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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA
MARCO ANTONIO SILVA
A SINFONIA DA VIDA: NARRATIVA SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO HABITUS
DOCENTE MUSICAL
FORTALEZA
2017
MARCO ANTONIO SILVA
A SINFONIA DA VIDA: NARRATIVA SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO HABITUS
DOCENTE MUSICAL
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em
Educação Brasileira da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Ceará,
como parte dos requisitos para obtenção do
título de doutor em Educação. Área de
concentração: Ensino de Música.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Botelho
Albuquerque.
FORTALEZA
2017
MARCO ANTONIO SILVA
A SINFONIA DA VIDA: NARRATIVA SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO HABITUS
DOCENTE MUSICAL
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em
Educação Brasileira da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Ceará,
como parte dos requisitos para obtenção do
título de doutor em Educação. Área de
concentração: Ensino de Música.
Aprovada em: ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Botelho Albuquerque (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________________
Prof. Dr. Henrique Sérgio Beltrão de Castro
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________________
Profa. Dra. Ana Maria Iório Dias
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________________
Prof. Dr. Marco Antônio Toledo Nascimento
Universidade Federal do Ceará (UFC/campus Sobral)
_________________________________________________
Prof. Dr. José Albio Moreira de Sales
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
_________________________________________________
Prof. Dr. Ewelter de Siqueira e Rocha
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
AGRADECIMENTOS
A Deus, Criador e Mantenedor da vida, por me inspirar em toda essa caminhada.
À Goretti Herculano, minha esposa, por tecer comigo uma história de amor, caminhar
comigo esse trajeto de tantas histórias e de tantas vidas e me fazer acreditar que seria possível
essa vitória.
À Rebecca, Gabriella, Deborah e Nelson Filho, por me apoiarem nesse momento
difícil de elaboração de uma tese e por entenderem minhas ausências do convívio familiar em
alguns momentos.
À minha mãe, Maria Carlina da Silva, que sempre investiu e acreditou em mim desde
minha infância.
Ao meu orientador, Luiz Botelho, pelos valiosos ensinamentos que me conduziram a
uma reflexão de minha formação por meio da construção deste trabalho, o qual deverá
inspirar outras vidas em seus processos formativos.
A Henrique Beltrão e Pedro Rogerio, pelos debates e pelas reflexões proporcionadas
durante as vivências nas disciplinas do Programa de Pós-Graduação da Faced/UFC.
A Alberto Jaffé, in memorian, por me apresentar à arte musical de um modo que me
atraiu e me levou a fazer escolhas no campo musical.
Ao professor Santino Parpinelli, in memorian, que, ao me presentear com um violino,
abriu um horizonte de possibilidades que convergiram para este momento.
A todos os meus professores, por me ajudarem de alguma forma nesse processo
formativo que me conduziu à função de professor de uma universidade federal.
Aos professores do curso de licenciatura em Música da UFCA, pelas construções
cotidianas que perpassam nossos caminhos na docência em Música.
RESUMO
O presente estudo é uma autoanálise dos aspectos que delinearam minha formação docente
em Música em uma instituição federal de ensino. A pesquisa tem como objetivo analisar a
trajetória do agente procurando desvelar tais aspectos. Trata-se de um procedimento
autobiográfico que descreve as transformações ocorridas em minha trajetória, considerando
aspectos familiares, sociais, culturais e musicais que influenciaram, em grande medida, as
decisões que me direcionaram na função de professor de violino da Universidade Federal do
Cariri (UFCA). Nesse sentido, a pesquisa dedica-se a compreender a constituição do habitus
docente do professor de um curso de licenciatura em Música. Assim, ao olhar para o passado
de formação, são considerados os conceitos da praxiologia do sociólogo Pierre Bourdieu
acerca do habitus, campo e capital social, cultural e financeiro como ferramenta para iluminar
esta análise. História de vida e praxiologia são duas tradições de pesquisa que ajudam a
compreender esta investigação. Desse modo, a trajetória aqui apresentada demonstra o
processo de aquisição de um habitus que extrapola a ideia de reprodução das condições de
existência. Ao mesmo tempo que esse contexto nega meu destino provável, permite-me
postular a seguinte tese: “a inadaptação do habitus primário, aliado a estratégias, e o contato
com elementos-chaves no campo musical me conduziram, enquanto agente, a ocupar uma
posição de destaque no referido campo”.
Palavras-chaves: Professor de violino. Habitus. Campo. História de vida.
ABSTRACT
This study is a self-analysis of the aspects that outlined my teaching training in music at
Federal Teaching Institution. The research aims to analyze the trajectory of the agent seeking
to unveil such aspects. It is an autobiographical procedure that seeks to describe the
transformations that occurred in my career, considering familiar, social, cultural and musical
aspects that influenced to a great extent, the decisions that directed me in the role of violin
teacher at the Federal University of Cariri. In this sense, the objective of the research is to
understand the constitution of the teaching staff habitus of a degree course in music. Thus,
looking at the past of formation, the concepts of the praxisology of the sociologist Pierre
Bourdieu about the habitus, field, social, cultural and financial capital as a tool to illuminate
this analysis are considered. Life History and Praxiology are two research traditions that help
to understand this research. In this way, my trajectory demonstrates the process of acquiring a
habitus that extrapolates the idea of reproduction of the existence conditions; at the same time,
that this context denies my probable destiny allows me to postulate the following thesis: “the
inadaptation of the primary habitus, combined with strategies and the contact with key
elements in the musical field led me as agent to occupy a prominent position in this field”.
Keywords: Violin teacher. Habitus. Field. Life history.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Cordas do violino .................................................................................................36
Figura 2 – Violino e viola ......................................................................................................37
Figura 3 – Violoncelo.............................................................................................................37
Figura 4 – Contrabaixo ..........................................................................................................38
Figura 5 – Segurando o arco ..................................................................................................40
Figura 6 – “A caça”................................................................................................................48
Figura 7 – “A caça”................................................................................................................49
Figura 8 – Tema da sinfonia “Novo mundo”.........................................................................49
Figura 9 – Cartaz de evento em homenagem a Santino Parpinelli.........................................51
Figura 10 – Disciplinas do curso de bacharelado em Música................................................60
Figura 11 – “Valsa Scherzo”..................................................................................................62
Figura 12 – Exercício para troca de cordas ...........................................................................82
Figura 13 – Forma de segurar o arco ....................................................................................83
Figura 14 – Execução de duas notas, Dó e Ré ......................................................................85
Figura 15 – Programa da Orquestra do Sesi .........................................................................87
Figura 16 – Execução de peças brasileiras ...........................................................................89
Figura 17 – Apresentação com Hermeto Pascoal .................................................................89
Figura 18 – Apresentação com o grupo Irmãos Aniceto ......................................................90
Figura 19 – Capa do DVD “Irmãos Aniceto & Orquestra Eleazar de
Carvalho”................................................................................................................................91
Figura 20 – Orquestra da UFCA .........................................................................................102
Figura 21 – Orquestra da UFCA no I Festival de Orquestras
Eurochestries ........................................................................................................................103
Figura 22 – Processo formativo...........................................................................................109
SUMÁRIO
1 PRELÚDIO .............................................................................................................................7
2 PRIMEIRO MOVIMENTO: REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO ........... 16
2.1 Metodologia história de vida ............................................................................................. 19
2.2 Praxiologia: metodologia/referencial teórico.................................................................... 21
2.2.1 Habitus .............................................................................................................................. 21
2.2.2 Campo ............................................................................................................................... 23
2.3 Expedientes utilizados. ....................................................................................................... 24
2.4 Meu encontro com a metodologia ..................................................................................... 24
2.5 Revisão bibliográfica .......................................................................................................... 25
3 SEGUNDO MOVIMENTO: MINHA INSERÇÃO NO CAMPO MUSICAL .................. 28
3.1 Herança familiar ................................................................................................................ 29
3.2 Aprendendo a tocar violino ............................................................................................... 34
3.3 Aplicação do método e repertório didático ....................................................................... 36
3.4 Festivais de música ............................................................................................................. 50
3.5 Formação de um habitus violinístico ................................................................................. 55
3.6 Bacharelado ........................................................................................................................ 59
3.7 Atividades musicais em Fortaleza ..................................................................................... 64
3.8 Experiências familiares ...................................................................................................... 65
3.9 Retorno à universidade ...................................................................................................... 66
3.10 Mestrado ........................................................................................................................... 66
4 TERCEIRO MOVIMENTO: HABITUS DOCENTE ........................................................ 68
4.1 O encontro com a docência ................................................................................................ 73
4.2 O mestrado e a docência do ensino superior .................................................................... 77
4.3 Habitus docente na UFCA.................................................................................................. 79
4.4 Metodologia de ensino de violino/viola ............................................................................. 92
4.5 Ensino coletivo .................................................................................................................... 99
4.6 Orquestra da UFCA ......................................................................................................... 101
5 AUTOANÁLISE DA TRAJETÓRIA DO AGENTE ........................................................ 105
5.1 Leitura da tese a partir do livro Esboço de auto-análise ............................................... 105
5.2 Capital de Mobilidade apontando para um habitus docente violinístico. ..................... 116
5.3 Momento charneira .......................................................................................................... 120
5.4 Dos confrontos à simpatia: entre aprendizagens, amizades e afetos............................. 121
6 CODA: CONCLUSÕES .................................................................................................... 123
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 128
7
1 PRELÚDIO
Este estudo é uma autoanálise dos aspectos formativos que delinearam minha
formação docente/musical. Nesse sentido, a pesquisa tem como objetivo descrever e analisar
essa trajetória formativa, buscando compreender a constituição do meu habitus docente.
Ao olhar para meu passado de formação, procuro compreendê-lo considerando os
conceitos do sociólogo Pierre Bourdieu acerca do habitus, do campo e do capital social,
cultural e financeiro como instrumentos para iluminar essa análise. É um procedimento
autonarrativo que procura descrever as transformações ocorrentes em minha vida,
considerando aspectos familiares, sociais, culturais e musicais que influenciaram em grande
medida minhas decisões, direcionando-me, assim, na função que ocupo hoje, de professor do
curso de Música da Universidade Federal do Cariri (UFCA), no Ceará.
O curso de Música, na modalidade licenciatura, da UFCA, emergiu da sociedade
do Cariri em 2010, quando ainda era um campus da Universidade Federal do Ceará (UFC),
uma ampliação do ensino de Música no estado do Ceará. Buscando compreender a realidade
do ensino de Música nessa região do Nordeste do Brasil, necessito retroceder em algum ponto
no passado com o objetivo de clarificar o estabelecimento do campo epistemológico dessa
área de estudo.
Nesse sentido, é importante destacar duas correntes de ensino de música
praticadas no Brasil que perpassam toda a minha trajetória: a tradição de música erudita e a
vertente popular. Desse modo, faço a opção de apresentar esse trajeto a partir da chegada da
corte portuguesa ao Brasil, no ano de 1808, por entender que esse período retrata uma intensa
influência da música europeia na sociedade brasileira. Essa comitiva veio para o Brasil em
virtude das transformações políticas e econômicas ocorrentes em toda a Europa. Durante o
século XV, os países da Europa, e em especial os ibéricos, por sua localização avantajada em
direção à América e à África, iniciam uma era no comércio europeu por meio das navegações.
Com efeito, os portugueses, que já exploravam a Ilha da Madeira e Cabo Verde, não tiveram
muita dificuldade de chegar ao Brasil. Começaram, então, a comercializar o pau-brasil e,
posteriormente, a cana-de-açúcar e o café. Com a vinda da corte para o Brasil, a população da
colônia apropriou-se de costumes oriundos da corte portuguesa (CASTRO, 1984).
Desse modo, ao desembarcar na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1808, D.
João VI e a comitiva portuguesa foram recepcionados por uma banda de música.
8
Provavelmente a corte expressou dúvidas acerca da qualidade musical dos músicos da
colônia. A corte de D. João VI estava acostumada a ouvir a música italiana na prática
religiosa, como também, no entretenimento, óperas com características da escrita polifônica.
Ao chegar ao Brasil, essa apreciação musical foi conservada, necessitando, inclusive, importar
alguns artistas para conduzir a música escolhida pelos portugueses (CARDOSO, 2008).
Com a chegada da comitiva real lusitana ao Brasil, cultivaram-se então, na
sociedade brasileira, duas correntes da prática musical. A primeira é a música exercida e
ouvida por uma elite brasileira na época colonial. A segunda é a música realizada pela
sociedade de periferia, ou seja, índios, negros e escravos. Quando os portugueses
apropriaram-se das terras brasileiras, iniciou-se uma mistura étnica, envolvendo a cultura
trazida pelos portugueses e os que os acompanhavam, como também a cultura dos índios que
aqui habitavam. Um pouco mais tarde, com a necessidade de mão de obra para o cultivo da
cana-de-açúcar e do café, vieram para o Brasil os negros, acrescentando-se, assim, mais uma
etnia (CASTRO, 1984). Considerando que a música reflete a sociedade na qual está inserida,
há, portanto, no Brasil, intensas influências da música europeia, dos negros e também dos
índios. Silva (2009), em dissertação de mestrado, reporta-se a essas misturas de etnias na
constituição da música no Brasil.
A história do ensino de Música no Brasil é perpassada por distintas características
metodológicas, que se materializaram com suporte em variados contextos, espaços e situações
de ensino e aprendizagem da música. Ela perfaz um caminho que vai desde a chegada dos
primeiros jesuítas ao Brasil, em 1549, às discussões contemporâneas sobre a educação
musical. Os jesuítas ensinaram aos índios a música de origem europeia. De acordo com Silva
(2009, p. 82),
Os jesuítas com o objetivo de catequizar os índios impuseram costumes e práticas
religiosas que eram inteiramente subordinadas às exigências da igreja e aos
interesses da religião. Os portugueses encontraram nos jesuítas uma das maiores vias
de penetração da cultura europeia.
A influência da música europeia por intermédio dos jesuítas permaneceu durante
todo o período colonial. Contudo, os padres foram expulsos do Brasil, mas os índios
permaneceram no país (FONTERRADA, 1992). No regime imperial, entretanto, consolidou-
se aqui considerável influência da música europeia (SILVA, 2009; CARDOSO, 2008).
9
Esse panorama foi claramente percebido pelo escritor Machado de Assis, que
viveu de 1839 a 1908 e descreveu essa diferença musical em quatro contos: “O machete”,
“Um homem célebre”, “Cantiga de esponsais” e “Trio em lá menor”.
No conto “O machete” (ASSIS, 1994a), o autor narra o conflito entre a prática de
uma música popular representada pelo instrumento machete 1 e outra cultivada por um
instrumento praticado pela sociedade europeia, o violoncelo. O machete era muito apreciado
pela sociedade da época, enquanto o violoncelo, no Brasil, era desconhecido e pouco
valorizado e/ou apreciado.
Em outra obra, “Um homem célebre”, Machado de Assis expressa o conflito e a
angústia de um compositor e pianista especialista em fazer “polca”. Ele se tornou famoso em
sua época por via de suas composições de músicas populares. Almejava, entretanto, ser
reconhecido como um músico da música de concerto europeia (ASSIS, 1994b). Nota-se,
portanto, que Machado de Assis realizou, mediante suas observações, um estudo da vida
musical brasileira do século XIX e percebeu que a música praticada pelo povo não era a
mesma exercitada pela corte lusitana.
Esse confronto se dá porque durante um determinado tempo o Brasil, como
colônia de Portugal, sofreu forte influência da cultura europeia praticada pelos portugueses.
Consequentemente, foi herdado desse contexto um modo de pensar, um conjunto de opções
estéticas e ético-políticas. Assim, a constituição da intelectualidade brasileira foi se formando
baseada no padrão europeu. Esse modelo eurocêntrico é questionado por autores das Ciências
Sociais por não se aplicar na maioria das circunstâncias de culturas consideradas subalternas.
Nesse sentido, acerca das culturas nesse estado de subordinação, muitos estudos
são procedidos (SANTOS; MENESES, 2010; CONNELL, 2007; ARROYO, 2002). Destaca-
se, portanto, o movimento epistemológico do grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) que
teve início com esteio nas contribuições teóricas provenientes dos estudos culturais, pós-
coloniais e subalternos. O grupo M/C, porém, critica e se aparta dessa corrente de pensamento
em virtude de eles não romperem com os autores eurocêntricos. Walter Mignolo, um dos
fundadores do M/C, acentua que o movimento necessita buscar uma disposição crítica que
tenha origem na América Latina, em vez de analisar a descolonização, utilizando como
referências outros centros (BALLESTRIN, 2013).
1 Machete é uma viola pequena, também chamada cavaquinho de quatro cordas e machinho.
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Essa investigação produz um conjunto de elaborações denominado de Teorias e
Epistemologias do Sul. A esse respeito, Santos e Meneses (2010, p. 7) refletem em seu livro
Epistemologias do Sul sobre alguns pontos precisos e importantes:
Por que motivo, nos dois últimos séculos, o âmbito cultural e político da produção e
reprodução do conhecimento foi suprimido da reflexão epistemológica da
epistemologia dominante? Essa descontextualização acarretou quais consequências?
Outras epistemologias são hoje plausíveis?
Compreendo que essas indagações refletem significativa mudança epistemológica
e os autores sugerem que os processos e os produtos culturais devem ser alcançados no seu
contexto de produção cultural (SANTOS; MENESES, 2010). Com origem nessa realidade,
onde se configura o ensino de Música no Brasil, é possível perceber a necessidade de uma
educação musical que alcance um grande número de pessoas.
Essa inserção de uma cultura europeia no Brasil e a dicotomia música popular e
música erudita influenciaram bastante a vida do compositor cearense Alberto Nepomuceno.
Ao nos aproximarmos das canções de Nepomuceno, compreendemos que suas
obras musicais possuem origem europeia e, ao mesmo tempo, vão de encontro às origens da
música nacional (PIGNATARI, 2009). Buscando ressaltar sua música de origem, contudo, ele
foi o primeiro a compor músicas do repertório de concerto com textos em português. Em
virtude disso, ele é considerado o precursor no nacionalismo modernista, que se desenvolveu
e se tornou hegemônico na música brasileira nos anos 1920 a 1950 e que teve Heitor Villa-
Lobos como seu expoente máximo (PEREIRA, 2007).
Essa busca por novos paradigmas da geopolítica do saber assemelha-se ao que
aconteceu no Brasil durante a Semana de Arte Moderna, em 1922. Naquela ocasião, o
compositor Heitor Villa-Lobos foi destaque e, apesar de se utilizar, de maneira tímida, de
algumas inovações sonoras e outras combinações instrumentais, provocou escândalos no meio
musical brasileiro marcado por uma “colonialidade” do saber eurocêntrico. Após a Semana de
Arte Moderna, o compositor brasileiro procurou, por meio da união da música popular e da
música erudita, produzir saberes que reafirmassem a cultura genuína pátria, em detrimento da
significativa influência da cultura europeia. Ele se destacou por considerar que um país
escravocrata tardio pode perceber seu potencial, mesmo que obscuro e reprimido, em
consequência de uma “colonialidade” (WISNIK, 2007). Compreendo que essas duas relações
não se exprimem mutuamente excludentes, mas a ênfase no ensino de Música para uma
11
grande massa se aproxima muito mais da realidade brasileira do que o modelo europeu, que
busca formar músicos de alta performance.
Essa realidade expressa-se também em um projeto, nos anos 1970, na cidade de
Fortaleza. Idealizador do projeto, o violinista e pedagogo Alberto Jaffé implantou um método
de ensino buscando alcançar grande número de alunos, contrariando o método tradicional de
um professor para um aluno. O projeto procurava atender a uma demanda de músicos para as
orquestras do Brasil. Nessa época, o panorama musical brasileiro mostrava-se como um
período cujo maior problema das orquestras concentrava-se na falta de novos músicos para as
vagas existentes. Em 1975, só em São Paulo, surgiram quatro orquestras. A exemplo do que
ocorria na capital paulista, havia também no Recife, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro
grande necessidade de músicos para o setor das cordas. Portanto, para suprir essa demanda,
uma das soluções encontradas, embora difícil e dispendiosa, foi a de arregimentar músicos de
outros países. Procurando minimizar o problema que se mostrava com a falta de
instrumentistas de cordas, a solução mais imediata foi a implementação de ações visando à
formação em massa de músicos nessa especialidade.
Entre as experiências pedagógico-musicais vivenciadas naquele momento
histórico, posso mencionar os trabalhos desenvolvidos pelos professores Alberto Jaffé e Pedro
Cameron. Essas contribuições para a formação de instrumentistas são consideradas pioneiras
e basilares para o surgimento de outros movimentos importantes. Jaffé operou grande
influência na realidade musical brasileira ao implantar uma metodologia de ensino coletivo
para os quatro instrumentos de cordas, simultaneamente.
Pedro Cameron, por sua vez, também teve a carreira musical dedicada ao ensino
da música. Como professor, lecionou no Conservatório de Tatuí, de 1970 a 1984, trabalhando
com alunos que iniciaram estudos de Música em sua orquestra. Seu objetivo era estimular os
jovens ao estudo dos instrumentos de orquestra. Tanto o trabalho do professor Jaffé quanto as
diligências de Cameron foram tão profícuos que em poucos anos seus alunos estavam em
condições de executar as obras convencionais do repertório sinfônico (SILVA, 2008).
Em minha dissertação de mestrado, pesquisei sobre a experiência do método Jaffé
na cidade de Fortaleza e pude constatar que a metodologia empregada por ele trouxe diversos
subsídios para a formação musical e humana de muitos dos jovens e adolescentes que
participaram desse movimento nos anos 1970. Entre tais contribuições, destaco a perspectiva
de uma carreira musical, a apreciação da música e a oportunidade de inclusão social. Assim,
12
denota-se que a aplicação do método ultrapassou a promoção de aprendizado técnico,
considerando que o universo metodológico desenvolvido pelo professor Jaffé também
ampliou outros aspectos educacionais, como, por exemplo, a transformação da realidade
sociocultural de vários egressos dessa experiência (SILVA, 2008).
O contexto dessa investigação, no mestrado, revelou a complexidade e a estrutura
dessa didática musical para instrumentos de cordas. De tal modo, uma das importantes
reflexões desse estudo foi perceber como a introdução do aprendizado dos instrumentos de
cordas, na trajetória dos participantes do projeto do Sesi, transformou suas vidas, dotando-os
de um capital cultural e social.
Empreender uma pesquisa acerca dessa experiência desenvolvida pelo maestro
Jaffé na década de 1970, em Fortaleza, demonstrou-se para mim um processo formativo de
amplas possibilidades, a julgar que sou um dos egressos desse experimento e que historicizar
esse processo significou olhar para minha própria história de formação musical. Durante três
anos, estudei violino com o professor Jaffé; nesse período, tive a oportunidade de participar
de cursos de férias na cidade de Campos do Jordão, em São Paulo, onde assisti a vários
concertos, destacando apresentações de famosos instrumentistas, como Ruggiero Ricci,
Mistilav Rostropovich, Airton Pinto, Natan Schwartzman; como também renomados
maestros, a exemplo de Eleazar de Carvalho e Isaac Karabtchevsky, que muito me
impressionaram e estimularam a continuar o estudo de Música, em especial, do violino.
Esses contatos proporcionados em eventos musicais e o estudo do instrumento
fizeram-me optar pelo bacharelado em Violino, por ocasião de meu ingresso na universidade.
Fiz a faculdade de Música na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na cidade de João
Pessoa, onde me foi dado participar tanto da Orquestra Sinfônica Jovem quanto da Orquestra
Sinfônica da Paraíba (orquestra profissional do Estado). Nesse momento de minha formação,
olhava para o instrumento (violino) com um olhar de performance, ou seja, focando como
resultado final o instrumentista que poderia atender ao campo de atuação profissional.
De fato, o modelo de ensino de Música no bacharelado da UFPB mantém seu
modo de operação no habitus “conservatorial”, também conhecido como modelo
“conservatorial” ou forma “conservatorial”. Essa nomenclatura é associada por alguns autores
a uma prática de ensino de Música com origem na música de concerto, que tem como objetivo
dominar uma linguagem performática para execução de um repertório eurocêntrico
(PEREIRA, 2013).
13
Como geralmente ocorre na carreira dos instrumentistas, logo me tornei professor,
lecionando violino e viola para crianças, adolescentes e jovens da periferia da cidade de
Fortaleza, tendo como objetivo ensejar-lhes uma experiência com música por via do
aprendizado do instrumento. Durante esse experimento, percebi a necessidade do professor de
Música em adquirir conhecimentos múltiplos que poderão ser utilizados em determinadas
circunstâncias. Logo entendi que o bacharelado não me fornecia os meios necessários para
atuação com segurança no campo da docência, sendo, portanto, necessário apropriar-me de
determinados conhecimentos para compreender a situação na qual se encontravam meus
alunos e aplicar o método mais adequado.
Fundamentado nesses questionamentos e na necessidade de ampliar e aprofundar
os conhecimentos acerca do ensino de Música, retornei à universidade para cursar licenciatura
na Universidade Estadual do Ceará (UECE), na cidade de Fortaleza. Nesse momento, meu
foco passou a ser o ensino de Música e não mais a formação do instrumentista. Queiroz e
Marinho (2005) tornam bastante clara a linha divisória que diferencia bacharelado e
licenciatura em Música, discutindo que os cursos de bacharelado em Música exercem o papel
de formar músicos que deverão atender ao mercado de trabalho profissional na seara musical.
Por outro lado, as licenciaturas em Música se preocupam com a formação profissional para
atuação na educação básica, como também habilitam o egresso “para ocupar lugares como
escolas especializadas de ensino da Música e outros contextos emergentes na sociedade [...]”
(QUEIROZ; MARINHO, 2005, p. 2). Essa distinção foi fundamental na condução de minhas
escolhas no terreno pedagógico-musical para tornar-me professor no ensino superior,
inclusive a opção por fazer um mestrado em Música.
Meu ingresso no mestrado ocorreu por meio de um teste de seleção, etapa na qual
precisei tocar para uma banca um repertório contrastante, o qual perpassava por músicas dos
períodos barroco, clássico, romântico, moderno e contemporâneo e por compositores
brasileiros do repertório erudito. No mesmo dia, no período noturno, fiz outra prova; dessa
vez, o conteúdo era teórico (harmonia, história da música, contraponto etc.). No dia seguinte,
defendi o projeto de pesquisa para avaliação da banca.
Durante minha experiência no mestrado, visualizei melhor o domínio e a
interpretação das músicas por intermédio do violino, como também o ensino de Música via
instrumento, já que tive a oportunidade de estagiar na docência do ensino superior. Embora
fossem proporcionadas outras disciplinas, elas estavam subordinadas à performance
14
instrumental. Assim, o mesmo modelo esboçado no bacharelado em Violino repete-se no
mestrado em Práticas Interpretativas na Subárea de Violino. Essa configuração está baseada
em um saber de origem europeia, que tem como objetivo preparar professores para a
reprodução da música de concerto. Em minha percepção, esse conhecimento não coincide
com a necessidade dos brasileiros, com o ensino de Música para a maioria da população
brasileira.
Nesse sentido, destaco a implantação dos três cursos de licenciatura em Música
nas universidades federais do Ceará, que têm como objetivo a formação de professores de
Música para atendimento às escolas da rede pública, organizações não governamentais etc.,
proporcionando, assim, uma vivência musical por meio do aprendizado de instrumentos
musicais e de canto, individual e coral, ao maior número possível de pessoas.
Esse processo de criação de cursos superiores de Música no Ceará tem forte
relação com a discussão empreendida neste estudo, em virtude de minha inserção como
professor do primeiro curso de licenciatura em Música na região do Cariri. Em 2009, prestei
concurso para o setor de estudos “Prática e Ensino de Instrumentos de Cordas Friccionadas” e
fui aprovado. Então, desde 2010, ensino, pesquiso e oriento os alunos da região do Cariri
sobre o aprendizado e a prática desses instrumentos.
O curso de licenciatura em Música da UFC, campus Cariri, tem origem na
histórica trajetória do curso de licenciatura em Música da UFC em Fortaleza2. Posteriormente,
o campus Cariri, antes vinculado à UFC, foi desmembrado, constituindo-se em nova
universidade, a Universidade Federal do Cariri (UFCA). O curso emerge, então, do esforço
conjunto e da visão de professores (educadores musicais) que enxergaram na região do Cariri
cearense um amplo potencial para o desenvolvimento da sistematização do saber musical
inerente àquele espaço geográfico-cultural.
Esse é, portanto, o locus no qual esta pesquisa deverá desenvolver-se, tendo como
objetivo descrever e analisar minha trajetória de formação, buscando compreender a
constituição do habitus docente musical. Como objetivos específicos, pretendo argumentar
acerca dos nexos entre a abordagem história de vida e o aporte teórico da praxiologia, de
Pierre Bourdieu, para elucidar a constituição de meu habitus docente; desvelar aspectos de
minha formação musical na aquisição de capitais para compreender os processos de
2 Sobre a história do curso de licenciatura em Educação Musical da UFC, em Fortaleza, ver Silva (2009).
15
aprendizagem musical; e discutir a relação entre ensino tradicional e ensino coletivo,
buscando uma epistemologia do saber musical que supere o modelo eurocêntrico.
Desse modo, minha trajetória demonstra o processo de aquisição de
um habitus que extrapola a ideia de reprodução das condições de existência. Ao mesmo
tempo que esse contexto nega meu destino provável, permite-me postular a seguinte tese: a
inadaptação do habitus primário, aliado a estratégias, e o contato com elementos-chaves no
campo musical conduziram-me, enquanto agente, a ocupar uma posição de destaque no
referido campo.
Entendo que este estudo deverá contribuir para uma melhor compreensão do
campo pedagógico musical da UFCA, aproximando-me da realidade que envolve estudantes e
professores e, assim, procurar desmistificar a aparente dicotomia, historicamente constituída,
entre as culturas erudita e popular.
O trabalho está organizado em seis capítulos. No segundo capítulo, antecedido
pelo prelúdio, desvelo os procedimentos metodológicos que nortearam esta pesquisa,
buscando um diálogo da metodologia história de vida com a praxiologia do sociólogo Pierre
Bourdieu. No terceiro, discuto minha história de vida, elucidando a subjetividade no meio
social e como se deu meu aprendizado em Música até me tornar professor da UFCA. No
quarto, revelo minha prática de ensino, na intenção de atender às necessidades do ensino de
Música em diálogo com o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) de Música da UFCA. E, por
fim, no sexto capítulo, minhas conclusões.
16
2 PRIMEIRO MOVIMENTO: REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
Este capítulo expõe a abordagem metodológica, um estudo na perspectiva do
diálogo entre duas tradições de pesquisa: a metodologia história de vida, explorando o
processo autobiográfico, e a teoria da praxiologia, de Pierre Bourdieu. Este trabalho utiliza as
duas tradições como referencial teórico-metodológico, pois entendo que é delineada a história
de vida com a inserção no campo do ensino de Música e a constituição do habitus docente,
sincronicamente.
A tradição de pesquisa história de vida permite centralizar o sujeito narrador,
considerando que ele define seu objeto de busca e amplia também sua percepção acerca de si
mesmo (ASIHVIF, 2002, tradução minha). Assim, esse caminho, mediante a autobiografia,
permite ao pesquisador analisar a própria história. No caso, tencionei compreender minha
trajetória, desvelando os principais aspectos que orientaram as escolhas que me
transformaram em um professor de Música.
Esse procedimento de investigação autobiográfica propõe aproximar o
pesquisador/sujeito no âmbito da pesquisa. Com efeito, Cecilia Warschauer, no prefácio ao
livro de Marie-Christine Josso, Experiências de vida e formação, ajuda-nos a compreender “a
centralidade do sujeito aprendente, utilizando a análise de seu percurso de vida e maneira de
caminhar para si” (JOSSO, 2004, p. 8). Essa aproximação se dá porque o pesquisador, além
de ser o sujeito, é também quem conta a história.
Outra experiência a expressar o caráter formativo da história de vida é relatada no
livro No ar, um poeta, resultado da tese defendida por Henrique Beltrão. Ele afirma que
A abordagem História de Vida e Formação (HIVIF) abre campo de vastidão em
pesquisa e (auto)formação, em que esta narrativa autobiográfica se torna possível e
revela o que fui, transforma o que sou, bem como me deixa entrever o que sou capaz
de vir a ser. Do encontro entre o outrora, o agora e o porvir se tecem os relatos de si
neste âmbito de estudos. Há que ousar saber de si – e ousar se sentir. Rememoro o
que dizia o poeta Píndaro: “o dia precedente é o mestre do dia seguinte” – e a ponte
entre os dois se faz hoje. Este percurso de pesquisa meu precisa de fazer poética esta
narrativa autobiográfica (CASTRO, 2014, p. 288, grifo do autor).
