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Recife
2016
Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Filosofia e Cincias Humanas
Programa de Ps-graduao em Histria
Felipe Aires Ramos
Na Penumbra, a cura: uma histria do Curandeirismo na
Paraba (So Joo do Cariri, 1928-1945)
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Recife
2016
Felipe Aires Ramos
Na Penumbra, a cura: uma histria do Curandeirismo na
Paraba (So Joo do Cariri, 1928-1945)
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de
Ps-graduao em Histria, Centro de Filosofia e
Cincias Humanas, da Universidade Federal de
Pernambuco, como parte dos requisitos obteno do
ttulo de Mestre em Histria.
Orientador: Dr. Antnio Torres Montenegro.
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Banca examinadora
Orientador: Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro - Programa de Ps-Graduao em
Histria UFPE.
Examinador(a) interno (titular): Prof. Dra. Isabel Cristina Martins Guillen - Programa de
Ps-Graduao em Histria UFPE.
Examinador(a) interno (titular): Prof. Dr. Carlos Alberto Cunha Miranda Programa de
Ps-Graduao em Histria - UFPE.
Examinador(a) interno (suplente): Prof. Dra. Regina Beatriz Guimares Neto Programa
de Ps-Graduao em Histria - UFPE.
Examinador(a) externo (titular): Prof. Dr. Mrcio Ananias Ferreira Vilela Colgio de
Aplicao UFPE.
Examinador(a) externo (suplente): Prof. Dr. Pablo Francisco de Andrade Porfrio Colgio de
Aplicao UFPE.
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RESUMO
A presente dissertao tem como propsito central analisar a emergncia, durante o
perodo de 1928 a 1945, de um conjunto de discursos sobre as prticas teraputicas alheias ao
campo da Medicina Cientfica, bem como de uma poltica repressora aos seus praticantes no
estado da Paraba. Focalizando espacialmente tal anlise no municpio de So Joo do Cariri,
buscamos compreender como essa poltica de perseguio aos chamados curandeiros e
charlates, efetivada inicialmente nas maiores cidades do estado, ser gradativamente
expandida a todo o territrio paraibano, inclusive a reas onde era escasso o oferecimento de
servios mdicos. Neste sentido, a crtica de um corpus documental que inclui, dentre outros
materiais, telegramas oficiais, anncios jornalsticos e processos-crime reveladora de uma
srie de estratgias acionadas pelos promotores de tal campanha, em sua maioria mdicos,
assim como dos artifcios utilizados pelos terapeutas perseguidos, no intento de escapar do
cerceamento e da condenao pela prtica do Curandeirismo.
Palavras-chave: Curandeirismo. Perseguio. So Joo do Cariri.
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ABSTRACT
.
This work has as main purpose to analyze the emergence of a series of speeches
about therapeutic practices indifferent to the field of Scientific Medicine as well as a
repressive policy to its practitioners in the state of Paraiba during the period 1928-1945.
Focusing spatially this analysis in So Joo do Cariri, we seek to understand how this
policy of persecution of so-called "healers" and "charlatans", carried out initially in the
largest cities in the state, will be gradually expanded to the whole Paraiba territory,
including areas where the offering of medical services was scarce. In this sense, the
criticism of a documentary corpus that includes, among other materials, official telegrams,
newspaper ads and criminal cases is revealing a number of strategies driven by the
promoters of the campaign, mostly physicians, as well as the artifices used by the
persecuted therapists in an attempt to escape of the restriction and condemnation for the
Faith healing.
Keywords: Faith Healing. Persecution. So Joo do Cariri.
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O que se encontra no comeo histrico das coisas no a
identidade ainda preservada da origem a discrdia entre as
coisas, o disparate.
Michel Foucault. Microfsica do Poder.
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Agradecimentos
Agradeo, nestas pginas iniciais, a todos aqueles que, no decorrer destes dois anos,
contriburam para a realizao desta pesquisa. Jamais teria chegado at aqui sem o auxlio, o
esforo, a gentileza e, acima de tudo, a pacincia de muitas pessoas que de perto ou de longe,
direta ou indiretamente, me ajudaram na redao desta dissertao.
Sou grato a Deus, fora espiritual que me d coragem nos momentos mais difceis.
A meus pais, Eunice Aires e Sebastio Ramos, que acompanharam de perto minhas
conquistas e minhas fraquezas, que ergueram junto comigo cada pedra dos meus sonhos,
constituindo-se o alicerce de minha prpria existncia. A vocs dedico no apenas esta
dissertao, mas toda minha vida.
A Socorro Cipriano, que desde a graduao, como professora, orientadora e amiga, me
guiou pelos caminhos da pesquisa histrica e me incentivou a trilhar por uma histria da cura
na Paraba. Foram valiosos seus conselhos e sua leitura, sempre perspicaz, do projeto de
mestrado. Agradeo ainda a outros professores que, durante a graduao, contriburam com
minha formao e me inspiraram profissionalmente, dos quais cito: Martha Lcia, Maria Jos
Oliveira, Auriclia Lopes, Jos Adilson Filho, Cristiano Cristillino, Jos Pereira de Sousa
Jnior e Faustino Cavalcante.
A Dona Zeza, a v que o Recife me presenteou. Obrigado pelas palavras de conforto,
pelos abraos e pelo riso contagiante, que, a cada dia, me alegrava e dava nimo para a
realizao desta pesquisa.
Aos professores Antnio Paulo Rezende e Regina Beatriz Guimares Neto, pela
oportunidade das discusses que fizemos ao cursar as disciplinas Teoria da Histria e Tpico
Especial em Teoria da Histria e Historiografia. Gratido estendida aos colegas Felipe
Aretakis, Walter Frana, Renata Moraes, Augusto Lira, Felipe Gen e Pedro Evnio, pela
convivncia harmoniosa e produtiva durante tais disciplinas.
Um agradecimento especial ao meu orientador, o professor Antnio Torres
Montenegro, que, com enorme seriedade e comprometimento, seguiu o percurso desta
dissertao. Sou especialmente grato pelas leituras criteriosas e pelas crticas construtivas,
sem as quais este trabalho no teria tomado a presente forma.
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Estendo os agradecimentos aos professores Iranilson Buriti de Oliveira e Carlos
Alberto Miranda que, ao participarem de minha banca de qualificao, contriburam com
importantes questionamentos e provocaram efetivos deslocamentos nas maneiras de pensar e
escrever sobre meu objeto de pesquisa. Agradeo ainda ao mesmo professor Carlos Alberto
Miranda e aos professores Mrcio Ananias e Isabel Guillen, por aceitarem compor a banca
examinadora para a defesa desta dissertao. Estou certo da importncia de suas colocaes
para a finalizao desta pesquisa.
Aos professores Pablo Porfrio e Regina Beatriz Guimares Neto que, por
generosidade, aceitaram participar de minha banca de Defesa como suplentes.
s amizades construdas e/ou fortalecidas durante estes dois anos: aos amigos
historiadores Tasso Brito, Felipe Gen e Pedro Evnio, com quem compartilhei uma intensa
cooperao e companheirismo, pelas leituras e sugestes sempre lcidas sobre meus textos; a
Priscila Mayara, querida amiga encontrada nos caminhos de Clio, pela trajetria de conversas
sobre a temtica, de angstias compartilhadas, de risos, de conselhos, de congressos; ainda a
Eduardo de Queiroz, amigo de infncia e historiador, a quem recorri em busca de auxlio
diversas vezes no decorrer dessa pesquisa, e a Jos Pequeno, pelas discusses esclarecedoras
sobre a histria de So Joo do Cariri e pela cesso de documentos importantes para a
realizao do presente texto.
A todos os amigos e primos que, pelos incentivos e pelas profanidades da vida,
tornaram o trajeto de escrita desta dissertao bem mais leve e agradvel: George, Joabson,
Thyago, Franklin, Andr, Silvnia, Walber, Thiago, Welington, Moiss, Julie, Elaine,
Alcimar e Janana.
Aos funcionrios das diversas instituies e arquivos nos quais pesquisei, pela
pacincia e disponibilidade: Biblioteca de Obras Raras tila de Almeida, Instituto Histrico e
Geogrfico da Paraba, Arquivo Pblico do Estado da Paraba, Frum Nivaldo de Farias Brito
e Prefeitura Municipal de So Joo do Cariri.
A Sandra Regina e Patrcia, secretrias do PPGH/UFPE, pela eficincia e gentileza de
sempre.
Por fim, agradeo ao CNPq, que viabilizou financeiramente o desenvolvimento da
pesquisa, que resultou neste trabalho.
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LISTA DE MAPAS
Mapa 1: Diviso administrativa da Paraba, 1920..............................................17
Mapa 2: Diviso administrativa da Paraba, 2016............................................163
Mapa3: Distribuio dos postos da Comisso de Saneamento e Profilaxia Rural
na Paraba............................................................................................................41
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LISTA DE IMAGENS
Imagem 1: Fotografia da Feira-livre de S. Joo do Cariri..................................50
Imagem 2: Fotografia da Rua Quinze de Novembro, So Joo do Cariri, dcada
de 1940................................................................................................................54
Imagem 3: Capa do folheto Embolada da Velha Chica................................105
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ABREVIATURAS
DGSP Diretoria Geral de Sade Pblica
DNSP Departamento Nacional de Sade Pblica
CSPR Comisso de Saneamento e Profilaxia Rural
SMCPB Sociedade de Medicina e Cirurgia da Paraba
DESP Departamento Estadual de Sade Pblica
IFEP Inspetoria de Fiscalizao do Exerccio Profissional
PMSJC Prefeitura Municipal de So Joo do Cariri
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Sumrio
INTRODUO..14
CAPTULO I- Espaos insalubres e expectativas sanitaristas: So Joo do Cariri nas
dcadas de 1930 e 1940 ................................................................................... 20
1.1- O processo de expanso mdica ................................................................................... 22
Do Rio de Janeiro ao Rio Jaguaribe: o Sanitarismo como viabilidade para o
Saneamento dos Sertes .................................................................................................. 22
Apropriaes sanitaristas no territrio paraibano: limites e possibilidades .................... 32
1.2- (In)viabilidades higienistas em So Joo do Cariri ................................................... 45
O espao urbano .............................................................................................................. 46
Primeiras regulamentaes ............................................................................................. 54
Intermitncia mdica e possibilidades teraputicas ........................................................ 62
1.3- ltimas consideraes ou a irrupo da Cruzada ..................................................... 71
CAPTULO II- Do Gabinete feira livre...: representaes vigentes sobre prticas
curativas e terapeutas populares ................................................................. 78
2.1- Publicaes mdicas: de um passado reticente a um presente combativo .................... 83
2.2- A literatura de cordel: medos popularizados ................................................................... 94
2.3- Os limites da recepo: comunidades de leitores ........................................................... 109
CAPTULO III- Espectros da delinquncia: batalhas nas malhas judiciais ..................... 113
3.1- O julgamento de Horcio Lins ................................................................................... 113
3.2- A constituio de um charlato. A trajetria de Abel Pereira Lima ..................... 127
Atuao e autuao ....................................................................................................... 127
O mdico e o charlato ................................................................................................. 135
Ritual jurdico e fora policial. O curandeiro como delinquente .................................. 141
CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................. 150
FONTES E BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 153
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ANEXOS ................................................................................................................................... 162
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14
INTRODUO
Um leitor qualquer que, no dia 11 de maio de 1938, folheasse o jornal campinense Voz
da Borborema, descobriria, dentre as vrias notcias e propagandas, o seguinte artigo, escrito
pelo mdico Alceu Colao.
