que é a observância do
artigo 13 do Acordo Antidumping da OMC, que impõe a todos os membros que
têm legislação específica sobre esse assunto a manutenção de tribunais ou
procedimentos judiciais, arbitrais ou administrativos, a fim de revisar as medidas
adotadas no combate àquela prática oriunda do executivo. É corroborado pelo
artigo 23 do Acordo sobre Medidas Compensatórias, que prevê a mesma
obrigatoriedade quanto a manutenção de Tribunais e procedimentos para
revisão. Segundo o aludido Acordo, esses tribunais, ou os procedimentos
mencionados, deverão ser independentes das autoridades responsáveis pelas
determinações ou revisões aludidas.
No que tange ao cumprimento do citado Artigo 13 (Acordo Antidumping),
ainda não há no Brasil a plena aplicação do Acordo Antidumping, já que não
existem tribunais independentes das autoridades responsáveis pelas
determinações ou revisões. As decisões antidumping emanadas pelos órgãos
155
federais têm sido submetidas ao judiciário apenas nos casos de abuso, sendo-
lhe vedada a análise material acerca do fato, fruto do julgamento exclusivo da
SECEX e da CAMEX.
A fim de dedicar-se ao aprofundamento da análise das questões
propostas no Acordo Antidumping, Cynthia Kramer explica que somente um juízo
especializado em direito internacional econômico estaria preparado para revisar
nos moldes exigidos pelo artigo 13 do Acordo antidumping, o que se deve em
razão de a especificidade da matéria envolver conhecimentos aprofundados de
direito internacional, direito econômico e direito comercial internacional360.
Quando provocado, o Poder Judiciário tem seguido o ordenamento
jurídico brasileiro acerca da revisão (ou controle) judicial dos atos
administrativos, que, em se tratando dos atos administrativos discricionários,
será respeitado o mérito e analisadas as razões de conveniência e oportunidade.
Nesse contexto, o Judiciário tem se declarado incompetente para efetuar a
revisão e substituir a análise técnica desses órgãos. Nesse sentido, a 2ª Turma
do STJ, no Recurso Especial n. 1.105.993, de relatoria da Ministra Eliana
Calmon, assim pronunciou-se: “O Poder Judiciário não pode substituir-se à
SECEX, órgão administrativo especializado nas investigações relativas a
dumping, cabendo-lhe apenas o controle da aplicação das normas
procedimentais estabelecidas”361.
O STJ tem seguido o ordenamento jurídico brasileiro que permite o
controle jurisdicional do ato administrativo discricionário nas hipóteses de ato
abusivo, respeitando a vontade do administrador. O judiciário brasileiro, com
base na tripartição dos poderes362, independentes e harmônicos entre si, não
pode interferir na conveniência e oportunidade do ato administrativo, o que resta
limitada a revisão judicial à forma, ou ao excesso de poder discricionário363.
Posição consolidada na jurisprudência é a possibilidade da sujeição do ato
administrativo discricionário ao controle jurisdicional de sua juridicidade. É
mantida a competência do executivo no que tange ao mérito administrativo –
pertinente às razões de conveniência e oportunidade – a verificação judicial dos
360 KRAMER, Cynthia. Op cit., p. 121. 361 STJ/DJe de 18/02/2010. 362 CF, 1988, art. 2º. 363 MEIRELLES, Helly Lopes. Curso de Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 168.
156
aspectos de legalidade do ato praticado, para conter eventuais abusos ou
excessos.
O respeito ao mérito é uma consolidação do ordenamento jurídico
brasileiro, diferentemente do modelo americano judicial review, bem mais
abrangente, que permite a revisão inclusive do mérito do ato administrativo364. O
juiz brasileiro atuará nos casos de desvio de poder ou de desvio de finalidade,
previstos na Lei n. 4.717/65. Em alegação à impossibilidade de examinar mérito
de ato administrativo, o Poder Judiciário se exime de adentrar no mérito, em
razão da separação de poderes e competências de cada uma delas, contudo,
poderia ser feita uma análise técnica sobre a legalidade do ato praticado pela
administração, a fim de averiguar se as regras administrativas examinadas não
tornaram menos competitivo o setor, servindo para eliminar concorrência,
ampliar burocracia, que recorrentemente tem sido alvo de grandes críticas dos
países desenvolvidos e de relatório de política de revisão365.