Esses dois exemplos apontam para a qualidade dessa proposta no campo das artes,
em especial, no meu caso, o espaço da Música. Sou egresso de uma experiência tradicional
por meio de minhas vivências com a música de concerto, de tradição europeia. Essas
17
experiências fomentaram em mim a ideia de que a música europeia seria a referência para o
estudo da música de qualidade.
Ao analisar minha história de vida, foi possível compreender meu aprendizado em
outros espaços sociais que me proporcionaram uma formação. Assim, esse procedimento, do
ponto de vista da formação de professores, procura explicar a origem do sujeito, ou seja, de
onde ele veio até a posição por ele ocupada no momento, olhando para o futuro. A abordagem
denota, também, novas maneiras de olhar para uma pesquisa científica, de procurar refletir
sobre o sujeito, como também de propiciar uma escrita sobre o modo como ele
(pesquisador/sujeito) se articulou com o campo acadêmico.
As histórias de vida como metodologia de pesquisa surgiram por intermédio das
Ciências Sociais nos anos 1920, com o concurso da Escola de Chicago, com “temas de
pesquisa em que o pertencimento social dos sujeitos não é dado a priori” (GUÉRIOS, 2011,
p. 10). Isso significa dizer que a dialética entre sujeito e sociedade não era considerada.
Explorava-se apenas a subjetividade do sujeito. Sobre a Escola de Chicago, Silva (2016,
p. 53, grifos do autor) comenta que,
Após um período de considerável produção pela “Escola de Chicago”, a
metodologia história de vida passou por um declínio, em razão do crescimento de
teorias “abstratas”. Estas optavam por focalizar nas variáveis estruturais em
detrimento dos fatores que são ressaltados na vida e experiências da pessoa.
Malgrado intensa produção de estudos por via dessa metodologia, ela foi objeto
de declínio. A razão para esse enfraquecimento foi o destaque conferido às pesquisas
fundamentadas nas teorias abstratas. A ênfase concedida às questões mais objetivas afastou o
olhar dos pesquisadores, por algum tempo, de um enfoque que valorizasse mais a
subjetividade.
No final dos anos 1970, no entanto, a metodologia história de vida reapareceu,
dessa vez na França, por meio do estudioso Daniel Bertaux e seu relatório de pesquisa
utilizando esse procedimento. Em 1980, as ideias basilares de Bertaux foram publicadas em
um artigo intitulado “L’approche biographique: sa validité méthodologique, ses potentialités”.
Nessa publicação, Bertaux defende o enfoque biográfico, sugerindo inclusive a palavra
“story” para representar a utilização dos relatos de vida. Ensina, ainda, que essa proposta de
análise não necessitava de fontes externas ao discurso do sujeito que reconstitui suas
vivências. A influência dessa proposta crescia, alcançando, assim, proporções internacionais.
18
Essa opção, história de vida, sem recursos à objetivação por documentos externos, passou a
polarizar os debates acerca do assunto (GUÉRIOS, 2011; SILVA, 2016).
Essa aleia de pesquisa, entretanto, é alvo de severas críticas, principalmente pelo
sociólogo Pierre Bourdieu, quando escreveu e publicou o artigo “Ilusão biográfica”. Nesse
documento, Bourdieu combate rigidamente a descrição de uma história de vida destituída de
identidade associada a um determinado terreno. Ele leciona que um agente transita em um
mesmo campo social ou em campos distintos no mesmo momento (unidade sincrônica3)
(BOURDIEU, 1998).
Acerca da crítica de Bourdieu sobre a metodologia histórias de vida, ressalto dois
estudos esclarecedores: o artigo da pesquisadora Maria da Conceição Passegi, “Pierre
Bourdieu: da ilusão à conversão autobiográfica”, e um capítulo da tese de Maria Goretti
Herculano Silva, “Da dialética do pensamento: da ilusão à sedução”. Ambos exibem uma
versão da crítica encabeçada pelo já citado “Ilusão biográfica” até a escrita de Esboço de
auto-análise por Pierre Bourdieu.
Na concepção de Passegi (2014), os escritos de Bourdieu seguem a seguinte
trajetória: introduzem uma crítica às histórias de vida em seu artigo “A ilusão biográfica”;
perpassam por um momento de adesão no livro A miséria do mundo; e chegam, finalmente, a
uma conversão no livro Esboço de auto-análise.
Na mesma linha, Silva (2016) oferece o entendimento de que a ideia de conversão
demonstrada por Passegi (2014) não é o que mais se aproxima da posição de Bourdieu em
relação às histórias de vida. Ela reflete:
Percebo de todo esse contexto que houve uma evolução no pensamento de Bourdieu,
que o levou da Ilusão biográfica ao Esboço de auto-análise – o que não é de se
estranhar, ao se considerar as inúmeras transformações testemunhadas por ele ao
longo de sua vida. Isso me leva a crer que não houve uma conversão, pois não
ocorreu mudança de direção, nem abandono de suas crenças basilares. Por outro
lado, entendo que Bourdieu se deixou seduzir pelo método das narrativas
autobiográficas, e, na trajetória das experiências que o conduziram a essa atração,
desmistificou a própria experiência auto-biográfica. Isso resultou na elaboração de
uma argumentação que deu maior ênfase ao arcabouço teórico das histórias de vida,
definindo sua rigorosidade quanto ao uso de material biográfico em pesquisa de
cunho social (SILVA, 2016, p. 60).
3 Por exemplo: o nome próprio como um ponto fixo que se move.
19
Em tal circunstância, é compreensível o fato de que essas duas tradições de
pesquisa encontraram autonomia na academia; entretanto, naquele momento inicial, elas eram
divergentes e não conseguiam dialogar.
Bourdieu, em seu livro Esboço de auto-análise, evoca a própria experiência de
vida e exibe sua proposta de estudo ao utilizar o gênero autobiográfico. Sobre essa
modalidade de pesquisa, ele diz que “queria apenas tentar reunir e revelar alguns elementos
para uma auto-análise” (2005, p. 37). Assim, propõe ao pesquisador olhar para o sujeito,
procurando perceber/descrever como ele foi inserido em um determinado campo. Bourdieu
(2005, p. 40) descreve que “compreender é primeiro compreender o campo com o qual e
contra o qual cada um se fez”. Fundamentado nessa ideia, procuro explicar como entrei em
contato com as leis do campo da Música, em especial, com as do ensino de Música. Levei em
conta, portanto, os conceitos da praxiologia (campo, habitus e capitais simbólicos) como
alicerce para minha análise por explicar/fundamentar o processo de inserção no terreno da
docência em Música.
2.1 Metodologia história de vida
Procurei descrever minha história de vida com base na minha perspectiva, ou seja,
em um processo (auto)narrativo. Nessa fase da escrita, não me detive no procedimento
analítico, porquanto me preocupei apenas em descrever, na escrita, o máximo de informações
possíveis que ficassem disponíveis para uma análise. Outro aspecto importante foi a interação
com outras pessoas, procurando tornar a escrita o mais próximo possível do original (como de
fato aconteceu). Nesse sentido, conversei com minha progenitora, Maria Carlina da Silva,
buscando o máximo de informações da época em que me aproximei do Serviço Social da
Indústria (Sesi). Investiguei meus colegas, egressos da experiência Jaffé, e esses, além de me
fornecerem algumas informações, enviaram por e-mail e pelas redes sociais fotos e partituras
que me ajudaram na observação dos fatos.
O uso desse procedimento fundamenta-se nas orientações dadas por Martine Lani-
Bayle, no artigo “História de vida: transmissão intergeracional e formação”, no qual
esclarece:
Informar. É isso o que os fatos evocados podem nos ensinar, e isso é a base: nós
anotamos e registramos. De qualquer forma, temos necessidade disso. Porém, esses
fatos nada significam, se estiverem isolados da pessoa que narra, desencarnados. De
posse dessas bases iniciais, convém buscar o que os fatos fizeram ao narrador (ou
20
seja, a “narrativa de experiência” decorre desses fatos evocados e deixa surgir o
“experienciado”, resultante das provas atravessadas tal como foram relatadas). Em
seguida, é necessário tentar tomar consciência do que o narrador fez de tudo isso (ou
seja, a “narrativa de formação”, que se pode extrair do nível precedente) (LANI-
BAYLE, 2008, p. 303, grifos da autora).
Nesse sentido, ao ler o que havia escrito, procurei responder aos seguintes
questionamentos: o que os fatos me ensinaram? O que essa narrativa me causou? Essa
maneira de proceder, em geral, é considerada por quem trabalha com história de vida? Minha
escrita se fundamentou também na orientação de Lani-Bayle (2008). A pesquisadora
aconselha que, inicialmente, o sujeito relate plenamente, ou seja, escrevendo os fatos do
exterior para o interior. O próximo passo é uma reflexão acerca do influxo dessas memórias,
do exterior para o interior. A última fase é o processo de organização e constituição do texto,
apesar de que a escrita não relata uma vida, o relato deverá ser produtivo (LANI-BAYLE,
2008).
Na primeira etapa, ao descrever meu interior, captei marcas, emoções, fatos, o que
foi possível captar no exterior. É o meu encontro com o passado. Após a descrição de minha
vida, cheguei à segunda etapa, quando procurei ler/refletir sobre a minha história, buscando
informações que me ajudassem a compreender minha formação. Essa escolha dialoga com o
mesmo método de investigação utilizado pelas pesquisadoras Carolina da Costa Santos,
Fátima Pereira e Amélia Lopes, relatado em edição especial da revista Educere et Educare.
Elas procuram compreender o percurso social dos professores universitários mediante o
restabelecimento de suas identidades. Consideram nesse processo o contexto familiar, o
percurso escolar, a formação inicial e as experiências profissionais. Acerca dessa abordagem
metodológica, comentam:
Por compreender a identidade como processo social, as narrativas de tipo biográfico
revelaram-se como estratégia metodológica principal do estudo. Elas permitem
respeitar a subjetividade do sujeito. Se a identidade não é produzida em um
momento pontual, mas é construída ao longo da vida, pela dialética indivíduo-
sociedade, é fundamental entender que, antes do produto, é importante conhecer o
processo (SANTOS; PEREIRA; LOPES, 2014, p. 409).
Desse modo, é possível compreender que a autobiografia é muito utilizada como
estratégia de percepção dos processos formativos do professor. Também é possível admitir
que a organização do meu percurso de formação e a reflexão sobre ele me ajudam a
identificar minha formação.
21
Na última etapa, separei recortes de minha vida que dialogavam com meu
processo formativo, ou seja, pretendi entender meu diálogo com a sociedade, notando as
contribuições dos espaços sociais para minha inserção na docência do ensino superior e
considerando aspectos desde a minha infância até os dias de hoje.
Essa abordagem de investigação é largamente divulgada nos estudos sobre
formação de professores. Acerca desse processo, Dotta e Lopes (2014, p. 47) esclarecem:
O seu uso justifica-se pelo seu potencial de desvendar as complexidades envolvidas
no desenvolvimento profissional. Significa visualizar o fenômeno a ser investigado
como espaço de vida tridimensional em curso onde temporalidade, sociabilidade e
lugar estão em articulação permanente.
Ao investigar minha vida, considerando aspectos temporários, mas que
produziram significados para o futuro, percebi que minhas relações com os diversos espaços
sociais por mim vivenciados proporcionaram-me determinados aprendizados, como também
aprendi nos deslocamentos realizados em diversas cidades e instituições. Ao considerar esses
fatos, posso afirmar que isso me ajudou a compreender minha formação. Esse procedimento
investigativo me permite investigar o sujeito e não, simplesmente, pesquisar sobre o sujeito.
A seguir, explico o veículo de análise utilizado nesta pesquisa, a praxiologia, de
Pierre Bourdieu, buscando identificar a interação que fiz com os espaços sociais que
frequentei.
2.2 Praxiologia: metodologia/referencial teórico
Por intermediação desta pesquisa, procuro descrever o modo como fui inserido na
seara docente utilizando a metodologia história de vida. Narro, também, minha trajetória
(agente) na seara musical, recomendando, assim, os conceitos de habitus, campo e capitais
simbólicos como referenciais teóricos.
2.2.1 Habitus
Ao estudar a praxiologia de Bourdieu, foi possível perceber minha inserção no
campo. Ressalto ainda que, apesar de sermos influenciados pelo campo, ele não determina
nosso futuro, ou nossa prática. A despeito disso, Brandão e Altmann (2002, p. 4, grifos dos
autores) explicam que
22
O habitus é um saber agir aprendido pelo agente na sua inserção em determinado
campo. As “estruturas” do campo são importantes na formação do habitus, no
entanto, a ação do agente não é completamente determinada por elas. Bourdieu fala
em “sentido do jogo”: o jogador apreende as regras do jogo, mas as regras não
preveem o que irá acontecer, tampouco como o jogador irá jogar.
Entendo, portanto, que as práticas sociais não são totalmente determinadas, e sim
determinantes. Desse modo, os agentes de um campo necessitam incorporar os capitais
exigidos para que permaneçam ali. No meu caso específico, fui acumulando o capital exigido
no campo da Música (violino) e no escolar (diploma de 2º grau, aquisições de saberes
cognitivos, capital social), que me encaminharam a participar das regras do jogo no campo
acadêmico musical.
Destaco, ainda, a aquisição de capital simbólico, que proporcionou aproximação
com o campo musical. Esses capitais são oriundos de minha convivência no espaço familiar e
na socialização escolar. Ao refletir acerca das relações parentais no seu processo de
autoanálise, Bourdieu (2005, p. 109) comenta que
Este esboço de auto-análise não pode deixar de lado a formação das disposições
associadas à posição de origem, das quais se sabe que, em relação aos espaços
sociais em cujo interior elas se atualizam, contribuem para determinar as práticas.
Assim, nossas disposições herdadas na família dialogam com os espaços sociais e
vão transformando-se e ensejando outras percepções, novas práticas. Acerca disso, Costa
(2013) confirma que a constituição de um determinado habitus não se origina apenas da
vontade individual do agente, tampouco por imposição coercitiva da estrutura. Assinala que
resulta de
Toda herança cultural e social do indivíduo, segundo seus níveis de capital cultural,
obtidos na escola, que, relacionalmente, definem atitudes em relação à cultura e,
num jogo de aceitações e recusas – nas estruturas estruturadas e estruturantes
(habitus) –, que deliberam as disposições sociais (dentre elas o gosto) (COSTA,
2013, p. 13, grifos do autor).
De tal modo, compreendo que essas predisposições são formatadas
relacionalmente no diálogo com a pessoa e os arranjos sedimentados na estrutura.
Assim, neste trabalho, ao utilizar o diálogo entre história de vida e praxiologia,
elucido o processo que proporcionou não só me aproximar do campo, como também
descrever como me relacionei com as regras do jogo em cada espaço social (campo, ou
subcampo). Este trabalho tem como proposta trazer um estudo sobre minha constituição
23
docente. Nesse sentido, considero importante descrever que um habitus docente não acontece
instantaneamente, ou seja, no momento em que o professor está em sala de aula, mas resulta
de vários fatores antes desse encontro. Acrescento ainda que, após a experiência em sala de
aula, o docente (agente) continua desenvolvendo esse habitus.
Com essa compreensão, utilizo como meio de iluminação desta pesquisa os
conceitos de campo, habitus e capital simbólico, por entender que essas ideias norteiam o
caminho investigativo. Acerca do habitus, Bourdieu (1994, p. 6) esclarece que são
Sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar
como estruturas estruturantes, isto é, princípio gerador e estruturador das práticas e
das representações que podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser o
produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu dispor sem supor a
intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para
atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de
um regente.
Esse conceito ajuda-me a compreender o processo pelo qual incorporei o capital
necessário que adquiri no interior da estrutura e que orientou minhas disposições e escolhas
para lutar para inserção no campo acadêmico. Habilitou-me, também, a reproduzir esse capital
em outros espaços sociais.
2.2.2 Campo
No interior do campo, socializo capital simbólico herdado em ambientes sociais
anteriores; faço um investimento de tempo, força interna, disposição para aquisição; e
visualizo a possibilidade de ganho com a internalização desse capital. De tal modo,
compreendo que essas aquisições estão associadas a um espaço social, e, nesse sentido, é
importante descrever a visualização desse espaço ou campo no qual interagi e interiorizei
estruturas. Acerca do campo, Bourdieu (2005, p. 55, grifos do autor) descreve:
O efeito de campo exerce-se em parte por meio do confronto com as tomadas de
posição de todos ou de parcelas daqueles que também estão engajados no campo (e
são outras encarnações distintas, e antagônicas, da relação entre um habitus e um
campo): o espaço dos possíveis realiza-se nos indivíduos que exercem uma
“atração” ou uma “repulsão”, a qual depende do “peso” deles no campo, isto é, de
sua visibilidade, e da maior ou menor afinidade do habitus que leva a achar
“simpáticos” ou “antipáticos” seu pensamento e sua ação.
Assim, um campo é constituído após a atração entre os agentes que possuem um
mesmo habitus. Eles têm igual linguagem, e, com essa autonomia, são elaboradas as regras do
24
campo. Acerca do espaço em que os agentes esboçam as trajetórias, Albuquerque e Rogerio
(2012, p. 32) assim descrevem: “A noção de campo pode ser entendida como um espaço
estruturado onde os agentes orbitam. A força de atração entre os agentes decorre de habitus
semelhantes que geram interesses próximos e formas de compreensão da realidade similares”.
Na sequência, indico o percurso metodológico da pesquisa. Assim, no primeiro
momento, foi realizado um procedimento de coleta de dados mediante a escrita de minha
história de vida. No segundo, faço um estudo acerca do diálogo que realizei com diversos
espaços sociais em minha trajetória, conforme descrição a seguir.
2.3 Expedientes utilizados
Durante a escrita observei fotos e vídeos, buscando identificar aspectos que
pudessem dialogar com esta pesquisa. Procurei, também, conversar com minha progenitora à
procura de informações que me ajudassem a compreender a constituição do meu habitus
docente. Conversei, também, com diversos colegas egressos do Projeto Jaffé, que me
ajudaram a reconstituir alguns aspectos de que não me recordava, e ainda me forneceram
algumas fotos da época, que me fizeram reviver alguns momentos interessantes dos quais eu
nem me lembrava ou não sabia. Nesse sentido, compreendo que esse processo de
(re)memorizar é marcante para quem os vivenciou e fornece significados interessantes.
2.4 Meu encontro com a metodologia
Ao me aproximar da Faculdade de Educação (Faced) da UFC, encontrei
pesquisadores que trabalham com arte e utilizaram a metodologia história de vida em suas
pesquisas. Cito a professora Izaíra Silvino, que, durante sua defesa de dissertação de
mestrado, nos anos 1990, foi aconselhada a mudar a metodologia de seu trabalho porque um
membro da banca não reconhecia essa abordagem como método de pesquisa.
Mais tarde, em 2007, o professor Elvis Matos (2008) empregou em sua tese de
doutorado essa metodologia e não encontrou resistência por parte da banca. O professor e
poeta Henrique Sérgio Beltrão de Castro (2014), por sua vez, na tese de doutorado, encontrou
uma metodologia de pesquisa que contemplava a poesia.
Minhas vivências no doutorado, durante a participação nas disciplinas Educação,
Currículo e Ensino II – História de Vida e Praxiologia e Seminário Temático IV – História de
Vida, Habitus, Campo e Desenvolvimento, no eixo de pesquisa Educação, Currículo e
25
Ensino, orquestradas pelos professores doutores Luiz Botelho Albuquerque, Henrique Beltrão
e Pedro Rogerio, da Faced, bem como as conversas com meu orientador, fizeram-me
compreender que o uso dessas duas tradições de pesquisa, em meu estudo sobre formação
docente, proporcionaria um poder de ganho explicativo.
2.5 Revisão bibliográfica
Buscando compreender o atual estado da questão acerca da constituição do
habitus docente do professor de Música, fez-se necessário, a princípio, realizar um
mapeamento de alguns trabalhos relacionados com a formação do professor.
Nesse sentido, pude constatar que diversos estudos têm demonstrado preocupação
com a formação de professores, a exemplo dos de Masseto (2003), Hagemeyer (2004), Silva
(2010) e Franco (2013). Esses autores discutem alguns pontos relevantes na constituição do
docente, ressaltando, assim, aspectos como: o enaltecimento do saber específico em
detrimento do saber pedagógico; a interação entre professores no ambiente de trabalho
quando discutem acerca do que é necessário que os alunos aprendam; as estratégias utilizadas
para o desenvolvimento dos alunos; a reflexão sobre a prática de ensino do professor e sua
profissionalidade; a compreensão da construção da identidade dos docentes em ambiente de
trabalho na universidade; os rumos da educação e atuação do professor no cenário de
transformação moderno/pós-moderno; as probabilidades de ensino e aprendizagem no
panorama tenso e contraditório vividos na universidade contemporânea, entre outros temas.
Elenco também alguns trabalhos relacionados à formação de professores de
Música, como o de Pires (2004), Prates (2004), Gomes (2008), Bastião (2009) e Pereira
(2013). Esses autores apresentam aspectos relevantes da pesquisa em Música relacionados à
formação de professores, como, por exemplo, as dificuldades encontradas entre o interesse do
aluno e o universo do professor olhando para uma atuação profissional, o diálogo entre teoria
e prática no exercício da docência e o processo de escolha da profissão de professor de
Música, considerando o ambiente da licenciatura em Música.
Durante a escrita desta pesquisa, percebo que tanto na formação do professor de
forma geral como na formação do professor de Música encontro muitos aspectos que se
configuram apresentando uma mesma dificuldade. Com essa compreensão, direciono esse
apanhado bibliográfico, em diálogo entre a música e a educação, por entender que essas duas
áreas de estudos dialogam e se complementam no campo da educação musical. Visualizar
26
essa construção na elaboração dos trabalhos apresentados me aproxima cada vez mais do
entendimento do objeto de estudo. Assim, chego aos estudos mais específicos sobre a
constituição da docência em Música pela perspectiva do habitus segundo o proposto nos
estudos de Pierre Bourdieu.
Ao procurar uma bibliografia sobre a constituição do habitus do professor de
violino, não encontrei nenhuma pesquisa específica, a não ser alguns estudos que se
correlacionam com essa temática. Entre esses, destaco a pesquisa de Lehmann (2002), que
delineia o modo como as disposições musicais incorporadas pelo exercício instrumental
dialogam com disposições de classe herdadas pela família para encaminhar a trajetória e as
estratégias profissionais de músicos no contexto da orquestra sinfônica. Embora esse trabalho
não especifique a constituição da docência, é, contudo, bastante esclarecedor no sentido de
desvelar aspectos que são próprios de minha constituição como docente de Música.
Destaco também, nessa mesma direção, o trabalho de Fucci Amato (2008), que
analisa sociologicamente a constituição do ambiente familiar de músicos brasileiros eruditos e
populares, ressaltando o papel da família como primeiro ambiente de musicalização do
indivíduo.
Encontrei ainda autores que pesquisaram a vida de músicos famosos, no âmbito
internacional, nacional e local. Nesse sentido, menciono o trabalho de Elias (1995), que
investigou a trajetória do famoso compositor de música erudita Wolfgang Mozart. Guérios
(2011) fez o mesmo com o compositor brasileiro Villa-Lobos; Ramalho (2000), com Luiz
Gonzaga; e Pedro Rogerio (2011), com Roger Rogerio. Esses estudos me auxiliaram a olhar
para mim na perspectiva da trajetória de formação dos músicos e serviram de subsídios para
meu encontro com a docência nessa área.
Assim, aproximando-me mais ainda do contexto da constituição do habitus
docente musical, deparo-me com os estudos realizados no âmbito do programa de pós-
graduação da Faced/UFC, eixo Ensino de Música. Ressalto as pesquisas realizadas por Silva
(2009, 2016), Souza (2012), Benvenuto (2012) e Anjos (2015).
Em sua pesquisa, Benvenuto (2012) analisou o diálogo entre a matriz curricular
do curso de licenciatura em Música da UFC, em Fortaleza, e a constituição do habitus docente
incorporado pelos egressos do referido curso na escolha e prática profissional de professor de
Música.
27
A dissertação de Eddy Lincolln Freitas de Souza apresenta uma análise acerca do
campo violonístico e da constituição do habitus docente dos professores de violão. O estudo
investiga o percurso dos professores até ocuparem a posição de professores das instituições de
ensino superior (IES) no estado do Ceará.
O professor doutor Weber dos Anjos, em sua tese, procura compreender como se
constituiu o habitus docente de três educadores musicais e o diálogo com a cultura local na
região sul do estado do Ceará.
A professora doutora Maria Goretti Herculano Silva, em sua dissertação de
mestrado, ao olhar para a trajetória dos docentes do curso de Música da UFC, em Fortaleza,
procurou compreender a constituição do habitus docente. Já em sua tese, analisou as
narrativas de discentes do curso de Música da UFCA, buscando compreender os processos de
constituição do habitus docente nesses agentes.
28
3 SEGUNDO MOVIMENTO: MINHA INSERÇÃO NO CAMPO MUSICAL
Neste capítulo, narro minha história de vida, descrevo como se deu minha
inserção no campo musical e procuro compreender a constituição do meu habitus violinístico.
Nessa exposição, a subjetividade dialoga com as estruturas nas quais vivenciei o processo de
aprendizagem de música. Nesse mesmo sentido, essa descrição revela minha inserção no
campo. Com esse entendimento, ao olhar para minha trajetória de formação, desvelo aspectos
formativos desde a infância até me tornar professor do ensino superior.
Hoje estou na função de docente e, ao olhar para meu percurso de formação, foi
perceptível a constituição de múltiplos habitus: habitus violinístico, violista, docente. Esse
entendimento é percebido com suporte nas disposições de minha mãe, quando me incitou a
iniciar os estudos de Música em uma instituição. O diálogo com diversos espaços sociais
proporcionou-me o estudo de Música e estimulou-me a procurar uma graduação na área com
perfil de bacharelado. Também fui violinista e violista profissional de orquestra. Durante essa
elaboração, gradativamente, fui olhando para a docência e vivenciei uma licenciatura.
Explorei, também, o mestrado em práticas interpretativas na subárea Violino e nos dias de
hoje sou professor de uma instituição de ensino superior.
Ao ponderar a ideia de que a prática de ensino reflete uma elaboração anterior,
torna-se necessário considerar os aspectos que influenciaram essa edificação. Discutindo esse
procedimento de constituição do docente do ensino superior, as pesquisadoras Santos, Pereira
e Lopes (2014, p. 405), no resumo do artigo “A construção da identidade profissional entre
percursos e escol(h)as”, assinalam o seguinte:
Considerando a construção da identidade como um processo social, em constante
mutação, este artigo parte das vozes de professores de uma Faculdade de Ciências da
Educação de uma Universidade em Portugal para compreender a (re)construção das
suas identidades em diferentes espaços de suas vidas. Interessa conhecer momentos
anteriores ao exercício da docência universitária, como o contexto familiar, o
percurso escolar, a formação inicial e as experiências profissionais. Entre outros
objetivos, procuramos interpretar como estes momentos, que antecedem a docência,
podem influenciar o exercício da profissão e as suas preocupações, assim como
entender como esses espaços e experiências contribuem para a construção da
identidade do sujeito enquanto professor universitário.
29
Ao refletir a respeito dessa citação, compreendo que esse estudo é utilizado por
pesquisadores em outras partes do mundo, confirmando que o procedimento nele utilizado
traz reflexões pertinentes a essa (re)constituição.
Com essas considerações, ou seja, a reconstituição de minha identidade nos
espaços sociais por onde vivenciei saberes que me fizeram chegar à docência, faço um estudo
de minha trajetória, iniciando pelos aspectos percebidos na herança familiar.
3.1 Herança familiar
Por intermédio deste estudo autobiográfico, minhas primeiras disposições estão
associadas a minha herdade de origem familiar. Nasci em 1963, na cidade de Fortaleza, em
uma família proveniente de classe social menos favorecida. A profissão de meu pai era a de
motorista de ônibus; depois, com uma aposentadoria precoce, tornou-se motorista de táxi. Ele
cursou o que na época se conhecia como “ginásio”, hoje o equivalente aos 6º, 7º, 8º e 9º anos
do ensino fundamental. Minha mãe ocupava seu tempo com as atividades de dona de casa e
cabeleireira, em um bairro da periferia de Fortaleza. Cursou até o primário, que equivale, nos
dias de hoje, aos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º anos do ensino fundamental, e sua vida era dedicada à
família e ao lar. Eles não possuíam casa própria, consequentemente nos mudávamos com
bastante frequência.
Em 1975, quando morávamos no bairro Carlito Pamplona, minha mãe foi
convidada, por uma amiga do mesmo bairro, para participar de um curso de arte culinária no
Sesi da Barra do Ceará, que fica distante cerca de dois quilômetros da casa em que eu morava.
O Sesi proporcionava muitas atividades para seus sócios, como esportes, artes (música, balé)
e folclore (danças e músicas da região cearense). Durante suas visitas ao curso sobre arte
culinária, ela percebeu a existência de uma banda de música, um grupo musical composto
basicamente por instrumentos de sopro e de percussão, e, prontamente, interessou-se em me
matricular.
Nesse momento de minha vida, minha rotina era ir à escola, jogar bola (futebol) e
“bila” (bola de gude) com os colegas do bairro, entre outras brincadeiras. Quando minha mãe
apresentou-me a proposta de estudar música no Sesi, resisti com intensidade, pois, assim, em
vez de me dedicar às brincadeiras habituais da turma do bairro, teria de me ocupar com o
estudo de música. Minha progenitora, entendendo minha resistência, usou sua autoridade de
mãe e me obrigou a ir às aulas de música na banda do Sesi. O nome do maestro era João
30
Inácio, um senhor muito distinto, tenente do Exército e que havia comandado a banda do
Colégio Piamarta. Calmo, ocupava-se em animar os jovens ao estudo dos instrumentos da
banda.
Ao me apresentar no local de ensaio e estudos do grupo, o mestre da banda
ofereceu o instrumento com o qual eu iniciaria meus estudos, o “saxhorn” – instrumento de
sopro da família dos metais, que tocava notas repetidas durante a maior parte da música, no
contratempo dialogando com a tuba, que tocava no tempo forte do compasso. Esse
instrumento, no entanto, não me despertou interesse suficiente para que eu substituísse minhas
atividades lúdicas nos arredores de minha residência pela música. Apesar de minha
resistência, minha mãe continuava insistindo nessa “ideia”. Lembro que cheguei a chorar
algumas vezes para não permanecer na aula. Mas com a persistência de minha genitora,
continuei estudando música na banda.
É importante ponderar a noção de que meus pais não possuíam um capital
econômico que proporcionasse o pagamento dos meus estudos de Música em um
conservatório, ou mesmo de aulas particulares. Eles adquiriram, entretanto, considerável
capital social, a partir das relações com diversas pessoas do bairro e das circunvizinhanças.
Esse convívio proporcionou a minha mãe a entrada em uma instituição para participar de um
curso que possibilitou a ela o conhecimento do ensino de Música de modo gratuito,
despertando nela a ideia de me matricular.
Hoje, ao olhar para meu passado e observar meu processo de inserção no mundo
musical, percebo que esses aspectos ressaltados contribuíram para minha formação.
Compreendo, também, que a ausência de um capital financeiro no âmbito familiar não me
possibilitaria o estudo de Música. Nesse sentido, o Sesi me proporcionou uma educação
musical que me direcionou para esse campo. Ressalto, também, que minha família estava
inserida em uma sociedade que não possuía muitos recursos financeiros e/ou culturais, mas
tinha um determinado capital social que proporcionava uma rede de relações entre as famílias
de uma mesma classe social. Acerca do capital social, Pierre Bourdieu (2007, p. 67) comenta
que
O volume do capital social que um agente individual possui depende então da
extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar e do volume do
capital (econômico, cultural, ou simbólico) que é posse exclusiva de cada um
daqueles a quem está ligado.
31
A constituição desse capital social se deu, portanto, a partir de relações entre as
pessoas do mesmo bairro. E o movimento do volume do capital utilizado se dá pela posição
social que a pessoa ocupa. Ao comentarem a análise de Bourdieu a despeito do capital social,
Nogueira e Nogueira (2004, p. 51) expõem o seguinte:
O autor observa que os indivíduos podem se beneficiar dessas relações para
adquirirem benefícios materiais (um empréstimo, uma bolsa de estudo ou uma
indicação para um emprego, por exemplo) ou simbólicos (prestígio decorrente da
participação em círculos sociais dominantes). O volume de capital social de um
indivíduo seria definido em função da amplitude de seus contatos sociais e,
principalmente, da qualidade desses contatos, ou seja, da posição social (volume de
capital econômico, cultural, social e simbólico) das pessoas com quem se relaciona.
