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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO FACULDADE DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO PBLICO
DEOCLECIANO BATISTA
A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO PERPTUO
DE IMPUGNAO DA COISA JULGADA INVLIDA
UFPE, maro de 2003
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNANBUCO FACULDADE DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO PBLICO
DEOCLECIANO BATISTA
A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO PERPTUO
DE IMPUGNAO DA COISA JULGADA INVLIDA
Dissertao apresentada como exigncia parcial para obteno do grau de Mestre em Direito Pblico Banca do Exame de Qualificao da Universidade Federal de Pernambuco.
Orientador: Professor Doutor GUSTAVO FERREIRA SANTOS.
UFPE, maro de 2003
Folha de Avaliao
UFPE, maro de 2003
Esta dissertao dedicada aos Professores Doutores
GUSTAVO FERREIRA SANTOS e
RAYMUNDO JULIANO RGO FEITOSA,
pessoas de admirveis virtudes.
RESUMO
A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO PERPTUO DE IMPUGNAO DA COISA JULGADA INVLIDA
Este trabalho aponta a anomia no direito legislado brasileiro de meio autnomo de impugnao perptua da coisa julgada invlida e sugere que a colmatao poderia ser alcanada com a recepo formal da querela nullitatis insanabilis. Atualmente, pelo direito posto, a garantia relativa da coisa julgada s pode ser impugnada pelas vias da ao rescisria e dos embargos execuo, ambas sujeitas a hipteses numerus clausus e prazos decadenciais relativamente curtos. A proposta de aperfeioamento da ordem jurdica precedida pela resenha da bibliografia, jurisprudncia e legislao de institutos que guardam correlao com o objeto da pesquisa, com nfase para o sistema de invalidades processuais, a querela nullitatis insanabilis e a res iudicatae. Discute, a partir de uma perspectiva crtica do pensamento fundado no mtodo lgico-formal, a definitividade e intangibilidade da coisa julgada diante da diversidade de situaes ofertadas pela realidade jurdica de ttulos judiciais aparentes, inconstitucionais ou nulos de pleno direito. Considera que a autoridade relativa de um instituto processual de direito intertemporal no pode ser sobreposta aos valores superiores da ordem jurdica e nem prevalecer sobre o princpio da supremacia da Constituio. E conclui com a proposta de que a anomia em relao a um meio autnomo de impugnao perptua seja colmatada com a recepo pelo ius scriptum da querela nullitatis insanabilis.
Palavras-chave: direito processual constitucional; vcios perptuos do ato judicial; coisa julgada invlida; querela nullitatis insanabilis; meios autnomos de impugnao.
ABSTRACT
QUERELA NULLITATIS INSANABILIS AS AN AUTONOMOUS PERPETUAL MEANS OF IMPUGNING INVALID RES IUDICATAE
This work evidences that Brazilian statutory law lacks an autonomous procedural means for the perpetual rejection of invalid res iudicatae, and also suggests that the filling of gaps left by such lack of laws can be reached if querela nullitatis insanabilis is formally recognized. Brazilians dogmatic legal system only admits that the relative guarantee of res iudicatae can be attacked by either the use of the action for rescission of final judgment, or via the procedural tool named stay of execution, both of them subject to numerus clausus hypotheses and short lapsing of time for the right of action term. The proposal of filling the gaps of Brazilians legal system is preceded by a summary of bibliography, court decisions and statutes of institutes which convey straight relationship with the proposed object of study, always emphasizing elements such as the procedural invalidity system, querela nullitatis insanabilis and res iudicatae. Res iudicataes qualities of being definite and intangible are discussed in critical perspective taking into account thoughts based on logical-formal methods, observing the diversity of judicial situations that come up with apparent, unconstitucional or even plenary null court decisions. It is considered that the relative authority of an intertemporal procedural institute should not prevail over either superior legal system values, neither over the principle of the supremacy of the Constitution. The conclusion is that the lack of laws related to an autonomous means of perpetual impugnation can be integrated into ius scriptums legal system by the acceptance and recognition of querela nullitatis insanabilis.
Keywords: procedural constitutional law; perpetual defects of judicial acts; invalid res iudicatae; querela nullitatis insanabilis; autonomous means of impugnation.
RSUM
LA QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMME MOYEN PERPTUEL DE CONTESTATION DE LA CHOSE JUGE INVALIDE
Ce travail montre lanomie, dans le droit brsilien, du moyen perptuel de contestation de la chose juge invalide et suggre que le colmatage pourrait tre atteint avec la rception formelle de la querela nullitatis insanabilis. Actuellement, selon le droit pos, la garantie relative de la chose juge ne peut tre conteste que par les voies daction rscisoires et des contraintes lexcution, toutes deux soumises aux hipotses numerus clausus et des dlais relativement courts. La proposition de perfeccionnement de lordre juridique est prcde dun rsum de la bibliographie, de la jurisprudence et de la lgislation des institutions qui ont une corrlation avec lobjet de cette recherche. On y met en valeur le systme des invalidits processuelles, la querela nullitatis insanabilis et la res iudicatae. On discute, partir dune perspective critique de la pense fonde sur la mthode logique-formelle, le dfinitif et lintangibilit de la chose juge en face de la diversit de situations offertes par la ralit juridique de titres judicaires apparents, inconstitutionnels ou nuls de plein droit. On considre que lautorit relative dune institution processuelle de droit intertemporel ne peut pas surmonter les valeurs suprieures de lordre juridique, ni prvaloir au principe de la suprmatie de la Constitution. Puis, on conclut en proposant que lanomie par rapport un moyen perptuel autonome de contestation soit colmate par la rception, de la part du ius scriptum, de la querela nullitatis insanabilis.
Mots-cl: droit processuel constitutionnel; vices perptuels de lacte juridique; chose juge invalide; querela nullitatis insanabilis; moyens autonomes de contestation.
LISTA GERAL DE REDUES
a. C. antes de Cristo
ADIn Ao Direta de Inconstitucionalidade
ADIQO Questo de Ordem em Ao Direta de Inconstitucionalidade
advs. - advogados
als. - alneas
ampl. ampliado
art. - artigo
atual. atualizado
BACEN Banco Central do Brasil
c/c Combinado com
can. cnone (do lat. canon)
cann. cnones (do lat. cannonis)
cap. - captulo
CC Cdigo Civil
CEF Caixa Econmica Federal
CF Constituio Federal (textos brasileiros de 1991, 1934, 1937, 1946 e 1967)
CIC Codex Iuris Canonici
cf. - confira
CLT Consolidao das Leis Trabalhistas
cd. - cdigo
Confl. Conflito de Competncia
CPC Cdigo de Processo Civil
CPP Cdigo de Processo Penal
CPPM Cdigo de Processo Penal Militar
CR Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 5.10.1988
d. C. depois de Cristo
Dig. - Digesto
DJU Dirio de Justia da Unio
DOCEGEO Rio Doce Geologia e Minerao S/A
EC Emenda Constitucional
ed. - edio
ERE Embargos em Recurso Extraordinrio
etc. e outras coisas (do lat. et coetera)
et al. e outros (do lat. et alii)
i. e. isto (do lat. id est)
ibid. indica referncia ao que j foi mencionado (do lat. ibidem)
id. o mesmo, a mesma (do lat. idem)
inc. - inciso
j. julgado em
LICC Lei de Introduo ao Cdigo Civil
liv. - livro
min. ministro
n., n e n. - nmero
Ord. - Ordenaes
p. - pgina
p. e. por exemplo
proc. processo
RE Recurso Extraordinrio
rel. - relator
Rp. - Representao
REsp Recurso Especial
rev. revisado
RMS Recurso em Mandado de Segurana
RTJ Revista Trimestral de Jurisprudncia
sic assim, deste modo ou reproduzido exatamente como no original
ss. seguintes
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justia
t. tomo
TFR Tribunal Federal de Recursos
tir. tiragem
tt. - ttulo
TRF Tribunal Regional Federal
Ulp. - Ulpiano
v. - volume
v. g. por exemplo (do lat. verbi gratia)
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................. 15 I PARTE BASES CONCEITUAIS, SISTMICAS E TERICAS ............................... 23 CAPTULO I SISTEMA DE NULIDADES DE ATOS E FORMAS NO ATUAL DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ......................................................................... 24
1.1 Compreenses bsicas ........................................................................................................................ 24 1.1.1 O porqu das formas processuais ............................................................................................ 24 1.1.2 O controle das formas .............................................................................................................. 25
1.2 O sistema brasileiro de anulabilidades e nulidades dos atos e formas processuais ........................... 26 1.2.1 A conformao histrica .......................................................................................................... 26 1.2.2 O direito legislado e a sistematizao ainda incerta. ............................................................... 28 1.2.3 Taxinomia ................................................................................................................................ 30 1.2.4 A nulidade kelseniana levaria aceitao da preclusibilidade definitiva dos vcios da
relao processual .................................................................................................................... 33 1.3 Direito Processual Constitucional ....................................................................................................... 34
1.3.1 O grau de nulidade dos atos judiciais contrrios Constituio ............................................. 35 1.3.2 A nulidade ab initio e perptua da coisa julgada inconstitucional .......................................... 37
CAPTULO II A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS E OS DEMAIS MEIOS DE IMPUGNAO DA COISA JULGADA ...................................................................................... 41
2.1 Traos marcantes dos meios de impugnao no sistema jurdico romano ......................................... 41 2.1.1 Os dois sistemas processuais conhecidos pelo direito romano ................................................ 41 2.1.2 Como os romanos viam a nulla sententia ................................................................................ 43 2.1.3 A resistncia s nulidades da sentena nos processos de cognio e de execuo
(rectius: actio iudicati) da primeira fase do direito romano .................................................... 44 2.1.4 Os primeiros meios de impugnao da coisa julgada .............................................................. 46
2.2 A querela nullitatis insanabilis como meio autnomo de impugnao da coisa julgada................... 48 2.2.1 O aparecimento da querela nullitatis no Direito Medievo ...................................................... 48 2.2.2 O destino de pouca glria da querela ...................................................................................... 51 2.2.3 A imanncia do instituto em relao aos vcios processuais graves ........................................ 53
2.3 A preservao pelo direito cannico das duas espcies da querela nullitatis .................................... 55 2.3.1 Breves notas sobre a codificao do direito da Igreja .............................................................. 55 2.3.2 A disciplina da querela nullitatis no atual Codex Iuris Canonici ........................................... 58
2.4 A querela nullitatis insanabilis no direito brasileiro .......................................................................... 59 2.4.1 Expulsa do universo conceitual, mas com existncia clandestina assegurada pelas
imposies da realidade jurdica .............................................................................................. 59 2.4.2 O ostracismo conhecido com o surgimento de novos meios de impugnao ....................... 61 2.4.3 Outro fator que contribuiu para a proscrio equivocada ........................................................ 62 2.4.4 Os meios que, em tese, seriam idneos para impugnar a coisa julgada brasileira ................ 63