A. Casos jurisprudenciais referentes a não aplicação do Artigo 13 do Acordo
Antidumping
Em algumas ações de apelações, agravos, recursos especiais e
mandados de segurança, é percebida a não aplicação do artigo 13 do acordo
antidumping. Destaque-se a decisão do STJ no Agravo Regimento no Recurso
Especial n. 1479614/PR, em que fora questionada a modificação nas regras para
importação de coco ralado, a pretensão deduzida de inaplicação de portaria da
Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior (SECEX/MDIC) foi julgado juridicamente impossível o pedido
porque, segundo o STJ, colimava, em última análise, o exame do mérito
administrativo de ato que, a seu turno, foi considerado como decisão de política
364 LEAL, Vitor Nunes. Problemas de Direito Público e outros problemas. Brasília: Série
Arquivos do Ministério da Justiça, 1997. p. 291. 365 OMC/WTO, report, 2013. Disponível em: <www.wto.org.br>. Acesso em: 20 set. 2016.
157
governamental, o que encontrava óbice no normativo constitucional da
separação dos poderes estatais366.
Tal situação, de não interferência na discricionariedade do executivo, é
uma máxima do ordenamento jurídico brasileiro que poderá ser vista em várias
decisões, por exemplo, o Mandado de Segurança n. 14.670/DF, da relatoria do
Ministro Humberto Martins, no qual a empresa “trata-se, de ato discricionário da
autoridade coatora, razão pela qual o administrador, diante do caso concreto,
deve escolher a providência que melhor satisfaça a finalidade legal”367.
Leonor Cordovil fundamenta que a medida antidumping somente deve
ser utilizada observando o interesse público, e o dano à indústria não deve se
limitar às indústrias do setor, mas a toda uma cadeia de fornecedores que estão
envolvidos na produção daquele produto. Desse modo, pode ser ampliado ou
restringido às medidas antidumping quando levado em conta o interesse
público368.
A jurisprudência pesquisada analisa apenas aspectos legais e formais,
deixando de lado os fundamentos técnicos que ensejaram a aplicação das
medidas. Dessa forma, os casos citados apontam para um distanciamento da
aplicação no caso de decisões dos TRF; em sede de STJ, foi percebida uma
considerável evolução, como exemplo, cite-se o caso do MS 1460-DF.
Em questão análoga ao dumping, tem-se a aplicação de salvaguarda e,
como exemplo da atuação judicial na revisão, a Associação brasileira de
produtos e equipamentos ópticos (ABIÓTICA) impetrou Mandado de Segurança
contra ato do Presidente do Conselho de Ministros da CAMEX questionando a
legitimidade da autoridade coatora em expedir o ato e ainda alegando a
conclusão contida na Resolução CAMEX 44/2007, complementada pela
Resolução CAMEX 61/2007, que “decidiu pela aplicação de direito antidumping
definitivo nas importações brasileiras”.
O Ministro Relator decidiu pela Denegação da Segurança, pois, ao
analisar os esclarecimentos prestados pela autoridade coatora, convenceu-se
366 AgRg no REsp 1479614/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 03/03/2015, DJe 10/03/2015. 367 Tal posição foi repetida, ainda no STJ, no Mandado de Segurança 14691/DF, Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 09/12/2009, DJe 18/12/2009. 368 CORDOVIL, Leonor A. G. O Interesse Público no antidumping. Tese de doutorado.
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009. p. 100.
158
de que houve a prática de dumping. Contudo, ele transcreve apenas a questão
do dano sofrido pela indústria nacional e a inferência de que o dano decorreu do
dumping. Não de fato no voto do Ministro relator a apreciação sobre o estudo do
preço do produto, pois, caso o preço da mercadoria que ingressa no Brasil seja
o mesmo praticado no mercado interno do país que exporta, o Estado brasileiro
como membro da OMC deve permitir o ingresso em razão da livre concorrência.
Uma tendência das decisões judiciais é a proteção do mercado interno,
seja pela ausência de conhecimento do direito internacional, seja pelo
sentimento nacionalista.