Com esse entendimento, compreendo que minha mãe, apesar de não ocupar um
poder nesse campo social (cabeleireira de um bairro), manteve uma relação social apreciável
com diversas pessoas do local e pôde beneficiar-se de informações que influenciaram tanto o
acesso ao curso de seu interesse como também a minha entrada no Sesi. Minha progenitora
não possuía um capital econômico favorável a grandes oportunidades, contudo ela adquiriu
um determinado capital social que lhe proporcionou perceber um novo panorama na
sociedade – a existência de uma instituição que proporcionava oportunidades para as pessoas
desse meio social.
Essa rede de relações impulsionou o início de minha formação. Nesse sentido, é
importante destacar que o agente de um determinado campo não surge do nada, como também
não se constitui solitariamente. A esse respeito, Nogueira e Nogueira (2004, p. 59), ao
analisarem a Sociologia da Educação de Bourdieu, acentuam que o agente
[...] não é um indivíduo isolado, consciente, reflexivo, tampouco o sujeito
determinado, mecanicamente submetido às condições subjetivas a que ele age. Antes
de mais nada, contrapondo-se ao subjetivismo, Bourdieu nega, da forma mais radical
possível, o caráter autônomo do sujeito individual. Cada indivíduo é caracterizado,
pelo autor, em termos de bagagem socialmente herdada. Essa bagagem inclui, por
um lado, certos componentes objetivos, externos ao indivíduo, e que podem ser
postos a serviço do sucesso escolar.
Com esse entendimento, é compreensível o fato de que o ser humano recebe
influência do meio social, no qual estabelece diálogos. Considero pertinente essa análise do
indivíduo com a sociedade, como no meu caso, em que fui herdeiro dos benefícios do capital
social conquistado por minha família, contribuindo, assim, para meu ingresso em uma
instituição social. Nasci em um lar com poucas chances de êxito escolar e, consequentemente,
32
sem chances profissionais. Apesar das dificuldades, meus progenitores investiram na
aquisição de um capital cultural intuitivamente, pois não imaginavam até onde eu poderia
ascender.
Minha progenitora possui pouco capital cultural escolar. Ela escreve as palavras
com muita dificuldade; entretanto, essa deficiência nunca foi um bloqueio para que eu
adquirisse um determinado capital cultural escolar. Lembro-me de certo dia em que eu estava
com dificuldades em Matemática, durante o período em que frequentava a escola, e não
conseguia resolver determinado cálculo. Ela não possuía conhecimento escolar que pudesse
me auxiliar, no entanto, naquele momento, saiu de casa e procurou uma pessoa habilitada que
me auxiliasse e pagou a hora-aula para que eu aprendesse aquele conteúdo. Como ela não
compreendia a linguagem matemática, providenciou uma pessoa (intermediário) que
decifrasse aqueles códigos, para que eu não ficasse desprovido daquele conhecimento.
Esse investimento realizado pela família é discutido por Lahire (1997). Ele debate
em seu livro Sucesso escolar nos meios populares o êxito escolar de crianças provenientes de
famílias pobres, observando que
Famílias fracamente dotadas de capital escolar ou que não o possuem de forma
alguma (caso de pais analfabetos) podem, no entanto, muito bem, através do diálogo
ou através da reorganização dos papéis domésticos, atribuir um lugar simbólico (nos
intercâmbios familiares) ou um lugar efetivo ao “escolar” ou à “criança letrada” no
seio da configuração familiar. Assim, em algumas famílias, podemos encontrar,
inicialmente, uma escuta atenta ou um questionamento interessado dos pais,
demostrando assim, para elas, que o que é feito na escola tem sentido e valor.
Mesmo que os pais não compreendam tudo o que os filhos fazem na escola e como
não têm vergonha de dizer que se sentem inferiores, eles os escutam, prestam
atenção na vida escolar deles, interrogando-os, e indicam, através de inúmeros
comportamentos cotidianos, o interesse e o valor que atribuem a essas experiências
escolares (LAHIRE, 1997, p. 343).
Os aspectos destacados por Lahire (1997) são evidenciados também por outros
autores. Eles entendem que algumas famílias possuem pouco capital escolar, mas têm
competências para municiar condições, de maneira que o aluno apreenda os códigos do
capital cultural escolar. Esses investimentos realizados por essas famílias são estimulados por
uma perspectiva de sucesso escolar. Famílias assim compostas são “famílias educógenas”
(CASTRO, 1976; ROSA; LORDÊLO, 2009; NOGUEIRA, 2011; SILVA, 2016).
Buscando compreender a relevância da família na formação de seus sucessores,
Rosa e Lordêlo (2009), os quais realizaram um estudo sobre os estudantes provenientes de
33
classes menos favorecidas, buscaram perceber os resultados atípicos, ou seja, o diferencial dos
discentes que conseguem êxito escolar. Os autores assinalam que
As estatísticas apontam que há sujeitos provenientes das classes populares que
apresentam trajetórias escolares bem-sucedidas. A suposição é que há famílias que,
contrariando as regras do paradigma proposto por Bourdieu, criam ambientes
favoráveis à educabilidade, [as quais] são chamadas de famílias educógenas (p. 26).
Tais características confirmam esse sucesso das famílias menos favorecidas
quando investem em seus filhos buscando uma ascensão social. Essa percepção é um olhar
para um estado específico de pessoas, uma minoria que consegue esse êxito, ou seja, as
“famílias educógenas”.
Já Bourdieu, ao investigar as bases de uma macroestrutura da produtividade
escolar de jovens franceses, aponta que as chances de as classes populares alcançarem sucesso
são pequenas. Ele defendeu o postulado de que as classes populares não se apropriam dos
códigos para decifrar os sinais dos bens simbólicos da escola para galgarem um sucesso
escolar. A despeito da obra de Bourdieu, Setton (2008, p. 1) descreve que,
No entanto, mesmo sendo reconhecida pela originalidade, a obra de Bourdieu é
objeto de grande controvérsia. A maior parte de seus críticos, numa leitura parcial de
seus trabalhos, classifica-o como um teórico da reprodução das desigualdades
sociais.
Ele percebeu que as estruturas de relações sociais investem em reproduzir e
manter o capital cultural e abstraem a possibilidade de proporcionar às camadas mais
populares a aquisição de um melhor capital cultural e social. Nessa mesma perspectiva, o
sociólogo assinala que,
De fato, a estatística de frequência ao teatro, ao concerto e sobretudo ao museu (uma
vez que, neste último caso, talvez seja quase nulo o efeito de obstáculos
econômicos) basta para lembrar que o legado de bens culturais acumulados e
transmitidos pelas gerações anteriores pertence realmente (embora seja formalmente
oferecido a todos) aos que detêm os meios para dele se apropriarem, quer dizer, que
os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos
como tais (ao lado das satisfações simbólicas que acompanham tal posse) por
aqueles que detêm o código que permite decifrá-los (BOURDIEU, 2003, p. 297).
O sociólogo francês esclarece que as relações das estruturas sociais não
contribuem para a aquisição de bens simbólicos pelas camadas populares. Essa pesquisa, um
estudo pioneiro, teve como fundamento uma percepção sobre a macroestrutura, ao analisar as
34
estatísticas de rendimento escolar, apontando os recursos “perversos e ocultos responsáveis
pelas desigualdades no aproveitamento e no rendimento de estudantes pertencentes a
diferentes grupos sociais” (SETTON, 2005).
Ao associar essas ideias com minha história, analisando a origem de uma classe
menos favorecida e o diferencial para que eu adquirisse um bom capital social/cultural, vejo
que isso decorre do investimento realizado por minha família (destacando minha mãe), ao me
proporcionar condições de acesso à cultura e à educação. Assim, posso assegurar que os
esforços de minha mãe possibilitaram uma continuidade na aquisição de um capital cultural
escolar, bem como favoreceram minha inserção em um ambiente de educação musical que me
aproximou de um instrumento.
3.2 Aprendendo a tocar violino
Nessa mesma época, estava conversando com amigos nas instalações do Sesi,
quando, de súbito, notei uma multidão dirigindo-se para o auditório da instituição. Ao nos
aproximarmos, buscando compreender o que estava acontecendo, descobrimos que era a
família Jaffé, uma família de instrumentistas, que se preparava para uma apresentação. O
objetivo do recital era atrair crianças e jovens que frequentavam o Sesi da Barra do Ceará para
iniciação musical por meio dos instrumentos de cordas friccionadas.
Essa iniciativa aconteceu em 1975, quando o presidente da Confederação
Nacional da Indústria, Thomás Pompeu de Souza Brasil Netto, tomando conhecimento do
trabalho de ensino coletivo desenvolvido por Jaffé, o convidou para iniciar, na cidade de
Fortaleza, o núcleo de formação de instrumentistas de cordas no Serviço Social da Indústria.
O primeiro passo para iniciação desse projeto foi um concerto didático no auditório do Sesi,
na Barra do Ceará, para apresentação dos instrumentos. Nessa apresentação, Jaffé e seu filho
Marcelo tocaram violino, seu primogênito Cláudio tocou violoncelo e sua esposa, Dayse,
contrabaixo. Muitos dos presentes ficaram impressionados ao ver pela primeira vez aqueles
instrumentos, que, na época, algumas pessoas só conheciam por meio do programa Concertos
para a juventude, apresentado semanalmente por uma rede nacional de televisão. Esse evento
era uma espécie de convite para aqueles que desejassem aprender os instrumentos de cordas.
Jaffé pressupôs que grande parte das pessoas se considerava inapta para aprender
um instrumento. Essa ideia está ancorada, em grande medida, no paradigma do talento. Sob
esse ponto de vista, apenas determinadas pessoas nasceriam com aptidão para a música
35
(SILVA, 2008). Procurando desmistificar esse paradigma, Suzuki (1994) advoga que talento
não deve ser visto como um acaso do nascimento, mas como tendências naturais que todos
podem desenvolver para o aprendizado.
Partindo dessa percepção, a ideia de Jaffé era estimular o interesse da audiência
para o aprendizado do instrumento, com a apresentação de sua família tocando em conjunto.
Essa estratégia, usada por Jaffé, é justificada por Boufleuer (2007), ao acentuar que todo
esforço pedagógico é divisado como um convite feito com a perspectiva de que ele seja
atendido. Os educadores são, no caso, os encarregados de apresentar o convite aos que estão
chegando, e, por conseguinte, o bom educador é aquele que consegue apresentar o convite de
maneira tal que obtenha a cumplicidade do convidado. Este caracteriza-se pela ação, pois não
pode ser passivo, para que o ato educativo possa, então, concretizar-se. Logo, aprender não se
constitui apenas em receber informações, mas em estabelecer novas percepções e elaborar
novos sentidos. Esse ato compõe um processo que resulta em nova ação, engajamento e
tomada de posição.
Nesse aspecto, o primeiro contato dos alunos com a didática do professor Jaffé
contribuiu para que eles percebessem a possibilidade de se tornarem futuros instrumentistas
de cordas. No núcleo de Fortaleza, a faixa etária para admissão era de dez a dezoito anos. Os
alunos foram selecionados por meio de teste que avaliava sua capacidade rítmica e auditiva. A
princípio, Jaffé e sua esposa emitiam uma sequência rítmica com batidas na mesa, que o aluno
deveria repetir. Em seguida, cantavam uma melodia, a qual o aluno deveria imitar no mesmo
tom.
É importante destacar o fato de que a maioria desses jovens eram filhos de
operários e tinham suas origens familiares nas classes populares (menos favorecidas). Esses
ouvintes que estavam no auditório, portanto, não possuíam um capital simbólico que
favorecesse as melhores condições para esse aprendizado. As famílias desses audientes não
possuíam condições financeiras para a compra de instrumentos ou partituras para seus filhos,
nem mesmo para o pagamento das aulas. Nessa época, ainda não estavam disponibilizados na
cidade de Fortaleza instrumentos de origem chinesa e similares que hoje estão acessíveis para
compra.
Outro ponto importante nesse panorama é o hábito familiar dessas pessoas
humildes para proporcionar uma educação musical por intermédio de instrumentos
considerados “elitizados”. Essas famílias não possuíam o hábito de frequentar teatros para
36
apreciarem a música de concerto e não tinham, também, condições de proporcionar aos seus
filhos a audição de músicas desse estilo no ambiente familiar. Como se deu a constituição de
um habitus instrumentista? Percebe-se que eles (alunos) teriam pouca oportunidade para a
aquisição desse novo capital, logo, qual seria o caminho para conquistar tantas crianças para o
aprendizado musical? Ao longo deste capítulo, respondo a esse questionamento.
3.3 Aplicação do método e repertório didático
Em minha dissertação de mestrado, foi possível compreender como se deu esse
processo de aprendizagem do violino, como também ocorreu o desenvolvimento da percepção
do diálogo entre os sons produzidos pelos instrumentos da família das cordas friccionadas.
Antes de continuar a descrição, é importante ressaltar que, nessa época, já se aproximava o
período em que eu necessitaria escolher uma profissão. Desse modo, simultaneamente, eu
aprendia um instrumento e refletia sobre meu futuro. Quando iniciei meus estudos musicais
com o violino, não pensava em profissão; entretanto, minha inserção no campo musical
incitou-me a visualizar um panorama e influenciou, em grande medida, as minhas futuras
escolhas. Nessa perspectiva, procuro descrever o processo de incorporação de um habitus
inicial violinístico, considerando também a constituição de um gosto profissional.
Na primeira aula de violino, observei que era proporcionado ao aluno o
conhecimento das partes integrantes de cada instrumento. Jaffé dava atenção a cada detalhe,
começando pelas cordas, com seus nomes e sons, e sendo numeradas das agudas para as
graves. Tendo como exemplo o violino: a mais aguda seria a corda Mi; a segunda, a Lá; a
terceira, a Ré, e a quarta corda é a Sol, como mostra a Figura 1.
Figura 1 – Cordas do violino
Fonte: Silva (2008).
37
De igual modo, na viola e no violoncelo, a mais aguda é a corda Lá, a segunda
corda é a Ré, a terceira é a Sol e a quarta é a corda Dó. No contrabaixo, a primeira é a Sol, a
segunda é a Ré, a terceira é a Lá e a mais grave, que é a quarta corda, é a Mi. Jaffé,
criteriosamente, apresentava as partes que compõem cada instrumento, como demonstradas
nas Figuras 2, 3 e 4, a seguir.
Figura 2 – Violino e viola
Fonte: Silva (2008).
Figura 3 – Violoncelo
Fonte: Silva (2008).
38
Figura 4 – Contrabaixo
Fonte: Silva (2008).
Essa ideia de mostrar as partes que constituem cada instrumento produzia no
aluno uma atração para os contatos iniciais com ele. Isso acontecia porque o aprendiz
começava a compreender cada parte do instrumento, bem como suas funções e manuseio.
Esse conhecimento era responsável pela maior familiarização do aluno com o instrumento
escolhido.
Em seguida, era mostrada a maneira de posicionar o instrumento junto ao corpo,
de modo que fosse proporcionado melhor ajustamento, buscando, assim, tornar seu
desempenho mais confortável. Jaffé ensinava que o violino deveria ser colocado sobre o
ombro e a mandíbula encaixada, acomodada na queixeira, e os alunos deveriam encontrar
uma posição adequada segundo sua estrutura corpórea. E assim, para cada instrumento, o
aluno recebia a devida instrução a fim de proporcionar boa e agradável execução.
Essa perspectiva, tão valorizada por Jaffé, de fazer com que o aluno ficasse
relaxado no momento em que executava o instrumento, é compartilhada por Cruzeiro (2005),
que observa, no contexto da execução de instrumentos musicais, o envolvimento de fatores
emocionais, cognitivos e motores. Assinala também que toda rigidez e qualquer imobilidade
de qualquer parte do corpo impedem movimentos naturais e causam desconforto.
As primeiras aulas eram voltadas para desenvolver uma familiaridade com o
instrumento. Inicialmente, formavam-se grupos de oito até dez alunos para aprender a segurar
39
o instrumento. Se um determinado aluno não conseguia e o outro tinha sucesso, isso servia de
estímulo para o que tinha dificuldade perceber que também poderia fazê-lo.
Jaffé utilizava, como princípio, as semelhanças dos instrumentos. Conseguiu unir
essas semelhanças para poder ensinar distintos instrumentos em um mesmo momento. Ou
seja, todos tinham corda Lá, portanto todos poderiam iniciar o treinamento de um mesmo
ponto de partida. Aplicando a mesma digitação, tocavam a mesma melodia. Tendo em vista
que se tratava de um método de iniciação para instrumentos de cordas, entende-se que essas
semelhanças constituem um modo de unir todos os quatro instrumentos em uma mesma sala
de aula.
A primeira melodia introduzida no Método Jaffé é composta de duas notas, como
sugere o próprio título: “Lá-Si-Lá”. Embora sejam apenas duas notas, elas estão combinadas
de maneira a sugerir ao executante que perceba a melodia como uma música e não apenas
como um exercício. Primeiro, o professor ensinava a melodia com uma letra para que fosse
cantada pelos alunos: “Lá – Si – Lá, Lá – Si – Lá, ouça o som do Lá – Si – Lá”.
Essa técnica desenvolvia no aluno duas habilidades simultâneas. Primeiro, ele
memorizava a melodia e, em um segundo momento, relacionava a letra da música com as
notas tocadas no instrumento4. O exemplo a seguir mostra a partitura dessa melodia, que é
tocada utilizando-se apenas a corda Lá.
Exemplo 1: “Lá-Si-Lá”.
4 A palavra Lá está associada à corda Lá, e a palavra Si, à mesma corda, com a digitação do primeiro dedo.
40
Seguindo-se a convenção de notação musical, a nota Lá está representada por um
zero, pois não há digitação; enquanto a nota Si é representada pelo número 1, visto que tem a
digitação do primeiro dedo. Ao ser indagado sobre a composição desse exercício, o professor
Jaffé relata: “[...] Lá – Si – Lá foi a forma que encontrei para colocar um dedo na corda. Não
acredito que possa me considerar autor”.
De acordo com a proposta de Jaffé, inicialmente a música é exercitada em forma
de pizzicato5. Tal escolha decorre da complexidade de movimentos requeridos para produzir
som com o arco. Para o iniciante, é mais fácil tocar em pizzicato. Tal complexidade é em
parte consequência da coordenação exigida no movimento da mão esquerda, dedilhando as
notas sobre as cordas, e da mão direita, executando o movimento de arco. Ao realizar o
pizzicato, no entanto, o aluno preocupa-se apenas com um desses movimentos para aprender a
dominá-lo. Depois que ele aprendia a tocar em pizzicato, o próximo passo era aprender a
utilizar o arco, sendo, assim, ensinado: com o dedo polegar na curva entre a almofada e o
talão; o dedo indicador acomodado na almofada do arco, na região da falange; o dedo médio,
na lateral do talão, assim como o anelar; e a ponta do dedo mínimo relaxada sobre a vareta do
arco, como mostra a Figura 5.
Figura 5 – Segurando o arco
Fonte: Silva (2008).
5 Tocando apenas com os dedos pinçando a corda.
41
Após os alunos dominarem essa técnica de segurar o arco, este é posto sobre a
corda. Nesse momento, o objetivo principal dos alunos é conseguir sincronizar o movimento
dos dedos da mão esquerda com o movimento do arco. A melodia executada é a mesma que
fora praticada na forma de pizzicato, no caso, na corda Lá. Cumprida essa etapa, o aluno é
então levado a tocar a música “Lá-Si-Lá”, buscando extrair dos instrumentos seus primeiros
sons com o arco. Jaffé entende que, quando o aluno vence cada etapa, ele se sente estimulado
a retornar para a próxima aula. Desde o momento em que os alunos dominam essa prática no
primeiro exercício, Jaffé aplica o mesmo exercício em outras cordas. Nessa ocasião, os alunos
utilizam a digitação do primeiro dedo e a corda solta, para que comecem a se familiarizar com
o instrumento. Observa-se que os alunos até esse ponto da aprendizagem ainda não decifram
os símbolos musicais e tocam pelo processo de ouvir, ver e repetir. O aluno torna-se
autoconfiante aos poucos, ao perceber que é capaz de tocar um instrumento.
Nas aulas seguintes, eram relembradas as anteriores, confirmando no aluno os
conhecimentos aplicados sobre postura, digitação e a técnica de segurar o arco. Essas
habilidades não são desenvolvidas rapidamente, pois requerem tempo e prática. Nesse caso
específico, o processo tornava-se ainda mais lento, porque os alunos não possuíam
instrumento próprio. Para compensar essa deficiência, Jaffé ministrava de três a quatro aulas
por semana.
Os dois próximos exercícios receberam de Jaffé os títulos de “Maria Chinesa” e
“Maria Japonesa”. A escolha dessas melodias é assim justificada pelo professor: “Maria
Chinesa e Maria Japonesa são partes de melodias muito conhecidas, usadas para desenhos
animados, o que me animou para incentivar os alunos com melodias familiares para eles”.
Completa ainda: “Não há nenhuma razão especial para a escolha desses nomes. Foi o primeiro
nome que me surgiu. Uma era para ensinar o Dó natural e a outra, o Dó sustenido. Achei que
as melodias tinham um toque oriental”6.
Exemplo 2: “Maria Chinesa”.
6 Informação verbal. Entrevista, via correio eletrônico.
42
Nessa melodia, o aprendiz acrescenta o segundo dedo, articulando o mais próximo
possível do primeiro dedo. Ainda na corda Lá – a nota Si digitada pelo primeiro dedo e a nota
Dó digitada pelo segundo dedo –, demonstrava-se o intervalo de semitom. Essas duas notas
devem ser digitadas com os dedos juntos. A falta de flexibilidade dos dedos e a rigidez da
mão esquerda geravam dificuldade em posicionar o segundo dedo junto do primeiro e nem
sempre se conseguia colocar os dedos tão juntos. Essa dificuldade é observada apenas no
violino e na viola. Provavelmente esse é um dos motivos que levam vários professores a
iniciar o aprendizado da digitação com o segundo dedo no Dó sustenido, promovendo assim
uma situação mais confortável para o aluno.
Quando Jaffé observava alguma dificuldade dos alunos em juntar os dedos para a
execução da música, usava de seu bom humor para incentivá-los. Ele costumava dizer: “tem
que deixar os dedos vizinhos, colados”7.
Superada essa dificuldade de flexibilidade dos dedos e, por conseguinte, a
execução desse segundo exercício, partia-se para a próxima música, “Maria Japonesa”.
Exemplo 3: “Maria Japonesa”.
7 Relato do autor como participante da experiência com o professor Jaffé.
43
Nessa melodia, diferente da anterior, no violino e na viola, o segundo dedo é
digitado afastado do primeiro, pois o intervalo entre as duas notas é de um tom. Já no
violoncelo e no contrabaixo, esse intervalo é representado entre o primeiro e o terceiro dedo.
O exercício que se seguia era “Barquinha ligeirinha”. Segundo Jaffé, o objetivo
dessas pequenas melodias era colocar cada um dos dedos na corda. Nessa música, exercitava-
se o acréscimo do terceiro dedo no violino e na viola e do quarto dedo no violoncelo e no
contrabaixo.
Exemplo 4: “Barquinha ligeirinha”.
44
A aplicação dos exercícios era feita em duas etapas. Na primeira, Jaffé ensinava as
músicas por naipes, ou seja, cada instrumento separadamente; em seguida, reunia toda a
família das cordas e praticavam juntos. Até então os alunos estudavam ouvindo o bloco
sonoro de seu naipe de instrumento. A seguir, com a reunião de todos os instrumentos de uma
orquestra de cordas tocando ao mesmo tempo, eles ouviam a sonoridade característica,
constituída de sons graves e agudos.
A grande vantagem desse procedimento é que, no lugar de ouvir o som precário
que os principiantes geralmente produzem individualmente, os alunos ouviam na massa
sonora um som mais agradável. Jaffé acreditava que essa percepção servia como uma espécie
de estímulo para que não desanimassem. Assim, os alunos progrediam juntos até o ponto de
dominar a técnica do instrumento o melhor possível dentro de suas capacidades.
É importante ressaltar a noção de que o método é aplicado para alunos iniciantes,
portanto eles estão em um decurso de aprendizado e ainda não estão aptos a identificar
desafinações com precisão. Essa habilidade deve ser desenvolvida no ensino individual,
quando poderão melhorar a própria afinação e a sonoridade.
A próxima música era uma canção infantil francesa, também utilizada no método
Suzuki, com o título de “Ah ! vous dirai-je maman” (“Twinkle, twinkle, little star”; “Brilha,
brilha, estrelinha”).
Exemplo 5: “Ah ! vous dirai-je maman”, em uníssono.
45
Nessa melodia, o aluno emprega também a digitação dos três primeiros dedos.
Diferentemente das músicas anteriores, nessa peça, porém, o aluno trabalha em duas cordas e
todos tocam em uníssono. Na próxima etapa desse processo, o tema trabalhado no exercício
anterior é orquestrado em várias vozes. A figura rítmica continuava sendo a mesma, porém as
notas eram diferentes.
Exemplo 6: “Ah ! vous dirai-je maman”, polifônico.
Nesse momento, os aprendizes não tocavam mais em uníssono, mas com uma
diversidade de sons com a qual não estavam acostumados. Com efeito, cada naipe tocava em
uma parte diferente. Se, no princípio, todos tocavam as mesmas notas, nesse momento, e pela
primeira vez, Jaffé iniciava a diversificação de vozes. Não havia mais uma única voz e sim
uma grande massa sonora, harmoniosa, formada por várias vozes. Embora Jaffé aplicasse os
46
exercícios anteriores em outras cordas além da corda Lá, que era comum aos instrumentos,
nesse tema, os alunos tocavam em outras cordas pela própria necessidade da música.
O exemplo a seguir, “A carruagem”, é uma melodia tradicional americana que
tem como objetivo praticar a articulação e também a mudança de corda.
Exemplo 7: “A carruagem”.
47
Percebia-se a dificuldade que tinham os estudantes de praticar esse exercício,
visto que pela primeira vez os aprendizes utilizavam a prática de mudança de corda, a qual
exigia um pouco mais de habilidade. Embora houvesse dificuldade, o ânimo de tocar o
instrumento estava nesse momento muito aguçado e havia um esforço muito grande por parte
dos alunos em superar tais dificuldades. Considerando que o movimento de braço para a
execução da mudança de corda necessitava de treino, o professor Jaffé intensificava essa
prática. Quando seus alunos compreendiam e dominavam o movimento de mudança de corda,
outros exercícios eram aplicados para desenvolvê-los no domínio do instrumento. O exemplo
a seguir foi criado pelo professor Jaffé para desenvolver arcadas.
Exemplo 8: “O arqueiro”.
48
O exercício demonstra como Jaffé abordava a técnica de arco. Durante as aulas,
ele fazia variações na arcada, alternando notas ligadas com notas soltas para desenvolver a
técnica de arco. A prática era assim trabalhada:
1) praticava-se com todas as notas soltas;
2) com duas notas ligadas e duas soltas;
3) com duas notas soltas e duas ligadas;
4) com uma nota solta, duas ligadas e uma solta;
5) de quatro em quatro ligadas.
A fase seguinte do método trabalhava melodias tradicionais de alguns países e
também músicas do repertório erudito. São arranjos para orquestra de cordas com um maior
grau de dificuldade do que até então havíamos vivenciado. Cito, por exemplo, o tema da
sinfonia “Novo mundo”, do compositor Antonín Dvořák; “A caça”, de Nicolo Paganini; do
tema da “Barcarolle”, de Offenbach; da “Marcha nupcial”, de Mendelssohn, entre outros. Na
imagem seguinte, exemplifico essa prática por meio da música “A caça” (“The hunt”), versão
facilitada da melodia de uma música para violino solo do compositor Niccolo Paganini.
Figura 6 – “A caça”
Fonte: Jaffé Strings Program.
Na sequência, a versão original dessa mesma peça, que traz elevado grau de
dificuldade técnica. A peça exige um domínio da técnica de cordas duplas, técnica de arco
49
sofisticada, executada apenas por instrumentistas de alta performance. Portanto, é exigido do
violinista uma performance experiente e qualificada para a execução dessa melodia, como
mostra a imagem da Figura 7.
Figura 7 – “A caça”
Fonte: Arquivo pessoal.
Na Figura 8, apresento outro exemplo de música com uma versão facilitada do
repertório da música erudita.
Figura 8 – Tema da sinfonia “Novo mundo”
Fonte: Método Jaffé.
50
Nessa versão, o aluno iniciante poderá tocar a melodia sem grandes dificuldades.
É o tema de uma sinfonia muito conhecida no mundo da música erudita. Reproduzir no
violino essas melodias que fazem parte do repertório da música de concerto tinha um
significado especial, ou seja, o de se apropriar de algo que até então só era visto na televisão.
Com efeito, minha experiência musical ia me aproximando de uma vivência mais
sofisticada da prática de orquestra. É perceptível que o professor Jaffé escolhia um repertório
baseado na música de concerto. Desse modo, o olhar dos estudantes do Projeto Jaffé
direcionava-se para um gosto musical proporcionado pela música erudita. Cada etapa desse
aprendizado me direcionava para uma futura escolha na área da música em especial, uma
carreira violinística. Apesar de todo esse aprendizado, até esse momento de minha vida ainda
não era claro que uso seria feito de todo esse conhecimento musical.
Outro aspecto importante nesse processo de formação é a minha participação em
festivais de música, que destaco a seguir.
3.4 Festivais de música
Durante minhas vivências de aprendizado no Sesi, foi-me proporcionado também
a participação em festivais de música. Destaco os festivais na cidade de Teresópolis, no Rio
de Janeiro, nos anos de 1978 e 1979, como também o Festival de Campos do Jordão, em São
Paulo, em 1980.
Em 1978, em Teresópolis, tive o prazer de conhecer o responsável pelas aulas de
violino, o violinista Santino Parpinelli, um senhor simpático e que conhecia com
profundidade a técnica do violino. Ele sempre nos incentivava ao estudo desse instrumento
com belas palavras sobre o violino, apresentando a técnica violinística e tocando para nós.
No ano seguinte, em 1979, retornamos para participar de outra edição do festival
de Teresópolis e reencontramos o professor Parpinelli. Em uma das aulas, cheguei cedo e,
conversando um pouco com ele, perguntei se ele não teria um violino para me presentear. Ele
disse que ia pensar e depois responderia. No dia seguinte, meus amigos me informaram que o
professor Parpinelli havia perguntado por mim. Fui ao seu encontro e lá estava ele com o
violino para me presentear. Era um violino francês de marca Jeronime Thibouville. Ao
receber a notícia, meu coração disparou. Indescritível foi a sensação vivida naquele momento.
51
Junto com o violino estava uma carta8 para meus pais, aconselhando-os a me incentivarem a
continuidade do estudo desse instrumento, afirmando que eu possuía talento. Quando retornei
a Fortaleza, mostrei o violino e a carta para minha mãe. Ela ficou muito emocionada e chorou.
Considero importante ressaltar esse acontecimento relacionado ao violino, porque
o Sesi não permitia que os alunos do Projeto Jaffé levassem os instrumentos para casa. Além
das aulas, a prática individual com o instrumento musical era realizada no prédio da
instituição. Com a aquisição do violino, foi possível praticá-lo por mais tempo, e posso
descrever também que a responsabilidade/o estímulo em prosseguir no aprendizado da técnica
do violino aumentou em grande medida.
Destaco, ainda, que o professor Parpinelli me fez o convite para estudar com ele
no Rio de Janeiro; entretanto, minha mãe não permitiu. Na época, eu ainda não havia
alcançado a maioridade, devendo seguir ainda as decisões orientadas por ela. Sua justificativa
para não permitir minha ida para estudar violino na capital fluminense foi a distância entre as
duas cidades (cerca de 2.500 quilômetros), o que, consequentemente, me deixaria muito
tempo afastado dela.
Parpinelli, esse distinto senhor, na época do festival era um renomado professor
de violino da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Esse destaque é lembrado pela
universidade, quando, recentemente, fez uma homenagem póstuma a ele, como mostra a
Figura 9.
Figura 9 – Cartaz de evento em homenagem a Santino Parpinelli
Fonte: <www.aexpemufrj.com.br>.
8 Infelizmente essa carta não foi mais localizada entre meus pertences.
52
Esses professores, ao fazerem parte de nossa trajetória, nos deixam profundo
legado em relação à música. No meu caso, sou agradecido por sua contribuição na minha
inserção no meio musical profissional e acadêmico.