A ciencia-arte dificilima de Hipocrates se acha, miseravelmente, invadida em seus
territorios mais sagrados por charlates de toda especie, que tentam desvirtuar a marcha
aureolada de respeito e de admirao que ela segue inviolavelmente.
Avaliem todos que o velho ditado popular de medico e de louco todo mundo tem um
pouco j esta tomando ares de verdade.
Porem o charlatanismo to nefasto sade do povo, como a sauva o a vida das
plantaes e o analfabetismo vida do paiz.
Trs pragas que se completam e igualmente funestas1
Mdico paraibano, periodicamente Alceu Colao publicava neste jornal contedos de
interesse classe mdica do estado, como notcias sobre o desenvolvimento de pesquisas
etiolgicas, anncios dos rgos pblicos de sade, apontamentos sobre obras de referncia da
Medicina e reclamaes acerca de problemas por ele diagnosticados. Neste artigo
especificamente intitulado Salada Diagnstica - ele atacava o que considerava ser o maior de
todos os problemas a serem enfrentados pela classe mdica do estado, a atuao desregulada de
curandeiros e charlates em todo o territrio da Paraba. Colocando-se na posio de defensor da
Medicina Cientfica, ele alertava para a invaso deste campo por indivduos que, sem nenhuma
formao acadmica, se dispunham a receitar frmulas e a ministrar teraputicas estranhas ao
saber mdico. O charlato era representado, em sua escrita, como um invasor que, alm de pr
em risco a sade das pessoas atendidas com sua prtica, segundo ele, nefasta danificava a
prpria credibilidade dos mdicos frente a populao paraibana.
Discursos como o do mdico Alceu Colao no eram incomuns nos jornais paraibanos das
quatro primeiras dcadas do sculo XX. Momento de amplo crescimento e de institucionalizao
do saber mdico naquele estado (SANTOS, 2015, p. 68) - com a fundao de rgos
corporativos, como a Sociedade de Medicina e Cirurgia da Paraba, e o aparelhamento de uma
burocracia estadual responsvel pela sade pblica - durante este perodo que se organiza toda
uma campanha corporativa de deslegitimao e de perseguio pelos mdicos aos terapeutas no
1 SALADA DIAGNOSTICA Dr. Alceu Colao. Voz da Borborema, 11 de maio de 1938.
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habilitados no campo da Medicina Cientfica, em seu lxico Curandeiros e Charlates.
Estes, principalmente a partir da dcada de 1920, passam cada vez mais a ser alvos
constantes de reclamaes e denncias propagadas nos vrios meios de comunicao do estado.
Nestas publicaes construa-se, atravs de uma linguagem difamatria, todo um conjunto de
esteretipos que, anlogos aos utilizados por Alceu Colao, reservavam aos terapeutas populares
ento atuantes na Paraba os papis do atraso, da ignorncia, da vigarice da criminalidade. No
importava a natureza da prtica - se eram ritos religiosos de Jurema, passes, benzeo,
homeopatia, sangria, o parto assistido por comadres e parteiras, ou mesmo a automedicao
atravs de chs, ervas, banhos e infuses. Toda forma de assistncia teraputica que no fizesse
parte do saber mdico institucional passa, nesse perodo, a ser objeto de crtica e de denncia dos
mdicos.
Como debate Santos (2015, p. 70), a emergncia dessa campanha detratora de tais
terapeutas esteve profundamente relacionada no s ao processo de institucionalizao da
Medicina, a ocorrer durante esse perodo naquele estado, mas tambm ao considervel aumento
do nmero de esculpios ali atuantes2. medida que acresceu a quantidade de mdicos em
atividade na Paraba, formou-se tambm um enredo conflituoso com outros profissionais que
prestavam auxlio teraputico populao, pelo domnio no mercado de servios da sade.
Na luta por espaos no mercado de trabalho da sade os esculpios paraibanos se
uniram contra um inimigo comum: os curandeiros e demais curadores no
diplomados que, deixando de atuar como auxiliares dos facultativos, ultrapassando os
limites e proibies impostos s suas teraputicas pelo saber mdico, se constituam
como concorrentes desse ltimo no oferecimento dos servios de cura.
Trabalhos como os de Sousa (2004 e 2006) e Agra (2010) atestam que tal concorrncia
no se encerrou na campanha difamatria nos jornais e demais meios de comunicao do estado.
Amparados pelos Cdigos Penais de 1890 e 1940, que proibiam a prtica do Curandeirismo e
Charlatanismo, os mdicos passam tambm a implementar uma violenta perseguio queles
terapeutas atravs das instncias policial e judicial. Constantes tornam-se as batidas policiais em
suas casas e nos locais onde atendiam seus clientes, e vrios eram os sujeitos presos acusados de
tais crimes. Nos so narrados, por exemplo, os casos de Joo Inocncio da Costa e Joana
2 Atravs de uma estimativa realizada a partir de pesquisa bibliogrfica, Santos (2015, p. 69) atesta o considervel
crescimento do nmero de mdicos durante a dcada de 1920 na Paraba. Se entre 1901 e 1910 ele detecta
aproximadamente 26 mdicos em atuao nesse estado, e 36 entre 1911 e 1920, no recorte 1921-1930 ele identifica
quase que o dobro de esculpios em atuao, 67.
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Amorim, presos em flagrante pela polcia durante uma mesa de Catimb na capital da Paraba
(AIRES, 2015, p. 80), ou tambm os de Joaquim Pontual de Moura e Cassimiro Barbosa,
abordados pelo delegado de polcia e pelo diretor do Servio de Higiene Municipal, Joo Arlindo
Correia, no momento em que medicavam clientes na cidade de Campina Grande (SOUSA, 2004,
p. 3).
Mas esse combate aos curandeiros no ocorrer exclusivamente nas maiores cidades
paraibanas. Tal campanha tambm ser promovida, durante as dcadas de 1930 e 1940, ao longo
de todo o territrio estadual, inclusive em reas que at ento eram praticamente desprovidas de
qualquer assistncia mdica. Visando explorar uma lacuna, ainda persistente na historiografia
paraibana sobre o tema3, discutiremos, na presente dissertao, o estabelecimento deste conjunto
de tenses entre mdicos e demais terapeutas em uma dessas reas, o municpio paraibano de So
Joo do Cariri4. Localizado na microrregio dos Cariris Velhos da Paraba (rea destacada do
seguinte mapa), ele ser palco, durante esse perodo, para a irrupo de um conjunto de eventos
constituidores de tais tenses.
3 H, no mbito da historiografia paraibana, um considervel nmero de trabalhos que tratam sobre as prticas
teraputicas populares e sobre a perseguio contra elas empreendida durante a primeira metade do sculo XX. A
esse respeito, podemos citar os trabalhos de Lenilde Duarte de S (2014), Giscard Farias Agra (2010) Fabio
Gutemberg Sousa (2003; 2006) e Amanda Peixoto de Carvalho (2011). Todos eles, no entanto, elegem como recorte
espacial as maiores cidades do estado, Joo Pessoa e Campina Grande, deixando uma lacuna sobre a irrupo de tal
perseguio em outras reas do estado, menos urbanizadas e menos assistidas por um corpo mdico que aquelas
cidades. 4 Situado a 216 quilmetros da capital da Paraba, Joo Pessoa, o municpio de So Joo do Cariri compreende uma
rea territorial de 653 Km e conta com aproximadamente 4.344 habitantes. Durante o perodo que serve de recorte a
esta pesquisa, no entanto, era a terceira maior comarca da Paraba e calculava uma populao de aproximadamente
30.000 habitantes. Sobre este municpio mais informaes sero expostas no decorrer desta dissertao. Sobre a
localizao geogrfica atual do municpio de So Joo do Cariri, ver mapa 2 no Anexos.
Ver: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=251400&search=paraiba|sao-joao-do-cariri.
Acesso: 10/02/2016.
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=251400&search=paraiba|sao-joao-do-cariri
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Para estuda-los, pois, elegemos como recorte temporal o perodo que compreende os anos
entre 1928 e 1945. O marco inicial de tal delimitao corresponde primeira denncia, que
tivemos acesso, perpetrada contra um terapeuta que atuava naquele espao. Denncia esta
realizada justamente por um esculpio, Onildo Leal, que, nesse ano, chega a So Joo do Cariri, e
ali se instala provisoriamente. Ademais, durante esse perodo que ocorre o processo de
estabelecimento do saber mdico - j hegemnico nas maiores cidades do estado - em So Joo
do Cariri, com a efetivao de servios de Saneamento Rural, e com a chegada de alguns
mdicos.
Nesse contexto que se formar um conjunto de tenses, pela hegemonia no mercado de
servios teraputicos, entre estes profissionais, recm-chegados e arautos de um conhecimento
que se pretende universal, e outros terapeutas, no s h muito atuantes, mas tambm detentores,
at aquele momento, da preferncia popular naqueles espaos. O ano de 1945 marca, dessa
maneira, a concretizao desse processo de estabelecimento de uma mo-de-obra mdica, que
culminar com a instalao de dois postos mdicos5 permanentes naquele municpio e com o
fenecimento desse combate particular,
Buscamos em suma compreender, atravs da anlise dos documentos selecionados para
este trabalho, como se constri nesse perodo uma srie de discursos parcialmente homogneos,
5 Ofcio n 20, de 10/03/1945.
MAPA 1: Diviso administrativa da Paraba, 1920. Destaque regio dos Cariris Velhos e
localizao territorial do municpio de So Joo do Cariri.