CAPTULO III COISA JULGADA E SUAS DEBILIDADES ....................................................... 69
3.1 A pretensa intangibilidade absoluta da coisa julgada ......................................................................... 69 3.1.1 Causas da m percepo dos limites da intangibilidade no direito brasileiro ........................... 69
3.1.2 A relatividade evidenciada at pelo direito legislado ............................................................. 71 3.1.3 A relatividade reafirmada pelas sentenas que no transitam materialmente em julgado ....... 73
3.2 A formao dogmtica da coisa julgada ............................................................................................. 75 3.2.1 A gnese e consolidao do instituto da res iudicatae na Roma Antiga ................................. 75 3.2.2 As principais contribuies tericas para a fundamentao do atributo da autoridade do caso
julgado ................................................................................................................................................ 79 3.2.3 A intangibilidade como decorrncia da certeza do direito afirmado pelos rgos judicirios
e da segurana jurdica devida pelo Estado ............................................................................. 82 3.3 A percepo fundada no imaginrio do justo ..................................................................................... 83
3.3.1 A res auctoritas iudicatae seria uma exigncia de ordem social estranha aporia de justia? ...................................................................................................................................... 83
3.3.2 A conformao dogmtica da coisa julgada excluiria a abordagem zettica? ......................... 88 3.4 Coisa julgada invlida e tenses normativas ...................................................................................... 91
3.4.1 Dificuldades prticas de concreo das normas constitucionais .............................................. 91 3.4.2 O falso problema das tenses constitucionais provocadas pela coisa julgada.......................... 95
II PARTE COISA JULGADA INVLIDA E PRTICA JURDICA......................... 102 CAPTULO IV AS POSSIBILIDADES AVENTADAS PELA DOUTRINA DE DECISES QUE SERIAM INIDNEAS PARA PASSAR EM JULGADO ................................................. 103
4.1 Pressupostos desta abordagem numerus apertus .............................................................................. 103 4.1.1 Adendo quanto s possibilidades infindveis de coisa julgada invlida que so
inconciliveis com a idia de ato normativo .............................................................................. 103 4.1.2 A compreenso terminolgica das trs espcies de invalidade perptua ............................... 104
4.2 Coisa julgada aparente ou inexistente .............................................................................................. 107 4.2.1 Quando no h relao processual ............................................................................................ 107 4.2.2 Aquilo que no pode ser tido como sentena ...................................................................... 109 4.2.3 Falsus procurator ............................................................................................................... 110
4.3 Coisa julgada inconstitucional .......................................................................................................... 111 4.3.1 Abrangncia e direito legislado ................................................................................................. 111 4.3.2 Algumas das possibilidades da coisa julgada inconstitucional .............................................. 113
4.4 Coisa julgada absolutamente nula ..................................................................................................... 115 4.4.1 Segunda sentena no mesmo processo e segunda sentena noutro processo .................... 115 4.4.2 Relao processual post mortem ............................................................................................ 116
CAPTULO V CASOS CONCRETOS DE TUTELAS JURISDICIONAIS TIDAS COMO INCOMPATVEIS COM A FORMAO DA COISA JULGADA .......................................... 118
5.1 Incidncia da quebra da coisa julgada e interesse da referncia a casos concretos .......................... 118 5.1.1 O grau da relatividade admitida pelos tribunais .................................................................... 118 5.1.2 A convenincia de aliar a teoria prtica .............................................................................. 120
5.2 Invalidades decorrentes de falta ou nulidade de citao (CPC, art. 741, inc. I) ............................ 120 5.2.1 Sucumbncia de quem compareceu a juzo para o fim certo de prestar depoimento
pessoal ................................................................................................................................... 120 5.2.2 Revelia em citao por fax que foi cumprida em telefone diverso do mencionado no
mandado ................................................................................................................................. 122 5.2.3 Nulidade declarada de ofcio em rescisria julgada improcedente ........................................ 124
5.2.4 Imvel inscrito em nome de terceiros que deixaram de ser citados em ao de prescrio aquisitiva ............................................................................................................................... 127
5.2.5 Fungibilidade dos meios de impugnao se o titular do registro imobilirio deixou de ser citado ...................................................................................................................................... 128
5.3 Invalidades reconhecidas por outros motivos ................................................................................... 130 5.3.1 Acrdo proferido em recurso j julgado por acrdo que transitou em julgado .................. 130 5.3.2 Sentena alterada depois da publicizao .............................................................................. 131
5.4 Modificaes dos efeitos materiais da coisa julgada ........................................................................ 132 5.4.1 Nova avaliao fundada no esprito de justia da Constituio ............................................ 132 5.4.2 Sopesamento de garantias constitucionais: sacrifcio da coisa julgada em favor da justa
indenizao ............................................................................................................................ 134 5.4.3 Prevalncia do princpio constitucional do justo preo e reviso da verba honorria ...... 136
CAPTULO VI O CASO SERRA PELADA: GOLPE EM JUZO QUE MATERIALIZOU AS TRS POSSIBILIDADES TERICAS DA COISA JULGADA INVLIDA ........................... 138
6.1 Adendos Iniciais ............................................................................................................................... 138 6.1.1 Os porqus deste estudo de caso ............................................................................................ 138 6.1.2 Compreenso mnima das relaes materiais evocadas na discusso em juzo .................... 139 6.1.3 O contexto processual que inspirou a propositura da querela nullitatis insanabilis ............. 141
6.2 Anatomia da fraude processual ......................................................................................................... 143 6.2.1 O desencadeamento do golpe ................................................................................................ 143 6.2.2 A frmula jurdica do conto da doao presumida .............................................................. 144 6.2.3 O universo dos doadores e dos terceiros interessados ......................................................... 145 6.2.4 O que proporcionou o sucesso da trama ................................................................................ 146
6.3 Fundamentos e obstculos para a impugnao do golpe judicial ..................................................... 147 6.3.1 O que foi considerado quando da propositura da querela .................................................... 147 6.3.2 O indeferimento da inicial e a reforma da deciso terminativa.............................................. 150 6.3.3 Reconhecimento, nas instncias recursais, da compatibilidade e indispensabilidade do
instituto no direito brasileiro .................................................................................................. 154
III PARTE INFERNCIAS QUE APONTAM PARA A NECESSIDADE DE COLMATAR O DIREITO LEGISLADO BRASILEIRO COM A RECEPO FORMAL DA QUERELA NULLITATIS INSANABILIS ................................................................... 156 CAPTULO VII A ESPCIE DE ACTIO NULLITATIS MELHOR TALHADA PARA A IMPUGNAO PERPTUA DA COISA JULGADA INVLIDA .......................................... 157 ...
7.1 A impugnao da coisa julgada invlida na atual ordem jurdica brasileira .................................... 157 7.1.1 A equivocada opo legislativa por meios de impugnao extraordinrios unicamente
preclusivos ............................................................................................................................. 157 7.1.2 Os instrumentos processuais de impugnao autnoma hoje admitidos pelo direito
legislado ................................................................................................................................. 159 7.1.3 A admisso de outros meios processuais pela doutrina e jurisprudncia mais
qualificadas............................................................................................................................ 160 7.1.4 A anomia cada vez mais sentida de um meio autnomo para a impugnao perptua de
ttulos invlidos ...................................................................................................................... 162 7.1.5 A identidade romano-germnica da querela e sua compatibilidade com a ordem jurdica
vigente no Brasil .................................................................................................................... 164
7.1.6 Possibilidades mais bvias de insero normativa ................................................................. 166 7.2 Coisa julgada passvel de ser impugnada a qualquer tempo ............................................................ 168
7.2.1 A conformao normativa e a natureza relativa da coisa julgada no direito brasileiro ......... 168 7.2.2 A fundamentao terica da coisa julgada e a contradio intrnseca dos topoi de sua
intangibilidade ..................................................................................................................... 169 7.2.3 As espcies de coisa julgada invlida que se sujeitam impugnao perptua pela via da
querela nullitatis insanabilis ................................................................................................. 172 CONCLUSO .............................................................................................................................. 176 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 187
INTRODUO
O direito legislado brasileiro ressente-se da falta de um instrumento
processual prprio para a impugnao, a qualquer tempo, da coisa julgada invlida. A
deciso de mrito que passa em julgado tida como apta produo de efeitos
substanciais to logo ocorra a precluso consumativa ou temporal dos recursos
ordinrios. E a autoridade da coisa julgada conhece o grau mximo de intocabilidade
quando restam vencidos os meios autnomos de impugnao extraordinria. Meios
estes que, por lei, restringem-se ao rescisria e aos embargos execuo, ambos
sujeitos a elencos exaustivos dos mais reduzidos e prazos decadenciais relativamente
curtos (CPC, arts. 485 a 495 e 741 a 744).
Tem-se a a sntese legalista das possibilidades de impugnao dos errores in
iudicando et in procedendo da deciso com trnsito em julgado. Com o transcurso dos
prazos preclusivos da rescisria e dos embargos, a invalidade do ato processual perde a
existncia jurdica e j no pode mais ser argda pelo prejudicado ou mesmo ser
conhecida pelo Poder Judicirio.