O ano de 1980 foi importante na minha vida. Chegava, então, o ano em que eu
deveria tomar uma decisão acerca da profissão que eu deveria seguir – provavelmente, por
toda a minha vida. Estava no 3º ano científico, correspondendo, nos dias de hoje, ao 3º ano do
ensino médio. Durante a elaboração desta tese, voltei a perguntar a minha mãe sobre os
encaminhamentos e questionamentos que me envolviam naqueles difíceis dias de tomada de
decisão. Ela me relatou que continuava a me incentivar no caminho da música; entretanto,
lembra-se de que meu pai aconselhava que eu procurasse me envolver no concurso para
funcionário do Banco do Brasil ou tentar o curso de Direito e me transformar em um futuro
advogado.
No mês de julho desse mesmo ano, fui contemplado com uma bolsa de estudo
para o Festival de Música de Campos do Jordão. Durante esse evento, tive a oportunidade de
participar de uma orquestra de alunos sob a regência do famoso Eleazar de Carvalho. Foi um
período enriquecedor do ponto de vista de um músico instrumentista que olhava para um
futuro exercendo um papel de músico de orquestra, pois a prática em uma orquestra, naquele
momento, orientava minhas escolhas.
Durante o festival, as apresentações musicais que aconteciam no início da noite
influenciaram-me bastante como aspecto norteador nesse momento de minha vida. Tive a
oportunidade de assistir ao vivo e bem próximo de onde eu estava sentado o violinista do alto
escalão da performance, Salvatore Accardo 9 . Assistir a esse ilustre violinista deixou
profundas marcas em meu aprendizado por contemplar sua fabulosa técnica de arco,
interpretando o concerto para violino e orquestra em Ré Maior de Ludwig van Beethoven com
a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). A orquestra ainda tocou a abertura da
opera “O Guarani”, do compositor brasileiro Carlos Gomes, que acelerou meus batimentos
cardíacos pelo harmonioso diálogo entre os naipes dos metais e das cordas friccionadas,
proporcionando uma bela e rara estética musical.
Assim, ao internalizar um habitus violinístico inicial, mediante aquisição do
capital cultural (partituras, aspectos técnicos do violino), gradativamente, fui me habilitando a
9 Um solista técnico e brilhante conhecido mundialmente por sua performance instintiva.
53
compreender a linguagem desse campo musical. Desse modo, foi possível apreciar as aulas de
violino, as apresentações musicais, e aplicar esse conhecimento em minha elaboração
musical. Nesse sentido, posso garantir que a experiência no Projeto Jaffé e a participação em
festivais de música foram importantes para minha inserção no campo da música. De tal
maneira, ao discutir essas questões do diálogo entre um agente e um campo, Martins (2004,
p. 2) esclarece que:
Quanto ao ganho cognitivo que tal teoria oferece, ele pode ser visto como uma
tentativa de evidenciar que ali onde pensávamos que havia um sujeito livre, agindo
de acordo com sua vontade mais imediata, na verdade o que existe é um espaço de
forças estruturado que molda a capacidade de ação e de decisão de quem dele
participa.
As emoções vivenciadas nas diversas apresentações musicais, que influenciaram
minha decisão de seguir esse caminho como profissão, não aconteceram de súbito, foi um
decurso gradativo. Com esse entendimento, a citação ajuda-me a compreender o diálogo que
travei com os espaços sociais onde experimentei o aprendizado em música. O curso de violino
no Sesi, como também os festivais de música depositaram em meu interior um saber musical
que orientou minhas práticas. Em outras palavras, “a sociedade torna-se depositada nas
pessoas sob a forma de disposições duráveis e propensões estruturadas para pensar, agir, que
então as guiam em suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações de seu meio
social existente” (COSTA, 2013, p. 13).
Em uma época em que meu interior encontrava-se tempestuoso acerca do caminho
a seguir após o término do ano escolar, a teoria do campo e do habitus de Bourdieu esclarece
o processo de como fui (agente) me inserindo no campo musical.
Ao descrever essa realidade de aprendizado musical por intermédio dos festivais,
considero pertinente dialogar também com a tese do professor Pedro Rogerio (2011, p. 30,
grifos do autor), da UFC, que discute o deslocamento físico realizado pelo músico por meio
das viagens. Ele afirma que
A questão social que se move se dá em termos de socialização, ou seja, no desafio
de conviver com um habitus diferente daquele que lhe é familiar (e isso gera
aprendizagens). Nessa perspectiva a imbricação com a mobilidade espacial é
inevitável. É possível identificar a questão da “mobilidade social” como espaço de
trocas.
54
Ao conviver com professores e alunos de outras regiões do país, pude perceber
que o conhecimento técnico violinístico que praticávamos estava aquém do exercitado pelos
violinistas (professores e alunos) com os quais convivíamos nos festivais. Apesar do meu
distanciamento técnico instrumentista em relação ao cenário apresentado pelos artistas nesses
festivais, minha presença nesses eventos me motivava a procurar alcançar um nível mais alto
na performance do instrumento.
Esse espaço de convivência e de trocas despertou também em mim a necessidade
de realizar escolhas, tomar decisões. O contato com o aprendizado do violino, da prática de
orquestra no Projeto Jaffé, da prática de orquestra nos festivais de música e a presença
frequente em concertos durante os festivais desenvolviam em meu interior um habitus
violinístico. Ao comentar acerca dos conceitos de campos, habitus e capitais, Rogerio (2011,
p. 42) esclarece:
O Habitus – na qualidade de uma lente de leitura do mundo organiza e orienta as
escolhas, as práticas dos agentes – é um sistema de disposições que se fomenta em
um espaço social estruturado; também é possível verificar que são essas práticas
estruturadas que estruturam o espaço social em campos de atuação diferenciados,
que se distinguem conforme a estrutura (volume e distribuição de capitais).
Dependendo do campo social em que o agente desenvolve sua trajetória, suas
práticas serão mais ou menos valorizadas. Logo, podemos afirmar que habitus,
campo e capitais são homologamente estruturas estruturadas e que as práticas
advindas desse habitus são, também, estruturas estruturantes do campo e dos
capitais.
Ao refletir sobre a citação, lembro-me de que as experiências vivenciadas em
festivais me faziam perceber que em Fortaleza tínhamos a impressão de que o capital cultural
acumulado era volumoso, aprofundado acerca da prática no instrumento; entretanto, ao
observar outros instrumentistas, pude verificar que tínhamos pouco capital cultural. Assim, ao
ser inserido em um campo musical proporcionado pelos festivais, foi possível notar que, para
alcançar um nível técnico violinístico e tocar em uma orquestra profissional, era necessário
migrar para outras regiões mais desenvolvidas no mundo da música.
Até esse ponto de minha trajetória, eu havia adquirido um determinado capital
cultural, distribuído em dois dos três estados. O capital cultural incorporado mediante um
trabalho de inculcação e de assimilação através das aulas de violino, dos ensaios e das
apresentações musicais na orquestra, como também de minha prática individual. Adquiri,
também, um capital cultural objetivado quando ganhei do professor Parpinelli um instrumento
musical e obtive partituras fornecidas pelo Sesi e pelos festivais dos quais participei. Embora
55
não houvesse adquirido o capital cultural institucionalizado (diplomas e/ou certificados na
área de Música), esse investimento habilitou-me a prosseguir estudos na área de Música,
prestando vestibular para o curso de bacharelado em Música da UFPB. Ressalto, ainda, que o
bacharelado exige o teste de aptidão e, sem os conhecimentos prévios adquiridos, eu não
estaria habilitado a participar do processo de seleção.
3.5 Formação de um habitus violinístico
Antes de exibir minhas primeiras experiências na universidade, considero
importante demonstrar a constituição do meu habitus violinístico que me proporcionou
condições de concorrer a uma vaga no bacharelado em Violino.
Ao olhar para minha história de vida, compreendo que o habitus na condição de
um sistema de disposições não é desenvolvido de súbito. Esse processo é empírico, ou seja,
baseado na experiência de socialização do agente. Nesse caso, é importante ressaltar que “as
práticas dos agentes, no entanto, não serão ações mecânicas produzidas pelas estruturas
sociais” (BRANDÃO; ALTMANN, 2002, p. 7).
Como já mencionei, minha progenitora não possuía conhecimentos musicais, mas
me incitou ao estudo da música. Assim, o Sesi foi o primeiro ambiente social que me
proporcionou conhecimentos musicais. Essa instância de formação propiciou ao professor
Jaffé as condições necessárias para a educação musical por meio dos instrumentos de cordas
friccionadas, como as instalações e a aquisição de instrumentos (violino, viola, violoncelo e
contrabaixo).
Enfatizo, também, o fato de que esses instrumentos são utilizados, geralmente, por
uma sociedade elitizada, e sua produção musical concede ênfase à realização de peças
musicais produzidas pela música de concerto, acontecendo, na maioria das vezes, em
ambientes fechados, como teatros, auditórios e igrejas. Nesse sentido, as pessoas que
frequentam esses lugares, em regra, são de classe social mais elevada. Isso acontece porque
aqueles que frequentam esses espaços compreendem, em certa medida, os códigos desse
discurso musical. Sendo assim, entendo que o público apreciador (o gosto musical) dessa
produção artística, ao longo do tempo, foi cultivado por uma camada da sociedade detentora
de considerável capital financeiro. Ao analisar o gosto musical, Costa (2013, p. 14, grifos do
autor) expressa:
56
[...] O “gosto” musical como mira, este não pode ser visto apenas como uma
subjetividade direta, mas, também, como uma objetividade interiorizada, isto é, com
um quantum de ação, contudo, também condicionado pela estrutura social. Em sua
obra douta no assunto – A Distinção – Bourdieu já nos mostra que o chamado
“gosto” não é um privilégio natural, mas sim, resultado do processo geral de
educação, seja ligado à instrução formal, seja ligado à herança cultural familiar.
É possível observar, na análise do autor, que a formação do gosto musical para a
música de concerto é proporcionada pelas oportunidades ocorridas desde a família e/ou de
uma instituição social. Nesse sentido, a maioria dos alunos adentrados ao projeto Jaffé não
havia herdado, de seus familiares, um capital cultural que favorecesse ou reconhecesse esse
tipo de conhecimento. A maior parte deles tinha origem familiar humilde e, por conseguinte,
não podia acessar os códigos desses saberes musicais.
Na época do Projeto Jaffé, não havia em Fortaleza escolas de música que
ofertassem o ensino desses instrumentos e o ambiente de apreciação para a música de
concerto, como, por exemplo, apresentações musicais de orquestras ou grupos instrumentais.
Assim, o espaço musical não favorecia o estudo de música baseado nesses instrumentos
musicais (cordas friccionadas), e nem, portanto, a aquisição desse capital cultural. Desse
modo, a formação do gosto musical para a música de concerto destinava-se às famílias
possuidoras de um determinado capital financeiro, que teriam acesso a concertos em outras
cidades, aquisição de mídias sonoras, ou maneira outra de áudio proporcionado pela época.
Assim, entendo que a música de concerto era compartilhada por determinada classe social
com um médio ou alto poder aquisitivo.
É compreensível, também, que o aprendizado musical requer do aluno um capital
financeiro que proporcione a compra de instrumentos, materiais (partituras, estantes de
partitura, livros etc.) e o pagamento de aulas de música por um período para que o aluno
adquira, então, um determinado capital cultural. Nesse sentido, os aprendizes do professor
Jaffé teriam poucas chances de se apropriar do aprendizado musical, visto que a aquisição
desse capital cultural dependeria dos demais capitais simbólicos disponibilizados por seus
familiares. Daí minha compreensão de que existem muitas dificuldades, as quais posso
chamar de “barreira”, entre uma classe social de origem popular e o acesso à arte. Ao refletir
sobre essas questões de acesso ao capital cultural da arte, reporto-me a Heindrich (2008, p. 76,
grifos do autor), quando diz:
Bourdieu entende isso como sendo um “sistema de disposições duráveis”, uma
“estrutura estruturada e estruturante”, ou seja, um conjunto coerente de capacidades,
57
de hábitos e de marcadores corporais, que forma o indivíduo pela inculcação não
consciente e a interiorização de modos de ser próprios do meio. Sem essa noção,
seria difícil aprender o que faz a verdadeira “barreira à entrada” nos locais de
cultura: não tanto uma falta de meios financeiros nem mesmo, às vezes, de
conhecimentos, mas a falta de naturalidade e de familiaridade, a consciência difusa
de “não estar no seu lugar”, manifestada nas posturas do corpo, na aparência do
vestuário, no modo de falar ou de se deslocar.
Associando a ideia da autora à iniciação musical instrumental, posso afirmar que
o Sesi criou condições de acesso à arte para os “sesianos” da época do Projeto Jaffé em
Fortaleza. Essas pessoas não possuíam condições de adquirir um capital cultural, pois
dependeriam de um capital financeiro de suas famílias. É alcançável, também, a noção de que
a instituição proporcionou a esses jovens possibilidades de incorporar um habitus
instrumental, quando permitiu, gratuitamente, tanto os materiais como as aulas ministradas
pelo professor Jaffé.
A primeira iniciativa encontrada por Jaffé para incentivar os ouvintes à prática
musical foi a apresentação que fez com sua família. Essa ação dialoga com a proposta de
Heindrich (2008), no sentido de identificar que a produção sonora apresentada no auditório do
Sesi não era tão familiar para o público. Aqueles ouvintes receberam, contudo, as primeiras
impressões sonoras e, de tal maneira, foram seduzidos ao estudo do instrumento pela
apreciação do belo. Segundo Coker (1972, p. 149), “A música, acima de tudo, dirige-se a
ouvintes ou intérpretes, e é concebida para nos atingir”. Um semiólogo musical alemão
escreveu que “existe uma associação fértil entre a intenção, a estrutura da obra e as
expectativas do ouvinte” (STOCKMANN, 1970, p. 254). Ainda sobre o belo musical,
Hanslick (2011, p. 40) explica:
É algo de especificamente musical. Entendemos por ele uma beleza que,
independente e não carecida de um conteúdo trazido de fora, radica unicamente nos
sons e na sua combinação artística. As relações significativas de sons, em si
atractivos, a sua harmonia e contraposição, o seu fugir e o seu alcançar-se, o seu
elevar-se e o seu apagar-se – eis o que se apresenta à nossa intuição espiritual em
formas livres e o que nos agrada como formoso.
Nesse caso, entendo que a música tem esse poder de apresentar aos seus ouvintes
uma rica quantidade de percepções por intermediação dos sons, ou seja, melodias constituídas
de notas sucessivas agudas e/ou graves, harmonias com diversas combinações de notas e uma
determinada quantidade de ritmos. Esses elementos expressam diversos sentimentos; a
58
apreciação dessas relações significativas de sons impressiona o espírito, a mente e o corpo e
independe da compreensão desses aspectos musicais.
Muszkat, Correia e Campos (2000) explicam tal fato ao assinalar que a música
tem a possibilidade de alcançar várias sensações de um grupo integrado de percepções. Entre
elas, a visual, a do gosto, do olfato e a proprioceptiva10, que controlam nossos impulsos,
nossas emoções e nossas motivações. Gainza (1977) descreve muito bem esse processo de
assimilar os conhecimentos musicais vindo a princípio do externo, seja do professor, seja do
ambiente onde o aluno convive, ou seja, até mesmo, dos alunos na sala de aula naquele
momento. Acrescenta, ainda, que
A música, o ambiente sonoro – exterior ao homem – ao entrar em contato com as
zonas receptivas deste (sentidos, afetos, mente) tende a penetrar e internalizar-se,
induzindo um mundo sonoro interno (reflexo direto, ou representação daquele) que
por sua vez tenderá naturalmente a projetar-se em forma de resposta ou de expressão
musical (GAINZA, 1977, p. 22).
Os ouvintes internalizaram essas sensações por meio da bela sonoridade
produzida por Jaffé e sua família. Assim, foram seduzidos ao estudo dos instrumentos
musicais e inseridos no campo da educação musical/música instrumental.
É importante lembrar que as impressões causadas em meu interior ao ouvir pela
primeira vez a família Jaffé são diferentes daquelas quando ouvi o violinista Accardo e a
Osesp. No último caso, havia experimentado saberes violinísticos no Projeto Jaffé e, por
intermédio de uma dimensão motora, cognitiva, afetiva e ético-política, internalizei uma
prática violinística que intitulo de habitus violinístico. Essas vivências fizeram-me
compreender de modo mais sofisticado o discurso musical, a técnica violinística, entre outros
aspectos. Hoje entendo que, mediante esse aprendizado, tive acesso a um capital cultural que
me deu a oportunidade de entrar na academia.
Um aspecto importante que volto a destacar aqui é a aquisição de meu primeiro
violino, presenteado pelo professor Santino Parpinelli que, ao me observar, procurou investir
em minha carreira violinística. Essa aquisição foi importante, porque, além de me
proporcionar o uso, em casa, do instrumento musical para estudos individuais, contribuiu
também para meu ingresso no bacharelado em Violino, pois a UFPB não disponibilizava
instrumentos aos alunos. Nesse sentido, adquiri um capital cultural incorporado por meio das
10 Proprioceptiva é a sensibilidade própria aos ossos, aos músculos, aos tendões e às articulações, que fornece
informações sobre a estática, o equilíbrio, o deslocamento do corpo no espaço etc.
59
práticas nas salas de aulas de violino e nos estudos particulares e um capital cultural
objetivado pela aquisição do violino. Nota-se que, sem a aquisição do capital cultural
incorporado, o capital objetivado (o violino presenteado) não teria objetivo.
Com a aquisição de um capital cultural objetivado, ou seja, materializado, foi
possível nos espaços de aprendizagens compartilhar saberes musicais relativos à
aprendizagem sobre aquele instrumento. Essa aquisição permitiu-me também adquirir um
diploma, pois no bacharelado em Violino é essencial ter seu próprio instrumento.
Essa experiência incorporada nas vivências em diversos espaços sociais
contribuiu para que eu adquirisse condições de participar do processo seletivo do bacharelado
em Música – Violino, que destaco logo a seguir.
3.6 Bacharelado
Em 1980, fui à cidade de João Pessoa para prestar exame vestibular e participar da
seleção do teste de aptidão para o bacharelado em Violino. A prova do concurso era igual à de
estudantes de outras áreas. Quanto ao exame de habilidade específica, constava de uma
apresentação com peças de livre escolha com acompanhamento de piano e um teste teórico
(percepção musical, harmonia e história da música).
Em 1981, em virtude de minha aprovação para a universidade, fui morar na
capital da Paraíba, buscando realizar o sonho de me tornar um violinista profissional. Assim,
apresentei-me com muitas expectativas para as aulas individuais de violino, projetando-me ser
um bom violinista. Na Figura 10, está o quadro das disciplinas do bacharelado em
instrumento na UFPB.
60
Figura 10 – Disciplinas do curso de bacharelado em Música
Fonte: Site do curso de Música da UFPB.
O produto final desse curso é a formação do instrumentista profissional, ou seja, o
músico que ingressará em uma orquestra sinfônica ou outro grupo de instrumentistas no plano
profissional. Destaco o fato de que, na época em que vivenciei as experiências no
bacharelado, a disciplina Metodologia do Trabalho Científico ainda não constava na matriz
curricular do curso, portanto ainda não era exigido do aluno uma prática de escrita científica.
Esse perfil de formação do instrumentista é bem claro nas ementas das disciplinas de
Instrumento da Prática I:
Introdução aos aspectos fundamentais da performance do instrumento ou canto,
compreendendo suas concepções técnicas e estruturais através da interpretação de
obras de diferentes gêneros, estilos e períodos visando à formação do intérprete
solista e/ou músico para os diversos conjuntos musicais (UFPB, 2008, p. 38).
Assim, era necessário incorporar uma prática instrumental que demonstrasse um
domínio técnico do repertório proposto. O grau de exigência para uma performance era muito
rígido, portanto o discente precisava estudar com muita dedicação durante muitas horas por
dia para alcançar o objetivo. Essa realidade foi-me apresentada no primeiro ano de meu
61
ingresso na universidade. Um dos professores dessa disciplina, Leopoldo Nogueira, havia
estudado na Alemanha com a instrumentista Berta Volmer, assistente do famoso professor de
violino Max Rostal. O professor da disciplina procurava me qualificar para uma performance
violinística, buscando aprimorar minha técnica de mão esquerda e de mão direita, meu
repertório, minha interpretação, minha dinâmica, entre outros aspectos exigidos. Esse
aprimoramento está baseado em uma preparação para a performance da música de concerto.
Acerca dessa proposta de ensino, o professor Paulo Bosisio, destacado mestre de violino no
Brasil, cita que essa concepção de estudo exige
A necessidade de evolução advinda de padrões técnicos cada vez mais exigentes que
a crescente indústria da gravação trouxe consigo. Novos e grandes professores se
impõem, como Galamian, Gingold, Oistrakh, Yankelevich, Samohil e Rostal
(BOSISIO, 2005, p. 106).
Essa concepção tem como proposta a formação de solista, de um desempenho
impecável pelo instrumentista. Esse panorama coincidia com minhas expectativas. Porém, nos
momentos árduos de estudos do violino, sentia-me fatigado e percebia um despreparo nesse
ritmo de treino.
Apesar das dificuldades, em dois anos de estudo, desenvolvi uma maneira de tocar
violino que me concedeu habilidade para o ingresso na orquestra sinfônica. O acesso se deu
por meio de uma audição para os líderes da orquestra. A prova exigia uma peça de livre
escolha e uma leitura à primeira vista. Minha apresentação se deu com a peça “Concerto em
Sol Maior”, do compositor austríaco Joseph Haydn. Essas práticas na sinfônica me fizeram
experimentar a performance instrumental de várias obras do repertório sinfônico da música de
concerto. Assim, malgrado as dificuldades, durante minha experiência no bacharelado da
UFPB, foi possível preparar e mostrar meu aprendizado por intermédio de obras como a já
mencionada “Concerto em Sol Maior”, de Haydn, para violino e orquestra de cordas;
“Prelúdio y Allegro”, de Pugnani/Kreisler; “Valsa Scherzo”, de Tchaikovsky, entre outras.
Na Figura 11, é possível verificar a exigência técnica violinística.
62
Figura 11 – “Valsa Scherzo”
Fonte: Arquivo pessoal.
A exigência técnica para o domínio do repertório indicava mudança de posição
sofisticada (até a sétima posição em uma mesma corda), arcos saltados com velocidade e
arcos com sete notas ligadas com recomendação do arco em uma mesma direção (para cima).
Iniciei os estudos por intermédio de uma metodologia de ensino coletivo,
entendendo-se, portanto, que não era exigida dos alunos uma técnica tão apurada. Outro
aspecto importante nesta análise é a herança familiar. Meus pais não tinham condições
financeiras que me proporcionassem professores particulares a fim de me preparar para essa
circunstância, para, assim, poder alcançar melhor preparo antes de ingressar no bacharelado.
Desse modo, conviver com esse grau de exigência nessa nova área de conhecimento ensejou
conflitos. Embora tenha adquirido determinada habilidade para legitimar meu ingresso no
curso de bacharelado, na época eu precisava interiorizar a exterioridade desses novos
elementos de aprendizagem. Destaco, também, o fato de que o deslocamento físico produziu
63
em minha formação determinados impactos, ou seja, conseguir me apropriar de meios que
contribuíssem para dominar as habilidades proporcionadas pelo curso. Nesse âmbito de
influência, minha motivação ancorava-se na ânsia de tocar violino profissionalmente e, desse
modo, ingressar na Orquestra Sinfônica da Paraíba, que na época era uma das melhores do
Brasil.
Assim, ao olhar para a minha história desenvolvida em espaços como a família, a
escola, o Sesi e a universidade (UFPB), compreendo a constituição de um violinista à luz da
praxiologia. Isso significa dizer que a formação do habitus violinístico não é a “réplica” de
apenas uma única estrutura social, mas o somatório das vivências nesses diversos contextos.
Logo, o conceito de habitus exprime-se como relacional, ou seja, procede de nossa herança
cultural e social, de acordo com nossos níveis de capital cultural adquiridos por intermediação
da família e da instituição escolar, que, coerentemente, definem atitudes em relação à cultura
e, inseridas num jogo de consentimentos, negociações e recusas – nas estruturas estruturadas e
estruturantes –, deliberam nossas disposições sociais (COSTA, 2013).
Desse modo, esse conceito ajuda-me a compreender o diálogo que faço com a
sociedade e se estrutura simultaneamente em dois princípios: “sociação” e “individuação”
(WACQUANT, 2007). “Sociação”, porque as categorias de juízo e de ação de que
partilhamos são consequências dos condicionantes sociais a que somos submetidos. Nesse
caso, um habitus violinístico pode ser compreendido ao se olhar para os modos de ser, pensar
e agir de um grupo de egressos de uma experiência de aprendizagem violinística, que resultam
e são resultados de significados, modos de reflexão e condução da vida cotidiana (COSTA,
2003). Nessa mesma perspectiva, o princípio da “individuação” considera que somos
singulares, temos identidade própria, ou seja, ainda que a aprendizagem do instrumento seja
desenvolvida coletivamente, a trajetória de cada um é individual e o conhecimento é
internalizado com procedência em uma “combinação incomparável de esquemas”
(WACQUANT, 2007, p. 3).
Durante minha estada em João Pessoa, casei-me. Depois de um ano, nasceu minha
primeira filha. Por questões pessoais, o que não é necessário discutir neste trabalho, foi
preciso interromper minhas experiências musicais em João Pessoa e retornar a Fortaleza. Na
volta, trouxe os experimentos no bacharelado, no casamento e as primeiras vivências de um
pai. Na capital cearense, não havia orquestra profissional, de sorte que me foi imposto o
exercício de atividades extramusicais para a sobrevivência da família.
64
3.7 Atividades musicais em Fortaleza
Ao regressar à capital cearense, fiquei, por um período, ausente da área da
Música. No entanto, fui convidado a exercer a função de violinista na Orquestra de Câmara
Eleazar de Carvalho (Orcec), em Fortaleza (a primeira de feição profissional do Ceará). Esse
grupo havia sido criado, então, recentemente, por músicos de Fortaleza e necessitava de
violinistas para compor seu quadro11.
A orquestra era mantida pela Lei de Mecenato, ou seja, Lei Jereissati. Segundo a
Secretaria de Cultura do Estado (Secult), a Lei de Incentivo à Cultura permite aos empresários
investir em projetos culturais no Ceará, mediante a transferência de recursos financeiros,
deduzindo mensalmente até 2% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS) devido. A Lei Jereissati, como é conhecida, criou também o Fundo Estadual de
Cultura (FEC) para incentivo e financiamento de atividades culturais tradicionalmente não
absorvidas pelo mercado formal. O fundo apoia até 80% do valor do projeto proposto por
órgãos municipais ou estaduais de cultura e entidades culturais de caráter privado sem fins
lucrativos. Desse modo, a sobrevivência da orquestra depende da aprovação anual da verba
para que seu projeto seja mantido. O projeto consistia na realização de quatro concertos
durante o mês: um concerto didático, geralmente realizado em escolas; um em universidades
(geralmente acontecia na UECE); um concerto de cunho político ou concertos no interior do
estado do Ceará; e um de cunho oficial, realizado no Theatro José de Alencar.
Essa experiência na Orcec proporcionou aos músicos a recriação de um repertório
diversificado de obras musicais que perpassam diversos estilos. Ressaltarei, entretanto, a
dificuldade de sobrevivência do músico instrumentista na capital cearense. A maioria dos
músicos complementava suas rendas tocando em casamentos, eventos e/ou em “barzinhos”.
Apesar das dificuldades encontradas, o ambiente da orquestra me permitiu exercitar minha
prática musical em violino.
Meu retorno a Fortaleza havia causado uma ruptura com minhas relações musicais
e seus espaços sociais; entretanto, o convite da orquestra me fez retomar o caminho cultivado
(inculcado) desde o Projeto Jaffé até o bacharelado em Violino. Embora tenha me afastado do
meio musical por um determinado tempo, pareceu até que o habitus havia falhado. Foi
possível perceber que ele foi capaz de produzir em mim uma prática musical conforme o meio
11 Simultaneamente, fui convidado para ministrar aulas em um projeto da Secretaria da Educação do Ceará
(Seduc) destinado a crianças e jovens da escola pública.
65
no qual convivi. A esse respeito, sobre a predisposição para as escolhas, Setton (2002, p. 61)
entende o habitus como
Um instrumento conceptual que me auxilia a pensar na relação, a mediação entre os
condicionamentos sociais exteriores e a subjetividade dos sujeitos. Trata-se de um
conceito que, embora seja visto como um sistema em constante reformulação,
Habitus não é destino. Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as
características de uma identidade social, de uma experiência biográfica, um sistema
de orientação ora consciente ora inconsciente. Habitus como uma matriz cultural
que predispõe os indivíduos a fazerem escolhas.
Apesar de algumas adversidades em relação à minha permanência no campo
musical, minha aceitação para retornar a uma orquestra e continuar desenvolvendo um habitus
musical me moveu, realizando escolhas para permanecer no campo da Música. Isso ocorreu
porque “as condições de produção do habitus são idênticas ou homólogas às suas condições
de funcionamento” (WACQUANT, 2007, p. 2). No caso, minhas condições de funcionamento
coincidiram com a incorporação do habitus vivido em diversos espaços.
3.8 Experiências familiares
A orquestra, constantemente, passava por crises financeiras durante a renovação
do projeto para sua continuidade. Consequentemente, os músicos tinham dificuldades para
resolver os assuntos econômicos de suas famílias. Em busca de soluções, minha esposa e eu
conversávamos bastante sobre nossa sobrevivência no âmbito da música. Vale ressaltar o fato
de que, nessa mesma época, ela havia concluído o curso de Pedagogia e lutava por uma
aprovação no mestrado em Educação. Assim, em tal circunstância, é importante considerar a
influência da família nessa situação. Ao refletir sobre questões acadêmicas e de trabalho no
seio de uma família, Gorriz (2008) acentua que uma vivência mediada por uma dimensão
relacional/social permite realizar ponderações, contribuindo, também, para perceber as
dinâmicas que se criam num ambiente social determinado, como, por exemplo, uma família.
Nessa direção, interagir com minha esposa resultou em mudanças de perspectivas e novos
posicionamentos em nossas vidas. A experiência dela com a academia e a minha necessidade
de continuar vivendo da música (ensino e/ou performance) proporcionaram a procura de uma
legitimação na área docente musical, o que me direcionou fortemente para o retorno à
universidade.
66
3.9 Retorno à universidade
Como não havia terminado o bacharelado, procurei informações na Universidade
Estadual do Ceará (UECE) se haveria possibilidades de aproveitamento de curso. Assim, por
meio do edital que possibilita transferência de alunos de outros cursos e/ou universidades e a
realização de uma prova, alcancei a nota necessária que proporcionava minha inserção no
curso de licenciatura em Música.
Ao relembrar esses momentos, observo que, no meu retorno à academia, eu
procurava perceber o habitus docente dos professores da UECE. É claro que nessa época
ainda não conhecia os conceitos de habitus e campo. Não obstante, eu procurava captar os
saberes adquiridos para atuar na docência: gostos musicais, o diálogo com os alunos na sala
de aula, o modo como os professores ministravam suas aulas e suas atitudes. Hoje percebo
que essa aspiração estava me transformando e o meu olhar se direcionava para a docência. Em
meu interior, emergia uma questão: eu teria condições de ser um professor universitário?
Essas vivências me encaminharam para um mestrado em performance.
3.10 Mestrado
Durante minha convivência na orquestra, surgiu a informação de que estava
aberto na UFPB o edital de seleção para o mestrado em Práticas Interpretativas na Subárea
Violino. Procurei detalhes a respeito do perfil do programa, inscrevi-me, preparei-me e fui
aprovado na seleção.
No período do mestrado, além de escrever uma dissertação, foi necessário para
obtenção do título executar um recital com peças de períodos contrastantes. Essa experiência
do recital aumentou o volume de meu capital cultural em grande medida e, após a conclusão
desse processo, em 2008, tornei-me o único violinista com mestrado na cidade de Fortaleza.
Assim, é possível expressar o fato de que, em minha trajetória, eu adquiri um habitus
violinístico. Essa aquisição fica evidente com base nos marcadores, como diplomas
(graduação e mestrado), instrumento musical (violino), livros, a escrita de minha dissertação,
publicações, participações em eventos etc. Essa legitimação ensejou-me a concorrer a uma
vaga em concurso para a docência do ensino superior. O concurso faz parte das regras
estabelecidas para o ingresso no campo acadêmico.
67
No quarto capítulo deste trabalho, apresento um panorama do processo de
aquisição de saberes e vivências que me habilitaram a concorrer à vaga, no setor de cordas
friccionadas, para professor do curso de licenciatura em Música da UFCA. Perpassei por
diversos espaços sociais que me conduziram à aquisição de um determinado capital cultural
que me legitimou a ocupar a função de docente no campo do ensino superior em Música.