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no interior da classe mdica paraibana, sobre as prticas teraputicas alheias ao campo da
Medicina Cientfica, e a partir de quais canais tais discursos sero propagados para a populao
habitante daquele municpio. Ao mesmo tempo, perguntamos pelas estratgias elaboradas pelos
principais promotores de tal campanha contra os curandeiros, no intento de deslegitimar e
cercear a prtica de terapeutas atuantes em So Joo do Cariri. Qual a singularidade de tal poltica
repressora efetivada neste municpio? Quais eram os alvos principais de suas denncias e
perseguies? Quais as possibilidades de escape, por parte dos denunciados, de uma vigilncia
que a partir de agora passa a os acompanhar? Estas so perguntas e demandas que orientam a
escrita desta dissertao, que est basicamente organizada a partir da disposio de trs captulos.
No primeiro, intitulado Espaos insalubres e expectativas sanitaristas: So Joo do Cariri
nas dcadas de 1930 e 1940, discorro acerca do conjunto de fatores que possibilitou a irrupo
da perseguio a alguns dos terapeutas que atuavam no territrio de So Joo do Cariri. Tendo
em vista que ser o saber mdico o principal legitimador de tal perseguio, centralizarei minha
narrativa em seu processo de expanso quela regio, atravs do Movimento Sanitarista
Paraibano e do agenciamento de uma primeira poltica preocupada com as condies de higiene e
salubridade urbana. Ainda aqui, discutirei acerca do horizonte de possibilidades teraputicas que
se oferecia s populaes daquele municpio.
No segundo captulo enveredo atravs dos discursos que, de forma hegemnica,
constroem, nesse perodo, significado prtica do Curandeirismo na Paraba. A esse respeito, o
seu ttulo denuncia o percurso pelo qual irei trilhar: Do Gabinete Feira Livre.... Investigarei,
pois, dois principais discursos: o discurso mdico, propagado em livros e jornais do perodo pelos
esculpios paraibanos, e o discurso popularizado pelos folhetos de cordel. Estudando no s o
contedo de tais textos, mas tambm as dinmicas particulares de recepo e os respectivos
pblicos consumidores, explicamos como se constitui um primeiro choque entre uma
compreenso do curar amplamente difundida no seio populacional, e outra que, chegando nesse
perodo a So Joo do Cariri, procura a desautorizar.
Finalmente, no terceiro captulo debruaremos nossa anlise sobre trs processos
criminais, movidos respectivamente durante os anos de 1928, 1941 e 1942, contra dois terapeutas
que naquele momento atuavam em So Joo do Cariri, nos quais ambos so acusados pela prtica
do crime de Curandeirismo. O estudo de tais processos possibilitar compreender como o campo
judicial configura-se, nesse perodo, como uma das principais e mais eficazes vias de represso s
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prticas teraputicas no habilitadas pelo campo da Medicina Cientfica. Ao mesmo tempo, ser
revelador de um conjunto de artifcios, utilizados pelos acusados no intento de escapar da pecha
de curandeiro e, portanto, da condenao.
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CAPTULO I
ESPAOS INSALUBRES E EXPECTATIVAS SANITARISTAS:
SO JOO DO CARIRI NAS DCADAS DE 1930 E 1940
Inicio o percurso narrativo do presente captulo a partir de trs eventos singulares. No dia
26 de julho de 1938 a escriturria da Prefeitura Municipal, Marl Coura de Farias, envia um
requerimento quele rgo, no qual solicita a emisso de uma licena de quinze dias para a
realizao de um tratamento em seu filho, que estava doente. Dentre as vrias justificativas para a
outorga do pedido de licena, constava que: Sendo viuva e genitora de uma criana de trs anos
de idade que se acha bastante doente, e como no h nenhum mdico nesta cidade torna-se
preciso ir com ela a cidade de Campina Grande ou Capital do Estado, afim de faser o necessario
tratamento6.
Aproximadamente trs anos aps esse evento, em setembro de 1941, era o secretrio Jos
Chagas Brito que requeria uma licena de sessenta dias para tratamento de sua sade, com a
apresentao inclusive de um atestado7, assinado pelo mdico Bezerra de Carvalho, com
consultrio fixado na cidade de Campina Grande, em que ratificava as ms condies de sade de
seu cliente. O mesmo que aconteceu com a bibliotecria Teresinha Ramos no ano de 1945 que,
ao requerer uma licena8, necessitou se dirigir at aquela cidade para a obteno de um atestado
assinado pelo mdico Elpdio de Almeida.
Heterogneos, dispersos temporalmente e aparentemente sem conexes entre si, estes trs
eventos indiciam, no entanto, uma situao recorrente no cotidiano dos moradores de So Joo do
Cariri durante as dcadas de 1930 e 1940: a escassa assistncia mdica e a irregular presena de
esculpios naqueles locais. Era em virtude dessa precariedade que Marli Coura precisaria se
dirigir cidade de Campina Grande para, sob a competncia de um mdico, realizar os devidos
tratamentos em seu filho. Foi tambm pela inexistncia de mdicos em So Joo do Cariri que os
6 Requerimento 26/07/1938, emitente Marl Coura de Farias. Livro de Competncias, f. 37. Arquivo Pblico da
Prefeitura Municipal de So Joo do Cariri. 7 Requerimento 15/09/1941, emitente Jos Chagas Brito. Livro de Competncias, f. 32. Arquivo Pblico da
Prefeitura Municipal de So Joo do Cariri. 8 Requerimento 22/01/1945, emitente Teresinha Ramos Miranda. Livro de Ementa, f. 54. Arquivo Pblico da
Prefeitura Municipal de So Joo do Cariri.
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outros dois profissionais se viram obrigados a ter que se deslocar at aquela cidade para a
obteno de algum atestado que comprovasse seus estados de sade.
Como anunciado na introduo, esta dissertao busca compreender o conjunto de
tenses, disputas e perseguies que, a partir da dcada de 1920, passa a ocorrer no territrio de
So Joo do Cariri entre mdicos e outros terapeutas que ali atuavam, em busca da hegemonia no
oferecimento de servios teraputicos. Nesse sentido, a pergunta que orienta a escrita deste
captulo a seguinte: como foi possvel a constituio deste enredo conflituoso num local e numa
regio onde era escassa, sobretudo, a assistncia mdica?
Aqui, discutiremos sobre a teia de agenciamentos polticos que possibilitou a formao de
tais tenses em uma rea onde no s era escassa a presena mdica, mas tambm
majoritariamente rural e no urbanizada. Na execuo de tal empreitada, necessitaremos
momentaneamente retroceder segunda metade da dcada de 1910 e dcada de 1920 para
analisar o processo de expanso da Medicina - atravs do Movimento Sanitarista Nacional - aos
espaos sertanejos e rurais, bem como a apropriao pelos mdicos paraibanos de tal projeto de
interiorizao territorial a regies por eles consideradas esquecidas, desassistidas pelo Estado.
Em seguida, j no domnio de nosso recorte temporal, debruaremo-nos sobre o espao
territorial do municpio de So Joo do Cariri: seus ambientes urbanos, as dificuldades,
principalmente higinicas, enfrentadas pelas populaes ali habitantes, as limitadas possibilidades
teraputicas a elas oferecidas notadamente s camadas mais empobrecidas bem como a ampla
e disseminada atuao, neste cenrio, de terapeutas das mais variadas provenincias.
Tendo organizado tal captulo a partir de uma lgica sincrnica, por fim discutiremos o
conjunto de estratgias elaboradas por uma parcela dos mdicos paraibanos do perodo a fim de
desautorizar e combater todos aqueles terapeutas, bem como, especificamente, a irrupo de tal
perseguio aos atuantes em todo o territrio municipal de So Joo do Cariri.
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1.1- O processo de expanso mdica
Do Rio de Janeiro ao Rio Jaguaribe9: o Sanitarismo como viabilidade para o
Saneamento dos Sertes
O recorte temporal que compreende o intervalo entre a ltima dcada do sculo XIX e as
trs primeiras dcadas do sculo XX no Brasil atualmente analisado por alguns historiadores
como um perodo no qual agenciado no s um rearranjo poltico a nvel nacional, mas tambm
e principalmente - uma ressignificao da prpria nacionalidade, do que seria a Nao
Brasileira (CARVALHO, p. 22). Concorria para essa emergncia uma multiplicidade de fatores,
dos quais podemos citar o conjunto de transformaes a ocorrerem simultaneamente desde o
ltimo quartel do sculo XIX, tais como a abolio da escravatura em 1888, a transferncia
gradativa do centro econmico brasileiro para a regio Sul (ALBUQUERQUE JUNIOR, 1988, p.
29) e a ascenso da burguesia cafeeira, o crescimento populacional desordenado enfrentado pelas
maiores cidades brasileiras, notadamente pelo Rio de Janeiro, e o prprio processo de transio
para o regime republicano.
Consolida-se, como forma de legitimao para a Repblica implantada no pas, uma
cultura da reforma (HERSCHMANN, PEREIRA, 1994, p. 23) que, ancorada no ideal
positivista do Progresso10
, visava afastar do imaginrio nacional tudo o que minimamente
representasse a sociedade imperial, associando-a de forma veemente justificao religiosa, ao
retrocesso, incivilizao, barbrie. A essa viso fantasmtica de um passado inventado
oposicionou-se uma expectativa de futuro que tinha como extremidade final de uma teleologia do
9 Rio que corta em aproximadamente 13 km a capital da Paraba, Joo Pessoa. Nasce na regio do bairro de
Esplanada e das Trs Lagoas (cruzamento das rodovias federais 101 e 230) e percorre os bairros de Cruz das Armas,
Varjo, Jaguaribe, Tamba, Bessa, Miramar, at desaguar no Rio Paraba. 10
Segundo Jos Murilo de Carvalho, a proeminncia que o ideal do Progresso alcana aps 1889 no Brasil no
discurso das elites brasileiras resultante, dentre outros fatores, do fortalecimento alcanado pelos Positivistas no
processo de debate e instituio do modelo de Repblica a ser adotado no Brasil. Ao lado do modelo estadunidense
de federalismo, ele sobressai como modelo vitorioso no apenas pela ascenso da importncia dos grupos polticos
militares, abertamente apoiadores deste modelo, mas pelas possibilidades abertas por essa doutrina que, prevendo o
Progresso como ponto final e obrigatrio da evoluo nacional, cedia ao Estado um amplo poder de ao e coero
no intento de acelerar o processo de evoluo nacional, justificando inclusive o autoritarismo estatal. Ver:
CARVALHO, Jos Murilo de. A Formao das Almas: O Imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo. Companhia
das Letras: 1990. Para Herschmann e Messeder (1994, p. 25) os intelectuais daquele perodo acreditavam que a
nao to almejada podia ser alcanada do alto para baixo; ou seja, a nao, nos discursos destes positivistas,
personificava-se no Estado.
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Progresso a sociedade europeia em suas ideias liberais, em suas instituies, em suas
representaes estticas, em seus costumes, em seu cotidiano, tidos como moderno.
