UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA JERUSA DE PINHO ... · JERUSA DE PINHO TAVARES SILVA ESCOLA...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
JERUSA DE PINHO TAVARES SILVA
ESCOLA PLURAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA:
DIVERSOS OLHARES, MÚLTIPLOS SENTIDOS
Juiz de Fora
2005
JERUSA DE PINHO TAVARES SILVA
ESCOLA PLURAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA:
DIVERSOS OLHARES, MÚLTIPLOS SENTIDOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre sob a orientação da Professora Doutora Luciana Pacheco Marques.
Juiz de Fora
2005
TERMO DE APROVAÇÃO
JERUSA DE PINHO TAVARES SILVA
ESCOLA PLURAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA: DIVERSOS OLHARES, MÚLTIPLOS SENTIDOS
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, pela seguinte banca examinadora:
______________________________________________ Profa. Dra. Luciana Pacheco Marques - UFJF
(Orientadora)
_____________________________________________ Profa. Dra. Maria Teresa Eglér Mantoan - UNICAMP
______________________________________________ Profa. Dra. Déa Lúcia Campos Pernambuco - UFJF
Juiz de Fora, 08 de abril de 2005
AGRADECIMENTOS
Agradecer sempre a Deus.
A Ele que colocou em minha vida pessoas muito especiais.
Especiais como a Lu que nem precisa dar aulas,
apenas ser ela mesma, para nos ensinar a ser GENTE.
Gente de verdade.
Que ri, que chora, que fica p... da vida com tanta injustiça por esse mundo afora.
E que não fica só na indignação.
Faz o que pode, faz a sua parte (e, às vezes, até a parte dos outros)
para deixar o mundo um pouquinho melhor.
Especiais como o meu marido, Sandro
que, com seu jeito de achar que a vida pode ser maravilhosa,
me incentiva e me faz ver o mundo com mais cor e brilho.
Um brilho que agora trazemos nos olhos,
admirando uma barriga que cresce
carregando, com orgulho, nosso amor em forma de gente!
Especiais como a minha família
que, discretamente, me acompanha e torce pelo meu sucesso.
E como a família Silva que me recebeu com tanto carinho,
especialmente as crianças: Júlia, Mariana, Camila, Víctor e Caio Marcus
que, mesmo não compreendendo os motivos de tantas ausências,
se mantiveram carinhosas e divertidas, alegrando os finais de semana.
Especiais como Gra, Marcela e Sil,
(em ordem alfabética, pra evitar ciúmes!),
minhas colegas de turma e amigas do coração.
Especiais como a Lourdes e a Laura
que me abriram não só sua casa, como seus corações
e se tornaram uma pousada segura e aconchegante em Juiz de Fora.
Especiais como cada um dos professores e demais profissionais entrevistados.
Vozes que, muitas vezes, disseram minhas próprias palavras.
Espelhos nos quais, constantemente, vi refletido meu rosto.
Agradeço, por fim,
Às professoras Doutoras Luciana Pacheco Marques, Maria Teresa Eglér Mantoan, Déa
Lúcia Campos Pernambuco, Dulce Barros de Almeida e Diva Chaves Sarmento,
membros efetivos e suplentes da Banca Examinadora pelas valiosas contribuições que
trouxeram a esse trabalho.
À Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
por me conceder licença remunerada para a realização desta pesquisa.
Aos professores e funcionários
do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora
que me receberam e, direta ou indiretamente, participaram dessa caminhada.
Quando cheguei aqui o que havia estava no fim
E o que estava por vir andava disperso pelo sonho de alguns.
Mas a maioria vivia o seu dia-a-dia
E todos contentes por serem todos assim.
Eles não davam pelo fim
Quanto mais pelo que já assomava mais além
– isto que já começava nos sonhos de alguém.
NEGREIROS, José de Almada. Poesia: Obras Completas. Lisboa: Editorial Estampa, 1971.
RESUMO
Ao longo da presente pesquisa objetivamos compreender os sentidos que
professores, coordenadores e diretores de uma escola comum de cada uma das nove
regionais da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte (RME/BH) vinham
construindo a respeito dos princípios do Programa Escola Plural e da relação destes com
as recentes discussões sobre educação inclusiva. Optamos pelo enfoque na questão da
inserção de crianças com deficiência em classes comuns por ser este um dos temas que,
no contexto pesquisado, mais provocavam o repensar das estruturas escolares. A
pesquisa de campo, realizada entre março de 2003 e novembro de 2004, constituiu-se de
observações e entrevistas coletivas que, posteriormente, foram transcritas e analisadas
com base no aporte teórico-metodológico da Análise de Discurso francesa. Das
reflexões suscitadas pelas diversas temáticas que surgiram a partir das entrevistas,
pudemos, em linhas gerais, concluir que, apesar dos conflitos e dificuldades, a
implantação dos ciclos de formação e a inserção de crianças com deficiência nas classes
comuns impulsionaram alguns professores à revisão de suas práticas e à construção de
estratégias educacionais mais condizentes com as necessidades do aluno em geral,
embora ainda não houvesse sido alcançada uma ampla percepção da diversidade
humana e do fato de que as instituições escolares são, estruturalmente, excludentes e,
por isso, precisariam ser revistas em suas bases, a fim de se tornarem inclusivas.
Concluímos também que, apesar das discussões sobre inclusão estarem sendo
constantemente cooptadas por discursos de caráter regulatório, elas exercem um
importante papel dentro da atual transição paradigmática, desestabilizando os
paradigmas hegemônicos e possibilitando o deslocamento para sentidos de caráter
emancipatório.
Palavras-chave: Escola Plural – Inclusão – Educação Especial
ABSTRACT
Throughout this study the objective was to understand the meanings that
teachers, coordinators and principals at any ordinary school belonging to one of the nine
school districts of the Belo Horizonte Municipal Education Network (RME/BH) had
been developing with respect to the principles of the Programa Escola Plural (Plural
School Program) and the relationship between these principles and the recent
discussions on inclusive education. We opted for the focus on the insertion question of
disabled children in ordinary classes since this is one of the themes which, in the
researched context, most stimulated the reconsideration of the current school structure.
The field research, carried out from March 2003 to November 2004, consisted of
observations and group interviews which were later transferred to written form and
analyzed based on the methodological and theoretical contribution of the French
Discourse Analysis. Of the contemplations given rise to by the several theme questions
that were brought forth from the interviews, we could, in general terms, conclude that in
spite of the conflicts and difficulties, the inplementation of the formation cycles and the
insertion of disabled children in ordinary classes propelled some teachers into revising
their practices and building up educational strategies in greater accordance to the
necessities of the general student, although there had not been reached a broad
perception of the human diversity and of the fact that school institutions are structurally
excluding. On account of that, the school´s structure would need to be reviewed and
revised so that they could then become inclusive. We also concluded that, although the
discussions on inclusion have been constantly co-opted for by discourses with a
regulatory nature, they exert an important role inside the current paradigmatic
transition, destabilizing the hegemonic paradigms and allowing for the displacement
towards meanings with an emancipation nature.
Key words: Escola Plural – Inclusion – Special Education
SUMÁRIO
LISTA DE TABELA ................................................................................. 10 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS .............................................. 11 LISTA DE ANEXOS ................................................................................ 12 APRESENTAÇÃO ........................................................................................ 13 1 INVESTIGANDO... ................................................................................ 26 1.1 CARACTERIZAÇÃO DAS ESCOLAS PESQUISADAS................... 33 1.1.1 Escola Municipal Adélia Prado ............................................... 33 1.1.2 Escola Municipal Ana Maria Machado .................................. 36 1.1.3 Escola Municipal Bárbara Heliodora ..................................... 38 1.1.4 Escola Municipal Cecília Meireles .......................................... 40 1.1.5 Escola Municipal Lygia Fagundes Telles ............................... 43 1.1.6 Escola Municipal Maria Adelaide Amaral.............................. 45 1.1.7 Escola Municipal Rachel de Queiroz ...................................... 47 1.1.8 Escola Municipal Ruth Rocha ................................................. 49 1.1.9 Escola Municipal Zélia Gattai ................................................. 52 2 SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA: HISTÓRICO DE UMA
RELAÇÃO ............................................................................................... 55
2.1 FORMAÇÕES DISCURSIVAS EM MOVIMENTO: DA
EXCLUSÃO À INTEGRAÇÃO ................................................................ 60
2.2 FORMAÇÃO DISCURSIVA DA INCLUSÃO: A DIVERSIDADE
EM PERSPECTIVA ................................................................................... 63
2.3 INSERÇÃO DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA NA RME/BH .... 66
3 ORIGENS HISTÓRICAS DOS MECANISMOS DE
SELETIVIDADE ESCOLAR ................................................................ 73
3.1 QUANDO A SELETIVIDADE EMPERRA O CURSO DO
DESENVOLVIMENTO ............................................................................. 78
3.1.1 Promoção automática e organização escolar em ciclos de
formação: algumas diferenças .......................................................... 81
3.2 A ESCOLA PLURAL ENQUANTO PROPOSTA DE
INTERVENÇÃO NAS ESTRUTURAS SELETIVAS DO SISTEMA ESCOLAR ..................................................................................................
82
3.2.1 Eixos norteadores da Escola Plural ......................................... 83 3.2.2 Reorganização dos tempos escolares ....................................... 84 3.2.3 Processos de formação plural ................................................. 86 3.2.4 Avaliação na Escola Plural ...................................................... 86 3.3 ESCOLA PLURAL E INCLUSÃO: O QUE OS DISCURSOS
REVELARAM............................................................................................. 88
4 A EXPERIÊNCIA DE BELO HORIZONTE ...................................... 91 4.1 BREVE HISTÓRICO SOBRE O ATENDIMENTO
EDUCACIONAL PRESTADO PELO PODER PÚBLICO MUNICIPAL ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA .........................................................
91
4.2 A EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA ESCOLA
PLURAL: SENTIDOS EM CONSTRUÇÃO ............................................. 97
4.3 PROJETO PEDAGÓGICO E TRABALHO COLETIVO: LIMITES
E POSSIBILIDADES ................................................................................ 105
4.4 APRENDIZAGEM, DESENVOLVIMENTO E ENTURMAÇÃO ..... 117 4.5 AVALIAÇÃO: ENTRE A EMANCIPAÇÃO E O CONTROLE ........ 133 4.6 ESTRATÉGIAS DE ACOLHIMENTO E INTERVENÇÃO
PEDAGÓGICA ........................................................................................... 144
4.7 PROFESSORES: SEUS SABERES E SUA FORMAÇÃO ................. 153 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 167 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................ 174 ANEXOS ........................................................................................................ 186
LISTA DE TABELA
Tabela 1 Alunos atendidos por Escolas Municipais de Ensino Especial em Belo Horizonte .....................................................................................
105
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AD Análise de Discurso
APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
B.H. Belo Horizonte
CAPE Centro de Aperfeiçoamento de Profissionais da Educação
CAPP Curso de Aperfeiçoamento da Prática Pedagógica
CBA Ciclo Básico de Alfabetização
CEE Conselho Estadual de Educação
CNE/CEB Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Básica
CPP Coordenação de Política Pedagógica
DOEED Departamento de Organização Escolar
DP Discurso Pedagógico
G90 Grupo responsável pelo acompanhamento das escolas da Rede Municipal de Belo Horizonte, composto por profissionais da CPP, do Gabinete, do CAPE e das GERED’s, subdivido entre as nove Regionais de Ensino.
GAME/UFMG Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da Universidade Federal de Minas Gerais
GERED Gerência Regional de Educação
LIBRAS Língua Brasileira de Sinais
OEA Organização dos Estados Americanos
PBH Prefeitura de Belo Hozizonte
PM 1 Professor Municipal 1 (concursado para atuar na Educação Fundamental)
PUC-Minas Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
QI Quociente Intelectual
RME/BH1 Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte
SMED/BH Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural
Organization
Trad. Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
1 Existem variações na nomenclatura da RME/BH. Alguns documentos se referem à mesma como Rede Municipal de Educação, enquanto outros substituem o termo Educação por Ensino. No presente trabalho optamos pelo termo Rede Municipal de Educação, por concebê-lo como mais abrangente.
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A Formulário de pesquisa I – Dados gerais da escola............................ 187 ANEXO B Formulário de pesquisa II – Dados gerais sobre os profissionais
entrevistados ...................................................................................... 189
ANEXO C Formulário de pesquisa III – Dados gerais sobre a relação
escola/comunidade ............................................................................. 190
ANEXO D Regionais do município de Belo Horizonte e escolas visitadas ........ 191 ANEXO E Consentimento informado ................................................................. 192 ANEXO F Termo de compromisso ..................................................................... 193 ANEXO G Questões norteadoras para entrevista semi-estruturada ..................... 194 ANEXO H Resolução 0443 de 25 de abril de 1980 ............................................. 195
APRESENTAÇÃO
A elaboração deste projeto partiu do interesse pessoal, profissional e acadêmico
em torno de um tema que vem adquirindo importância cada vez maior nas discussões
sobre educação e sociedade: a inclusão.
Enquanto professora do ensino fundamental na Rede Municipal de Educação de
Belo Horizonte (RME/BH), Minas Gerais, passei a desenvolver pesquisas sobre este
assunto motivada pelas dificuldades enfrentadas diante do desafio de educar crianças
com deficiência, pela primeira vez matriculadas na escola onde trabalhava.
Apesar dos nove2 anos até então dedicados à formação acadêmica e dos quase
dez anos de experiência no exercício do Magistério, não me sentia apta a propor
alternativas para lidar com crianças que, naquele momento, eram consideradas os
“problemas” da escola.
As disciplinas direcionadas à minha formação enquanto professora, desde o
curso de Magistério até o curso de Pedagogia, enfatizavam o desenvolvimento de um
tipo ideal de aluno. Deste modo, eu – e tantos outros profissionais formados sob esta
mesma lógica – construimos expectativas e estratégias visando a intervenções
pedagógicas junto a um todo supostamente homogêneo de alunos, uma mesmidade de
características bem definidas sobre a qual bastava aplicar uma seqüência adequada de
procedimentos didáticos para obter os resultados previstos.
Em suas análises sobre os cursos de formação de profissionais da educação,
Ferre (2001) constata que ali se lêem textos que produzem sempre a ilusão de
normalidade, além da polarização e da segregação do outro – que não se encaixa nos
padrões teoricamente instituídos – em espaços de perturbação e culpa.
Assim, ao mesmo tempo em que nós, professores, somos formados para lidar
com alunos tidos como iguais, normais e capacitados, oposta e paralelamente
consolidamos a crença de que é necessária uma escola e uma formação profissional
específica ou especializada para lidar com aqueles alunos que são considerados desvios
do padrão: os diferentes, problemáticos, especiais ou anormais.
2 Quatro anos do curso de Magistério, somados a quatro anos do curso de Pedagogia e a um ano de especialização em Psicopedagogia.
Tal crença deve-se ao fato de, entre outras coisas, a sociedade em geral e a
grande maioria das escolas nela inserida ainda serem guiadas por ideais de padronização
e homogeneização que geram atitudes de rejeição diante de indivíduos que se afastam
dos padrões de normalidade legitimados no decorrer de um amplo período histórico
conhecido como modernidade do qual ainda hoje se sentem os efeitos.
A classificação dos indivíduos em “normais” ou “anormais”, sua conseqüente
separação em escolas comuns3 ou escolas especiais e, até mesmo, sua exclusão do
sistema escolar encontra sua principal sustentação neste pensamento moderno, cujos
pressupostos há séculos vêm servindo de justificativa para a institucionalização e para o
afastamento de um enorme contingente de crianças do convívio social e escolar mais
amplo. Para Azevedo (2001, p. 61),
o pensamento moderno tentou enquadrar o mundo dentro de um modelo legal, determinista. [...] Essa forma de pensar não tolera intrusos, não aceita ruídos nem mudanças. [...] Tudo o que não pode ser enquadrado nessa lógica é monstruoso, quimérico, errado, quantidade desprezível, anormal etc e tem que ser expulso, excluído, não-considerado.
Nos últimos anos, entretanto, são cada vez mais comuns os estudos que discutem
e procuram desconstruir tais mecanismos de estigmatização/condenação de certas
diferenças e buscam fornecer novas alternativas de interpretação da realidade,
evidenciando a não existência de justificativas sólidas para a segregação de tantos
sujeitos que vêm sendo mantidos à margem da escola e da sociedade.
Apesar de não haver consenso sobre o assunto, um número crescente de
estudiosos defende o fim dessa dicotomia – escola especial x escola comum – e a
3 Existe, nas obras e documentos consultados, uma certa confusão entre os termos que definem as escolas como regulares ou comuns. De acordo com o Parecer CNE/CEB 11/2000: “o conceito de regular é polivalente e pode se prestar a ambigüidades. Regular é, em primeiro lugar, o que está sub lege, isto é, sob o estabelecido em uma ordem jurídica e conforme a mesma, mas a linguagem cotidiana o expressa no sentido de caminho mais comum. Seu antônimo é irregular e pode ser compreendido como ilegal ou também como descontínuo, mas em termos jurídico-educacionais, regular tem como oposto o termo livre. Neste caso, livres são os estabelecimentos que oferecem educação ou ensino fora da Lei de Diretrizes e Bases. É o caso, por exemplo, de escolas de língua estrangeira” (BRASIL, 2000, grifos nossos). Assim sendo, tanto as escolas especiais quanto as comuns encaixam-se na categoria de escolas regulares. Cientes de tal questão terminológica utilizaremos, em trechos de elaboração própria, o termo escolas comuns para designar aquelas que tradicionalmente atendem crianças consideradas “normais” e o termo escolas especiais para designar a rede escolar paralela, originalmente criada para atender crianças cujas características físicas, sensoriais, psicológicas ou cognitivas eram consideradas inadequadas para atendimento em escolas comuns. Por outro lado, respeitaremos os termos originais, tal como estes apareçam, sempre que houver citação de documentos e/ou entrevistas.
criação de uma escola única, de qualidade, que atenda às necessidades educacionais de
todos.
A flexibilidade e a complexidade de novas formas de pensar, desenvolvidas ao
longo das últimas décadas, podem possibilitar uma maior abertura para o respeito e a
valorização da diversidade humana. Nesse novo contexto, a luta pela concretização de
uma sociedade inclusiva e do ideal democrático de educação para todos é crescente.
Dentro desta nova perspectiva, vêm sendo geradas inúmeras e ricas possibilidades de
interpretação da realidade, menos excludentes e mais flexíveis que as habituais.
Esta vem sendo, por exemplo, uma das facetas do compromisso assumido pela
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH) desde 1994, com a elaboração e
implantação da Proposta4 Escola Plural nos estabelecimentos de ensino público
municipal. Segundo publicação da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
(SMED/BH), o referido projeto político-pedagógico pretende “intervir nas estruturas
excludentes do sistema escolar e na cultura que legitima essas estruturas excludentes e
seletivas” (BELO HORIZONTE, 1994/2002, p. 13).
Para viabilizar as mudanças propostas, o Programa Escola Plural estabelece uma
série de reestruturações na organização das escolas. Entre outras coisas, parte da
implantação dos ciclos de formação, passando pela revisão de procedimentos e critérios
de avaliação da aprendizagem e pela garantia de tempos de formação dos professores
em serviço, na intenção de que as escolas possam vir a exercer cada vez melhor seu
papel na formação humana dos educandos, respeitando sua diversidade.
Além disso, alguns anos após o lançamento do primeiro Caderno (BELO
HORIZONTE, 1994/2002) apresentando às escolas essa nova proposta político-
pedagógica, uma outra publicação da SMED/BH (BELO HORIZONTE, 2000b) afirma
como princípio da Escola Plural assegurar a inclusão escolar de todas as crianças.
Para fins da presente pesquisa, no universo de toda diversidade humana,
voltamos nossa atenção para a questão da inserção de crianças com deficiência em
escolas comuns de ensino fundamental da Rede Municipal de Educação de Belo
4 Segundo Soares (2002, p. 17), o termo proposta foi utilizado pela SMED/BH quando do surgimento da Escola Plural, no final do ano de 1994. Assim que esta foi implantada, em 1995, passou-se a utilizar o termo programa. Entre 1997 e 2000 o termo utilizado passou a ser diretriz político-pedagógica. No presente trabalho, os termos serão utilizados conforme aparecem nos documentos citados. Em trechos de redação própria, utilizaremos o termo Programa, pelo fato de a Escola Plural ser nacionalmente conhecida enquanto um Programa de Governo.
Horizonte/MG. Segundo a SMED/BH (BELO HORIZONTE, 2000b, p. 3), a política
desenvolvida pela Rede “vem contribuindo para o crescimento do número de alunos
com deficiência, incluídos nas escolas municipais."
Gostaríamos de esclarecer que, após inúmeras reflexões, optamos pela utilização
da expressão pessoas com deficiência, considerando que as demais terminologias
apresentam alguns limites. Em primeiro lugar, o uso do termo portador de não nos
pareceu adequado por se associar à idéia de alguém que porta, carrega, conduz ou traz
consigo uma deficiência ou necessidade especial e poderia livrar-se dela. O termo
pessoa deficiente pareceu-nos uma adjetivação limitadora, que rotula e opõe-se
binariamente à idéia de eficiência. A terminologia pessoas com necessidades
educacionais especiais, por sua vez, era muito ampla para os fins desta pesquisa, na
medida em que, de acordo com o Art. 5ª da Resolução CNE/CEB 2/2001 (BRASIL,
2001), engloba tanto educandos que, durante o processo educacional, apresentam
dificuldades acentuadas de aprendizagem ou limitações no processo de
desenvolvimento que dificultem o acompanhamento das atividades curriculares, quanto
dificuldades de comunicação e sinalização diferenciadas dos demais alunos,
demandando a utilização de linguagens e códigos aplicáveis, além de altas habilidades e
condutas típicas.
Por fim, a expressão pessoas com deficiência, ao mesmo tempo em que explicita
uma característica organicamente instalada no indivíduo – que pode (ou não) exigir
apoios específicos – confere certa relatividade à mesma. Tal expressão, a nosso ver,
abre espaço para a discussão sobre o aspecto relacional de determinadas limitações, que
não existem nos indivíduos em si, mas são produzidas nas relações estabelecidas entre
esses e a sociedade como um todo.
Esse tipo de opção terminológica, assim como tantas outras opções que fizemos,
não está isenta de implicações ideológicas. Problematizar tais aspectos faz parte da
nossa tentativa de desvelar preconceitos e de construir novas alternativas para lidar com
a diversidade.
Estamos, por fim, cientes de que a implantação da Escola Plural, por si só, não
assegura a melhoria de qualidade do ensino das escolas e de que a simples matrícula de
alunos com deficiência em escolas comuns não garante que as mesmas se tornem
inclusivas. Isso porque as reformas educacionais atingem de forma diferenciada a
cultura e o cotidiano de cada instituição e, no interior dessas, cada profissional atribui
sentidos e produz conhecimentos que lhe são próprios.
A partir dessas considerações, apresentamos como objetivo de pesquisa buscar
compreender os sentidos que profissionais de uma escola comum de ensino fundamental
de cada uma das nove regionais administrativas da Rede Municipal de Educação de
Belo Horizonte/MG vinham construindo a respeito do Programa Escola Plural, dos
princípios da educação inclusiva e da relação de ambos com a inserção de crianças com
deficiência nas classes comuns.
A fim de alcançar tal meta selecionamos, inicialmente, produções acadêmicas
que discutissem e buscassem superar mecanismos de estigmatização e pudessem nos
ajudar a analisar os pressupostos que historicamente sustentam práticas de segregação
social e/ou escolar. Nas últimas décadas, tais produções têm sido, consideravelmente,
ampliadas e atualizadas e, ainda que o movimento em prol da sociedade inclusiva seja
recente, a cada dia surgem novas abordagens sobre o assunto, algumas complementares,
outras divergentes.
Encontramos em Santos (2002), e em suas discussões sobre os aspectos
regulatórios e emancipatórios do conhecimento, subsídios para compreender os
mecanismos pelos quais os pressupostos do paradigma da modernidade tornaram-se
hegemônicos. Perpassando todo o nosso trabalho de pesquisa, o autor também
contribuiu para que pudéssemos refletir sobre o atual momento de crise desse paradigma
e sobre as alternativas de ruptura que vêm sendo desenvolvidas.
Em Pessotti (1984), encontramos uma cuidadosa descrição, guiada pela
cronologia, das principais concepções e personagens que geraram teorias e
interpretações sociais sobre a deficiência mental, desde a Antigüidade Clássica até a
segunda metade do séc. XX. Tal estudo auxiliou-nos a compreender a gênese de
diversas noções preconceituosas que, ainda hoje, habitam o imaginário social em torno
das pessoas com deficiência.
Para completar tal reconstituição histórica utilizamos também as contribuições
de Fonseca (1995) que nos fornece uma sinopse das noções que marcaram as relações
estabelecidas entre a sociedade e a deficiência e de como foram perspectivados os
conceitos de inteligência e de cognição através dos tempos.
Goffman (1988), em suas abordagens sobre o conceito de estigma, auxiliou-nos
a examinar atitudes de rejeição e descrédito associadas aos indivíduos que não possuem
determinadas características socialmente aceitas como naturais e comuns. Identificados
por um atributo depreciativo, tais indivíduos, que poderiam ser facilmente recebidos na
relação social cotidiana, deixam de ser considerados criaturas comuns e totais e passam
a ser vistos como diminuídos e defeituosos.
Ainda que não seja diretamente citado ao longo do texto, Foucault (1985, 1996,
2002) – enquanto uma das principais referências utilizadas pelos autores que realizam a
Análise de Discurso – perpassou toda a discussão sobre a questão do poder e da
construção social de mecanismos discursivos de exclusão e inclusão que visam ao
controle dos corpos e a manutenção da ordem estabelecida.
Os textos de C.Marques (1994, 1998, 1999, 2001a, 2001b), por sua vez,
contribuíram para o estudo de mecanismos envolvidos na criação e manutenção de
instituições segregadas de atendimento educacional especial. Embasado em reflexões
sobre a obra de diversos autores, dentre eles Foucault (1985, 2002) e D’Antino (1998),
C.Marques demonstra que a questão da deficiência encerra todo um sentido político-
ideológico encoberto. O autor argumenta, por exemplo, que a verdadeira beneficiada
pela existência de estruturas paralelas de atendimento às pessoas com deficiência é a
sociedade que, em nome da assistência e da preparação para sua inserção, as mantém à
margem do processo social.
A compreensão de conceitos envolvidos na análise dos mecanismos geradores
da segregação foi também buscada nas obras de diversos outros autores, lidas e
debatidas ao longo da disciplina Tópicos especiais em Linguagem, Conhecimento e
Formação de Professores: Escola e Diversidade, ministrada nesta Universidade pela
Profa. Dra. Luciana Pacheco Marques no segundo semestre de 2003. Destacamos, entre
os autores que – explicita ou implicitamente – ofereceram suporte teórico para a
presente pesquisa: Larrosa (1998, 2001), Silva (2000), Ferre (2001), Certeau (2002),
Skliar (2002, 2003) entre outros. Tais autores abordam, de forma variada e, às vezes,
divergente, conceitos como diversidade, diferença, identidade e alteridade, essenciais
para a compreensão das principais questões envolvidas na noção de educação inclusiva.
Para analisar os demais conceitos vinculados ao tema e para aprofundar aspectos
diretamente relacionadas ao cotidiano das instituições escolares, aos professores e à sua
organização em torno do atendimento (ou não) às necessidades educacionais manifestas
pela diversidade de seu alunado, utilizamos, principalmente, as contribuições de
Mantoan (1997, 1998, 1999, 1999/2000, 2000a, 2000b, 2001a, 2001b, 2000, 2002a,
2002b, 2003) e de L.Marques (2001a, 2001b). Possuidoras de vasta experiência em
ensino, pesquisa e extensão na área da educação, as autoras discutem a questão da
inserção de crianças com deficiência em classes comuns e fornecem importantes
contribuições para a problematização e análise de tal processo.
Outros estudos recentes que investigam processos de inserção de crianças com
deficiência em diferentes redes de ensino por todo o Brasil, podem ser citados enquanto
fontes de consulta. Dentre eles, destacamos a pesquisa de Castro (1997) que investigou
o processo de implantação de uma proposta que, desde 1994, visa à inserção de alunos
com deficiência nas escolas comuns da Rede Municipal de Ensino de Natal/RN. Em
nota conclusiva, a autora afirmou que as questões apontadas pelos professores
entrevistados como dificuldades específicas do trabalho escolar junto a crianças com
deficiência eram, na verdade, dificuldades referentes ao ensino de todos os alunos, o que
implicaria em modificações nas condições de trabalho e na formação desses
profissionais.
Os estudos de Ferreira (2002), por sua vez, tiveram por objetivo verificar os
procedimentos adotados por uma instituição de ensino regular da rede pública na cidade
de Juiz de Fora/MG, ao buscar inserir crianças e adolescentes com deficiência em
classes comuns. A título de conclusão, a autora reconheceu os esforços empreendidos
pela escola na construção de um projeto político-pedagógico pautado em princípios de
solidariedade, cooperação, respeito ao educando, trabalho coletivo e revisão das práticas
de sala de aula, mas constatou que, na prática, esses mecanismos não foram suficientes
para promover a inserção de todos os alunos que procuravam a escola até o ano de 2000
quando foi realizada a pesquisa de campo.
A pesquisa de A.Monteiro (2003), realizada em escolas da Região Metropolitana
Belo Horizonte/MG, também abordou a questão da inserção de crianças com deficiência
em classes comuns, tomando como foco de análise a prática pedagógica dos
professores. A partir de suas observações, a autora concluiu que, não obstante as
dificuldades decorrentes das condições objetivas de trabalho, a maioria dos professores
estava mobilizada na busca de alternativas para a inclusão, criando formas para
enfrentar as contradições da prática. Por outro lado, suas tentativas não se apoiavam em
uma proposta educativa consistente e eram elaboradas num contexto onde as políticas
públicas forneciam leis contraditórias que possibilitavam interpretações dúbias e
reforçavam a idéia do ensino segregado.
Já os estudos desenvolvidos por Coelho (2003) focalizaram a Rede Municipal de
Educação de Belo Horizonte/MG, sob a perspectiva da construção de uma política
pública voltada para a inclusão escolar. A autora forneceu-nos, a partir daí, inúmeros
dados sobre o histórico do atendimento prestado às pessoas com deficiência pela
administração municipal e propôs reflexões sobre a consolidação das propostas políticas
nas escolas. Nas considerações finais da pesquisa ficou explícito que, ainda que os
documentos oficiais da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
(SMED/BH) afirmassem os princípios da educação inclusiva como norteadores para a
política educacional adotada, existiam inúmeros obstáculos à sua efetivação. Dentre
esses obstáculos, a autora destacou a manutenção de um sistema paralelo de Educação
Especial e a falta de uma rede de apoio que permitisse uma melhor articulação entre as
escolas e os diferentes níveis administrativos da SMED/BH.
Para melhor compreender a proposta político-pedagógica em vigor no sistema
educacional do município de Belo Horizonte/MG, foco de nossa pesquisa, também
optamos pela realização de um estudo sobre a consolidação do modelo escolar seriado,
contrapondo-o ao dos ciclos de formação, uma proposta alternativa de organização
escolar que, segundo Freitas (2003), tem por objetivo superar as estruturas excludentes
da lógica tradicional. A obra desse autor mostrou-se igualmente importante para a
diferenciação entre os conceitos de ciclos e de promoção automática, já que esses
costumam ser confundidos tanto pelos profissionais das escolas quanto pela população
em geral.
Além desse autor, examinamos o trabalho de Carvalho (2002) que, analisando a
escola sob a perspectiva da cultura organizacional, fez um resgate histórico de diversas
tentativas de reorganização da escola, dentre elas os projetos de implantação dos ciclos
de formação em Belo Horizonte (Escola Plural) e Porto Alegre (Escola Cidadã). Seu
estudo focalizou, por fim, o processo de construção da proposta de ciclos em duas
escolas públicas municipais em Juiz de Fora/MG. Em suas considerações finais, a
autora afirmou que a concretização de tal proposta era marcada por avanços e recuos,
mas que o reconhecimento das potencialidades da ação educativa poderia estar
fortalecendo no grupo dos educadores a consciência sobre a responsabilidade da escola,
enquanto uma organização que se negava a conferir credenciais e a certificar a exclusão
social.
A fim de alcançar a necessária compreensão dos princípios propostos pelo
Programa Escola Plural analisamos ainda documentos produzidos pela SMED/BH
(BELO HORIZONTE, 1994/2002, 1995a/2002, 1995b/2002, 1995c/2002, 1996a/2002,
1996b/2002) e outros dois documentos (BELO HORIZONTE, 2000a, 2000b) que
abordam questões especificamente relativas à educação inclusiva e à inserção de
crianças com deficiência em escolas comuns da RME/BH.
Alguns estudos já desenvolvidos sobre aspectos da implantação e do
desenvolvimento do Programa Escola Plural no cotidiano das escolas foram lidos e
forneceram elementos para um melhor entendimento do mesmo. Dentre estes,
destacamos os trabalhos desenvolvidos por Soares (2001, 2002) que tiveram por
objetivo investigar o processo de apropriação da Escola Plural pelos docentes da Rede
Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG, identificando os significados que estes
atribuíam ao Programa, partindo da crença de que mudanças educacionais implicam em
mudanças culturais.
Para empreender suas pesquisas, a autora buscou fundamentar-se em teorias
sobre inovação e mudança educativas e em teorias sobre formação docente. Seu
trabalho também perpassou as discussões sobre avaliação, cultura organizacional e
organização escolar em ciclos de formação. Para concluir, a autora retomou algumas das
principais discussões apresentadas ao longo do texto e afirmou que o movimento vivido
pelo grupo docente pesquisado – ainda que marcado por ambigüidades, incoerências e
dúvidas – indicava rupturas importantes na lógica seriada e a construção de uma nova
concepção de educação, marcada pela ampliação da noção de conhecimento, pela
preocupação com a formação humana e por uma perspectiva de trabalho mais coletivo.
Para as análises sobre os processos de reestruturação do trabalho docente a partir
da implantação do Programa político-pedagógico Escola Plural, principalmente nos
aspectos relativos à avaliação escolar, Dalben (1998), por sua vez, retomou as origens
das práticas avaliativas e as ideologias que as sustentam através dos tempos,
apresentando, posteriormente, a Escola Plural enquanto alternativa para romper com
alguns referenciais excludentes que orientam as ações educacionais.
Entre as notas conclusivas, a autora afirmou que a investigação desenvolvida
permitiu compreender que “mudar a avaliação significa, provavelmente, mudar a
escola” (PERRENOUD apud DALBEN, 1998, p. 195), pois, quando se discute a
avaliação, inevitavelmente se discute a cultura escolar e os significados socialmente
construídos que permitiram a configuração das práticas escolares.
Importante mencionar também a avaliação da implementação do Programa
Escola Plural, realizada em 2000, pelo Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais –
GAME/UFMG, em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte e a Fundação Ford, por
solicitação da SMED/BH. De acordo com o relatório de tal avaliação (DALBEN, 2000),
o Programa gerou muita polêmica por se opor a uma ordem político-pedagógica
tradicional e a referenciais historicamente construídos, tocando em questões essenciais
que iriam requerer modificações de cunho ético e político relativas a novos valores.
Além disto, os pesquisadores identificaram insegurança e insatisfação dos
profissionais das escolas com relação ao processo de implantação do Programa. Para
muitos professores, houve uma imposição legal, agravada pela desorganização
administrativa, de coordenação e de acompanhamento às escolas.
Encontramos, no citado relatório, poucas referências à questão da inserção de
crianças com deficiência em classes comuns de escolas da RME/BH, foco de nossa
pesquisa. Um dos poucos trechos referentes ao assunto, afirmava que
O Projeto Pedagógico desenvolvido pelas escolas como um todo ainda não garante que a Escola Plural seja “inclusiva” – os profissionais não estão preparados para lidar com o aluno diferente. Não existe apoio da SMED para isso e nem infra-estrutura física, no caso dos deficientes (DALBEN, 2000, p. 63, grifo da autora).
Ainda sob o enfoque da Escola Plural, o trabalho de Abreu (2003) analisou, a
partir do campo da Sociologia da Educação, as lógicas subjacentes à relação que
famílias pertencentes às camadas populares estabeleciam com a escola e a escolaridade
dos filhos no contexto de implementação do Programa. O autor percebeu que tais
famílias se posicionavam face à Escola Plural em função da avaliação que faziam do
processo de aquisição de conhecimentos que julgavam fundamentais para que os filhos
pudessem se inserir no mundo contemporâneo e no mercado de trabalho. Assim sendo,
seus valores e condutas se estruturavam de forma preponderante a partir de elementos
que configuravam uma “lógica de eficácia social”.
Com base na consulta aos trabalhos citados, pudemos identificar, enfim, uma
série de conflitos gerados pela implantação e desenvolvimento do Programa na medida
em que, segundo os pesquisadores, seus pressupostos abalaram as estruturas que,
historicamente, servem de base para a educação, exigindo um profundo repensar das
práticas cotidianas. Para além dos conflitos, esses trabalhos também ressaltam
experiências e movimentos inovadores na direção da construção de sentidos
emancipatórios para a educação.