68
4 TERCEIRO MOVIMENTO: HABITUS DOCENTE
Neste seguimento, descrevo a constituição do campo pedagógico musical da
UFCA, explicitando minha posição ali como docente da prática instrumental do violino.
A UFCA emergiu na região do Cariri no ano de 2006 como um campus da UFC.
O curso de Música (licenciatura) surgiu no ano de 2010 com o objetivo de preparar
professores de música para atuação em diversos espaços. Em 2013, o campus Cariri
transformou-se em universidade. A criação do curso surgiu na época em que o ensino de
Música nas escolas tornou-se obrigatório por meio da Lei nº 11.769, sancionada em 18 de
agosto de 2008. Logo, intensificou-se, ainda mais, a necessidade de novos professores de
Música para atender às escolas de ensino público.
Antes de 2010, as pessoas que habitassem o Cariri cearense e que quisessem
conquistar um diploma de graduação em Música necessitavam deslocar-se para outros
centros, como Fortaleza, Recife, Natal ou João Pessoa, entre outros. Essas cidades citadas
estão a uma distância média de 600 quilômetros do triângulo Crajubar, que envolve três
cidades dessa região: Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha.
A região do Cariri foi contemplada com cenário de grande beleza, clima
privilegiado e riqueza cultural que aos poucos vai sendo descoberta pelo olhar do pesquisador
atento. Essa diversidade cultural que a região propicia é descrita no Projeto Pedagógico do
Curso (PPC) de Licenciatura em Música da UFC como
[...] ímpar, complexa e de alto teor expressivo, comunicador da capacidade
inteligente do homem e da mulher desta Região, da capacidade expressiva e do
imaginário desse homem e dessa mulher, através de fatos, obras e objetos de
significados estéticos tão próprios de si, que se particularizaram como
identificadores do pensamento cultural regional (UFCA, 2014, p. 5).
Na música, tal expressão cultural de um povo simples manifesta-se de variadas
maneiras, algumas demonstrando o espaço peculiar da crença e da religião, por meio dos
reisados, das festas de padroeiros e de outras manifestações da fé; outras são expressas nas
danças, nas bandas cabaçais, nas excelenças, na simplicidade do instrumental próprio, nas
rabecas, nos pífaros, nos zabumbas e ainda nos cantadores, nos poetas, nos emboladores, nos
repentistas, nas cantigas de procissões e de penitentes, nas festas e nos festivais, onde a cultura
de uma gente se manifesta e é inventada, como bem expressa o mesmo PPC:
69
Um todo, fruto dos entrelaçamentos gestados nos tecidos sociais historicamente
localizados, com origens que remontam ao pensamento medieval europeu, aos
sentidos de “tempo não medido” da África e aos sentimentos e história dos indígenas,
habitantes originais da Região (UFCA, 2014, p. 6).
Há, contudo, em meio a essa mistura cultural, a introdução de outros elementos
culturais oriundos de outra tradição cultural, mas que também se exprimem “voltados para a
formação humana marco de possibilidades ampliadas de crescimento e expressão de desejo”
(UFC, 2009, p. 7). Refiro-me aos grupos orquestrais que têm perpassado pela cultura nativa,
buscando estabelecer-se como parte dela. A exemplo disso, cito os trabalhos realizados na
região, como: a Orquestra Filarmônica Chapada do Araripe, a Orquestra de Meninos (Araripe),
o Projeto Casa Grande (Nova Olinda) e a Sociedade Lírica do Belmonte, que abriga uma
escola de música, uma orquestra filarmônica, uma banda de música, uma orquestra de cordas,
entre outros equipamentos.
O deslocamento implicaria despesas financeiras para os pretendentes em adquirir
uma certificação (legitimação) na área da Música. Existe, na região, um determinado
desenvolvimento econômico. E antes do surgimento do curso de Música, existia a necessidade
de uma instituição formativa de nível superior que qualificasse os instrumentistas, cantores,
compositores, regentes e até mesmo aqueles sem conhecimento prévio para a docência em
Música. O ensino de Música no Cariri, do ponto de vista formal, ainda é restrito. De acordo
com o PPC do curso de Música,
As diversas ações pedagógicas na área de música que ocorreram e ocorrem no
Cariri, como a escola de música SOLIBEL (Sociedade Lírica Belmonte) e a banda
de música municipal localizados em Crato, a Fundação Casa Grande em Nova
Olinda, a Orquestra de Rabecas em Juazeiro do Norte, são iniciativas que estão
diretamente ligadas à cena artística caririense que têm, em boa medida, impacto
direto na difusão da educação musical na região. Um projeto pedagógico que
englobe todas essas e outras ações poderá gerar diversos benefícios, tais como: o
fomento à pesquisa em educação musical, o incentivo ao ingresso no curso superior
de música (fortalecendo a área e formando profissionais qualificados e críticos), o
incentivo aos jovens que pretendem seguir a carreira do magistério, a integração
dessas ações formando redes de capilaridades capazes de dar vazão à produção local
e garantir o ensino de música público, gratuito e de qualidade. Além dos benefícios
citados, é importante mencionar que o Curso de Licenciatura em Música é uma
exigência legal, amparada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB 9.394/96.
O referido curso se faz necessário na região do Cariri para suprir as necessidades na
formação de professores para atuarem na Educação Básica (UFCA, 2014, p. 7).
Desse modo, o curso de Música emerge na região do Cariri com a missão de
preparar professores para atuarem na docência do ensino musical, difundindo essa área de
70
estudos em diversos ambientes – formais, informais, entre outros. Assim, com o surgimento
do curso, a UFCA trouxe a possibilidade de certificação para os alunos do Cariri por meio de
suas experiências na graduação, oportunizando aos discentes a permanência em suas cidades
de origem.
Para que o curso funcionasse, após sua legalização no Ministério da Educação
(MEC), foi necessária a contratação de professores que atendessem à necessidade do curso.
Nesse sentido, diversos profissionais do ensino de Música foram reunidos no Cariri via
concurso público. Eles reúnem entre si relações sociais dentro de um campo, o ensino de
Música. Essa compreensão de campo como espaço de múltiplas relações é explicitada por
Bourdieu (2003, p. 10), ao ensinar que campo é
O universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem ou
difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os
outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas.
Assim, ao reunir os professores (agentes), com seus capitais sociais e culturais
adquiridos em suas trajetórias, em uma instituição de ensino superior, considerando também
os caminhos para a legalização do curso no MEC, o campo do ensino de Música foi
estabelecido. Este, no Cariri, é relativamente autônomo, pois não depende de outros para
estabelecer suas leis, ou seja: criação/modificação do PPC, criação de disciplinas, definição
do perfil de uma área de estudos quando houver necessidade de concurso para professor,
metodologias de ensino, modos de analisar os alunos, entre outros aspectos.
É importante destacar que o surgimento do curso de Música da UFCA aconteceu
juntamente com a criação do curso de Música da UFC em Fortaleza. Os agentes (professores
da UFC) que transitavam no campo acadêmico da UFC influenciaram significativamente para
que os setores específicos da universidade solicitassem ao MEC a criação de um novo curso
de Música, dessa vez no Cariri cearense. Entre os que desenvolveram a ideia de uma nova
graduação, destaco os seguintes professores: Izaíra Silvino, Luiz Botelho Albuquerque, Elvis
Matos e Erwin Schrader.
Essa região não possui muitas escolas de música e, como consequência dessa
realidade, o curso de Música da UFCA, assim como outros cursos de graduação em
Música/licenciatura no estado do Ceará (UFC nas cidades de Fortaleza e Sobral), não exige o
teste de habilidade específica, comum em outros cursos superiores de Música no Brasil.
Assim, os alunos que ingressam no curso, selecionados pelo Exame Nacional do Ensino
71
Médio (Enem), trazem consigo uma diversidade de conhecimento, ou seja, discentes com
algum conhecimento prévio de música, mas sem entendimento dos sinais da partitura; outros
com o conhecimento prévio de música e algum entendimento dos sinais da partitura, e outros
sem nenhuma noção anterior do estudo prático e teórico de Música.
Ressalto e compartilho do sentimento daqueles que escolheram como proposta
retirar o teste de habilidade específica como requisito de entrada no curso de Música da
UFCA. Entendo que proporcionar um desenvolvimento artístico/musical aos que não
possuem nenhuma prática instrumental, ou experiência prévia com música, significa também
desenvolver a sensibilidade desses alunos. Sou egresso de uma experiência que recebia
crianças e jovens sem a menor noção dos instrumentos ofertados naquela época, e a maioria
não tinha noção nenhuma de música. Nessa mesma direção, eu recebo em minha disciplina de
Prática Instrumental o máximo de alunos possíveis, buscando proporcionar um aprendizado
musical. Com essa compreensão, é importante dialogar minha prática atual com meu
aprendizado no passado, onde posso (re)significar a importância da música na vida dos seres
humanos, em especial a prática democrática do ensino. Esse é o pensamento que alimenta
minhas práticas e foi sendo elaborado no percurso delineado neste trabalho.
Com a criação do curso na região do Cariri, passei a ser um dos docentes,
aprovados em concurso, a exercer a função de professor assistente do referido programa no
setor de estudos Cordas Friccionadas. O início das atividades do curso aconteceu com a oferta
das seguintes disciplinas de práticas instrumentais: Violão, Piano/Teclado, Violino/Viola e
Sopros Madeiras (flauta transversal, clarinete e saxofone).
Em seu primeiro ano, o curso disponibilizou também, entre outras, as disciplinas
de Percepção e Solfejo e História da Música. Entre as disciplinas oferecidas para os alunos,
destaco, a princípio, nesta pesquisa, as disciplinas de Prática Instrumental Violino/Viola I, II,
III e IV12. No primeiro encontro com os alunos, houve a apresentação dos instrumentos que
seriam ofertados naquele semestre. Após a exposição, 20 estudantes procuraram a disciplina
Prática Instrumental Violão, dez alunos se matricularam em Piano/Teclado e os outros foram
distribuídos na Prática Instrumental de Sopros e de Violino/Viola. Cinco alunos me
procuraram com o objetivo de aprender os instrumentos ofertados por minha disciplina, ou
seja, violino ou viola.
12 Durante este capítulo, ainda discutirei a disciplina de Prática de Orquestra.
72
É perceptível, nesse panorama, a ideia de que o instrumento violão possui grande
popularidade, daí a grande procura. Embora o violino seja bastante conhecido pela população
brasileira, ainda é um instrumento musical pouco praticado no país. Ao analisar o PPC de
criação do curso, compreendo que, antes de minha chegada ao Cariri, já havia uma prática
musical em instrumentos de cordas friccionadas, o que justifica a introdução da Prática
Instrumental Violino na matriz curricular do curso de Música da UFCA. Segue a citação:
Dentre as várias possibilidades de instrumentos musicais da cultura ocidental,
elegemos o violão, os instrumentos de cordas friccionados e os instrumentos de
sopros (comuns aos diversos projetos de educação pela música, adotados em
diversas cidades da região do Cariri Cearense) como possibilidades de escolha a
serem oferecidas aos alunos que ingressam no Curso de Educação Musical (UFCA,
2014, p. 18).
Desse modo, procuro contribuir para o aperfeiçoamento dos novos
instrumentistas, como também proporcionar um processo de ensino e aprendizagem para os
alunos que não possuem um conhecimento prévio do instrumento. Ante ao exposto, minha
experiência musical como violinista e professor de violino dialoga com os objetivos do curso
de Música. Meus primeiros passos no aprendizado do violino, como já mencionei, ocorreram
no Projeto Jaffé, um projeto de ensino coletivo de instrumentos de cordas friccionadas.
Vivenciei a aprendizagem de um bacharelado em Violino. Experienciei os
ensinamentos de uma licenciatura em Música. Experimentei as vivências de um mestrado em
práticas interpretativas pela escrita de uma dissertação e por um recital. Assim, ao reunir um
conjunto de experiências na área da Música e a aquisição de títulos, compreendo como foi
possível ter acesso ao concurso que me proporcionou o ingresso em uma instituição de ensino
na área de Música. Com a aprovação, fui inserido no campo da docência em Música,
ocupando uma posição que possui determinado poder simbólico. Com suporte na minha
posição como aluno do Projeto Jaffé, foi possível perpassar por vários espaços sociais de
formação até uma nova posição no campo musical, ou seja, docente do ensino superior.
Incorporei uma prática musical que vivenciei por meio das estruturas e hoje estruturo novas
posições no campo de ensino de Música. No passado, foi-me inculcado um capital cultural
musical e hoje aplico maneiras de cultivação do estudo de Música.
Diante dessa realidade, “compreendo que os campos são tendências imanentes e
probabilidades objetivas. Um campo não se orienta totalmente ao acaso” (BOURDIEU, 2003,
p. 27). A criação do curso de Música da UFCA dependeu das relações dos professores de
73
Música da UFC, dos gestores da UFC e, também, dos agentes do MEC, que aceitaram a
justificativa de criação do curso. Assim, antes de descrever minha prática docente, relato meu
encontro com a docência.
4.1 O encontro com a docência
Diversos autores assinalam que a conquista de uma prática docente perpassa por
diversos espaços sociais, como a família e a escola (BOURDIEU, 2001; NOGUEIRA;
NOGUEIRA, 2004; COSTA, 2013; SILVA, 2016). Nesse sentido, ao relatar a constituição de
meu habitus docente, é importante considerar os aspectos que me direcionaram para que eu
me tornasse professor.
Ao estudar minha história de vida, é necessário considerar meu diálogo com essas
instituições, com minha trajetória acadêmica e com o exercício da profissão, elementos
constitutivos do habitus professoral, portanto expressivos para refletir e reconhecer minha
prática docente. Nogueira e Nogueira (2004, p. 29), ao escreverem sobre a constituição do
habitus segundo Bourdieu, esclarecem:
A posição de cada sujeito na estrutura das relações objetivas propiciaria um conjunto
de vivências típicas que tenderiam a se consolidar na forma de um habitus adequado
à sua posição social.
Compreendendo a explicação desses autores, posso afirmar que a posição por
mim ocupada no Sesi, como aluno de violino, não me encaminhou, diretamente, a agir em
direção da docência, mas me proporcionou a oportunidade de internalizar um conjunto
específico de disposições para a ação que me orientaria ao longo de minha trajetória em
diversas situações sociais. Por conseguinte, ao me encontrar na docência, estou reproduzindo
as propriedades do grupo social a que pertenci, ou seja, a própria estrutura social na qual fui
formado. Assim, “o habitus seria formado por um sistema de disposições gerais que
precisariam ser adaptadas pelo sujeito a cada conjuntura específica de ação” (NOGUEIRA;
NOGUEIRA, 2004, p. 28).
A formação do habitus docente não se constitui imediatamente, é uma elaboração.
Cada vivência nos espaços sociais me proporcionou a aquisição de determinados aspectos que
me ajudaram a consolidar uma posição no campo da docência. Hoje reflito sobre minha
construção e percebo que, durante minha trajetória, eu não planejava, tampouco imaginava
aonde poderia chegar. Durante a escritura desta tese, entretanto, é possível perceber como fui
74
sendo direcionado de algum modo para essa função. À medida que vou assimilando essas
percepções, compreendo que as posições que ocupei nas estruturas sociais com as quais
convivi proporcionaram-me vivências que caracterizam a estruturação de minha
subjetividade, constituindo, assim, uma matriz de minhas percepções e apreciações.
Esse procedimento é percebido com apoio na minha relação com meu ambiente
familiar. Minha família, de origem humilde, popular, lutou por minha ascensão social,
incitando-me ao estudo da Música, como também me incentivou aos estudos escolares. Com
efeito, foi possível adquirir um capital cultural institucionalizado que me proporcionaria
outras possibilidades de ingresso, como, por exemplo, o acesso à prova do vestibular.
Meu diálogo com a escola foi tranquilo, nunca fui reprovado, embora tenha ficado
algumas vezes em recuperação (o correspondente hoje à AVF – avaliação final), pois não
valorizava muito o conhecimento escolar. O interesse principal era o diploma, pois estava
envolvido com uma formação musical. Assim, embora eu convivesse em um espaço de
prática docente, ambiente escolar, nesse período, os professores da escola não chamavam a
minha atenção, porque meu olhar direcionava-se para os estudos de Música, em especial para
o violino.
Simultaneamente às vivências escolares, convivia também nos espaços de ensino
de Música. Durante as aulas no Projeto Jaffé, não percebia, na qualidade de aluno, a
importância do professor em minha formação, e foi somente na época do mestrado que foi
possível perceber minha admiração pelo professor Alberto Jaffé. Isso é refletido na escolha do
tema de minha dissertação: a experiência de ensino coletivo para crianças, adolescentes e
jovens no Sesi.
Como aluno do bacharelado em Violino, estava tão envolvido com a performance,
com o desejo de tocar bem o violino, que não percebia aspectos da docência. Nesse sentido,
os professores de violino do bacharelado chamavam mais a minha atenção pela performance
do que pela prática docente. Minha visão de aluno almejava tocar da mesma maneira que eles,
ou melhor.
Alguns anos mais tarde, ao retornar para a universidade, dessa vez para o curso de
licenciatura em Música, meu olhar direcionava-se para a docência. Durante minhas vivências
na UECE, um professor, que também era psiquiatra, responsável pela disciplina Psicologia da
Aprendizagem, chamou a minha atenção pela maneira como se posicionava em sala de aula e
se relacionava com os discentes. Os alunos formavam um círculo ao redor da sala, enquanto
75
ele ia de um lado a outro apresentando o conteúdo e chamando a atenção dos alunos. Além de
carismático, ele também dava voz aos alunos, e, desse modo, a aula se tornava dinâmica, com
a participação de todos. Isso me fez pensar sobre a função do professor perante os discentes.
Como eu já olhava para a docência, refleti sobre essa forma de ensino.
Destaco, ainda, nessa constituição do habitus docente, minhas primeiras
experiências no exercício da profissão. A esse respeito, Baldino e Donencio (2015, p. 269)
esclarecem:
[...] o professor/a professora pode formar seu habitus no processo de seu fazer
docente, pois ele é o agente de sua prática, e esta pode conter elementos advindos
não só de sua formação, mas de suas expectativas, de seu viver, de suas experiências
e de suas representações. Desse modo, o professor ensina na sala de aula de acordo
com as representações interiorizadas ao longo de sua trajetória pessoal e que se
entrelaçam com as representações do trabalho docente e das percepções de mundo,
constituindo assim o modo de ser professor.
Assim, ao me deparar com uma sala de aula de Música, trouxe comigo um
conjunto de conhecimentos advindos de minha formação, de experiência de vida que se
encontrou com as representações do trabalho docente e das percepções de mundo que adquiri.
Isso resta evidente ao relembrar minha experiência como docente no Centro de
Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CAIC) Raimundo Gomes de Carvalho. Essa
ação, um projeto da Secretaria de Educação (Seduc), tinha como objetivo proporcionar aos
alunos da escola pública, em especial nos três CAICs na cidade de Fortaleza, o ensino de
Música. Essa concepção socioeducacional oferecia aulas de violino, viola, violoncelo,
contrabaixo, flauta doce, violão e teclado. Fui convidado a ensinar música no CAIC, uma
escola pública estadual localizada no bairro Autran Nunes, na periferia, que abrigava crianças,
adolescentes, jovens e adultos. Ministrava as aulas de música no contraturno, e essas aulas
não estavam contidas na matriz curricular da escola. A proposta desse projeto era ocupar as
crianças com o ensino de Arte/Música para que elas não ficassem ociosas.
Quando aceitei o convite, não fui atraído ao ensino pela proposta de trabalho com
docência, mas sim pela oportunidade de trabalho em virtude de minha necessidade de
sobrevivência, pois era preciso aumentar o capital financeiro para sustentar minha família.
Naquele momento, estava num decurso de transição. Ao aceitar o convite, embora ainda não
compreendesse, já se constituía em meu interior um habitus docente. Silva (2009, p. 74, grifos
do autor), estudando sobre a constituição do habitus docente, ressalta que
76
O início da carreira do professor é um momento de muitas dificuldades. Além da
insegurança comum aos iniciantes da docência soma-se a necessidade de aceitar o
trabalho que aparecer. Isso suscita o “dar aulas aonde te convidam”, gera o professor
“freelancer”, que por falta de melhores condições submete-se a tais circunstâncias.
Não obstante a tais dificuldades, essas experiências também trazem aspectos
positivos no exercício da docência.
A descrição da pesquisadora coincide com a circunstância na qual eu me
encontrava. Apesar de estar com poucos meios pedagógicos naquele momento, essa
experiência contribuiu para o domínio nesse campo de estudo. Assim, não percebia que,
apesar das dificuldades, já emergia em meu interior uma incorporação do habitus docente.
Nessa época, meu objetivo principal com a música era participar de uma orquestra,
reproduzindo músicas do repertório de concerto.
A Orcec (orquestra onde eu trabalhava) passava por crises financeiras, faltava
apoio de órgãos mantenedores, e ao surgir o convite para ensinar violino, aceitei de bom
grado. É importante destacar que nesse momento fui inserido em uma instituição de ensino na
função de professor por via do meu capital social/cultural. Capital social, porque não foi
necessária nenhuma prova para ingresso, pois o convite se deu por intermédio de colegas de
profissão que conheciam minhas habilidades violinísticas; capital cultural, porque eu havia
internalizado um conjunto de saberes musicais, sobre violino, que me habilitava a ocupar a
função de professor de violino, a necessidade da escola naquele momento.
Durante as aulas no CAIC, meu objetivo era ensinar às crianças e aos jovens a
tocarem os instrumentos musicais. Ao observá-los, realizava-me em vê-los praticando as
primeiras músicas que ensinei. As músicas utilizadas em minhas aulas fazem parte do
repertório proposto pelo Método Suzuki, por compreender que elas seguem uma elaboração
didática. Cada música tem um objetivo na formação do saber, desde o nível iniciante até
outros níveis mais avançados; ao todo, são dez volumes.
Essas vivências fizeram-me escolher o retorno à universidade e concluir o curso
de Música, uma vez que abandonei o bacharelado faltando apenas um ano para a conclusão.
Observo que o destaque nessa importante escolha foi a vontade de obter o diploma de
graduação em Música e, assim, qualificar-me para concorrer a uma vaga de professor efetivo
do Estado e ensinar Música aos alunos do CAIC.
Com mudanças na gestão da Seduc, o projeto encerrou o processo de terceirizar
professor, e aqueles que quisessem continuar ministrando aulas no CAIC necessitavam
ingressar como professor substituto ou professor efetivo por meio de processo seletivo. A
77
seleção constituía-se de uma prova de conhecimentos gerais e era ofertada para todas as áreas
de conhecimento. Coincidentemente, já havia concluído o curso de licenciatura e, com a
aprovação no processo seletivo para professor substituto, continuei a ministrar as aulas no
CAIC.
No ano de 2003, houve seleção para professor efetivo do Estado. Concorri, pois
almejava ser professor estadual. Realizava-me em proporcionar um conhecimento musical
(teórico e instrumental) para os alunos do CAIC. Não fui aprovado, porém; assim,
compreendo que, embora não tenha conseguido ingressar no Estado como professor de
Música, ao olhar para minha trajetória, adquiri um volume de capital cultural e social que me
proporcionou oportunidades significativas na área da docência. Esse capital me permitiu
concorrer a uma vaga no mestrado em Música na UFPB, conforme relato a seguir.
4.2 O mestrado e a docência do ensino superior
Quando ministrava aulas no CAIC, que aconteciam no turno da tarde, eu ocupava,
no turno da manhã, a função de violinista da Orcec. Naquela época, soube do lançamento de
edital de seleção para o mestrado em Práticas Interpretativas na Subárea Violino, na UFPB.
Essa informação causou intensivo influxo no meu interior. A possibilidade de “voar mais
alto” na docência estava sendo mostrada, ou seja, o diploma de mestrado me habilitaria a
participar de editais de concursos para professor do ensino superior.
Já fazia alguns anos que eu não estudava violino com sofisticação, com a
determinação de melhorar a performance. Praticava o instrumento apenas para manter meu
desempenho na orquestra, ou seja, dominar a técnica exigida para tocar o repertório. Assim,
necessitaria estudar o instrumento por mais tempo, diariamente, e apropriar-me de uma
técnica violinística que me proporcionasse a performance necessária para o recital, que era
uma das provas exigidas para o ingresso no mestrado.
Conforme edital, o objetivo era apresentar um repertório contrastante, ou seja, um
repertório constituído de peças de vários estilos do repertório da música de câmara de
concerto: barroco, clássico, romântico, moderno, brasileiro etc. Em tal circunstância, refletia:
será que eu teria condições? Tal pergunta me remetia a um sentimento de incredibilidade
sobre ser aprovado na seleção para o mestrado. Esse receio fundamentava-se na crença de que
estava despreparado para o sucesso e de que as exigências das leis do campo da performance
poderiam ser de ruptura. Entretanto, é importante destacar que nem sempre a visão do aluno
78
coincide com a óptica dos avaliadores. Com essa visão, e apesar desse receio, segui nessa
preparação. Na ocasião, minha esposa estava cursando o mestrado em Educação na UFC e
conversávamos bastante sobre as possibilidades de novas perspectivas de emprego com o
diploma de mestre.
Com essa coleção de incentivos para uma nova expectativa de vida, enfrentei a
seleção e fui aprovado. Durante o mestrado, vivenciei a disciplina de estágio, quando foi
necessário dar aulas de violino para alunos da graduação. Percebi minha alegria em contribuir
para uma melhor performance deles. Essas experiências aproximaram-me da docência do
ensino superior. Entendo que a constituição de um novo habitus se dá com base na dialética
do agente com os múltiplos espaços sociais por onde ele transita.
Enquanto criança, fui incitado a transitar por um espaço de socialização que me
encaminhou ao estudo da Música. Simultaneamente, socializava com a escola, que, por sua
vez, proporcionou-me um determinado capital cultural (diploma de ensino médio), o qual me
permitiu concorrer a uma vaga na graduação.
Em virtude da aprovação no exame vestibular, ingressei na universidade. Esse
diálogo estabelecido com as instâncias socializadoras me propiciaram uma relação de
continuidade. Isso promoveu o início da constituição de um habitus violinístico. Em outro
momento de minha vida, por via do capital social e do capital cultural acumulados, como
também de experiências familiares, emergiu outro processo, e esse novo não eliminou o
anterior, que me proporcionou a formação de um habitus docente violinístico, ou docente
musical. Acerca do habitus em um moto-contínuo, Setton (2002, p. 65) afirma que o
Habitus não pode ser interpretado apenas como sinônimo de uma memória
sedimentada e imutável; é também um sistema de disposição construído
continuamente, aberto e constantemente sujeito a novas experiências. Pode ser visto
como um estoque de disposições incorporadas, mas postas em prática a partir de
estímulos conjunturais de um campo. É possível vê-lo, pois, como um sistema de
disposições que predispõe à reflexão e a uma certa consciência das práticas, se e à
medida que um feixe de condições históricas permitir.
A constituição desse novo habitus resulta de uma mistura de estímulos baseados
em referências próximas entre si. No caso da docência em Música, embora o exercício
violinístico difira da prática docente, manifesta-se também na prática do violino, ao procurar
transferir saberes a novos agentes desse campo.
Esse habitus exprime também um conjunto de disposições incorporadas que se
manifestam com suporte na experiência do mestrado, quando foi necessário escrever a
79
dissertação. Em vez de interpretar símbolos musicais e transformá-los em sons pelo violino,
foi indispensável ler, refletir e dialogar na escrita o tema de minha pesquisa com autores da
educação musical, especificamente, como também da educação. Foi exigido, ainda, praticar
uma escrita bem elaborada, de modo que o leitor pudesse compreender o texto. Finalizada
essa fase do mestrado, foi necessário defender oralmente os principais pontos da dissertação
para uma banca de professores doutores, cuja apresentação foi aberta ao público e aconteceu
no auditório do curso de Pós-Graduação em Música da UFPB.
Outro aspecto importante foi a preparação simultânea de dois processos
diferentes. O primeiro foi a concepção da escrita e defesa da dissertação. O segundo foi a
preparação de um recital com obras contrastantes, com duração mínima de, pelo menos, uma
hora, para uma banca de avaliadores, doutores em Prática Interpretativa. Geralmente, o
mestrando, em outras áreas, preocupa-se apenas com a escrita e elaboração dissertativa, ao
passo que o mestrado em Práticas Interpretativas requer do orientando duas atividades
acadêmicas para a obtenção do diploma: defesa da dissertação e apresentação de um recital.
Essa dupla experiência estreitou as distâncias em direção à academia, onde foi
possível vivenciar os primeiros experimentos que antecederam o concurso para professor da
UFCA. Assim, em minha trajetória, desenvolvi o habitus docente mediante aquisição de um
acúmulo de capitais culturais (diplomas, experiência docente na academia, material didático e
outra visão para o ensino do violino).
4.3 Habitus docente na UFCA
No início de meu percurso de formação musical, incorporei um conjunto de
disposições que me direcionou para uma profissão na área de Música, músico de orquestra.
Esse processo é explicado por Rogerio, Albuquerque e Sales (2012, p. 31, grifos dos autores),
quando dizem:
Conforme o espaço social em que nos interagimos, interiorizamos estruturas que
passam a constituir nossa lente de leitura da realidade, e as exteriorizamos em nossas
escolhas, julgamentos, gostos, atitudes; ou seja, o habitus nos fornece um “senso
prático” para utilizar uma expressão do próprio autor da praxiologia.
Por meio desse processo, a estrutura social (Sesi) foi depositada na minha vida
mediante a interiorização de aspectos inerentes ao que o espaço da instituição me
proporcionou. Esse procedimento foi exteriorizado quando ingressei em orquestras
80
profissionais ocupando a função de violinista. O processo também é explicitado na seguinte
citação de Wacquant (2007, p. 3, grifo do autor), no artigo “Esclarecer o habitus”:
O habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso
comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a interiorização da exterioridade e a
exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a sociedade torna-se
depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis ou capacidades
treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos
determinados, que então guiam em suas respostas criativas aos constrangimentos e
solicitações de seu meio social existente.
À medida que fui vivenciando novas estruturas, internalizei outras maneiras de
pensar, sentir e agir, de modo que minha experiência em novos espaços de convivência guiou
minha prática. Dessa vez, ao internalizar saberes, não apenas nos conteúdos das disciplinas,
mas também no convívio com outras pessoas de um curso de licenciatura em Música e de um
mestrado em Práticas Interpretativas, foi se constituindo em minha prática um “habitus
professoral”. Assim, compreendo que, com a minha inserção na docência do ensino superior,
meu habitus foi se transformando e se diferenciando um pouco do habitus violinístico.
Embora tenha incorporado em minha trajetória um habitus violinístico,
desenvolvo, também, ao ingressar na universidade na função de docente, outro habitus, o de
professor de violino, ou o habitus professoral. Esse novo habitus é uma derivação do habitus
anterior, mas com diferenças em alguns aspectos. O capital cultural inculcado em meu interior
é o mesmo nos dois habitus em questão. Eles se diferenciam, entretanto, na aplicação do
saber. Explico: o habitus violinístico era aplicado com o objetivo de praticar e apresentar uma
performance da música de concerto. Enquanto isso, o habitus professoral transmite
conhecimentos direcionados para o violino aos alunos de um curso de Música (licenciatura).
Dessa vez, não me apresento para um público em um teatro, em um auditório, em igrejas, ou
em outro espaço para apresentações, mas, sim, mostro-me para um grupo de alunos, buscando
transmitir conhecimentos sobre o violino ou a viola, de modo que os incentive a uma prática
musical. Com efeito, dirijo a óptica para a formação dos alunos. Trago para a sala de aula a
formação conquistada, e minha preocupação agora não é mais a sala de concerto, e sim a sala
de aula. Do ponto de vista cognitivo, o conhecimento que adquiri como violinista passa a ser
incorporado por aquele que processualmente me torna professor. Essa dimensão didática deve
estar em minha prática.
81
Para melhor compreensão desse processo de ensino e aprendizagem, é necessário
dividir em partes esses aspectos, as quais são chamadas dimensões cognitivas, afetivas,
motoras e ético-políticas.
Apresentando, então, as características de cada uma das partes com o objetivo de
melhor compreender o funcionamento do “todo”, a escola é responsável fundamentalmente
pela cognição, atividade13 que remete à memória, à razão e ao uso elaborado da língua
portuguesa, ou seja, o texto escrito.
Na aprendizagem musical, é necessário valorizar outros aspectos considerados
centrais, como a parte motora. Para que o aluno aprenda a tocar uma determinada escala
musical no instrumento, ele precisa repetir muitas vezes para criar conexões musculares
neurais14 a fim de automatizar esse processo. Nesse sentido, o aluno explora a atividade
motora, e não a razão. Essa dimensão motora é essencial para o estudo da dança e da música.