De fato, como argumenta Berman (1999, p. 89), esta apropriao da Europa como
modelo de sociedade ser um fenmeno que atingir uma escala mundial, principalmente nos
pases subdesenvolvidos, onde ela sofrer um conjunto de desdobramentos. No Brasil, os grupos
que durante a maior parte da Primeira Repblica disputam a condio de formuladores de um
discurso hegemnico sobre a nao vo tambm optar inicialmente pelo caminho de uma
Modernizao europeia. Seria necessrio, segundo eles, condenar a sociedade do Imprio e
realizar, o quanto antes, reformas redentoras (HERSCHMANN, PEREIRA, 1994, p. 22) que
possibilitassem ao pas o alcance do progresso numa fase posterior de sua Histria. Essa utopia
do Brasil Moderno no s conseguir ter legitimidade perante as elites brasileiras desse
perodo, como se fortalecer no decorrer das dcadas de 1920 e 1930 atravs da constituio de
um conjunto de demandas, cada vez mais latentes na sociedade brasileira e que apontaro, todas
elas, a um horizonte de expectativa definido: uma modernizao brasileira.
Nesse sentido, alguns questionamentos iniciais interpem o nosso caminho narrativo:
como viabilizar a imposio dessa forma particular de racionalidade, constituda como base do
modelo poltico republicano, sobre a sociedade brasileira? Quais mecanismos e tecnologias
polticas foram acionadas no sentido de municiar o Estado com um poder coercitivo e
autoritrio na efetivao dessa poltica? Micael Herschmann (ibidem, p. 2629) que nos
aponta as trs bases discursivas a partir das quais teria se concentrado a atuao do Estado na
efetivao desse projeto modernizador sobre a sociedade. Seriam elas, a Educao, a Engenharia
e, principalmente, a Medicina.
De fato, desde a primeira metade do sculo XIX, com a vinda da Famlia Real ao Brasil,
que a Medicina, enquanto saber, sofria um crescimento considervel, haja vista o conjunto de
esforos empreendidos no sentido de uma institucionalizao desse saber com a criao de rgos
corporativos - como a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, fundada em 1829 e de
instituies de ensino oficiais como as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro,
oficializadas enquanto tais em 1832 (SCHWARCZ, 1993, p. 259). No se pode dizer, no entanto,
que ela tivesse at esse momento um nvel de penetrao social no seio populacional, nem
mesmo uma efetiva ao medicalizadora da vida dos indivduos, haja vista que trabalhos como os
de Sampaio (2005) e Chalhoub (2003) mostram, por exemplo, a ampla e quase incontrolvel
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24
atuao dos mais diversos terapeutas populares - fossem eles cirurgies-barbeiros, dentistas,
sangradores ou de outras procedncias no territrio brasileiro durante o sculo XIX,
possibilitada no s pela impopularidade da Medicina cientfica frente s camadas mais pobres,
mas principalmente pela inexistncia de uma legislao especfica que regulamentasse e
efetivamente criminalizasse prticas teraputicas no inscritas no campo cientfico. At esse
momento no se poder falar nem mesmo na existncia de um campo mdico no Brasil.
Ser somente a partir do regime republicano que a Medicina passar, gradativamente, a
arregimentar para si um espao de atuao e de interveno social cada vez maior, principalmente
a partir da dcada de 1910, quando ocorre uma acelerao no processo de organizao
corporativa e de constituio de um campo mdico, propriamente dito. Isso porque durante este
perodo ela passa a ser promovida no apenas como contedo de um discurso estatal de
Modernizao Nacional, mas, sobretudo, como tecnologia poltica de interveno de um Estado
autoritrio sobre a sociedade.
Organiza-se, ainda que deficitariamente, as primeiras experincias de uma Medicina de
Estado (FOUCAULT, 2013, p. 150), com o aparelhamento de um saber mdico estatal, atravs da
criao da DGSP e da diviso das jurisdies litorneas em trs reas, a saber, Rio de Janeiro,
Recife e Belm; elabora-se uma legislao especfica (e gradativamente uma jurisprudncia) para
os Crimes contra a Sade Pblica, atravs do Cdigo Penal de 1890; outorga-se Medicina um
poder autoritrio at ento nunca alcanado.
Operacionaliza-se, acima de tudo, um deslocamento no prprio objeto da Medicina, que,
de Arte (HERSCHMANN, ibidem, p. 60), passa a se constituir cada vez mais como uma
Medicina Social, migrando do espao do particular, da caridade e da singela responsabilidade
curativa para a complexa dimenso da atividade preventiva (FOUCAULT, 2013, p. 160 164). O
mdico a partir de ento, notadamente o higienista, passa a ser entendido como administrador da
sade e, para isso, tem de dificultar ou impedir o aparecimento da doena, lutando, ao nvel de
suas causas, contra tudo o que na sociedade pode interferir no bem-estar fsico e moral
(MACHADO, 1975, p. 155).
atravs do agenciamento do conceito de salubridade, entendido por Michel Foucault
(2003, p. 163) como a base material e social capaz de assegurar a melhor sade dos indivduos,
que os mdicos, agora enquanto administradores da sade, inventariam um conjunto de demandas
e preocupaes relacionadas sade pblica de um pas concebido como enfermo. Preocupaes
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que, emergentes em meio ao processo de constituio de uma nova sensibilidade sobre o espao
urbano, elegiam os inimigos prioritrios a serem combatidos: o amontoamento, os acmulos de
tudo que poderia provocar confuso, perigo e doenas (MIRANDA, p. 3), a circulao
descontrolada dos indivduos e elementos considerados perigosos, tais como o ar e a gua, em
suma, a insalubridade. Dentre as vrias modalidades de amontoamento, o humano passa a ser a
considerado o mais nocivo e transmissor de doenas e epidemias.
Ora, no ento aleatrio o fato de que os cenrios sobre os quais se estabelecem as
primeiras intervenes higienistas no Brasil sejam as cidades. Espaos do amontoamento
humano11
e do trnsito desordenado de pessoas, desde o sculo XIX as maiores cidades
brasileiras experimentavam um crescimento populacional vertiginoso, quase sempre
acompanhado pela incidncia peridica de um conjunto de epidemias - como o clera, a febre
amarela, a peste bubnica e a varola - que dizimavam grande parte da populao, principalmente
das reas mais perifricas e desprovidas de sistemas de encanao e esgotamento sanitrio.
Os dados numricos mostravam que doenas como varola, febre amarela, tuberculose
causavam vrias vtimas e a tendncia de adensamento populacional tornaria mais ainda
a questo da sade pblica de fundamental importncia para a cidade moderna. As
denncias eram feitas na poca pelos jornais, relatrios de rgos pblicos, romances,
anlises estatsticas, descries das condies de vida e trabalho nas cidades que se
industrializavam [...] A modernizao era, portanto, uma tarefa urgente, mas, ao mesmo
tempo, complexa, exigia mo-de-obra especializada e grandes investimentos.
(REZENDE, 1997, p. 44)
Esse lxico mdico-higienista no permanece restrito ao campo de saber de onde provm.
Mas, pelo contrrio, incorporado ao discurso de profissionais de outros campos, como
intelectuais, educadores, bacharis em Direito12
, engenheiros e polticos, aderentes ao projeto de
saneamento do Brasil. este o perodo a partir do qual so empreendidas as grandes reformas
urbanas do pas, como a que o prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos realiza
11
O Cortio desde o sculo XIX torna-se a metonmia mais utilizada para representar esse amontoamento humano:
conjunto indisciplinado de sem as mnimas condies de higiene ou salubridade. este ambiente tambm retratado
no romance naturalista homnimo de Alusio Azevedo, em que o autor descreve minunciosamente as condies de
precariedade em que estavam e que eram os personagens moradores daqueles locais. Ver: AZEVEDO, Alusio. O
cortio. So Paulo, tica, 1998. 12
Schwarcz (1993, p. 185 - 225) nos mostra como tambm o campo do Direito passa, nesse perodo, a se aproximar
dos discursos mdicos higienistas e eugenistas, principalmente a partir da Faculdade de Direito do Recife, com a
leitura que intelectuais como Tobias Barreto e Silvio Romero fazem da teoria evolucionista (Evolucionismo Social) e
dos estudos de Antropologia Criminal. Segundo ela, a partir dos anos 1920, passam a ganhar destaque no s os
temas relacionados rea da Medicina Legal, mas tambm higiene, sade e educao se transformam nos grandes
temas da revista (ibidem, p. 218). Ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas: cientistas, instituies
e questo racial no Brasil 1870 1930 / Lilia Moritz Schwarcz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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naquela cidade, entre 1903 e 1906, ou ainda a que acontece na cidade do Recife, durante o
governo de Lima Castro, entre 1919 e 1922 (REZENDE, ibidem, p. 38), com a instalao e
ampliao dos servios de saneamento municipais, de abastecimento dgua, esgoto, iluminao
pblica, depsito e remoo do lixo. o perodo em que, mais epidmico que a varola, o clera
ou a febre amarela, se torna o discurso - e as aes dos melhoramentos urbanos e de
embelezamento das urbes, das campanhas de vacinao, da desodorizao ambiental. Tudo o que
era resqucio do colonial, do rural, do arcaico, era tambm representante do atraso, do patolgico,
do anti-moderno, devendo ser, assim, extirpado desse espao.
Por outro lado, este era um debate que praticamente se restringia aos grandes centros
urbanos brasileiros, notadamente queles onde existiam instituies de legitimao do saber
mdico, leia-se Rio de Janeiro e Salvador, atravs de suas Faculdades de Medicina, So Paulo e a
cidade do Recife, atravs de sua Faculdade de Direito13
. At a primeira metade da dcada de
1910, no podemos falar na existncia de uma efetiva Medicina de Estado no Brasil, haja vista
que, no obstante a j precria estrutura burocrtica da DGSP, com circunscries sediadas em
apenas trs reas do imenso territrio brasileiro (Rio de Janeiro, Recife e Belm), ela era tambm
ineficiente (HOCHMAN, 2012, p. 60), de modo que a grande maioria das intervenes
higienistas realizadas durante este perodo fossem elas reformas urbansticas, campanhas de
vacinao ou instalao de melhoramentos urbanos vinham do mbito municipal.
Enfim, ainda no havia se disseminado por todo o territrio brasileiro a legitimao do
discurso higienista, de maneira que, se nas maiores cidades do pas constitua-se um corpo
mdico, que tinha inclusive um poder de voz junto aos rgos burocrticos municipais, e
efetivava-se um conjunto de intervenes no espao urbano que, visando um estado de
salubridade, combatia as ms condies de higiene e as epidemias peridicas, na grande maioria
do territrio brasileiro, nas pequenas cidades, vilas, na zona rural... no Serto inexistiam polticas
pblicas de sade. Estavam as populaes daqueles locais dependentes da assistncia intermitente
de mdicos liberais ou de outros terapeutas, como homeopatas, prticos de enfermagem ou
curandeiros.