A fim de organizar o presente trabalho de pesquisa e permitir ao leitor
acompanhar nossas reflexões em torno do tema proposto, estruturamos o texto em
quatro capítulos. Logo no primeiro capítulo, apresentamos a metodologia adotada e
caracterizamos o campo de pesquisa. Para subsidiar nossa opção metodológica,
tomamos como principal referência a obra de Orlandi (2001, 2003) sobre Análise de
Discurso (AD) na perspectiva francesa, buscando compreender os sentidos expressos
pelo discurso dos professores entrevistados e estabelecer relações entre esses e o
referencial teórico utilizado.
No segundo capítulo, fornecemos um breve histórico das relações estabelecidas
entre as sociedades ocidentais e as pessoas com deficiência, abordando a movimentação
de formações discursivas – exclusão/segregação, integração, inclusão – em torno das
mesmas e introduzindo, por fim, a análise dos sentidos construídos a partir da inserção
de crianças com deficiência em escolas comuns de ensino fundamental da Rede
Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG, cuja proposta pedagógica vinha sendo
orientada pelos princípios do Programa Escola Plural.
Ao longo do terceiro capítulo, abordamos a questão das origens históricas de
alguns dos mecanismos de seletividade que caracterizam a estrutura escolar seriada. Em
seguida, expomos as principais críticas formuladas a essa lógica e introduzimos a
discussão sobre promoção automática e ciclos de formação enquanto alternativas de
reestruturação dos sistemas escolares. Apresentamos, por fim, o Programa Escola Plural
enquanto uma proposta de intervenção nas estruturas excludentes da escola,
relacionando-o às recentes discussões sobre educação inclusiva.
O quarto capítulo é destinado à apresentação da experiência de Belo
Horizonte/MG. Nele expomos um breve histórico sobre o atendimento educacional
prestado às pessoas com deficiência pelo poder público Municipal e introduzimos a
questão da educação de pessoas com deficiência nas escolas regidas pelo Programa
Escola Plural. Nos itens subseqüentes do mesmo capítulo, desenvolvemos reflexões
sobre diversas temáticas que surgiram da análise do discurso dos professores
entrevistados em uma escola de cada uma das nove regionais do Município.
A construção dos textos contendo a análise do discurso dos professores em torno
das estratégias criadas pelas escolas, para intervir, pedagogicamente, no atendimento à
diversidade dos alunos, representou um grande desafio. Procuramos, na medida do
possível, cercar nosso olhar de muito “cuidado, porque a intenção não é melhor
controlar e classificar, mas sim melhor compreender e interagir,” conforme nos alerta
Esteban (2003, p. 32).
Para a abordagem das temáticas em questão, consultamos diversos autores,
alguns diferentes daqueles até então apresentados. Assim, para as discussões sobre a
temática “Projeto político pedagógico e trabalho coletivo: limites e possibilidades”
utilizamos, principalmente, as contribuições de Bussman (1995), Veiga (1995, 2003),
Arroyo (2000a), Alves (2001) e Cabonell (2002). A temática “Aprendizagem,
desenvolvimento e enturmação” foi analisada com base nos estudos de Braga (1995),
Mantoan (1997), Silva (1999/2000), Vygotsky (2001), L.Marques (2001a), Sampaio
(2001, 2002) entre outros. No item “Avaliação: entre a emancipação e o controle”
buscamos compreender os sentidos regulatórios e emancipatórios envolvidos nos
mecanismos avaliativos com o auxílio das discussões suscitadas por Esteban (2000,
2001, 2002, 2003), Soares (2002), Luckesi (2002), Hoffmann (2004) entre outros. Em
“Estratégias de acolhimento e intervenção pedagógica” as discussões foram
desenvolvidas com base nas contribuições de Sampaio (2001), Mantoan (2002b), Santos
(2002) e Skliar (2002). Já o último item, que discute o tema “Professores: seus saberes e
sua formação”, contou com as contribuições teóricas de Tardif (2000, 2002), Arroyo
(2002, 2004), Mazzeu (1998), Certeau (2002), entre outros.
Nas considerações finais, retomamos algumas das principais questões abordadas
ao longo das análises, com a intenção de manter aberto o debate e fomentar novas
investigações.
Enfim, procuramos familiarizar-nos com as discussões sobre diversos temas
relacionados à questão da educação inclusiva, na tentativa de compor uma rede teórica
ampla, que nos permita compreender melhor o atual estágio dos processos educacionais,
a fim de contribuir para a concretização da tão citada – e tão pouco encontrada – escola
de qualidade para todos.
1 INVESTIGANDO...
Reflexões sobre a opção metodológica que melhor atenderia aos nossos
objetivos de pesquisa apontaram a Análise de Discurso (AD) como estratégia mais
adequada, pelo fato de nosso objeto de estudo estar relacionado aos sentidos atribuídos
pelos professores à sua prática pedagógica, expressos por seu discurso.
Sem que haja qualquer pretensão de nos tornarmos analistas de discurso no curto
espaço de tempo destinado à presente pesquisa, encontramos, nos textos de Orlandi
(2001, 2003), indicações de que os sentidos que buscamos compreender não estavam só
nas palavras ou nos textos, mas na relação destes com as condições em que foram
produzidos.
Neste caso, o uso do termo discurso teve como base a noção de linguagem em
interação, considerando que a relação estabelecida entre os interlocutores e sua história,
assim como as condições de produção, são constitutivas da significação do que se diz.
Neste sentido, “a relação com a linguagem não é jamais inocente, não é uma relação
com as evidências” (ORLANDI, 2003, p. 95).
Visando alcançar a compreensão dos diversos processos constitutivos dos
sentidos em um texto, a AD apresenta-se, ao mesmo tempo, como articulação e
superação crítica de três regiões do conhecimento científico: a Lingüística, o Marxismo
e a Psicanálise (ORLANDI, 2003).
Mantendo certa distinção entre o lingüístico e o discursivo, a teoria da Análise
de Discurso considera a língua e suas regras fonológicas, morfológicas e sintáticas
enquanto “condições materiais de base sobre as quais se desenvolvem os processos
discursivos” (ORLANDI, 2001, p. 110), dialogando, sempre que necessário, com as
teorias dos mecanismos sintáxicos e dos processos de enunciação, próprias da
Lingüística.
A Análise de Discurso também pressupõe a determinação histórica dos
processos de significação a partir de noções do materialismo histórico, articulando ainda
a noção de ideologia, cuja principal fonte são os trabalhos de Michel Foucault. Essa área
do conhecimento contribuiu, pois, com a noção de que todo discurso deriva da relação
com uma exterioridade que pode ser chamada de condições de produção. Segundo
Orlandi (2001, p. 218), tais condições de produção incluem “tanto fatores da situação
imediata ou situação de enunciação (contexto de situação, no sentido estrito) como os
fatores do contexto sócio-histórico, ideológico (que é o contexto de situação, no sentido
lato).”
Essas regiões do conhecimento científico também são atravessadas por uma
concepção do sujeito de natureza psicanalítica. Tal princípio relativiza a noção de
sujeito, na medida em que não pressupõe “nem um sujeito absolutamente dono de si,
nem um sujeito totalmente determinado pelo que lhe vem de fora” (ORLANDI, 2001,
p. 189). Tal relativização não é absoluta, visto que o fato de assumirmos papéis e
discursos diferentes quando falamos em situações diferentes, com pessoas diferentes,
não faz com que mudemos completamente nosso discurso nem nos transformemos em
outros, perdendo nossa identidade em cada nova relação de linguagem. O que ocorre,
nas diferentes relações, é uma modulação do nosso discurso e identidade.
Associada à questão da modulação do discurso está a noção de antecipação,
segundo a qual o sujeito tem a capacidade de regular sua argumentação a partir de uma
previsão dos efeitos que ele pensa produzir em seu interlocutor. Esse jogo imaginário
também contribui para a constituição das condições em que o discurso se produz.
Apesar de ser capaz de uma certa modulação e antecipação de seu discurso, o
sujeito – interpelado pela língua, pela história e pela ideologia – tem acesso a apenas
uma parte do que diz. Isso porque “o sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem
acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele” (ORLANDI,
2003, p. 32).
O interdiscurso ou memória discursiva faz parte da produção do discurso.
Através dele, são disponibilizados sentidos já ditos por alguém, formulações feitas e já
esquecidas, que estão na base do dizível e afetam o modo como o sujeito significa em
uma dada situação discursiva. O esquecimento dessas formulações é chamado
esquecimento ideológico e é por meio dele que “temos a ilusão de sermos a origem do
que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes” (ORLANDI,
2003, p. 35).
As palavras mudam de sentido de acordo com as posições daqueles que as
empregam, ou seja, seu sentido deriva das formações discursivas em que se inscrevem.
Deste modo, os sentidos sempre são determinados ideologicamente, não existindo
sentidos literais. “Por definição, todos os sentidos são possíveis e, em certas condições
de produção, há a dominância de um deles” (ORLANDI, 2001, p. 144, grifo da autora).
No procedimento de análise faz-se, pois, necessário remeter os textos
disponíveis ao discurso e esclarecer as relações deste com as formações discursivas.
Para a Análise de Discurso, nenhuma formação discursiva deriva diretamente do sujeito,
visto que não são somente as intenções deste que determinam o dizer. Há sempre uma
articulação entre a intenção do sujeito e as convenções sociais.
Vale ressaltar que diversas formações discursivas podem, segundo Orlandi
(2001), atravessar um mesmo texto, organizando se em função de uma formação
discursiva dominante. Toda formação discursiva, por sua vez, se caracteriza pela relação
com a formação ideológica, que pode ser caracterizada como
um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem individuais nem universais mas se reportam, mais ou menos diretamente, às posições de classe em conflito umas com as outras. Dessas formações ideológicas, fazem parte, enquanto componentes, uma ou mais formações discursivas interligadas. Segundo essas considerações, a relação entre as condições sócio-históricas e as significações de um texto é constitutiva e não secundária (ORLANDI, 3001, p. 27, grifos da autora).
Levando-se em conta tais mecanismos de funcionamento da linguagem, a AD
pretende, para além das evidências, “ouvir, naquilo que o sujeito diz, aquilo que ele não
diz, mas que constitui igualmente o sentido de suas palavras” (ORLANDI, 2003, p. 59).
Os analistas de discurso procuram, a partir do dito e de suas condições de produção,
delinear as margens do não-dito que se mostrem relevantes para a situação significativa
em análise.
Nesse sentido, o silêncio – que pode ser fundador, constitutivo ou local –
também significa. De acordo com Orlandi (2003), há todo um espaço de interpretação
entre o dizer e o não dizer no qual o sujeito se move. A análise, baseada nos conceitos
discursivos e em seus procedimentos de análise, busca dar visibilidade a esse espaço.
Recorrendo aos princípios acima expostos, buscamos construir um dispositivo
analítico que nos auxiliasse a compreender os sentidos que os(as) professores(as),
coordenadores(as) pedagógicos(as), diretores(as) e vice-diretores(as) de uma escola de
ensino fundamental de cada uma das nove regionais da Rede Municipal de Educação de
Belo Horizonte/MG atribuíam aos princípios do Programa Escola Plural, à inclusão e à
relação desses com a inserção de crianças com deficiência em classes comuns.
Iniciamos o trabalho de análise pela configuração do corpus discursivo e pela
demarcação de seus limites através de recortes, num movimento constante de ir-e-vir
entre a teoria e o corpus. Dessa forma procuramos, em cada discurso, os gestos de
interpretação, explicitando o modo de produção de sentidos.
Vale ressaltar que, para a Análise de Discurso, não se tomam os textos – ou, no
caso, os relatórios das visitas, as situações de entrevista e suas transcrições ou as
respostas aos formulários – como pontos de partida ou de chegada absolutos. Esses são,
apenas, “uma peça de linguagem de um processo discursivo bem mais abrangente”
(ORLANDI, 2003, p. 72), unidades que individualizam um conjunto de relações
significativas, resultantes de uma complexa articulação linguístico-histórica.
Textos e sujeitos são, necessariamente, marcados pela incompletude, pela
dispersão e pela heterogeneidade, pois são afetados por distintas formações discursivas
e por diferentes posições do sujeito. Assim sendo, o processo de produção de sentidos
está sujeito ao deslize, havendo sempre um “outro” possível que o constitui.
Há, em qualquer discurso, uma constante tensão entre os chamados processos
parafrásticos e os processos polissêmicos. A paráfrase representa tudo aquilo que já foi
dito, que se mantém, a produtividade, o mesmo, resgatado pela memória discursiva.
Regida pelo processo parafrástico, a produtividade nos mantém numa constante
(re)elaboração de variedades do mesmo. Nas palavras de Renato Russo (1986), “sei que,
às vezes, uso palavras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas?”
Decorre daí a idéia de que a paráfrase é a matriz do sentido, “pois não há sentido sem
repetição” (ORLANDI, 2003, p. 38).
Por outro lado, o que temos na polissemia é o jogo com o equívoco. Ela desloca
o “mesmo” e aponta para a ruptura de processos de significação, constituindo o espaço
da criatividade. Segundo Orlandi (2001), paráfrase e polissemia são processos
igualmente atuantes e determinantes para o funcionamento da linguagem, pois se não
houvesse possibilidades de o sentido ser múltiplo, não haveria necessidade de dizer.
No caso do discurso pedagógico (DP), objeto de nossas análises, predomina o
que poderíamos chamar de polissemia contida. Nesse tipo de discurso, de caráter
autoritário, a participação dos interlocutores é reduzida e, freqüentemente, eliminada.
Em relação à escola, além da seleção que decide, de antemão, quem está ou não em
condições de fazer parte dela, existe um processo interno que não é o da simples
exclusão, mas de dominação do outro (ORLANDI, 2001).
Para a AD, através do caráter autoritário do discurso pedagógico, o professor
busca manter-se numa posição de poder e autoridade. Nesse sentido, ensinar aparece
como inculcação de questões que, apesar de seu caráter fortuito e ocasional, são
imperativamente assumidas como necessárias e legítimas. Há, pois, um constante jogo
ideológico produzindo a “dissimulação dos efeitos de sentido sob a forma de
informação, de um sentido único, e na ilusão discursiva dos sujeitos de serem a origem
de seus próprios discursos” (ORLANDI, 2001, p. 32).
O fato de estar vinculado à instituição escolar mantém o discurso pedagógico
em seu caráter autoritário e circular, visto que, à medida que assume como modelos
obrigatórios as convenções pelas quais a escola atua, tal discurso se garante,
consolidando a instituição em que se origina e para a qual tende. No espaço escolar,
dizer e saber se equivalem. Assim sendo, “o professor é institucional e idealmente
aquele que possui o saber e está na escola para ensinar; o aluno é aquele que não sabe e
está na escola para aprender” (ORLANDI, 2001, p. 31).
De acordo com Orlandi (2001, p. 35), para promover rompimentos com a
circularidade do discurso autoritário, próprio da instituição escolar, faz-se necessário, de
um lado
questionar os implícitos, os locutores, o conteúdo, a finalidade, o sentido dado ao ensino pelo DP do poder e, de outro, fazer a mesma coisa com o discurso que nós reproduzimos internamente no trabalho pedagógico. Isto é, questionar as condições de produção desses discursos.
As possibilidades de crítica encontram-se, então, na contestação do caráter
informativo e da neutralidade do discurso pedagógico, buscando explicitar suas
contradições e atingir seus efeitos de sentido. Isso porque é através dos implícitos que
informações aparecem como predeterminadas, não deixando espaço para que se
explicitem as articulações necessariamente existentes entre o discurso e o seu contexto
histórico-social.
Foi esse tipo de questionamento que buscamos promover ao longo das análises,
tendo sempre em mente que, enquanto participantes e mantenedores da instituição
escola, estamos igualmente sujeitos à reprodução desse discurso autoritário, ainda que
tenhamos a intenção de problematizar nossa atuação.
Para a construção do presente estudo, durante as visitas às escolas, utilizamos
observações de campo e relatórios, entrevistas coletivas semi-estruturadas – que foram
gravadas e transcritas – além de formulários com informações básicas sobre a escola
(ANEXO A), sobre os profissionais entrevistados (ANEXO B) e sobre a comunidade
atendida (ANEXO C).
Em cada escola pesquisada entrevistamos um número variável de profissionais,
perfazendo um total de trinta e cinco participantes5, dentre eles:
- nove coordenadores(as) pedagógicos;
- vinte e três professores(as) em cuja sala de aula havia, no mínimo, uma
criança com deficiência;
- dois(duas) diretores(as);
- um(a) vice-diretor(a);
Para fins do presente trabalho, deste ponto em diante nomeamos os profissionais
acima especificados de professor(es) e omitimos seu nome verídico, a fim de
resguardar-lhes o anonimato, em conformidade com acordos estabelecidos junto aos
mesmos.
Além disso, nos relatos sobre experiências junto a crianças com deficiência, não
fizemos referências a seus nomes verídicos ou realizamos distinções de gênero.
Optamos pelo masculino e pela caracterização geral do tipo de deficiência descrito pelos
entrevistados. Quando necessário, utilizamos pseudônimos.
A fim de ter acesso a diferentes experiências sociais e organizacionais,
selecionamos uma escola de ensino fundamental em cada uma das nove regiões
administrativas, destacadas em cores diferentes no mapa do município de Belo
Horizonte/MG (ANEXO D). A seleção dessas escolas obedeceu a dois critérios básicos:
a) inserção de, no mínimo, uma criança com deficiência em sala de aula
comum, no turno pesquisado;
b) autorização dos professores para o registro da(s) entrevista(s) em áudio,
visando à posterior transcrição.
5 Este número refere-se aos participantes de entrevistas gravadas e transcritas. As conversas telefônicas e informais, não registradas em meio magnético, não foram contabilizadas.
A abordagem de cada uma das nove escolas ocorreu de forma variável.
Inicialmente, de posse da listagem com nome, telefone e endereço das nove Gerências
Regionais de Educação (GERED) e de suas respectivas escolas, tentamos,
aleatoriamente, um contato telefônico com os(as) diretores(as).
Uma segunda estratégia foi a busca da intermediação do Centro de
Aperfeiçoamento de Profissionais da Educação (CAPE) para o contato com escolas que
tivessem alguma experiência de trabalho junto a crianças com deficiência. Uma terceira
estratégia foi o contato com profissionais que, até então, atendiam os alunos com
deficiência em salas de recursos vinculadas à Rede Municipal de Educação e com
profissionais que atendiam a estudantes com deficiência motora no Hospital do
Aparelho Locomotor Sarah Kubitschek6 – Belo Horizonte. Através desses contatos
obtivemos inúmeras sugestões de escolas que, além de trabalharem há pelo menos um
ano junto a crianças com deficiência, foram caracterizadas como instituições abertas ao
aperfeiçoamento organizacional visando a um melhor atendimento às necessidades
educacionais de seus alunos.
As visitas às escolas se estenderam de março a novembro de 2004.
Transcrevemos um total aproximado de dezessete horas de entrevistas coletivas que,
associadas às observações registradas nos relatórios de campo, às informações dos
formulários e às teorias que nos ofereceram suporte, constituíram o corpus discursivo
objeto de nossa análise.
A gravação das entrevistas coletivas foi efetuada mediante a assinatura de
consentimento (ANEXO E) pelo(a) diretor(a) ou vice-diretor(a) das escolas envolvidas
e mediante a garantia do nosso compromisso (ANEXO F) de não divulgação das fitas
fora do ambiente acadêmico e de não identificação nominal das instituições escolares ou
dos professores entrevistados nos relatórios de pesquisa.
Em geral, a abordagem das temáticas foi feita na forma de debates e relatos de
experiências em pequenos grupos. No decorrer das entrevistas, procuramos nos manter
numa função mediadora, introduzindo algumas questões norteadoras de interesse para a
pesquisa (ANEXO G), incentivando a participação de todos os envolvidos. Cientes da
6 A Rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor é uma rede de hospitais públicos, que presta serviços de ortopedia e de reabilitação. Na ocasião, era constituída por seis unidades hospitalares localizadas em Brasília (DF), Salvador (BA), São Luís (MA), Belo Horizonte (MG), Fortaleza (CE) e Rio de Janeiro (RJ). O atendimento pedagógico era realizado por pedagogos hospitalares, professores de artes e de educação física (LOUREIRO, 2002).
impossibilidade de um pesquisador alcançar um completo distanciamento com relação
ao seu objeto de pesquisa, procuramos evitar a manifestação de opiniões pessoais, para
que elas não interferissem, demasiadamente, no discurso dos professores, tendo em vista
que, através do mecanismo de antecipação, os sujeitos tentam prever o sentido que suas
palavras produzirão em seu interlocutor e buscam, segundo Orlandi (2003), regular sua
argumentação e seu modo de dizer, de acordo com o efeito que pensam produzir em seu
ouvinte.
1.1 CARACTERIZAÇÃO DAS ESCOLAS PESQUISADAS
Nos próximos itens, fizemos uma breve descrição das principais informações
obtidas – através de observações de campo e entrevistas – sobre cada uma das nove
unidades escolares pesquisadas no que tange à sua estrutura física e material, aos
aspectos sócio-econômicos relativos à comunidade e bairros atendidos, às principais
iniciativas em torno da organização do trabalho escolar, em nível de formação inicial e
continuada dos professores entrevistados e, por fim, às características das crianças com
deficiência atendidas no turno pesquisado.
Substituímos o nome verídico de todas as escolas pelo nome próprio de
renomadas escritoras brasileiras, a fim de que lhes fosse resguardado o anonimato.
Optamos ainda por suprimir o nome de projetos elaborados pelos professores e que,
porventura, pudessem contribuir para a identificação das instituições pesquisadas.
1.1.1 Escola Municipal Adélia Prado
Localizada num bairro de classe sócio-econômica média, a Escola Municipal
Adélia Prado contava com serviços de água potável, esgoto, eletricidade, telefones
públicos e particulares, entre outros. A região dispunha de uma ampla variedade de
linhas de transporte coletivo e de um variado comércio de pequeno e grande porte.
Na ocasião da visita, esta escola que havia sido recentemente reformada e
pintada em tons alegres, promovia um trabalho de conscientização dos alunos em torno
da conservação de seus espaços de convivência até então depredados e pichados.
De acordo com o professor entrevistado, há alguns anos os alunos provenientes
do próprio bairro evadiram da Escola Municipal Adélia Prado e passaram a buscar
estabelecimentos particulares de ensino visto que, após a implantação da Escola Plural,
a escola passou a atender aos jovens provenientes de diversas favelas e aglomerados da
cidade. Esse fato mostrou-se de grande relevância para a reconstituição da identidade da
escola e de seus professores.
A distribuição dos professores pelas turmas era feita por disciplinas. No turno
pesquisado, funcionavam dez turmas que atendiam alunos na faixa etária de doze a
quinze anos, além de alguns que ultrapassavam essa faixa. Cinco alunos com deficiência
auditiva estavam matriculados em uma turma comum de oitava série7 e assistiam às
aulas junto com alunos ouvintes, com o apoio de um intérprete de Língua Brasileira de
Sinais (LIBRAS).
Tais alunos foram inseridos em uma turma menor, descrita como mais tranqüila,
objetivando garantir melhor qualidade da atenção a eles dispensada. Segundo relatos,
grande parte dos colegas que estudava junto com alunos com deficiência auditiva
aprendeu a se comunicar com eles por sinais. Aos professores foram oferecidos cursos
de LIBRAS por parte da Prefeitura, em turno oposto ao de trabalho, entretanto, devido à
jornada dupla de trabalho e contando com o apoio constante dos intérpretes, a maioria
dos professores das classes comuns não aderiu a esse tipo de formação.
O professor entrevistado, com formação em nível superior, tinha dez anos de
exercício do magistério, tempo coincidente com sua experiência no trabalho junto a
alunos com deficiência auditiva. Teve, em sua formação continuada, oportunidades de
assistir a palestras, ler livros, freqüentar curso de capacitação oferecido pelo CAPE,
além de conversar com fonoaudiólogos e professores da sala de recursos responsáveis
pelo acompanhamento dos alunos com deficiência auditiva inseridos na escola.
Um coordenador pedagógico era responsável pela organização geral do turno e
pelo atendimento aos professores, pais e alunos. Os professores cumpriam sua carga
horária em sala e, em seus quatro horários de projeto, realizavam planejamentos ou se
revezavam em escalas para substituição de professores faltosos.
Na tentativa de reduzir os conflitos gerados pelas dificuldades em conciliar o
comportamento dos alunos provenientes das favelas e aglomerados às expectativas da
escola, há cerca de três anos havia sido adotada, por todos os professores do turno, a
dinâmica de oficinas pedagógicas oferecidas uma vez por semana, nos dois últimos
7 O uso do termo “série” ao invés de “ano do ciclo” reflete a opção adotada pelos entrevistados.
horários. Todos os professores participavam no horário de tais oficinas, oferecendo
atividades variadas e auxiliando na redistribuição dos alunos em grupos menores. Havia
oficinas de origami, informática, bijuterias, culinária, esportes, xadrez, Português,
Matemática, entre outras.
A distribuição dos alunos pelas oficinas era determinada pelos professores,
objetivando promover a socialização entre estudantes de diferentes turmas da mesma
faixa etária, enquanto os alunos mais fracos são encaminhados prás oficinas de
Português e de Matemática. Quando eles já adquiriram aquele básico que a gente
queria, aí eles vão prás outras oficinas (fala de professor). Segundo relatos, à medida
que estreitavam os laços de convivência durante atividades mais agradáveis e
interessantes, melhorava também a disciplina e o relacionamento entre professores e
alunos no cotidiano das salas de aula.
A enturmação dos estudantes, além de ocorrer pelo princípio da idade
cronológica, obedecia ao critério do domínio de conteúdos. Havia sido adotado o
sistema de progressão continuada da sexta à oitava série, com possibilidade de retenção8
na passagem da oitava série para o segundo grau.
Os alunos com deficiência auditiva provinham de escolas especiais, nas quais
aprenderam LIBRAS antes de serem inseridos em turmas comuns. Na ocasião da
entrevista contavam ainda com um atendimento paralelo feito pelos profissionais da sala
de recursos. Dos cinco alunos matriculados no turno pesquisado, três eram alfabetizados
e, segundo avaliação da escola, dois apresentavam maiores dificuldades no processo de
desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita e necessitavam permanecer mais
tempo na oitava série.
Ainda quanto à organização, uma vez por semana ocorriam as reuniões
pedagógicas, cuja pauta era definida pelos professores junto à coordenação pedagógica
e à direção. Na ocasião da visita, estudos e debates vinham sendo realizados em torno
da construção e redação do projeto político-pedagógico da escola que, segundo relatos,
estava permanentemente em construção.
Por fim, a ênfase de tal projeto era a demanda pela inclusão que envolvia não só
a questão do atendimento a alunos com deficiência, mas, principalmente, àqueles
provenientes das favelas e aglomerados cuja marcante diferença de hábitos e
comportamentos com relação às expectativas da escola vinha gerando uma série de
conflitos.
1.1.2 Escola Municipal Ana Maria Machado
Em dois momentos distintos, a Escola Municipal Ana Maria Machado nos foi
indicada como instituição avançada em termos de flexibilidade, organização coletiva e
experiência no que tangia à inserção de crianças com deficiência em turmas comuns.
A escola estava instalada num prédio novo, construído em estrutura pré-
fabricada, tendo a acessibilidade aos principais espaços garantida por rampas e
banheiros adaptados. A área disponível para recreação era ampla, pois, além do pátio
coberto, onde eram feitas a entrada e as apresentações artísticas, havia uma área
descoberta e uma quadra.
Estava localizada numa rua asfaltada, num bairro residencial de nível sócio-
econômico predominantemente baixo, cuja atividade econômica era, basicamente, o
comércio de pequeno porte. De acordo com levantamento feito pela escola no ano
anterior, cerca de quarenta e sete por cento dos pais ou responsáveis pelos estudantes
estavam desempregados ou trabalhavam no mercado informal. A região era muito bem
servida por diversas linhas de transporte coletivo e tinha água potável, esgoto, rede
elétrica, telefones públicos e particulares.
O prédio ocupava uma extensa área e dispunha de doze salas de aula, biblioteca,
estacionamento, laboratório, cantina, uma pequena lanchonete para comercialização de
merenda, pátio, quadra, uma sala reservada para a instalação de computadores, salas de
audiovisual, de professores, de direção, de coordenação pedagógica, de secretaria, entre
outros espaços.
No turno pesquisado, eram atendidos alunos na faixa etária entre seis e oito anos,
sendo cinco deles com deficiência: um com síndrome de Down, dois com visão
subnormal e outros dois alunos sem laudo definido e que, segundo seus professores,
apresentavam deficiência mental ou múltipla.
Dentre os professores que participaram das entrevistas, um cursou o Normal
Superior e os demais possuíam diploma de curso superior em áreas variadas. O tempo
8 Os profissionais atuantes na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte costumam utilizar o termo “retenção” ao invés de “reprovação”.
de experiência dos mesmos no exercício do Magistério variava de quatro a quinze anos,
enquanto a atuação junto a crianças com deficiência variava de dois meses – caso de um
professor recém-admitido – a três anos.
Entre os dezoito professores lotados na escola foram eleitos dois coordenadores,
responsáveis pela organização pedagógica. Em geral, os professores se organizavam em
quartetos, sendo um professor-referência por turma e um professor itinerante que
passava por três turmas. A distribuição das disciplinas curriculares variava de um
quarteto para outro. Em alguns casos, o professor-itinerante trabalhava com Educação
Artística, enquanto outro trabalhava com projetos variados, envolvendo, por exemplo,
questões ecológicas.
Para a organização das turmas era utilizada a prática dos remanejamentos
efetuados a partir de observações e avaliações que cada professor realizava junto à sua
turma nos primeiros meses de aula. Após a discussão de tais resultados, buscava-se a
reorganização dos alunos em grupos mais “homogêneos”. Quanto às crianças com
deficiência, houve critérios diferentes de acordo com as “limitações” identificadas. No
caso das crianças cuja dificuldade estava restrita à visão subnormal, diante da
expectativa em torno de possível aprendizagem, houve o remanejamento para outra
turma. As crianças cuja dificuldade envolvia a deficiência mental foram mantidas em
suas salas originais, devido à ênfase na questão da socialização com os pares e à baixa
expectativa com relação às suas possibilidades de aprendizagem.
Foram relatadas diversas estratégias para o atendimento paralelo de alunos que,
segundo diagnóstico da escola, apresentavam dificuldades de aprendizagem. Uma delas
era a organização de uma escala de horários para que um psicopedagogo atendesse a
esses alunos, individualmente ou em pequenos grupos, no horário de aula, fora de suas
salas de origem.
Nessa mesma direção, um projeto de intervenção previa a reorganização dos
alunos para o trabalho de alfabetização, duas vezes por semana, durante uma hora.
Neste projeto, os dois coordenadores pedagógicos selecionavam, em cada turma, os
alunos que destoavam da média geral de habilidades e formavam grupos distintos para
atendimento paralelo: um primeiro, composto por alunos que ainda nem conhecem
letras, um outro grupo composto por alunos que já lêem, mas estão em sala de meninos
que não são leitores (falas de professores), enquanto os demais alunos permaneciam em
sala com seus respectivos professores. Existia ainda uma proposta de atendimento às
crianças com deficiência, uma vez por semana, pelo professor de Educação Artística.
Objetivando à reestruturação curricular, os professores se organizavam em
grupos de quatro pessoas, responsáveis pelo estudo, seleção e programação de
conteúdos, atividades e projetos de diversas áreas do conhecimento, posteriormente
expostos e avaliados por todo o coletivo. O encontro dos professores ocorria,
semanalmente, em um de seus horários de planejamento. A meta era trabalhar os
conceitos básicos de cada área através de projetos, propiciando uma participação mais
ativa dos alunos e evitando que a ênfase das intervenções recaísse apenas no Português
e na Matemática.
Dando seqüência a tais planejamentos, antes das reuniões pedagógicas todas as
turmas eram reunidas no pátio da escola e, a cada semana, uma turma apresentava às
demais alguma atividade que tivesse sido realizada em sala. Tal horário também era
destinado a apresentações culturais, gincanas, abertura ou finalização de projetos etc.
Quanto à relação da escola com a comunidade local, havia propostas variadas.
Uma delas era a elaboração de uma cartilha, expondo a proposta pedagógica da escola
aos pais, para que fosse analisada e discutida. Havia também um Centro Cultural,
composto por alguns membros da escola e por uma maioria da comunidade, que
promovia atividades diversas aos finais de semana, como oficinas – de balé, circo,
teatro, capoeira, bordado, bijuteria etc – escolinha de futebol, apresentações culturais,
além de debates mensais sobre temas de interesse da comunidade, finalizados com a
confraternização dos presentes em lanches compartilhados.
1.1.3 Escola Municipal Bárbara Heliodora
A Escola Municipal Bárbara Heliodora estava localizada em uma ampla avenida
asfaltada, no ponto central de um bairro residencial, cujo nível sócio-econômico era
predominantemente baixo, com pequenas áreas de favela. A principal atividade
econômica da região era o comércio e a população local era bem servida de linhas de
ônibus. Contava com cerca de sete estabelecimentos públicos de ensino fundamental,
além de pequenos estabelecimentos particulares de Educação Infantil.
Havia posto de saúde, agência dos Correios, posto policial, telefones públicos e
particulares, serviços de água e eletricidade disponíveis no bairro, mas o esgoto da
escola ainda era armazenado em fossas.
O prédio da escola apresentava-se bem conservado e limpo. No bloco principal
havia salas de aula, de audiovisual, de direção, de secretaria e de coordenação
pedagógica. Num bloco anexo funcionavam outras salas de aula, laboratório,
brinquedoteca e biblioteca. Devido à inserção de crianças com deficiência física, os
banheiros foram adaptados e a quadra da escola havia sido recentemente reformada,
visando à construção de uma rampa para facilitar-lhe o acesso, antes feito por escadas.
Segundo relatos, a realização de atividades ao ar livre em períodos de chuva ou de sol
intenso era prejudicada pelo fato de a quadra e de o pátio serem descobertos, por isso, a
cobertura da quadra foi uma das prioridades estabelecidas para a aplicação de verbas
recebidas pela escola no ano de 2004.
As treze turmas que funcionavam no turno pesquisado atendiam alunos entre
seis e oito anos. Para o atendimento a essa faixa etária era adotado o sistema de um
professor-referência – responsável pelos conteúdos de Português, Matemática, História,
Geografia e Ciências – por turma, além de professores-apoio que transitavam por
diversas salas com atividades de Literatura, Educação Artística e Educação Física.
Durante as entrevistas foram relatadas experiências junto a três alunos com
deficiência, sendo dois com síndrome de Down e um com mielomeningocele. Também
foram relatadas situações, envolvendo alunos de outro turno com deficiência ou com
dificuldades de aprendizagem, agrupados em uma “turma-projeto9”.
Assim como nas escolas anteriores, todos os professores entrevistados possuíam
curso superior na área educacional, sendo que dois deles haviam feito especialização em
Psicopedagogia. Sua experiência variava de quatorze a vinte e oito anos de exercício do
magistério, sendo que a atuação junto a crianças com deficiência variava entre cinco
anos e um ano e meio.
Nessa escola a troca informal de experiências entre colegas de serviço havia sido
apontada enquanto tática emergencial na construção de mecanismos para atendimento
9 A partir do discurso dos professores entrevistados podemos entender por “turma-projeto” ou “turma de projeto” uma modalidade de atendimento adotada nas escolas Rede Municipal de Belo Horizonte com vistas a agrupar alunos com dificuldade, com defasagem de conteúdo [...], que não venceram determinadas etapas (E. M. Zélia Gattai) e não são considerados aptos a serem enturmados junto aos demais alunos de sua idade.
aos alunos com deficiência. Palestras realizadas por profissionais do Hospital do
Aparelho Locomotor Sarah Kubitschek – Belo Horizonte, na própria escola e na sede do
hospital, foram apontadas como a iniciativa que melhor atendeu aos anseios de
formação dos professores ainda que tivessem ocorrido em número reduzido.
A participação no Seminário Internacional Sociedade Inclusiva, promovido pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e em seminários sobre
inclusão oferecidos pela Secretaria de Educação, além da leitura de livros e pesquisas
via internet foram outras alternativas de formação citadas. Além dessas, dois
professores afirmaram ter cursado uma disciplina em seus cursos de graduação ou
especialização com enfoque específico na questão da deficiência ou das dificuldades de
aprendizagem.
1.1.4 Escola Municipal Cecília Meireles
De acordo com indicações de profissionais da sala de recursos, na ocasião das
entrevistas, a direção da Escola Municipal Cecília Meireles estava buscando
desenvolver uma proposta pedagógica avançada, fato que, associado à presença de
crianças com deficiência, configurou a instituição enquanto campo adequado para nossa
pesquisa.
Instalada num prédio antigo, recentemente reformado, a escola estava localizada
num bairro residencial, de nível sócio-econômico predominantemente baixo, nos limites
da cidade. O aspecto físico da escola era bastante alegre. Logo na entrada, pequenas
estátuas de animais e personagens de contos de fadas enfeitavam uma área gramada.