Ela é responsável pela incorporação das técnicas de mão esquerda e mão direita do violino.
Essa incorporação se dá inicialmente por uma racionalidade cognitiva, ou seja, o aluno
procura manter o arco sob a corda e paralelo ao cavalete, entre o espelho e o cavalete, sem
movimentar o cotovelo e movendo apenas o antebraço. Esse procedimento deve ser feito até
que se torne fluente, sem necessidade de racionalizar. Assim, o aluno poderá produzir um som
de qualidade no instrumento.
Ao discutir sobre a técnica de mão direita, Kató Havas (2001, p. 21), em seu livro
A new approach to violin playing, acentua o seguinte:
According to some people, it is here, in the bowing arm, that the mastery of violin
playing is finally decided. But whether this true or not, one thing is certain; a faulty
bowing arm can ruin the best left hand in the world. Only a perfect marriage
between the two create a perfect sound. For it is the bow that makes the strings
vibrate, and the quality of the tone will depend on a natural and undisturbed
vibration.15
Ao refletir sobre as considerações do autor, é importante destacar que o aprendiz
necessita repetir várias vezes um determinado movimento para que possa dominar essa
habilidade. No que se refere à produção de som, é necessária uma boa técnica de mão direita
13 Notas de sala de aula do professor Luiz Botelho Albuquerque, em dezembro de 2016. 14 Idem. 15 “De acordo com algumas pessoas, a técnica de arco é fundamental para o violinista. Mas, se isso é verdade ou
não, uma coisa é certa, uma técnica de arco defeituosa pode arruinar a melhor mão esquerda do mundo. Apenas
o perfeito casamento entre os dois pode criar um perfeito som. Assim, o arco que faz as cordas vibrarem, como
também a qualidade da afinação, vai depender de uma vibração natural sem ruídos” (tradução minha).
82
(arco) e uma sincronização desse movimento na mesma velocidade da digitação da mão
esquerda.
Suzuki (1978), em seu método para violino, utiliza algumas músicas como
ferramenta para a aprendizagem. Antes de ensinar a primeira música, ele apresenta algumas
células rítmicas constituídas de figuras musicais: colcheia e semicolcheia. Ele aconselha que o
aluno exercite esses ritmos, tocando cordas soltas (sem digitação) do instrumento e utilizando
apenas o arco como um jeito de incorporar os movimentos antes de aprender a melodia.
Utiliza a pausa entre os compassos com o objetivo de interiorizar essa atividade muscular.
Alguns professores de violino sugerem colocar nomes de sílabas nos ritmos para
facilitar a interiorização do ritmo, como, por exemplo, “chocolate quente”, “laranjada doce”
etc. O exercício mostrado na Figura 12 é um recorte da música “Twinkle, twinkle, little star”,
canção francesa de autor desconhecido. No Brasil, é conhecida com o título “Brilha, brilha,
estrelinha”.
Figura 12 – Exercício para troca de cordas
Fonte: Método Suzuki.
O número “0” (zero) acima da figura musical/semicolcheia indica que o discente
deverá tocar a corda solta, sem digitação. Dessa forma, é possível compreender a importância
da dimensão motora para a internalização do conteúdo violinístico na formação dos alunos. O
83
discente necessita apropriar-se da maneira eficaz de segurar o arco, de modo que consiga
produzir um som de qualidade.
Como professor da disciplina Prática Instrumental Violino/Viola, minha
orientação em sala de aula é a de que ele segure o arco assim: com o dedo polegar na curva
entre a almofada e o talão; o dedo indicador acomodado na almofada do arco, na região da
falange; o dedo médio na lateral do talão, assim como o anelar; a ponta do dedo mínimo
relaxada sobre a vareta do arco, como mostra a Figura 13.
Figura 13 – Forma de segurar o arco
Fonte: Arquivo do autor.
A Figura 13 mostra o dedo indicador em uma posição que favorece o uso dos
movimentos denominados pronação e supinação. Na prática, a pronação representa um
movimento anti-horário do antebraço, de modo que a força é direcionada ao dedo indicador
para exercer pressão sobre o arco segundo a necessidade do som. Enquanto isso, a supinação é
a rotação do antebraço no sentido horário, aliviando a pressão exercida com o objetivo de
reduzir o volume de som. Essa maneira de segurar o arco beneficia o instrumentista para
dominar as arcadas e os vários golpes de arco proporcionados para o instrumentista. Acerca
da técnica de mão direita (arco), Sales (2004, p. 19, grifo do autor) afirma o seguinte:
Tomemos nossa atenção para a mão direita, mão do arco, a qual geralmente causa a
maior parte dos problemas técnicos e interpretativos de um violinista. Não é sem
razão que o grande Viotti, pai da escola moderna violinística, afirmava, diz a
tradição: “O violino é o arco”.
84
A técnica de mão direita (o arco) é responsável pela produção de som e essa
prática tem importância similar à do pulmão para o cantor. Desse modo, se o instrumentista
possui boa técnica de mão direita, ele produz um som agradável e tem facilidade para
interpretar uma determinada música.
A técnica de mão esquerda, por sua vez, é responsável pela digitação dos dedos
sobre a corda do instrumento. Nesse sentido, podemos citar as técnicas de afinação, vibrato e
mudança de posição, que são comuns para aplicar em alunos iniciantes. A afinação determina
as alturas dos sons produzidos pelo instrumentista mediante a digitação dos dedos sobre a
corda. Nos dias de hoje, estão à disposição de alunos, professores e público leigo diversas
literaturas acerca da técnica para violino. Limitar-me-ei, entretanto, a discutir o material
utilizado em sala de aula, em especial, com alunos iniciantes e iniciados.
Após a compreensão da maneira adequada de posicionamento da mão sobre o
instrumento, começo o processo. Para iniciar o posicionamento da mão esquerda no violino
ou na viola, solicito dos alunos apenas a digitação do primeiro dedo sob a corda. Inicialmente,
os alunos repetem os sons utilizados por mim como professor, de maneira cantada, para
internalizar as alturas das notas; em seguida, cantamos juntos algumas vezes a mesma
melodia. A primeira nota está associada à segunda corda solta do violino, enquanto a segunda
está associada à digitação do primeiro dedo sob essa corda. Eu poderia utilizar os sinais da
partitura para ensinar essa música de apenas duas notas. Entretanto, ao perceber que o aluno
está preocupado com o movimento da mão direita, com a digitação da mão esquerda e com o
posicionamento do instrumento sob o corpo, procuro não sobrecarregá-lo, de modo a não
exigir que ele tente dominar tantas habilidades ao mesmo tempo. O aprendiz ainda não
incorporou todos os posicionamentos relacionados ao instrumento. Ele necessita repetir a cada
dia para acomodar de maneira confortável o instrumento junto do corpo. Posteriormente,
quando o aluno se sente confortável em digitar as duas notas propostas, é acrescentada ao
aprendizado a digitação do segundo dedo, e, seguindo o mesmo processo anterior, adiciona-se
o terceiro dedo junto do espelho do instrumento. A inserção do quarto dedo é adiada para
outro momento em virtude da fragilizada musculatura desse membro. Para os alunos
iniciados, é acrescentada a técnica de mudança de posição, em que os dedos que estavam em
posição fixa podem alternar seu posicionamento junto do espelho, de acordo com a exigência
da música. Outras técnicas necessárias a uma boa execução do instrumentista são
85
apresentadas aos alunos, como, por exemplo, vibrato, dinâmica e outros aspectos relativos à
interpretação.
A dimensão cognitiva é desenvolvida quando o aluno necessita decifrar os sinais
da partitura e transformá-los em sons. Essa habilidade de ler os códigos musicais deve ser um
processo gradual e contínuo. Nesse sentido, o processo que utilizo envolve aspectos como
memória, razão, raciocínio, inteligência, para memorizar uma determinada quantidade de
notas, cada uma com sua intensidade e duração determinada.
O procedimento que utilizo em minhas aulas assemelha-se ao do educador
musical Zoltán Kodály, ao empregar o uso de duas notas, posteriormente três notas, seguindo
da mesma maneira, quatro notas, cinco notas, seis notas, sete notas (KODÁLY, 1941), de
modo que o aluno crie uma intimidade com esses símbolos e torne esse processo natural.
Nas primeiras páginas do livro do Método Kodály, a parte rítmica é simples,
utilizando apenas semínimas e colcheias, como também suas respectivas pausas, considerando
a semínima como unidade de tempo. Nos exercícios iniciais, o método trabalha com duas
notas: Dó e Ré, como mostra a Figura 14.
Figura 14 – Execução de duas notas, Dó e Ré
Fonte: Método Kodály.
86
Esse exercício tem como finalidade a prática do solfejo. O método trabalha, como
já mencionei, com duas notas – Dó e Ré –, não importando suas alturas. O professor poderá
propositalmente usar várias alturas e pedir que o aluno solfeje, Dó – Ré ou Ré – Dó, de modo
a não sobrecarregar sua atenção (SANTOS; SILVA; MONTE; ARAÚJO, 2013).
Na prática de violino/viola, incentivo o aluno a associar a primeira nota à corda
solta e a segunda nota, à digitação do primeiro dedo. Esse procedimento permite ao aluno o
uso do instrumento para decifrar a partitura e transformar esses sinais em som, como também
para internalizar as alturas propostas pelo exercício melódico. Desse modo, o aluno estará
estudando o instrumento e, simultaneamente, praticando o exercício da disciplina de
Percepção e Solfejo do curso de Música da UFCA, que trabalha com a metodologia do
educador Zoltán Kodály.
Outra dimensão importante nesse processo é a afetiva, pois envolve o gosto, a
estética e os afetos. Ao olhar para o repertório que vou aplicar com meus alunos, é necessário
considerar os aspectos técnicos que eles dominam, associados à provável música que eles
podem interpretar. Também penso ser necessário escolher músicas que se aproximem do
gosto musical dos alunos.
Considero que nasci em um lar que não me proporcionou um capital cultural da
música erudita, contudo o Sesi me ensejou decifrar os códigos desse estilo musical, ao
incorporar os aspectos que me permitiram tocar um instrumento peculiar dessa tradição. Não
obstante essa grande contribuição, o Projeto Jaffé estava ancorado, do ponto de vista de
repertório, na tradição europeia da música de concerto. Isso é percebido no programa de uma
das apresentações da orquestra do Sesi, conforme mostra a Figura 15.
87
Figura 15 – Programa da Orquestra do Sesi
Fonte: Arquivo pessoal.
Ao observarmos a Figura 15, podemos perceber que o repertório utilizado no
projeto era constituído, principalmente, por compositores da música europeia de concerto.
Isso justifica o fato de que, ao incorporar por muito tempo essa prática, minha apreciação
musical foi elaborada dentro desses moldes. Outra consequência desse processo é que passei a
considerar a música de concerto como principal referência de estudo. Nesse sentido, o capital
cultural adquirido no Sesi, condicionado pela estrutura, foi orquestrador dessas disposições.
Posteriormente à época do Sesi, quando dialoguei com outros espaços sociais,
minha compreensão sobre o gosto musical foi se transformando, assim como, em especial, o
meu olhar para a escolha de repertório para meus alunos. Durante minhas vivências no CAIC,
observei que o repertório contido no Método Suzuki não interessava muito aos alunos, não era
atraente. Alguns chegavam a perguntar: “Que música é essa?”. Em geral, a resposta dada era:
“São músicas do repertório mundial que vocês não estão acostumados a ouvir. Mas, com o
tempo, as percepções acabam se acostumando e serão apreciadas”.
Nas aulas de violino da UFCA, aconteceram fatos semelhantes no que se refere
aos questionamentos sobre o repertório proposto à prática instrumental dos alunos. Essa
experiência de reflexão acerca do repertório proposto na aula ensejou a escrita e a publicação
de um artigo nos anais de um evento nacional da Associação Brasileira de Educação Musical
88
(Abem), em 2013, com o seguinte título: “O ensino coletivo do instrumento de cordas
friccionadas, o repertório diversificado e suas influências no gosto musical dos graduandos da
Universidade Federal do Cariri”. Esse trabalho discute as dificuldades que os professores de
violino apresentam em inserir apenas músicas brasileiras em seus métodos praticados em sala
de aula. Assim, embora o repertório proposto pelo Método Suzuki não seja tão conhecido
pelos alunos no Cariri, ele provoca novas percepções estéticas ao incorporar a prática
instrumental dessas músicas. Segundo os autores,
A escolha desse tema se deve à mudança no gosto musical dos alunos da Prática
Instrumental – Violino/Viola, percebida na convivência entre os estudantes dentro e
fora da sala de aula. Analisando cada indivíduo da turma, nota-se uma diferença
considerável de gostos musicais. Enquanto uns aderem ao rock, metal e hardcore,
outros escolhem a música popular brasileira e pop internacional. Alguns se
identificam com a música religiosa e outros têm um gosto mais eclético, apreciando
todos os estilos citados e também muitos outros. Entretanto, há um fator que
promove a unanimidade entre todos: ao adquirir vivência com o repertório proposto
pelo professor, o indivíduo compreende aquela nova música ao seu gosto e
apreciação (ARAÚJO et al., 2013).
Nota-se que, a partir das experiências vivenciadas desde meu percurso formativo
do CAIC aos espaços da UFCA, houve um avanço na forma de atuar nos contextos de
docência. Associo esse crescimento, também, à experiência na Orcec. Como violinista da
orquestra, praticava um repertório diversificado que contemplava erudito, MPB, popular
regional, entre outros estilos. Além de apresentarmos regularmente um repertório da música
de concerto europeia, dialogávamos também com outros estilos musicais.
A Figura 16 mostra certa ocasião em que o cantor Gilberto Gil assistiu a uma
apresentação que fizemos com o violonista Antonio Menezes, o bandolinista Jorge Cardozo e
um grupo de choro executando peças brasileiras. Outra ocasião que merece registro foi uma
apresentação com o compositor e intérprete Hermeto Pascoal (Figura 17).
89
Figura 16 – Execução de peças brasileiras
Fonte: Arquivo pessoal.
Figura 17 – Apresentação com Hermeto Pascoal
Fonte: Arquivo pessoal.
90
Das músicas tocadas pela orquestra, a que me impressionou de modo
surpreendente foi a tocada em uma apresentação que fizemos com o grupo Irmãos Aniceto,
conforme mostra a Figura 18.
Figura 18 – Apresentação com o grupo Irmãos Aniceto
Fonte: Arquivo pessoal.
O diálogo da música popular regional com a música erudita, representadas pelos
grupos, fez-me compreender a importância de um olhar específico para a música de uma
determinada região. Outro aspecto interessante nessa união foi o processo de afinação dos
instrumentos. Os pífanos construídos e praticados pelos Irmãos Aniceto tinham uma afinação
definida e, por consequência, tornava-se complicado afinar com os instrumentos da orquestra.
As apresentações foram realizadas no Theatro José de Alencar, como também em outros
espaços no estado do Ceará. Em uma dessas apresentações, tivemos a presença do então
governador do Estado, Cid Ferreira Gomes, que, ao assistir à apresentação, ficou tão
impressionado que solicitou aos responsáveis pelo processo da união desses dois grupos a
gravação de um DVD patrocinado pelo governo estadual (Figura 19).
A Banda Cabaçal Irmãos Aniceto é um grupo tradicional da região do Cariri que
tem percorrido várias cidades do Brasil e do mundo. O grupo representa uma cultura
91
específica dessa região do Ceará por meio da dança e da música. Essa arte traduz a cultura
legítima da região.
Figura 19 – Capa do DVD “Irmãos Aniceto & Orquestra Eleazar de Carvalho”
Fonte: Arquivo pessoal.
Essas fortes impressões ficam gravadas em nosso interior. Naquela época, nem
imaginava que um dia estaria morando e lecionando na região do Cariri. Assim, ao escolher o
repertório para os alunos da UFCA, considerando o local onde se desenvolve o processo de
ensino e aprendizagem, é revelada uma intenção ético-política.
Ao tratar dessa dimensão ético-política, estou pensando no coletivo. Explico:
procuro inserir em minhas aulas, como também nas atividades da orquestra, um repertório que
contemple obras de autores da região. Nesse sentido, procuro considerar a música produzida
na região, ressaltando a identidade com a cultura local.
O som produzido no violino ou na viola de arco, ou seja, o discurso musical, deve
dialogar o máximo possível com a cultura da região. Nesse sentido, a forma de friccionar o
arco, o dedilhado, o vibrato não precisam evidenciar um sentimento romântico e sim um
golpe de arco na forma de legato, procurando, talvez, produzir um som com ruídos de modo
que se aproxime da rabeca. Esses aspectos são relevantes para o instrumentista, como também
para o ouvinte.
Assim, ao planejar a aula com boa antecedência, chegar sempre no horário
marcado, ou antes, do início das aulas, apresentar as dificuldades e possíveis soluções para o
92
domínio técnico do instrumento, estabelecer rotinas e alvos a serem alcançados pelos
estudantes, mas com o devido respeito e civilidade em relação ao aprendiz, transforma muitas
vezes um estudo técnico trabalhoso em uma experiência significativa. Se o professor faz tudo
isso sobre um repertório que reflete as características culturais da sociedade onde o estudante
está inserido e demonstra ao mesmo estudante a legitimidade desse repertório, então o
professor está cumprindo o papel que se espera de um docente de música: formar um cidadão
da melhor qualidade16. Essa postura professoral enfatiza a preocupação em formar cidadãos,
professores de música, de maneira que esses discentes não sejam receptores de uma
aprendizagem mecânica, levando muitas vezes ao esquecimento ou à inaptidão desse
conhecimento musical (ALBINO; LIMA, 2008).
Nesse sentido, buscando proporcionar uma aprendizagem significativa para os
alunos da UFCA, foi necessário refletir, compreender e dialogar acerca da metodologia de
ensino e aprendizagem que eu deveria aplicar com os discentes da disciplina de
Violino/Viola.
4.4 Metodologia de ensino do violino/viola
Durante minhas vivências nos espaços de formação violinística, experimentei
duas abordagens metodológicas: ensino coletivo e ensino tradicional (conservatorial). Antes
de descrever/refletir sobre a metodologia de ensino aplicada ao violino com os alunos da
UFCA, é importante considerar um breve resumo da história desse instrumento, como
também seu diálogo com a sociedade do Cariri.
O violino é um dos instrumentos mais importantes de uma orquestra que reproduz
música de concerto. O violino, a viola, o violoncelo e o contrabaixo são instrumentos da
família das cordas friccionadas. Isso significa dizer que necessitam do auxílio do arco sobre a
corda, provocando uma fricção, para a produção de som. Esses instrumentos surgiram na
Itália, no início do século XVI; entretanto, não se sabe ao certo ainda sua origem. Sobre o
desenvolvimento do instrumento, a pesquisadora Mariana Isdebski Sales, em seu livro
Arcadas e golpes de arco, afirma:
16 Notas de aula do professor Luiz Botelho Albuquerque.
93
[...] ao longo dos séculos, tornou-se comum e necessário o aparecimento de
documentos, livros, tratados e métodos sobre a técnica do violino. Citamos Giuseppe
Tartini (1692-1770), passando por Pietro Locatelli (1693-1746), em L’Arte del
Violino, datado de 1733, e Francesco Geminiani (1680-1762), em The Art of Playing
on the Violin, datado de 1751 e considerado o primeiro método de reconhecido valor
do instrumento. Apesar de sua origem italiana, Geminiani publicou-o em Londres
em língua inglesa. Outros tratados de técnica de violino foram sucedendo,
destacando entre eles o Versuch einer Grundlichen Violinsschule de Leopold Mozart
de 1756 (SALES, 2004, p. 13).
Durante o século XX, surgiram dois tratados, que merecem ser destacados, sobre
a técnica do violino: Kunst des violinspiel, de Carl Flesch, em 1928 (Alemanha); e Principles
of violin playing and teaching, de Ivan Galamian, de 1962 (Estados Unidos) (SALES, 2004).
Embora o estudo técnico do violino esteja largamente explorado e aparentemente
determinado, o ensino tradicional do violino é praticado de maneira individual, ou seja, um
professor para um aluno.
Ainda no século XX, todavia, o japonês Shinichi Suzuki desmistificou o
paradigma do talento, como também o processo de ensino tutorial, apresentando uma
metodologia de ensino coletivo para instrumentos de cordas friccionadas. Segundo Scoggin
(2003, p. 2), “O Método Suzuki, desenvolvido no Japão por Shinichi Suzuki, alcançou grande
sucesso internacional a partir de meados da década de 60, e vem sendo aplicado em diversos
países da Ásia, Europa e Américas”.
No Brasil, discutem-se e praticam-se diversas metodologias de ensino para
instrumento musical, como, por exemplo: ensino coletivo, aulas em grupo, aula coletiva,
aprendizagem musical compartilhada etc. Neste estudo, pretendo abordar duas metodologias
mencionadas que se destacaram em minha trajetória: ensino tradicional e ensino coletivo.
A metodologia de ensino coletivo foi disseminada no Brasil nos anos 1970, com
o professor Alberto Jaffé (SILVA, 2008; CRUVINEL, 2005). Jaffé implantou um método que
tem como objetivo a formação em massa de músicos de instrumentos de cordas. O autor
acreditava que o ensino coletivo seria o meio pelo qual se poderia alcançar esse objetivo.
Galindo (2000) defende a importância do ensino coletivo para a iniciação nos instrumentos de
cordas. Conclui, no entanto, que, após o aluno receber os primeiros fundamentos técnicos e
musicais, é desejável que passe a ter aulas individuais. Em suma, Galindo (2000) entende que
o ensino coletivo prepara o aluno para o ensino individual com os professores específicos de
cada instrumento.
94
Jaffé preocupava-se com o fato de que pelo método tradicional a formação inicial
de um aluno demandava muito tempo. A esse fato somava-se a necessidade de um grande
número de professores para se ter também um grande número de alunos em treinamento.
Naquele momento, entretanto, não havia disponibilidade de professores nem meios de
consegui-los. Jaffé, portanto, procurava uma fórmula efetiva de aproveitamento do trinômio
professor-tempo-aluno. Essa procura cada vez mais o conduziria na direção da metodologia
de ensino coletivo. Nessa fórmula, na qual um professor treina vários alunos
simultaneamente, Jaffé parece ter alcançado o motivo da aplicação dessa metodologia.
Esse método, inicialmente desenvolvido para o violino, foi posteriormente
aplicado à viola, ao violoncelo e ao contrabaixo. Essa expansão foi possível mediante a
utilização de elementos-chave da técnica comum aos quatro instrumentos da família das
cordas. Isso facilitou a abordagem simultânea de vários alunos e a evolução conjunta do
aprendizado. Por esse método, uma turma pôde então englobar em cada estágio violinistas,
violistas, violoncelistas e contrabaixistas em grupo de número muito variável. Jaffé não se
importava de, eventualmente, agrupar 20 ou até mais alunos em uma mesma sala de aula.
Além de observar suas vantagens didático-musicais, Jaffé (1976, p. 11) considerava esse
processo gerador de um alto índice de aproveitamento do tempo: “Não mais um professor
ocupando-se de um aluno em uma sala de aula com uma aula semanal, mas a desejada
multiplicação de resultados e, em conseqüência, a formação de novos músicos em massa”.
Embora o objetivo não fosse a formação de solistas, Jaffé buscava desenvolver
instrumentistas com habilidade técnica para executar música de qualidade. Percebia-se,
portanto, a meta de iniciar seus alunos na prática de orquestra desde os primeiros
ensinamentos. Segundo Galindo, na apresentação do livro Educação musical e transformação
social, de Flavia Maria Cruvinel (2000, p. 12),
O Professor Alberto Jaffé sempre foi muito claro: é realmente muitíssimo difícil
alguém imaginar uma carreira de solista, tocando um instrumento como violino ou
violoncelo, para alguém que começou a estudar com 15, 16 anos. Mas, para ser mais
exato, dizia o mestre que uma carreira de solista era algo que não figurava em seus
planos [...] Solista? Para quê? Seus objetivos eram outros: levar a prática musical
para muita gente, de todas as classes sociais; criar o hábito de fazer música em grupo
entre amadores, e, se de seus alunos surgissem alguns que enveredassem pelo
caminho da profissionalização, tanto melhor. Ajudariam a melhorar o padrão das
orquestras brasileiras, naquela época (e de certa forma hoje) tão carente de bons
instrumentistas de arco.
95
No cenário musical brasileiro da época, quando então prevalecia o formato de
ensino herdado dos conservatórios europeus, Jaffé procurou introduzir outra proposta: aplicar
um método de ensino coletivo que formasse instrumentistas em número satisfatório para as
orquestras. Esse processo implicaria também a disponibilidade de professores devidamente
preparados para a aplicação do método, visto que a demanda por docentes qualificados seria
proporcional ao previsível número crescente de alunos. Para administrar essa demanda, Jaffé
introduzia alguns alunos mais adiantados como monitores das turmas iniciantes, investindo na
preparação de futuros professores. Portanto, a multiplicação de professores representaria uma
possível multiplicação de músicos e de orquestras.
Desse modo, ao refletir sobre qual método de ensino de violino/viola eu
poderia/deveria ensinar aos alunos do curso de Música da UFCA, procurei dialogar com o
Projeto Pedagógico do Curso. Segundo o PPC, “A Prática Instrumental, assim como as
demais disciplinas, acontecerão coletivamente, buscando incentivar a colaboração, a
cooperação, a interação e a compartilha de saberes na aprendizagem” (UFCA, 2014, p. 25).
Os novos alunos ingressam no curso sem teste de aptidão e a maioria não possui
conhecimento prévio do instrumento. Compreendendo essas questões, optei por ensinar
coletivamente aos alunos das turmas de Violino/Viola da UFCA, ou seja, o processo de
ensino e aprendizagem acontece com diversos alunos em uma mesma sala de aula. Esses
ensinamentos se assemelham aos ensinamentos que vivenciei durante o Método Jaffé. Na
região do Cariri, esses instrumentos não são tão populares quanto o violão. Assim, minha
escolha metodológica justifica-se também em virtude do restrito uso desses instrumentos na
sociedade do Cariri. A ausência de maior incentivo ao ensino de Música no âmbito familiar,
na escola ou na sociedade (escolas de música, ONGs etc.) impede os alunos de uma
experiência musical antes do ingresso na universidade. Desse modo, procurando democratizar
a prática dos instrumentos de cordas friccionadas na região do Cariri, adoto uma abordagem
que acomode o máximo de alunos em uma mesma sala de aula.
Antes de iniciar a discussão acerca da metodologia, é importante compreender o
significado da palavra método e como esta se estabelece no contexto do ensino de Música. De
acordo com o dicionário Aurélio, compreende-se que “método” é um caminho pelo qual se
alcança um objetivo. Pode ser visto também como um programa planejado que regula
diversas metas que devem ser alcançadas. “Ensino”, por sua vez, é a ação ou o efeito de
96
ensinar. É, ainda, um dos principais meios de educação, a forma sistemática normal de
transmitir conhecimentos, em geral, em escolas.
Segundo Moura (2006), ensino e aprendizagem são processos que se
complementam. Analisados do ponto de vista etimológico, ensino e aprendizagem são duas
categorias que possuem suas peculiaridades. Ensino pode ser considerado um movimento
coordenado por um sujeito habilitado para mediar o ato pedagógico. Aprendizagem, por sua
vez, é o resultado dessa intervenção, implicando na assimilação de “saberes”, pelos sujeitos
aprendentes, que, depois de internalizados, serão socializados. Com efeito, compreende-se
que o conceito de método aplica-se bem a um conjunto de práticas ordenadas de ensino e está
fundamentado em uma teoria de ensino e aprendizagem.
Desde que foram estabelecidos os primeiros métodos para o aprendizado de
música, por volta do século XVII, com Comenius, os conceitos sobre aprender e ensinar
música foram sendo transformados ao longo do tempo (SILVA, 2008).
Gerling (1989, p. 47) chama de método “a sistematização de uma área de
conhecimento que possibilite, ao não iniciado, a aquisição de competência na área escolhida,
no menor prazo viável”. Segundo esse autor, para que um método venha a ser elaborado,
deve-se definir competência dentro da área de conhecimento, bem como os objetivos de
aplicação dos conhecimentos alcançados por meio do método. Nesse sentido, conceitua-se
competência como “a posse de um número de habilidades que permitem ao indivíduo a
execução de tarefas dentro de uma área de conhecimento com segurança, naturalidade e,
sobretudo, discernimento” (GERLING, 1989, p. 48).
Quando vivenciei o aprendizado de violino no Sesi com o professor Alberto Jaffé,
nos anos 1970, internalizei um saber violinístico por meio de uma metodologia de ensino
coletivo. Essa abordagem, apesar de ser inovadora, ainda estava fundamentada em uma
epistemologia europeia; contudo, encaminhou-me para a constituição de um habitus inicial
violinístico e me direcionou a outras instituições, permitindo tornar esse conhecimento mais
sofisticado.
Essa nova aquisição (bacharelado em Violino) de novos saberes violinísticos
proporcionou-me participar do teste de seleção para ocupar um cargo de violinista de
orquestra. É importante ressaltar que a atividade por mim exercida na orquestra como músico
não me proporcionava um exercício reflexivo. A função do músico, sentado em uma cadeira
no interior da orquestra, é passiva.
97
Existe uma relação muito próxima entre o bacharelado em instrumento musical e
a atividade de uma orquestra profissional. O discente do bacharelado desenvolve habilidades
técnicas que o capacitam a tocar de maneira sofisticada o instrumento. Com essa
compreensão, aplicar um método de ensino tradicional na região do Cariri não dialoga com a
necessidade dessa região. Desse modo, a metodologia de ensino coletivo aproxima-se do
ensino de violino dessa região e permite, também, ampliar essa prática instrumental no Cariri
para um maior número de estudantes.
A prática instrumental dos instrumentos de cordas friccionadas não é muito
democrática no Brasil. Os instrumentos construídos em luteria, que possuem uma melhor
sonoridade, não são baratos. Nesse sentido, torna-se inviável o seu uso por estudantes
provenientes das classes populares. Essas questões são discutidas por Glaucia Borges,
professora de violino da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), quando afirma que
a ausência de tradição dos instrumentos de cordas friccionadas ainda é um problema grave no
Brasil. Segundo ela, a distribuição de renda é realizada desigualmente e isso ocasiona
ausência de investimentos na cultura e, consequentemente, na área de Música (BORGES,
2003). Em decorrência de tal realidade, a autora afirma que
A música, por sua vez, não é percebida como fator de crescimento pessoal pela
população. Consequentemente, há restrita tradição musical, o que faz com que o
estudo e o trabalho do músico não sejam reconhecidos e valorizados tanto cultural
quanto financeiramente (BORGES, 2003, p. 26).
Essa maneira generalizante com a qual a sociedade trata essa área de estudos, sem
dar a ela o devido reconhecimento, reflete-se diretamente na falta de tradição do setor das
cordas friccionadas. Há ainda, contudo, por parte de alguns, uma preocupação em alinhar
esforços para o fortalecimento do estudo desses instrumentos. A exemplo disso, o curso de
Música da UFCA e os demais cursos de Música dos campi da UFC ofertam o ensino desses
instrumentos. Iniciativas como essa apontam para diminuição das distâncias estabelecidas
entre a música e a sociedade, bem como para consolidar esse setor de estudos.
Além disso, viabiliza aos alunos perspectivas de carreira no âmbito musical e
dispõe de oportunidade para inclusão social. De tal modo, a transformação da realidade
sociocultural dos alunos se inclui no âmbito das questões a serem significadas e enfocadas nos
cursos superiores de Música. A esse respeito, Freire (2011) reflete que devem ser propostas
98
diretrizes que tenham como objetivo uma efetiva significação social. Nesse caso, ela esclarece
que:
A educação, assim como a arte, interage com a sociedade, e é por esta determinada,
numa primeira instância, mas também nela influindo, ou seja, a educação se
relaciona dialeticamente com a sociedade, como elemento condicionado e
influenciando, por sua vez, o condicionante (FREIRE, 2011, p. 23).
Assim, tanto a educação como a arte e, mais especificamente, a música, são
instrumentos políticos, e, ainda que mantenham o potencial de adequação à sociedade, ao
mesmo tempo, atuam na transformação do homem e da sociedade. Esse movimento dialético
pode ser entendido de modo prático nas disputas que se apresentam no campo do ensino de
Música.