, de acordo com Hochman (2012, p. 61), a partir da segunda metade da dcada de 1910
13
Schwarcz (1993, p. 345) debate a Faculdade de Direito do Recife ser tambm responsvel pela disseminao do
jargo evolucionista e Darwinista-social no Brasil, convergindo, dessa maneira com o discurso pregado pelas
Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, principalmente a partir da segunda dcada do sculo XX,
quando nessa instituio ganha fora o discurso da Medicina Legal.
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que gradativamente se constitui no discurso mdico sobre o Brasil um outro cenrio para a
atuao higienista que no as maiores cidades do pas. Segundo este autor, se inicialmente o
Movimento Sanitarista concentrou esforos na questo do saneamento urbano da cidade do Rio
de Janeiro e o combate s epidemias de febre amarela, peste e varola (ibidem, p. 60), a partir
aproximadamente de 1915 ele passar a promover outra demanda, cuja nfase incidir na questo
do saneamento rural, em especial o combate a trs endemias rurais (ancilostomase, Malria e
Mal de Chagas), a partir da descoberta dos sertes, dos seus habitantes abandonados e doentes e
da possibilidade de cur-los e integr-los comunidade nacional (ibidem, p. 61).
Este deslocamento de enfoque operado no discurso sanitarista brasileiro, contemporneo
e, segundo, Herschmann (1994), diretamente tributrio, do conjunto de transformaes pelas
quais passa nesse perodo o prprio projeto de Modernizao empreendido pela elite do pas. Ao
comparar este momento com as dcadas de 1890 e 1900, ele afirma que:
Ao contrrio do perodo anterior, marcado por um forte desejo de identificao com a
civilizada Europa, os anos 20 30 vo se caracterizar, no Brasil, como um momento
especial no sentido da configurao de uma conscincia ou da busca de uma
identidade nacional calcada sobre a afirmao da fora nativa sem que isso
impedisse, bom que seja dito, a importao s vezes bastante literal do pensamento das
vanguardas europeias da poca. Entravam em cena novas ideias [...] ao mesmo tempo
em que as categorias que agora orientavam o processo de apreenso/construo da
realidade apontavam na direo de um alargamento significativo da maneira de pensar o
pas. (HERSCHMANN, 1994, p. 29)
Neste sentido, apesar do fato de que a sociedade europeia no deixar imediatamente de
aparecer como uma referncia a ser imitada e sobre a qual deveriam ser delineados os passos de
uma Modernizao Nacional, a partir da segunda metade da dcada de 1910 elabora-se um
pensamento nacional - e nacionalista (ibidem, idem) voltado para as especificidades do pas e
compreende-se os limites e as impossibilidades - a localizao geogrfica, o clima, a natureza, a
miscigenao, por exemplo (SCHWARCZ, 2013, p. 262) - da realizao de um processo de
Modernizao tal qual ocorreu na Europa.
Passa-se sobretudo a ser defendido o projeto de uma Modernizao Nativa e, nesse
mpeto, uma questo emerge como central para a intelectualidade brasileira: afinal, o que o
Brasil? Com que povo afirmar a constituio do Brasil como nao (TRINDADE LIMA, 2013,
p. 72)? A elaborao dessas novas demandas por um conhecimento do pas impulsionar no s
uma produo cientfica, mas tambm a realizao de misses ao interior brasileiro que, com
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vistas a conhecer e elaborar uma interpretao sobre o serto14
, a imensa rea territorial
negligenciada pelo litoral e pelo Estado, exporo (e imporo) a urgncia da necessidade de uma
agenda poltica, principalmente sanitria, voltada para esse espao.
Alis, o Movimento Sanitarista, atravs da atuao de mdicos como Miguel Pereira,
Arthur Neiva e Belisrio Penna, se estabelecer nesse perodo como um dos principais crculos de
irradiao, no cenrio poltico brasileiro, do projeto de extenso do Poder Estatal a todo o
territrio nacional (ibidem, p. 131). Na escrita e nos discursos dos maiores expoentes desse
Movimento, diagnosticava-se a existncia do Serto como um espao no s abandonado pelos
poderes pblicos, mas eivado por um conjunto de patologias e precariedades que impossibilitava
de fato a transformao do pas em uma Nao Moderna, afinal ali tambm era Brasil.
nesse mesmo tom de denncia que em 1916 o mdico Miguel Pereira expe as
condies de insalubridade nas quais estavam, inertes, as populaes habitantes daqueles sertes:
fra do Rio ou de S. Paulo, capitaes mais ou menos saneadas, e de algumas outras
cidades em que a previdencia superintende a hygiene, o Brasil ainda um immenso
hospital. Num impressionante arroubo de oratoria j perorou na Camara illustre
parlamentar que, se fosse mistr, iria elle, de montanha em montanha, despertar os
caboclos desses sertes. Em chegando a tal extremo de zelo patriotico uma grande
decepo acolheria sua generosa e nobre iniciativa. Parte, e parte ponderavel, dessa
brava gente no se levantaria: invalidos, exangues, esgotados pela ankylostomia e pela
malaria; estropiados e arrazados pela molestia de Chagas; corroidos pela syphilis e pela
lepra; devastados pelo alcoolismo; chupados pela fome, ignorantes, abandonados, sem
ideal e sem letras ou no poderiam estes tristes deslembrados se erguer de sua modorra
[...] E isso sem exagero a nossa populao do interior. Uma legio de doentes e
imprestaveis.
Miguel Pereira, 191615
[Grifo nosso]
Em seu discurso, considerado por alguns autores (HOCHMAN, 2012; TRINDADE
LIMA, 2013) como o inaugurador do movimento pelo Saneamento dos Sertes, Miguel Pereira
ataca explicitamente a retrica romntica sobre os sertanejos e os caboclos, segundo a qual o
14
O Serto brasileiro j tinha sido amplamente tematizado, em um primeiro momento, pela Gerao Romntica de
1870 at a primeira dcada do sculo XX, por autores como Jos de Alencar, Franklin Tvora, Bernardo Guimares,
Visconde de Taunay e, principalmente Euclides da Cunha, atravs de sua obra Os Sertes. Sobre o movimento
operado pela Gerao das dcadas de 1920 e 1930, embora a bibliografia sobre o tema (HOCHMAN, 2012;
TRINDADE LIMA, 2013) o denomine como Redescoberta do Serto, prefiro o termo Reinveno do Serto,
haja vista que no s a procedncia dessa interpretao outra, de cunho majoritariamente cientfico, mas tambm o
prprio serto inventado outro, opositor inclusive daquele inventado pela Gerao Romntica. 15
PEREIRA, Miguel. O Brasil ainda um immenso hospital. Discurso pronunciado pelo Prof. Miguel Pereira, por
occasio do regresso do Prof. Aloysio de Castro, da Rep. Argentina, em Outubro de 1916. P. 6. Disponvel em: <
www.revistas.usp.br/revistadc/article/download/56845/59823>. Acesso: 26/10/2015.
http://www.revistas.usp.br/revistadc/article/download/56845/59823
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29
homem do serto seria um Hrcules Quasmodo, antes de tudo um forte (CUNHA, 2002). Ao
contrrio, para o sanitarista, no haveria herosmo nenhum no modo de vida desse tipo, descrito
por ele como rural, doente, ignorante, abandonado, isolado, com instrumentos primitivos de
trabalho, desconhecendo o uso da moeda, tradicionalista e refratrio ao progresso (HOCHMAN,
2012, p. 66).
Sobre os sertes nortistas, ento, um conjunto ainda mais carregado de adjetivaes
negativas permeava o discurso sanitarista do perodo, segundo o qual, alm de todas as condies
de precariedade - em todos os sentidos - e insalubridade, agravavam a vida dos habitantes dessa
regio os problemas da seca e das epidemias, principalmente de Peste Bubnica e Varola
(SOARES JNIOR, 2011, p. 104) que ainda assolavam frequentemente aquelas reas. de
amplo conhecimento na historiografia a viagem de reconhecimento realizada no ano de 1916
pelos mdicos sanitaristas Belisrio Penna e Arthur Neiva aos sertes de Gois, Bahia,
Pernambuco e Piau. Em seu relatrio, a tnica do discurso era a mesma: era preciso que
tivssemos um povo e o que tnhamos no era um povo, mas um estrume dum povo que ainda h
de vir (NEIVA E PENNA, 1918, p. 198 apud SOARES JNIOR, 2011, p. 104).
Ora, as condies do interior paraibano naquele perodo no seriam to diferentes do
cenrio que Belisrio Penna e Arthur Neiva teriam encontrado e descrito em seus estados
vizinhos, principalmente Pernambuco, com o qual mantinha intensas relaes comerciais e de
trfego de pessoas. Tanto que, narrando uma passagem de Penna pela regio do Brejo paraibano
no ano de 1926, Oliveira identifica que
o mdico destaca a falta de desobstruo dos cursos dgua, a no drenagem dos
pntanos e o descuido com os dejetos humanos e animais. Como inexistem fossas na
grande maioria das casas, os mosquitos veiculadores da malria criam-se livre e
abundantemente, e as larvas e embries de vermes intestinais pululam no solo e nas
guas, infectando e infestando toda a populao, arrastada, assim, a anemia e a
degradao, desvalorizada pelos dois grandes flagelos nacionais amarelo e
maleita (OLIVEIRA, 2009, p. 8)
A partir de 1916, essa retrica de denncia da sade pblica como problema nacional, de
Estado, concorrer cada vez mais para a formao de uma identidade do Movimento Sanitarista e
de uma unidade organizativa, que vem a se consolidar no ano de 1918, com a formao da Liga
Pr-Saneamento do Brasil (HOCHMAN, ibidem, 63). Composto majoritariamente por polticos
ligados ao Movimento Sanitarista e mdicos e higienistas vinculados DGSP e ao Instituto
Oswaldo Cruz (TRINDADE LIMA, ibidem, p. 184 197), esse grupo ter uma atuao
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30
fundamental, durante os dois anos de sua existncia, para a consolidao do projeto de
Saneamento dos Sertes, atravs da realizao de palestras e conferncias em instituies
privadas e pblicas, de congressos mdicos, da distribuio de panfletos informativos
populao, da publicao da Revista Sade, cujo foco eram justamente as endemias rurais, e da
criao de delegaes estaduais incumbidas de provocar esse debate tambm especificamente nas
suas respectivas unidades federativas.