O propsito, aqui, ser o de explicitar a anomia que reclama ser colmatada
com a recepo do medieval instituto da querela nullitatis insanabilis. A omisso
legislativa em prever a impugnao perptua da coisa julgada invlida teria sido
consciente, dada a exigncia social de que haja certeza quanto ao direito afirmado na
relao processual e segurana de todos quanto s situaes jurdicas atingidas pela
composio do conflito de interesses. Seria insuportvel conviver com o estado de
dvida que existiria se as relaes entre as pessoas ficassem, ad aeternum, merc da
incerta iniciativa do jurisdicionado eventualmente prejudicado por nulidades
processuais.
Essa realidade levou o Estado a optar pela consolidao do caso passado em
julgado assim que a jurisdio esgotada ou quando da presuno de renncia pela
expirao de prazo ensejado para o exerccio de inconformismo. As vantagens de tal
poltica legislativa seriam muitas, a comear pela contribuio que a estabilidade
jurdica aporta para o esforo estatal de pacificao social. A certeza e a segurana
jurdicas proporcionam melhores condies para a administrao da justia ao evitar
novas apreciaes judiciais sobre a mesma controvrsia e frustrar a tendncia humana
de eternizar o litgio, o que parece justificar a afirmativa de que a inexistncia de um
instituto processual com as caractersticas da coisa julgada poderia comprometer
seriamente a credibilidade do direito objetivo perante os seus destinatrios.
O problema desse binmio de legitimao da definitividade da res iudicatae
est em que a ordem jurdica acaba episodicamente derrogada em situaes to
diversas quanto extraordinrias.1 A estabilidade alcanada em uma situao concreta
com a aceitao de um ttulo judicial aparente, inconstitucional ou nulo de pleno
direito h de ser vista sempre como a negativa implcita de algum preceito que deveria
incidir na composio do conflito levado a juzo. A certeza e segurana jurdicas
constituiriam, assim, valores diferenciados que se sobrepem a toda valorao contida
em normas aplicveis situao ftica. As conseqncias prticas dessa opo
dogmtica de lgica formal, ainda que se abstraia o fator justia, geram
perplexidades como a de saber se os marcos preclusivos devem realmente condicionar
o ordenamento normativo e, em particular, a supremacia da Constituo. Afinal, de
que vale estar certo e seguro de que um simples instrumento processual incidir
mesmo quando o caso passou em julgado com afronta a clusulas como as do due
process of law, isonomia ou legalidade?
A questo cresce em importncia quando se sabe que a regra constitucional
de direito intertemporal para a proteo da coisa julgada limita-se lei nova (CR, art.
5., inc. XXXVI). Excetuada essa nica referncia ao instituto na atual Constituio, a
1 CALAMANDREI, Piero. Vicios de la Sentencia y Medios de Gravamen: estudios sobre el
proceso civil. Buenos Aires: EJEA, 1961. p. 463.
disciplina normativa, inclusive a proibio de a magistratura decidir novamente a
mesma lide, est toda posta no ordenamento infraconstitucional (CPC, arts. 467 a 476;
LICC, art. 6., 3.; et passim). As indagaes, sob esse aspecto, poderiam ser de
outra ordem. Exemplos: A essncia relativa da coisa julgada prevalece sobre o
princpio da supremacia da Constituio?; O ttulo judicial aparente, cuja inexistncia
jurdica decorre de ele ser um no-ato, teria a chancela estatal para produzir todos os
seus supostos efeitos?
A carga de legitimao dogmtica que a coisa julgada alcanou com o
discurso fundado na necessidade de certeza e segurana jurdicas tem condicionado
fortemente a prestao jurisdicional no Brasil. No raro, direito, justia, moral e
valores elegidos como superiores pela prpria ordem jurdica so sacrificados por
esses topoi ideolgica e politicamente conformadores. As dificuldades prticas que
da resultam, como as tenses entre direitos fundamentais, tomam propores de
grande vulto. S para ilustrar: admitir-se-ia equiparar, em termos de proteo ltima,
o direito vida e o de propriedade (CR, art. 5., caput e inc. XXII)?; a sentena penal
transitada em julgado poderia ser cumprida se a pena fosse de tortura ou tratamento
degradante (id., ibid., inc. XXXVI c/c III)?
Essa classe de tenso provocada pela coisa julgada talvez pudesse ser
obviada com frmulas e tcnicas de hermenutica, como a do sopesamento dos bens e
interesses jurdicos constitucionalizados. Mas, no se estaria, ento, mitigando o
princpio da supremacia da norma constitucional em favor de uma garantia processual
relativa? A aplicao do princpio da proporcionalidade poderia assegurar efeitos ex
nunc declarao de incompatibilidade com a Constituio?
Algumas das respostas para essas e outras indagaes podero ser conhecidas
com a leitura deste texto. Nele esto consolidados os resultados de pesquisas
bibliogrfica, jurisprudencial e legislativa sobre os institutos jurdicos que guardam
estreita correlao com o objeto da pesquisa, especialmente os da nulidade processual,
querela nullitatis insanabilis e res iudicatae. Tambm podem ser encontradas
reflexes crticas ao pensamento jurdico fundado no mtodo clssico de lgica-formal
e vrias referncias comparativas de aspectos pontuais da ordem jurdica brasileira e
de outros Estados. H ainda algumas modestas contribuies para o aprofundamento
do estudo da impugnao extraordinria, como seriam as caracterizaes da
impugnao perptua, do gnero coisa julgada invlida e das espcies de invalidades
da coisa julgada que foram classificadas, para facilitar a compreenso, em aparentes,
inconstitucionais e nulas de pleno direito.
A abordagem da anomia observada no nosso ius scriptum pressupe
domnios conceituais, sistmicos e tericos que foram antecipados nos trs primeiros
do total de sete Captulos. Aqueles trs, em realidade, vo alm. No primeiro deles, a
incurso pelos defeitos de fundo, como a ilicitude do objeto, ou a referncia aos
defeitos de forma, como a desconformidade com a prescrio legal, mostra que as
nulidades so comuns a todos os campos jurdicos e constituem objeto da Teoria Geral
do Direito. Evidencia, tambm, que o estudo das invalidades da coisa julgada est
contingenciado pelos valores superiores da ordem jurdica contempornea e parece
inteiramente pautado pelo princpio da supremacia da Constituio. Admitidas essas
premissas, a classificao dos vcios extremos apresentados por atos e formas
processuais teria de contemplar ao menos trs espcies bsicas, quais sejam as da
aparncia ou inexistncia jurdica, inconstitucionalidade e nulidade ipso iure.
Os segundo e terceiro Captulos compem o ncleo da estrutura do texto.
Neles esto as resenhas dos institutos da querela nullitatis insanabilis e da coisa
julgada, desde as gneses havidas nos dois sistemas processuais conhecidos pelo
direito romano at as compreenses aceitas em nossos dias. A querela, que foi uma
criao dos legisladores estatutrios de algumas cidades italianas do incio do perodo
medieval e logo foi incorporada em definitivo pelo direito cannico, deve ser
apreendida como uma das mais perfeitas snteses proporcionadas pelo princpio
germnico da fora formal da sentena e pela distino romana entre a sententia nulla
e a sententia iniusta. Banida do nosso universo conceitual pela exacerbada pretenso
cientificista dos dois ltimos sculos, ela encontrou meios de subsistir
clandestinamente no contexto de outros institutos de impugnao, inclusive de forma
pouco velada nos embargos execuo exigidos em lei para a postulao de nulidades
citatrias e inexigibilidade de ttulos judiciais proferidos com ofensa Constituio
(CPC, art. 741, inc. I e pargrafo nico).
O considervel espao reservado no Captulo III para o desenvolvimento da
idia da res iudicatae justifica-se pela compreenso equvoca que se lhe empresta. A
investigao procurou caracterizar a formao dogmtica iniciada na Roma Antiga, a
hierarquia normativa conhecida no direito nacional e as possibilidades ensejadas para a
resoluo de tenses pelo princpio da proporcionalidade ou razoabilidade. O ponto de
maior interesse, no entanto, talvez esteja na seqncia de consideraes crticas
ensejadas pelo confronto da coisa julgada com a aporia da justia.
Os trs Captulos seguintes foram dedicados doutrina e praxis de
situaes nas quais a coisa julgada no faz do branco preto, do crculo quadrado, nem
do falso verdadeiro. So casos e hipteses que obrigam o reconhecimento pela
doutrina e jurisprudncia de que humanamente impossvel para o legislador chegar a
uma enumerao numerus clausus de decises judiciais definitivas que jamais podero
passar em julgado. O transcurso dos prazos para a impugnao desses ttulos no
muda a natureza perptua dos vcios e nem exclui a possibilidade permanente da
propositura da querela nullitatis insanabilis. 2
O Captulo IV dedicado s possibilidades tericas de coisa julgada invlida
e principia com a advertncia quanto a ser de todo impensvel pretender esgotar aquilo
que, em tese, deve ser tido como pseudo-sentena. As hipteses coligidas parecem
extremar a certeza de que a coisa julgada invlida atenta contra as compreenses
bsicas do que vem a ser o Direito e a Justia. A retirada do mundo jurdico seria
2 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil: estudos sobre o processo civil. Traduo
Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999. p. 253-254.
assim um imperativo lgico e racional a ser alcanado pela via segura do processo
cognitivo da ao de declarao da nulidade insanvel (rectius: querela nullitatis
insanabilis).