Havia uma série de brinquedos de estrutura metálica e de alvenaria, como casinhas e
grandes labirintos para as crianças brincarem. Numa construção de tijolos e grandes
portas de madeira encontrava-se a brinquedoteca, recentemente construída.
Apenas uma linha de transporte coletivo atendia diretamente à população da
região onde estava localizada a escola. O bairro era servido de água potável, esgoto,
eletricidade, telefonia pública e particular. A atividade econômica predominante na
região também era o comércio de pequeno porte. Havia um posto de saúde nas
imediações e a escola contava com patrulhamento regular por parte da guarda municipal
e da polícia militar.
O prédio da escola dispunha de doze salas de aula, todas equipadas com
espelhos, uma caixa de brinquedos e outra de livros de literatura infantil. Durante o
recreio, a biblioteca ficava aberta para que as crianças interessadas pudessem ler ou
assistir a filmes ou a desenhos animados exibidos na TV. Alguns espaços como cantina,
banheiros, pátio, quadra, secretaria, sala de professores, coordenação e direção foram ou
estavam sendo reformados e adaptados para oferecer mais praticidade, conforto e
acessibilidade.
No turno pesquisado, eram atendidos alunos de quatro a oito anos, sendo três
deles com deficiência confirmada por laudos médicos: um com paralisia cerebral que
comprometeu parcialmente a visão, o movimento de um de seus membros superiores e
dos dois inferiores, além da fala; um segundo, com paralisia facial associada à
hiperatividade e um outro com diagnóstico impreciso, apresentando dificuldades na fala
e aparente deficiência mental, associada a surtos psicóticos constantes, controlados à
base de medicação. Foi relatado ainda o exemplo de uma criança com suspeita de
autismo e hiperatividade.
Quanto à formação, um dos professores cursou o Normal Superior, a maioria
deles tinha diploma de graduação e dois deles freqüentaram também curso de
especialização. Sua experiência no exercício do Magistério era bastante diversa,
variando de dez a trinta e dois anos, enquanto a atuação profissional junto a crianças
com deficiência variava de um a doze anos. Além disso, um dos entrevistados relatou
experiência de dois anos e meio de trabalho numa Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais (APAE).
O compromisso da direção da escola com a formação continuada dos professores
foi um dos itens ressaltados pelos entrevistados. De acordo com os relatos, uma vez por
mês, durante a reunião pedagógica, era feito um trabalho de formação através de
debates, estudos em grupo ou palestras, cujo foco principal era alfabetização, integrando
a Educação Infantil ao ensino fundamental. Além disso, era comum a liberação de
professores, coordenadores e da própria direção da escola para participação em cursos
externos. Outro dado interessante era o fato de o diretor e vice-diretor da escola terem
artigos sobre Educação Infantil e alfabetização recentemente publicados em revistas
educacionais.
Havia dezesseis professores lotados na escola e dois coordenadores, sendo que
um deles tinha uma carga horária de duas horas em sala, além da função de substituir
professores faltosos. Ao outro cabia a organização pedagógica da escola, além da
substituição de professores em caso de necessidade. Para tais substituições existia,
ainda, um sistema de escala de revezamento entre os professores.
A prática mais adotada com relação à distribuição dos professores entre as
turmas era a do professor-referência, que trabalhava os conteúdos de Português,
Matemática, Natureza e Sociedade, apoiado por um professor que transitava entre as
turmas com atividades de Educação Artística, Música e Movimento.
Para a enturmação das crianças, no início do ano era utilizado o critério da idade
cronológica, associado à tentativa de reduzir a heterogeneidade das turmas através de
arranjos baseados no domínio das habilidades de leitura e escrita.
Também nesta escola foram relatadas algumas estratégias que objetivavam
reduzir o número de crianças que chegavam ao final do primeiro ciclo sem o domínio
das habilidades de leitura e escrita. A principal delas era o reagrupamento dos alunos,
três vezes por semana. Nestas ocasiões, as idades eram misturadas e os alunos
reorganizados de acordo seu nível de alfabetização.
Com relação às crianças com deficiência, tanto no caso daquela que apresentava
surtos psicóticos – e cuja agitação variava ao longo do dia, de acordo com os ciclos de
efeito da medicação que usava – quanto no caso da outra, com paralisia cerebral, havia
sido elaborado um planejamento paralelo, com atividades a serem executadas dentro e
fora de sala, nos horários de aula, sempre acompanhadas por estagiárias.
As reuniões pedagógicas realizadas na escola seguiam um planejamento mensal
a fim de garantir espaços para formação de professores, para o planejamento das ações
coletivas, para discussão de questões administrativas e pedagógicas e para a preparação
das atividades que eram realizadas no pátio em momentos semanais de socialização,
durante os quais se reuniam as turmas, para assistirem a apresentações diversificadas,
como teatros, músicas, leitura de histórias, entre outras.
A relação da Escola Municipal Cecília Meireles com a comunidade constituía-se
por reuniões para apresentação de professores e entrega de relatórios, bem como por
festas em datas comemorativas, ao longo do ano. Um relativo distanciamento era
justificado pelo fato de grande parte dos alunos residirem em bairros distantes.
Dependiam, por isso, de transporte escolar fornecido pela Prefeitura que os
recolhia em pontos estratégicos espalhados por seus bairros de origem. Mesmo o
transporte dos pais nos dias em que era necessária sua presença na escola era feito
através do ônibus fornecido pela Prefeitura, visto que sua situação financeira dificultava
os deslocamentos independentes.
1.1.5 Escola Municipal Lygia Fagundes Telles
Referências sobre a E. M. Lygia Fagundes Telles nos foram fornecidas por
profissionais da sala de recursos, sob a justificativa de que atendiam a um número
considerável de crianças com deficiência – cerca de seis – no turno pesquisado.
Inicialmente constituído de doze salas de aula, o prédio da escola foi sendo ampliado
aos poucos, atingindo a capacidade para atender a vinte turmas. Devido a tais
ampliações, algumas reformas estavam sendo executadas na ocasião da pesquisa,
visando à readaptação de espaços como cantina, sala de professores, banheiros, pátio e
estacionamento proporcional ao número de alunos e professores. A quadra estava sendo
coberta e pudemos perceber que uma rampa, instalada ao lado dos degraus da escada, na
entrada da escola, tinha passado a fazer parte do cenário há pouco tempo,
provavelmente refletindo as recentes discussões sobre acessibilidade.
A E.M. Lygia Fagundes Telles estava localizada num bairro residencial de nível
sócio-econômico predominantemente baixo, cuja principal atividade econômica era o
comércio de pequeno porte. Nos arredores havia ruas calçadas e, em sua maioria,
asfaltadas. Havia serviços de água, esgoto, eletricidade, telefones públicos e
particulares, um posto de saúde que funcionava no quarteirão da escola e, pelo menos,
três linhas de transporte coletivo que serviam à população do bairro.
Além das vinte salas de aula e dos espaços já mencionados, a escola contava
com biblioteca, parquinho, sala de multimeios com TV e vídeo, horta, salas de direção,
secretaria e coordenação pedagógica, dentre outros ambientes.
Os trinta e dois professores que trabalhavam no turno pesquisado atendiam a
crianças na faixa etária compreendida entre cinco e doze anos, sendo que seis
apresentavam algum tipo de deficiência. Durante a entrevista foram citadas experiências
junto a algumas delas: uma criança com deficiência auditiva, duas com paralisia
cerebral, uma com visão subnormal e uma com síndrome de Down.
Além disso, foram relatados exemplos de alunos que, mesmo não apresentando
“déficits reais”10, desafiavam, diariamente, a competência da escola.
Entre os entrevistados, o exercício do magistério variava de dezoito a trinta anos,
ao passo que a atuação da maioria dos professores junto a crianças com deficiência era
de cerca de cinco anos. Quanto à formação inicial, um dos professores cursava o
Normal Superior, enquanto os demais possuíam diploma de curso superior.
Um dos professores entrevistados citou ainda um curso de especialização que fez
como alternativa para formação continuada. Também foram citados grupos de estudo
anteriormente organizados na escola, troca informal de experiências entre os colegas,
participação em palestras, em seminários promovidos pela PUC-Minas, em cursos
oferecidos pelo CAPE e pelo setor de Coordenação de Política Pedagógica da Secretaria
Municipal de Educação (CPP), além de acesso a orientações fornecidas por relatórios
médicos e por entidades que atendiam externamente as crianças com deficiência, como
a sala de recursos, o Hospital do Aparelho Locomotor Sarah Kubitschek, o Instituto São
Rafael e uma associação de apoio a pessoas com deficiência visual que visitava a escola
uma vez ao mês.
A organização dos professores na E. M. Lygia Fagundes Telles era bem variada,
de acordo com o número de turmas em cada ciclo. No primeiro ciclo havia sido adotada
a prática de um professor-referência por turma, responsável pelos conteúdos do
Português e da Matemática, apoiado por professores que transitavam com conteúdos de
outras disciplinas – como Geo-História e Ciências. No segundo ciclo, a organização era
feita em trios, sendo que um professor trabalhava os conteúdos de Português, outra os
de Matemática e uma terceira os de Geo-história e Ciências, em duas turmas. Havia,
ainda quatro turmas nomeadas de 4ª série pelas quais passavam diversos professores,
cada um com uma disciplina.
A enturmação oficial dos alunos havia sido feita pela idade cronológica e, ao
longo dos últimos dois anos, vinha sendo efetuada uma reenturmação por habilidades
durante uma hora por dia, objetivando à formação de grupos supostamente mais
homogêneos para o trabalho de alfabetização. Assim sendo, de segunda a sexta-feira,
tanto os alunos do primeiro quanto os do segundo ciclo eram reagrupados nos níveis
avaliados como inicial, intermediário 1, intermediário 2 e avançado.
10 De acordo com Mantoan (1997), os déficits reais são aqueles gerados por lesões orgânicas instaladas,
Algumas vezes, a enturmação das crianças com deficiência seguia outros
critérios. Um dos exemplos citados era o de um aluno com doze anos que havia sido
enturmado no início do ciclo junto com alunos de sete e oito anos que estariam no início
do processo de alfabetização.
1.1.6 Escola Municipal Maria Adelaide Amaral
Um minucioso histórico organizado pelo GAME/UFMG (DALBEN, 2000),
relata que a Escola Municipal Maria Adelaide Amaral funcionou por vários anos em
locais provisórios que ofereciam condições precárias, só alcançando a construção do
prédio definitivo por meio de intensa articulação e mobilizações constantes dos
professores e da comunidade local junto à Prefeitura.
Na ocasião de nossas visitas, a escola era cercada por muros altos com cacos de
vidro e arame farpado. Estava situada nas proximidades de um dos aglomerados da
Região Metropolitana de Belo Horizonte, num bairro com alto índice de criminalidade.
Apesar disso, ao contrário da escola que funciona no loteamento ao lado – que sofria
constantes invasões e depredação – o espaço físico da Escola Municipal Maria Adelaide
Amaral apresentava um bom estado de conservação. Tal fato se devia, segundo os
professores entrevistados, à boa relação estabelecida entre a escola e a comunidade
vizinha.
Além das dezesseis salas de aula, a escola contava com uma quadra de esportes e
um ginásio coberto, sala de professores, sala de vídeo, biblioteca com mesas para
leitura, sala com espelhos, banheiros recentemente reformados, salas de direção e
secretaria, uma ampla cantina, parquinho, pomar, área gramada, pátio e estacionamento.
Existiam, na ocasião, quinze turmas em funcionamento no turno pesquisado nas
quais eram atendidos alunos de seis a treze anos. Dois alunos com deficiência haviam
sido inseridos na escola a partir da implantação da política de inclusão na Rede
Municipal, sendo um com visão subnormal e outro com paralisia cerebral.
Os professores entrevistados afirmavam ainda que diversos alunos em situação
de risco social vinham sendo encaminhados à escola por ordem judicial, com base no
princípio da inclusão. Também relataram exemplos de alunos que, segundo avaliação da
enquanto os chamados déficits circunstanciais são gerados por determinantes sociais.
escola, ainda que não apresentassem laudo médico, manifestavam quadros de
hiperatividade, déficit de atenção e dificuldades de aprendizagem.
De acordo com o relatório do GAME (DALBEN, 2000. p. 14), a E. M. Maria
Adelaide Amaral foi apontada como “experiência emergente para a atual Escola Plural”.
Buscando demonstrar empenho no desenvolvimento de ações voltadas para um melhor
atendimento educacional à sua clientela, os professores entrevistados queixavam-se do
descaso do poder público com as dificuldades enfrentadas pela escola, especialmente as
relativas à efetivação da política de inclusão.
Todos os professores entrevistados tinham, no mínimo, um diploma de curso
superior. Sua experiência profissional variava de nove a vinte e dois anos de exercício
do magistério e de um a dois anos de trabalho junto a crianças com deficiência.
Afirmaram ter uma resistência grande por falta de um maior conhecimento, de sentir
um maior apoio nessa questão da inclusão (fala de professor) e localizaram na troca
informal de experiências o principal meio utilizado na obtenção de informações
relativas a esse tema.
Quanto à estrutura pedagógica, dos vinte e dois professores que atuavam no
turno pesquisado, foram eleitos dois coordenadores pedagógicos, responsáveis pela
organização geral da escola e dois eventuais cuja função era a substituição de
professores faltosos. Entre os demais, havia uma articulação variável de acordo com o
ciclo em que exerciam suas atividades. Assim, havia um professor-apoio, responsável
pelas aulas de Educação Física e pelo auxílio em projetos variados para cada três ou
quatro professores-referência. Além desses, dois professores com laudo médico
trabalhavam na biblioteca.
Existiam, na E. M. Maria Adelaide Amaral, duas categorias de reunião
pedagógica. A primeira, com duração de uma hora, ocorria uma vez por semana e
contava com a presença de todo o corpo docente. Durante a realização da pesquisa essa
reunião, além servir para a discussão de assuntos pedagógicos e administrativos, estava
sendo utilizada como espaço de formação dos professores em serviço, com enfoque para
as questões relativas à aprendizagem da leitura e da escrita.
A segunda categoria de reunião, também com duração de uma hora, funcionava
num sistema de escalas, estendido por três dias na semana a fim de propiciar encontros
em pequenos grupos. Essa acontecia em três segmentos: 1) os professores responsáveis
pelas turmas do início do primeiro e do segundo ciclos; 2) os das turmas do meio do
ciclo; e 3) os do final do ciclo.
Quanto à organização das turmas, o turno pesquisado realizava a enturmação
baseada no critério da idade cronológica, entretanto, existia uma proposta de aceleração
voltada para os alunos que, segundo avaliação da escola, tinham dificuldades de
aprendizagem. Esses eram, pois, selecionados e reunidos em uma única turma e
recebiam atendimento paralelo uma vez por semana, nos dois primeiros horários antes
da reunião escalonada.
1.1.7 Escola Municipal Rachel de Queiroz
A Escola Municipal Rachel de Queiroz nos foi indicada por profissionais da sala
de recursos como uma escola que se empenhava na construção de projetos alternativos.
De fato, durante as visitas, foram-nos relatadas diversas ações voltadas para o
envolvimento de professores e comunidade no atendimento às necessidades
educacionais do alunado em geral. Instalada em um prédio novo, construído de acordo
com padrões de acessibilidade, a escola estava localizada num bairro de periferia, com
nível sócio-econômico baixo. As residências ao redor eram simples e a atividade
econômica predominante na região era o comércio de pequeno porte com destaque para
mercearias e bares.
Várias pessoas com quem tive contato fizeram algum comentário relativo às
manifestações constantes de violência nos arredores, principalmente numa área invadida
nas proximidades da escola. De acordo com a mãe de um aluno, essa era uma escola
muito bem conceituada no bairro e não sofria tanto com as depredações, a indisciplina e
o consumo de drogas, comuns a outros estabelecimentos de ensino da região.
O prédio ocupava uma extensa área, com lotes vagos ao redor. Um sistema de
caixas de som instalado nas treze salas de aula facilitava os contatos internos. Logo na
entrada da escola havia uma guarita com porteiro e, ao lado, um estacionamento. Havia
um pátio coberto e outro descoberto, laboratório, quadra, sala de computação – onde
eram realizados cursos para a comunidade – parquinho, cantina, sala de multimeios,
entre outros.
Os alunos atendidos provinham do próprio bairro e de loteamentos clandestinos
nos arredores. O turno pesquisado atendia à faixa etária entre seis e doze anos, sendo
quatro crianças com deficiência: uma com síndrome do Álcool Fetal, duas com paralisia
cerebral – apresentando graus diferentes de comprometimento motor e mental – e uma
quarta criança apresentando uma cardiopatia associada a dificuldades de fala e uma
possível deficiência mental.
A experiência dos professores entrevistados no exercício do Magistério variava
de três a vinte e oito anos, enquanto a experiência profissional junto a crianças com
deficiência variava entre um e nove anos. Todos os entrevistados tinham curso superior,
sendo três deles em Pedagogia, além de um professor com especialização em Psicologia
Educacional.
O grupo responsável pela organização pedagógica da escola contava com
dezenove professores e meio11, um coordenador pedagógico e um supervisor. A
organização e distribuição desses profissionais pelas treze turmas obedecia a critérios
dinâmicos, variáveis de acordo com as atividades e os objetivos pedagógicos definidos
pelo coletivo.
O critério para a enturmação dos alunos era a idade cronológica, entretanto, o
fato de alguns alunos estarem chegando ao segundo ciclo sem o domínio das
habilidades de leitura e escrita levou à elaboração de um projeto de reorganização de
todas as turmas, com duração de uma hora e freqüência de duas vezes por semana.
Durante tal projeto todos os alunos eram reagrupados com base em diagnósticos
relacionados ao nível de alfabetização atingido e realizavam atividades em diversos
espaços da escola.
Nos horários de execução desse projeto e em outros horários ao longo da
semana, ocorria a reenturmação paralela de sete alunos que se encontravam no final do
primeiro ciclo, mas que, segundo avaliação da escola, apresentavam maiores
dificuldades no processo de alfabetização e necessitavam de um atendimento
diferenciado. Tal atendimento era realizado por um professor, no horário de aula, em
ambiente separado dos demais alunos, com duração de uma hora e freqüência total de
cinco vezes por semana.
Outra forma de reagrupamento, desta vez envolvendo todos os professores e
todas as turmas, ocorria uma vez por semana, visando ao desenvolvimento de atividades
11 Pela lógica que regia a Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte – de 1,5 professores para cada turma – às vezes era necessário meio cargo de professor para completar a carga horária das turmas. Em termos práticos, esse “meio” era um professor que comparecia à escola três vezes por semana.
de produção de textos. Organizados em duplas, os professores contavam com o apoio do
coordenador pedagógico e do supervisor que, para completar o número de profissionais
necessários ao bom andamento do projeto, também trabalhavam diretamente nas salas
de aula. Tal projeto era desenvolvido de acordo com a metodologia e os temas definidos
pelos professores durante as reuniões pedagógicas.
Uma outra alternativa para suprir demandas relativas às dificuldades de
aprendizagem era o atendimento paralelo realizado por um professor de Educação
Artística junto às quatro crianças com deficiência matriculadas na escola. Até então,
parecia ser este o professor definido como principal responsável pelo desenvolvimento
desse grupo de crianças, pois, segundo informações obtidas nas entrevistas, a ele eram
direcionados os contatos e as orientações advindas dos profissionais da sala de recursos
que atendiam à escola.
A relação dessa escola com a comunidade parecia bastante estreita e envolvia
uma série de iniciativas, como a eleição de dois pais representantes por turma; a
manutenção de oficinas profissionalizantes, aulas de ginástica e computação para jovens
e adultos do bairro; mutirões para a realização de eventos festivos ou reivindicatórios;
participação de pais em excursões, seminários de avaliação e projetos da escola; além de
disponibilização da quadra da escola para a comunidade nos finais de semana.
Também era prática comum, a realização de seminários de avaliação,
envolvendo todos os segmentos da escola e da comunidade vizinha na reflexão,
apresentação e votação de propostas, além de uma semana de formação de professores,
na qual ocorriam palestras, debates, grupos de estudo etc.
Outros fatores que merecem destaque são a premiação recebida pela escola por
um dos projetos realizados junto aos alunos, a publicação de artigos em revistas
educacionais por dois profissionais da instituição e a preparação de alguns professores
para apresentar aspectos de sua prática pedagógica em um congresso de educação.
1.1.8 Escola Municipal Ruth Rocha
Recebemos diversas indicações sobre a Escola Municipal Ruth Rocha, tanto por
parte de setores da Secretaria Municipal de Educação quanto por parte de profissionais
vinculados ao Hospital do Aparelho Locomotor Sarah Kubitschek – Belo Horizonte,
além de termos tido acesso a um relatório sobre sua experiência junto a alunos com
deficiência auditiva, inseridos em turmas de ouvintes, apresentado, em anos anteriores,
em seminários promovidos pela PUC-Minas.
A escola estava instalada numa ampla e movimentada avenida, num bairro
residencial de classe média, que contava com grande variedade de linhas de transporte
coletivo, além de serviços de água potável, esgoto, eletricidade, telefones públicos e
particulares, agência dos Correios, entre outros. A atividade econômica predominante
na região era o comércio, bastante diversificado, de pequeno e grande porte.
A acessibilidade às suas instalações era prejudicada pelas escadas que
conectavam os andares do prédio. A escola dispunha de dez salas de aula, cantina,
auditório, quadra de esportes, entre outros ambientes. Havia pouca decoração ou
material didático fixado nas paredes, ainda que as salas de aula fossem utilizadas como
“salas-ambiente”12. Nos corredores, havia alguns cartazes confeccionados pelos alunos
sobre temas diversos.
A Escola Municipal Ruth Rocha atendia a um público extremamente
diversificado, proveniente de diversas áreas da cidade. No turno pesquisado, a faixa
etária variava dos onze aos dezessete anos, correspondente ao final do segundo ciclo e
ao quarto ciclo completo – ou segundo grau. Devido às diferenças na dinâmica de
funcionamento desses ciclos, para fins da presente pesquisa enfatizamos a organização
de professores e turmas do segundo ciclo, nas quais estavam inseridas as crianças com
deficiência citadas durante a entrevista.
As experiências relatadas referiam-se a um aluno com paralisia cerebral do tipo
diplegia grave que prejudicou a articulação da fala e dos movimentos dos membros
inferiores e afetou menos os movimentos dos membros superiores. Por não haver
comprometimento na área cognitiva e ser alfabetizado, o aluno era capaz de comunicar-
se através da escrita. Houve relatos sobre o trabalho junto a um aluno com visão
subnormal e sobre a experiência de cerca de sete anos com jovens com deficiência
auditiva inseridos em turmas de ouvintes no turno da noite.
Na ocasião da entrevista tivemos contato com o coordenador pedagógico, o
diretor e os professores responsáveis pelas turmas do segundo ciclo, todos com
formação em nível superior. A organização desses professores era feita por disciplinas,
12 A proposta pedagógica de adoção de “salas-ambiente” pressupõe a criação de espaços – permanentemente dotados de recursos didáticos variados – para cada disciplina ou área do conhecimento. Segundo essa lógica, os alunos trocam de sala a cada intervalo entre as aulas, e não os professores.
com o trânsito das turmas pelas chamadas “salas-ambiente”, de hora em hora. Para a
enturmação dos alunos era utilizado o critério da idade cronológica e, segundo relatos,
os professores faziam questão de que as turmas fossem heterogêneas, prá não ficar a
sala boa e a sala ruim (fala de professor).
A fim de atender alunos avaliados e selecionados por apresentarem maiores
dificuldades no domínio dos conteúdos de Português e/ou Matemática, eram oferecidas
atividades de apoio pedagógico no turno seguinte, uma hora por semana, por
professores que se revezavam.
Entre as atividades extra-turno, também estavam previstos um projeto de
Ciências e uma oficina de teatro. Além disso, os professores relataram o esforço comum
em incentivar os alunos a participar de concursos externos – como os oferecidos pela
Prefeitura – promover excursões e buscar implementar tudo o que é possível, que é
viável da gente trabalhar com os meninos (fala de professor).
Existia a oferta semanal de oficinas que aconteciam às sextas-feiras, para todos
os alunos do segundo ciclo. Tais oficinas, organizadas pelos professores, funcionavam
em períodos de três, quatro ou cinco semanas, variáveis de acordo com a especificidade
das atividades propostas ou com os temas abordados. Eram oferecidas, por exemplo,
oficinas de reciclagem de papel, pipas, fósseis em gesso, caixas de papelão, jogos
pedagógicos de Português ou Matemática, colagem, festa junina, ábacos, entre outros
temas.
Em cada oficina eram disponibilizadas cinco vagas para cada turma, preenchidas
através da inscrição dos alunos, até a formação de grupos de vinte participantes, sob
orientação de um professor. Segundo relatos, os alunos gostam tanto que tem hora que
eles não querem nem trocar mais a oficina, querem repetir, querem fazer mais (fala
de professor). As crianças com deficiência participavam das oficinas junto com os
demais colegas, não tendo sido relatados projetos voltados especificamente para elas.
As reuniões pedagógicas, que ocorriam semanalmente, pareciam ser,
freqüentemente, organizadas por ciclos, reunindo professores, o coordenador
pedagógico e representantes da direção, quando necessário. Na ocasião da entrevista
coletiva não foram abordadas questões relativas às estratégias para a formação de
professores.
Também foi feita a descrição de aspectos relacionados à organização pedagógica
de outros turnos por professores que tinham jornada dupla de trabalho. Nas turmas
comuns do ensino regular em funcionamento no turno da noite, por exemplo, estavam
matriculados diversos alunos com surdez, acompanhados por um intérprete de LIBRAS,
além de um aluno com cegueira total.
Projetos variados eram desenvolvidos junto aos alunos do noturno, enturmados
por níveis de domínio de conteúdo e cuja faixa etária variava dos dezessete aos
cinqüenta anos. Na ocasião da entrevista, estava prevista a implantação de um projeto
de leitura que propiciasse a reenturmação desses alunos por idade, uma vez por semana,
visando a uma maior sintonia de interesses. Foram relatados ainda trabalhos de pesquisa
desenvolvidos pelos alunos, uma vez por semana, sob orientação de professores que
propunham os temas.
Avaliações coletivas da organização escolar eram realizadas anualmente, durante
o Congresso Pedagógico no qual se apresentavam, discutiam e avaliavam propostas para
o funcionamento dos diversos setores da escola. Num desses congressos ficou definido,
por exemplo, a realocação de horas de trabalho excedentes no turno da noite – de acordo
com cálculos baseados na proporção de 1,5 professor por turma – para a criação de
pequenas dobras voltadas para o atendimento extra-turno aos alunos do primeiro turno
que, segundo avaliação da escola, apresentassem dificuldades de aprendizagem.
Quanto à relação da Escola Municipal Ruth Rocha com a comunidade, foi
relatada a preocupação em estreitar laços, uma vez que o público atendido encontrava-
se disperso por diversas áreas da cidade. Para tal, em sábados letivos, eram realizadas
atividades variadas, como oficinas, cursos e festas, além de feiras ocasionais nas quais
eram comercializados itens produzidos e/ou revendidos pelos alunos e seus familiares.
1.1.9 Escola Municipal Zélia Gattai
O contato com a Escola Municipal Zélia Gattai se deu por indicação de
profissionais da sala de recursos, pelo fato de ser uma das escolas que atendia a um
maior número de crianças com deficiência na Regional em que estava localizada.
Em funcionamento há, aproximadamente, dezesseis anos, essa escola estava
situada num bairro residencial, de classe econômica média/baixa. As ruas ao redor eram
asfaltadas e a população local servida por água potável, telefones públicos e
particulares, eletricidade, agência dos Correios, posto de saúde, diversos
estabelecimentos comerciais de pequeno porte e, pelo menos, quatro linhas de
transporte coletivo.
A escola, edificada num terreno acidentado, que obrigou a construção de seus
prédios em vários níveis, unidos por escadas, mostrava-se limpa e muito bem
conservada na ocasião da visita. Logo na entrada havia um amplo pátio utilizado pelas
crianças durante o recreio. Além de abrigar dezoito salas de aula, contava também com
sala de professores, salas de secretaria, direção e coordenação pedagógica, sala de
vídeo, ginásio coberto, quadra descoberta, estacionamento, uma vasta biblioteca
comunitária, uma ampla cantina, parquinho, entre outras instalações.
Os alunos atendidos, cuja faixa etária variava dos cinco aos dez anos, em sua
maioria provinham do próprio bairro e, segundo informação dos professores, faziam uso
do uniforme básico e de Educação Física, compravam merenda na cantina, levavam
dinheiro para participar de excursões, possuíam material escolar de boa qualidade,
freqüentavam clubes e shoppings, tinham telefone em casa etc, o que poderia indicar
situação financeira estável.
A escola atendia cerca de quinze crianças com deficiência, distribuídas em três
turnos. Durante a entrevista nos foram relatadas experiências, envolvendo somente os
alunos atendidos no turno pesquisado que, embora nem sempre tivessem laudos
médicos com informações concretas, eram caracterizados por suspeitas de autismo,
dificuldades de fala, microcefalia, deficiência mental ou deficiência auditiva. Houve
também comentários sobre crianças com dificuldades de aprendizagem, associadas, ou
não, a questões relativas ao comportamento.
Com uma média de dezesseis anos de exercício do Magistério, todos os
professores entrevistados tinham curso superior, sendo que dois deles possuíam ainda
um diploma de especialização. Sua experiência profissional junto a crianças com
deficiência era recente, obtida no trabalho com uma turma-projeto que, no ano anterior,
reunia alunos considerados “especiais” em uma única sala.
Ao fazer uma analogia entre as dificuldades apresentadas pelos alunos atendidos
e as condições financeiras de seu grupo familiar, os professores concluíram que existe
essa relação. Aluno com mais dificuldade pode ver que ele tá no nível sócio-
econômico mais baixo (fala de professor), característica que parecia diferenciá-los
daquelas anteriormente atribuídas à maioria dos alunos atendidos pela escola.
A distribuição dos professores era variável. No primeiro ciclo, normalmente
adotava-se a dinâmica de um professor-referência – responsável pela alfabetização e
pelos conteúdos da Matemática – para cada turma, auxiliado pelo professor-apoio que
transitava em várias salas, desenvolvendo atividades de Educação Física, História,
Ciências e Geografia. Para o trabalho com alunos mais velhos, tal organização era feita
em trios ou quartetos, com um professor para cada disciplina, transitando por um
número variável de turmas. Além dos professores que atendiam às dezoito turmas, havia
dois coordenadores pedagógicos e um supervisor.
Concluída a descrição de cada uma das nove escolas pesquisadas buscamos, no
próximo capítulo, fornecer ao leitor uma breve reconstrução histórica sobre a
convivência estabelecida entre as sociedades ocidentais e as pessoas com deficiência –
desde a Antigüidade Clássica até os dias atuais – e sobre as formações discursivas e
ideológicas que guiavam essas relações. Apresentamos também, no mesmo capítulo, as
recentes discussões sobre a formação discursiva da inclusão e sobre os processos de
inserção de crianças com deficiência em escolas comuns na Rede Municipal de
Educação de Belo Horizonte/MG.
2 SOCIEDADE E DEFICIÊNCIA: HISTÓRICO DE UMA RELAÇÃO
As concepções e práticas sociais e, paralelamente, as formações discursivas e
ideológicas sobre a questão da deficiência sofreram diversas modificações desde a
Antigüidade até os dias atuais. Podemos, através de uma breve reconstrução histórica,
vislumbrar os contextos nos quais cada nova concepção se estabeleceu – o que não
significa que as anteriores tenham sido completamente superadas ou extintas.
Na obra de Pessotti (1984), obtemos uma cuidadosa descrição dos principais
eventos relacionados à convivência entre as sociedades ocidentais e as pessoas com
deficiência. Segundo o autor, na Antigüidade era comum a eliminação ou abandono de
crianças que apresentassem deficiências físicas, mentais ou quaisquer características que
implicassem dependência econômica e/ou incapacidade para o trabalho. Existem
também registros de abandono à inanição, inclusive, de crianças “normais excedentes”
(PESSOTTI, 1984, p. 4), em nome do equilíbrio demográfico. Predominava, neste
contexto, uma formação ideológica de completa exclusão.
A partir do Cristianismo, a ética cristã passou a reprimir a prática de livrar-se das
pessoas com deficiência via assassínio, pois as mesmas passaram a ser consideradas
filhas de Deus, dotadas de alma. Ao longo da Idade Média, no entanto, a rejeição
permaneceu presente tanto nas perseguições realizadas pela Santa Inquisição contra
indivíduos com deficiência considerados “endemoninhados”, quanto no confinamento
em instituições-prisão a que tais pessoas foram submetidas.
As formações discursivas que predominavam durante o período acima descrito
refletiam uma concepção preformista, segundo a qual a inteligência era divinamente
predestinada13 e preformada, não sofrendo qualquer influência do meio em seu
desenvolvimento.
Da metade do século XVI em diante, grandes mudanças começaram a atingir as
sociedades ocidentais, tanto no aspecto social, quanto científico, político, econômico e
filosófico. Segundo Najmanovich (2001), ao longo de vários séculos, de maneira
desigual e descontínua, desenvolveram-se formas de vida e modos de pensar o mundo
13 Para exemplificar tal fato, Fonseca (1995) afirma que Platão acreditava na inteligência enquanto atributo reservado aos filhos das famílias superiores.
radicalmente diferentes dos encontrados na Idade Média. Esse novo paradigma,
conhecido como modernidade,
é o nome genérico de uma rede complexa de idéias, conceitos, modos de abordagem, perspectivas intelectuais, estilos cognitivos, modalidades de intelecto-ação e atitudes valorativas, sensíveis e perceptivas que caracterizam uma época ampla (NAJMANOVICH, 2001, p. 11).
A transição paradigmática suscitada pela modernidade é considerada,
essencialmente, revolucionária por ter propiciado a superação de noções supersticiosas
– até então baseadas em argumentos teológicos, sobrenaturais e religiosos – por
argumentos pretensamente baseados na razão e na objetividade.
O discurso moderno foi, pois, construído a partir de um conjunto de conceitos e
pressupostos fundados, entre outras coisas, na valorização da racionalidade humana dos
métodos e dos conhecimentos científicos; na noção de progresso linear; nas
possibilidades de ordenação e classificação da realidade inauguradas pela construção,
difusão e imposição de padrões e instrumentos de medida.
A escola que se estabeleceu com base em tais princípios passou a organizar seus
currículos, seus métodos de avaliação, seus procedimentos didáticos, seus tempos e
espaços, almejando a formação padronizada de indivíduos capazes de assimilar os
conteúdos dos programas de ensino em tempos predeterminados, de forma homogênea e
gradual.
Ao instituir padrões de normalidade, a lógica do pensamento moderno contribuiu
ainda para a consolidação de práticas de segregação e exclusão já existentes, conferindo
às mesmas um estatuto de legitimidade.
A partir do século XVII, em pleno desenrolar da modernidade, novas teorias
científicas impulsionaram a superação parcial14 e gradativa das noções preformistas da
inteligência e da deficiência por outras formações discursivas. De acordo com
L.Marques (2001), com o desenvolvimento das ciências biológicas, o preformismo foi
parcialmente substituído por noções predeterministas, para as quais a inteligência não
mais seria atribuída a forças sobrenaturais, mas a determinações biológicas,
geneticamente herdadas e pré-programadas. O nascimento dessa visão, de cunho
organicista, acabou reforçando a crença na inutilidade de ações educativas que visassem
à modificabilidade cognitiva, à medida que se convencionou localizar a origem das
deficiências em disfunções ou lesões irreversíveis do organismo humano.
Tal crença começou a ser questionada no final do século XVII, com a publicação
de um ensaio no qual John Locke introduziu a teoria da tabula rasa, segundo a qual as
idéias e operações da mente resultariam da experiência sensorial. Essa teoria inaugurou
a possibilidade de que a deficiência mental, por exemplo, pudesse ser concebida não
somente como uma lesão irreversível, mas como um possível estágio de carência de
estimulação das operações intelectuais.
Com base em tais noções, alguns estudiosos europeus passaram a atribuir ao
ensino a tarefa de suprir possíveis carências e começaram a empreender esforços
isolados na criação de métodos para a educação de pessoas com deficiência auditiva ou
mental, até então completamente excluídas dos sistemas escolares.
Começaram também a se esboçar, neste contexto, novas formações discursivas
baseadas numa concepção envolvimentalista da inteligência. Tal visão foi fortalecida a
partir de 1801, com a publicação de Mémoire sur les premiers développements de Victor
de l’Aveyron, por Jean Étienne Marie Gaspard Itard, médico chefe do Instituto Imperial
dos Surdos, em Paris. Em Mémoire, Itard narra o processo de desenvolvimento de
Victor, um menino de, aproximadamente, doze anos de idade que vivia longe do contato
humano, na floresta de Aveyron, cuja educação lhe foi confiada após ter sido
encontrado.