Tendo como objetivo principal a uniformizao dos servios de sade em todo o territrio
nacional atravs da criao de um rgo pblico que, diferentemente da DGSP, tivesse uma
capacidade de regulao e interveno em todo o pas, os integrantes da Liga Pr-Saneamento
tinham como maior obstculo as prprias elites oligrquicas estaduais, temerosas de que essa
atribuio de responsabilidades instncia federal do Executivo gerasse um processo de
concentrao do poder nas mos do Estado e a consequente perda das autonomias estaduais
(HOCHMAN, 2012, p. 167).
Esse quadro de instabilidade e conflito de interesses se estender at o governo
presidencial de Epitcio Pessoa (1919 1922), quando, alm da amplificao dos debates no
Congresso Nacional, ser realizada uma reforma16
na estrutura burocrtica da gesto nacional da
Sade, com a criao do Departamento Nacional de Sade Pblica (DNSP) em 1920, que
substitui a antiga DGSP, e dos Servios Federais de Profilaxia Rural (1921), estabelecidos em
convnio com os estados. Na prtica, essa reforma significava no s um substancial acrscimo
no poder de coercitividade e autoritatismo do Estado, mas tambm, e principalmente, uma
significativa expanso territorial dos servios sanitrios e de um corpo mdico a reas at ento
desprovidas da ao do Estado e fora de um circuito efetivamente higienista, como era o caso,
por exemplo, da quase totalidade do territrio paraibano, haja vista que, j em 1922, funcionavam
nesse estado quatro postos de Saneamento e Profilaxia Rural, alm de um hospital regional na
capital e um dispensrio para tratamento da sfilis e doenas venreas (ibidem, p. 177).
O clmax desse quadro de interiorizao mdica rumo aos sertes - e no qual pretendo
encerrar a reflexo deste tpico reside no fato de que, imaginados inicialmente enquanto
alternativas saneadoras para os problemas das endemias rurais (principalmente da
16
Gilberto Hochman (2012, p. 131) afirma que fatores relevantes para o sucesso da proposta de reforma da estrutura
burocrtica da Sade no governo de Epitcio Pessoa sero o fato deste presidente ser oriundo de um estado no-
central no pacto oligrquico, e a alternativa de que esse servios de Profilaxia e Saneamento Rural fossem realizados
em forma de convnio com os Estados e no de forma claramente coercitiva, contra a vontade das elites locais.
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31
Ancilostomase, Malria e Mal de Chagas), os Servios de Saneamento e Profilaxia Rural
assistiro, no decorrer de sua atuao nas dcadas de 1920 e 1930, a um aumento sem
precedentes das suas atribuies17
, seja pela fragilidade das receitas estaduais, impossibilitadas de
um maior investimento na rea da sade e salubridade, ou pela extrema precariedade em termos
higinicos que passam a encontrar nas reas afetadas por esses servios.
Essa aglutinao de competncias possibilitar aos mdicos sanitaristas atuantes nesses
servios, a oportunidade de uma diferenciao social e profissional ainda mais radical em relao
aos outros mdicos principalmente os generalistas no sentido de que, ao tornarem-se
praticamente gestores das condies de salubridade das reas menos populosas e rurais, eles
passam tambm a priorizar o meio em detrimento do indivduo e, nesse sentido, combater um
conjunto de problemas e inimigos construdos como naturais daquelas localidades, dos quais
podemos citar as pssimas condies higinicas, mas tambm a resistncia daquelas populaes
s polticas de sade e, frente a essa resistncia, a atuao descontrolada de terapeutas no-
inscritos no campo da Medicina Cientfica, que passam a ser cada vez mais identificados,
mapeados, taxados como charlates e/ou curandeiros e combatidos, inclusive no plano judicial.
nesse clmax dos encontros e das tenses possibilitadas, dentre um conjunto de fatores,
pelo processo de interiorizao do discurso e do projeto medicalizador aos sertes brasileiros, que
redireciono o foco de minha anlise para o territrio da Paraba, onde, alm da instalao dos
Servios de Profilaxia Rural, emerge tambm um processo gradativo de constituio do mdico
enquanto reformador social (SANTOS, 2015), com a construo de rgos sanitrios como o
Instituto Vacinognico, de instituies corporativas como a Sociedade de Medicina e Cirurgia da
Paraba, entre outras composies. Explico, neste prximo tpico, como se organizou a
apropriao desse projeto medicalizador do serto pelas elites paraibanas e pelo corpo mdico ali
atuante, perguntando, sobretudo, como este novo modelo de gesto da vida implicar na irrupo
de deslocamentos e de tenses - significativos nas maneiras de viver, de pensar o corpo e de
lidar com a doena de uma parcela das populaes habitantes das reas menos populosas do
17
Algumas dessas atribuies assimiladas pelos Servios de Saneamento Rural, no decorrer dos anos 20 30 so:
aes de saneamento (como obras de drenagem, construo de fossas, etc), educao sanitria (panfletos, palestras),
vacinao prticas mdicas (diagnstico, exames, medicao, internao, etc), organizao e divulgao de
estatsticas demogrficas e sanitrias, implantao da legislao sanitria e seu cumprimento (inspees de
habitaes, polcia de focos de mosquitos e ratos, isolamento e tratamento compulsrio de doentes, fiscalizao e
autuao de atividades domsticas e comerciais, etc) e construo de imveis pblicos (que tambm simbolizavam
instituies), como postos sanitrios fixos e itinerantes, dispensrios, leprosarias, hospitais regionais e de isolamento.
(HOCHMAN, ibidem, p. 195).
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32
Estado, notadamente da regio dos Cariris Velhos, rea de enfoque deste trabalho. Afinal, houve
uma viabilidade higienista/sanitarista nos Cariris Velhos da Paraba?
Apropriaes sanitaristas no territrio paraibano: limites e possibilidades
Como assinalou Hochman (2012, p. 178), a Paraba foi um dos primeiros estados
brasileiros a aderir reforma da estrutura burocrtica da Sade realizada pelo governo do
presidente Epitcio Pessoa (1919 1922). Oficializados os Servios de Saneamento e Profilaxia
Rural durante os anos de 1920 e 1921, principalmente com a criao do Departamento Nacional
de Sade Pblica (ibidem, p. 180), j em 12 de maio de 1921 inaugurava-se o primeiro posto de
Saneamento Rural em Jaguaribe, bairro perifrico da capital do Estado, Parahyba18
. Doze dias
depois, abria-se o de Tamba, onde em virtude dos maceis que existiam naquela praia, grassava
endemicamente a matria (NBREGA, 1979, p. 67).
Conduzidos sob a modalidade de convnio entre a Unio e os estados, a instalao desses
Servios na Paraba durante a dcada de 1920 ir colaborar no apenas para a maior organizao
de um corpo mdico local em torno de uma instituio central de sade, mas tambm para a
chegada de um grande nmero de mdicos que, provenientes dos maiores centros urbanos do pas
como o Rio de Janeiro, onde a Campanha pelo Sanitarismo dos Sertes ecoava de modo
veemente, passam a ocupar cargos estratgicos na burocracia da CSPR19
. Esse o caso, por
exemplo, de Accio Pires, mdico sanitarista carioca (OLIVEIRA, 2015, p. 132) nomeado por
Epitcio Pessoa em 1921 para dirigir os trabalhos desta Comisso na Paraba. Com ele, chega a
esse estado uma equipe tcnica das mais credenciadas onde avultavam as figuras de Gasto
Cruls, Berredo Coqueiro, Armando Pires, Mrio Fres de Abreu, Pinheiro Sosinho, Newton
Lacerda, Carlos Viana e lvaro Clodovil (NBREGA, 1979, P. 67), alm de vrios mdicos
18
Um dos fatores que colaboram para essa rpida implementao da poltica sanitria proposta pela Unio neste
estado, certamente o foi o domnio alcanado por Epitcio Pessoa tambm no cenrio poltico da Paraba, seu estado
de origem, atravs da realizao de um conjunto de alianas com as oligarquias locais, que facilitou a aplicao das
medidas federais neste territrio estadual (SILVEIRA, 1969, p. 62). 19
Comisso de Saneamento e Profilaxia Rural.
-
33
paraibanos convidados a compor a dita Comisso20
- alguns dos quais j egressos de rgos de
sade e higiene pblica daquele estado, como Flvio Maroja, que j havia assumido as funes de
chefe de Sade do Porto de Cabedelo e de diretor do Instituto Vacinognico da Paraba (ibidem,
p. 211).
Ainda mais que a chegada desses novos profissionais, encarregados de limpar o
territrio insalubre desse estado, o que ganha relevo em nossa anlise o deslocamento
promovido por esses mdicos na escolha dos espaos prioritrios de atuao da Comisso de
Saneamento e Profilaxia Rural, uma vez que at 1921, as poucas e escassas medidas relacionadas
sade pblica vacinao anti-varilica, desinfees, servios de demografia eram
praticamente limitadas cidade da Parahyba21
em sua rea central, permanecendo os bairros
perifricos desta cidade e a maior parte do territrio estadual expostos insalubridade, s
pssimas condies higinicas e s epidemias peridicas.
sintomtica, sobre esse deslocamento de prioridades espaciais, a eleio de Jaguaribe
como primeiro local a sediar um Posto de Saneamento e Profilaxia Rural. Ora, localizado nos
arrabaldes da cidade da Parahyba, capital do estado, este bairro que antes era uma rea rural de
posse da Igreja Catlica passa a sofrer um crescimento populacional considervel durante a
dcada de 1910, com a migrao de famlias pobres vindas do interior do Estado e a expulso de
famlias pobres em virtude da destruio dos casebres e mocambos localizados na rea central da
cidade (CHAGAS, 2014, p. 214). Espao de marginalizao, ele logo passa a ser
diagnosticado/construdo pelo discurso dos mdicos e polticos como ameaa sanitria e moral,
em virtude das ms condies higinicas, do sem-nmero de casebres e mocambos dispostos de
forma irregular e desalinhada, das ruas no-caladas e sujas, desprovidas de coleta de lixo, da
falta de iluminao e esgotamento sanitrio, da fisionomia arcaica e rural do lugar e, acima de
tudo, dos comportamentos e hbitos tidos como perigosos, anti-higinicos e rurais das populaes
que ali habitavam. Dentre estes comportamentos criticados pelos mdicos, estavam o costume de 20
Dentre esses mdicos paraibanos que passam a trabalhar na Comisso de Profilaxia e Saneamento Rural, Nbrega
cita ainda: Gennival e Ademar Londres, Otvio de Oliveira, Elpdio de Almeida, Silvino Nbrega, Plnio Espnola,
Otvio Soares, Cruz Ribeiro, Mrio Coutinho e Manoel da Cunha. Ver: NBREGA, 1979, p. 67). 21
Oscar de Oliveira Castro nos mostra que, mesmo aps a fundao da Repartio de Higiene do Estado, em 1911, a
Paraba continua enfrentando uma srie de dificuldades no oferecimento dos servios de sade: primeiro pela
limitada abrangncia desse rgo, sediado em apenas quatro cidades do territrio paraibano, a saber, Parahyba,
Campina Grande, Sousa e Guarabira, e, em segundo lugar pela ineficincia provocada pela falta de recursos pblicos
(1945, p. 245 247). Segundo ele, s ocorre uma melhora considervel no oferecimento desses servios com a
fundao do Instituto Vacinognico da Paraba, pelo mdico Flvio Maroja em 1913, em cooperao com o delegado
de sade de Pernambuco, Eustaquio de Carvalho. Para mais, ver: CASTRO, Oscar de Oliveira. Medicina na Paraba:
flagrantes de sua evoluo. Joo Pessoa PB: A Unio, 1945.