O Captulo V traz uma amostra da jurisprudncia mais representativa de
casos julgados invlidos. Nada de animador, pois a quase totalidade das invalidades
acolhidas dizem respeito nulidade pleno iure de inexistncia jurdica da relao
processual por vcios de citao (CPC, art. 741, inc. I). O alento, mais uma vez, fica
por conta de magistrados-juristas que, avessos ao legalismo estrito, no hesitam em
afirmar que a querela nullitatis insanabilis deve ser tida como o meio processual mais
indicado para o ataque das invalidades passadas em julgado. 3
O Captulo VI seria algo prximo a estudo de caso. Trata-se do resumo de
uma experincia profissional que motivou a elaborao desta pesquisa. O embate
forense consistiu em inusitado golpe processual que materializa de forma perfeita as
trs possibilidades tericas da coisa julgada invlida. A responsabilidade pela
representao em juzo foi assumida depois do trnsito em julgado das decises de
mrito proferidas em aes declaratria e de cobrana. Com a recusa da patrocinada
em autorizar a propositura de rescisria contra acrdo do Supremo Tribunal Federal,
3 P. e.: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinrio n 96.696/RJ. Recorrente:
Hindenburg Mrio Daruj e outro. Recorrido: Daniel de Souza Rocha e sua mulher. Relator: Min. Relator para o
acrdo. Alfredo Buzaid. Min. designado: Soares Muoz. Braslia, 22 de maro de 1982. Revista Trimestral de
Jurisprudncia, Braslia, dez. 1982. n. 104, p. 826-836; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso
Extraordinrio n 63.677/GO. Recorrente: Jos Romo Carneiro, sua mulher e outros. Recorrido: Joaquim Pedro
Neto e sua mulher. Relator: Min. Amaral Santos. Braslia, 21 de agosto de 1969. Revista Trimestral de
Jurisprudncia, Braslia, 1969. n. 50, p. 703-705; BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Processual Civil
Nulidade da citao (inexistncia) Querela nullitatis. Recurso Especial n 12.586/SP. Recorrente: Condomnio
Shopping Center Iguatemi. Recorrido: Ponto Um Planejamento e Publicidade LTDA. Relator: Min. Waldemar
Zveiter. Braslia, 8 de outubro de 1991. Dirio da Justia, Braslia, 4 nov. 1991. Seo 1, p. 15684.
a autoridade da coisa julgada revestiu-se de definitividade quando da precluso do
binio decadencial. A alternativa que se oferecia pareceu ser a propositura da
inominada querela nullitatis insanabilis, cujos detalhes e desdobramentos podero ser
conhecidos com a leitura do captulo.
As principais inferncias sobre o papel reservado querela nullitatis
insanabilis na impugnao da coisa julgada invlida esto concentradas no stimo e
ltimo Captulo. Nele so enfrentadas perplexidades como a gerada pela prevalncia
de um instituto processual de hierarquia normativa infraconstitucional sobre todo o
conjunto de valores superiores da ordem jurdica. Tambm so postas questes e
respostas pertinentes colmatao do direito legislado com a introduo formal da
querela nullitatis insanabilis. Uma dessas indagaes busca aclarar se a funo
diretiva da coisa julgada na ordem jurdica positivada impediria a identificao do
Direito com a Justia.
As maiores dificuldades no trato da omisso legislativa observada em nossa
ordem jurdica, como poder notar o leitor, esto basicamente naquilo que os romanos
chamavam de autoridade ou santidade da coisa julgada e na tentativa observada nos
ltimos tempos de reduzir o direito letra da lei. Mas, a coisa julgada seria mesmo
um direito absoluto, com autoridade revestida de definitividade e intangibilidade? O
direito posto no poderia tolerar ao menos o elenco numerus apertus para as situaes
che possono presentarsi nella pratica (...) e dei quali no possibile fissare in anticipo
una compiuta elezione, nei quali la sentenza inidnea materialmente, si direbbe
quasi fisicamente, a passare in giudicato 4 ?
Sejam quais forem as respostas, a importncia desta pesquisa remanescer ao
menos para aqueles que vivem a prtica jurdica e esto sujeitos a assistir a ilgica e
irracional prevalncia da coisa julgada invlida.
4 CALAMANDREI, Piero. Sopravvivenza della querela di nullit nel processo civile italiano.
Rivista di Diritto Processuale, [S.l.], 1951. p. 144.
I PARTE BASES CONCEITUAIS, SISTMICAS E TERICAS
CAPTULO I SISTEMA DE NULIDADES DE ATOS E FORMAS NO ATUAL
DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
Sumrio 1.1 Compreenses bsicas 1.1.1 O porqu das formas processuais 1.1.2 O controle das formas 1.2 O sistema brasileiro de anulabilidades e nulidades dos atos e formas processuais 1.2.1 A conformao histrica 1.2.2 O direito legislado e a sistematizao ainda incerta 1.2.3 Taxinomia 1.2.4 A nulidade kelseniana levaria aceitao da preclusibilidade definitiva dos vcios da relao processual 1.3 Direito Processual Constitucional 1.3.1 O grau de nulidade dos atos judiciais contrrios Constituio 1.3.2 A nulidade ab initio e perptua da coisa julgada inconstitucional.
1.1 COMPREENSES BSICAS
1.1.1 O porqu das formas processuais
A forma existe para emprestar autenticidade, certeza e segurana ao ato
processual. Este, como espcie do ato jurdico, pressupe a exigncia da forma porque
a vontade somente interessa quando manifestada por sinais exteriores, palavras,
gestos, smbolos 5. O que deve ser evitado no ordenamento das formas processuais o
formalismo, e no um mnimo de formalidade que garanta s partes a oportunidade de
participar dos procedimentos tendentes formao do juzo e ao magistrado o
conhecimento seguro dos fatos objeto do conflito.
A diminuio ou supresso das formas comprometeria em igual medida a
liberdade dos jurisdicionados e resultaria em proporcional aumento do poder do
Estado-juiz6. Elas so tidas por todos os juristas como indispensveis ao atual Estado
de Direito, embora no devam ser confundidas com exigncias inteis, onerosas,
5 KOMATSU, Roque. Da Invalidade no Processo Civil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
6 COUTURE, Eduardo Juan. Fundamentos de Derecho Procesal Civil. 3. ed. (pstuma). Buenos
Aires: Depalma, 1978. p. 374. VESCOVI, Enrique. Derecho Procesal Civil: teoria general del proceso. Bogot:
Temis, 1984. v. 3, p. 296.
procrastinatrias. Muito menos com simplificaes que pequem pelo exagero e
enfraqueam a confiabilidade dos atos.
A busca permanente nesse campo deve ser a do equilbrio entre celeridade e
segurana; um meio termo onde sobressaiam princpios informadores como os da
brevidade, economia e simplicidade processuais.
1.1.2 O controle das formas
O desrespeito s formas preestabelecidas pode comprometer de diferentes
modos a prestao jurisdicional. Porm, por mais danosa que seja a repercusso para a
relao jurdica processual, o defeito formal nem sempre chega a justificar a drstica
declarao de nulidade do ato.
A forma tida de h muito como meio, e no como um fim em si mesma 7.
De modo que o ato processual carece de autonomia e s existe para que a relao
processual proporcione s partes a concreo da vontade da lei ao conflito de
interesses submetido a juzo.
A idia base a de que los actos del proceso tienen una finalidad u objetivo
(fines) y se desarrollan conforme a reglas predeterminadas (formas) 8. Seria
desarrazoado, portanto, declarar a nulidade de um ato que tenha alcanado
satisfatoriamente o fim pretendido. Antes de inquin-lo de nulo, preciso indagar se a
7 RODRIGUEZ, Luiz A. Nulidades Procesales. Buenos Aires: Universidad, 1983.
8 VESCOVI, Enrique. Los Recursos Judiciales y Dems Medios Impugnativos en Iberoamrica.
Buenos Aires: Depalma, 1988. p. 13.
finalidade atribuda pela lei foi alcanada e se o descumprimento da forma trouxe
prejuzo ao processo.
Reflexes dessa ordem levaram ao surgimento de diferentes sistemas de
controle das nulidades processuais. Em comum, a busca da uniformidade de critrios
e do equilbrio entre liberdade e rigorismo das formas. O objetivo seria evitar que o
ato invlido produza efeitos, embora a eventual falta de validade no importe em
ausncia de eficcia. S depois de declarado nulo que o ato deixa de produzir
efeitos, de ser eficaz.
1.2 O SISTEMA BRASILEIRO DE ANULABILIDADES E NULIDADES DE
ATOS E FORMAS PROCESSUAIS
1.2.1 A conformao histrica
Na Roma Antiga, o excesso de formalismo tinha como nulo e ineficaz
qualquer ato que deixasse de observar as leis procedimentais. O nulo sequer precisava
ser assim declarado, pois todos entendiam que lhe faltava um mnimo de validade para
a produo de qualquer efeito.
As primeiras distines entre nulidades e vcios sanveis comearam a surgir
no fim do perodo clssico e incio da Idade Mdia. Tambm teriam surgido por essa
poca as bases para a discusso do que anulvel, inexistente ou nulo. 9
9 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ao Rescisria das Sentenas e
de Outras Decises. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 28 e ss.
Pouco depois, com a fuso dos direitos romano e germnico, apareceram os
primeiros instrumentos voltados ao ataque das invalidades. Esses instrumentos, de que
so exemplos as espcies sanabilis e insanabilis da querela nullitatis, fizeram com que
o direito medieval ganhasse em organicidade e acabou por levar o processo romano-
cannico a incorporar a idia de impugnao dos atos viciados.
Inovaes de maior monta, no entanto, s seriam conhecidas por volta da
metade do sculo XVIII. At ento, o direito civil continuava influenciando os demais
ramos da experincia jurdica, a ponto de o denominado direito de forma ser
confundido com o direito de fundo.10 O processo era visto como simples apndice
daquele que o mais antigo dos direitos materiais e costumava ser classificado entre
os segmentos do Direito Privado.