Segundo diagnóstico de Philippe Pinel – o mais célebre psiquiatra francês da
época – Víctor era um “idiota essencial como os demais idiotas que conhece”
(PESSOTTI, 1984, p. 36). A oposição de Itard a tal diagnóstico baseou-se na suposição
de que a aparente idiotia do menino pudesse ser produto de insuficiente estimulação
cultural e não de uma deficiência biológica irrecuperável. Durante alguns anos de
intervenção educacional, Itard alcançou notáveis avanços junto ao menino e contribuiu
para desenvolver e divulgar novos sentidos sobre o papel da educação no
desenvolvimento cognitivo e social.
Apesar das reflexões de Locke e dos esforços isolados no sentido de educar
pessoas com deficiência constituírem uma formação discursiva alternativa, predominou,
14 Vale relembrar que o advento de novas formações discursivas não exclui completamente as anteriores.
durante os séculos XVIII e XIX, um consagrado fatalismo genético. A ineducabilidade e
irrecuperabilidade de tais indivíduos eram estigmas dominantes.
Nesse contexto, proliferavam tipologias e classificações, com a elaboração de
quadros clínicos para cada tipo ou grau de deficiência, nos quais estavam presentes,
inclusive, características físicas e estéticas, como aspectos cranianos e fisionômicos,
estrabismo, tiques na face, gagueira etc. De acordo com Fonseca (1995), durante quase
todo o século XIX, a maioria dos indivíduos com deficiência não recebia assistência
educacional e ainda era mantida enclausurada em instituições-prisão, como hospícios,
conventos, manicômios e asilos.
Já no século XX, a Psicologia assumiu um papel de destaque sobre a questão da
deficiência mental, substituindo a hegemonia médica e fazendo com que os testes para
avaliação do quociente intelectual (QI) passassem a ser adotados em larga escala pelos
sistemas escolares como legítimos instrumentos de seleção, classificação, padronização
e segregação dos estudantes. Assim,
de 1900 à década de 70, o movimento da escola pública cria as famigeradas classes de “anormais”, fase que se inicia com a categorização e classificação dos deficientes mentais, que resultam da aplicação da famosa Escala Métrica de Inteligência, criada por Binet e Simon em 1905 (FONSECA, 1995, p. 71).
Segundo Fonseca (1995), a democratização do ensino foi acompanhada pelo
avanço da Psicometria e da categorização da deficiência, culminando na criação da
categoria das dificuldades de aprendizagem, à qual o insucesso escolar foi associado.
Trabalhando na perspectiva da homogeneização, a escola passou a utilizar tais testes
para identificar a diferença e, “uma vez identificada, a diferença é rotulada,
estigmatizada, segregada e tratada como doença. O diferente é dissonante no mundo
harmonioso da sintonia” (GARCIA apud FERRAÇO, 2001, p. 97).
Deste modo, além dos indivíduos com deficiência mental, física ou sensorial –
que já haviam sido expostos ao abandono ou ao assassínio pelas sociedades ocidentais
da Antigüidade e às torturas pela supersticiosa sociedade medieval – estudantes que
recebiam o diagnóstico de dificuldades de aprendizagem passaram a ser igualmente
segregados em classes e escolas especiais, por também desviarem do padrão
estabelecido.
A formação ideológica então predominante era a da exclusão, através da qual
proliferavam as noções de incapacidade produtiva e de inferioridade existencial da
pessoa com deficiência, sustentando diversas justificativas para a institucionalização e
isolamento desses indivíduos da convivência social, eximindo a escola comum, a
família e o poder público da tarefa de educá-los.
Apesar de existirem desde o século XVI, essas instituições para reclusão e/ou
atendimento especializado não foram criticamente examinadas até o início de 1960,
quando Erving Goffman publicou Asylums – tendo por título em português Manicômios,
Prisões e Conventos – que se tornou uma análise clássica das características do que ele
chamou “instituições totais” e de seus efeitos nocivos sobre os indivíduos. A partir das
considerações do autor, o mundo ocidental se viu marcado por movimentos pela
desinstitucionalização que alcançaram extensões variáveis de um país para outro.
Assim, em direção contrária aos movimentos segregacionistas predominantes na
época, assistimos, a partir da década de 70, ao desenvolvimento do conceito de
normalização. Em sua concepção original, este conceito refletia a crença de que
indivíduos com deficiência têm o direito de receber as mesmas condições de vida dos
demais seres humanos. Segundo os defensores de tal proposta, alternativas educacionais
deveriam ser oferecidas de forma gradativa e previamente planejadas, propiciando uma
existência tão próxima aos padrões normais quanto possível.
Dentre os modelos de serviço e estratégias de ação desenvolvidos para
operacionalizar os processos de normalização, um dos mais conhecidos é o da
integração pelo “Sistema de Cascata” (PEREIRA, 1980), entendido como processo
gradual que pressupunha o preparo da pessoa com deficiência para atender às
expectativas da vida social. Tal preparo deveria ser feito por meio do desenvolvimento
de programas de habilitação e de treinamento prévios, com graus progressivos de
inserção desses indivíduos em ambientes cada vez menos segregadores.
O desenvolvimento dessa nova formação ideológica, de cunho integracionista,
não foi capaz de romper com o fato de as escolas brasileiras estarem organizadas nos
moldes do pensamento moderno. A prática usual de se condicionar a integração de um
indivíduo ao seu desenvolvimento cognitivo e à sua capacidade individual de adaptação
às condições oferecidas pelo meio refletia ainda o fato de os currículos, métodos de
avaliação, procedimentos didáticos, tempos e espaços escolares dirigirem-se a alunos
idealizados, aptos a assimilar os conteúdos do programa no tempo predeterminado, de
forma gradual, simultânea, homogênea e disciplinada.
Já nas últimas décadas do século XX, passaram a se desenvolver novas
formações discursivas baseadas numa concepção interacionista de inteligência, segundo
a qual as habilidades mentais, sensoriais e motoras dos indivíduos decorrem da
quantidade e da qualidade das trocas efetuadas entre esses e o meio ambiente. Os
estudos de Piaget, Vygotsky, Ausubel, Feuerstein e outros contribuíram de forma
efetiva para o desenvolvimento de tal concepção.
Com base nas contribuições de tais pesquisadores e no desenvolvimento de
reflexões aprofundadas a respeito da diversidade e dos direitos humanos, novas
perspectivas parecem estar, atualmente, em desenvolvimento. Há indícios de que as
diversas formações ideológicas de cunho excludente e segregacionista, legitimadas pela
modernidade começam a ser gradativamente questionadas, coexistindo com novas
concepções e posturas diante da deficiência.
2.1 FORMAÇÕES DISCURSIVAS EM MOVIMENTO: DA EXCLUSÃO À INTEGRAÇÃO
Com base nos dados históricos até então apresentados, optamos por remeter o
discurso dos professores a três diferentes formações discursivas: 1)
exclusão/segregação, 2) integração – que tem por base o princípio da normalização – e
3) inclusão.
Segregar, do latim segregare significa, entre outras coisas: “pôr de lado; pôr à
margem; separar, marginalizar. [...] Desligar, afastar, isolar” (FERREIRA, 1975, p.
1281). Para fins da presente pesquisa incluiremos, então, nessa formação discursiva,
tanto os discursos que envolvam o abandono ou extermínio – bastante comuns na
Antigüidade e manifestos com menos freqüência nos dias atuais – quanto os discursos
que, apoiados em mecanismos de classificação e hierarquização, próprios do
pensamento moderno, isolam o sujeito com deficiência em espaços especiais, afastados,
localizados fora da suposta mesmidade constituída de indivíduos ditos normais.
Essa criação de identidades especiais é, na concepção de Ferre (2001), uma
forma de nos refugiarmos da perturbação produzida pela presença do outro e de
resguardar a identidade de normal que cada um de nós tem, relegando o outro ao espaço
da anormalidade. Do mesmo modo, referindo-se aos discursos socialmente construídos
a respeito das pessoas com deficiência, foco de nossa pesquisa, C.Marques (1999, p. 73)
afirma que “o anormal constitui, pois, o contraponto necessário para o estabelecimento e
a manutenção do referencial da normalidade”.
A escola, enquanto invenção da modernidade, ainda não admite a diversidade
como característica básica da existência humana. Restringe, assim, o outro para outros
espaços, longe de seu território. Neste mesmo sentido, Ferre (2001) compreende que a
Educação Especial acabou se estabelecendo como território segregado e contribuiu para
legitimar o isolamento do alunado objeto de seus discursos teóricos e práticos em uma
identidade especial, categoria à parte, supostamente igual em sua deficiência e diferente
do alunado majoritário, considerado como eficiente, normal e homogêneo.
Ainda sob o domínio dos pressupostos da modernidade, a formação discursiva
da integração toma o indivíduo com deficiência como “o diferente”, ainda comparando-
o a um padrão. Ferre (2001) ressalta, por exemplo que, embora manifestações em prol
do direito à diferença tenham invadido o discurso pedagógico nos últimos anos, na
prática a educação ainda impõe, a si mesma, o dever de encaixar os indivíduos em
identidades bem definidas pelos cânones da normalidade que marcam aquilo que deve
ser habitual, repetido, reto, em cada um de nós.
De acordo com Silva (2000), a afirmação da identidade e a marcação da
diferença implicam, sempre, operações de incluir e excluir, demarcação de fronteiras,
através de declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence. Tais processos
envolvem uma produção simbólica e discursiva, advêm de relações sociais e não
convivem harmoniosamente, estando em estreita conexão com relações de poder.
Preso a tais moldes, até mesmo o discurso acadêmico que manifesta a intenção
de integrar aqueles que estão à margem do sistema escolar, tende a encaixá-los em uma
série de características fixas que impedem ver a totalidade e riqueza que cada um traz
consigo. Nessa perspectiva, o outro é ainda encarado como “o diferente” e não como um
ser plural, diverso. Assim funciona, por exemplo, o já citado “Sistema de Cascata”
(PEREIRA, 1980), processo que faz parte da formação discursiva da integração e
pressupõe o preparo da pessoa com deficiência para atender às expectativas da vida
social. Em processos de inserção desse tipo, as categorias são mantidas, cada qual em
seu devido lugar e a postura “politicamente correta” que se propõe é a de aceitação e
tolerância para com “os diferentes”. Tal postura não questiona as relações de poder
envolvidas nos processos de produção social das identidades e das diferenças, tomando-
as como dados naturais.
Disso resulta o fato, constatado por Marques e Oliveira (2002, n.p.) a partir da
análise de diversas dissertações e teses sobre os sentidos que vêm sendo veiculados
sobre os processos de inserção de educandos com deficiência em escolas comuns, de
que “embora imbuída do sentido de equiparação de oportunidades, de respeito às
diferenças e de inserção plena dos ‘diferentes’ nos diversos setores da atividade
humana, a integração acabou reduzida ao mérito de alguns ‘capazes’.”
Sob a perspectiva das reflexões suscitadas por Santos (2002, p. 30),
compreendemos, pois, que ainda que o princípio da normalização – que deu origem à
formação discursiva da integração – tenha originalmente buscado suscitar discussões
numa perspectiva emancipatória, as ações implementadas a partir dele foram sendo
cooptadas pelo viés colonialista do conhecimento, através do qual se tem uma
concepção do outro como objeto, passível de ser classificado, manipulado e treinado e,
conseqüentemente, “o não reconhecimento do outro como sujeito.”
Tomadas de tal forma, as práticas de integração acabaram por se converter em
conhecimento-regulação que, através de mecanismos opressores e excludentes, provoca
a desvalorização de formas de ser e de saber diferentes dos padrões hegemonicamente
reconhecidos.
Uma terceira formação discursiva, em desenvolvimento nos últimos anos,
propõe repensar os sujeitos na sua diversidade, sem preocupar-se em destacá-los ou
agrupá-los em termos de diferenças. Ela abarca as denúncias desencadeadas por alguns
movimentos sociais e pela divulgação de estudos críticos que evidenciam as questões de
poder envolvidas nos processos de construção social de mecanismos que sustentam
práticas de segregação de indivíduos da convivência educacional e social mais ampla e
do acesso a bens e serviços.
É sobre as possibilidades de transformação inauguradas por essas novas
perspectivas que refletiremos no próximo item.
2.2 FORMAÇÃO DISCURSIVA DA INCLUSÃO: A DIVERSIDADE EM PERSPECTIVA
Na atualidade15, assistimos a uma lenta movimentação de sentidos através da
qual ideologias excludentes e segregacionistas vêm cedendo lugar à valorização da
diversidade humana e ao direito às diferenças, sem que essas sejam convertidas em
critério para classificação ou hierarquização dos indivíduos. Pretende-se, a partir daí,
“elevar o outro da condição de objecto à condição de sujeito. Esse conhecimento-
reconhecimento é o que designo por solidariedade” (SANTOS, 2002, p. 30).
Não mais fundados em modelos universais idealizados, os discursos passam, aos
poucos, a se constituírem a partir do múltiplo. Neste panorama, ainda incipiente,
começam a ser abertas as possibilidades para a compreensão de que
ser diferente não significa mais ser o oposto do normal, mas apenas “ser diferente”. Este é, com certeza, o dado inovador: o múltiplo como necessário, ou ainda, como o único universal possível, o que deriva em práticas sociais de reconhecimento e respeito pelo outro (MARQUES e MARQUES, 2003, p. 234).
A formação discursiva da inclusão pretende abarcar, portanto, múltiplas
alternativas. Questiona os padrões, subverte as classificações e hierarquizações,
contrapondo-se aos mecanismos que tendem a torná-las “naturais”. Evidencia as
relações de poder e os conflitos constitutivos das relações sociais, até então sufocados e
ignorados. Forçosamente transforma, desestabiliza e desloca fronteiras que demarcam
artificialmente os limites entre os diversos indivíduos.
Neste sentido, diversos autores (MANTOAN, 1998, 2003; L.MARQUES,
2001a/b; C.MARQUES, 2001a; MARQUES e MARQUES, 2003) situam a inclusão
enquanto um novo paradigma, capaz de superar as estruturas excludentes próprias dos
paradigmas anteriores e promover uma ampla reorganização dos sistemas sociais e
educacionais, a fim de que estes se tornem aptos a suprir as necessidades de todos os
indivíduos, quaisquer que sejam suas características.
15 O emprego do vocábulo atualidade é uma opção terminológica em relação ao vocábulo pós-modernidade. Tal escolha deve-se ao fato de entendermos que o momento vivido constitui uma transição entre os valores da modernidade e uma nova era, indeterminada, que se ordenará com base em novos valores.
De acordo com Kuhn (1978), quando os conhecimentos ou procedimentos
próprios de um determinado paradigma não mais atendem às expectativas e em sua
estrutura são detectadas inconsistências graves e profundas, segue-se um estado de crise
e insegurança crescentes que podem conduzir à busca de novas alternativas.
Deste modo, mudanças de paradigmas ocorrem quando novos princípios –
diferentes e incompatíveis com os anteriores – emergem, para superar crises que
debilitam a rigidez dos estereótipos até então vigentes em determinado campo, fazendo
com que estes sejam rejeitados e substituídos. Pode-se dizer, pois, que “o fracasso das
regras existentes é o prelúdio para um busca de novas regras” (KUHN, 1978, p. 95).
A construção de uma educação inclusiva exige que ampliemos nossa capacidade
de lidar com o que ainda nos parece incomensurável16, desconsiderado, diferente. Isso
porque o incomensurável não se encaixa em padrões preestabelecidos, foge às previsões
e subverte as regras dos paradigmas aos quais estamos habituados. O incomensurável
exige flexibilidade e nos desafia a criar alternativas até então inexistentes.
De acordo com Barros (2003, p. 103), um dos caminhos para novas formas de
perceber o outro em sua diferença já vem sendo trilhado através da presença do que nos
parece estranho em espaços sociais histórica e ideologicamente não reservados para ele.
Tal presença “força as amarras, flexibiliza o pensar, faz a rede social vibrar, [...] nos
promete novidades quanto aos nossos próprios limites, nos permite assumir a
ambivalência que nos constitui.”
Dentre toda essa diversidade humana que compõe a sociedade e habita o
cotidiano escolar, desestabilizando a cada instante o ideal de homogeneidade
perseguido, focalizamos, para fins da presente pesquisa, indivíduos com algum tipo de
deficiência física, sensorial ou mental, que vêm sendo inseridos em escolas comuns,
fato que, conforme exemplifica Mantoan (2003, p. 58), tem gerado profundos debates e
críticas contundentes:
Um jovem professor tomou a palavra e me disse: A escola a que a professora está se referindo não é uma utopia? Uma fantasia, ou melhor, a escola ideal [...]? E respondi-lhe: Professor, penso que é exatamente o contrário. Quem está sempre falando e imaginando a escola ideal me parece que é o
16 Incomensurável. [Do lat. Incommensurabile.] Adj. 2 g. 1. Não comensurável; imensurável. 2. Que não tem medida comum com outra grandeza. 3. Enorme, imenso, desmedido. In: FERREIRA, 1975.
senhor e tantos outros que me acham utópica, idealista! Eu falo de um aluno que existe, concretamente. [...] Não tenho alunos ideais; tenho, simplesmente, alunos, [...] pois não conto com padrões e modelos de alunos ‘normais’ que aprendemos a definir nas teorias que estudamos.
Encontramos, na fala de Mantoan (2003), questionamentos dirigidos à
organização educacional vigente que, muitas vezes, se declara incapaz de suprir as
necessidades educacionais desses alunos aos quais denomina “especiais”, como se os
demais constituíssem uma massa comum, homogênea, já bastante conhecida, bem
classificada e ordenada, sem novidades ou características que desafiassem nossa
criatividade: o grupo dos chamados “normais”.
As declarações em torno da dificuldade de atendimento às crianças com
deficiência justificam-se, na maioria das vezes, pela inadequação das estruturas físicas e
materiais das escolas, pelo descaso dos poderes públicos, pelo despreparo dos
professores, pela quantidade de alunos em sala etc.
Não desconhecemos o peso de tais fatores, mas compartilhamos com Mantoan
(2003, p. 49) a crença de que uma das principais barreiras à inclusão reside no fato de as
escolas estarem ainda organizadas para atender a alunos idealizados – aqueles
“normais” sobre os quais nos referimos anteriormente – e que, na realidade, não
existem. A autora acima citada afirma que, com esse perfil organizacional, não é difícil
imaginar o impacto da inclusão na maioria das escolas. “É como se o espaço escolar
fosse de repente invadido e todos os seus domínios fossem tomados de assalto.”
Nesse sentido, após pesquisas junto a diversas escolas, L.Marques (2001a)
constata que, provavelmente, a maioria das escolas que temos hoje não está preparada
para oferecer educação de qualidade para todos, mas para receber somente alunos cuja
capacidade cognitiva permita a eles superar, por si mesmos, possíveis déficits reais ou
circunstanciais.
Adaptando uma expressão cunhada por Werneck (1999), indagamos: Mas afinal,
quem cabe no todos do princípio democrático de educação de qualidade para todos, por
tantas vezes repetido? Se pretendemos responder tal questão com base nos pressupostos
da inclusão, não podemos admitir as exceções que, até então, vêm sendo praticadas.
Assim sendo, do ponto de vista de autores como Mantoan (1997, 1998,
1999/2000, 2000a, 2000b, 2001a, 2003), C.Marques (1998), L.Marques (2001a/b),
Sassaki (2002) entre outros, na perspectiva da inclusão suprime-se a subdivisão dos
sistemas escolares em modalidades de ensino especial e ensino comum, exigindo-se das
escolas comuns que atendam às diferenças sem discriminar e sem trabalhar de forma
segregada com qualquer aluno.
Assim, nenhuma escola pode se dizer inclusiva se não se esforçar para oferecer
os apoios necessários ao atendimento às necessidades educacionais de todos os
educandos – com ou sem deficiência – por mais severos que sejam os obstáculos.
2.3 INSERÇÃO DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA EM ESCOLAS DA RME/BH
Variadas propostas de inserção de crianças com deficiência em escolas comuns,
em diferentes redes escolares por todo o país, foram investigadas por diversos
pesquisadores (CASTRO, 1997; MANTOAN, 2001a/b; FERREIRA, 2002; COELHO,
2003; A.MONTEIRO, 2003 entre muitos outros), cujos estudos vêm contribuindo para
identificar e divulgar as dificuldades encontradas e as estratégias criadas pelos
professores para enfrentá-las.
Com objetivo similar, voltamos nosso interesse para a Rede Municipal de
Educação de Belo Horizonte/MG que teve muitos de seus atuais órgãos e instâncias
responsáveis pelo atendimento às pessoas com deficiência originalmente concebidos
sob a perspectiva integracionista (BELO HORIZONTE, 2000a; COELHO e CRUZ,
2004).
Conforme descrito no item anterior, tal concepção condicionava a inserção dos
indivíduos ao seu treino e capacitação para se adaptarem ao ambiente escolar comum.
Recentes publicações da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte admitem
que “o princípio integrador, no entanto, tem-se revelado insuficiente no sentido de
combater a exclusão social e de promover a igualdade de direitos e oportunidades para
todos” (BELO HORIZONTE, 2000a, p. 29).
A partir de tais considerações e buscando avançar na “construção de uma
educação pública, plural, inclusiva e de qualidade socialmente referenciada” (BELO
HORIZONTE, 2001, p. 4), diversas medidas vinham sendo adotadas, dentre elas a
implementação do Programa Escola Plural e, paralelamente a esta, a inserção de
crianças com deficiência em escolas comuns da rede.
Nas entrevistas realizadas com os professores da Rede Municipal de Educação
de Belo Horizonte/MG durante a presente pesquisa, identificamos uma série de sentidos
cotidianamente construídos em torno do conceito de inclusão.
Percebemos que, embora o termo inclusão viesse sendo genericamente utilizado
para nomear diversos processos de inserção de crianças que não tinham acesso às
escolas comuns, as estratégias adotadas no cotidiano dessas instituições e as concepções
que os professores construíam sobre tais processos remetiam esse mesmo termo a
variados sentidos que, por sua vez, se filiavam a diferentes formações discursivas.
Eu sempre tinha trabalhado com crianças de cinco, seis anos, mas nunca tinha trabalhado com inclusão, com nenhum aluno deficiente. (E.M. Bárbara Heliodora) Esses outros meninos dos aglomerados [...] eles estavam sem escola, né? Até que a Prefeitura, quando veio o PT, né? O PT, a política dele é o quê? É a inclusão, né? Então, esses alunos foram trazidos para a escola. (E.M. Adélia Prado)
Assim como outros pesquisadores, pudemos perceber que, no campo
educacional, grande parte das discussões sobre a inclusão ficavam restritas à questão do
aluno deficiente e, em alguns casos, às questões relativas às crianças de periferia –
esses outros meninos dos aglomerados – que, submetidas à vivência na chamada
situação de risco social, possuíam hábitos e valores não condizentes com as expectativas
da escola.
Em geral, o conceito de inclusão aparecia esvaziado de seu conteúdo ético e
político e da noção de “aperfeiçoamento da educação escolar para o benefício de todos
os alunos com e sem deficiência” (Mantoan, 2002b, n.p.). Utilizado como sinônimo de
inserção, referia-se apenas à presença específica de alunos que foram trazidos para a
escola.
Compreendido desta forma, o conceito de inclusão permanecia filiado à
formação discursiva da integração, contribuindo para que se mantivessem em destaque
atributos utilizados como referência para agrupar os indivíduos em categorias
“desviantes” ou “diferentes”.
Ao discutir os processos de democratização do sistema escolar francês, Bourdieu
e Champagne (2002) fornecem-nos importantes elementos para compreendermos
algumas facetas dessa “inclusão” que vinha sendo promovida em grande parte de nossos
estabelecimentos de ensino. Segundo os autores, sujeitos que antes eram precoce e
brutalmente eliminados da escola passaram a ter acesso a um ensino que, apesar de
amplamente aberto a todos, ainda se mantinha, estruturalmente, reservado a alguns. Em
suas palavras,
O processo de eliminação foi diferido e estendido no tempo e, por conseguinte, como que diluído na duração, a instituição é habitada, permanentemente, por excluídos potenciais que introduzem nela as contradições e os conflitos associados a uma escolarização cujo único objetivo é ela mesma (BOURDIEU e CHAMPAGNE, 2002, p. 221).
Assim, por diversas razões, ainda que estivessem fisicamente inseridos em
classes comuns, muitos indivíduos permaneciam ali segregados, sem um atendimento
educacional adequado. Tal situação vinha sendo percebida e relatada por inúmeros
professores que, mesmo cientes e incomodados com o fato, apresentavam dificuldades
em mobilizar-se para reverter a situação.
A questão da inclusão ainda tem muita coisa a ser resolvida, ainda. A inclusão não se dá simplesmente dele ter o direito, dele estar dentro de uma escola de ensino regular, entendeu? (E. M. Rachel de Queiroz) Eu acho que essa inclusão acaba excluindo o menino, no caso do [Lucas], na sala de aula. (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Nos recortes discursivos acima destacados havia um reconhecimento de que a
inclusão não se dá simplesmente de ele ter o direito de estar dentro de uma escola de
ensino regular – ou comum – e de que tem muita coisa a ser resolvida, ainda,
entretanto, ao invés de investirem numa possível modificação e aprimoramento do
sistema escolar para atender a todos, os professores mostravam-se desacreditados.
Deduziam, a partir daí, que, se a inserção na escola comum acaba excluindo o menino
na sala de aula, uma solução seria o retorno à escola especial.
E tem uma que [a professora] tá querendo colocar prá escola especial e, inclusive, tem laudo médico que diz que ela tem que estar na escola especial, que já passou da hora. (E. M. Ana Maria Machado) Mas um menino que tem um problema mais acentuado como a paralisia cerebral eu acho que a escola especial satisfaz muito bem, porque o trabalho lá é todo voltado prá isso, entendeu? (E. M. Rachel de Queiroz)
Deste modo, um primeiro sentido identificado nos discursos foi o de
institucionalização do desvio – tem que estar na escola especial, que já passou da hora
– sob a justificativa de que a escola especial satisfaz muito bem, porque o trabalho lá é
todo voltado prá isso. Recorrendo a características atribuídas ao aluno para fundamentar
sua argumentação – um problema mais acentuado como a paralisia cerebral – tais
discursos permaneciam, pois, vinculados à formação discursiva da segregação.
De acordo com C.Marques (1998, 2001a/b) e D’Antino (1998), a manutenção de
instituições paralelas para suprir às supostas necessidades de pessoas com deficiência
contribui para a perpetuação dos estigmas existentes e torna tais indivíduos cada vez
mais afastados da comunidade em geral, esquivando a sociedade de promover
modificações significativas em suas estruturas.
Eles poderiam estar inseridos dentro da escola normal, né? Entre aspas e poderia estar freqüentando a escola especializada. (E. M. Maria Adelaide Amaral) O menino que era [...] dessa escola de menino especial. Quando ele era incluído na escola normal, ele vinha com um acompanhamento. (E. M. Maria Adelaide Amaral)
Um processo de deslocamento de sentidos parecia ocorrer à medida que se
admitia que alunos com deficiência com um acompanhamento mantido pela escola
especial poderiam estar inseridos dentro da escola normal, o que situaria os recortes
discursivos numa perspectiva integracionista. O uso recorrente do termo escola normal
em contraposição à noção de escola especializada refletia, no entanto, a manutenção da
estigmatização a partir da marcação da diferença em termos de anormalidade e da
atribuição de uma identidade especial a certos indivíduos.
Eu me sinto excluída enquanto professora de alunos incluídos. (E.M. Bárbara Heliodora) Então, a [Gabriela] é uma aluna de inclusão também que nitidamente você vê. Quem mais que era de inclusão lá? (E.M. Zélia Gattai) A gente viu que não era uma turma de projeto, era uma turma de inclusão. (E.M. Zélia Gattai)
Sem que houvesse uma movimentação do sentido anteriormente exposto, era
comum ocorrer uma espécie de adjetivação dos sujeitos. A aluna de inclusão e os
demais alunos incluídos eram destacados do grupo como um todo e, algumas vezes,
agrupados na chamada turma de inclusão. Assim, conferia-se o adjetivo incluídos a
todos aqueles que, saídos de uma situação mais ampla de exclusão – caracterizada tanto
pela ausência de atendimento, quanto pela segregação em instituição especializada –
fossem inseridos num ambiente de convivência social comum. Através desse
mecanismo de adjetivação, o olhar homogeneizante da modernidade manifestava-se,
produzindo a impressão de que a diferença, que nitidamente você vê, era atributo
exclusivo da aluna de inclusão e não de todas as crianças atendidas pela escola.
Seguindo essa mesma lógica, a diferença – associada ao desajuste, ao desvio ou
à anormalidade – era tomada como a única causa das dificuldades de aprendizagem
sentidas ao longo do processo de escolarização, o que, na lógica da formação discursiva
da integração, levava à busca de alternativas que objetivavam o treinamento e o
desenvolvimento da capacidade de adaptação do indivíduo ao meio. Continuavam
evitando-se, deste modo, reflexões sobre as formas pelas quais as estruturas dos
sistemas escolares contribuíam para dificultar a aprendizagem.
Por outro lado, um novo deslocamento de sentidos parecia ocorrer à medida que
se admitia que certas estruturas escolares eram inadequadas ao atendimento às
necessidades educacionais de todos os alunos.
Mudou o trabalho, a conduta deles mudou. Então vamos mudar a escola como um todo! [...] Gente, não tá errado esse menino na escola, ele tem que estar aqui. Tem que estar aqui, né? (E. M. Adélia Prado)
Referindo-se às crianças provenientes de regiões das periferias do município de
Belo Horizonte, o recorte discursivo apresentado sugeria que não tá errado esse
menino na escola, ele tem que estar aqui e, a partir de tal constatação, parecia
compreender a necessidade de mudar a escola como um todo a fim de atender às
necessidades dele.
Parecia haver uma aproximação entre o sentido expresso nesse discurso e a
concepção de inclusão explicitada por Mantoan (s.n.t.):
O sucesso da inclusão de alunos com deficiência na escola regular decorre, portanto, das possibilidades de se conseguir progressos significativos desses alunos na escolaridade, por meio da adequação das práticas pedagógicas à diversidade dos aprendizes. E só se consegue atingir esse sucesso, quando a escola regular assume que as dificuldades de alguns alunos não são apenas deles, mas resultam em
grande parte do modo como o ensino é ministrado, a aprendizagem é concebida e avaliada. Pois não apenas as deficientes são excluídas, mas também as que são pobres, as que não vão às aulas porque trabalham, as que pertencem a grupos discriminados, as que de tanto repetir, desistiram de estudar.
Na defesa dos direitos de indivíduos e/ou grupos segregados da vivência social
comum, vários setores vêm assumindo a inclusão enquanto um novo paradigma que
pretende romper estruturas excludentes e construir alternativas democráticas e de
qualidade para todos, entretanto, ao longo das entrevistas, diversos discursos
mostraram-se contraditórios na medida em que, expondo iniciativas que julgavam
emancipatórias, acabaram associando-se aos domínios do conhecimento do tipo
regulatório, próprio de formações discursivas excludentes.
Desse modo, o mesmo discurso que declarava a necessidade de mudar a escola
como um todo compreendia, em outro momento, ser preciso a gente estar tentando é,
pelo menos, adaptar esses meninos à escola (E. M. Adélia Prado). Ou seja, o aparente
deslocamento de sentidos em direção a uma formação discursiva inclusiva, que
vislumbramos anteriormente, não se concretizou. Ao invés disso manifestou-se o que
Skliar (2002, p. 213) chamou de “ambição do texto da mesmidade”, que faz com que
tentemos alcançar o outro e escolarizá-lo para que se pareça cada vez mais como o
mesmo, com a nossa suposta normalidade.
De acordo com Mantoan (s.n.t.), “a inclusão é uma inovação, cujo sentido tem
sido muito distorcido.” Pessoalmente, optamos por compreendê-la enquanto um
processo em construção, que assume diferentes sentidos e remete a diferentes formações
discursivas em cada novo contexto. Tomando por referência as discussões suscitadas
por Santos (2002), acreditamos que, à medida que mantiveram como fonte de
reivindicações a reafirmação de um mundo dicotomizado em incluídos e excluídos, as
discussões sobre inclusão ainda não foram capazes de exprimir a diversidade humana
em toda a sua plenitude, o que, no nosso entendimento, permite que seus princípios
sejam cooptados por práticas e discursos regulatórios.
Consideramos os conflitos gerados pelo princípio da inclusão, enquanto parte de
uma transição paradigmática impulsionada por uma série de lutas subparadigmáticas,
cujo principal papel é o de “criar desfamiliarização em relação ao que está estabelecido
e é convencionalmente aceite como normal virtual inevitável necessário” (SANTOS,
2002, p. 16), apontando-lhe as inconsistências e acumulando frustrações, a fim de
“aprofundar a crise do paradigma dominante e acelerar a transição para o paradigma ou
paradigmas emergentes” (SANTOS, 2002, p. 19).
Assistindo aos inúmeros debates, aos conflitos, às possíveis inovações e aos
deslocamentos de sentido gerados pela inserção de crianças com deficiência nos
sistemas escolares comuns, podemos inferir, portanto, que o novo paradigma ainda está
por vir e que os princípios da inclusão nos permitem vislumbrar seus primeiros traços.
No próximo capítulo, além de apresentar as origens de alguns dos mecanismos
excludentes que têm configurado a atuação das escolas na civilização ocidental
moderna, discutimos aspectos relativos a algumas propostas de reorganização que vêm
sendo apresentadas às escolas com o objetivo de questionar-lhes as estruturas e torná-las
mais inclusivas.
2 ORIGENS HISTÓRICAS DOS MECANISMOS DE SELETIVIDADE ESCOLAR
Mecanismos de seletividade e segregação escolar, profundamente arraigados no
imaginário social, são, muitas vezes, tidos como naturais, inevitáveis e, até mesmo,
necessários para a manutenção da ordem nas sociedades modernas. Tais mecanismos
possuem, entretanto, uma origem histórica e servem a uma complexa e sofisticada rede
de controle e ordenação social.
A partir dos estudos de Petitat (1994) sobre a evolução da cultura escolar no
ocidente e apoiados em análises sobre o desenvolvimento e a organização da educação
básica no Brasil podemos identificar alguns elementos que foram sendo historicamente
agregados à forma-escola atualmente predominante.
Para esse autor, a origem das primeiras escolas pode ser localizada em
comunidades urbanas pós Idade Média, dado que a transmissão dos conhecimentos e
das tecnologias na civilização medieval européia era realizada, basicamente, pela
tradição oral e pelo aprendizado corporativo no contato direto entre mestres de ofício e
aprendizes.
Neste período, as poucas escolas elementares latinas existentes eram vinculadas
à Igreja e prestavam-se, inicialmente, à formação religiosa dos futuros monges e padres.
Posteriormente, as mesmas passaram a admitir crianças destinadas à vida laica,
proporcionando-lhes um ensino literário e erudito.
Com a ampliação do desenvolvimento urbano e comercial e com a disseminação
de textos escritos17, a escola elementar religiosa latina passou a atender pouco às
necessidades e exigências de uma parcela crescente da população, dedicada às
atividades comerciais. Surgiu daí a demanda por uma escola elementar moderna que,
nascida à margem das escolas elementares latinas, destinava-se à escolarização do povo
da cidade e do campo.
Em tais escolas ensinavam-se rudimentos de leitura, escrita e aritmética. O
currículo, que também abrangia noções relativas à moeda, ao câmbio e à contabilidade,
era voltado para a resolução de problemas concretos, surgidos na prática comercial.
Ainda segundo Petitat (1994, p. 57), neste contexto o ensino
é ministrado em uma sala única; não é subdividido em séries. O aluno freqüenta este local durante dois ou três anos, de acordo com suas próprias disposições e necessidades. Se demora a apreender os conteúdos, permanecerá mais tempo, mas não será eliminado. A escola não se encerra com a outorga de um título, [...] mas sim é um local em que são dispensados conhecimentos úteis para o comércio e para o futuro aprendizado.
Concluída a escola elementar, uma pequena parcela da população ingressava nas
faculdades de Artes, que se configuravam como opção de continuidade de estudos,
antecipando o papel que viria a ser desempenhado, posteriormente, pelos colégios. Tais
faculdades abrigavam um perfil social mais variado, pois, quando os estudantes não
tinham como pagar as taxas, eram isentados e autorizados a prosseguir o curso.
Além da formação de mestres em Artes, esse nível de ensino preparava para o
ingresso nas faculdades superiores de Teologia, Direito ou Medicina. Estas últimas
evidenciavam um isolamento social marcante, garantindo, por meios indiretos, que
estudantes de origem modesta fossem mantidos à distância dos diplomas superiores
ainda que, em princípio, qualquer pessoa tivesse o direito de adquirir os conhecimentos
e as tecnologias que desejasse.
Algumas observações de Petitat (1994, p. 70) sobre o tempo destinado aos
estudos e o currículo do ensino universitário parecem-nos especialmente interessantes:
Um aspecto que surpreende no processo de seleção é a inexistência de um regulamento que elimine aprendizes ou estudantes com base na excessiva lentidão do aprendizado. Suas vidas não eram regulamentadas através da noção de tempo que hoje nos é familiar. Não existe uma hierarquia estrita dos conteúdos.