-
34
lavar roupas e tomar banho diretamente no Rio Jaguaribe, a resistncia ao saneadora do
Estado, a no adeso s campanhas de vacinao contra a varola, a convivncia negligente com
os mais diversos tipos de epidemias e endemias e, dentre outras denncias, a preferncia popular,
nos casos de doenas, assistncia teraputica de boticrios, barbeiros, sangradores e rezadeiras,
em detrimento do saber mdico, no s ignorado, como rejeitado por essas populaes (ibidem,
p. 244).
Jaguaribe assume, no contedo desse discurso mdico-sanitarista, o papel de metonmia
do estado de insalubridade no qual estava imerso todo o territrio paraibano, principalmente em
suas reas sertanejas. Constri-se, analogamente ao que fez o Movimento Sanitarista Nacional,
um sentido de continuidade entre o espao suburbano da capital e todo o interior do estado: ora,
se para o mdico Afrnio Peixoto os sertes brasileiros comeavam no fim da Avenida Central,
na cidade do Rio de Janeiro (HOCHMAN, 2012, p. 69), para os sanitaristas que passam a atuar
na Paraba durante esse perodo o interior paraibano comeava na periferia da cidade da
Parahyba, em Jaguaribe (!), espaos esquecidos pela ao do Estado, degenerados pela
disseminao da doena. Eram a eles que, segundo o discurso mdico, deveria se voltar a ao
sanitarista. A Jaguaribe, ao interior do estado, s reas rurais, ao serto paraibano.
No mpeto dessa campanha de sanitarizao, rapidamente acionado pelo discurso
mdico um conjunto de representaes sobre a insalubridade desses espaos e das populaes que
nele habitavam. O prprio Accio Pires, ao chegar Paraba, elabora um arqutipo do que seria o
habitante daquele estado que era anlogo, em si, representao do sertanejo construda (e
denunciada) por Miguel Pereira em 1916. Em carta enviada a Belisrio Penna, ele afirmava:
Cada homem um parque zoolgico sendo que cada regio do corpo corresponde uma
fauna especial. No h cabea onde no fervilhem os piolhos, corpo livre de caros, ps
sem bichos, tripas sem vermes, sangue sem hematozorio e visceras sem treponema.
Pode-se afirmar que o homem aqui passo de sevandijas para cujo regalo vive. 22
No discurso de Accio Pires, bem como da maioria dos mdicos que passam a atuar na
Paraba neste perodo, o povo paraibano era, antes de tudo, uma populao bichada (SANTOS,
2015, p. 111), doente, ignorante, que desconhecia os preceitos bsicos de higiene, que cultivava
hbitos e concepes que no condiziam com a cincia e a civilizao (ibidem, p. 122), e para
22
Correspondncia de Accio Pires a Belisrio Penna. Paraba, 7 de julho de 1921. In: OLIVEIRA, Iranilson Buriti;
SANTOS, Leonardo Querino dos. S sujo e doente quem quer (?) Representaes mdicas na Paraba do incio
do sculo XX. Revista de Histria Regional 20 (1): 130 148, 2015, p. 132.
-
35
a qual se relevava urgentssima a presena saneadora do Estado e regeneradora da Medicina.
Populao que era ela mesma, neste discurso, o maior obstculo ao melhoramento do
estado geral de sade paraibano, em virtude de sua incria, de sua ignorncia, de seus
hbitos anti-higinicos. Como assinala Santos (ibidem, p. 117), Outras dificuldades para
viabilizar uma vida saudvel e higinica so silenciadas. A precariedade dos servios pblicos. A
falta de mdicos e hospitais. As dificuldades da educao. O preo elevado de certos produtos. A
ineficincias das campanhas de educao sanitria, tudo silenciado em prol da eleio de um
inimigo maior para o saneamento deste estado, sua prpria populao. De fato, o homem
paraibano era inventado pelo discurso mdico atravs do lxico patolgico, sombra do
Movimento Sanitarista Nacional. Afinal, assim como o Brasil, a Paraba era tambm um imenso
hospital!
Esse discurso de patologizao da populao paraibana e de colocao da sade como
principal necessidade desse estado sofre, durante toda a dcada de 1920, um crescimento e uma
tomada de importncia considerveis no cenrio poltico estadual, principalmente com a criao
da Sociedade de Medicina e Cirurgia da Paraba (SMCPB), em 1924. Constitudo como um rgo
responsvel pela defesa dos interesses da classe mdica da Paraba (ibidem, p. 143), esta
sociedade colaborar, sobretudo, para a institucionalizao do campo mdico neste estado,
organizado em torno de uma elite, de um conjunto de demandas e interesses, de um inventrio
homogneo dos problemas prioritrios do Estado, como tambm dos inimigos da Cincia
Mdica.
Sero durante as suas reunies em que pela primeira vez, sero levantadas um conjunto de
insatisfaes relacionadas deficiente distribuio dos servios mdicos no Estado e atuao
indiscriminada de terapeutas populares em seu vocabulrio curandeiros e charlates
alimentada pela ignorncia e pela falta de hbitos higinicos da populao daquele estado. Era de
forma alarmante que o mdico Tito de Mendona23
denunciava, em seu discurso de posse na
SMCPB, essa dificuldade de penetrao da Medicina no cotidiano das classes populares.
Sei que o problema difficil de resolver, no s devido ao charlatanismo que aqui
impera, como tambm ao meio que ainda no comprehende o que o medico.
Todos ns sabemos que o doente s nos chega s mos depois de ter percorrido a escola
23
O mdico Tito Lopes de Mendona, egresso da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, volta cidade da
Parahyba no mesmo ano de sua formatura, 1924, quando, alm de se associar Sociedade de Medicina e Cirurgia da
Paraba, passa tambm a servir no Hospital Santa Isabel, nesta mesma capital e na Assistncia Pblica. Ver:
(NBREGA, 1979, p. 215)
-
36
dos charlates, desde o ignorante que convence da excellencia dos chs caseiros, da
enxudia de galinha, do sebo de carneiro e das benzeduras contra o mo olhado, at o
instrudo que tudo receita. [...]
So estes motivos porque a nossa melhor instituio de caridade, a Santa Casa, to m
vista pelo povo da Parahyba.
O doente quando l entra se nos apresenta em um estado quase irremedivel.
Urge, portanto, educar o nosso povo, mostrado-lhes o bom caminho a seguir e reprimir
legalmente o charlatanismo.24
Enfim, segundo esse discurso sanitarista, era com vistas a curar aquela populao doentia,
a higienizar aqueles espaos at ento esquecidos pelo Estado e colonizados pelas mais diversas
formas de patologias, a regenerar os seus habitantes, incivilizados, refratrios ao progresso,
supersticiosos e refns de todo tipo de charlates e curandeiros, que se impunha a necessidade
urgente da interiorizao da Medicina rumo ao serto e s reas mais afastadas do territrio
paraibano. Interiorizao que, para alcanar xito, frente ao conjunto de dificuldades
apresentadas por esses espaos insalubres, necessitava de mais do que o papel civilizador
atribudo aos mdicos paraibanos. Era urgente a unio de todas as esferas do poder Pblico no
intento de sanear a Paraba! Essa era a conclamao que fazia o presidente de Estado Soln de
Lucena em 1921.
Ao passo que as medidas prophylacticas so postas em pratica na capital, irrompe o
impaludismo no interior do Estado, na zona dos brejos e nas caatingas, sendo tanto mais
para temer quanto grande o descaso dos poderes municipais por esses problemas, e
maior a ignorancia, entre as populaes rurais, acerca das causas e vehiculos dos males
que as dizimam. De modo que somente pela conjugao dos esforos do poder publico
em sua trplice modalidade federal, estadual e municipal e pelo despertar do instincto
de conservao no indivduo, de maneira a interessal-o na guerra contra os propagadores
de endemias, que se torna possivel a reabilitao da physiologia precria da maioria das
nossas gentes25
Tendo em vista esse conjunto de representaes sobre o espao paraibano e sua
populao, a partir das quais se construiu pelo movimento sanitarista da dcada de 1920 uma
srie de demandas relacionadas ao saneamento de todo o territrio estadual, em especial s reas
menos urbanizadas e populosas, deslocamos provisoriamente o curso de nossa discusso,
passando a perguntar pelos desdobramentos provocados pela atuao da Comisso de
24
O Jornal, Sociedade de medicina e Cirurgia A sua sesso de 5 do ms p. passado A posse do dr. Tito de
Mendona, seu discurso de agradecimento e o de recepo do nosso illustre collaborador dr. Jos Maciel. 06 de nov.
1924. Disponvel em: http://hemerotecadigital.bn,br/. In: SANTOS, 2015, p. 138. 25
Relatrio de Presidentes de Estado. Sade Pblica, Soln de Lucena, 1921, p. 28. Disponvel em:
http://hemerotecadigital.bn,br/. Acesso: 15/07/2015.
http://hemerotecadigital.bn,br/http://hemerotecadigital.bn,br/
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Saneamento e Profilaxia Rural durante o perodo de seu funcionamento. Isto , em que medida
essa campanha medicalizadora possibilitou a constituio mnima de polticas pblicas sanitrias,
bem como a interiorizao de um corpo mdico a reas at ento desprovidas de qualquer
assistncia mdica, como o era, por exemplo, a regio dos Cariris Velhos? Quais os
deslocamentos possibilitados nas maneiras de cuidar do corpo e de lidar com a doena das
populaes habitantes das reas menos populosas do estado? Enfim, em que medida se constituiu
uma viabilidade para a implementao desse projeto higienista/sanitarista nos Cariris Velhos da
Paraba?