Pode-se dizer que há considerável contrassenso no âmbito da educação musical no
que se refere à música operar como fator de transformação social dos indivíduos, ao mesmo
tempo que se valoriza demasiado o uso de métodos que privilegiam alguns em detrimento de
outros. Essa afirmação aplica-se bem ao formato tradicional de ensino de Música, que adota
um professor para um aluno, reconhecida como ensino tutorial. Essa maneira de ensinar
música reúne as mesmas características da educação tradicional, mencionadas por Albino e
Lima (2008, p. 119):
[...] trabalha basicamente com a transmissão de informações. Nesse modelo, cabe ao
professor, com o auxílio do livro-texto transmitir os conhecimentos ao aluno. Nessa
modalidade são raras as situações em que o aluno é estimulado a raciocinar sozinho.
O aluno não é visto como um construtor do conhecimento.
Refletindo sobre essa citação, posso assinalar que é possível associar o processo
de ensino conservatorial ao ensino tradicional da educação. O ensino tradicional dos
instrumentos de cordas friccionadas também é conhecido como conservatorial, tutorial. Nesse
modelo, o professor apresenta o conhecimento ao aluno, que tende a repetir várias vezes até
incorporar uma prática. O aluno não reflete, não improvisa, ele procura memorizar e
reproduzir o que é feito pelo professor. Assim, a função do professor é apresentar ao discente
todas as ferramentas didáticas (instrumento musical, partituras musicais, métodos e outros), o
conhecimento para que o aluno aprenda a tocar. Nesse sentido, o ensino tradicional tem como
prática no processo de ensino e aprendizagem a transmissão de informações.
Em contraposição a esse padrão, revela-se como alternativa o ensino coletivo,
preocupando-se em proporcionar o ensino do instrumento musical a um maior número de
99
alunos, flexibilizando o acesso e facilitando o aprendizado. Nesse caso, a aprendizagem
ocorre em um contexto grupal, de sociabilidade, em que se exercita e se desenvolve em um
espaço de colaboração, de experiências e de práticas coletivas.
Entendo que essas duas metodologias têm objetivos diferenciados. Enquanto o
ensino tutorial procura preparar instrumentistas para orquestras profissionais ou para serem
solistas, o ensino coletivo centra sua proposta em oferecer um ensino mais democrático,
concentrando esforços mais no processo do que em resultados.
Apoiando-se no significado dessas duas posições, o curso de Música da UFCA fez
a opção por trabalhar com um ensino mais democrático, que atendesse às reais necessidades
do público caririense. Assim, adotou o ensino coletivo como metodologia para as práticas
instrumentais. Com efeito, é ensejado aos discentes, ao adentrarem na universidade, uma
vivência musical por meio do aprendizado de um instrumento. Essas experiências são
desfrutadas nos dois primeiros anos de curso e se complementam nos anos seguintes,
dialogando com outras disciplinas, outros projetos e outras atividades. Pode-se dizer que são
vivências transformadoras, porquanto são saberes estabelecidos, que preparam os discentes
para atuarem na sociedade ao concluírem o curso. Logo, capacitam o egresso para ministrar
aulas de Música em diversos espaços, como também participar de grupos musicais, tocar em
diversos tipos de eventos, onde a música tem uma função determinante, provocando, também,
emoções e afetividades.
Tais aspectos me remetem à Teoria da Aprendizagem, expressa por Vygotsky, ao
entender que ela pode dar suporte teórico ao ensino coletivo dos instrumentos de cordas, haja
vista que a apropriação do conhecimento se dá com origem na percepção dos estímulos
externos, da elaboração cognitiva dessa percepção e da ação responsiva a essa percepção.
Assim, considero importante o diálogo do processo de ensino e aprendizagem nas aulas de
violino/viola com autores da educação.
4.5 Ensino coletivo
O método de ensino coletivo empregado em minhas aulas na UFCA tem como
objetivo inicial proporcionar aos discentes uma vivência musical através do violino ou da
viola. Em sala de aula, os alunos escutam atentamente os ensinamentos que compartilho com
eles, os quais são frutos de minha experiência musical. Desse modo, aceitar vários alunos em
uma mesma sala significa proporcionar a diversos alunos esse conhecimento musical.
100
Desde 2010, ano em que ingressei na UFCA como professor, tenho requerido, por
meio de editais e projetos, à Pró-Reitoria de Ensino (Proen) bolsas para os alunos mais
experientes, para que possam através da monitoria compartilhar os conhecimentos
vivenciados em sala de aula com o professor. Depois de sete anos, tenho percebido que os
alunos desenvolvem com consistência o conteúdo apreendido quando compartilham com seus
pares (alunos de uma mesma sala) o conteúdo empregado. Nesse mesmo sentido, reporto-me
à teoria de Vygotsky discutida por Benedetti e Kerr (2009, p. 81, grifos dos autores), quando
expressam que
a capacidade de se apropriar da bagagem sócio-cultural acumulada historicamente
constitui o aspecto central do desenvolvimento e a gênese do psiquismo humano.
Este, com suas características específicas – linguagem, tipos memória, pensamento
conceitual-abstrato, lógico, classificatório – deixa de ser concebido como fruto de
uma essência universal inata, biologicamente herdada, mas sim, como algo
construído no decorrer do processo histórico-social [...]. O processo de apropriação
tem como resultado a reprodução no e pelo indivíduo das aptidões e funções
humanas, historicamente formadas.
Dessa forma, Vygotsky propõe que as funções psíquicas do sujeito se originam no
âmbito exterior ou social para depois serem apropriadas e interiorizadas. Esse processo de
aprendizagem é visto por ele não como memorização mecânica, ou reprodução de ações ou
informações, mas, sim, como apropriação do conhecimento, processo ativo de apreensão,
interiorização e compreensão.
Benedetti e Kerr (2009) explicitam que o termo apropriação refere-se ao processo
pelo qual o sujeito interioriza e apreende o mundo social com seus esquemas mentais,
significados e valores, tornando-os seus. Isso implica dizer que também torna a fazer parte de
seu corpo.
Percebe-se, portanto, que o processo de aprendizagem é iniciado no mundo
exterior ou social. No método coletivo, o professor executa uma determinada melodia e seus
aprendizes escutam, memorizam e depois reproduzem. Ao reproduzi-la, os alunos
compartilham juntos e/ou separados a melodia de forma coletiva, contribuindo, assim, para a
interiorização da música na prática instrumental. Na teoria de Vygotsky, o aprendizado é o
resultado de uma relação dialética entre o sujeito e o mundo exterior, ou seja, o homem
transforma o meio e o meio transforma o homem.
Nesse sentido, a orquestra da UFCA apresenta-se com um laboratório que
proporciona esses momentos de aprendizagens coletivas no contexto de situações em que eles
101
interagem socialmente e, dessa forma, desenvolvem aspectos cognitivos e de relações
interpessoais.
4.6 Orquestra da UFCA
Durante minhas vivências no curso de Música da UFCA, observei que as
disciplinas de práticas instrumentais Violino/Viola e Violoncelo/Contrabaixo poderiam
cultivar um exercício coletivo em um mesmo ambiente. Desse modo, em 2011, procurei
dialogar com o professor Claudio Mappa, responsável pela disciplina de
Violoncelo/Contrabaixo, para juntos alcançarmos esse objetivo.
Essa união proporcionou também a percepção dos alunos para outros timbres
diferentes de seus instrumentos. Assim, os discentes dos instrumentos com timbres graves
ouvem os instrumentos de seu próprio naipe e, simultaneamente, escutam os timbres agudos
dos outros instrumentos, assim como os alunos que tocam instrumentos de timbres agudos
escutam ao mesmo tempo os instrumentos de timbres graves. Essa massa sonora que compõe
uma orquestra de cordas tem um vasto repertório para ser tocado, explorando a técnica
musical desses instrumentos em vários níveis.
Essa visão é resultado de minhas vivências no Sesi nos anos 1970. Nasci
musicalmente dentro de uma orquestra. O professor Jaffé utilizou as semelhanças entre os
instrumentos para iniciar o processo de ensino e aprendizagem dos instrumentos da família
das cordas friccionadas. Com efeito, os aprendizes de violino, viola, violoncelo e contrabaixo
poderiam praticar em uma mesma sala de aula.
No caso dos alunos da UFCA, os de Violino/Viola, como também os da Prática
Instrumental Violoncelo/Contrabaixo, têm o início do aprendizado musical com o professor
da disciplina. Essas vivências com o instrumento se expandiram desde o aprendizado inicial
com o professor Jaffé, perpassando também pela experiência na graduação/bacharelado no
instrumento, nos conhecimentos adquiridos em orquestras profissionais e amadoras, no
mestrado em Práticas Interpretativas na Subárea Violino, entre outros. O professor de
violoncelo/contrabaixo tem o diploma em bacharelado em contrabaixo, músico profissional
com experiências na música de concerto, música popular e jazz.
Assim, a primeira música foi um arranjo de “Brilha, brilha, estrelinha” pelo
violinista e pedagogo Shinichi Suzuki, em seu método para quarteto de cordas. O professor
Claudio Mappa fez o arranjo de uma peça do repertório popular brasileiro, considerando o
102
nível técnico dos alunos. Fiz o arranjo de “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga, de forma que esse
repertório dialogasse também com a região do Cariri.
Esses primeiros passos deram forte impulso para a prática instrumental de cordas
friccionadas. Foi possível perceber a alegria dos alunos em praticarem o repertório proposto.
Essa nova orquestra foi convidada para tocar na abertura da Semana de Biblioteconomia, e o
público desse evento, além de prestigiar a apresentação, ficou impressionado com o
desenvolvimento musical dos alunos.
Em 2012, a Revista da UFC fez uma reportagem sobre os novos cursos
implantados através do Reuni. Naquela edição, encontramos uma menção sobre a Orquestra
da UFC – Cariri (posteriormente o nome mudou para Orquestra da UFCA), como mostra a
Figura 20.
Figura 20 – Orquestra da UFCA
Fonte: Revista da UFC.
Destaca-se, também, nesse projeto de extensão, a inclusão de alguns alunos
instrumentistas da sociedade caririense que, após a experiência na orquestra, fizeram a prova
do Enem e, com a aprovação, matricularam-se no curso.
No Cariri, a UFCA emerge apresentando nova configuração de universidade. Ela
se manifesta exibindo, em vez de três, quatro pilares, ou seja, ensino, pesquisa, extensão e
cultura. Assim, a orquestra tornou-se um projeto interinstitucional da Pró-Reitoria de Cultura,
que proporcionou para os alunos dez bolsas.
103
Em 2013, a orquestra recebeu o convite para participar do I Festival de Orquestras
Eurochestries, na cidade de Sobral. Apresentei aos alunos a necessidade de participação em
festivais para o fortalecimento do aprendizado na performance musical. Nesse festival, foi
possível conviver com regentes, músicos, professores do Brasil e de outros países,
fomentando a elaboração do conhecimento musical em várias perspectivas.
Ressalto a visão dos alunos iniciantes, que tiveram dificuldades de tocar o
repertório proposto no festival. Eles destacaram o ritmo acelerado, no interior da orquestra,
para decifrar os sinais da partitura e transformá-los em som por meio do instrumento. A
Figura 21 apresenta a orquestra no referido festival, que causou forte impacto nos jovens
estudantes da UFCA.
Figura 21 – Orquestra da UFCA no I Festival de Orquestras Eurochestries
Fonte: Arquivo pessoal.
Nos dias de hoje, a Orquestra da UFCA proporciona ao público do Cariri, como
também ao de outras cidades e estados circunvizinhos, uma apreciação musical mediada pela
prática instrumental. O grupo é solicitado para tocar na abertura de vários congressos. Esse
conjunto de aspectos, discutidos neste capítulo, demonstra que o trabalho realizado na UFCA
tem proporcionado aos jovens caririenses o acesso aos códigos musicais.
A adoção, em minhas aulas de violino/viola, do ensino coletivo como
metodologia adequada para iniciação musical de instrumentistas, como também a criação da
104
orquestra da UFCA, que proporciona aos alunos uma vivência musical através de um
repertório eclético composto por diversos estilos, têm procurado atender à carência de
professores nessa área e de escolas de músicas na região para atender a uma grande demanda.
Esse cenário de poucos investimentos e incentivos na área de educação musical é
discutido também pela professora Liu Man Ying (2007, p. 7) em sua dissertação de mestrado,
quando diz:
A presente dissertação parte da reflexão sobre a importância dos métodos de ensino
coletivo de instrumentos de cordas na educação musical do Brasil, tendo em vista a
precária situação em que se encontra essa área no país, onde a falta de um ensino
musical de base se faz presente, pois as escolas de música e conservatório são, em
sua maioria, de caráter privado e inacessíveis para a grande parte da população que
não possui condições econômicas para frequentar tais instituições. As poucas
escolas de música existentes e projetos não governamentais que empregam a
educação musical como meio de integração social são insuficientes para atender à
enorme demanda.
Assim, compreendo que minha formação inicial nos espaços do Sesi, na década de
1970, minhas vivências em festivais, o aprendizado experimentado nos cursos de bacharelado
e de licenciatura em Música e no mestrado oportunizaram-me uma maturidade musical que
me tem permitido contribuir na formação de outros educadores musicais na região do Cariri.
Embora reconheça que essa região possui grande demanda de pessoas que necessitam
experimentar uma vivência musical, minha escolha em utilizar o método coletivo e a criação e
manutenção da orquestra deverão também multiplicar esses educadores a partir de minha
experiência. Espero que, em poucos anos, tenhamos diversos educadores, músicos e
professores proporcionando uma arte musical para os moradores dessa região, diminuindo,
então, a carência de profissionais na área.
105
5 AUTOANÁLISE DA TRAJETÓRIA DO AGENTE
Neste capítulo, sintetizo uma autoanálise de minha trajetória de formação
procurando apresentar uma compreensão dos aspectos formativos que me encaminharam à
posição que ocupo nos dias de hoje, ou seja, professor de uma universidade federal. Assim,
apresento minha caminhada dialogando com o livro Esboço de auto-análise, de Pierre
Bourdieu, por entender que me fornece meios para avaliar minha constituição como agente do
campo musical. Essa perspectiva demonstra os resultados de minhas relações com as
estruturas sociais.
Descrevo também a incorporação de um habitus violinístico-docente,
fundamentado em um capital de mobilidade que tem início no ambiente familiar chegando até
o momento da escrita deste trabalho. Finalizo o capítulo destacando, a partir de minha história
de vida, os momentos de transição, de evolução, conhecidos como “momentos charneira”,
marcadores de minha progressão social.
5.1 Leitura da tese a partir do livro Esboço de auto-análise
Ao escolher minha história de vida como objeto de pesquisa, tornou-se necessário
observar, também, a evolução do pensamento dos pesquisadores que inspiraram este trabalho.
Propus esta análise iniciando por Bourdieu, que enfatiza o grupo, a classe, tendo a
sociedade como objeto de estudo, para em seguida verificar o trabalho de Bernard Lahire, que
escolheu destacar o indivíduo, tomando, assim, um grupo pequeno de pessoas como seu
objeto de estudo (NOGUEIRA, 2013). Partindo desses dois modelos de análise, chego ao meu
próprio objeto de estudo, olhando para mim como agente de minha história e da constituição
de um habitus docente.
São, desse modo, três leituras da realidade que enfocam a sociedade como um
todo, os indivíduos e uma subjetividade em particular. Partir dessa análise conjunta significa
explorar os limites das teorias, seu poder explicativo quando aplicada a objetos de diferentes
tamanhos. De fato, há uma transformação progressiva das teorias para dar conta de diversos
objetos de estudo; e é isso que torna este trabalho vivo e interessante. O próprio Bourdieu
começa dedicando-se aos grandes aglomerados (classes) e termina explorando sua própria
autobiografia (BOURDIEU, 2005).
106
Assim, nesta pesquisa, procurei me expor com desprendimento, desvelando o que
é relevante no diálogo com várias estruturas sociais. Desse modo, revelo também que a
constituição de meu habitus docente musical não é a
[...] réplica de uma única estrutura social, na medida em que é um conjunto
dinâmico de disposições sobrepostas em camadas que grava, armazena e prolonga a
influência dos diversos ambientes sucessivamente encontrados na vida de uma só
pessoa (WACQUANT, 2007, p. 68).
De tal modo, a tese revela os principais aspectos que me fizeram alcançar a
posição dominante em uma estrutura tendo como origem uma classe social dominada. Ao
olhar para minha história e analisá-la, procurei apropriar-me de mim mesmo e de minha
trajetória como objeto de estudo. Nesse caso, as autobiografias correspondem à necessidade
de síntese daqueles agentes que alcançam um ponto relevante de suas vidas, olham para trás,
desvelando nesse processo a história social do autor.
Nesse sentido, procurei examinar de início o estado do campo no momento em
que nele ingressei, como também o porquê e de que maneira me tornei violinista e professor
de violino. Procurei, além disso, assimilar como outros professores ou profissionais ajudaram-
me a perceber a vida profissional.
Para compreender essa ascensão desde minha infância/juventude e clarificar
minhas escolhas, minhas tomadas de posição, foi preciso saber também qual posição objetiva
eu ocupava no campo específico que agi, quais as disputas e quais os entendimentos
subjacentes que caracterizavam o campo.
Ao apresentar o estado do campo na década de 1970, rememoro a fala inicial de
Bourdieu (2005, p. 40) no seu Esboço de auto-análise: “Compreender é primeiro
compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez”. Desse modo, procuro
compreender como fui, enquanto agente, inserindo-me nesse espaço. Para isso, foi importante
apresentar os confrontos e as afinidades, assim como minhas posições diante das diferentes
concepções teóricas de ensino e de prática musical vivenciadas naquele período.
Minha percepção aponta para alguns momentos de destaque em minha formação,
três de minhas principais experiências institucionais, talvez as mais importantes do ponto de
vista individual: uma realizada com o professor Jaffé, no Sesi; a outra, na UFPB, que se
completa na UECE; e a última, no mestrado em Práticas Interpretativas de Violino na UFPB.
107
Essas experiências, cuja motivação e cujo interesse me foram inculcados
inicialmente por minha mãe, promoveram uma transformação daquele menino jogador de
bola na rua em um professor universitário. De tal modo, obtenho o entendimento que fazer
esse inventário de minha trajetória adquire, assim, o mesmo papel descrito por Sergio Miceli
no prefácio do livro citado, ao afirmar que Bourdieu se saiu bem na “empreitada de fazer
justiça a si mesmo, àquele menino provinciano, àquele rapaz amargurado, àquele normalista
inseguro quanto ao rumo a tomar [...]”. (BOURDIEU, 2005, p. 17). Logo, considero que a
análise da história que me tornou quem sou, semelhante à narrativa de Bourdieu, constitui-se
em “fazer sociologia, como se fosse um romance de formação” (BOURDIEU, 2005, p. 17).
Nesse itinerário, o bairro Carlito Pamplona é minha comunidade de referência.
Procuro relatar o complexo processo de desnaturalização que passei para poder objetivar
aquele mundo tão familiar. Desafio metodológico, emocional e subjetivo de confrontação com
o universo primeiro que me formou e do qual precisei me distanciar.
Buscando uma clareza expositiva e um poder explicativo, esta pesquisa foi
organizada de acordo com uma lógica analítica que parte de uma dimensão mais objetiva (a
descrição do estado do campo musical intelectual cearense no momento de meu ingresso) para
chegar ao mais subjetivo (minhas experiências de família, escola, deslocamentos durante
minha infância e juventude). Essa operação procura apresentar minha intimidade (origem,
sotaque, modo de ser, trejeitos etc.) como elemento para análise sociológica.
O que procurei, então, foi compreender a formação das disposições intelectuais,
afetivas, motoras, cognitivas e ético-políticas de um violinista e professor de violino em uma
universidade pública federal, associada às posições ocupadas no campo, desde o ingresso até
o momento da análise. Também busquei entender a maneira como essa posição evoluiu no
tempo e está associada às minhas tomadas de posição técnica, estética, teórica e ético-política.
De certo modo, as informações que a autoanálise explicita a respeito do agente
são similares àquelas que todos nós teríamos apreciado encontrar quando estudávamos os
artistas do passado ou mesmo os contemporâneos, questionando como aquele jovem estudante
se tornou o artista renomado que conhecemos. E mudando o que deve ser mudado em termos
teóricos e metodológicos, isto é, o mesmo que Norbert Elias faz com Mozart (ELIAS, 1995),
Tia DeNora faz com Beethoven (DENORA, 1995), Paulo R. Guérios procede com Villa-
Lobos (GUÉRIOS, 2011), Elba Ramalho, com Luiz Gonzaga (RAMALHO, 2000) e Pedro
Rogerio, com Roger Rogerio (ROGERIO, 2011). E, em especial, o que Bourdieu faz com ele
108
mesmo quando adere à autobiografia, cujo trabalho foi inspiração para esta escrita
(BOURDIEU, 2005).
Além disso, considerar minha origem social humilde remete-me também aos
estudos de Bernard Lahire. Sou um daqueles casos de sucesso improvável, discutidos por ele
e, como tal, a negação do processo de violência simbólica que imprime no habitus a
inevitabilidade dos destinos sociais. Ao lembrar Loic Wacquant, posso afirmar que minha
trajetória foi a exceção às leis de transmissão de capital cultural que Bourdieu havia
estabelecido. Esse reconhecimento o próprio Bourdieu o faz ao defrontar-se com um habitus
clivado, referindo-se a sua experiência dual, expressa em uma elevada consagração e uma
baixa extração social, movida por tensões e contradições.
Essa similaridade é atestada no fato de que, sendo agente do campo musical, sou
ao mesmo tempo filho de um modesto motorista e de uma cabeleireira. Tive, portanto, todas
as dificuldades derivadas dessa origem social que se traduziram na ausência de
oportunidades educacionais adequadas, de acesso a bens culturais refinados e experiências
enriquecedoras proporcionados pelo capital econômico. Entretanto, minha trajetória escolar
e as experiências formadoras (Projeto Jaffé, viagens e participações em festivais de música
erudita no Rio de Janeiro e em São Paulo, os concertos, os contatos com músicos de destaque
internacional, além de um presente especial – meu primeiro violino) foram determinantes e
me conduziram ao mundo dos herdeiros da aristocracia escolar na universidade, lugar dos
eleitos, que reunia os melhores estudantes, no melhor curso para a formação de músicos
violinistas.
Da observação desses movimentos, esboçados nesses trajetos, emerge esta
análise. Compreendo, então, que minha trajetória perpassa por vários ciclos e,
concomitantemente, por muitos pontos de convergência. Visualizo, desse modo, essa
caminhada em três etapas. Na primeira, curso o ensino básico, vivencio a “experiência
Jaffé” e os festivais de música que me encaminham para o bacharelado em Violino. O
retorno a Fortaleza e a necessidade de experiências no campo da docência me encaminham,
por sua vez, para um curso de licenciatura em Música. Na segunda etapa, ao procurar
ingressar no campo da docência, realizo um novo/velho deslocamento para João Pessoa,
dessa vez para cursar um mestrado em Práticas Interpretativas. Finalmente, na terceira
etapa, submeto-me a um concurso público, buscando conquistar uma vaga no ensino
superior. Passo, assim, a ocupar a função de professor da UFCA e, em seguida, participo do
109
processo seletivo para o doutorado e sou aceito no programa. Mediante esse delineamento,
percebo que minha trajetória é construída em forma de um espiral ascendente que me
permite ver cada uma dessas elaborações com maior clareza e em relação umas às outras.
Por conseguinte, posso representar meu processo formativo significado pela configuração de
uma espiral, figurativamente esboçada a seguir (Figura 22).
Figura 22 – Processo formativo
Fonte: Elaboração própria.
A leitura dessa imagem aplica-se à análise que realizo na perspectiva da
mobilidade feita dentro do campo. Primeiro, sofro o impacto do mundo nas primeiras
experiências vividas nos contextos familiar e escolar-musical. Passo a ter outra visão do
campo docente musical adquirindo uma perspectiva de ocupar a função de professor
universitário, ao cursar uma licenciatura em Música, para ocupar, finalmente, a posição de
professor do ensino superior e chegar a concluir o doutorado, adquirindo, desse modo, uma
posição autônoma dentro do campo. A despeito de todas as dificuldades, ambivalências e
contradições, segui uma trajetória adequada a promover uma carreira daqueles que se
destinam a um lugar no mundo da alta intelectualidade.
Essa trajetória evoca uma primeira interpretação que se retrata no desajuste entre
minha origem social subordinada e um destino social dominante, entre a aquisição de um
habitus primário subordinado no ambiente familiar e a gradual substituição por um habitus
Projeto Jaffé
– Habitus
Primário
110
cultural dominante através da educação e da disciplina. Refletir sobre essas questões
possibilita compreender os fundamentos de minhas tomadas de posição, dos capitais escolares
acumulados e das posições profissionais alcançadas.
Esse contexto reflete com clareza a tensão entre origem social e financeira nas
camadas dominadas e o destino nos estratos sociais dominantes. Essa tensão cria a
ambiguidade de minhas relações com a futura instituição escolar (bacharelado em Violino).
Isso porque havia em mim um sentimento de insegurança acerca de meu futuro musical, e o
fato de não possuir o instrumento (violino) naquele momento corroborava essa inquietação.
Minhas próprias expectativas de desempenho para alcançar a consagração de músico
profissional de orquestra, da música de concerto, também passam a ser questionadas pelas
expectativas de sucesso no campo musical a ser conquistado.
Outro aspecto da ambiguidade com o mundo escolar manifesta-se nas opiniões
contrastantes de meus pais a respeito da viabilidade da música como alternativa profissional,
acentuando, assim, o conflito entre ser bancário ou advogado versus ser músico.
Elaborar este texto, confrontando essas memórias em um contexto analítico, aflora
a forte emoção de rememorar esses fatos e demonstra o quanto esse tema é rico em
significados e de uma complexidade que o torna efetivamente uma análise sociológica da
trajetória desse agente que sou eu. E é compreensível que, ao me aproximar da máxima
consagração, na defesa de tese, minhas emoções estejam em seu auge. O menino que jogava
bola no meio da rua agora empunha a batuta do maestro e ocupa a cadeira do professor que
forma outros professores para empoderar meninos que jogam bola em alguma rua. Assim, o
habitus primário sofre uma modificação singular para se tornar o habitus professoral do
ensino superior.
Minha trajetória confirma a teoria empregada para descrevê-la. Meu habitus
deslocado naquele espaço social possibilita uma visão distanciada daquela realidade que não
era em nada natural para minhas disposições. Entendo, assim, que aqueles que ocupam
posições frágeis no interior do campo têm mais oportunidade de tomarem consciência das
desigualdades socioculturais pelo fato de se verem obrigados a se vigiar e a corrigir
constantemente suas condutas, por conta de um habitus gerador de comportamentos pouco
adaptados ou deslocados e que deve ser substituído por outro, capaz de dar conta dos novos
desafios.
111
Esse ponto da teoria é fundamental, porque ilumina a questão das possibilidades
de modificar a trajetória através da escola e, com isso, escapar da reprodução mecânica das
condições iniciais de existência. Minha história, especificamente, demonstra que existe algo
além da reprodução. Embora improvável, o sucesso é possível através de mecanismos de
escolarização abertos a todos.
O que distancia das concepções mais estruturalistas por dar espaço às
contingências é também o que possibilita uma existência como a minha. Essa existência que
negou meu destino provável, permite-me, enquanto agente ou pesquisador, por um lado,
perceber a lógica da reprodução das desigualdades, mas também postular a possibilidade de
inadaptação entre o habitus e os espaços sociais, a possibilidade de deslocamentos que podem
desorganizar as estruturas.
Nesse trajeto, a transformação do habitus teria decorrido de uma percepção desse
agente a respeito das condições de vida nos estratos dominantes? Que tipo de percepção eu,
enquanto agente em constituição, teria a respeito dos processos aos quais estava me
submetendo? Poderia a influência materna ser baseada em algum cálculo racional? Teríamos
nós (agente e mãe) alguma certeza tácita da possibilidade de modificação das condições de
vida através da educação?
Certamente que eu poderia escapar da determinação social de meu destino através
de estratégias escolares, considerando que elas têm um grande poder explicativo. No entanto,
elas não explicam tudo. Há que se considerar também outras possibilidades, como a
motivação materna, meu próprio esforço e dedicação reconhecidos por meus professores, o
estímulo incrementado pelas viagens, o exemplo de outros agentes consagrados no campo e a
generosidade de um professor digno desse título.
A convergência desses aspectos encontra sua culminância em 1979, no Festival de
Teresópolis, ocasião em que tenho um encontro com o professor Santino Parpinelli, de quem
recebo o incentivo mais importante, na forma de um violino francês, além de uma carta de
recomendação a meus pais e um convite para continuar meus estudos no Rio de Janeiro:
documentos e modos de consagração e instituição no campo. O impacto causado por esse
evento, em meu interior e no ambiente de minha família, é enorme.
Esse efeito é consolidado no ano seguinte, no Festival de Campos do Jordão, para
onde tive a oportunidade de viajar para participar do festival com a ajuda de uma bolsa de
estudos. Por essa ocasião, toquei na orquestra do festival sob a regência do maestro Eleazar de
112
Carvalho e tive a felicidade de assistir pessoalmente à performance do violinista Salvatore
Accardo, além de muitas outras experiências formadoras que reforçaram minha decisão de
seguir no campo musical. Essa decisão é cheia de consequências de longo prazo.
De tal modo, no contexto dessas experiências, o habitus vai sendo elaborado,
enquanto matriz do pensamento que orienta as práticas do agente e como princípio ordenador
das decisões que o sujeito toma sobre seu destino, sem que este se dê conta do que o guiou em
suas escolhas. Esse processo é esclarecido por Bourdieu (1994, p. 80-81) na seguinte citação:
As experiências [...] se integram na unidade de uma biografia sistemática que se
organiza a partir da situação originária de classe, experimentada num tipo
determinado de estrutura familiar. Desde que a história do indivíduo nunca é mais
do que uma certa especificação da história coletiva de seu grupo ou de sua classe,
podemos ver no sistema de disposições individuais variantes estruturais do habitus
de grupo ou de classe, sistematicamente organizadas nas próprias diferenças que as
separam e onde se exprimem as diferenças entre as trajetórias e as posições dentro
ou fora da classe.
Assim, o novo habitus está sendo incorporado e vai se consolidar e se tornar a
lógica prática da vida cotidiana do futuro professor e regente. E vai apresentar-se na
reprodução, de forma notavelmente fiel, do habitus violinístico recebido do professor Jaffé e
dos outros que o sucederam; foi incorporado como disposição durável. Esta manifesta-se de
forma explícita na infinidade de detalhes que a prática do violino impõe ao aprendiz. Seria
ocioso detalhar aqui todos os aspectos desse habitus, bastando considerar os quatro séculos de
consolidação do instrumento e a ampla literatura que especifica nos mínimos detalhes cada
ação para perceber o quanto de Jaffé vive no agente Marco Antonio. Mas mesmo essa
reprodução não é total ou mecânica.
Retomando o momento da aquisição do meu primeiro violino, pondero a respeito
dessa circunstância. Entendo agora que a consciência dos limites financeiros de minha origem
me levou a uma providência que se mostrou crucial: pedir um instrumento. Esse foi um
momento decisivo em minha vida, pois propunha superar uma dificuldade importante, a
ausência de condições para obtê-lo, e lançar-me na busca de conquistá-lo através de uma
coragem humilde.
Para músicos oriundos das classes populares, a aquisição de um instrumento é um
fator crítico no sucesso dos estudos e na vida profissional. Quantos jovens motivados
desistem da música exatamente por falta de um instrumento disponível para estudar em casa
aproveitando os momentos livres! Além disso, o instrumento sintetiza uma dimensão quase
113
mágica da experiência musical: ele é a materialização de toda uma cultura musical, de uma
história, de uma tecnologia; mantê-lo implica em cuidados especiais, como limpeza, afinação,
guarda, proteção e transporte.
Todos esses aspectos permeiam a construção do habitus violinista, que tem uma
dimensão física, orgânica, muito importante. O instrumento é incorporado ao músico e ambos
passam a se adaptar, ajustar-se um ao outro. É um ajuste durável, talvez para o resto da vida
de ambos. A posição do instrumento encaixado e seguro entre o ombro e o queixo e o ajuste
de queixeira e ombreira são detalhes mínimos, mas de uma enorme intimidade e relevância
para a prática cotidiana. Implicam uma aprendizagem muscular que vai ser decisiva para o
bom desempenho do uso do instrumento. Depois, vem a mão direita e o arco, que implicam
todo um conjunto de ajustes, força, controle muscular e a criação de uma memória corporal do
ajuste entre o lado direito e o esquerdo do corpo para conseguir o resultado desejado.
A cada início de atividade, a montagem, a resina, a afinação, a respiração, os
exercícios preparatórios, a escolha do programa do dia, a montagem da estante e das
partituras, as repetições, o estudo detalhado das dificuldades técnicas de cada peça, tudo isso
significa incorporar, colocar dentro do corpo, fazer-se um com o instrumento. É tudo isso que
significa adquirir o habitus violinístico: cognição, afeto, ética e motricidade mediando o
contato com um instrumento para criar algo de novo, belo e significativo.