No MS n. 14691, impetrado pela empresa Puma Sports Ltda. contra ato
do Presidente da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX), pugnou pela
ilegalidade da Resolução n. 48/2009, que lhe aplicou o direito antidumping
provisório, tendo alegado que não houve justificativa para a não concessão de
substituição por oferta de contracautela. A Ministra Relatora que concedeu
medida liminar ao final do processo cassou a Liminar e reverteu todo o valor
depositado cautelarmente em favor da União. Na fundamentação de mérito, a
Ministra abstém-se de manifestação, alegando ser “ato técnico” e “claramente
típico ato de cunho discricionário”, e conclui concordando com todas as
alegações da autoridade coatora, sem uma análise crítica e aprofundada do
mérito.
Essas decisões equivocadas poderão levar o Estado brasileiro ao Órgão
de solução de Controvérsias da OMC e a ser responsabilizado, devendo,
portanto, tais órgãos do Poder Judiciário ser dotados de melhor qualificação
técnica. Ainda, conforme citado por Cynthia Kramer, deveria haver a criação de
varas especializadas.
159
8. CONCLUSÃO
A análise das decisões leva a concluir que o Poder Judiciário brasileiro
vem avançando na aplicação do direito internacional econômico, obviamente
considerando que têm sido aplicadas as normas de direito interno, tais como o
Decreto n. 1.355/94, que incorpora ao ordenamento jurídico brasileiro os acordos
fundantes da OMC, e o Decreto n. 8.058/2013, que incrementa o processo
investigativo e ressalta diversos dispositivos do já incorporado acordo
antidumping.
É percebida considerável melhora na utilização da terminologia técnica
e nos conceitos dos institutos do direito internacional utilizados nas decisões
analisadas no período de 2013-2016. Antes desse período, foram percebidas
diversas confusões entre termos técnicos e a conceituação de aplicação de
dumping. Ainda, é necessário um aperfeiçoamento do Poder Judiciário de modo
que venha a ser compreendido pelos magistrados, independentemente de sua
instância, a responsabilidade que lhe incorre diante de transgressão à regra
firmada em sede da Organização Mundial do Comércio, e não apenas pelos
princípios contidos na Convenção de Viena, de 1969 e de 1986, do pacta sunt
servanda e da boa-fé, mas principalmente pelos instrumentos coercitivos de que
estão dotados a OMC.
A OMC, por meio do seu Órgão de Solução de Controvérsia, poderá ser
provocada por qualquer um dos países membros que se sinta prejudicado pela
ação de qualquer outro membro, cujo ato tenha afrontado a um de seus
comandos normativos, podendo assim ser instaurado um Painel que, ao final,
serão expedidas considerações a serem tomadas pelo estado transgressor.
No caso do Brasil, existiram várias ocasiões em que o país foi
demandante, e, em número bem menor, situações em que fora demandado no
OSC. Os casos em que os países oferecem subsídios aos produtores internos,
cuja produção chega a prejudicar os demais países membros nas importações,
são um dos principais objetos das causas de demandas no OSC. A prática de
dumping pelas empresas cujos efeitos tenham nexo de causalidade com danos
na indústria doméstica também é passível de demanda na OMC. No caso sobre
incentivos para produtores de algodão nos Estados Unidos da América, para
finalizar a disputa após a recomendação do painel, foi feito um acordo entre o
160
EUA e o Brasil. O caso envolvendo subsídios para a produção de aeronaves
(Brasil – Canadá) que após condenação inicial do Brasil, posterior condenação
do Canadá, e finalizou-se com acordo entre os países. O caso dos pneumáticos,
em que o Estado brasileiro proibiu a importação de pneus usados ou
recauchutados da Europa, gerou demanda perante o OSC, tendo sido emitido
um relatório do painel indicando diversas recomendações ao Brasil, que alterou
o seu posicionamento jurídico para se adequar às normas da OMC.