Com a autonomia do processo e o crescente interesse pelo seu estudo, a
declarao de nulidade formal deixou de ser condicionada apenas pela letra da lei para
levar em conta tambm uma srie de princpios que informam a teoria dos atos
processuais. A legalidade das formas, na experincia forense, passou ento a conviver
com princpios de grande apelo para o desejvel equilbrio entre celeridade e
segurana na prestao jurisdicional; dentre os quais figuram os da economia
processual, instrumentalidade das formas e aproveitabilidade ou renovao dos atos. 11
10 CAMUSSO, Jorge P. Nulidades Procesales. Buenos Aires: Ediar, 1983. p. 19.
11 A primeira das funes desempenhadas por esses princpios seria a de inspirar o legislador na
construo do sistema de nulidades processuais. Tanto que o vigente estatuto processual civil brasileiro traz uma
srie de artigos que correspondem fielmente formulao dos mencionados princpios. Outra funo de igual
Em nossos dias, prevalece a idia de que o ato s deve ser declarado nulo
quando deixa de atingir sua finalidade. Se alcana o fim exigido ou o objetivo
esperado, no h falar em prejuzo ou em nulidade. Um bom exemplo seria a falta de
citao, tida em muitos ordenamentos como o maior dos vcios, que seria sanada na
hiptese de o citando comparecer espontaneamente para integrar o plo passivo da
relao jurdica processual.
1.2.2 O direito legislado e a sistematizao ainda incerta
As nulidades so comuns a todos os campos jurdicos e, por isso, constituem
tema da Teoria Geral do Direito.12 Elas podem decorrer de um defeito de fundo, como
a ilicitude do objeto, ou de forma, como a desconformidade com a prescrio legal ou
a prtica defesa em lei. S essas ltimas, que viciam atos e formas da relao
processual, compem o verdadeiro objeto dos vrios ramos processuais do Direito
Pblico.
No Brasil, devido realidade da evoluo do ordenamento legislativo, as
nulidades ainda so disciplinadas de modo genrico em ramo do Direito Privado (CC
de 1916, arts. 145 e ss.; CC de 2002, art. 166 e ss.). Particularidade essa que traz
dificuldades nada desprezveis quando se trata de aplicar tais regras s diversas reas
do Direito Pblico.
importncia seria a orientao que os princpios processuais imprimem hermenutica do direito legislado
(PINTO, Teresa Arruda Alvim. Nulidades Processuais. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 148).
Um exemplo basta para dimensionar o grau dessa dificuldade. No direito
material civil, o vcio do ato jurdico cominado de nulo de pleno direito e o juiz no
pode supri-lo nem a requerimento das partes. 13 e 14 No direito processual,
diversamente, as nulidades institudas para atender interesses particulares sempre
puderam ser sanadas e at convalidadas.
De modo resumido, tem-se assim que o ato jurdico observa duas regras bem
definidas no sistema civilista das invalidades: 1.) a nulidade deve ser decretada de
ofcio, com efeito ex tunc, e jamais se imuniza; 2.) a anulabilidade s pode ser
reconhecida por provocao da parte e o eventual saneamento do ato opera efeitos ex
nunc.
O sistema processual, por sua vez, apresenta diferentes nuanas. A essencial
diz respeito possibilidade de sanao at mesmo de nulidade absoluta ou pleno jure.
Tome-se como exemplo o vcio gravssimo da citao invlida (CPC, arts. 214, 2., e
247).
12 BLANC, Ernesto Nieto. Nulidad de los Actos Jurdicos. Buenos Aires: Abileido Perrot,
1971. p. 15.
13 O tratamento da codificao anterior (CC, art. 146, pargrafo nico) foi mantido pelo atual
Cdigo Civil (Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 168, pargrafo nico. Disponvel em:
http://wwwt.senado.gov.br/servlets/NJUR.Filtro?tipo=LEI&secao=NJUILEGBRAS&. Acesso em: 6 mar. 2003).
14 Alis, na Roma Antiga, o negcio jurdico que contivesse defeito substancial sequer dava
entrada no mundo do Direito (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado;
validade, nulidade, anulabilidade. Campinas: Bookseller, 2000. p. 179).
Alheios gama de particularidades, muitos ainda procuram fazer valer nas
relaes processuais as nulidades lato sensu da codificao privada. Equvoco esse
que no parece ser exclusivo dos brasileiros, como prova o alerta de conhecido jurista
italiano para que no se infira que o instituto das anulabilidades e nulidades possa vir a
ter no campo processual o mesmo papel que lhe reservado no plano do direito
material.15 Advertncia que se mostra das mais oportunas porque o vcio processual
deve ser entendido como autntico freio atuao do juiz. Tanto que os defeitos de
atos e formas que deixam de ser declarados de ofcio ou por provocao acabam, em
regra, convalidados ou sanados.
A nfase no tocante s nulidades adjetivas, como se nota, posta na relao
jurdica processual ainda em curso, no na julgada. Mesmo porque as nulidades que
sobrevivem ao julgado so tidas hoje em dia como excepcionalssimas, em especial as
relacionadas jurisdio. A prpria inexistncia da relao jurdica processual em
face de uma das partes no impede, em regra, a formao da coisa julgada.
1.2.3 Taxinomia
Os atos processuais formalmente viciados costumam ser classificados em
inexistentes, absolutamente nulos, relativamente nulos, anulveis e irregulares.
15 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de Direito Processual Civil: as relaes processuais a
relao processual de cognio. Traduo da 2. ed. italiana de J. Guimares Menegale. Notas de Enrico Tullio
Liebman. So Paulo: Acadmica e Saraiva, 1942-1943. 2 V. v. 2. p. 433-435.
A inexistncia atribuda aos que no alcanam a condio de ato. Pode
ocorrer, por exemplo, quando h permisso legal para que o advogado atue sem
mandato na prtica de atos reputados urgentes (CPC, art. 37, caput). Esses atos, no
entanto, so havidos por inexistentes se no ratificados no prazo (id., ibid.,
pargrafo nico).
A nulidade absoluta manifesta-se quando a norma tutela interesse pblico e
impe a decretao de ofcio. Embora em pequeno nmero, ela est longe de ser um
acontecimento raro na rotina forense. Dois exemplos marcantes seriam a
incompetncia rationae materiae ou personae e a ausncia na relao jurdica do
rgo ministerial que atua como custos legis.
A nulidade relativa verifica-se quando a norma cogente, tutela interesse
particular indisponvel e determina que o vcio seja pronunciado de ofcio. Trs das
muitas hipteses seriam: (1.) a citao que pretere solenidade essencial; (2.) a falta de
assistncia, autorizao ou representao; e (3.) a penhora contra legem.
A anulabilidade ocorre quando a norma dispositiva, tutela interesse
exclusivamente particular e veda a apreciao de ofcio. O que significa que somente
as partes podem aleg-la. So exemplos: (1) a penhora de bens sem observar a ordem
de prioridade; e (2) as citaes de (2a) doente em estado grave, (2b) do cnjuge ou de
qualquer outro parente do morto no dia do falecimento, (2c) dos noivos nos primeiros
dias das bodas e (2d) do funcionrio pblico em sua repartio.
A irregularidade, como ltima das espcies dessa classificao, tida como
um defeito de pouca ou nenhuma importncia. Sua eventual correo dispensa
maiores formalidades e chega a ser simplesmente desnecessria.
Uma outra formulao terica igualmente til toma o aspecto objetivo dos
atos processuais para dividi-los em essenciais e no essenciais.16 Os no essenciais
repercutem pouco interesse porque a falta ou m conformao do ato constitui simples
irregularidade sanvel. Os essenciais, quando contaminados por vcios de forma,
seriam insanveis (ou absolutamente nulos), relativamente nulos ou anulveis.
O critrio de distino desses vcios leva em considerao a finalidade e a
natureza da norma violada. Se a carga maior de interesse pblico, a nulidade ser
absoluta, insanvel. A ttulo de exemplos, os casos de: (a) ato de f pblica praticado
por quem no serventurio de justia ou compromissado na funo; (b) o processo
simulado ou fraudulento; e (c) o recurso fora de prazo.
Se a prevalncia for do interesse particular, como na hiptese de inpcia da
inicial, a nulidade ser relativa e sanvel.
Um pouco distinta a situao do vcio objeto de norma dispositiva, dado
que o defeito apresentado pelo ato constituiria mera anulabilidade e poderia ser
imunizado. A eventual omisso do interessado, no entanto, implica sempre em
precluso e conseqente convalidao porque o interesse em jogo afasta a atuao ex
officio do juiz. Dentre os inmeros exemplos, incluem-se os de: (a) no recolhimento
16 LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 124-132.
de custas; (b) litigncia quando existe compromisso; (c) ausncia de tentativa de
conciliao; e (d) omisso de cauo.
Essa diviso dos vcios processuais em essenciais e no essenciais ignora a
figura do ato inexistente. O ato tomado como objeto de interesse para a classificao
apenas aquele que tem existncia tanto no sentido fsico como no jurdico.
O ato no materializado visto como algo que deixou de alcanar qualquer
repercusso na esfera do Direito. Da dizer-se que o no-ato h de ser, no mximo,
aparncia de ato. Entretanto, razovel admitir que a clareza e segurana possam
motivar algum a promover em juzo a declarao de inexistncia dele, a fim de que a
suposio de existncia no cause prejuzos ou embaraos ao interessado. 17
1.2.4 A nulidade kelseniana levaria aceitao da preclusibilidade definitiva dos
vcios da relao processual
A influncia do jurista austraco gerou entre ns certa compreenso
reducionista dos diferentes vcios processuais. A nulidade (ou inexistncia jurdica)
seria apenas o grau mais alto de anulabilidade e estaria praticamente excluda do
direito positivado pelo Estado. 18
Hans Kelsen acreditava que a melhor formulao do problema estaria em
Wellington et al. Petitionners, 16 Pick, 87 (Mass, 1834), onde se l que:
17 FABRCIO, Adroaldo Furtado. Ru revel no citado. Querela nullitatis e ao rescisria.
Revista de Processo, So Paulo, n. 48, p. 27-44, out./nov./dez. 1987. p . 27.
Talvez (...) seja muito bem possvel duvidar de que um ato formal de legislao possa, alguma vez, com propriedade jurdica estrita, ser considerado nulo: parece mais coerente com a natureza do assunto, e os princpios aplicveis a casos anlogos, trat-lo como anulvel. 19
A deciso judicial nula seria ento apenas um exemplo de nulidade absoluta
ou ato juridicamente inexistente. Isto porque, embora possa apresentar-se como
norma, ela dispensa qualquer procedimento jurdico para que seja declarada nula ab
initio.