Questionamentos como esses tornam-se ainda mais pertinentes para os propsitos do
presente trabalho se atentarmos para o fato de que nesse perodo nem mesmo as maiores cidades
do estado, como a Parahyba e Campina Grande, resplandeciam um cenrio, por assim dizer,
salubre e higinico. Ao contrrio disso, como nos mostra Waldeci Ferreira Chagas, praticamente
at a dcada de 1930, persistiam na capital da Paraba vrios problemas de insalubridade, que iam
desde a inexistncia de redes de esgotamento sanitrio e de gua encanada26
at as ms condutas
populares, impassveis de controle pelas autoridades policiais e mdicas (2004, p. 86). Ora, nem
mesmo a profisso mdica havia alcanado uma legitimidade efetiva perante a populao
paraibana, haja vista a grande profuso de sangradores, homeopatas, barbeiros, cirurgies,
benzedores, entre outros terapeutas que, no-inscritos no campo da Medicina, povoavam os
anncios de jornais, as ruas e a preferncia dos habitantes daquela capital (S, 2011, p. 158). Em
Campina Grande ento, importante entreposto comercial do brejo paraibano, redobravam os
problemas sanitrios e as preocupaes mdicas, sobretudo em dias de realizao de feiras,
quando a cidade era tomada por matutos e animais que, alm de emporcalharem o espao
urbano, traziam consigo a ameaa iminente da difuso de doenas e epidemias (AGRA, 2010, p.
57).
Enfim, se durante 1921 o presidente de Estado Soln de Lucena fazia coro ao Movimento
Sanitarista e conclamava todos os poderes pblicos a se engajar na misso quase civilizatria de
reabilitar a physiologia precria da maioria das nossas gentes, em 1925 - apenas quatro anos
aps a fundao da CSPR outra era a tnica que permeava o discurso poltico acerca da
Campanha de Saneamento Rural. Ela era de impotncia. O ento presidente de estado Joo
26
Exceo feita rea central da cidade, onde foram implementadas durante as dcadas de 1910 e 1920, alguns
melhoramentos urbanos, com o auxlio financeiro dos comerciantes e profissionais liberais que ali tinham
estabelecimentos instalados. Para mais, ver: (CHAGAS, 2004, p. 52)
-
38
Suassuna apresentava a situao de ineficcia na qual havia encontrado os ditos servios.
Circumstancias inelutaveis, porm, privaram-me de pr em pratica o que sempre pensei
e penso em relao sade publica das cidades e dos campos. Os recursos do Thesouro
no comportavam mais despesas extraordinarias em beneficio da nossa Repartio de
Hygiene e encontrei a Commisso de Prophylaxia e Saneamento Rural, instituida no
Estado, de cooperao entre o governo e a Unio, desde a presidencia do dr. Epitacio
Pessa, em lamentavel situao de inefficacia e anarchia, como de notorio dominio.27
Para alm do estado de anarquia, cuja responsabilidade era atribuda ao governo anterior,
de Soln de Lucena, Joo Suassuna numerava um conjunto de empecilhos que impossibilitavam
a atuao efetiva do Estado na campanha de sanitarizao da Paraba, dos quais se destacava a
escassez de recursos para o investimento na rea da sade e higiene pblica, mesmo sob o
convnio com a Unio. De fato, Chagas assinala que esse era desde o incio do sculo XX um
problema comum a todas as administraes paraibanas seja a nvel estadual ou municipal
praticamente impossibilitadas de empreender grandes obras urbanas ou de saneamento. Tanto
que a maioria dos melhoramentos urbanos realizados na cidade da Parahyba durante as duas
primeiras dcadas do sculo XX eram financiados majoritariamente pelo capital privado
proveniente, sobretudo, da economia algodoeira (2004, p. 66).
Nessa conjuntura de precariedade de recursos, Suassuna traou uma estratgia
emergencial de atacar pelas partes28
, concentrando inicialmente a ao dos Servios de
Saneamento e Profilaxia Rural no combate s endemias e na debelao da epidemia de varola
que assolava vastas reas do territrio paraibano naquele ano. neste mpeto que entre os anos de
1926 e 1928, ele passa a organizar uma rede de postos de vacinao, dispensrios e subpostos,
dentre os quais constavam:
No municipio da capital: - 1 dispensario contra a syphilis, lepra e doenas venreas; 1
dispensario contra tuberculose; 1 posto contra impaludismo e verminose; 4 sub-postos
itinerantes contra verminose e impaludismo, sendo 1 com sde nesta capital,
especialmente para atender aos doentes da zona suburbana e das praias do Po, Bessa,
Tamba e Penha, e os demais com sdes em Gramame, Alhandra e Pitimb.
No municipio de Cabedello: - 1 posto rural misto (para attender aos doentes der
verminose, impaludismo, syphilis e doenas venereas).
No municipio de Santa Rita: - 1 subposto itinerante, com sde na cidade, contra
impaludismo e verminose.
No municipio de Itabayana: - 1 posto rural misto, com sde na cidade.
27
Relatrio de Presidentes de Estado. Sade Pblica, Joo Suassuna, 1925. Disponvel em:
http://hemerotecadigital.bn,br/. Acesso: 15/07/2015. 28
Idem.
http://hemerotecadigital.bn,br/
-
39
No municipio de Guarabira 1 posto rural misto, com sde na cidade, e 1 sub-posto em
Alagoinha, contra impaludismo, verminose e bouba.
No municipio de Alaga Grande: - 1 posto rural misto, com sde na cidade.
No municipio de Areia: - 1 posto itinerante, com sde na cidade, contra a bouba e
verminose, servindo tambm aos municipios de Alaga Nova e Alaga Grande.
No municipio de Bananeiras: - 1 posto itinerante, com sde na cidade, contra a bouba e
verminose, servindo tambm aos municipios de Serra ria e Guarabira.
No municipio de Campina Grande: - 1 posto rural misto, com sde na cidade.
Sero inaugurados nestes dias 1 posto rural misto no municipio de Patos, com sde na
cidade, e 3 subpostos itinerantes29
em Alaga Nova, Esperana e Araruna.30
Ora, se em uma primeira leitura, o relato do ento presidente de estado nos provoca a
impresso da consecuo desse projeto de constituio de uma vasta e eficiente rede sanitarista
no territrio estadual, em virtude do considervel nmero de postos instalados no curto intervalo
de trs anos, o prprio Joo Suassuna quem nos apresenta as condies deficitrias em que eles
funcionavam:
Sem apparelhamento para a produo da lympha de Jenner, fomos socorridos no transe
pela dr. Amaury de Medeiros, operoso chefe do Departamento de Pernambuco, e pelo
doutorando Nilsen Resende, parahybano de talento e accendrado amor nossa terra, que
fazia as remessas do Rio31
Para alm das endemias e dos problemas sanitrios locais, persistiam em se alastrar neste
estado epidemias, como as de Varola em 192532
e de Peste Bubnica em 192833
, que limitavam a
assistncia sanitria praticamente s intermitentes campanhas de vacinao, nem sempre
procedidas pelos profissionais da CSPR, haja vista o tambm deficitrio plantel de mdicos e
profissionais habilitados pela dita Comisso34
. Era transferida essa competncia, ento, a mdicos
liberais, em sua maioria generalistas j instalados nas localidades de vacinao, ou mesmo a
particulares nas reas onde inexistiam profissionais mdicos habilitados.
Afora estas campanhas de vacinao peridicas e o Servio Itinerante de Educao
29
Alm destes sero instalados tambm um posto rural misto no municpio de Catol do Rocha e um no municpio
de Princesa. Ver: Relatrio de presidentes de Estado. Sade Pblica, Joo Suassuna, 1927. 30
Relatrio de Presidentes de Estado. Sade Pblica, Joo Suassuna, 1925. Disponvel em:
http://hemerotecadigital.bn,br/. Acesso: 15/07/2015 31
Ver nota 27. 32
Idem. 33
Relatrio de Presidentes de Estado. Sade Pblica, Joo Suassuna, 1925. Disponvel em:
http://hemerotecadigital.bn,br/. Acesso: 15/07/2015. 34
Frente a essa deficiente distribuio da Assistncia Sanitria na Paraba durante as dcadas de 1920 e 1930, ser
tambm relevante a atuao da Fundao Rockefeller, de forma conjunta Comisso de Saneamento e Profilaxia
Rural, no combate e controle a alguma endemias, principalmente Febre Amarela e Febre tifoide. Ver: Relatrio de
Presidentes de Estado. Sade Pblica, Joo Suassuna, 1926, 1927, 1928. Disponvel em:
http://hemerotecadigital.bn,br/.
http://hemerotecadigital.bn,br/http://hemerotecadigital.bn,br/http://hemerotecadigital.bn,br/
-
40
Popular, divulgador de simples noes de hygiene alimentar35
, medida que se adentrava o
territrio paraibano, mais desafiadoras se apresentavam as condies de (in)salubridade aos
mdicos da CSPR, e mais o discurso preventivista era obliterado por prticas de sade
intermitentes, espordicas e emergenciais. Celso Mariz quem, narrando a situao de penria
na qual se encontravam as populaes dos Cariris Velhos e Serto paraibanos durante a seca de
1932, nos aponta as circunstncias em que muitas vezes os servios sanitrios e de higiene
pblica eram empreendidos pelo Estado.
O grosso dos necessitados, porm, ficara perto de seus rinces sertanejos. Em
Cajazeiras, So Joo do Rio do Peixe, Sousa, Pombal, Patos, Monteiro, So Joo do
Cariri, formaram-se ncleos de dois e trs mil flagelados. At na Capital se instalarem
centros de socorro. Pequenas dirias a quem podia executar algum trabalho. Raes aos
enfraquecidos de fome ou de molestia. No fora possvel evitar nesses ajuntamentos,
dado o calor e a alimentao de emergncia, a gastro-interite das crianas e as infeces
tficas e desintricas. Mas no se esperaram os servios mdicos e de higiene geral e
pessoal, a droga, a vacina, o banho, o cabelo cortado. Enfermeiras da Cruz Vermelha
chegaram ao cenrio rido. Tudo quanto na urgncia do clamor podia ser tentado para
salvar as massas da seca.36
[grifo nosso]
Dentre as vrias localidades estaduais enfatizadas por Mariz, eram efetivamente as
populaes habitantes dos Cariris Velhos as mais afetadas pelo conjunto de doenas e epidemias
que assolavam o territrio paraibano, no s pelas pssimas condies sanitrias dos seus centros
urbanos e tambm das reas rurais mas principalmente pela precariedade com que se deu o
processo de instalao de uma malha mdico-sanitarista naquela regio, haja vista que, se o
Serto, onde tambm eram escassos os servios mdicos, contava at a dcada de 1930 com