No período que se estendeu da Renascença às vésperas da Revolução Industrial,
a criação e a multiplicação dos colégios pelo poder civil, em colaboração com
congregações católicas ou igrejas protestantes, constituiu o fenômeno mais marcante da
história das instituições escolares.
17 Inicialmente, o texto escrito era um instrumento para sistematização e conservação das idéias religiosas, mantido sob poder da Igreja. Em seguida, transformou-se em ferramenta inseparável dos comerciantes e dos que lidavam com as artes jurídicas e médicas.
Por outro lado, alguns colégios derivaram das faculdades de Artes, à medida que
nobres ou eclesiásticos, que até então ofereciam bolsas de estudo para estudantes sem
recursos, passaram a fundar estabelecimentos nos quais os estudantes encontrassem
alojamento e alimentação – os hospitia. Esses alojamentos transformaram-se, por fim,
em estabelecimentos de ensino.
O agrupamento de professores e estudantes em tais locais substituiu a dispersão
dos ensinos individuais e desencadeou a criação de rígidos princípios de controle e
disciplina. Ao mesmo tempo, um contínuo processo de segregação e isolamento social
afastou dos colégios os filhos de camadas mais pobres.
A partir da segunda metade do século XV e durante todo o século XVI, foi
introduzida a graduação sistemática dos conteúdos e a constituição de classes baseadas
no desenvolvimento e na idade dos alunos. Assim, o tempo do estudante, que antes se
dividia em largos períodos adaptáveis ao seu próprio ritmo, passou a ser repartido em
blocos anuais.
Os alunos dispõem de um tempo limitado para assimilar determinadas matérias, para entregar os temas e para apresentar-se aos exames. É o princípio dos prêmios pelo desempenho escolar, das censuras e das recompensas, dos alunos brilhantes e dos preguiçosos. A cada ano, os “bons” são promovidos e os “maus”, rebaixados ou eliminados (PETITAT, 1994, p. 79).
Apropriando-se de tais preceitos, os jesuítas elaboraram o Ratio Studiorum,
documento de referência para a organização das escolas mantidas pela Companhia de
Jesus, enquanto recomendações semelhantes orientavam o funcionamento de outras
escolas católicas e protestantes. Através desses documentos foram disseminadas, pelos
países europeus e suas respectivas colônias, rígidas medidas que pretendiam alcançar
alunos disciplinados e respeitosos da autoridade.
Na Europa e, especialmente, na França, durante os séculos XVI e XVII,
sociedades religiosas e de caridade, reformadores e contra-reformadores deram início ao
dualismo escolar na medida em que ergueram – à parte da escola elementar que
preparava para a entrada no colégio latino – uma escola elementar gratuita para os
pobres, abandonando a iniciação ao latim18 e especializando-se em prover catequese e
rudimentos de alfabetização para o povo.
Apesar do temor relativo a uma suposta ameaça subversiva, representada pela
educação das camadas populares, as escolas elementares gratuitas tiveram um progresso
notável baseado, principalmente, em duas séries de argumentos. Os primeiros, de ordem
moral, objetivavam evitar que os jovens caíssem no vício, no crime ou na imoralidade.
Além desses, argumentos de ordem econômica previam que conhecimentos
rudimentares de leitura, escrita e cálculo colocariam tais estudantes em melhores
condições de trabalhar.
A surpreendente proliferação das escolas elementares gratuitas e as práticas
pedagógicas19 que nelas se desenvolveram constituíram, segundo Petitat (1994, p. 110),
“o verdadeiro início do ensino primário moderno.” Tal progresso foi considerado
excessivo por parte da elite francesa, para a qual o conhecimento das letras não deveria
ser ensinado indiferentemente a qualquer um.
Posteriormente, o desenvolvimento dos Estados-Nações, intensificado nos
séculos XVIII e XIX, fez com que a educação pública passasse a constituir instrumento
primordial de garantia da inculcação “das bases da ordem natural fundamentada na
propriedade” (PETITAT, 1994, p. 144).
Em vários países europeus e, posteriormente, no Brasil, a estatização da
educação, implementada a partir da segunda metade do século XIX, motivou uma série
de reformas do ensino público, com o claro objetivo de homogeneizar, padronizar e
uniformizar a escolarização primária. Deste modo, detalhes da organização escolar
passaram a ser regulamentados pelo Estado:
prescrições sobre o tipo de escolas, localização e provimento, normas para a matrícula e freqüência, sobre os programas de ensino e o método, o material escolar, a forma de fiscalização e controle das escolas, as competências de professores, diretores e funcionários, a escrituração burocrática, a higiene escolar, a disciplina dos alunos,
18 Neste contexto, o conhecimento do latim era essencial para a continuidade dos estudos nos colégios, para o acesso às belas letras e às carreiras eclesiásticas. 19 Um dos principais administradores de escolas elementares gratuitas para o povo foi J.B. de La Salle (França 1651-1719), fundador do Instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. Em Conduta das Escolas Cristãs (1838), estabeleceu as bases da escolarização elementar, fixando horários, designando conteúdos a serem ensinados, subdividindo-os em diferentes níveis, definindo os princípios de distribuição dos alunos de acordo com os conhecimentos adquiridos, instituindo as emulações e sanções a serem aplicadas e determinando rígidos princípios de conduta para os professores.
prêmios e punições, o calendário escolar e o emprego do tempo (SOUZA, 1999, n.p.).
No contexto brasileiro, a organização do tempo foi alvo de uma estreita rede de
especificações, visando a sua utilização racional. O calendário escolar, estabelecido em
189220, foi mantido, em diversos aspectos, até os dias atuais. Neste, o início do ano
letivo, que correspondia aos meses de janeiro e fevereiro, representava o início de uma
nova série ou a repetição da anterior.
Ao ano – unidade fundamental do calendário – foram associadas prescrições
sobre a jornada de estudos que então compreendia cinco horas diárias, mediadas por um
período de descanso de meia hora – o recreio. Foi também estipulada a distribuição
diária das lições e dos exercícios, consubstanciando, segundo Souza (1999, n.p.), “a
fragmentação do saber, indicando o quanto aprender de cada matéria e a hierarquia de
valores que cada uma possuía pelo tempo a ela destinado.”
Ainda de acordo com Souza (1999), neste período foi instituído no país o
controle sobre a freqüência por meio da interdição das faltas e atrasos. O ritual da
chamada, executado diariamente, uma ou duas vezes durante a jornada escolar,
compreendia mais um dispositivo disciplinar do tempo.
Já no século XX, mecanismos variados de seleção e segregação foram sendo
incorporados aos rituais de classificação, padronização, uniformização e hierarquização
de conteúdos, métodos, tempos, espaços e aprendizagens, então existentes nos sistemas
escolares ocidentais. Podemos citar como exemplo a criação das “famigeradas classes
de ‘anormais’” (FONSECA, 1995, p. 71), justificada pela classificação dos estudantes
através da aplicação da Escala Métrica de Inteligência, criada por Binet e Simon, em
1905. A criação de tais classes, com base em avaliações pretensamente científicas,
legitimou o isolamento de estudantes considerados incapazes em instituições de ensino
especial.
Ao longo da história, diversas iniciativas contribuíram para que se disseminasse
por todo o mundo ocidental, inclusive pelo Brasil, uma série de práticas pedagógicas
que consolidaram a forma-escola seriada, elitista e excludente que hoje conhecemos,
entretanto, a partir do século XX, severas críticas passaram a ser dirigidas a esse sistema
20 Com exceção do início e término do ano letivo e das férias de inverno o calendário escolar, estabelecido em 1892 pelo Decreto n° 144-B, de 30/12/1892, em ocasião da primeira reforma da instrução
que não mais respondia às demandas sociais e econômicas das comunidades em
desenvolvimento.
3.1 QUANDO A SELETIVIDADE ESCOLAR EMPERRA O CURSO DO DESENVOLVIMENTO
De acordo com Carvalho (2002), questionamentos sobre a concepção seletiva e
elitista de educação básica começaram a surgir, no Brasil, após a intensificação do
processo de urbanização provocado pelo desenvolvimento industrial brasileiro, por volta
da década de 1920. Tal desenvolvimento desencadeou a ampliação da demanda social
por educação.
Em 1920, um recenseamento escolar realizado no Estado de São Paulo revelou
que cerca de 70% das crianças estavam fora da escola. As vagas disponíveis, entretanto,
não supriam a demanda.
A fim de solucionar o problema do acesso ao ensino fundamental, Sampaio
Dória21, com uma motivação essencialmente pragmática, chegou a propor, em 1918,
que fossem promovidos do primeiro para o segundo ano todos os alunos que tivessem
cursado um ano escolar, só podendo os atrasados repetir o ano se não houvesse
candidatos aos lugares que ficariam ocupados. Segundo ele, “tal medida equivale a não
permitir que se negue matrícula aos novos candidatos, só porque vadios ou anormais
teriam de repetir o ano” (ALMEIDA JÚNIOR, 1957).
Na década de 30 intensificaram-se, no Brasil, os debates entre uma ala católica
que, de um lado, defendia o monopólio da Igreja na oferta de serviços educacionais
restritos às elites e um movimento reformador – responsável pelo conhecido Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova – que, de outro lado, defendia o controle da educação
por parte do Estado, a institucionalização e a expansão de uma escola pública, laica,
gratuita e obrigatória.
Paralelamente, organismos internacionais proclamavam a necessidade de
construção de uma rede de ensino elementar capaz de assegurar à população uma
educação que suprisse as demandas da urbanização. Sob tal perspectiva, a United
pública do Estado de São Paulo, permaneceu estável durante as primeiras décadas do século XX e, de certa forma, até os dias atuais (SOUZA, 1999).
Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO), em colaboração
com a Organização dos Estados Americanos (OEA) e com o Governo do Peru
promoveu, em 1956, a Conferência Regional Latino-Americana sobre Educação
Primária, Gratuita e Obrigatória, durante a qual foi elaborada uma série de
recomendações, dentre as quais destacamos aquelas apresentadas por Almeida Júnior,
representante do Brasil no referido evento:
[...] que se procure solucionar o grave problema da repetência escolar, – que constitui prejuízo financeiro importante e retira oportunidades educacionais a considerável massa de crianças em idade escolar – mediante: a) a revisão do sistema de promoções na escola primária, com o fim de torná-lo menos seletivo, b) o estudo, com a participação do pessoal docente das escolas primárias, de um regime de promoção baseado na idade cronológica do educando e outros aspectos de valor pedagógico, e aplicá-lo, com caráter experimental, nos primeiros graus da escola (CONFERÊNCIA, 1956, p. 166).
A partir daí, intensificaram-se os debates em torno das possibilidades de adoção,
no cenário brasileiro, de programas de promoção automática já praticados em países
ingleses e norte-americanos. Neste contexto, Almeida Júnior (1957) ponderava que tais
programas não se adequariam ao caso brasileiro sem que uma série de condições
adicionais, já disponíveis nos países de referência, fossem aqui adotadas. Nesta mesma
perspectiva, o sociólogo Luís Pereira afirmava que
Ao que tudo indica, a introdução, em futuro imediato, desta prática no sistema escolar primário brasileiro [...] embora eliminasse as altas percentagens de repetência, não afetaria de modo direto e profundo os fatôres dêste fenômeno. A persistência de tais fatôres, sobretudo as precárias condições de funcionamento escolar, determinaria, então, problemas de outra ordem que não a repetência elevada – problemas mais graves, quem sabe? (PEREIRA, 1958, p. 107)
O psicólogo social, Dante Moreira Leite, alertava, em 1959, para o fato de que a
introdução da promoção automática implicaria uma transformação radical da escola, na
medida em que exigiria a modificação de seus objetivos básicos que, até então, eram de
seletividade, controle e moralização. Ele localizava na crença – ainda bastante difundida
nos sistemas educativos atuais – da necessidade de se trabalhar com classes
21 Diretor geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo responsável pela reforma do ensino paulista, em 1920.
homogêneas, a principal fonte de resistência dos professores à instituição da promoção
automática, ponderando que
quando se instala a promoção automática, esse princípio deixa de ser válido, e os vários grupos, dentro de uma classe, devem receber diferentes tarefas e buscar diferentes níveis de realização. Esta modificação da organização da classe e da aula tem conseqüências muito mais amplas do que se poderia pensar (MOREIRA LEITE, 1959, p. 19).
Moreira Leite (1959, p. 23) também preconizava que tal sistema estaria
“destinado ao completo fracasso, se os seus executores – professores, diretores,
inspetores – não estiverem convencidos de sua necessidade, assim como de suas
limitações.” Note-se, além disso, que, apesar de localizar na promoção automática –
devidamente associada à adequação do currículo ao desenvolvimento da criança – a
solução para a transformação da escola numa instituição eficiente, que atendesse ao
ideal de educação universal, o mesmo autor, ao contrário do que atualmente propõem
alguns educadores, acreditava que a promoção baseada na idade cronológica deveria
englobar somente a uma parcela das crianças, “com exceção, é evidente, das crianças
excepcionais” (MOREIRA LEITE, 1959, p. 18).
De acordo com Carvalho (2002), experiências concretas de organização escolar
baseadas no sistema de promoções automáticas começaram a ser implantadas em
diversos estados no final da década de 1950: Rio Grande do Sul, em 1958; Belo
Horizonte, em 1962; Pernambuco, em 1968; Santa Catarina, em 1969; Juiz de Fora, em
1969, entre outras.
Analisando algumas dessas experiências, extintas por não alcançarem êxito no
prazo esperado, Mainardes (1998, p. 22) afirma que a promoção automática, instituída
sem o devido acompanhamento, acabou agravando o problema da escolarização
primária. Ainda, segundo o autor, alguns pontos frágeis são comuns a todas:
ausência de discussão prévia com os professores, insuficientes estratégias de capacitação docente, o não oferecimento das condições necessárias. Em relação ao trabalho pedagógico, percebe-se, em todas elas, dificuldades dos professores com classes muito heterogêneas, indicando que este aspecto é fundamental, devendo ser levado em conta na implantação de propostas com promoção automática.
Recentemente, uma nova proposta de reestruturação da educação básica,
implantada no sistema de educação do município de Belo Horizonte e em outros
sistemas de ensino do país, fez reacender o debate em torno da relação entre promoção
automática, organização escolar em ciclos de formação humana e qualidade da
educação.
3.1.1 Promoção automática e organização escolar em ciclos de formação: algumas diferenças
Embora alguns autores se refiram à organização escolar em ciclos, atribuindo a
esta os mesmos princípios da promoção automática, Freitas (2003), Zaidan (1999) e
documentos da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (BELO
HORIZONTE, 1994/2002) propõem que se estabeleçam diferenciações entre essas
diversas propostas.
De acordo com Zaidan (1999), algumas iniciativas de organização escolar em
ciclos de quatro anos, como a do Ciclo Básico de Alfabetização (CBA) – que, em 1997,
implantou o regime de progressão continuada em Minas Gerais – não rompem com as
bases do ensino seriado na medida em que dividem o ensino fundamental em dois ciclos
de quatro anos e condicionam a conclusão de cada um deles ao resultado de uma
avaliação. A autora afirma, além disso, que tais medidas têm um cunho,
predominantemente, administrativo que pretende, basicamente, garantir um fluxo
contínuo de alunos por um período mais longo e a eliminação dos altos índices de
retenção nas séries iniciais.
Para Freitas (2003), a estratégia de organizar a escola por ciclos de formação
com base em experiências socialmente significativas para a idade do aluno – como, por
exemplo, nas propostas de Porto Alegre, com a Escola Cidadã e de Belo Horizonte, com
a Escola Plural – difere, profundamente, da estratégia de se agrupar séries com o
propósito de garantir a progressão continuada do aluno, como no caso das políticas que
foram recentemente implantadas nos sistemas de educação de São Paulo e Minas
Gerais. De acordo com o autor,
a primeira [organização por ciclos de formação] exige uma proposta global de redefinição de tempos e espaços da escola, enquanto a segunda [promoção automática] é instrumental – destina-se a viabilizar o fluxo de alunos e tentar melhorar sua aprendizagem com medidas de apoio (reforço, recuperação etc) (FREITAS, 2003, p. 9).
O autor insere, pois, a organização por ciclos numa perspectiva de mudança
mais ampla, ressaltando que sua importância está muito mais ligada a um “longo e
necessário processo de resistência de professores, alunos e pais à lógica excludente e
seletiva da escola” (FREITAS, 2003, p. 36) do que a uma solução pedagógica ou
econômica para o problema do fluxo escolar.
Por fim, alguns autores que refletem sobre o desenvolvimento de práticas
inclusivas nas escolas indicam a implantação dos ciclos de formação como uma solução
que, embora ainda muito incompreendida pelos professores e pais, pode favorecer o
acolhimento a todos os alunos, sem discriminação.
De acordo com a cartilha O acesso de alunos com deficiência às escolas e
classes comuns da rede regular (2004, p. 33),
se dermos mais tempo para que os alunos aprendam, eliminando a seriação e a reprovação nas passagens de um ano para outro, estaremos adequando a aprendizagem ao que é natural e espontâneo no processo de aprender e no desenvolvimento humano, em todos os seus aspectos.
Arroyo (2000, n.p.), por sua vez, afirma que “se queremos uma escola inclusiva,
vamos ter que aprofundar as diversas manifestações, as diversas dimensões da escola
excludente.” Assim, a princípio, espera-se que as reflexões em torno da reorganização
da escola na dinâmica dos ciclos de formação sejam capazes de aprofundar os debates e
evidenciar essas dimensões excludentes a fim de que se construam estratégias para
superá-las.
Vejamos em que bases foram estabelecidos os eixos que constituem o programa
político-pedagógico que, desde 1994, passou a orientar a organização do sistema de
educação no Município de Belo Horizonte.
3.2 A ESCOLA PLURAL ENQUANTO PROPOSTA DE INTERVENÇÃO NAS ESTRUTURAS SELETIVAS DO SISTEMA ESCOLAR
Em um dos primeiros Cadernos Escola Plural (BELO HORIZONTE,
1994/2002) publicados pela SMED/BH com vistas a divulgar o Programa e fornecer
algumas diretrizes para as escolas, seus organizadores afirmam que a estrutura do
sistema escolar atual, constituída há mais de um século, peneira e segrega em nome da
lógica da precedência das séries, da rigidez das avaliações e de uma uniformidade que
não reconhece as diferenças entre os estudantes.
A consolidação desse modelo de escola graduada foi, segundo Sacristán (2001),
uma das primeiras iniciativas da modernidade para ordenar a complexidade provocada
pela variedade evolutiva dos sujeitos, relegando as diferenças – e, conseqüentemente, a
deficiência – para o campo do distúrbio.
Na tentativa de redefinir aspectos significativos da estrutura e organização das
escolas, objetivando uma profunda intervenção nos mecanismos excludentes desse
sistema escolar e na cultura seletiva que os legitima, a Escola Plural organizou-se em
torno de quatro núcleos, aos quais dirigiremos nossa análise.
3.2.1 Eixos norteadores da Escola Plural
De acordo com documentação da SMED/BH (BELO HORIZONTE,
1994/2002), o Programa em questão assumiu, em seus princípios, uma série de ações
inovadoras que vinham sendo desenvolvidas nas escolas da Rede por iniciativa de seus
profissionais. Tais ações apontavam para uma intervenção coletiva mais radical, que
alcançasse a raiz do problema da evasão escolar, da reprovação e da repetência,
garantindo, assim, o direito popular à educação e à cultura.
Pretendia, a partir daí, que dimensões culturais da formação humana – até então
marginalizadas em prol de uma estreita concepção de educação voltada basicamente
para o domínio de habilidades e saberes que visam à inserção no mercado de trabalho –
fossem incorporadas no cotidiano escolar.
O Programa previa também a desconstrução da noção de escola enquanto tempo
de preparação da criança para vivência de direitos no futuro. Propunha que as
instituições educacionais fossem repensadas como tempos e espaços da cidadania e dos
direitos no presente, “sem sacrificar auto-imagens, identidades, ritmos, culturas,
linguagens, representações etc, em nome da preparação para a vida adulta” (BELO
HORIZONTE, 1994/2002, p. 12).
Ainda segundo o Programa, os profissionais da educação – sujeitos centrais das
modificações em curso na Rede Municipal – estavam alargando não só sua concepção
sobre a formação dos alunos, mas sua própria concepção de capacitação profissional.
Reivindicavam ser reconhecidos como sujeitos sócio-culturais, com direito a tempos,
espaços e condições de participação na cultura.
Ao introduzir o núcleo vertebrador que tratava da reorganização dos tempos
escolares, o Programa afirmava que rupturas ou interrupções do processo de
socialização-formação entre sujeitos na mesma idade-ciclo “não são justificáveis por
diferenças de raça, classe, gênero, ritmo de aprendizagem etc.” (BELO HORIZONTE,
1994/2002, p. 17).
3.2.2 Reorganização dos tempos escolares
A organização escolar em ciclos de formação era, como já foi dito, um dos
principais núcleos do programa pedagógico da Escola Plural. O ciclo incorpora uma
concepção de formação global do sujeito, considerando a diversidade e os ritmos
diferenciados no processo educativo e contrapondo-se à noção temporal em vigor na
maioria das escolas.
De acordo com Freitas (2003, p. 55), há uma lógica, historicamente, construída,
cuja função de segregação e dominação já está posta nos sistemas escolares, à qual os
ciclos deverão contrapor-se. “Os ciclos desejam contrariar essa lógica. Aí reside parte
de sua dificuldade: há um preço a ser pago por se contrariar lógicas instituídas.”
Esse modelo temporal tradicional que se organiza em torno de ritmos médios e
de uma suposta simultaneidade na aprendizagem dos conteúdos foi, durante mais de um
século, se cristalizando em calendários, níveis, séries, semestres, bimestres, rituais de
transmissão, avaliação, reprovação e repetência.
Tal organização ignora as diferenças sócio-culturais e os ritmos diferenciados de
aprendizagem, impondo-se sobre alunos e profissionais da educação a partir de um
sistema seletivo e excludente.
A questão do tempo escolar é, pois, crucial para se repensar as práticas de
segregação de diversas crianças, especialmente daquelas que são agrupadas em classes
ou escolas especiais, sob a justificativa de que têm dificuldades de “acompanhar o
tempo da turma”. Sampaio (2001, p. 5) fornece-nos uma interessante reflexão sobre a
rigidez deste tempo escolar institucionalizado:
A criança precisa aprender e a professora precisa ensinar neste tempo homogeneizador e pré-definido para todos. Na medida em que a criança não acompanha o “tempo” da turma, que é o “tempo” imposto pela escola, ela é posta “de lado”. [...] Se o tempo de ensinar/aprender não coincidir com o tempo do relógio, o tempo vivido é considerado tempo perdido (grifos da autora).
A fim de superar tal lógica, o Programa Escola Plural propunha a reorganização
do tempo de escola, de ensino-aprendizagem e de socialização a partir de princípios
temporais mais democráticos. Assim, o tempo escolar passaria a ser organizado em
fluxos mais flexíveis, mais longos e mais atentos às múltiplas dimensões da formação
dos sujeitos sócio-culturais. Os educandos – e não mais o conteúdo – passariam a ser
seu eixo vertebrador.
Neste sentido, a organização da educação básica na Escola Plural era feita em
três ciclos de formação. Ao primeiro ciclo básico correspondia o período característico
da infância que compreendia alunos que estivessem na faixa de idade 6-7; 7-8; 8-9 anos.
O segundo ciclo básico abarcaria alunos que estivessem na faixa de 9-10; 10-11; 11-12
anos, período característico da pré-adolescência. O terceiro ciclo correspondia, por fim,
ao período característico da adolescência, que compreendia a faixa etária de 12-13;13-
14; 14-15 anos.
Ao explicitar os princípios de tal organização, o Caderno Escola Plural:
Proposta político-pedagógica (BELO HORIZONTE, 1994/2002, p. 12) afirmava que
a Rede Municipal de Belo Horizonte não pretende aderir a propostas fáceis de promoção automática, rebaixamento das exigências, empobrecimento dos conteúdos para barateamento dos cursos da educação popular.
Parece-nos importante salientar, no entanto, que, na ocasião da pesquisa, a
confusão em torno das diferenças de significado entre o princípio da organização em
ciclos e da promoção automática – já discutidos no início do presente capítulo – ainda
gerava intensa polêmica e dúvidas sobre as possibilidades reais de oferta por parte da
Escola Plural de uma formação de qualidade à população.
3.2.3 Processos de formação plural
Atrelada ao princípio de organização da educação básica em ciclos estava a
noção de que o conhecimento escolar não pode continuar reduzido à
transmissão/reprodução de conteúdos preestabelecidos.
Na medida em que assumia o desenvolvimento integral dos alunos, o Programa
Escola Plural propunha que o conhecimento escolar fosse construído a partir de uma
visão globalizante, que reconhecesse e refletisse sobre questões de interesse social,
tendo como referência diversos aspectos culturais, até então descolados das disciplinas.
A ampliação da relação entre ensino e aprendizagem pela noção de formação
humana é essencial para a construção de uma educação inclusiva, pois o princípio
difundido no imaginário social mais amplo de que professor é aquele que ensina e aluno
é aquele que aprende determinados conteúdos, num determinado tempo e espaço, parece
dificultar a nós, professores, o desenvolvimento de estratégias para lidar com a
diversidade constituída de alunos que não aprendem os conteúdos determinados no
tempo, espaço e ritmo estipulados.
3.2.4 Avaliação na Escola Plural
A organização escolar baseada em ciclos de formação implica, necessariamente,
um debate bastante intenso sobre os mecanismos de avaliação, envolvendo os
profissionais das escolas e os membros da comunidade escolar.
Uma das publicações da SMED/BH (BELO HORIZONTE, 1996a/2002),
distribuída às escolas, afirmava que a avaliação escolar, enquanto mecanismo
ideológico, vinha sendo usada como instrumento de coerção e controle social, pois, é
através dela que, muitas vezes, a escola justifica a seleção social, a discriminação e até a
segregação de determinados indivíduos.
Segundo Mantoan (2000b, p.2), entretanto, “escola de qualidade não é escola
que reprova, que retém o aluno, que expulsa o que não aprende, que discrimina os que
têm dificuldade, que destrói a auto-estima do aluno,” por isso, na medida em que
proclama a educação como um direito de todos, qualquer programa educacional que se
pretenda democrático precisa questionar essa visão reduzida e equivocada dos processos
de avaliação.
A eliminação da prática de reprovação ao final do ano constituía, no entanto, um
dos principais entraves à aceitação do Programa Escola Plural por parte dos professores
e demais membros da comunidade escolar. Soares (2002, p. 75), ao relatar o trabalho de
pesquisa realizado junto aos professores de uma escola da Rede Municipal de B.H.,
afirmou:
É possível perceber, através destas falas, o peso e a importância da nota e da reprovação na cultura escolar. Sua abolição desestruturou as relações de poder na escola e significou, para os docentes, a perda de referências fundamentais do seu trabalho: avaliar, manter a disciplina, exercer o controle sobre o processo de aprendizagem de seus alunos e alunas.
De acordo com Firme (1994), diversos mitos, construídos em torno da avaliação
e da aprovação escolar, precisam ser desmontados para que se avance no sentido de uma
mudança. Tais mitos, há muito, vêm servindo como justificativa para as práticas de
reprovação, como se essas fossem necessárias para garantir a qualidade do ensino.
Dúvidas a respeito dos procedimentos avaliativos são também levantadas
quando a questão é a inserção de crianças com deficiência em classes comuns do ensino
regular. Os objetivos de sua escolarização e os critérios a serem considerados nos
momentos de avaliação ainda constituem objeto de profundos questionamentos. De
acordo com Arroyo (2000, n.p.), não é fácil mudar a cultura da reprovação, pois as
escolas acabam criando estratégias paralelas para continuar segregando. Assim, “os
mecanismos de avaliação segregativa continuam presentes sutilmente.”
Acreditamos, portanto, que a superação dos mecanismos seletivos que vigoram
nos sistemas escolares demandará intensos debates e profundas modificações,
introduzidas não só na estrutura dos sistemas educacionais mas, principalmente, nos
mecanismos ideológicos que lhe servem de sustentação.
No que tange à democratização do atendimento educacional prestado às crianças
com deficiência, os debates mostravam-se ainda mais acirrados. Ao longo das
entrevistas com os professores das escolas pesquisadas, pudemos reconhecer sentidos
variados atribuídos à Escola Plural, associados à questão da construção da escola
inclusiva, os quais passamos a analisar.
3.3 ESCOLA PLURAL E INCLUSÃO: O QUE OS DISCURSOS NOS REVELARAM
Embora inúmeros sentidos sobre a Escola Plural tenham sido identificados no
discurso dos professores entrevistados, ao longo do presente texto optamos por expor
somente aqueles que nos pareceram melhor contribuir para a compreensão das relações
entre as mudanças suscitadas pelo Programa e os processos de inserção de crianças com
deficiência no cotidiano das escolas.
Eu acho que a assistência, mesmo. A preparação dos professores prá essa mudança. Ela não foi legal, né? Foi uma coisa que foi lançada muito, assim, de uma vez. [...] Isso aí eu acho que até ajuda as pessoas a terem resistência a entender o Projeto, né? (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Assim como diversas outras pesquisas também apontaram (MAINARDES,
1998; DALBEN, 1998, 2000; SOARES, 2002), os professores entrevistados foram
unânimes em censurar o processo de implantação da Escola Plural caracterizando-o,
muitas vezes, como uma bomba [...] um crime com o professor [...] uma falta de valor
(E.M. Ruth Rocha). A falta de assistência oferecida às escolas e a escassa preparação
dos professores prá essa mudança também foram outros itens apontados como
passíveis de críticas.
Ao afirmar que isso até ajuda as pessoas a terem resistência a entender o
projeto, o recorte discursivo apresentado recorria aos fatores citados para tentar explicar
por que tantos professores demonstravam um olhar reducionista e, até mesmo, certo
desinteresse ou desconhecimento dos princípios do Programa.
Mas eu acho que se a gente perguntar quem é que faria, hoje, a opção de voltar para o modelo seriado [...] eu acho que a gente não vai encontrar professor que fala “tenho saudades daquela escola que a gente trabalhava há dez anos atrás”. Eu acho que nós somos, hoje, profissionais muito melhorados. (E. M. Cecília Meireles) Eu avalio que o nosso processo, apesar de ter tido lá seus problemas, suas dificuldades, a escola avançou mais nos últimos, né? [...] Desde a organização, a organização pedagógica, né? Dos tempos, dos espaços, dos alunos, dos professores. [...] O mais importante que eu acho, também, é a cabeça de todo mundo, né? Que muda. As nossas atitudes, os nossos procedimentos, a nossa maneira de encarar o trabalho da gente. (E.M. Ruth Rocha)
Por outro lado, pudemos perceber que, em ambientes onde nos foram relatadas
experiências de organização coletiva em torno de projetos comuns de trabalho, os
discursos tendiam a associar à Escola Plural o mérito de ter auxiliado os professores a se
tornarem profissionais muito melhorados e a repensarem os sentidos da escola.
Avaliavam, assim, que apesar de ter tido lá seus problemas, suas dificuldades,
a escola avançou com relação à estrutura seriada à qual nós, professores, fomos
habituados e da qual ainda não conseguimos nos libertar completamente. Para alguns
grupos, o Programa adquiriu um sentido positivo, de importantes mudanças em nossas
atitudes, os nossos procedimentos, a nossa maneira de encarar o trabalho da gente.
Se fosse na escola sem ser Plural, a nossa escola tradicional, a seriada, a escola de oito anos atrás, esse aluno iria para a última sala. Aliás, ele nem ia estar aqui, né? Porque ele não ia ter acesso à escola. (E. M. Maria Adelaide Amaral) A inclusão, se ela fosse numa escola formatizada, né? Uma escola mais tradicional, já começaria até a barreira por aí. Até pela estruturação, pela não abertura em determinadas situações. A inclusão, talvez, não aconteceria tão mais fluente como acontece através do projeto da Escola Plural. (E.M. Bárbara Heliodora) Eu acho que toda essa discussão de inclusão tem acontecido com a diretriz da Escola Plural que é a inclusão, né? O trabalho de inclusão. Então, assim, eu acho que é com a implementação da Escola Plural que se abre essa possibilidade de inclusão das crianças com necessidades especiais. (E. M. Ana Maria Machado)
Durante as entrevistas, muitos professores associavam à nossa escola
tradicional, a seriada, barreiras ao acesso de crianças com deficiência às classes
comuns. Paralelamente, eram unânimes em afirmar que a implementação da Escola
Plural abre essa possibilidade de inclusão, entretanto, conforme se verá com maiores
detalhes nos itens 4.4 “Aprendizagem, desenvolvimento e enturmação” e 4.5
“Avaliação: entre a emancipação e o controle”, poucos eram os professores que
acreditavam na oferta de um ensino de qualidade sem que houvesse a possibilidade de
retenção dessas crianças quando seu desenvolvimento não correspondesse às
expectativas.
Agora, a questão do ciclo tem que ser muito, também, discutida ainda por causa desses meninos. Acho que eles estão acompanhando os pares de idade, nada mais. Porque o progresso é muito pequeno, né? (E.M. Ruth Rocha)
O problema hoje é que todos estão na escola, mas a escola não está dando conta de atendê-los. Quer dizer, o problema continua, né? (E.M. Ruth Rocha) A questão da retenção que acho que o que pega mais na Escola Plural atualmente é isso, né? Eu acho que ela tem que ser revista. (E. M. Cecília Meireles)
Para a maioria dos entrevistados, à medida que todos estão na escola, mas a
escola não está dando conta de atendê-los, a proposta da organização em ciclos tem
que ser revista. Assim, ainda que os professores vissem na Escola Plural uma
alternativa para a inserção de diversas crianças antes segregadas, diante das dificuldades
em promover o aprimoramento da organização escolar a fim de torná-la mais adequada,
recorriam novamente à retenção, porque o progresso é muito pequeno. Outros
sugeriam, ainda, o retorno das crianças mal atendidas pela escola comum para a escola
especial.
Concluímos, a partir daí, que ainda não havia sido alcançada a percepção de que
a escola é estruturalmente excludente e de que é preciso rever suas bases para favorecer
tanto aos estudantes que, tradicionalmente, fazem parte de sua clientela, quanto às
crianças com deficiência que possam ali ingressar. Não seria, pois, anulando o
incômodo de sua presença através da retenção ou da segregação em escolas especiais
que iríamos esconder o fato de que o problema continua.
No próximo capítulo, além das iniciativas oficiais relativas ao atendimento
educacional às pessoas com deficiência no Município de Belo Horizonte apresentamos,
por temáticas, a análise das observações e entrevistas que realizamos nas escolas
pesquisadas.
4 A EXPERIÊNCIA DE BELO HORIZONTE
4.1 BREVE HISTÓRICO SOBRE O ATENDIMENTO EDUCACIONAL PRESTADO PELO PODER PÚBLICO MUNICIPAL ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
No presente item abordamos, especificamente, a questão do atendimento
educacional prestado às pessoas com deficiência pelo poder público Municipal. A fim
de contextualizar tal atendimento, faremos, inicialmente, um rápido resgate histórico
sobre a experiência de Belo Horizonte.
De acordo com publicação da SMED/BH (BELO HORIZONTE, 2000a), o
Município de Belo Horizonte passou a (co-)responsabilizar-se pelo atendimento
educacional às pessoas com deficiência em 1982, por meio de convênios de cooperação
firmados entre a Secretaria Municipal de Educação e instituições especiais da rede
privada. Até então, a oferta desse tipo de atendimento era de responsabilidade exclusiva
de instituições particulares ou estaduais.
Uma correção na data segundo a qual foram iniciados os convênios pode ser
proposta com base na Resolução n. 0443 (ANEXO H) que, em 1980, aprovou o
convênio celebrado entre a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e a APAE.
Por meio de tais acordos, a SMED/BH colocava à disposição das instituições
conveniadas três a cinco professores municipais PM122 – quantidade variável de um
convênio para outro – em troca de um número preestabelecido de vagas para o
atendimento a alunos do primeiro grau da Rede Municipal de Educação cujas
características cognitivas, físicas ou comportamentais dificultassem sua adaptação aos
padrões exigidos pela escola comum. Neste contexto,
a atuação da Secretaria Municipal de Educação caracterizava-se pela adoção de medidas recuperadoras, corretivas ou de adaptação escolar, típicas de uma educação compensatória, marcada pelo enfoque terapêutico e assistencialista (BELO HORIZONTE, 2000a, p. 14).
De acordo com Coelho (2003, p. 84), não havia critérios definidos para o
encaminhamento desses alunos às instituições, nem divulgação ampla de tal
22 PM1 indica o professor que prestou concurso para trabalhar no ensino fundamental.
possibilidade. “Os pais ou responsáveis pelas crianças é que, quando tinham
conhecimento da oferta de tais serviços, procuravam a SMED/BH para tentar obter o
que se convencionou chamar de bolsa de estudo.”
Sob nova gestão a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
promoveu, entre 1989 e 1992, uma série de modificações no atendimento a educandos
com deficiência. Segundo Coelho (2003), diretrizes da Constituição Federal,
promulgada em 1988, deram novo impulso à política educacional do Município.