A incorporação do habitus se faz pela repetição dessas rotinas e pelo estudo e pela
memorização do controle muscular e do repertório, num processo que exige milhares de
horas. Implica também na adesão a um referencial de valores, preferências estéticas, saberes e
habilidades físicas específicas do campo violinístico.
Essa aquisição do habitus violinístico depende do contexto sociocultural onde
essa atividade faça sentido. Pensar sobre isso significa discutir a inserção da música na
divisão social do trabalho num tempo e espaço determinados. A vida em um mundo marcado
por disparidades, injustiças e pela necessidade de responder ativamente a esses desafios foi o
cenário que experimentei desde muito cedo no ambiente familiar, na escola, no mercado de
trabalho, entre os amigos e nas viagens. Foram tensões estruturantes de meu pensamento e
uma chave para a compreensão das opções que definiram minha trajetória enquanto violinista.
Nesse contexto de elaborações de minha subjetividade, questionava sob diversos
aspectos a situação que me envolvia. Não obstante a esses questionamentos fazerem parte de
minha constituição, enquanto sujeito desses acontecimentos, não representavam o sentido das
114
indagações que hoje faço ao me deparar com um olhar analítico acerca desses processos.
Diante disso, a reflexão que faço hoje perfaz o significado de refletir acerca das ideias que
moviam meus atos dentro de um campo no qual me posicionava. Será que vi na música um
caminho de ascensão social? Será que tentei evitar reproduzir as condições financeiras
adversas de minha família? Minhas opções se deram entre esses limites da reprodução e a
possibilidade de desestabilização constante na procura de um novo habitus; essa tensão
fundamentou minha visão de mundo.
O raciocínio utilizado para me compreender, compreender o professor Jaffé e os
outros professores que o sucederam no trajeto de minha formação, o desajuste do habitus de
um músico formado na tradição conservatorial e a possibilidade de ajustar-me às posições que
me foram oferecidas possibilitaram o distanciamento necessário para ampliar a visão do
mundo social do qual eu fazia parte. Da mesma forma, permitiram que eu aceitasse a
empreitada de assumir-me docente a partir de um contexto social modesto, organizado em
torno das iniciativas educacionais para filhos de operários, e de uma formação na perspectiva
da música erudita. Essa dualidade perpassou por todo o processo que me tornou um artesão do
ofício de professor. São, pois, tensões estruturantes que experimentei em diferentes momentos
de passagem, regime de portaria e sistema de acesso a uma cultura e um habitus
progressivamente mais sofisticado e crescentemente mais exigente, principalmente para
aqueles que têm uma origem social deslocada da alta cultura, que não lhes fornece na
socialização primária dos capitais as práticas, os valores, os contatos e as experiências
imprescindíveis à conquista de posições dominantes.
O deslocamento entre origem social subordinada e práticas culturais dominantes
inicia-se a partir do momento em que minha mãe me leva para fazer a primeira transição do
habitus, trocando a bola pelo violino; se fortalece quando decido manter-me vinculado à
música, recusando as possibilidades do campo do Direito ou do sistema bancário; consolida-
se quando decido pela academia e procuro um curso de mestrado; define-se quando me
submeto a um concurso público para professor de Música da UFCA, e, finalmente, quando
me candidato e sou aceito no curso de doutorado em Educação da UFC.
Cada uma dessas etapas é crítica a sua maneira, mas todas têm em comum o
distanciamento do habitus primário, ancorado nas experiências profissionais de motorista e
cabeleireira, e a adesão ao habitus professoral do docente do ensino superior e do regente de
115
orquestra. Faço a opção pela vida acadêmica e me torno um “novo” Jaffé, mestre que me
encantou quarenta anos atrás.
A percepção das posições sociais, das oposições no campo musical, só foi
possível porque eu estava nesse entre-espaço, mas não me identificava com nenhuma das
posições dadas; estava, por assim dizer, “desencaixado”. A possibilidade de enxergar as
posições teóricas no campo musical de maneira mais distanciada, por não estar
completamente adaptado àquela realidade, foi o que permitiu a formulação de minha
trajetória, de meus conceitos e de minha forma peculiar de me conduzir nesse campo. Foi
justamente o fato de estar deslocado que me possibilitou perceber as posições vigentes e
construir a minha, a qual tem como fundamento o diálogo com as demais no campo musical.
É por isso que minha vida é um objeto de estudo interessante para ser compreendido a partir
de minha trajetória.
À medida que me aproximo do final do trabalho, fica evidente, para mim, meu
crescimento dentro do campo, a acumulação de capitais e a ocupação de posições cada vez
mais elevadas. Assim, a pesquisa passa a ser indicativa de uma apropriação legítima das
teorias ali correntes, como aquela vinculada ao ensino e à aprendizagem coletiva, a qual,
incidentalmente, está ligada às minhas primeiras experiências de formação e vai fundamentar
o trabalho que faço quando alcanço a posição dominante de professor do ensino superior e a
função de regente e coordenador da Orquestra da UFCA. Mas será, então, uma teoria de
aprendizagem revista, criticada, fundamentada. Mostra-se, por conseguinte, como um caso de
reprodução atualizada. Nesse caso, o que elaboramos na UFCA, em termos de ensino de
música, reproduzimos de modo ampliado, aperfeiçoado e melhorado; tudo aquilo a que o
Projeto Jaffé se propunha.
Em síntese, é difícil extrair sentido de uma vida singular, principalmente nas
condições em que esta ocorreu. As razões, os motivos e as explicações que empreguei
refletem a singularidade de uma experiência concreta, vivida com muita determinação no
enfrentamento das dificuldades. Esta pode muito bem servir de exemplo para alimentar a
reflexão educacional a respeito das atividades de formação de professores de origem social
modesta, os quais, no fim das contas, são a maioria. Permite também compreender os efeitos
de políticas de formação do Projeto Jaffé através do Sesi, em Fortaleza. Minha trajetória,
minhas dificuldades e meu destino final mostram os limites e as possibilidades das iniciativas
de formar elites artísticas a partir de estratos populares.
116
Quanto a mim, o resultado final, isto é, tornar-me professor doutor de uma
universidade pública federal, regente da orquestra, é, a meu ver, simplesmente extraordinário.
Não importa se as decisões não foram racionalmente estabelecidas, mas sim baseadas em
intuição inconsciente e na aspiração desalinhada dos agentes. Foram escolhas que se
converteram no melhor resultado possível, ainda que baseadas na sensibilidade e na intuição.
5.2 Capital de mobilidade apontando para um habitus docente violinístico
Neste trabalho, denomino capital de mobilidade as disposições incorporadas que
me conduziram, durante minha trajetória, a múltiplos espaços de experiências singulares.
Trata-se, portanto, de destacar os deslocamentos que me oportunizaram a aquisição de
saberes, conhecimentos de outras culturas, oportunidades, aquisições de determinados
capitais, entre outros aspectos, que contribuíram para minha inserção no campo da música,
tanto na performance quanto na docência.
O início desse processo acontece com os constantes deslocamentos efetuados por
minha família. Meus pais não tinham condições de adquirir uma casa própria e,
consequentemente, moraram em diversos bairros na cidade de Fortaleza. Durante a escrita
deste trabalho, minha memória aponta para os seguintes bairros, cronologicamente: Joaquim
Távora, Carlito Pamplona, Aerolândia, Monte Castelo, Pici, João XXIII e Carlito Pamplona
(novamente). Essas mudanças evidenciam um habitus familiar perpassado pelo contexto das
necessidades materiais. Quando morava no bairro João XXIII (periferia), com idade entre
nove e dez anos, realizava um deslocamento distante até a Escola Pública Estadual Juvenal
Galeno (no centro da cidade). Quando minha mãe me matriculou nessa escola, eu ainda
morava no bairro Carlito Pamplona. Por causa da mudança de bairro e procurando não
interromper o processo escolar, meus pais mantiveram-me em uma escola que se encontrava
distante do bairro onde eu morava. Desse modo, entende-se que a mudança de bairro nem
sempre favorece a uma mudança de escola. Diante dessa circunstância, necessitava enfrentar
um longo percurso para ir à escola usando transporte público, ônibus de linha, para as idas e
vindas. O longo percurso onerava também o orçamento da família; entretanto, para meus pais,
o mais importante era não interromper meus estudos escolares. Percebe-se que,
gradativamente, eu internalizava uma independência para agir em locais distintos daquele
onde eu morava. Entendo que, com nove anos de idade, eu já praticava um exercício de
autonomia.
117
Quando fixamos residência, por um determinado tempo, no Carlito Pamplona,
durante meus treze anos, foi o momento em que mantive o primeiro contato com o Sesi no
bairro Barra do Ceará. Nesse período, cursava o ginásio (hoje ensino fundamental) em uma
escola no mesmo bairro. Esse percurso, entre os dois bairros, eu fazia todos os dias e foi esse
deslocamento que fez parte do meu cotidiano e me permitiu adentrar ao campo musical.
Ao ingressar na orquestra do professor Jaffé, no Sesi da Barra do Ceará, foram-me
oportunizados outros deslocamentos, dessa vez não foi entre bairros e, sim, entre cidades que
estão a uma distância de aproximadamente 3.000 quilômetros. A primeira viagem foi para a
cidade de Brasília, em 1976, onde estava sendo criado outro centro de atividades para
aplicação do Método Jaffé, no Sesi em Taguatinga, Distrito Federal. Ao sairmos de Brasília,
fomos para o Rio de Janeiro nos apresentar na abertura do I Encontro de Professores de
Ensino Coletivo. Em janeiro de 1978, fomos ao Festival de Música de Teresópolis, e em julho
desse mesmo ano, ao Festival de Música de Campos do Jordão. Em 1979, fui mais uma vez
ao Festival de Música de Teresópolis. Em todos esses festivais, fui como membro da
orquestra do Sesi; entretanto, em julho de 1980, fui ao Festival de Campos do Jordão como
instrumentista.
Ao olhar para minha história, é possível perceber que esses eventos me
encaminharam para outros deslocamentos, alguns momentâneos, como viagens para o sul do
país, outros, embora menos distantes, muito significativos. Nesse sentido, é interessante
dialogar com a tese do professor Pedro Rogerio (2011, p. 29), quando expressa que um
deslocamento físico implica em deslocamento sociocultural:
[...] o efeito do deslocamento geográfico e de uma inserção em um ambiente social
diferente aconteceu dentro de um contexto que – entre outros fatores analisados – já
tem um papel marcante nos traços formativos desses sujeitos. O momento de uma
nova experiência certamente estava habilitando-os para a tomada de decisão de
enfrentar ou não outro centro urbano em um contexto de referenciais outros e ainda
mais distantes de sua origem social. Importante é perceber que as mobilidades
espacial e social estão imbricadas.
Após cada viagem realizada, eu não retornava o mesmo. O encontro com outras
culturas, outros professores e outros alunos ia modificando meu interior, minha visão do
mundo musical, como também de vida. Nessa perspectiva, o que foi proporcionado por esses
deslocamentos ia sutilmente produzindo um habitus que me habilitava a fazer escolhas dentro
do campo musical e que posteriormente me levou a cursar a graduação em Música na UFPB,
em João Pessoa. Embora os atos de deslocamentos gerem no indivíduo incertezas,
118
inseguranças, ou conflitos, no meu caso, esses movimentos realizados pela família durante
meus primeiros doze anos de vida me proporcionaram conviver de forma tranquila com essa
mudança de ambiente. Por conseguinte, tanto as viagens para os festivais como para João
Pessoa não foram tão impactantes para meu interior, pois eu havia internalizado certa
habilidade com esses processos. Assim, essas viagens motivavam-me a prosseguir e me
acrescentavam muito sob vários aspectos. Eu não era mais o mesmo estudante de Música.
Meu interior ia se transformando através de cada movimento realizado pelas viagens. Essa
movimentação pelo espaço físico vai alimentar as etapas posteriores e favorecer a conclusão
de meus estudos escolares.
A mobilidade para cidades no sudeste do país também me proporcionou a
aquisição de uma perspectiva de carreira violinística que encontrou culminância com a
aquisição de um violino e na visualização de um paradigma vivo através da apresentação
performática daquele que na época era um dos melhores violinistas do mundo, Salvatore
Accardo. Assistir ao vivo um violinista como Accardo é uma experiência que não consigo
explicar, porque diversos aspectos que presenciamos e aprendemos não estão no domínio da
explicação cognitiva. É algo específico que acontece no campo da música instrumental e do
canto. Contudo, foi a convivência com o professor Jaffé, no espaço do Sesi, e o aprendizado
com outros professores nos festivais que me permitiram apreciar aquela apresentação musical
de forma tão significativa. Pode-se dizer que a conexão entre essas duas experiências foi de
um ganho cognitivo “imensurável”.
A aquisição do violino ocorreu em outra viagem para Teresópolis, em 1979. O
fato extraordinário é ter ganhado um violino que me “condena” a ser violinista o resto de
minha vida. É importante notar que experiências de generosidade como essa costumam
acontecer no campo da música, pelo fato de que há uma dimensão afetiva que se desenvolve
nessas relações entre o mentor e o aprendiz, expressas em formas de incentivo.
Assim, essas duas experiências são deveras significativas e posso considerá-las
como a porta de entrada ao campo da Música. Uma apresentação paradigmática e um presente
emblemático/paradigmático.
As próximas viagens são mais curtas do ponto de vista físico, mas envolvem um
maior tempo e a abertura de um espaço de múltiplas e expressivas experiências. Vou cursar a
graduação na UFPB, em João Pessoa, que se completa no curso de licenciatura em Música na
UECE, em Fortaleza. Ao retornar de João Pessoa para Fortaleza, não sou mais o mesmo
119
instrumentista. Tinha incorporado um habitus violinista. Cursei um bacharelado, como
também fui violinista de orquestra sinfônica.
Nos anos 2000, fui convidado para lecionar violino/viola em uma escola pública
na periferia de Fortaleza. Desse modo, com a experiência adquirida em minha trajetória, volto
a transitar entre bairros, mas nesse novo movimento não sou o mesmo. Minha prática cultural
musical violinística estava ligada a meu grau de instrução, submetida ao volume global de
capital acumulado, qualificada pelos diplomas escolares e associada à quantidade de horas de
estudo que foi impelida por um habitus primário, ou seja, socialização familiar. Desse modo,
a posse desses capitais me permitia adentrar o campo da docência.
Ao me confrontar com o ensino de violino nesse ambiente descrito, percebi que
minha prática cultural não dialogava com a realidade local. As crianças e os jovens que
frequentavam minhas aulas eram oriundos de classe social humilde e não tinham nenhuma
familiaridade com os instrumentos. Através da convivência com eles, pude perceber que não
existia uma perspectiva de futuro diferente daquela proporcionada pela convivência do bairro.
Não havia, para a grande maioria, um interesse em aprender o instrumento.
A dialética entre essas duas vertentes encaminhou-me para o retorno à
universidade no curso de licenciatura em Música. Hoje, ao olhar para meu passado, percebo
que minha trajetória é cíclica, ou seja, minha formação é perpassada por eventos similares,
mas com níveis diferentes.
Essas experiências acumuladas, que culminaram até a UECE, conduziram-me até
o mestrado na UFPB. Dessa vez, apresento-me no mestrado da UFPB com fortes e
significativas experiências profissionais como músico. Esse somatório levou-me a concorrer à
vaga de docente na UFCA e, ainda nesse movimento, sou admitido no doutorado da
Faced/UFC.
A minha inserção no campo da docência na UFCA permite-me realizar outro
deslocamento. Dessa vez, não sou mais a criança que realiza deslocamentos submetidos pelos
pais. Estou realizando deslocamentos e submetendo minha esposa e filhas a realizar esses
movimentos.
Assim, esse deslocamento para o Cariri e o ato de assumir uma posição legitimada
no campo são pontos relevantes e um ápice dos esforços empreendidos em todos os
deslocamentos anteriores.
120
5.3 Momento charneira
No capítulo três do livro Experiências de vida e formação, Marie-Christine Josso
apresenta um importante conceito, o de “momentos ou acontecimentos charneira”, ou seja,
aqueles que representam uma ponte entre dois momentos da vida de um agente (sujeito), um
“divisor de águas” (nas palavras da autora); acontecimentos que separam, dividem, articulam
as etapas da vida (PERES; MANCINI; OLIVEIRA, 2009; JOSSO, 2004). Desse modo, ao
aplicar neste trabalho uma abordagem de história de vida e formação, torna-se pertinente
destacar os acontecimentos que foram marcantes, decisivos, e mudaram o curso de minha
trajetória.
Foram muitos esses episódios, entretanto, ressaltarei dois desses por entender que
foram essenciais nessa caminhada em que me constituí professor. O primeiro foi o encontro
com a metodologia implantada pelo professor Jaffé, e o segundo foi quando me legitimei
professor de uma instituição superior, a UFCA.
Durante meus treze anos, encontrava-me na escola, mas, principalmente, na rua
jogando bola, bola de gude, entre outras brincadeiras. Nesse sentido, meu rumo encaminhava-
se para que eu reproduzisse uma herança familiar, onde eu provavelmente me tornaria
motorista de táxi, ou teria alguma outra profissão dentro da realidade local daqueles dias na
cidade de Fortaleza. Contudo, ao me confrontar com o Projeto Jaffé e todas as consequências
daquele encontro, posso afirmar que minha trajetória mudou consideravelmente. Das ruas de
um bairro de periferia de Fortaleza transformei-me em um violinista de orquestra.
O outro momento importante nesse contexto de descrição do conceito charneira se
dá quando me submeto a um concurso público para professor da UFCA. Enfrentei várias
dificuldades no processo do concurso. A prática de escrita acadêmica e as reflexões exigiam
um diálogo entre música e educação. Havia praticado essas competências durante o mestrado,
entretanto, eu havia adquirido maior intimidade com os aspectos musicais, principalmente os
relacionados ao instrumento violino. Com a aprovação, desloquei minha residência de
Fortaleza para a região do Cariri e trouxe comigo minha esposa e filhas. As alterações não
param apenas na mudança de cidade. Durante minha atividade docente na UFCA, não levo
para a sala de aula apenas o violino, carrego também reflexões pedagógicas voltadas para a
área de Música, Educação e Educação Musical. Carrego também afeto, uma posição ético-
política, reflexões acerca do repertório que deverá ser utilizado durante a disciplina. Enfim,
um conjunto de práticas diferentes daquelas que eu vivenciava enquanto instrumentista de
121
uma orquestra. Outro ponto importante nesse momento é a própria escrita desta tese e as
vivências no doutorado. Será que, enquanto violinista, eu estaria preocupado em cumprir essa
etapa no doutorado?
Assim, após esta reflexão, posso afirmar que esses dois eventos foram os
principais, entre outros, em minha trajetória, e que mudaram o curso de minha vida.
5.4 Dos confrontos à simpatia: entre aprendizagens, amizades e afetos
Ao me aproximar do final da escrita deste trabalho, não posso deixar de agradecer
aos professores que influenciaram essa trajetória. Essas pessoas contribuíram para iluminar
meu caminho na docência.
Nesse sentido, reporto-me mais uma vez a Pierre Bourdieu (2005, p. 55, grifos do
autor), em seu livro Esboço de auto-análise, quando diz:
O efeito do campo exerce-se em parte por meio do confronto com as tomadas de
posição de todos ou de parcela daqueles que também estão engajados no campo [...]:
o espaço dos possíveis realiza-se nos indivíduos que exercem uma “atração” ou
“repulsão”, a qual depende do peso deles no campo, isto é, de sua visibilidade, e da
maior ou menor afinidade dos habitus que leva a achar simpáticos ou antipáticos seu
pensamento e sua ação.
Assim, posso afirmar que esses agentes (professores) foram uma espécie de farol
no meu caminho e que influenciaram em grande medida minha trajetória e minha inserção no
campo. A começar pelo professor Alberto Jaffé, que proporcionou o aprendizado do violino
aceitando jovens que não tinham nenhuma prática musical e nos incitou (meus
contemporâneos do Projeto Jaffé e eu) a uma simpatia com esse mundo da música.
No bacharelado em Violino da UFPB, fui influenciado pelos professores
Leopoldo Nogueira e Rafael Garcia, que me impressionavam pelo seu modo de tocar violino e
serviram como inspiração para uma prática instrumental no modelo conservatorial.
No curso de licenciatura da UECE, ao olhar para os professores dessa instituição,
aproximei-me da docência tendo como referência a realidade local. Quando vivenciei o
mestrado em práticas interpretativas, aperfeiçoei uma prática instrumental associando essa
prática à docência em violino; nesse sentido, agradeço ao professor Hermes Alvarenga. Sou
grato também à professora Ilza Nogueira, que me proporcionou um olhar mais refinado para a
partitura, seus sinais e significados.
122
Durante minhas vivências no mestrado, entre 2006 e 2008, minha esposa cursava
o mestrado em Educação na Faced/UFC e eu costumava transitar nesse espaço. Em uma
dessas inúmeras vezes, encontrei-me com o professor Luiz Botelho, que me fez a seguinte
pergunta: “Marco, como está o mestrado?”, ao que respondi: “Professor, está pesado, pois
necessito escrever uma dissertação e preparar um recital de uma hora”. Ele respondeu: “É
assim mesmo, mas não se preocupe, é importante para nós (o campo)”. Na época, eu não
compreendi muito essa expressão. E hoje, sou o único professor de violino de um curso
superior de Música egresso do Projeto Jaffé no Ceará com mestrado (cursando o doutorado) e
estruturando outros alunos no estado. Naquele momento, o professor Botelho já compreendia
que um violinista da música de concerto, de origem cearense e cursando um mestrado,
poderia ocupar uma função no campo da docência.
Assim, após alguns anos daquele encontro, estou terminando a escrita deste
documento, sob orientação do mesmo professor Luiz Botelho, a quem agradeço os
ensinamentos, a tranquilidade e o apoio empregados durante a escrita desta tese. Nesse
período, o orientador apresentou, em notas de aula, vários aspectos pertinentes que deram
consistência a esta pesquisa. Ressalto também, com muita simpatia, seu olhar analítico para
meu diálogo com as diversas instâncias objetivas e subjetivas nas quais travei algum
confronto que resultou em escolhas no campo da música.
123
6 CODA: CONCLUSÕES
Como me constituí em quem sou aponta, também, para os processos de
constituição de outros agentes. Nesse sentido, considerar meu processo formativo e outros
descritos por autores citados nesta tese leva-me a concluir que a discussão elaborada nesta
pesquisa revela como nos constituímos em quem somos.
De forma mais específica, o que se tornou claro nesta reflexão foi a apropriação
feita de minha história, de como um menino que costumava jogar bola na rua tornou-se o
professor de violino de uma universidade federal. E como esse agente no passado teve suas
ações dirigidas pela instituição familiar materna, mas que gradualmente assume as rédeas da
própria vida, começa a ter clareza a respeito de sua inserção no campo musical, aprende os
saberes típicos do campo, incorpora habilidades motoras, aprende os valores ético-políticos da
profissão e refina seus padrões de gosto estético de acordo com os critérios do campo musical.
Esse agente, em que me constituí, que assume agora uma das posições dominantes
no campo musical, elabora uma reflexão interligada de significados que perpassaram toda a
construção deste trabalho. Assim, desvelar minha história de vida na construção de uma tese
me fez reavaliar cada processo pelos quais passei até o momento da escrita deste texto.
O processo de nossa formação muitas vezes é opaco às nossas percepções.
Descrever cada etapa da vida remontando experiências, tempos e lugares talvez pareça ser
simples, mas, quando nos debruçamos sobre essa história buscando ir além da perspectiva do
senso comum, agregamos significados a essa composição.
Por isso, foi tão importante o diálogo entre as histórias de vida e a praxiologia.
Enquanto uma me forneceu subsídios para dirigir o olhar a minha trajetória formativa, ou seja,
minhas vivências com as estruturas, a outra me forneceu uma compressão de que esse olhar
também me forma. Nesse sentido, a praxiologia foi o amparo que manteve minhas percepções
voltadas para entender o quanto fui influenciado pelas estruturas do campo, suas regras, suas
condutas, seus valores e suas práticas.
Assim, utilizar a teoria de Pierre Bourdieu para essa escrita permitiu evocar
minhas experiências com base em um arcabouço teórico que esclareceu questões acerca de
como minhas disposições foram internalizadas nos espaços em que fui me constituindo. Fez-
me examinar o estado do campo no momento em que nele ingressei. Transformou minhas
percepções ao desvelar os conceitos dessa abordagem, confrontando com os processos de
124
minha formação. De tal modo, fez-me compreender minhas aquisições, quer no espaço
familiar, quer na escola ou no campo profissional, que são entendidas como capitais
conquistados ao longo de minha trajetória.
Possibilitou, também, uma reflexão do processo de ensino e aprendizagem nas
aulas de violino, seja na época do Projeto Jaffé, seja na época do bacharelado. Essa percepção
permitiu-me aprofundar/internalizar uma visão geral da aplicação das metodologias oriundas
do modelo conservatorial e do modelo de ensino coletivo. Com essa compreensão, adquiri
uma habilidade para aplicar algumas metodologias que sejam adequadas à realidade de cada
aluno, explorando, então, uma aprendizagem significativa. Propiciou ainda refletir sobre
minha atuação profissional em orquestras, fez-me lembrar de como outros professores ou
profissionais me ajudaram a perceber a vida profissional de outro jeito, a valorizar as
certificações emitidas por cada campo de estudo e suas atribuições, a explorar as trocas de
informações entre os agentes, ou seja, os diálogos realizados com os professores de cada
curso, como também com os colegas que conheci em vários espaços e o conhecimento
adquirido em cada etapa que me proporcionou avançar para o nível seguinte. Assim, olhar
para minha história utilizando a praxiologia como lupa me fez (re)valorizar esse processo e
atribuir aos meus alunos esses valores conquistados.
Quando me assentei e pensei em escrever estas conclusões, a primeira impressão
(lição) que emergiu em meu interior foi o fato de a abordagem história de vida proporcionar
ao pesquisador/agente um olhar para trás e uma reflexão sobre “de onde vim?” e seguir para
frente com outra perspectiva: “para onde devo ir?”.
Ao olhar para meu passado, considerando a teoria das histórias de vida, foi-me
oportunizado resgatar memórias formativas, percursos formativos que não lembrava que
sabia. Foi muito gratificante lembrar que durante minha formação violinística eu recebi
generosamente um violino francês de presente, acompanhado de uma carta para meus pais de
incentivo ao estudo da música. Possibilitou também compreender o esforço de minha mãe
para que eu avançasse nos estudos escolares, que me permitiram o ingresso na academia,
como também compreender cada procedimento que me encaminhava para determinadas
escolhas e, assim, avançar nesse acesso social e educativo.
Com essa compreensão, refletir sobre minha prática docente violinística me faz
compreender de forma mais clara os caminhos educativos que devo oferecer aos alunos da
UFCA, partindo de meu processo de aprendizagem e do aperfeiçoamento realizado nesse
125
sentido. Assim, destaco as metodologias aplicadas em sala de aula, o repertório escolhido para
a prática instrumental, a prática pedagógica, entre outros.
Foi importante aperfeiçoar uma percepção do valor das certificações durante o
período das experiências familiares ao meu ingresso na UFCA. Com essa compreensão, ao ser
aprovado no concurso da UFCA e me deslocar, com minha família, para o Cariri, adquiri uma
experiência que pode contribuir na formação dos alunos dessa universidade. Analisar os
deslocamentos realizados em minha trajetória foi importante para minha compreensão dos
processos formativos apreendidos nesse sentido.
Outra importante percepção nessa trajetória é sobre a apreciação do público a meu
respeito. Antes de meu ingresso na UFCA, os ouvintes me assistiam como violinista
praticando a música de concerto no teatro. Agora, como professor do curso de Música, toco
para outro público, meus alunos em sala de aula. Minha prática violinística associada à
docência ganhou um novo sentido durante minha performance. Minhas experiências em
orquestras profissionais e minhas experiências com os métodos de ensino de violino
contribuíram para a nova função de professor de uma instituição superior, ou seja, a prática na
escolha do repertório.
Analisar esses processos formativos do habitus violinístico e professoral foi uma
maneira de me conhecer e conhecer o mundo social cientificamente no contexto de uma tese
doutoral. Apresentei, também, os elementos propriamente biográficos, as informações mais
íntimas, responsáveis pela formação de minhas disposições de origem.
Destaco, ainda, a aquisição e o desenvolvimento da prática de escrita acadêmica
que venho adquirindo desde o mestrado e que tem sido importante para registrar esse percurso
musical, como também promover reflexões acadêmicas, pedagógicas, musicais etc. Ressalto
que realizar a pesquisa socioeducativa de doutorado sem afastamento implica em conviver
diariamente com o objeto de pesquisa; entretanto, significa também ter a mente congestionada
com outros assuntos de trabalho, restando pouco tempo para reflexões acerca do tema
estudado. Esse cenário de construir uma tese sem afastamento implica em percepções
carregadas de conflitos diversos (resolver problemas da instituição, conseguir acalmar-se –
encontrar um tempo com a exigência da concentração para escrever a tese – para refletir sobre
a tese). Esse exercício é a incorporação de uma prática docente acadêmica e de pesquisador.
Isso me faz relembrar mais uma vez e comparar meu trajeto com a narrativa de
Bourdieu no Esboço de auto-análise, ao relatar o fato de realizar pesquisa sociológica em
126
situação de guerra e o quanto isso foi penoso para ele, obrigando-o a pensar em tudo, a
controlar tudo, “em particular o que parece natural na relação ordinária entre o pesquisador e
o pesquisado” (BOURDIEU, 2005, p. 79).
Refletir sobre o processo de formação de um músico, especificamente um
violinista, nessa região do Nordeste, considero de extrema relevância para minha prática
docente, como também para futuras reflexões sobre trajetórias. Compreender o contexto em
que me encontro hoje, mesmo vindo de uma origem de formação erudita, faz-me elucidar uma
dimensão ético-política que se manifesta no repertório. Esta revela que sou um violinista
genuinamente cearense, pode-se dizer, um Cariri.
Não obstante, a narrativa apresentada permite concluir que foi a especificidade de
minha vida o fundamento de minhas tomadas de posição estéticas, técnicas e políticas,
vinculadas todas à minha origem e trajetória. Por conseguinte, vejo-me como esse agente que
desnudou sua história mediante uma análise sociológica; ao fazê-lo, pude perceber as misérias
do mundo, a arrogância dos poderosos e a hipocrisia de muitos, a dominação social e de seus
enfeites e véus.
Apesar de ser um estudo sobre um docente violinista, esse caminho encontra eco
em outros caminhos de músicos que se tornam professores em diversos setores da sociedade.
Assim, espero que esta pesquisa possa contribuir para futuras caminhadas de outros
profissionais que poderão ocupar funções docentes em um curso superior de Música.
A síntese elaborada em todo esse processo demonstra que a análise da história de
vida aqui realizada oferece suporte empírico à teorização de que o habitus musical docente
aqui constituído é um caso típico de sucesso improvável. Tal conclusão decorre dos seguintes
achados: o habitus musical docente originou-se a partir das motivações nascidas no seio de
uma família de parcos recursos financeiros, sociais e culturais, mas que se revelou educógena
pela atuação decisiva da mãe; este habitus desenvolveu-se pela influência formadora de uma
iniciativa educacional inovadora, única e descontinuada (o processo de ensino e aprendizagem
coletivo de violino no contexto do Projeto Espiral do professor Jaffé); este habitus se firmou
através de experiências estéticas significativas para o agente, mas de caráter ocasional e
irregular (participação em festivais de música no Rio de Janeiro e em São Paulo e a audição
de concertistas consagrados); a trajetória de constituição do habitus teve um episódio de
definição extraordinário e fortuito, mas fundamental (o violino presenteado por Parpinelli);
finalmente, o habitus consolidou-se através dos cursos universitários regulares de graduação,
127
mestrado e doutorado, da aprovação em concurso público e do exercício do magistério no
ensino superior, onde o agente realiza como sua ocupação profissional precisamente aquilo
que o introduziu inicialmente no campo musical: o ensino coletivo de violino.
Assim, resgatar esse processo de formação desde minha infância até os dias de
hoje me fez perceber com maior clareza que o que me tornou o docente em que me constituí
foi iniciado com a música, foram as escolhas que ela me propiciou, foi a força da
sensibilização através da música instrumental. Isso nos faz compreender a lição fornecida pelo
professor Jaffé: “nada atrai mais do que realmente aquilo que se pratica, de sorte que o
contato com a música fazendo música é a melhor maneira que a pessoa pode sentir a força que
a música pode nos dar”.
128
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