Essa dispensa de qualquer procedimento jurdico, no entanto, no implica em
ausncia de verificao quanto ocorrncia de nulidade absoluta. O ataque da deciso
pelas partes haveria de pressupor a existncia de uma tal possibilidade na ordem
jurdica, com o que no estaramos diante de algo nulo ab initio ou de um nada
jurdico.
O fenmeno, portanto, precisaria ser visto como norma passvel de ser
anulada com fora retroativa pela eventual declarao de nulidade ab initio. Dito de
outra maneira, a norma que anulada pela ordem jurdica precisa antes ser considerada
como norma objetivamente vlida e conforme ao Direito. Na linguagem figurada do
18 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduo de: Joo Baptista Machado. So Paulo:
Martins Fontes, 2000. p. 298.
19 ______. Teoria Geral do Direito e do Estado. Traduo Lus Carlos Borges. So Paulo:
Martins Fontes, 2000. p. 230, n. 22.
autor, do mesmo modo em que tudo o que era tocado pelo rei Midas tornava-se ouro,
tudo a que se refere o Direito torna-se Direito. 20
Depreende-se desse contexto kelseniano, ento, que a hiptese de invalidade
perptua seria um fenmeno estranho realidade do direito estatal e que a
inexistncia jurdica precisa ser obviada por procedimento especfico constatao
do vcio. Procedimento especfico que estaria sujeito a prazos preclusivos, de modo a
assegurar a definitividade e imutabilidade das decises proferidas na relao
processual.
1.3 DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL 21
20 ______. Teoria Pura do Direito. Traduo Joo Baptista Machado. So Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 296-297. Idem, Teoria Geral do Direito e do Estado. Traduo Lus Carlos Borges. So Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 231-232.
21 O Direito Processual Constitucional compreende as normas processuais constantes da
Constituio (CORREIA, Marcus Orione Gonalves. Direito Processual Constitucional. So Paulo: Saraiva,
1998. p. 2). Sua rea de influncia inclui a conformao de toda a legislao adjetiva infraconstitucional ao
imprio ou supremacia das normas processuais constitucionalizadas. Em outras ordens jurdicas, comum
dizer-se didaticamente que existe um Direito Constitucional Processual, para significar o conjunto das normas de
Direito Processual que se encontra na Constituio Federal, ao lado de um Direito Processual Constitucional, que
1.3.1 O grau de nulidade dos atos judiciais contrrios Constituio
da tradio do nosso Direito prestigiar o princpio da supremacia da
Constituio. Idia essa que tem como nula ipso jure et ex tunc toda relao jurdica
constituda a partir de ofensa direta Lei Fundamental.
O mesmo cabe ser observado em relao ao ato processual assim praticado,
pois o princpio da supremacia no pode coexistir com o exerccio inconstitucional de
funo estatal bsica..
A desconformidade com a norma constitucional deve ser vista como a maior
das iliceidades que comprometem de modo irreversvel a existncia jurdica do ato
processual. Em julgamentos de controle abstrato, o Supremo Tribunal Federal tem
reafirmado que a admisso de inconstitucionalidade, ainda que temporria, significaria
virtual ruptura com o princpio da supremacia da Constituio. Reconhece, tambm,
que inconstitucionalidades no geram direitos e nem obrigaes. Chega mesmo a ter
como legitima a oposio pelo jurisdicionado de toda a sorte de resistncia deciso
contrria Constituio. 22
Um exemplo que sinaliza tal linha foi o que se viu quando do julgamento de
representao da Procuradoria-Geral da Repblica contra ato do Governador do Estado
de So Paulo. Este havia baixado decreto normativo com a determinao de que os
rgos da administrao estadual abstivessem de cumprir disposies legais que
seria a reunio dos princpios para o fim de regular a denominada jurisdio constitucional (NERY JNIOR,
Nelson. Princpios do Processo Civil na Constituio Federal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 15).
22 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdio Constitucional. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 1998. p. 256
et passim.
desconsiderassem vetos fundados em argio de inconstitucionalidade e viessem a ser
promulgadas pela mesa da Assemblia Legislativa. O relator, Min. Moreira Alves,
externou em voto vencedor a seguinte convico:
No tenho dvida em filiar-me corrente que sustenta que pode o Chefe do Poder Executivo deixar de cumprir assumindo os riscos da decorrentes lei que se lhe afigure inconstitucional. A opo entre cumprir a Constituio ou desrespeit-la para dar cumprimento a lei inconstitucional concedida ao particular para a defesa do seu interesse privado. No o ser ao Chefe de um dos Poderes do Estado, para a defesa, no do seu interesse particular, mas da supremacia da Constituio que estrutura o prprio Estado? 23
O Min. Soares Muoz o secundou com a considerao de que qualquer
pessoa pode negar-se a cumprir a lei inconstitucional. A seu ver, a lei
inconstitucional no gera obrigao, nem cria direito, o que teria sido bem apreendido
pelo relator ao referendar lio muito conhecidade Rui Barbosa.
Essas compreenses do rgo de superposio mxima encontram eco em
vrias passagens do prprio texto constitucional. Citem-se, como algumas das
evidncias da supremacia assegurada pelo constituinte originrio, (a) as clusulas de
aplicao imediata dos direitos fundamentais e de vinculao dos rgos estatais aos
princpios constitucionais, (b) o procedimento especial para a reforma do corpo de
normas e (c) o princpio bsico do Estado de Direito. 24
23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Representao n 980/SP. Representante: Procurador-
Geral da Repblica. Representado: Governador do Estado de So Paulo. Relator: Min. Moreira Alves. Braslia,
21 de novembro de 1979. Disponvel em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/it/in_ processo.asp. Acesso em:
24 nov. 2002.
24 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdio Constitucional. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 1998. p. 256.
A magistratura teria, assim, o dever-poder de negar cumprimento ao ato
judicial em desacordo com as normas constitucionais. O prejudicado, por sua vez,
dispe da possibilidade de oferecer a mais ampla resistncia, com o nico risco de as
presunes de obrigatoriedade e validade da coisa julgada virem a ser ratificadas
quando do novo pronunciamento.
Esse quadro claramente emoldurado pelo constituinte permite manter
inclume a ordem jurdica constitucional. Sua lgica reside na negativa de eficcia ao
ato processual inconvalidvel, que sequer pode ser sanado pelo instituto de precluso
mxima ao fim do binio ensejado propositura da ao rescisria. A concesso que
poder-se-ia cogitar em casos extremos seria a de ponderar os bens jurdicos envolvidos
para admitir, de modo parcimonioso, a incidncia de efeitos ex nunc. O sopesamento
seguiria o esprito que inspirou as excees comportadas pela declarao de
inconstitucionalidade concentrada (Lei n 9.868/99, art. 27) e argio de
descumprimento de preceito fundamental (Lei n 9.882/99, art. 11).
1.3.2 A nulidade ab initio e perptua da coisa julgada inconstitucional
Todos os graus de jurisdio da magistratura contam com poder para negar
validade a atos e normas que contrariem o texto constitucional, mesmo que o ato seja
judicial e esteja coberto pela definitividade do trnsito em julgado (CR, arts. 97 e 102,
inc. III, als. a a c). No fosse assim, o Constituinte de 1988 teria institudo
autntica brecha para a derrogao episdica das normas fundamentais e as
disposies nelas contidas cederiam quando contrapostas mera garantia da coisa
julgada.
preciso reconhecer, no entanto, que a aceitao da relatividade da garantia
da coisa julgada ainda gera polmica, embora venha diminuindo o sectarismo em torno
das idias de certeza e segurana das relaes jurdicas. Uma prova do arrefecimento
da tradicional resistncia foi dada h pouco pelo legislador ordinrio ao introduzir
importante novidade no estatuto processual civil e na consolidao das leis
trabalhistas. Ambas codificaes agora tm como inexigvel o ttulo judicial fundado
em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal
ou em aplicao ou interpretao tidos por incompatveis com a Constituio Federal
(CPC, art. 741, pargrafo nico, e CLT, art. 884, 5.).
Essa flexibilizao da garantia de inatacabilidade do ttulo judicial passado
em julgado no chega a ser indita em nosso direito legislado. A citao inexistente
ou invlida, por exemplo, sempre foi motivo legal para a oposio de embargos
execuo (CPC, art. 741, inc. I). Tambm a deciso judicial desfundamentada, na
atual ordem jurdica, ganhou foros de inconstitucionalidade em norma com carga
sancionadora, o que constitui importante exceo tradicional tcnica descritiva e
principiolgica dos textos polticos rgidos (CR, art. 93, inc. IX).
Ainda que possam ser tidas como casusticas e pontuais, essas positivaes
denotam clara percepo de que a coisa julgada constitui simples qualidade da deciso
judicial que reclama ser despojada da veste de ato normativo quando proferida em
descompasso com a Constituio. A sentena assim prolatada nasce maculada pelo
supremo dos vcios e conseqentemente jamais poder produzir qualquer efeito na
vigncia do Estado de Direito.
precisamente a que reside o interesse maior deste estudo, seja pela nfase
posta em questes relativas preservao da ordem jurdica ou pelo modo processual
de assegur-la. Soa intolervel que algum, em especial a autoridade investida da
funo estatal bsica de dizer o Direito, defenda a prevalncia da proteo
relativssima da coisa julgada sobre o princpio da supremacia da Constituio.