Os exemplos apresentados acima mostram a coercitividade e a
efetividade do cumprimento das decisões do OSC/OMC, razão pela qual o Poder
Judiciário brasileiro, em todas as suas esferas, consiste em mais um órgão capaz
de, no exercício de suas atribuições constitucionais, desempenhar um controle
preventivo de aplicação das normas da OMC, sob pena de, não o exercendo,
possam os países prejudicados demandarem contra o Estado Brasileiro e este
vir a sofrer as retaliações que incidem sobre as transações comerciais
internacionais firmadas pelo membro demandante com o Brasil.
Os órgãos de fiscalização e atuação das medidas de subsídios e
antidumping, DECON e CAMEX, por vezes ultrapassam suas atribuições no afã
de proteção à indústria doméstica, provocando, em alguns casos, danos ao
ingresso de produtos advindos de países membros da OMC. Nesse sentido, foi
observada elevada demanda judicial com essa temática, e a conclusão é que
devem ser levadas em consideração as normas do direito internacional
econômico, aqui especificamente os acordos que constituem a OMC, para que
não resulte em consequências danosas para o País, que poderá responder com
as retaliações permitidas pelo OSC/OMC.
No tocante à aplicação da revisão judicial proposta pelo artigo 13 do
acordo antidumping, tem o Poder Judiciário alegado a impossibilidade de
examinar o mérito de ato administrativo, em razão da separação de poderes e
competências atribuídas a cada um deles, contudo, poderia ser feita uma análise
técnica sobre a legalidade do ato praticado pela administração. Com o intuito de
constatar se as regras e decisões administrativas tornaram menos competitivo o
setor de importação, cujo objetivo serviu para a eliminação da concorrência, ou
ainda, de maneira indireta ampliou a burocracia, questões recorrentemente alvos
161
de críticas dos países desenvolvidos e destacadas no relatório de revisão das
políticas comerciais, realizado periodicamente pela OMC.
Outras questões recorrentes dizem respeito à concessão de isenção de
imposto (ICMS) para produto interno e a não extensão ao produto similar
importado, transgredindo assim o GATT de 1994, que destaca como sendo um
de seus princípios a não discriminação entre produtos nacionais e importados.
Tais demandas judiciais ocorrem em todas as esferas, federal e estadual,
impondo aos magistrados o conhecimento precípuo do direito internacional.
Pode resultar em novidade para alguns operadores do direito que o juiz brasileiro
está obrigado a aplicar as normas da OMC, contudo, desde 1995, quando entrou
em vigor a Organização, têm a precípua obrigação de observância de suas
regras todos os agentes públicos, sob pena de vir a sofrer as consequências
previstas no seu estatuto, sendo a mais comum a retaliação comercial, que pode
gerar elevadas perdas ao Estado que porventura venha a transgredir as normas
pactuadas no seio da OMC.
A aplicação da primazia do direito internacional sobre as normas de
direito interno não é observada nas decisões judiciais, demonstrando ainda um
distanciamento da visão das maiores potências comerciais com o ordenamento
jurídico como único, de modo que impede sobremaneira que as decisões fluam
com coerência com as normas pactuadas no plano internacional. Apesar de não
ser essa a visão do Supremo Tribunal Federal, nada impede que, na
independência inerente ao seu cargo, os magistrados desenvolvessem tal tese
no decorrer de decisões que envolvem a matéria do direito internacional.
Inobstante o debate sobre a primazia do direito internacional, as normas
da OMC estão todas internalizadas por meio do Decreto n. 1.355/94, que
ultrapassou todas as fases requisitórias para a internalização de um tratado
internacional, portanto não pode deixar de ser aplicado por estar incorporado ao
ordenamento jurídico brasileiro.
A política de capacitação e atualização dos servidores e magistrados,
que constitui uma das bandeiras do Conselho Nacional de Justiça, deve priorizar
no ensino técnico não apenas a normatização do direito, mas também o debate
162
sobre a formação da ordem jurídica una. Além, é claro, da doutrina,
jurisprudência sobre a Organização Mundial do Comércio.
A precariedade da matéria, tanto nos cursos de graduação como na exigência
para concursos públicos, e no posterior curso preparatório para as carreiras de
magistrados, é um fator que tem colaborado para um desempenho aquém do
esperado das decisões judiciais em matéria de direito internacional público, em
especial no que concerne ao direito do comércio internacional, mais
especificamente à aplicação das normas da OMC.
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