Isso porque, à medida que, no item III, do artigo 208, reconhece o ensino
obrigatório e gratuito como direito público subjetivo e institui o “atendimento
educacional especializado dos portadores de deficiência, preferencialmente na rede
regular de ensino” (BRASIL, 1988), a Constituição garante ao cidadão o direito de
exigi-lo às autoridades competentes.
No ano seguinte à Constituição, a Lei Federal n. 7.853, de 24 de outubro de
1989, em seu art. 1º, estabelece “normas gerais que asseguram o pleno exercício dos
direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva
integração social” (BRASIL, 1989) e norteia, no Município de Belo Horizonte, a
elaboração da Lei n. 5.602/89 que institui a matrícula compulsória de alunos com
deficiência física nas escolas municipais (BELO HORIZONTE, 1989a). Através de um
breve exame dos convênios firmados entre a SMED/BH e instituições especiais
particulares como a APAE (BELO HORIZONTE, 1980), percebe-se que, até então,
alunos que apresentassem deficiência física eram também encaminhados ao
atendimento fora das escolas comuns, ainda que tal condição não estivesse associada a
comprometimentos mentais.
Já em 1990, houve uma ampla descentralização da administração municipal com
a criação de nove administrações regionais. Neste contexto foi criado, no interior da
SMED/BH, o Departamento de Organização Escolar (DOEED), no qual passou a existir
o Serviço de Ensino Especial, órgão técnico responsável pela coordenação da Educação
Especial no Município23. No mesmo ano tal Serviço definiu, junto a orientadores e
supervisores educacionais, procedimentos e critérios para diminuir o encaminhamento
indiscriminado de alunos para tratamento e atendimento em escolas especiais.
23 Até então não havia órgãos específicos para a coordenação de serviços de Educação Especial e a administração dos convênios era de competência do Departamento de Assistência ao Educando através do Serviço de Encaminhamento Escolar.
Naquele contexto, a Prefeitura, que ainda não dispunha de estruturas próprias
para atender à demanda de alunos com deficiência, idealizou o chamado Projeto Livre
Trânsito (BELO HORIZONTE, 1989b) que, segundo Coelho (2003, p. 88), “implicava
um compromisso formal no oferecimento de vagas na rede própria de atendimento.”
Em linhas gerais, esse Projeto previa a instalação de Centros de Educação
Especial em cada uma das nove regionais administrativas do Município, com o objetivo
de facilitar a integração dos alunos atendidos às escolas comuns, entretanto, a criação de
tais Centros – não concretizada por depender de dotação orçamentária suplementar – foi
substituída pela implantação de três escolas municipais de Educação Especial.
Em 1990, foi então criada a Escola Municipal de Ensino Especial Centro-Sul,
que passou a funcionar num prédio onde também foram instaladas escolas comuns, com
o objetivo de facilitar o trânsito e a integração dos alunos. A segunda Escola Municipal
de Ensino Especial foi criada em 1991, na Regional Venda Nova, em prédio projetado
com instalações adaptadas e planejamento do espaço, tendo em vista as necessidades
especiais do alunado. Os professores desta escola participaram de cursos em parceria
com a SMED/BH, constituíram grupos de estudos e elaboraram o projeto pedagógico da
instituição. A partir do registro das experiências vividas no cotidiano dessa escola, foi
também editada uma revista anual que, além de relatar a história da criação da
instituição, registrou diversas reflexões e estudos de caso escritos pelos professores
sobre o trabalho junto aos alunos (EDUCAÇÃO ESPECIAL, 1995, 1996).
Ainda em 1991, a SMED/BH criou o Centro de Aperfeiçoamento de
Profissionais da Educação (CAPE), setor responsável pela formação continuada em
serviço dos educadores municipais. No início, a estrutura organizativa do CAPE incluía
uma Oficina de Educação Especial, posteriormente suprimida e substituída por um
Núcleo de Educação Especial, responsável pelas ações de formação específica no
contexto da Rede Municipal.
Em dezembro de 1992 foi inaugurada, na Regional Oeste, a Escola Municipal de
Ensino Especial Frei Leopoldo que funcionava em uma casa alugada com estrutura
arquitetônica inadequada24 e com professores que não tinham experiência em Educação
Especial e que não tiveram, em sua formação acadêmica e/ou em serviço, oportunidades
de acesso a conhecimentos na área.
A partir de 1992, salas de recursos começaram a ser instaladas nas Regionais
onde não havia escolas especiais. Tal implantação foi regulamentada pela Resolução n.
001/92, com base na Lei Municipal n. 3.908/84 que prevê o emprego de
equipamentos, recursos didáticos e professores especializados para complementar o trabalho realizado com alunos com deficiência e/ou necessidades educacionais especiais integrados em turma comum do ensino regular nos níveis pré-escolar e ensino fundamental (BELO HORIZONTE, 1984).
Neste contexto, a criação das escolas especiais visava à preparação dos alunos
com deficiência para serem integrados nas escolas comuns, enquanto as salas de
recursos seriam equipamentos de apoio pedagógico para aqueles já integrados.
Na ocasião da pesquisa, a manutenção deste tipo de atendimento paralelo era
ponto polêmico entre os profissionais da educação sendo, por uns, considerada um
mecanismo de sustento da noção de que o atendimento às necessidades de crianças com
deficiência seria responsabilidade de especialistas, desvinculados da escola comum. A
própria SMED/BH admitia que
o contingente de alunos encaminhados refletia a tendência das escolas em considerar a sala de recursos como alternativa para superação do fracasso escolar, uma espécie de ‘tábua de salvação’ para os problemas do ensino regular (BELO HORIZONTE, 2000a, p. 21, grifo do autor).
Durante a gestão municipal no período 1993-1996 houve uma expansão do
atendimento educacional especializado por meio da ampliação dos contratos da
SMED/BH com instituições da rede privada. O poder público optou, naquele momento,
por contratos de compra de vagas (concessão de bolsas de estudo) e por convênios de
cooperação ou adjunção (um Professor Municipal PM1 para cada oito vagas para alunos
com deficiência) junto a dez instituições especializadas, sob a justificativa de
incapacidade da rede pública para garantir o atendimento à demanda.
Em 1994, o efervescente movimento para a elaboração das diretrizes do
Programa Escola Plural fomentou a criação do setor de Coordenação de Política
Pedagógica (CPP) a fim de viabilizar a articulação de grupos de trabalho e a produção
de material formativo e informativo.
24 Em 1997 a escola foi transferida para um prédio próprio, arquitetonicamente projetado para atender às necessidades de seu alunado.
Ainda sob formato experimental provisório25, autorizado pelo Conselho Estadual
de Educação (CEE), a Escola Plural, enquanto Programa de Governo, começou a ser
apresentada às escolas da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte no final do
ano de 1995.
Ao mesmo tempo em que ocorria a implantação do Programa, a equipe
responsável pelo setor de Educação Especial no CAPE coordenava fóruns de discussão
regionalizados sobre a questão do atendimento educacional às pessoas com deficiência.
Neste contexto, foi criado o Fórum das Escolas Especiais, objetivando à
problematização de questões como a organização e funcionamento destas escolas, a
terminalidade, a formação docente, o cadastro escolar, os critérios adotados para o
encaminhamento de alunos e a interface com outras Secretarias e áreas afins. Esse
fórum foi, posteriormente, redimensionado e ampliado com a participação de outros
setores educacionais, passando a denominar-se Fórum da Educação Especial.
Além desse, a articulação entre trabalhadores da saúde e da educação deu origem
ao Fórum de Atenção à Saúde Mental da Criança e do Adolescente, envolvendo
representantes das nove Regionais do Município. Reunidos, os fóruns regionalizados
passaram a constituir o Interfórum de Saúde Mental, posteriormente denominado Fórum
da Criança e do Adolescente que contava com a participação de trabalhadores da
Educação, Saúde, Desenvolvimento Social, representantes dos Conselhos Tutelares,
gestores e outros segmentos da população.
Entre 1997 e 2000, novos gestores do sistema de educação do Município
optaram, segundo Coelho (2003, p. 101), por realizar um diagnóstico dos órgãos e
serviços que atuavam junto aos alunos com deficiência. Para tal, foi contratada uma
consultoria específica, visando “avaliar as condições de infra-estrutura, recursos
humanos e programas da SMED/BH, no que se referia à Educação Especial e, além
disso, propor diretrizes para a prevenção, diagnóstico e serviços terapêuticos no
atendimento a alunos com deficiência na RME.”
25 Até 2003, a Escola Plural ainda funcionava em caráter provisório, por não ter sido regulamentada pelo Conselho Municipal de Educação. Apesar disso, a possibilidade da organização escolar em ciclos de formação foi reconhecida, em âmbito nacional, em 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394/96, cujo Art. 23 institui que: “A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar” (BRASIL, 1996).
Com base em observações de campo, levantamento de dados, reuniões e
entrevistas envolvendo instituições especiais e comissões compostas por membros dos
diversos órgãos da Educação Especial no Município, os consultores procuraram levar os
profissionais a refletir sobre sua atuação, o que, segundo Coelho (2003), resultou em
inúmeros conflitos e resistências.
Ainda segundo a autora, apesar de todas as críticas às quais foi submetida, tal
consultoria impulsionou “a reestruturação dos organismos que gerenciavam a Educação
Especial na SMED/BH e a adoção de novos rumos na condução da política para o
atendimento a pessoas com deficiência” (COELHO, 2003, p. 104).
Assim, uma vez corrigidas as distorções detectadas nos contratos e convênios
junto às escolas especiais privadas, a SMED/BH passou a priorizar o ingresso de alunos
com deficiência em escolas municipais e estaduais, encaminhando-os para a rede
privada somente quando declarada a impossibilidade de atendimento pela rede pública,
no entanto a assinatura, mesmo que reduzida, de convênios e contratos com instituições
especializadas, somadas à manutenção de escolas municipais de Educação Especial,
ainda constituía uma rede paralela de atendimento que acabava por legitimar e perpetuar
mecanismos de seletividade no sistema educacional. Para exemplificar tais mecanismos,
recorremos ao relato de um professor da Escola Municipal de Ensino Especial de Venda
Nova (EDUCAÇÃO ESPECIAL, 1996, p. 6), segundo o qual
A Educação Especial tem como campo de trabalho um espaço contraditório, pois enquanto se propõe a integrar a pessoa portadora de deficiência na escola comum, esta, por sua vez, faz o movimento de encaminhar para a escola especial seus alunos que apresentam dificuldades no aprendizado, mesmo sem portar qualquer deficiência, excluindo aqueles que não se adequam à estrutura preestabelecida pelo sistema educacional.
Um dado importante fornecido pela SMED/BH (BELO HORIZONTE, 2000a, p.
18) é o de que, apesar de as escolas de Educação Especial do Município terem sido
criadas com a intenção de cumprir função integradora, a maioria dos alunos que nelas
ingressavam permaneciam nessas escolas por tempo indeterminado. Assim sendo, um
dos maiores desafios com relação a esse tipo de serviço era o de ressignificá-lo na
perspectiva da consolidação da educação inclusiva.
Por outro lado, a implantação do Programa Escola Plural – cujo objetivo era
reverter o percurso de exclusão social de crianças e adolescentes e garantir a oferta de
educação de qualidade para todos – e a difusão dos princípios da educação inclusiva a
partir da Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), gerou o aprofundamento dos
debates sobre a manutenção de estruturas isoladas de atendimento especial e incentivou
a construção de estratégias que favorecessem a inserção de alunos com deficiência nas
escolas comuns e em outros espaços sociais não segregados.
Deste modo, escolas comuns da Rede Municipal passaram a ser desafiadas a
atender às crianças com deficiência, condutas típicas e/ou dificuldades de
aprendizagem, até então encaminhadas para atendimento exclusivamente nas escolas
especiais.
Vale ressaltar que a simples matrícula desses alunos nas escolas comuns não
garantia o atendimento adequado à diversidade presente no cotidiano das escolas. Para
tal, eram necessárias alterações na lógica da organização escolar e na prática
pedagógica, o que pressupunha profundas modificações de cunho ético, político,
cultural e ideológico.
4.2 A EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA ESCOLA PLURAL: SENTIDOS EM CONSTRUÇÃO
Conforme já exposto, a implantação de serviços de Educação Especial na
Prefeitura de Belo Horizonte foi, inicialmente, realizada sob a lógica da integração que,
no entanto, tem se revelado insuficiente no combate à segregação e na promoção de
igualdade de oportunidades educacionais para todos.
No contexto da Escola Plural, cujos princípios visavam “assegurar o acesso e o
percurso escolar a todos os educandos, construindo uma escola qualitativamente capaz
de responder aos desafios da heterogeneidade” (BELO HORIZONTE, 2000a, p. 29), o
ingresso, cada vez mais freqüente, de alunos com deficiência às escolas comuns poderia
contribuir para a revisão de práticas, para a formação de novas competências e para a
construção de estratégias de ensino/aprendizagem mais condizentes com as
necessidades do alunado em geral.
Na medida em que estabelecemos como principal objetivo do presente estudo
compreender os sentidos que os professores vinham construindo a respeito do Programa
Escola Plural, dos princípios da educação inclusiva e da relação de ambos com a
inserção de crianças com deficiência nas classes comuns, uma breve exposição sobre as
ações implementadas por parte do Município, visando ao acesso e permanência dessas
crianças nos auxiliou a visualizar parte do contexto que influía nessa construção de
sentidos.
No documento O especial na educação: a experiência de Belo Horizonte,
publicado pela SMED/BH (BELO HORIZONTE, 2000a), encontramos algumas
indicações sobre estratégias oficiais que vinham sendo adotadas. Primeiramente, o
documento anunciava a prática de conferir-se prioridade à matrícula de crianças com
deficiência na Educação Infantil.
Assim, na ocasião das entrevistas, quando eram abertas as inscrições objetivando
ao sorteio de vagas para esse nível de ensino, as crianças, cujos pais haviam informado
sua deficiência no momento da inscrição, tinham sua vaga, automaticamente, reservada.
Justificava-se tal procedimento pela impossibilidade de atender a toda a demanda por
Educação Infantil e pela necessidade de estimulação precoce apresentada pelas crianças
com deficiência26.
Acreditamos que tal estratégia pudesse ser caracterizada como uma política
afirmativa passível de discussão. Numa escola que se pretendia inclusiva – e que, por
isso, deveria oferecer igualdade de oportunidades para todos, sem exceções – priorizar
vagas para o atendimento a crianças com deficiência enquanto as vagas restantes eram
sorteadas entre as demais crianças, era, no mínimo, contraditório.
O citado documento previa também a adequação da rede física das escolas a fim
de reduzir as barreiras arquitetônicas que pudessem dificultar a locomoção de crianças,
professores e demais usuários com deficiência física.
Conforme pudemos verificar na ocasião das visitas realizadas ao longo dos anos
de 2003 e 2004, aplicando verbas próprias – provenientes do Caixa Escolar – ou parte
da verba de Intervenção Pedagógica27, diversas escolas procuravam diminuir barreiras
arquitetônicas, construindo, por exemplo, rampas de acesso aos diferentes níveis do
prédio escolar e reformando espaços como cantinas e banheiros.
26 Vale ressaltar que a Rede promoveu uma grande expansão no número de estabelecimentos de Educação Infantil, abrindo novas vagas para os anos 2004/2005, entretanto, durante a realização da pesquisa, não dispusemos de informações atualizadas sobre as regras para o preenchimento de tais vagas. 27 A liberação da verba de Intervenção Pedagógica, no ano de 2003, era feita após a análise e aprovação, pela equipe responsável pelo acompanhamento das escolas, dos projetos elaborados por cada unidade escolar. Os diretores foram orientados para não utilizar tal verba em reformas, mas exceções eram abertas quando as justificativas apresentadas comprovassem que os benefícios de tais obras seriam pedagogicamente revertidos aos alunos.
O documento da SMED/BH também previa o “investimento na formação dos
educadores e acompanhamento das escolas com o objetivo de promover a inclusão dos
alunos com deficiência nas escolas municipais” (BELO HORIZONTE, 2000a, p. 30).
Na ocasião das entrevistas, o acompanhamento das escolas e dos processos de
inserção de crianças com deficiência em escolas comuns era feito por equipes regionais,
denominadas G9028. Ao todo, essa equipe contava com cerca de sessenta integrantes,
subdivididos entre as nove regiões administrativas para o acompanhamento das 182
escolas da Rede Municipal, dentre elas, três especificamente voltadas para a Educação
Especial.
Além de compor as equipes de acompanhamento às escolas, os profissionais do
CAPE – órgão responsável pela formação dos professores da Rede – faziam parte de
comissões que coordenavam o Curso de Aperfeiçoamento da Prática Pedagógica
(CAPP) e o Curso de Diretores e Coordenadores, que aconteciam em quartas-feiras
alternadas, de quinze em quinze dias. Alguns membros do CAPE também participavam
da Comissão de Rede de Trocas, Registros, Publicações e Tecnologias.
A Rede de Trocas ocorria, periodicamente, na forma de seminários, para os
quais eram convidados alguns professores da Rede. Envolvia discussões sobre temas
diversos e “configura-se como uma ação que pretende o relato, a reflexão, a análise e o
debate sobre diferentes experiências, os processos vivenciados pelas escolas e a
problematização do ato educativo” (BELO HORIZONTE, 2000a). Em 2003, as
discussões da Rede de Trocas giraram em torno das experiências junto às turmas de
alunos com deficiência auditiva, em andamento em algumas escolas comuns.
De acordo com as análises de Coelho (2003), no entanto, parecia existir um
distanciamento entre os órgãos gestores e as escolas. A relação com a Secretaria de
Educação, que deveria ser intermediada pelos órgãos regionais, setores de formação e
de formulação de estratégias facilitadoras da inclusão, tinham para as escolas a marca da
ausência, conforme também afirmavam os professores por nós entrevistados: Aqui só
faz parte do itinerário quando tem que incluir alguém, tá? É só na chegada (E.M.
Bárbara Heliodora).
28 Nome informalmente dado pela SMED/BH à equipe de profissionais composta por membros da CPP, do Gabinete, das GERED e do CAPE.
Assim, “garante-se o acesso dos alunos às escolas, por encaminhamento da
GERED ou pelo Cadastro; depois, as intervenções passam a ser pontuais em resposta às
dificuldades que as escolas possam apresentar diante dos casos” (COELHO, 2003,
p. 174), prática que vinha sendo alvo de queixas generalizadas por parte das escolas.
O curso é prá uma pessoa. Esse tal de repasse não existe, porque é diferente eu ir lá participar do que ela ir lá, participar e me contar, entendeu? (E. M. Maria Adelaide Amaral) Primeiro, prá você sair da escola, [...] é difícil. Prá que eu vá nesse curso eu tenho que prejudicar ela, porque ela vai ter que ficar com horário integral, entendeu? É uma pessoa a menos na escola. (E. M. Maria Adelaide Amaral)
Os professores também se mostravam bastante insatisfeitos com a política de
formação profissional em vigor na RME/BH. Entre outras queixas, o fato de serem
oferecidas poucas vagas – o que exigia esse tal de repasse que, por circunstâncias
diversas, costumava não funcionar – e dos cursos serem realizados no horário de
trabalho e fora do ambiente escolar – implicando em uma pessoa a menos na escola –
dificultava, segundo os entrevistados, uma participação mais efetiva. Retomaremos a
discussão dessa questão no item 4.7 “Professores: seus saberes e sua formação”.
Outro ponto previsto no documento da SMED/BH era a “possibilidade de
redução do número de alunos por turma, considerando-se a inclusão de um ou mais
alunos com deficiência na sala de aula, mediante avaliação da escola e equipe
pedagógica da Regional” (BELO HORIZONTE, 2000a, p. 30).
Ali fica vinte e cinco, mas a outra fica vinte e nove, a outra fica trinta... Quer dizer, tirou o menino dali, mas pôs na outra. (E. M. Rachel de Queiroz)
Em casos como esses, ocorriam acordos internos entre os professores das
próprias escolas. Em geral, turmas que possuíam uma criança com deficiência – cujos
comprometimentos tornassem indispensável a redução do número de alunos – tinham
alguns educandos transferidos para uma outra sala, da mesma escola, todavia, os
professores questionavam as reais vantagens de tal estratégia, visto que o aluno retirado
de uma turma deveria ser transferido para outra, que fica vinte e nove, a outra fica
trinta, podendo gerar prejuízos ao bom andamento do trabalho. Isso porque o número
reduzido de alunos em sala poderia contribuir para o atendimento a todos os alunos e
não apenas àqueles com deficiência.
O documento registrava ainda a “disponibilidade de estagiárias para as escolas
nas quais se avalia a necessidade de apoio pedagógico específico em turmas que
incluem alunos com deficiência” (BELO HORIZONTE, 2000a, p. 30).
De acordo com a SMED/BH, esses estagiários deveriam atuar no apoio ao
professor e à turma, porém, grande parte das escolas delegava a eles a responsabilidade
exclusiva pelo atendimento educacional – muitas vezes realizado fora da sala de aula –
aos alunos com deficiência que, deste modo, permaneciam segregados do restante da
turma.
Na ocasião da realização da pesquisa, a atuação dos(as) estagiários(as) dentro
das escolas era ainda bastante controversa e diversas dúvidas sobre sua função ainda
não haviam sido esclarecidas, o que discutiremos com mais detalhes no item 4.6
“Estratégias de Acolhimento e Intervenção Pedagógica”.
A “garantia de atendimento extraturno em salas de recursos para alunos com
deficiência auditiva, com paralisia cerebral, deficiência física, sensorial ou mental que
freqüentam turmas comuns do ensino regular”, além do “provimento de materiais e
recursos específicos para as salas de recursos a fim de ampliar e qualificar o
atendimento pedagógico” (BELO HORIZONTE, 2000a, p. 30), eram outras medidas
previstas pela SMED/BH.
Até então reguladas pela Resolução SMED n. 005/96, as salas de recursos ainda
eram serviços de atendimento especial oferecidos “em período não coincidente com a
freqüência do educando na classe regular, em local com equipamentos, materiais e
recursos pedagógicos adequados” (BELO HORIZONTE, 1996c, p. 8).
A maioria destas salas estava instalada em escolas comuns e era coordenada
pelas GERED. Até o ano de 2003, os profissionais das salas de recursos desenvolviam
um atendimento nuclear quando o aluno se deslocava para ser atendido na sala de
recursos; havia também um atendimento itinerante quando os profissionais das salas de
recursos se deslocavam, periodicamente, para as escolas.
A partir de 2004, juntamente com outros órgãos de assistência às escolas, os
profissionais das salas de recursos iniciaram uma reavaliação de suas funções, buscando
melhor sintonizá-las com as discussões sobre educação inclusiva. Na ocasião, os
atendimentos nucleares haviam sido suspensos e, durante inúmeros encontros, buscou-
se a construção de novas diretrizes para esse serviço.
Nas escolas, os professores queixavam-se do fim dos atendimentos nucleares
extraturno e da falta de informações atualizadas sobre o novo perfil das salas de
recursos. Por termos encerrado o período destinado à coleta de dados para a pesquisa,
não tivemos acesso às novas diretrizes.
O documento da SMED/BH também registrava a “disponibilização de
equipamentos e recursos materiais para atender às necessidades educacionais
específicas de alunos com deficiência matriculados em escolas municipais” (BELO
HORIZONTE, 2000a, p. 30).
Ao longo das entrevistas, contudo, diversos professores manifestaram
insatisfação quanto à disponibilização de equipamentos e recursos como mobiliário
escolar adaptado a usuários de cadeira de rodas. Foram-nos relatados casos de alunos
que não freqüentavam as aulas por falta de cadeira de rodas, o que, em linhas gerais,
demonstra a necessidade de maiores investimentos nos setores públicos responsáveis
pelo atendimento a tais demandas.
Apesar disso, alguns projetos estavam em andamento e previam a
disponibilização de recursos aos alunos de escolas públicas. Por informação de uma das
profissionais do CAPE, o Centro de Apoio Pedagógico para o Atendimento às Pessoas
com Deficiência Visual (BELO HORIZONTE, 2003) foi criado através do Decreto
Municipal nº 11.300, de 15 de abril de 2003, tendo como atribuições: garantir recursos
específicos, textos e livros ampliados e em Braille para educandos cegos e com visão
subnormal da rede regular de ensino; adaptar materiais pedagógicos e formar
profissionais qualificados para o atendimento a essa clientela; além de apoiar e
desenvolver ações de conscientização, objetivando à integração social da pessoa cega ou
com visão subnormal. Inaugurado em setembro do mesmo ano, o Centro contava com
financiamento do Governo Federal, mas era administrado pelo Município.
Na ocasião da pesquisa, também estava em andamento um projeto de instalação
de turmas compostas por alunos com deficiência auditiva em escolas comuns da Rede.
Em entrevista, um membro do CAPE, então responsável pelo projeto, afirmou que esse
projeto não previa a inserção dos alunos com deficiência auditiva nas turmas de
ouvintes. Assim, atividades envolvendo conteúdos sistemáticos eram desenvolvidas
dentro das salas compostas apenas por alunos com deficiência auditiva, orientados por
um professor que sabia LIBRAS. A integração com os alunos ouvintes ficava restrita
aos horários de recreio e de outros tipos de atividades coletivas que as escolas
desenvolvessem para esse fim.
O citado projeto também previa a contratação de um instrutor com deficiência
auditiva, presente, desde agosto de 2003, em cada uma das oito escolas que, até então,
participavam do projeto cuja função era trabalhar, em momentos distintos, com os
alunos com deficiência auditiva e seus professores, com os alunos ouvintes e com os
demais professores da escola, ensinando a LIBRAS. Até o momento da entrevista, essas
oito escolas municipais comuns abrigavam número variável de turmas compostas de
oito a quinze alunos com deficiência auditiva.
Apesar da insistência dos profissionais do CAPE em afirmar que tais turmas de
alunos com deficiência auditiva não configuravam uma “classe especial”, não
acreditamos que tal organização pudesse contribuir para a construção de uma escola
inclusiva visto que, ao invés de valorizar e possibilitar a convivência na diversidade,
punha em grande evidência uma diferença específica, mantendo tais indivíduos
separados do restante do grupo.
Duas das escolas por nós visitadas, que participavam de um outro projeto de
inserção de alunos com deficiência auditiva iniciado anteriormente na Rede, tinham
uma organização diferente e contavam com a intervenção de intérpretes de Língua
Brasileira de Sinais (LIBRAS). De acordo com o projeto em andamento nessas escolas,
cinco ou seis alunos com deficiência auditiva eram inseridos em turmas comuns, junto
aos alunos ouvintes. Dispunham de um professor ouvinte e do auxílio de um intérprete
durante as aulas, possibilitando-lhes participar de todas as atividades executadas pelas
turmas.
Então, assim, a gente acaba aprendendo uma série de coisas. [...] E a maioria dos alunos ouvintes aprende LIBRAS. Foram aprendendo. Assim, a grande maioria. (E.M. Adélia Prado)
Segundo nos informaram os professores que atuavam nas turmas comuns onde
havia alunos com deficiência auditiva inseridos tal organização, mesmo que exigisse o
agrupamento desses alunos nas proximidades do intérprete, mantendo ainda um certo
distanciamento com relação ao professor e ao restante da turma, possibilitava uma
interação mais ampla do que a alternativa de agrupá-los e separá-los em salas só para
alunos com deficiência auditiva. Foi-nos relatado que, desse modo, na convivência
diária, a maioria dos alunos ouvintes aprende LIBRAS. Os professores, por sua vez,
ainda que acabassem aprendendo uma série de coisas, pareciam interagir com os
alunos com deficiência auditiva de forma mais restrita já que passavam menos tempo
junto às turmas e podiam contar com a intervenção constante dos intérpretes.
Para o acompanhamento de crianças com comprometimentos motores29 –
incluindo as afetadas por paralisia cerebral – estavam sendo estabelecidas parcerias
entre a SMED/BH e o Hospital do Aparelho Locomotor Sarah Kubitschek – Belo
Horizonte. Pedagogos hospitalares, responsáveis pelos contatos com os professores das
escolas comuns e especiais organizavam seminários no próprio Hospital e faziam o
acompanhamento das crianças ali atendidas, prestando orientações aos familiares e
professores. Em suas visitas às escolas municipais, eram sempre acompanhados por um
profissional do CAPE ou por integrantes do G90.
Tivemos um ganho muito grande com a vinda do pessoal do Sarah Kubitschek. Fomos atendidos num curso lá. [...] Eles dão uma oficina [...] esclarece como lidar com esse tipo de aluno, que nem eu não sabia. (E.M. Bárbara Heliodora) O Sarah tá com uma proposta muito bacana de trabalho. E esses meninos que têm acompanhamento lá eles convidam. Olha, é aberto aos professores mais à comunidade. Eles convidam, a gente procura participar. (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Em diversas ocasiões, os professores entrevistados manifestavam suas
impressões sobre o tipo de assistência oferecida pelos professores hospitalares às
escolas e foram unânimes em afirmar que tiveram um ganho muito grande com a
vinda do pessoal do Sarah Kubitschek que, com uma proposta muito bacana de
trabalho, oferecia cursos, oficinas e estudos de caso nos quais disponibilizavam
informações, modelos de materiais didático-pedagógicos e demais alternativas que
pudessem facilitar a locomoção, a comunicação, o aprendizado e a interação dos alunos.
No que se refere ao atendimento prestado pelas escolas especiais da Rede
Municipal, de acordo informações fornecidas pelo profissional do CAPE, havia uma
preocupação em reavaliar seus objetivos e seu trabalho, buscando uma maior sintonia
29 Para o atendimento às demais deficiências não existiam alternativas específicas na RME/BH.
com os princípios de uma educação inclusiva, por isso, crianças com dificuldades de
aprendizagem, antes encaminhadas para as escolas especiais, estavam sendo
reintegradas às classes comuns, enquanto nas três Escolas de Ensino Especial da Rede
ainda permaneciam os casos tidos como mais severos, diagnosticados como
“deficiências reais”.
Ainda assim, pela tabela abaixo podemos visualizar que, no ano de 2003, era
bastante significativo o número de alunos que permaneciam sendo atendidos por esse
serviço:
Tabela 1 – Alunos atendidos por Escolas Municipais de Ensino Especial em Belo Horizonte
Regional Escola Municipal
Número de alunos
Centro-Sul Escola Municipal de Ensino Especial Santo
Antônio
164
Oeste Escola Municipal de Ensino Especial Frei
Leopoldo
125
Venda Nova Escola Municipal de Ensino Especial de
Venda Nova
216
Fonte: Dados fornecidos em entrevista, por membro do CAPE.
Para além dos discursos oficiais, ao longo dos próximos itens, buscamos
compreender os sentidos que os professores entrevistados vinham atribuindo aos
princípios do Programa Escola Plural e à relação destes com as recentes discussões
sobre educação inclusiva, fomentadas especialmente a partir da inserção de crianças
com deficiência em turmas comuns.
4.3 PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E TRABALHO COLETIVO: LIMITES E POSSIBILIDADES
Destacamos a questão da construção, execução e avaliação do projeto político-
pedagógico das escolas – que, inevitavelmente, pressupõe o desenvolvimento de um
trabalho coletivo, além do estreitamento dos laços entre os profissionais que atuam na
escola e entre esta e a comunidade – enquanto uma das temáticas constitutivas em
termos da concretização do ideário de uma escola inclusiva.
Utilizamos como suporte para tais análises, os estudos desenvolvidos por autores
que discutem aspectos relativos à formulação de projetos pelas escolas, em suas
dimensões política e pedagógica (BUSSMANN, 1995; VEIGA, 1995, 2003),
relacionando-os às reflexões em torno da participação de variados atores na gestão de
espaços públicos (ARROYO, 2002; PAOLI e TELLES, 2000). A discussão de tais
temas foi complementada com referências aos princípios da escola inclusiva
(MANTOAN, 2001a; MARQUES e MARQUES, 2003).
Em Pensando e fazendo educação de qualidade, Mantoan (2001a) afirma que
uma das principais condições para uma educação de qualidade aberta à diversidade é a
elaboração autônoma e participativa do projeto político-pedagógico por parte das
escolas.
Em linhas gerais, tal projeto pode ser entendido como a própria organização do
trabalho pedagógico da escola, devendo estar baseado num compromisso definido
coletivamente. Não é um documento, apenas. É um “processo permanente de reflexão e
discussão dos problemas da escola, na busca de alternativas viáveis à efetivação de sua
intencionalidade” (VEIGA, 1995, p. 13).
Entre os princípios que devem nortear a organização do trabalho da escola
pública, democrática e gratuita e, portanto, seu projeto político-pedagógico, Veiga
(1995) destaca: a) a garantia de igualdade de condições para acesso e permanência na
escola; b) o desafio de propiciar qualidade para todos; c) a gestão democrática em suas
dimensões pedagógica, administrativa e financeira; d) a liberdade e a autonomia dos
sujeitos na criação de regras e orientações; e) a valorização do magistério, relacionada à
formação (inicial e continuada), condições de trabalho (recursos didáticos, recursos
físicos e materiais, dedicação integral à escola, redução do número de alunos na sala de
aula etc), remuneração, entre outros.
O projeto político-pedagógico de uma escola está estreitamente vinculado a um
esforço coletivo de ação-reflexão-ação que vise a rupturas com o instituído para avançar
sempre, já que sua construção não se encerra nem acarreta um resultado ou documento
final.
Em suas análises sobre o tema, Bussmann (1995, p.39) afirma que “para ser
renovador, o projeto pedagógico deve renovar-se constantemente, caso contrário estará
negando-se a si próprio.” Neste sentido, discussões em torno da avaliação e
aperfeiçoamento do trabalho coletivo, envolvendo representantes dos diferentes
segmentos da escola, precisam ser incessantemente estimuladas.
No discurso dos diversos professores entrevistados encontramos múltiplos
sentidos sobre os processos de construção, execução e avaliação dos projetos político-
pedagógicos das escolas, os quais passamos a analisar.
Em linhas gerais é aquelas coisas de toda escola, né? De cidadania, formar cidadão, crítico, atuante, participante... trazer a comunidade prá escola. [...] Manter o esquema que já tem, né? Com as aulas especializadas, sendo que as especializadas ajudando a gente, as referências em projetos mais individuais, né? Deu essa abertura prá gente estar fazendo por conta própria. [...] Cada professor faz. (E.M. Bárbara Heliodora)
Manter o esquema que já tem foi uma das formações discursivas encontradas na
análise do corpus discursivo que, associada às condições de produção do discurso,
remetia ao sentido de não ruptura com o instituído. Segundo Veiga (2003), os projetos
elaborados sob este prisma podem ser compreendidos na perspectiva das inovações em
que predomina o caráter regulatório ou técnico, cuja ênfase está mais voltada para a
dimensão técnico-administrativa, em detrimento das dimensões política e sociocultural.
Ações implementadas dentro dessa lógica não produzem um projeto político-
pedagógico novo, apenas rearticulam o sistema de forma superficial e temporária,
contribuindo para a perpetuação do instituído. A reprodução acrítica de princípios
padronizados ou coisas de toda escola, sem muita consciência de suas implicações para
o sistema educativo, pode conduzir à produção de um mero enunciado de princípios ou
de boas intenções que pouco ou nada contribuem para o processo de qualificação da
escola.
Neste contexto, a inovação “significa assumir o projeto político-pedagógico
como um conjunto de atividades que vão gerar um produto: um documento pronto e
acabado. Nesse caso, deixa-se de lado o processo de produção coletiva” (VEIGA, 2003,
p. 271) reduzindo-se, por exemplo, o trabalho coletivo a projetos mais individuais [...]
prá gente estar fazendo por conta própria.
Demonstrando-se contrário a essa prática do “salve-se-quem-puder” em vigor
em grande parte das escolas, Rubem Alves, em A escola com que sempre sonhei sem
imaginar que pudesse existir, publicado em 2001, enfatiza o fato de a educação
constituir-se uma aventura coletiva de partilha, na qual se faz necessário reforçar os
mecanismos de interação solidária e os procedimentos corporativos que superem o
“arquipélago de solidões” constituído pelo isolamento físico e psicológico no qual
trabalham os docentes. Segundo o autor,
Pensar a educação numa lógica burocrática e corporativa de mera adição, confrontação ou justaposição de “papéis educacionais” (em que cada “parceiro” ou “agente” se manteria acantonado na sua ilha de “autonomia”, só saindo dela em momentos ritualizados para cumprir uma função estatutária ou organizacional) é pensar a educação numa perspectiva profundamente redutora, social e culturalmente perversa (ALVES, 2001, p. 115).
Dando continuidade às nossas análises, também pudemos identificar o sentido de
inovação de caráter, predominantemente, regulatório ou técnico no discurso de
professores que afirmavam ser o projeto político-pedagógico um documento pronto
que, portanto, parecia não se estabelecer enquanto um constante movimento de repensar
a escola.
Projeto político-pedagógico da escola, oficial, que tá pronto, colocado, ele é antigo... ele já está defasado. Ele é antes do projeto da Escola Plural. (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Neste sentido, prevalecia uma visão burocrática, na qual o projeto parecia ser
compreendido enquanto “um documento programático que reúne as principais idéias,
fundamentos, orientações curriculares e organizacionais de uma instituição educativa”
(VEIGA, 2003, p.271) que a gente apresenta à Prefeitura no início de ano, com a
proposta pedagógica pr'aquele ano (E. M. Lygia Fagundes Telles), uma formalidade
muitas vezes cumprida para ser autorizada ou reconhecida pelos órgãos centrais de
gestão do sistema educacional.