Se a coisa julgada inconstitucional, a invalidade h de ser reconhecida to
logo sobrevenha a impugnao incidental no processo de execuo ou quando houver
a propositura de ao especfica de nulidade. Esta ltima, para alguns, objetivaria a
anulao da deciso e teria natureza constitutiva, pois, at ser desconstituda, a coisa
julgada pressupe efeitos legais definidos que precisam ser reconhecidos no mundo
jurdico antes de serem tidos como nulos. Por tal raciocnio, a nulidade ab initio s
pode ser assim considerada se o direito posto prever uma existncia jurdica passvel
de ser desconstituda com fora retroativa. 25
H quem distinga a nulidade do ato processual, assim entendido o acrdo ou
a sentena com trnsito em julgado, da inexistncia da relao jurdica. Embora, ao
faz-lo, incorra em clara confuso quanto aos diferentes regimes jurdicos das
nulidades. o que se nota na obra de um dos mais reputados juristas brasileiros,
quando assevera que a ao para se decretar a nulidade [do ato jurdico, inclusive do
ato jurdico processual] constitutiva negativa; a ao para se declarar a inexistncia
25 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Traduo Lus Carlos Borges. So
Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 231-232. Id., Teoria Pura do Direito. Traduo Joo Baptista Machado. So
Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 296-297.
da relao jurdica, que se pretende derivada do ato jurdico nulo, declarativa
negativa. 26
A controvrsia tem pouco interesse prtico porque o nosso sistema jurdico
sempre conviveu com o mais perfeito dos meios autnomos de impugnao da coisa
julgada invlida, que vem a ser a querela nullitatis insanabilis. O que se passou nesse
meio tempo de reinado incontrastvel do dogma da res iudicatae que a querela
sobreviveu confinada hiptese legal do defeito ou falta de citao (CPC, art. 741, inc.
I). Atualmente, no entanto, o instituto medievo tem tudo para recuperar o espao
perdido com a perspectiva de releitura crtica do caso passado em julgado. Tanto que,
no faz muito, o legislador provisrio introduziu a aludida inexigibilidade do ttulo
judicial formado com afronta Constituio (CPC, art. 741, pargrafo nico, e CLT,
art. 894, 5.).
O consenso a ser alcanado, por ora, diria respeito to-s necessidade de
ser reconhecida a invalidade da coisa julgada aparente, inconstitucional ou nula de
pleno direito. Necessidade essa que ser melhor atendida com a institucionalizao da
possibilidade de o jurisdicionado propor aquela actio nullitatis (CR, art. 5., inc.
XXXV). Mesmo porque no existe entre ns outro meio de impugnao que tenha
sido talhado para obviar, a qualquer tempo, toda sorte de coisa julgada invlida.
26 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil (de
1973). Rio de Janeiro: Forense, 1976. t. XI, p. 93-94.
CAPTULO II A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO DE
IMPUGNAO DA COISA JULGADA INVLIDA
Sumrio 2.1 Traos marcantes dos meios de impugnao no sistema jurdico romano 2.1.1 Os dois sistemas processuais conhecidos pelo direito romano 2.1.2 Como os romanos viam a nulla sententia 2.1.3 A resistncia s nulidades da sentena nos processos de cognio e de execuo (rectius: actio iudicati) da primeira fase do direito romano 2.1.4 Os primeiros meios de impugnao da coisa julgada 2.2 A querela nullitatis insanabilis como meio autnomo de impugnao da coisa julgada 2.2.1 O aparecimento da querela nullitatis no Direito Medievo 2.2.2 O destino de pouca glria da querela 2.2.3 A imanncia do instituto em relao aos vcios processuais graves 2.3 A preservao pelo direito cannico das duas espcies da querela nullitatis 2.3.1 Breves notas sobre a codificao do direito da Igreja 2.3.2 A disciplina da querela nullitatis no atual Codex Iuris Canonici 2.4 A querela nullitatis insanabilis no direito brasileiro 2.4.1 Expulsa do universo conceitual, mas com existncia clandestina assegurada pelas imposies da realidade jurdica 2.4.2 O ostracismo conhecido com o surgimento de novos meios de impugnao 2.4.3 Outro fator que contribuiu para a proscrio equivocada 2.4.4 Os meios que, em tese, seriam idneos para impugnar a coisa julgada brasileira.
2.1 TRAOS MARCANTES DOS MEIOS DE IMPUGNAO NO SISTEMA
JURDICO ROMANO.
2.1.1 Os dois sistemas processuais conhecidos pelo direito romano
No direito contemporneo de origem romano-germnica, a exacerbada
pretenso ao cientificismo dos ltimos sculos resultou em gradual perda de espao
para os meios de impugnao dos vcios da deciso judicial. Preocupao essa que
no existiu nos 1.262 anos de histria do Direito Romano. 27
Roma conheceu nesse perodo dois sistemas processuais de composio dos
conflitos de interesses privados. Ambos tiveram a marca da lenta e progressiva
27 A histria do Direito Romano abrange o perodo da monarquia 754 a.C. a 510 a. C. -, da
Repblica 510 a. C. a 27 a. C. -, e do Imprio 27 a. C. a 568 d. C., com a invaso dos brbaros e a queda do
publicizao. O primeiro deles, chamado de sistema dos iudicia privata, surgiu das
formas observadas nos tempos arcaicos e perdurou at o ano de 209 (d. C.). 28
Na vigncia desse sistema, que mais tarde viria a ser referido como ordo
iudiciorum privatorum, as caractersticas essenciais do direito privado foram
preservadas e a administrao da justia procurava alcanar unicamente uma melhor
disciplina da defesa dos interesses particulares. O Estado estava interessado em
substituir a antiga justia privada, mas, naquele momento, o propsito maior era o de
conseguir que os demandantes viessem a submeter os seus conflitos de interesses
magistratura. Esta limitava-se a declarar se o autor tinha direito e, em caso afirmativo,
ordenava a um juiz privado que apreciasse as provas para prolatar a sentena de
absolvio ou condenao do ru.
O segundo sistema processual do direito romano recebeu o nome de cognitio
extra ordinem. Por ele, as partes instauravam o processo e a partir da a administrao
da justia passava a ser funo exclusiva do Estado. Era um processo extraordinrio
(cognitio extraordinaria) que, no incio, foi observado apenas em dadas
circunstncias, nas quais o magistrado atuava investido de imperium e compunha a
lide sem a interveno de juiz privado.
Imprio Romano (MACEDO, Alexander dos Santos. Da Querela Nullitatis Sua Subsistncia no Direito
Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. p. 18).
28 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ao Rescisria das Sentenas e
de Outras Decises. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 26; JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano
I: parte geral introduo, relao jurdica, defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 263 e ss. [ 56, n.
56.1].
Mais adiante, o que era extraordinrio tornou-se regra graas concentrao
de poderes no imperador e a nova organizao administrativa e hierrquica dos
magistrados. Nem mesmo:
[...] a circunstncia de ocasionalmente as declaraes das partes se fixarem numa frmula escrita e o facto de o magistrado delegar, por vezes, as suas faculdades jurisdicionais num juiz no eliminam a caracterstica essencial do novo processo que se apoia no imperium do magistrado, que verifica se os factos alegados so verdadeiros e d a respectiva sentena. Por isso, enquanto no processo ordinrio (agere per formulas) a actividade das partes era preeminente e, portanto, conferia ao processo um carcter eminentemente privado, na cognitio extra ordinem prepondera a interveno estatal e a litis contestatio perde o seu valor de contrato arbitral para se tornar uma mera designao sem contedo: refere, to-s, um momento nem sempre bem preciso do processo. E a sentena, que antes se apoiava nesse contrato arbitral e, por isso, era, em princpio, insusceptvel de recurso, converte-se numa deciso do magistrado que admite recurso para um magistrado superior. 29
2.1.2 Como os romanos viam a nulla sententia
Tanto o sistema do ordo iudiciorum privatorum (754 a. C. a 209 d. C.)
quanto o da cognitio extra ordinem (209 d. C. a 568 d. C.) sempre negaram
repercusso jurdica deciso judicial contaminada por qualquer nulidade ou vcio
processual mais grave. A sentena era tomada como nula. E nulo, como o prprio
termo exprime (nec ullus), nenhum, ou seja, o que no repercute normalmente no
plano do direito. 30
29 JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano I: parte geral introduo, relao jurdica,
defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 266.
30 BRANCO, Elcir Castello. Nulo. In: ENCICLOPDIA Saraiva do Direito. So Paulo: Saraiva,
1977. v. 55, p. 176.
A nulla sententia assumia, assim, o exato sentido de algo inexistente
(rectius: de sentena juridicamente inexistente). O julgado afetado por defeito
substancial simplesmente no tinha existncia jurdica e o sucumbente estava
desobrigado de cumprir o seu dispositivo. Dentre as nulidades mais recorrentes por
aquela poca incluiam-se: a) o julgado fundado em frmula elaborada por magistrado
incompetente, omisso quanto a ponto essencial ou que prescrevesse algo impossvel;
b) a condenao de escravo; falecido; pessoa ainda no nascida e daquele considerado
incapaz de negociar sem assistncia de curador ou tutor; c) a deciso proferida em dia
festivo - sem o necessrio assentimento das partes -, ou com afronta manifesta a
direito, pressupostos processuais ou coisa julgada. 31
Esse breve apanhado ratifica a assertiva de que os vcios tidos como graves
compreendiam desde os erros de atividade ou procedimento (errores in procedendo)
at os de flagrante equvoco no julgar (errores in iudicando). Dir-se-ia que a nulla
sententia romana no distinguia o defeito produzido pela desviacin de los medios
que seala el Derecho procesal daquele surgido com a aplicacin de una ley
inaplicable, la no aplicacin de la que fuere aplicable, o en la errnea aplicacon de
ella.32 Toda injustia substancial ou desvio processual grave tornava a sentena
31 JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano I: parte geral introduo, relao jurdica,
defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 376.
32 VESCOVI, Enrique. Los Recursos Judiciales y Dems Medios Impugnativos en Iberoamrica.
Buenos Aires: Depalma, 1988. p. 37.
nenhuma, uma verdadeira no sentena a cujo respeito sequer cabe falar-se de
precluso ou coisa julgada. 33
2.1.3 A resistncia s nulidades da sentena nos processos de cognio e de
execuo (rectius: actio iudicati) da primeira fase do direito romano
Ao tempo do ordo iudiciorum privatorum no se cogitava de algo como o
atual recurso de apelao para infirmar a sentena maculada por vcio grave. O
julgado era tido como simplesmente nulo e a invalidade podia ser objetada como
matria de defesa em qualquer oportunidade, embora costumasse ser deduzida em
contraposio actio iudicati do vencedor.