Tem que ser um projeto, né? Coletivo. [...] Mas isso ainda não está tão aqui na escola. [...] Ainda não foi escrito, não foi organizado nada. Só tem idéias e necessidades, também. (E. M. Zélia Gattai) É o que nós estamos pelejando prá que aconteça logo. [...] Nós estamos começando a construir o nosso projeto, tamos no início, construindo. (E. M. Zélia Gattai)
Apesar das orientações30 para que elaborassem o projeto político-pedagógico,
nem todas as escolas conseguiam implantar um movimento coletivo de ação-reflexão-
ação que contribuísse para orientar tal elaboração. Percebe-se, no entanto, que os
inúmeros desafios apresentados às escolas – dentre eles o da organização escolar em
ciclos e o da educação inclusiva – estavam influindo em seu cotidiano, no sentido de
“questionar convicções e, fraternalmente, incomodar os acomodados” (ALVES, 2001,
p. 99), fazendo com que os professores começassem a sentir a necessidade de estar
começando a construir e pelejando para se organizar em torno de projetos coletivos,
que transformassem idéias e necessidades em propostas e ações concretas.
O problema hoje é que todos estão na escola, mas a escola não está dando conta de atendê-los. Quer dizer, o problema continua, né? (E. M. Zélia Gattai)
Habituados ao sistema segregativo que, há séculos, mantém fora da escola
grande parcela da população, os professores vinham sendo desafiados a rever suas
concepções e aperfeiçoar seu trabalho para suprir às demandas antes excluídas. Por
abalar as bases da organização escolar, ainda que ocorresse dentro de uma coletividade
interessada na elaboração de um projeto político-pedagógico que, efetivamente,
contribuísse para a melhoria da qualidade da escola, tal processo era marcado por
dúvidas e dissenso, fazendo eclodir variados sentidos quanto à função da escola e sua
atuação junto à comunidade.
Tá existindo uma demanda grande de alunos que tão aí com encaminhamento judicial e, quando o juiz manda é o cumpra-se, né? [...] E a escola tem que dar conta disso! [...] Mas nós queremos estar identificando o papel social dessa escola e [...] nós temos uma resistência grande por falta de um maior conhecimento, de sentir um maior apoio é nessa questão da inclusão. [...] Por que aqui? (E. M. Maria Adelaide Amaral)
No contexto acima apresentado, o projeto político-pedagógico vinha se
constituindo em espaço de questionamento e redefinição de papéis, na medida em que
os educadores se sentiam compelidos a, cada vez mais, exercer funções que acreditavam
não lhes pertencerem.
30 Cf. BRASIL, 1996; BELO HORIZONTE, 2000c.
Buscamos em Arroyo (2002) subsídios para compreender o sentido do discurso
dos professores que, no convívio diário com crianças submetidas à vivência em
situações de risco, procuravam construir sua identidade docente e seu projeto político-
pedagógico. Partindo das noções de infância31 enquanto projeto “humano a ser
realizado”, um “projeto de gente” que pode “chegar a ser alguém”, ou não, o autor
afirma que “as crianças têm o dever de ser e os educadores o dever de dar conta de que
sejam” (ARROYO, 2002, p. 40). Nessa perspectiva, teríamos que aprender a ser
humanos, mas “podemos acertar ou fracassar. Nessa aprendizagem também há sucesso
e fracasso” (idem, p.53).
À medida que a escola se questionava Por que aqui? – indicando a suposição de
que crianças com deficiência ou no chamado risco social deveriam ser atendidas em
outro lugar – mostrava-se dentro de uma noção de infância enquanto um projeto
humano arruinado que, de tão distante dos padrões esperados para uma infância ideal,
parecia necessitar de uma instituição corretiva especializada para endireitar os rumos de
sua humanização para que, depois de normatizada, pudesse ingressar na escola comum.
Um projeto político-pedagógico construído a partir de uma resistência grande baseada
em tais noções, buscaria, portanto, eximir a escola de ter que dar conta disso.
Eu tô aguardando opções. [...] a gente fica muito em cima da mãe, da Prefeitura. (E. M. Maria Adelaide Amaral) Eles já eram da escola desde o pré e vêm nessa luta toda tentando ajudar, tentando encaminhar. (E. M. Zélia Gattai)
Essa postura de ficar aguardando opções vindas de fora ou permanecer
tentando encaminhar para os ditos especialistas as crianças cujas características
agridem o padrão de conduta esperado, foi identificada em diversos contextos onde os
professores se mostravam inseguros, desacreditados das possibilidades de assumir o
31 Adotamos posição divergente com relação à noção de infância na qual Arroyo (2002) baseia suas reflexões, por não acreditarmos em infância enquanto “projeto humano a ser realizado” (p. 40) nem na possibilidade de uma “infância e adolescência não vivida” (p. 201). Baseamo-nos nas reflexões de S.Monteiro (2003) segundo a qual a infância é sempre vivida enquanto período de desenvolvimento biológico, psicológico e social. Assim, a criança é hoje, no seu presente, um ser que participa na construção da história e da cultura de seu tempo, ainda que seja deficiente ou viva em situações denominadas de risco tendo, portanto, direito de usufruir de oportunidades não segregadas de atendimento educacional. Cf. S.Monteiro (2003) sobre as diversas concepções de infância presentes no discurso de profissionais da educação.
atendimento a tais demandas e desarticulados no que tange à construção coletiva de
alternativas.
Ao estendermos nossas reflexões para a análise dos dispositivos legais que
regem a educação em nosso país, verificamos, no entanto, que, de acordo com o art. 205
da Constituição Federal de 1988, a educação é “direito de todos e dever do Estado e da
família”. Nos perguntamos, a partir daí, a que todos é devido o direito público
subjetivo32 de acesso ao ensino fundamental? Respondendo tal questão com base nas
leis e nos princípios da inclusão, não cabem exceções.
Em comunidades educativas onde o trabalho vinha assumindo uma dimensão
predominantemente coletiva e democrática surgiam novas alternativas, contribuindo
para que outros sentidos em torno do projeto político-pedagógico se fizessem presentes.
Então vamos fazer uma coisa prá mexer com todo mundo! É problema de uma professora? Que é uma outra questão. Isso é problema de quem? É de um grupo? É de um professor? Ou é um problema da escola? Que a escola tem que resolver? Aí o grupo definiu que era da escola. Então é competência de todo mundo, é obrigação de todo mundo, né? (E. M. Rachel de Queiroz)
O recorte discursivo em destaque remetia à busca de uma compreensão renovada
das responsabilidades da escola frente às demandas que lhe eram apresentadas.
Deslocando da formação discursiva regulatória ou técnica do projeto político-
pedagógico, os professores pareciam buscar uma articulação em torno de inovações que
os situavam numa formação emancipatória ou edificante que, segundo Veiga (2003,
p. 275), “pressupõe uma ruptura que, acima de tudo, predisponha as pessoas e as
instituições para a indagação e para a emancipação.”
Fazer uma coisa prá mexer com todo mundo poderia ser uma forma de romper
com o isolamento dos diferentes segmentos da instituição educativa, exercitando-lhes a
capacidade de problematizar e compreender as questões que a escola tem que resolver e
enfrentando-as enquanto competência de todo mundo. Sob esta ótica, o projeto se
caracterizaria como
32 Direito público subjetivo é aquele cuja aplicabilidade deve se dar de forma imediata e, se não prestado espontaneamente, exigível judicialmente, conforme o art. 5º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96: “o acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo” (BRASIL, 1996).
um meio de engajamento coletivo para integrar ações dispersas, criar sinergias no sentido de buscar soluções alternativas para diferentes momentos do trabalho pedagógico-administrativo, desenvolver sentimento de pertença, mobilizar os protagonistas para a explicitação de objetivos comuns definindo o norte das ações a serem desencadeadas, fortalecer a construção de uma coerência comum, mas indispensável, para que a ação coletiva produza seus efeitos (VEIGA, 2003, p. 275).
Neste contexto, apesar de existirem entre o corpo docente e administrativo
posições divergentes e ações que algumas vezes contradiziam os princípios
apresentados, percebemos que o poder articulador do projeto político-pedagógico e a
vigilante atuação da direção e coordenação pedagógica buscavam evitar que tais
divergências enfraquecessem a unidade da instituição ou que se pudesse fugir dos
princípios que a gente acha que são necessários para o andamento da escola (E. M.
Rachel de Queiroz).
Então, assim, dá prá você bancar aquilo ali porque tem uma coisa do coletivo. Então, não tem muito ai-ai-ai, oi-oi-oi, né? É assim, não tá combinando? Não tá legal, volta pro coletivo. Não tá concordando, não? Volta! Faz um argumento contrário. (E. M. Rachel de Queiroz)
Os sentidos que emergiam deste discurso evidenciavam, mais uma vez, uma
aproximação da formação emancipatória ou edificante das inovações que se procurava
implementar, na medida em que resistências, discordâncias e conflitos – comuns e, até
mesmo, constitutivos das organizações humanas – não eram ignorados ou
desconsiderados. O fato de um membro do grupo não tá concordando não chegava,
necessariamente, a ameaçar o projeto educativo em andamento. Ao contrário, a prática
da volta pro coletivo para que se apresentasse um argumento contrário poderia ser uma
estratégia adotada para o fortalecimento do grupo.
De acordo com Veiga (2003), a legitimidade do projeto polítcico-pedagógico
está estreitamente ligada ao grau e ao tipo de participação de todos os envolvidos com o
processo educativo e requer continuidade de ações. Quanto à participação da
comunidade escolar nesse processo, os sentidos que foram identificados nos variados
contextos investigados também podem ser situados nas formações discursivas
regulatória ou técnica e emancipatória ou edificante.
Em linhas gerais é aquelas coisas de toda escola, né? [...] trazer a comunidade prá escola. [...] Fizemos o questionário pros pais, né? Perguntando sobre prioridades da escola. [...] Mas só assim em questões de questionário. De mandar eles responderem. [...] Mandou o bilhete, depois foi referendado na assembléia. (E.M. Bárbara Heliodora) Reunião de final de semestre, bimestre, você pode contar nos dedos. [...] Bilhete é um caso sério porque a maioria é analfabeto, não sabe ler. [...] A gente sabe que é uma comunidade que exige muito da escola, mas que, quando a escola vai exigir deles, não tem retorno. (E. M. Zélia Gattai)
Um primeiro sentido, encontrado no discurso de diversos professores
entrevistados, reduzia a intenção de trazer a comunidade prá escola a enviar
questionário pros pais responderem, a mandar bilhetes, convidando-os para reunião de
final de semestre ou, ainda, convocando-os para assembléias cuja finalidade, muitas
vezes, era apenas cumprir uma exigência legal de que decisões predefinidas pelos
profissionais das escolas fossem referendadas pela comunidade.
Referendar significa, entre outras coisas, “aceitar a responsabilidade de (algo já
aprovado por outrem), concorrendo para que essa coisa se realize” (FERREIRA, 1975,
p. 1203). No cotidiano de grande parte das escolas, o hábito de referendar decisões
parecia apenas formalizar uma pseudoparticipação da comunidade, sem que a mesma se
convertesse em compromisso e interação de ambas as partes na organização do trabalho
pedagógico.
Nos contextos em que o projeto político-pedagógico era construído nesta
perspectiva, era comum estarem associadas críticas e queixas com relação ao pouco
envolvimento dos pais no que se referia à educação das crianças. Retomando as
contribuições de Veiga (2003, p. 269) para o tema, remetemos esse sentido de
pseudoparticipação da comunidade à formação dircursiva regulatória ou técnica, onde
se “deixa de fora quem inova e, portanto, não é afetado por ela.” A interação, em casos
como estes, era substituída por uma relação em que a comunidade exige muito da
escola e a escola, ao pretender exigir deles, não tem retorno.
Arroyo (2002, p. 22) interpreta as reservas que grande parte dos profissionais da
educação têm com relação à participação da comunidade na gestão escolar enquanto
uma forma de autodefesa da categoria contra uma possível descaracterização da
centralidade de sua ação qualificada. Segundo o autor, os professores não se
entusiasmam demasiado com essas “ondas constituintes participativas, que pensam gerir
um campo tão específico à base de uma mobilização difusa” por perceberem que a
educação escolar vem sendo “tratada como uma terra vadia, sem cercas, facilmente
invadida por aventureiros ou por amigos”, gerando descaracterização e
desprofissionalização, seguida da desvalorização do ofício de mestre, da redução de seu
reconhecimento social e de suas condições de trabalho.
Por outro lado, à medida que os educadores superavam esse receio e se
dispunham a reunir diferentes vozes na elaboração de alternativas comuns – cientes de
que, se bem conduzida, tal iniciativa não dispensava a especialidade de sua ação –
novos sentidos pareciam emergir.
Nós temos, de cada sala, dois pais representantes, tá? Esses pais representantes são eleitos na primeira reunião de fevereiro. [...] Então, esses pais nos ajudam em tudo o que a escola precisa de articulação em relação à comunidade, tá? [...] O negócio é chamar. Chama e eles vão e participam. (E. M. Rachel de Queiroz) Vem mesmo e discute de igual prá igual com a gente, sabe? Entende direitinho a linguagem que a escola tá fazendo, sabe dos direitos. (E. M. Rachel de Queiroz) Uma das coisas que a gente vê que já é parte da nossa história, também, faz parte do nosso projeto é o seminário que a gente faz em junho, que é o seminário de avaliação. [...] Aluno, pai, todo mundo avalia todo mundo em todos os aspectos. [...] E a assembléia decide do que foi proposto no passado, se já foi resolvido, né? E as novas demandas. (E. M. Rachel de Queiroz)
Nos recortes discursivos apresentados, a articulação em relação à comunidade
parecia assumir um sentido amplo, de efetiva participação. Neste contexto, não
apareciam manifestações de queixa com relação aos pais visto que esses nos ajudam em
tudo o que a escola precisa de articulação em relação à comunidade. O negócio é
chamar.
Durante as entrevistas, foram apresentadas diversas estratégias de aproximação
que pareciam fazer com que esse chamado tivesse melhor retorno. Entre elas a eleição,
em cada sala de aula, de dois pais representantes que, junto aos profissionais da escola,
articulavam a participação da comunidade na elaboração e execução do seminário de
avaliação; na promoção de atividades esportivas, cursos e oficinas no espaço físico da
escola; nos mutirões para a organização de festas e demais manifestações culturais ou
de caráter reivindicatório; na participação de pais em excursões e projetos da escola; no
planejamento e condução de reuniões de pais, entre outros.
Parece-nos essencial ressaltar, neste ponto, o caráter essencialmente público das
escolas pesquisadas. Segundo Paoli e Telles (2000), para ser caracterizada como
democrática, a gestão desse tipo de espaço exige abertura para a participação e
representação de todos os atores envolvidos. Assim, a presença da comunidade retira do
Estado ou, no caso específico, das instituições escolares, o monopólio exclusivo da
definição de uma agenda de prioridades e demandas, afetando assim a própria
racionalidade do poder até então instituído. Ainda segundo as autoras, o pleno exercício
da cidadania depende dessas formas de participação, “numa construção conflitiva, mas
partilhada, de normas democráticas” (PAOLI e TELLES, 2000, p. 139) que regem os
assuntos públicos.
À medida que os esforços de articulação do coletivo da escola em relação à
comunidade passavam a fazer parte da história das instituições escolares, instaurando-
se um processo contínuo e solidário de reflexão e avaliação sobre as questões da prática
educativa – do que já foi resolvido ou que se constituíam em novas demandas – parecia
haver um deslocamento para a formação discursiva emancipatória ou edificante, num
movimento de superação do sentido regulatório ou técnico.
Sob a ótica emancipatória ou edificante, o projeto político-pedagógico de uma
escola pública deve apresentar, ainda, a característica fundamental de “ser inclusivo e
integrador de todo tipo de alunos, seja qual for sua procedência social, seu ‘nível’,
necessidades e expectativas educativas” (CARBONELL, 2002, p. 81), entretanto, nos
contextos pesquisados, eram ainda bastante incipientes as reflexões e reduzidas as
alternativas no que se referia ao atendimento à diversidade e a formação discursiva que
predominava ainda era a regulatória ou técnica.
Nós estamos abertas a isso, desde que tenha tudo isso. [...] Nós não vamos fazer essa escola, uma escola de inclusão. (E. M. Maria Adelaide Amaral) Se a nossa escola tivesse esse aparto, tudo bem. Não tinha problema nenhum. Mas nós também não temos, né? (E. M. Rachel de Queiroz) Eu batalhei, pedi muito a rampa e fui atendida. Fizemos a nossa parte como escola, como pedagogos. [...] Deveria ter profissionais, pelo menos um psicopedagogo prá estar atendendo essa inclusão, né? (E.M. Bárbara Heliodora)
As condicionantes se e desde que, presentes no discurso de diversos professores,
indicavam um sentido condicional para o atendimento à diversidade. Declarações como
estamos abertas a isso e fizemos a nossa parte eram constantemente acompanhadas por
uma série de condições e pela transferência da responsabilidade – manifestas em
expressões como se a nossa escola tivesse esse aparato ou deveria ter profissionais prá
estar atendendo essa inclusão.
Com base em tais noções, a construção do projeto político-pedagógico
manifestava o sentido de negação das diferenças, especialmente quando se tratava de
crianças com deficiência, foco de nossa pesquisa: não tem nada, a gente não tem uma
discussão específica, ou seja, parecia não fazer parte do projeto coletivo de diversas
escolas a intenção de empreender esforços para construir uma prática inclusiva.
Em termos coletivos não tem nada, não foi conversado, tá? Mas deveria, não é? Porque ela hoje está comigo mas, amanhã, ela não estará comigo, não é assim? Então, todo mundo tem que estar sabendo de tudo, tá? Mas, enfim, o apagar fogo todo dia te impede, né? De você enxergar um pouquinho a mais disso aí. (E. M. Rachel de Queiroz) A gente não tem uma discussão específica de como incluir esses alunos. Isso a gente não tem ainda, não. [...] Nesse momento, a gente tem procurado se articular, né? [...] E eu acho que a gente ainda tem um caminho longo aí, pela frente. [...] A gente tem que estar com eles aqui dentro prá gente ir procurando algumas formas, um meio. (E. M. Ana Maria Machado)
Por outro lado, a necessidade de considerar a questão da diversidade e,
especificamente, da deficiência na construção do projeto político-pedagógico parecia
emergir à medida que os professores consideravam que na própria convivência com as
diferenças, no estar com eles aqui dentro, se abriam as possibilidades para ir
procurando algumas formas, um meio.
Os discursos sinalizavam, além disso, que o apagar fogo todo dia te impede de
enxergar um pouquinho a mais e indicavam a percepção da necessidade de procurar se
articular para que fossem criados, em termos coletivos, espaços para uma discussão
específica de como incluir esses alunos.
A reflexão aparecia, pois, enquanto condição essencial para a implantação de
inovações emancipatórias ou edificantes que pretendessem a construção de uma
educação inclusiva que atendesse o compromisso da escola pública com a educação
para todos. Nas palavras de Veiga (2003, p. 275), “a inovação é produto da reflexão da
realidade interna da instituição referenciada a um contexto social mais amplo.”
Com esse trem de inclusão a coisa tá gritante, mas, igual nós estamos discutindo aqui, esses meninos que não têm laudo que tão na escola, isso sempre existiu. (E. M. Maria Adelaide Amaral)
Embora os sujeitos entrevistados, muitas vezes, não se dessem conta, seu
discurso indicava a percepção de que a inserção de crianças com deficiência nas escolas
comuns só vinha escancarar e tornar gritante o fato de que a diversidade sempre existiu,
está na escola e em toda e qualquer organização humana, ainda que, durante séculos, a
modernidade tenha ensinado a desconsiderá-la em busca de padrões universais.
Segundo Marques e Marques (2003, p. 234), é a transição do pensamento
hegemônico da modernidade para os novos preceitos da atualidade que abrem uma
infinidade de possibilidades para que se perceba o fato de que “ser diferente não
significa mais ser o oposto do normal, mas apenas ‘ser diferente’. Este é, com certeza, o
dado inovador: o múltiplo como necessário, ou ainda, como o único universal possível,
o que deriva em práticas sociais de reconhecimento e respeito pelo outro.”
Enfrentar a atual conjuntura de transição e quebra de paradigmas marcada por
dúvidas, insegurança e conflitos a partir de nossas “ilhas de solidão”, torna mais penoso
o processo. Por outro lado, nos ambientes em que se investe no fortalecimento do
trabalho coletivo emergem sentidos que apontam para uma formação discursiva
emancipatória ou edificante, onde as estratégias para o trato da diversidade parecem
surgir com mais facilidade, impulsionando um deslocamento da formação regulatória
ou técnica.
Acreditamos que a construção coletiva do projeto político-pedagógico,
considerando o atendimento a todos na sua diversidade, seja um caminho possível para
a construção de uma escola que se pretenda plural e inclusiva.
4.4 APRENDIZAGEM, DESENVOLVIMENTO E ENTURMAÇÃO
No decorrer da pesquisa, outra temática mostrou-se recorrente e, portanto,
bastante relevante para compreendermos as estratégias adotadas pelas escolas para o
atendimento à diversidade. Trata-se das concepções que os professores manifestavam a
respeito dos processos de aprendizagem e desenvolvimento de seus alunos e que
serviam de base tanto para a enturmação dos mesmos quanto para os demais aspectos de
sua atuação pedagógica cotidiana.
Utilizamos enquanto aporte teórico para a análise dessa temática os estudos de
Braga (1995), Mantoan (1997), Silva (1999/2000), Vygotsky (2001), L.Marques
(2001a), Sampaio (2001, 2002), entre outros autores que discutem as questões
relacionadas ao desenvolvimento e à aprendizagem sob a ótica de diversas teorias
psicológicas.
De acordo com L.Marques (2001a, p. 168), inúmeras concepções de homem e de
seus processos de desenvolvimento emergem no discurso dos professores em seus
componentes verbais e em sua prática pedagógica. Isso porque o discurso pedagógico,
por sua própria natureza, não se funda numa linearidade discursiva. “Ao contrário,
comporta ele toda uma multiplicidade de sentidos, caracterizando-se pela movimentação
dos mesmos.”
Isso significa que um mesmo professor pode iniciar seu discurso, filiando suas
concepções de desenvolvimento e aprendizagem aos pressupostos de uma certa
formação discursiva, deslocando, alternadamente, para outras teorias ou formações
discursivas – seja através da fala, seja através de suas ações – ainda que não saiba
explicitar a quais teorias se filia.
Vale ressaltar que isso ocorre porque “quando nascemos, os discursos já estão
em processo e nós é que entramos nesse processo. Eles não se originam em nós”
(ORLANDI, 2003, p. 35). Quando dizemos algo, não temos acesso ou controle sobre o
modo pelo qual os sentidos se constituíram ao longo da história, nem sobre o modo pelo
qual se (re)produzem em nosso discurso. Apesar de pensar que sabemos o que estamos
dizendo, há sempre um já-dito, constituído de um conjunto de formulações feitas e já
esquecidas que circulam na sociedade e, de certo modo, determinam o que dizemos.
Esse esquecimento é estruturante, ou seja, esquecemos involuntariamente o que já foi
dito para que, ao nos identificarmos com o que dizemos, nos constituamos em sujeitos.
Ao mesmo tempo em que há, no nosso funcionamento discursivo, processos que
fazem com que em todo dizer haja sempre algo que se mantém – a produtividade – há,
por outro lado, espaços de equívoco – a criatividade – que podem gerar rupturas nos
processos de significação e produzir deslocamentos, fazendo irromper sentidos
diferentes.
Segundo Orlandi (2003, p. 38), o que vemos com mais freqüência é a
produtividade que nos mantém num retorno constante ao mesmo espaço dizível,
produzindo a variedade do mesmo. “Para haver criatividade, é preciso um trabalho que
ponha em conflito o já produzido e o que vai se instituir.”
Assim sendo, caso nós, professores, não tenhamos oportunidades de analisar e
conhecer nossas próprias concepções para poder movimentá-las, tenderemos reforçar
em nosso discurso as mesmas noções homogeneizantes, padronizadoras e excludentes
nas quais fomos formados. Tal fato se mostra de fundamental importância quando
estamos diante da análise do discurso de professores atualmente desafiados a construir
alternativas para a inserção de crianças até então afastadas do processo educacional
comum, conforme veremos ao longo do texto.
Teria que ter um psicólogo que atestasse prá gente, por exemplo, que o menino ele tem a idade de doze anos, mas a idade mental dele, né? É de sete, né? Então, eu acho que isso aí até embasaria o nosso trabalho, porque [...] ele não tá ainda com o processo todo formado prá ele conseguir. (E. M. Lygia Fagundes Telles) A capacidade dela não é de uma menina de sete anos. É de uma criança de quatro anos. [...] Ela não vai aprender, não vai nunca conseguir chegar. [...] Às vezes eu até acho que ela precisava ficar com os alunos com capacidade cognitiva igual a ela! (E. M. Cecília Meireles) Então, nós fizemos o que pudemos. [...] Porque a idade cronológica, ela não se compara com a idade cognitiva da criança. Há crianças e há crianças. (E. M. Cecília Meireles) Por que eu sei que alunos que a deficiência é comprovada tem uma brecha na lei, né? Prá que ele realmente fique ou retido, ou fique mais tempo. [...] Porque ele, por exemplo, ele precisaria ficar um pouco mais de tempo com esses alunos de oito, porque ele é mais infantil. (E. M. Ana Maria Machado)
Diante das dificuldades em atender à heterogeneidade encontrada em suas salas
de aula, diversos professores recorriam à noção de que seria necessário ter um
psicólogo que atestasse algum problema localizado no aluno que parecia não aprender,
como a possibilidade de ele não tá ainda com o processo todo formado prá ele
conseguir, absolvendo-os, assim, da responsabilidade por possíveis intervenções.
Um dos sentidos que ainda vigorava era o de que nós, professores, fizemos o que
pudemos, de acordo com os princípios que, habitualmente, vinham sustentando nossa
prática pedagógica. Para os alunos cujas necessidades educacionais não fossem
devidamente atendidas dentro desse esquema, buscamos uma explicação
predeterminista, como a imaturidade de funções supostamente necessárias à
aprendizagem e, a partir daí, encontrarmos uma brecha na lei para que fique ou retido,
ou fique mais tempo, abstendo-nos de promover modificações na dinâmica das
solicitações que promovemos na sala de aula.
Em nível do interdiscurso, essa apropriação do conceito de idade mental,
próprio da psicologia clássica, vem sendo feita, desde muito tempo, para legitimar a
classificação e orientar a enturmação de alunos na lógica do sistema seriado. No mesmo
sentido tal apropriação, em nível do intradiscurso, embasaria o nosso trabalho e
serviria para justificar que determinada criança não vai aprender... não vai nunca
conseguir chegar.
Assim, ainda que atuassem numa Rede cuja orientação político-pedagógica
propunha a organização escolar em ciclos de formação, baseada no princípio da
enturmação entre pares de idade, muitos professores acreditavam que a criança
precisava ficar com os alunos com capacidade cognitiva igual a ela, porque a idade
cronológica não se compara com a idade cognitiva da criança, entretanto, avaliar e
enturmar uma criança pelo critério da idade mental é um procedimento que contraria
não só a proposta da Rede Municipal de Belo Horizonte, como também as pesquisas
realizadas com base nas correntes interacionistas sobre as contribuições que a interação
traz para a potencialização do funcionamento mental.
Destacamos, neste sentido, os estudos de base histórico-cultural de Lev
Semenovich Vygotsky e de seus colaboradores, segundo os quais “as relações entre o
processo de desenvolvimento mental da criança e sua aprendizagem são infinitamente
mais complexas do que se imaginava” (VYGOTSKY, 2001, p. 493) e não podem ser
explicadas com base apenas no conceito de idade mental que já teve seus princípios
diversas vezes abalados.
De acordo com Vygotsky (2001), a dedução, advinda do conceito de idade
mental, de que só haveria condição de iniciar a aprendizagem sobre este ou aquele
objeto após o desenvolvimento ou a maturação de certas funções mentais é
questionável. Se essa premissa fosse verdadeira, então, quanto mais tarde
começássemos o ensino, mais maduras estariam as funções mentais e mais fácil seria a
aprendizagem, entretanto, o autor demonstra a inconsistência de tal crença,
exemplificando que a aprendizagem da fala é mais fácil com um ano e meio de idade do
que com três e a aprendizagem da escrita igualmente mais fácil entre os cinco e os seis
anos do que entre os oito e os nove. Uma outra questão apontada é a de que a
aprendizagem em idade tardia se desenvolve por outros caminhos com apoio em
funções psicológicas diferentes.
Através de uma minuciosa exposição33, relacionando os conceitos de idade
mental, quociente de desenvolvimento mental, aproveitamento absoluto, aproveitamento
relativo, zona de desenvolvimento atual e zona de desenvolvimento imediato, Vygotsky
(2001, p. 509) conclui que mais importante para a escola não é tanto o que a criança já
aprendeu – seu nível de desenvolvimento atual, idade mental ou nível de QI – mas sim
o que ela é capaz de aprender. Propõe, a partir daí, que
Se deixarmos a colocação tradicional da questão de saber se a criança amadureceu ou não para a aprendizagem em determinada idade e passarmos a uma análise mais profunda do desenvolvimento mental da criança na aprendizagem escolar, assumirão outro aspecto todos os problemas da pedologia34 tanto na escola normal quanto na auxiliar35.
A partir de reflexões suscitadas pelo estudo de caso de Alessandro, uma criança
de dez anos com paralisia cerebral coreoatetóide grave – com um quadro de
movimentação involuntária acentuada na região oro-facial, que o fazia salivar,
excessivamente, e o impedia de emitir uma fala compreensível, além de movimentação
involuntária de membros superiores e inferiores – Braga (1995) reforça alguns aspectos
da discussão iniciada por Vygotsky em seus trabalhos, questionando os diagnósticos
emitidos com base apenas em testes psicométricos que, durante muitos anos,
conduziram à definição da criança coreoatetóide como deficiente mental em função de
suas dificuldades de expressão motora e verbal.
33 Cf. VYGOTSKY, 2001, p. 489 – 515. 34 Pedologia. [De ped(o)- + -log(o)- + -ia.] S. f. Estudo natural e integral da criança, sob o aspecto biológico, o antropológico e o psicológico. In: FERREIRA, 1975, p. 1055. 35 Na obra de Vygotsky (2001), o termo escola auxiliar assume o mesmo sentido que para nós tem o termo escola especial.
Ao longo de sua pesquisa, a autora demonstra que, através de interações sociais
adequadas, Alessandro pôde criar rotas isotrópicas36, atingindo funções mentais
superiores e se apropriando da cultura com resultados semelhantes aos de crianças de
sua idade, tendo sido, inclusive, alfabetizado em três meses, sem nunca ter freqüentado
uma escola antes. Braga (1995, p. 188) compreende, pois, que “as dificuldades trazidas
pela deficiência poderiam levar a processos criativos que dariam origem a novos
caminhos, permitindo que muito do que é inerente ao desenvolvimento normal
desaparecesse ou fosse encurtado”.
Uma outra questão que, de certo modo, decorre da acima exposta, refere-se à
expectativa, manifesta no discurso de grande parte dos professores entrevistados, de que
todas as crianças, compondo um “grupo homogêneo”, fossem capazes de acompanhar
a turma.
Prá ele acompanhar a turma é um pouco difícil, né? Ele tem uma defasagem de conteúdo bem grande, né? (E. M. Lygia Fagundes Telles) Quando ele tá no nível que ele consegue acompanhar mais ou menos a sala é mais tranqüilo. (E. M. Lygia Fagundes Telles)
A quase totalidade dos discursos dos professores evidenciava a classificação das
aprendizagens – especialmente das que envolviam as habilidades de leitura e escrita –
em níveis, com base no domínio ou defasagem de conteúdo. A expectativa era a de que
toda criança alcançasse um nível que permitisse acompanhar mais ou menos a sala,
tornando mais tranqüilo para o professor o processo de ensino.
A imagem que nos vem à mente para compreender tal abordagem é a da sala de
aula concebida como uma miniorquestra, cuja harmonia depende de que cada músico,
de posse de seus diferentes instrumentos e tocando em diferentes ritmos, seja capaz de
acompanhar regularmente as indicações do regente.
Reger [Do latim regere.] significa, entre outras coisas, governar, administrar,
dirigir; exercer as funções de professor de; ensinar, lecionar; ter como dependente;
subordinar; dirigir (orquestra, banda ou outro conjunto), marcando o andamento, as
entradas etc (FERREIRA, 1975, p. 1207). O sentido expresso nesses discursos parecia
36 Segundo Braga (1995, p. 64) “o termo isotrópico significa que há uma mudança (um desvio, um contorno), mas a direção e as propriedades são mantidas”.
ser que o processo educativo é mais tranqüilo quando podemos regê-lo, ou seja,
administrá-lo, marcar-lhe o andamento, subordiná-lo às nossas regras.
Essa abordagem, ainda que mais confortável para os processos de ensino, não
favorece a aprendizagem! Conforme os estudos da Psicologia, os processos de
aprendizagem são particulares, singulares, dependem da criança (VYGOTSKY, 2001, p.
445) e não são passíveis de controle por parte do professor ou de qualquer outro agente
externo.
Assim, sempre que tentarmos direcionar, governar, administrar ou marcar o
andamento dos processos de construção do conhecimento, estaremos atrapalhando ao
invés de auxiliar nossos alunos. A partir de tais reflexões, a compreensão de como o
aluno constrói sua aprendizagem torna-se muito mais relevante do que a intenção de
ensiná-lo, até porque o magistério como profissão, segundo Vygotsky (2001, p. 456), é
um fato falso do ponto de vista psicológico visto que, “no fim das contas só a vida
educa e quanto mais amplamente ela irromper na escola mais dinâmico e rico será o
processo educativo.” Nessa perspectiva, um novo papel recai sobre o professor: o de
“tornar-se o organizador do meio social, que é o único fator educativo” (VYGOTSKY,
2001, p. 448).
A obra O mestre ignorante (RANCIÈRE, 2004) que aborda a filosofia
formulada no início do século XIX pelo pedagogo francês Joseph Jacotot também nos
fornece importantes elementos para a reflexão sobre questões envolvendo o
desenvolvimento da inteligência e o papel do professor nos processos educacionais.
De acordo com Jacotot, a lógica do modelo pedagógico em vigor em nossa
sociedade utiliza a diferença como arma branca, para hierarquizar as inteligências e
dicotomizar o mundo em superiores e inferiores. Nesse modelo, o professor explicador
subordina a inteligência dos alunos à sua, por crer em sua inferioridade intelectual.
Com base em uma complexa argumentação, Rancière (2004) demonstra que,
segundo os princípios de Jacotot, a partir do momento em que assume que “há
desigualdade nas manifestações da inteligência, segundo a energia mais ou menos
grande que a vontade comunica à inteligência para descobrir e combinar relações novas,
mas não há hierarquia de capacidade intelectual” (RANCIÈRE, 2004, p. 49, grifos do
autor), o professor pode tornar-se capaz de desenvolver um papel emancipador, através
do qual guia, discretamente, a inteligência do aluno e a faz trabalhar.
Retomando nossas análises do discurso dos professores, vislumbramos um
possível deslocamento de sentidos nas situações em que os entrevistados pareciam
considerar positiva a convivência entre alunos de mesma idade em diferentes etapas de
desenvolvimento.
O critério que a gente tem prá enturmar [...] é a idade. [...] E é uma prática bem legal. Não agrada a todos. [...] Não tem argumento nenhum que derrube em relação, né? É mais tranqüilo prá trabalhar. [...] Agora, isso não pode ser um peso maior prá definir o que a escola precisa, né? (E. M. Rachel de Queiroz)
Ainda que seja uma prática que não agrada a todos, a enturmação por idade
parecia estar possibilitando um repensar das práticas pedagógicas e fazendo com que
alguns professores questionassem a intenção de provocar uma suposta homogeneização
das turmas – onde é mais tranqüilo prá trabalhar – e buscassem novos critérios prá
definir o que a escola precisa. Nessa movimentação, ainda marcada por dúvidas e
conflitos, se abriam possibilidades para o deslocamento de sentidos e para a criatividade
sobre a qual se referia Orlandi (2003).
Outros professores, cujo discurso em parte expressava o reconhecimento da
heterogeneidade presente em suas salas de aula pareciam também se encontrar nesse
espaço de deslocamento de sentidos.
Mesmo quando não tem um menino com deficiência, é impressionante como que é tão heterogêneo que você tem que estar ali, correndo em um, correndo em outro. [...] Então, já tem que ter esse jogo de cintura, os meninos foi só mais uma virgulazinha, nem pesa tanto, porque a gente já tá acostumado com isso. (E. M. Rachel de Queiroz) Porque cada um é cada um, né? E cada um tem sua especificidade e, na maioria das vezes, eu trabalho com... não existe turma homogênea. (E. M. Ana Maria Machado)
A diversidade humana e o fato inegável de que cada um tem sua especificidade
e de que não existe turma homogênea, mesmo quando não tem um menino com
deficiência, era reconhecido pelos professores que, cotidianamente, eram desafiados a
desenvolver esse jogo de cintura.