Um pouco mais tarde, na vigncia da cognitio extra ordinem e em especial
no perodo republicano, o sucumbente j contava com alguns institutos processuais
para resistir nulla sententia. Mas, em regra, valia-se ainda da contestao como
defesa na actio iudicati (ou pro iudicato), que era a relao processual prpria para
que o credor executasse o ttulo judicial passado em julgado ou exigisse desde logo os
direitos confessados (confessio) pelo ru.. Antes dessa actio, ainda ao tempo do
processo das legis actiones, o demandante podia pedir autorizao ao magistrado para
executar os seus direitos sobre a pessoa do demandado. Era a chamada legis actio per
manus iniectionem, autntico resqucio da primitiva vingana privada de contrapor um
direito livre disposio do corpo do obrigado.
33 FABRCIO, Adroaldo Furtado. Ru revel no citado. Querela nullitatis e ao rescisria.
Revista de Processo, So Paulo, n. 48, p. 27-44, out./nov./dez. 1987. p. 29.
Durante a fase da cognitio, a sentena gozava de fora executiva prpria e os
seus efeitos prticos eram assegurados pela autoridade do magistrado. Para tanto,
bastava ao vencedor instaurar a actio iudicati, que deixara de ser um instrumento de
coao para se tornar uma autntica ao de execuo. O sucumbente, por sua vez,
costumava opor-se a essa actio pro iudicato com o argumento de que a sentena
continha vcio que a tornava juridicamente inexistente. Qualquer que fosse o
fundamento, porm, a instruo em juzo seguia o procedimento tpico de relao
processual executiva.
O vcio contido em sentena coberta pela autoridade da coisa julgada,
independentemente de ser processual ou de injustia substancial, podia assim ser
alegado a todo tempo, seja como defesa contra a actio iudicati ou como rplica
exceo de coisa julgada, e talvez tambm diretamente com a revocatio in duplum. 34
2.1.4 Os primeiros meios de impugnao da coisa julgada
No correr da cognitio extra ordinem, a sentena continuou a ser nula sempre
que prolatada com erro de atividade ou manifesto equvoco em questo jurdica
abstrata (ius constitutionis). A grande novidade introduzida por essa poca foi a
criao da appellatio, que teria sido legalmente regulamentada por Augusto [68 a. C.
14 d. C.] e depois por constitutiones imperiais recolhidas no Cdigo de Teodsio
[347 395] e na compilao de Justiniano [482 565]. 35
34 LIEBMAN, Enrico Tullio. Citao inicial (falta nulidade absoluta da sentena, embora j
transitada em julgado). Revista dos Tribunais, So Paulo, 1944. p. 444-445.
35 JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano I: parte geral introduo, relao jurdica,
defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 378.
A appellatio surgiu com o fim certo de impugnar os errores in iudicando
substanciais de questes jurdicas concretas, o que parece corroborar a ilao de que
teria sido a real precursora dos chamados recursos propriamente ditos. Seu
aparecimento, contudo, em nada alterou a doutrina da nulidade de sentena no tocante
aos errores in procedendo.
Pouco depois, criou-se a supplicatio como meio de impugnao a ser dirigido
ao imperador para que fosse revista a sentena proferida em apelao pelos prefeitos
dos pretrios.36 Quando interposta no prazo de dez dias, ela suspendia a execuo da
sentena e a possibilidade da execuo provisria ficava condicionada prestao de
fiana. Os romanistas sempre viram a splica como uma tentativa ficcional de
equilibrar a justia, desde que as sentenas dos mais altos dignitrios, formadores do
Corpo do prncipe, eram inapelveis. 37
Outro meio caracterstico de impugnao que apareceu nesse meio tempo foi
a restitutio in integrum. Conhecida tambm por restitutio praetoria, pois teria sido
criada e implementada pelos pretores no final do perodo republicano, ela tinha como
36 O direito germnico antigo, que tinha a sentena como irrecorrvel por emanar da Assemblia
do Povo e ser ditada em nome de Deus, tambm iria adotar recursos extraordinrios como a supplicatio e a
restitutio in integrum. Estes, a exemplo do que ocorria no direito romano, eram admitidos quando alguien
sufra alguna grave lesin por una sentencia dictada en un proceso en el cual no haba podido defender-se por
razones de edad, enfermedad, ausencia o error debido a deficiencia intelectual, proveniente del dolo del
adversrio o del juez (VESCOVI, Enrique. Los Recursos Judiciales y Dems Medios Impugnativos en
Iberoamrica. Buenos Aires: Depalma, 1988. p. 338).
nica finalidade a correo dos efeitos injustos das decises judiciais formalmente
vlidas. Com a concesso da restitutio, toda a discusso havida em juzo era
desconsiderada para que fosse restabelecida a situao jurdica anterior. 38
Essa restituio integral dos romanos no se confundia em nada com os
meios prprios para o questionamento de injustias substanciais ou nulidades de
forma. O seu fundamento era a eqidade, e no a eventual existncia de graves
errores in iudicando ou in procedendo. Estava muito mais prxima de ser um pedido
de proteo extraordinria em face de um ato judicial plenamente conforme com o
direito vigente, com o que a postulao s chegava a ser apreciada se inexistisse um
direito subjetivo e a correspondente actio para assegur-lo. Por outras palavras,
algum pedia o auxlio do magistrado (postulatio, impetratio, supplicatio) e a
concesso traduzia uma simples ajuda (subvenire, adiuvare, succurrere, indulgere). 39
Mais tarde, com a chegada do perodo ps-clssico, a restitutio in integrum
deixa de atender a simples interesses e passa a proteger o direito subjetivo ento
denominado de beneficium restitutionis. Com isso, unificou-se na mesma pessoa de
um mesmo magistrado a competncia para conhecer e decidir o conflito e,
eventualmente, conferir o iudicium rescissorium.
37 SIDOU, J. M. Othon. Ordenaes: sistema recursal. In: ENCICLOPDIA Saraiva do Direito.
So Paulo: Saraiva, 1977. v. 56, p. 277-287.
38 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Dez Anos de Pareceres. Rio de Janeiro:
Forense, 1975. v. 4, p. 109.
39 JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano I: parte geral introduo, relao jurdica,
defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 432-433.
Pouco ou nada mudaria no tocante a essas impugnaes at que sobreviesse a
debacle definitiva do sistema poltico dos romanos. Tambm as nulidades da sentena
continuaram a ser atacadas com a contestatio actio iudicati ou mediante a
propositura daquilo que se denominava actio praeiudicialis. Esta, de modo muito
semelhante nossa contempornea declarao incidental, apenas autorizava que
fosse pedido um pronunciamento judicial sobre questo subjacente para facultar futura
discusso em outra relao processual. Algo como um esclarecimento sobre a questo
suscitada, sem que o juiz acolhesse ou rejeitasse o objeto principal do litgio.
2.2 A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO AUTNOMO DE
IMPUGNAO DA COISA JULGADA
2.2.1 O aparecimento da querela nullitatis no Direito Medievo
Veio ento a Idade Mdia e a forte influncia do direito germnico levou
algumas cidades italianas a criarem em suas legislaes estatutrias um meio de
impugnao das sentenas nulas que resultava de aspectos comuns aos dois sistemas
jurdicos. O novo instituto, que logo seria incorporado ao direito cannico, objetivava
aumentar a estabilidade das relaes jurdicas e recebeu o nomen iuris de querela
nullitatis.
No era, ainda, uma tpica ao, mas sim algo como um pedido de
deferncia dos bons ofcios jurisdicionais (rectius: imploratio officit iudicis) para que
fosse oficialmente reconhecida a existncia de algum erro de atividade.
At ento, o direito visigtico tratava como no-vlida a sentena nula que os
romanos tinham como inexistente. Essa poltica jurdica nada tinha em comum com
a idia de invalidade ou nulidade ipso iure e tornava sem interesse a distino entre o
erro de atividade e o de julgamento. Com a introduo da querela nullitatis em
estatutos de cidades italianas, fez-se ento uma espcie de sntese entre o princpio
germnico da fora formal da sentena e a distino romana entre sententia nulla e
sententia iniusta. 40
O direito francs contemporneo ao aparecimento da querela nullitatis
admitia a interposio de recurso ao monarca (lettres de justice) de decises finais da
justia feudal (courts de baronnies). Com a rpida absoro da atividade jurisdicional
pelo Estado, o rei baixou uma ordonnance no dia 23 de maio de 1382 para permitir
que lhe fosse dirigida petio (rectius: requte) quando a sentena apresentasse
evidncias de erros graves (lettres de grce et de proposition derreur). Se a
impugnao viesse a ser acolhida, los matres des requtes libraban al recurrente
una orden del rey para que el consejo Real (...) revisara el fallo.41 A requte
acabaria por originar um pouco mais tarde o recurso de reviso, meio extraordinrio
40 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil [de
1973]. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 64.
de reapreciao da sentena que ainda hoje continua a ser adotado por muitas ordens
jurdicas filiadas ao sistema romano-germanstico.
A appellatio, nesse meio tempo, conservou inalterada a caracterstica romana
de meio prprio para a impugnao da sentena vlida. Os julgados nulos, que
dispensavam a propositura de ao autnoma de declarao de nulidade no sistema
jurdico de Roma, eram agora impugnados pela querela nullitatis. 42
A novidade exigiu que os diferentes vcios da sentena viessem a ser
classificados em sanveis e insanveis. O prazo para a alegao dos primeiros
costumava coincidir com o da appellatio e, em caso de precluso, o vcio era
convalidado. Os segundos, tidos como mais graves, podiam ser argidos em igual
tempo do prazo de prescrio do direito material em jogo, pois sobreviviam ao
decurso dos prazos e formao da coisa julgada e podiam alegar-se com a quer