A própria vivência do ofício docente parecia ter lhes mostrado que, apesar do
nosso olhar reducionista, que insiste em conduzir simultaneamente as aprendizagens,
não existe turma homogênea e a gente já tá acostumado com isso. Ainda assim,
afirmar que a criança com deficiência nem pesa tanto ainda representava dizer que as
manifestações de suas diferenças eram sentidas como peso, como problema, cuja
solução não havia sido alcançada a partir das ferramentas disponíveis.
Assim sendo, identificamos um retorno ao sentido predominante da
homogeneidade e simultaneidade das aprendizagens quando, em outros trechos da
entrevista, os mesmos professores afirmavam, respectivamente, que:
Ela já tá pré-silábica, já indo pro silábico. [...] Ela não fica tão aquém dos outros meninos, não. [...] Acompanha e tudo. (E. M. Rachel de Queiroz) O ano passado eu dava conta de fazer um trabalho mais específico com eles, porque eles estavam muito próximos da turma, que não lia. [...] Agora, esse ano, não. A turma lê. (E. M. Ana Maria Machado)
Com base nos recortes discursivos acima apresentados, compreendemos que
mesmo no discurso que reconhecia como é que é tão heterogêneo o grupo de alunos
com os quais se trabalhava e afirmava já tá acostumado com isso, permanecia a busca
da classificação em níveis – ela já tá pré-silábica, já indo pro silábico, enquanto
mecanismo de comparação da criança com deficiência com um padrão de
desenvolvimento dos outros meninos e uma conseqüente demarcação de um espaço de
anormalidade para ela.
A ampliação da heterogeneidade nas salas de aula, provocada pela adoção da
enturmação por idade, parecia ainda não ter sido acompanhada de uma maior habilidade
das escolas para lidar com ela. Ao detectar esse mesmo fato em suas pesquisas sobre a
adoção de propostas de promoção automática em diversos estados brasileiros,
Mainardes (1998, p. 22) afirma que:
Em relação ao trabalho pedagógico, percebe-se, em todas elas, dificuldades dos professores com classes muito heterogêneas, indicando que este aspecto é fundamental, devendo ser levado em conta na implantação de propostas com promoção automática.
Um fato recorrente, em grande, parte dos discursos sobre desenvolvimento e
aprendizagem e que parecia contribuir para a tentativa de administração de
aprendizagens simultâneas e para o acirramento dessa dicotomização
normalidade/anormalidade eram as apropriações reducionistas que vinham sendo feitas
a partir dos conceitos de desenvolvimento lógico-matemático de Jean Piaget e,
principalmente, das reflexões desenvolvidas por Emília Ferreiro – psicolingüista,
colaboradora de Piaget – sobre a psicogênese da língua escrita.
Porque a minha turma praticamente toda já está lendo, né? Então, ela tá ainda no silábico. (E. M. Ana Maria Machado)
Dizer que uma criança tá ainda no silábico era considerar que, para alcançar a
turma praticamente toda, que já está lendo, faltavam muitas etapas as quais ela já
deveria ter alcançado para atender ao ideal da simultaneidade das aprendizagens. Essa
apropriação dos conceitos da epistemologia piagetiana relativos ao desenvolvimento da
língua escrita, além de ter colaborado para reforçar a percepção de turma como um
bloco cujo desenvolvimento seguiria os mesmos caminhos, num ritmo predeterminado e
normal, contribuía para que se reforçasse certa anormalidade àqueles que manifestassem
diferenças marcantes em seu desenvolvimento.
De acordo com a própria pesquisadora (FERREIRO, 2001, n.p.), num primeiro
momento, houve, no sistema educacional brasileiro, “apenas a troca de rótulos. Os
fracos passaram a ser chamados de pré-silábicos. Os que estavam no meio do processo
eram os silábicos e os que eram fortes foram classificados como alfabéticos.”
Ainda que as bases teóricas dessas e de outras abordagens da Psicologia
reafirmem a heterogeneidade enquanto fator impulsionador do desenvolvimento e a
proposta de organização escolar em ciclos de formação tenha acentuado essa
heterogeneidade nas salas de aula pesquisadas – por agrupar alunos de acordo com sua
faixa etária – parecia não ter havido um rompimento definitivo com a percepção de
turma, essa entidade abstrata que determinava o ritmo e os caminhos os quais todo
aluno deveria acompanhar.
Assumir como lei e transformar em método de ensino as reflexões de Piaget e
Emília Ferreiro, que abordam aspectos particulares de processos como o de construção
do raciocínio lógico matemático ou da linguagem escrita, é próprio de um modo de
olhar informado e direcionado por um paradigma que, arbitrariamente, busca o controle
dos fenômenos e nega a diferença, ignorando-a ou buscando corrigi-la.
De acordo com Sampaio (2001, p. 5), a percepção de mundo sedimentada pelo
paradigma da modernidade acabou fazendo com que as “diferentes formas de perceber,
de pensar, de sentir da criança passem a ser vistas como ausência de saber. Os caminhos
percorridos pelas crianças, na maioria das vezes, desconhecidos para a escola, não são
reconhecidos como possíveis de levar ao aprendizado,” entretanto, a diversidade é
característica essencial de qualquer ser humano e nenhuma lei estabelecida para tentar
explicar-lhe é capaz de abarcá-lo em toda a sua complexidade, pois, mesmo havendo
uma estreita relação entre seu desenvolvimento e as possibilidades de aprendizagem,
cada criança tem uma maneira peculiar de relacionar-se com o mundo e construir seus
conhecimentos.
Herança do positivismo próprio da modernidade, a questão do registro das
aprendizagens era outro tema que ocupava lugar de destaque no discurso dos
professores.
Ele lê a Revista Veja, mas ele não registra. [...] Ele não tem coordenação motora, mas os dedinhos funcionam. Então, ele escreve no computador, perfeitamente. Ele é totalmente alfabético, escreve super... não comete erro ortográfico nenhum. (E. M. Zélia Gattai)
Esse relato sobre um menino diagnosticado como autista, totalmente alfabético,
que não comete erro ortográfico nenhum e estava enturmado em uma “turma-projeto”
porque ele não registra e que, por isso, ficava lendo revistinhas em quadrinhos, para
não ficar completamente ocioso, coloca em grande evidência o reducionismo próprio de
práticas escolares que, herdeiras do pensamento moderno, não só pretendiam que as
aprendizagens dos alunos alcançasseem os mesmos patamares e seguissem o mesmo
trajeto, como exigiam que suas conquistas fossem registradas em instrumentos
avaliativos padronizados, em caracteres bem traçados, que servissem de prova factual,
legível, de preferência, em letra cursiva, e que pudessem ser comparados com um
padrão externo. Os sujeitos e seus corpos “desaparecem do horizonte cognitivo da
modernidade, para deixar apenas uma carapaça de propriedades mensuráveis”
(NAJMANOVICH, 2001, p. 17).
Habituado a tais procedimentos nosso olhar de professor aprendeu, em certos
aspectos, a ignorar os sujeitos, suas particularidades e sua história, sem perceber que
muitas das dificuldades que nossos alunos apresentam são fruto da própria estrutura
escolar. Diante de tal quadro, recorremos novamente a Mantoan (1997, p. 17), quando
afirma ser, fundamentalmente, necessário à escola capacitar-se para “distinguir o que é
da ordem da deficiência em termos de déficits reais, ou seja, de lesão orgânica
devidamente instalada como causa do problema e o que é da ordem do déficit
circunstancial em que intervêm os determinantes sociais”.
Muito mais comuns do que se imagina, os déficits circunstanciais são obstáculos
produzidos e impostos pelo próprio meio social e que geram situações de inadaptação,
afetando a todas as pessoas, não apenas àquelas com deficiência, abalando sua auto-
estima, prejudicando sua autonomia e seu relacionamento social. Um exemplo clássico
é a exigência da escrita em letra cursiva que, tradicionalmente, está relacionada a
situações de fracasso escolar37.
As instituições escolares, portanto, ao invés de contribuir para a criação,
identificação e/ou perpetuação de déficits circunstanciais, podem buscar reduzi-los ou
até eliminá-los. No caso do menino que não tem coordenação motora, mas os dedinhos
funcionam, o uso de números e alfabetos móveis ou na forma de carimbos; de giz de
cera, pincel atômico ou lápis cuja espessura fosse ampliada com fita ou borracha para
facilitar o manuseio; a utilização de uma máquina de escrever ou, até mesmo, de um
computador, poderiam se constituir em práticas alternativas que, talvez, evitassem que
um aluno que tinha tanta vontade de escrever depois parou com a vontade e hoje ele
não está fazendo nada (E. M. Zélia Gattai).
Dando continuidade à análise do discurso dos professores em torno da questão
do desenvolvimento e aprendizagem de seus alunos, destacamos outros recortes
discursivos que, segundo nosso entendimento, expressam e contribuem para que seja
reforçada a dicotomia que institui atributos de normalidade para uns e segrega os que
neles não se encaixam para espaços de anormalidade.
Aí quando a gente pegou, mesmo, a gente viu que não era uma turma de projeto, era uma turma de inclusão. (E. M. Zélia Gattai) Tinha alunos de inclusão, também, mas eram turmas com dificuldade de aprendizagem. (E. M. Zélia Gattai)
A criação de turmas com dificuldade de aprendizagem ou turma de projeto,
prática bastante comum nos sistemas escolares, constituía, em si mesma, a segregação
de alguns alunos mediante o critério de não acompanhamento dos padrões de
desenvolvimento esperados e da crença de que, uma vez agrupados de forma
supostamente homogênea, teriam melhores condições de avançar nas etapas evolutivas
da aquisição de conhecimentos.
37 Cf. Sampaio, 2002, pág. 185.
Os trechos acima evidenciavam que às crianças com deficiência era atribuída
uma estigmatização ainda mais profunda que fazia com que a escola sequer admitisse
concebê-las como público elegível para uma turma de projeto. Para elas, eram, pois,
criados novos rótulos, ainda mais pejorativos, como alunos de inclusão, em uma turma
de inclusão. Segundo C.Marques (1998, p. 106),
é forte o estigma referente às pessoas portadoras de deficiência. Estas, independentemente de suas potencialidades individuais, encontram-se amordaçadas por uma idéia globalizante de incapacidade e invalidez, que compromete tremendamente seu aproveitamento como força de trabalho, da mesma forma que diminui suas possibilidades de realização afetiva, educacional e política.
Além disso, como o rótulo da deficiência arrasta, automaticamente, a idéia de
incapacidade instalada no próprio sujeito, ele era estendido mesmo às crianças nas quais
não havia lesões ou déficits reais, enquanto justificativa para a não aprendizagem.
Agora, com esse trem de inclusão, a coisa tá gritante, mas esses meninos que não têm laudo que estão na escola, isso sempre existiu, né? (E. M. Maria Adelaide Amaral) Não aprende, não acompanha a turma, não tem atestado médico assinado prá falar o que é isso. E a gente não sabe o que fazer. Então, esses acabam com a gente, né? (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Esses meninos que não têm laudo que estão na escola pareciam constituir uma
categoria indefinida que deslizava entre a dificuldade de aprendizagem e a deficiência.
Eram sujeitos com um rótulo de que não aprende, não acompanha a turma e que, por
não terem um atestado médico assinado prá falar o que é isso, acabam com a gente,
desafiando e questionando diariamente nossa competência profissional.
Esse público, ao qual a escola não conseguia atender a partir das estratégias
utilizadas, sempre existiu sem, no entanto, gerar mudanças profundas na estrutura
escolar. Agora, com esse trem de inclusão, a coisa tá gritante e a escola não sabe o
que fazer.
E você sabe até mais ou menos, a experiência mostra quem vai, quem não vai conseguir. Uns vão demorar mais, mas a gente sabe "esse menino é só uma questão de tempo, vamos investir". (E. M. Maria Adelaide Amaral)
Assim, enquanto não desenvolvia a habilidade de atender às necessidades de
todos, a escola seguia, selecionando quem vai, quem não vai conseguir. Os desafios
que se mostravam grandes demais permaneciam na categoria de “excluídos do interior”
(BOURDIEU e CHAMPAGNE, 1988). Nos casos mais simples, em que é só uma
questão de tempo, vamos investir.
A noção de incapacidade atribuída às crianças com deficiência aliada às
dificuldades relativas à formação e às condições de trabalho do professor, além de se
manifestarem na baixa expectativa e no pouco investimento da escola com relação à
aprendizagem – porque o mínimo que aprender já é uma vantagem (E. M. Ana Maria
Machado) – revelavam-se ainda em outros recortes discursivos.
A professora de Arte, ela pega o grupo e faz um trabalho relacionado à arte, mesmo, à motricidade. Porque eles... essa forma de expressão... eles não sabem cortar, né? Estarem se expressando com papéis, com o próprio corpo. (E. M. Ana Maria Machado)
Algumas escolas adotavam a estratégia de encaminhar crianças com deficiência,
individualmente ou em pequenos grupos, para um atendimento paralelo, caracterizado
pela realização de atividades que, tradicionalmente, tinham menor valor na grade
curricular e eram abordadas informalmente, como a Educação Artística ou os exercícios
voltados para o desenvolvimento psicomotor.
Nesses casos, tais atividades não eram abertas a todos os alunos. Desacreditadas
quanto à sua capacidade para o pensamento abstrato e para o aprendizado das
disciplinas formais, as crianças com deficiência eram reunidas em grupos que, muitas
vezes, as fixam apenas em atividades concretas e de viés artístico ou motor. Por outro
lado, considerados suficientemente prontos para o aprendizado dos conteúdos
curriculares mais abstratos, os alunos que não apresentavam deficiências ou déficits
reais, contraditoriamente, tinham horários reduzidos para usufruir de tais atividades.
A prática da escola regular é conhecimento, certo? [...] E eles, os meninos do ensino espe... de necessidades especiais essa área não predomina. Na maioria, né? São outras questões que têm que ser trabalhadas com eles. A questão da independência, as questões da vida prática que eles têm que saber lidar com isso. (E. M. Rachel de Queiroz)
Essa tradição, herdada da pedagogia das escolas especiais, de basear toda a
aprendizagem da criança com deficiência no método direto38 e no treino da
independência, as questões de vida prática que eles têm que saber lidar, parte da
premissa de que as crianças com deficiência mental têm pouca capacidade para o
pensamento abstrato e para a construção do conhecimento e que, portanto, sua educação
deveria ser reduzida ao treino e à manipulação de objetos concretos, entretanto, além de
não contribuir para a criança superar seus déficits, essas práticas os aprofunda,
“habituando a criança a um pensamento exclusivamente direto e abafando nela os fracos
embriões do pensamento abstrato que, apesar de tudo, existem” (VYGOTSKY, 2001,
p. 481).
Partimos, finalmente, para a análise de como os professores avaliavam o
desenvolvimento dos alunos com deficiência decorrido algum tempo de convivência em
espaços comuns.
[A aluna] cresceu aqui dentro da escola em relação à socialização. [...] Agora, a aprendizagem não avança. (E. M. Ana Maria Machado) Eu estou fazendo é só mesmo essa parte de socialização. [...] Ela vai ver pouquíssima coisa... pouquíssima aprendizagem. A carga que ela vai levar vai ser muito pouco. (E. M. Lygia Fagundes Telles) Ele gritava. Ele não tinha, assim, socialização, sabe? [...] Então, a gente já conseguiu um avanço muito grande com ele, apesar de não ter o conteúdo. Mas, nesse caso conseguiu, nossa, um avanço! Prá quem viu quem chegou e quem tá aqui hoje. (E. M. Adélia Prado)
Sem nenhuma exceção, os professores que recebiam em suas turmas um aluno
com deficiência reconheciam que este cresceu dentro da escola em relação à
socialização. Ao caracterizar tal socialização, destacavam diversos aspectos como:
desenvolvimento da linguagem oral e, às vezes, escrita; aumento da auto-estima da
criança e/ou de seus familiares; melhoria do relacionamento com os colegas; maior
autonomia para locomoção e orientação no espaço físico da escola; redução de
manifestações como gritos, fugas, agitação, agressividade, indisciplina; aumento da
capacidade de controle dos esfíncteres; desenvolvimento no processo de construção da
linguagem escrita; entre outros aspectos, entretanto, como o produto que a escola espera
é ter o conteúdo, grande parte dos entrevistados entendia ter havido pouquíssima
38 Cf. VYGOTSKY, 2001, p. 481.
aprendizagem e que esta não avança, desvalorizando parte indispensável do processo
de desenvolvimento suscitado pela convivência social em um ambiente escolar comum.
Desconsiderava-se, por exemplo, que nessa convivência cotidiana as crianças
aprendiam umas com as outras e com os adultos, atuando de modo variado e
incomensurável na zona de desenvolvimento imediato – ou proximal – umas das outras,
não apenas interferindo, como impulsionando, reciprocamente, tanto o desenvolvimento
das estruturas do pensamento, como dos aspectos físicos, intelectuais, afetivos, morais,
psicológicos e sociais de todos.
Segundo Mantoan (1997), a diversidade de ritmos, estilos de aprendizagem,
procedimentos, atividades de construção do conhecimento e motivações de
aprendizagem, ao invés de obstáculos, constituem fator enriquecedor do
desenvolvimento e precisam ser reconhecidos como tal. O desafio é saber aproveitar-
lhes o potencial educativo ao invés de buscar a homogeneização.
Felizmente, sentidos alternativos se faziam presentes quando os professores
eram desafiados a considerar outros aspectos do desenvolvimento infantil a partir da
convivência na diversidade.
Se eu for lá colocar essa área cognitiva como uma parte do currículo, aí na hora em que eu vou trinchando as outras coisas que a escola se pretende trabalhar como função dela. [...] Talvez, a gente não tenha vencido numa parte do currículo. Então, eu acho que isso que você falou, “ah, o aluno saiu, às vezes, sem habilidade de leitura e escrita”. Mas, [...] assim, de colocá-la como cidadã eu acho que a gente conseguiu, porque ela via os meninos fazerem, não é? [...] Se a gente for colocar como avanço na vida dela é muito grande! (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Relativizar o domínio dos conteúdos curriculares como uma parte do currículo
e valorizar outras coisas que a escola se pretende trabalhar como função dela era um
dos caminhos para que se pudesse assumir a chamada socialização como parte
constitutiva e indissociável do desenvolvimento. Enquanto sujeito histórico e cultural,
todo ser humano se desenvolve a partir da vida em sociedade; a socialização, portanto,
lhe fornece elementos para o desenvolvimento do pensamento e a construção de
conhecimentos sobre o mundo.
Vale ressaltar que o incômodo dos professores diante do não desenvolvimento
dos conceitos científicos por parte de seus alunos é válido, legítimo e precisa, sim, ser
considerado nas reflexões sobre as funções básicas da escola. O que o princípio da
inclusão propõe não é o simples abandono dos conteúdos e o rebaixamento das
exigências. Pretende, ao contrário, que a escola não seja um “empecilho ao aprendizado
das crianças” (SAMPAIO, 2002, p. 183) e que assuma o desafio de buscar formas mais
adequadas de intervenção para que a aprendizagem de todos os alunos aconteça,
relativizando o peso dado ao conteúdo, até então considerado como única aprendizagem
válida.
Para tal, precisa estar ciente, por exemplo, de que na criança cujos déficits reais
ou circunstanciais interferem nas estruturas mentais, o desenvolvimento ocorre de
maneira mais lenta, evidenciando uma certa viscosidade de raciocínio (INHELDER
apud SILVA, 1999/2000), por isso, uma compreensão mais aprofundada de tais
processos poderia auxiliar as escolas a superar a impressão de que a aprendizagem não
avança e solicitar, de forma mais adequada, o desenvolvimento global de seus alunos.
4.5 AVALIAÇÃO: ENTRE A EMANCIPAÇÃO E O CONTROLE
Partindo do princípio de que tanto as estratégias e os instrumentos avaliativos,
quanto as ações implementadas a partir de seus resultados e os discursos que envolvem
a questão da avaliação no ambiente escolar traduzem concepções de sujeito e de sua
aprendizagem, de professor e de sua função, bem como de educação e de suas
finalidades, buscamos compreender, através do discurso dos professores, os sentidos
sobre a avaliação, cotidianamente, realizada na relação educacional.
Interessa-nos, especialmente, os sentidos construídos em torno dos
procedimentos avaliativos adotados a partir da inserção de crianças com deficiência no
cotidiano de salas de aula comuns cujos professores, em geral, se habituaram ao
exercício de um tipo regulatório de avaliação.
Diversos autores que vêm desenvolvendo estudos sobre avaliação educacional
mostraram-se relevantes para a compreensão dos sentidos presentes no discurso dos
professores, dentre eles Dalben (1998, 2000), Esteban (2000, 2001, 2002, 2003), Soares
(2002), Luckesi (2002) e Hoffmann (2004). Além destes estudos, Santos (2002)
permanece contribuindo para identificarmos as formações discursivas nas quais os
sujeitos se situam.
Se ele não alfabetizou no tempo normal, é porque ele tem algum problema que tá interno, né? (E. M. Lygia Fagundes Telles) Tem um menino na sala que você olha pro menino, você vê que ele tem problema! (E. M. Maria Adelaide Amaral)
Iniciamos nossas análises com recortes discursivos relacionados a
procedimentos avaliativos que ocorrem em situações cotidianas e extrapolam os
mecanismos formais de aferição de resultados. Sob condições histórico-culturais
hegemônicas, que nos enformam – no sentido de “meter na fôrma” (FERREIRA, 1975,
p. 526) – avaliamos, classificamos, produzimos discursos que, informalmente, nos
mantém numa permanente identificação de desvios: Você olha pro menino, você vê que
ele tem problema.
Quando avalia sob essa perspectiva cognitivo-instrumental, cujas metas são a
produtividade e a ordem, localizando naquele que não alfabetizou no tempo normal
algum problema que tá interno, o discurso pedagógico insiste em manter seus pilares,
relegando à categoria de caos e ignorância o que lhe escapa aos padrões. Mantém-se,
assim, circunscrito ao caráter regulatório do conhecimento (SANTOS, 2002).
Esses aqui são meninos com dificuldade de aprendizagem. Agora, entre elas, tem menino com problema. (E. M. Ana Maria Machado) A experiência mostra quem vai, quem não vai conseguir. Uns vão demorar mais, mas a gente sabe: “– Esse menino é só uma questão de tempo, vamos investir". (E. M. Maria Adelaide Amaral)
À medida que nos voltamos para a questão da inserção de crianças com
deficiência – menino com problema – esse caráter regulatório manifestava-se com
maior intensidade e clareza. Pelo que pudemos compreender, a constatação de uma
deficiência reduzia ainda mais a avaliação em termos de possibilidades e limitava o
olhar avaliador para o campo do problema, eximindo a instituição escolar de investir em
quem não vai conseguir alcançar os patamares esperados de produtividade.
Em uma de suas análises sobre esse tipo de avaliação que expõe e classifica não
só os alunos, como a comunidade escolar e os profissionais que, por um ou outro
motivo, não cumprem a rigor o papel esperado, Esteban (2003, p. 33) afirma que:
Jogando luz sobre o que não fazem e anunciando, alto e bom som, suas incapacidades, a avaliação joga para uma zona opaca e silenciosa as questões que podem nos ajudar a compreender e a interagir.
Ressaltando a negação, o que se nega é a própria potência da escola e dos processos emancipatórios que ali se realizam.
Em linhas gerais, os documentos produzidos pela SMED/BH expondo o uso
desejável da prática da avaliação na concepção do Programa Escola Plural
manifestavam a intenção de suscitar e valorizar, entre as chamadas “experiências
emergentes”, em andamento nas escolas da Rede, aquelas que apresentavam esse caráter
emancipatório e apontavam para a necessidade de se repensar o sentido da avaliação em
um projeto educativo que concebesse a escola em sua dimensão plural. Segundo um
desses documentos,
O uso da avaliação que tem sido muito discutido como desejável é aquele relacionado com a utilização das informações que ela proporciona, para a construção de uma prática pedagógica, que contemple as várias dimensões da formação humana. Isso implica, necessariamente, em dar à avaliação um outro papel institucional, substituindo a função controladora pela dimensão formadora (BELO HORIZONTE, 1996b/2002, p. 228).
Para além da utilização das informações que ela proporciona, propomos o
permanente questionamento das próprias informações e dos meios que utilizamos para
alcançá-las. Como discernir se as informações disponibilizadas por nossos instrumentos
de avaliação – dentre eles, nosso olhar – fornecem elementos que contribuem para a
formulação de alternativas emancipatórias, ou se apenas reproduzem a perspectiva
cognitivo-instrumental que geralmente permeia nosso discurso? Como evitar que nossa
avaliação fique restrita à identificação e à segregação de desvios e valorize a
diversidade enquanto característica essencial à existência humana? Será possível
superar essa nossa tendência em contabilizar o desenvolvimento em graus, níveis,
escalas de medidas positivas ou negativas que nos dificultam enxergar o ser humano em
sua complexidade? Essas questões, ainda não respondidas, permeam nossas reflexões ao
longo desse estudo.
De um lado, isso é legal porque dá uma autonomia à escola e a escola que tem consciência do trabalho, fazer um trabalho legal. Mas pode incorrer num outro risco, não é? De você estar ali com um bando de gente que não tem compromisso com as coisas e desandar com a vida do menino, não é? (E. M. Rachel de Queiroz) Essa autoria delega muito mais responsabilidade. [...] Eu fico me vendo há vinte anos atrás, quando você falava: “cinqüenta por cento dessa turma foi reprovada. Mas que professor bacana esse, gente!
Metade da turma dele tomou bomba”. [...] A lógica, hoje, como é que ela é diferente! É todo mundo mais preocupado com o que tá acontecendo nesse processo desse menino que chegou lá e não tá lendo e que a gente tá investindo em cima disso. (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Nos recortes discursivos em destaque, os professores pareciam compreender
que, se as escolas podiam desfrutar de relativa autonomia, essa deveria estar pautada em
compromisso, responsabilidade e consciência para se fazer um trabalho legal.
Por outro lado, ressaltavam que a autonomia, ao mesmo tempo em que abria
espaço para a constituição de uma lógica diferente e de um profissional mais
preocupado com o que tá acontecendo nesse processo desse menino, também estaria
relacionada à noção de risco, na medida em que um bando de gente que não tem
compromisso com as coisas pode desandar com a vida do menino.
Com base numa complexa articulação desses princípios e numa noção seletiva
de qualidade, grande parte dos discursos acabava associando à intenção de fazer um
trabalho legal uma série de mecanismos regulatórios, supostamente capazes de
assegurar o cumprimento do compromisso com a formação de qualidade para todos os
alunos.
Assim, um dos sentidos encontrados, manifesto com bastante freqüência, era o
de avaliação enquanto componente de um processo de triagem, termo associado às
noções de “seleção, escolha, separação” (FERREIRA, 1975, p. 1407).
O professor passa, no final do ano, uma listagem dos alunos, né? E tenta separar os silábicos, os alfabéticos. (E. M. Cecília Meireles) Esqueci como é que chama lá o lugar que faz, antes, a triagem deles [...] quando eles já sabem ler as LIBRAS, aí eles vêm prá cá. (E. M. Adélia Prado) Então, esse ano, a gente achou que o melhor seria o remanejamento. [...] Cada professor encaminha o seu trabalho no mês de fevereiro, né? Do seu jeito, tendo em mente que almeja a avaliação, que almeja o diagnóstico. (E. M. Ana Maria Machado)
A avaliação que tenta separar os silábicos, os alfabéticos, tendo em mente que
o melhor seria o remanejamento situava-se numa lógica que, segundo Esteban (2003,
p. 17), acabava por “fragmentar os alunos e alunas em partes observáveis, que podem
ser quantificadas, medidas, comparadas, classificadas e receber um valor, que é
registrado e que informa a posição dos estudantes na hierarquia da sala de aula, da
escola e da sociedade.”
Tais noções, extremamente arraigadas em nossa prática pedagógica, filiavam-se
a um conhecimento instrumental e regulatório que sustenta nossa “incapacidade de
estabelecer relação com o outro a não ser transformando-o em objeto” (SANTOS, 2002,
p. 83) supostamente previsível e controlável.
Ainda que a legitimidade dessa capacidade de retratar, prever e controlar o
comportamento e o desenvolvimento humanos venha sendo questionada há décadas,
verificamos que, no cotidiano escolar, a superação dessas noções e as possibilidades de
estabelecimento de um diálogo solidário e emancipatório com a heterogeneidade de
nossos alunos ainda se apresentavam utópicas e de difícil realização. Conhecimento
todos têm. Agora, aplicabilidade é difícil (fala de professor). Ainda segundo Esteban
(2003, p. 17),
a prática da avaliação, que pretende medir o conhecimento para classificar os(as) estudantes, apresenta-se como uma dinâmica que isola os sujeitos, dificulta o diálogo, reduz os espaços de solidariedade e de cooperação e estimula a competição. Essa prática exclui do processo ações indispensáveis à aprendizagem de todos, portanto é insuficiente para a professora que deseja ensinar a todos os seus alunos e alunas.
As concepções que os professores tinham sobre a questão do desenvolvimento
humano direcionavam sua prática avaliativa, enformando-os, ou seja, levando-os a se
posicionar numa formação discursiva que legitimava uma série de aspectos na
elaboração e execução de um determinado procedimento de avaliação.
Tô sempre avaliando com atividades individuais, mesmo, igual eu dei hoje. Individual, mesmo. E recolho. (E. M. Cecília Meireles) A mente dele tá funcionando perfeitamente. Bem demais, porque ele é um aluno super crítico. Ele sabe o que tá passando por aí, ele lê uma revista Veja, ele fala sobre o Lula. Ele entende [...] mas, na hora de registrar, não escrevia Lula! (E. M. Zélia Gattai)
Em geral, para o discurso pedagógico, o autêntico desenvolvimento é aquele que
poderia ser registrado por meio de instrumentos de avaliação supostamente objetivos. O
fato de que a mente dele tá funcionando perfeitamente tornava-se irrelevante se, na
hora de registrar, não escrevia Lula. Assim, só eram reconhecidas as atividades
individuais, mesmo, que eu recolho e arquivo como prova. Neste caso, ficavam
relegadas a segundo plano as potencialidades manifestas pelo aluno em atividades
realizadas sob orientação, com ajuda, por indicação e em colaboração39.
De acordo com os estudos de Esteban (2000, 2002), na dinâmica da sala de aula
nós, professores, somos capazes de perceber a diversidade de nossos alunos e, de certo
modo, intuir ou reconhecer que a estabilidade que buscamos nos processos avaliativos é
mera suposição e aproximação que não corresponde ao movimento educacional, sempre
atravessado pela complexidade e imprevisibilidade, entretanto,
Ainda que a sala de aula seja constituída pelo movimento, pela surpresa, pela turbulência, pela desordem, pela diferença, as práticas escolares e os processos ensino/aprendizagem estão estruturados para conduzir à homogeneidade, à convergência, à linearidade, considerados essenciais para uma boa relação pedagógica (ESTEBAN, 2000, p. 3).
Assumindo como meta a intervenção radical nas estruturas excludentes do
sistema escolar, o Programa Escola Plural (BELO HORIZONTE, 1994/2002) pretendia
promover uma série de modificações na organização pedagógica das escolas, afetando,
principalmente, suas estruturas avaliativas. Pesquisadores (DALBEN, 1998, 2000;
SOARES, 2002; ABREU, 2003) que acompanharam o processo de implantação do
Programa identificaram, em diversas ocasiões, manifestações de dúvida e insegurança
tanto por parte dos profissionais das escolas, quanto por parte da comunidade escolar,
de forma geral, diante da eliminação das notas e, principalmente, da reprovação.
De acordo com Soares (2002, p. 75), a abolição das notas e da reprovação
“desestruturou as relações de poder na escola e significou, para os docentes, a perda de
referências fundamentais no seu trabalho: avaliar, manter a disciplina, exercer o
controle sobre o processo de aprendizagem de seus alunos e alunas.” Por outro lado, de
acordo com a mesma autora, ainda que a nova situação tenha gerado perplexidade e
muita resistência, também acabou por mobilizar os profissionais em direção à
construção de novas alternativas.
Mas eu acho que se a gente perguntar quem é que faria, hoje, a opção de voltar para o modelo seriado e tal, eu acredito que a gente não encontra professor que fala “tenho saudade daquela escola que a
39 Cf. item 4.4 “Aprendizagem, desenvolvimento e enturmação” no presente trabalho.
gente trabalhava há dez anos atrás”. Eu acho que nós somos, hoje, profissionais muito melhorados. (E. M. Lygia Fagundes Telles) A escola mudou completamente a sua organização. [...] E, também, o mais importante que eu acho, também, é a cabeça de todo mundo, né? Que muda. As nossas atitudes, os nossos procedimentos. Reavalia tudo. (E.M. Ruth Rocha) Uma das vantagens da Escola Plural é que você tenta avaliar o aluno não prá dar nota, né? Você tenta avaliar prá você ver a partir de onde que você vai caminhar, se você vai ter que voltar, se você pode continuar. (E. M. Cecília Meireles)
Embora, em determinados aspectos, manifestassem ressalvas com relação ao
Programa e ao seu processo de implantação e implementação, grande parte dos
professores considerava que nós somos, hoje, profissionais muito melhorados e não
faria a opção de voltar para o modelo seriado, no qual se avaliava o aluno prá dar
nota. Apontavam, assim, algumas vantagens da Escola Plural e reconheciam a
importância de essa ter propiciado um deslocamento englobando as nossas atitudes, os
nossos procedimentos.
Todavia, consideramos que, enquanto os professores julgavam que a escola
mudou completamente a sua organização poderiam estar dificultando a reflexão,
identificação e possível superação de mecanismos excludentes que, sob aparente
legitimidade, ainda podiam estar permeando sua prática pedagógica.
Em alguns contextos, novos sentidos pareciam emergir das discussões sobre a
adoção de instrumentos de avaliação de caráter mais descritivo e qualitativo – propostos
pelos documentos editados pela SMED/BH, na ocasião da implantação do Programa
Escola Plural – como possíveis alternativas à prática autoritária e seletiva, até então
representada pelas avaliações de caráter quantitativo.
O mais importante prá mim nesse processo pedagógico é o retrato que você tem do seu aluno. Você tem um retrato muito mais completo dele, muito mais real. [...] Então, eu acho que o grande mote dessa produção da escola foi exatamente esse conhecimento que o professor tem do aluno, do ser humano que, inclusive, pode orientar muito o trabalho do professor dentro de sala de aula. (E.M. Ruth Rocha) Eu acho que o mais importante dessa avaliação, dessa ficha é que a gente tem uma visão realmente completa do aluno. (E.M. Ruth Rocha)
Referindo-se às mudanças ocorridas no processo pedagógico das escolas, alguns
discursos indicavam que a avaliação qualitativa, elaborada na forma de fichas
descritivas, poderia contribuir para um conhecimento que o professor tem do aluno, do
ser humano e fornecer elementos que poderiam orientar muito o trabalho do professor
dentro de sala de aula.
Esses mesmos discursos revelavam, no entanto, a manutenção da crença numa
suposta possibilidade de obtermos de um retrato muito mais completo do aluno, muito
mais real, o que ainda poderia ocultar a complexidade e incompletude dos educandos e
contribuir para que fossem mantidos na posição de objetos, sobre os quais se buscaria a
previsibilidade e o controle, mesmo sob uma pretensa procura por um conhecimento do
tipo emancipatório. De acordo com os estudos de Esteban (2003, p. 28),
Mesmo os relatórios descritivos, com freqüência, descrevem o processo do aluno ou aluna em relação ao que era esperado que ele ou ela fizesse; a referência continua sendo o ensino. Sem desconsiderar a potencialidade de transformação que o debate sobre a avaliação qualitativa traz para o cotidiano escolar, no momento em que estamos ela ainda se pauta na classificação.
Nessa mesma direção percebemos, através da leitura de diversos textos, que
mesmo no discurso de alguns autores que defendem a superação da avaliação
classificatória por práticas qualitativas ainda não houve uma ruptura definitiva com o
sentido de padronização e hierarquização das aprendizagens conforme observamos no
trecho abaixo selecionado, o que dificulta a construção de uma prática educativa
pautada em princípios inclusivos:
Com isso, fugiremos ao aspecto classificatório que, sob a forma de verificação, tem atravessado a aferição do aproveitamento escolar. Nesse sentido, ao avaliar, o professor deverá: [...] atribuir uma qualidade a essa configuração da aprendizagem, a partir de um padrão (nível de expectativa) preestabelecido e admitido como válido pela comunidade dos educadores e especialistas dos conteúdos que estejam sendo trabalhados (LUCKESI, 2004, p. 95).
Essas expectativas em torno de padrões de aproveitamento escolar,
proporcionais à idade e ano do ciclo, estão fortemente arraigadas em nosso imaginário e
se mostravam presentes em todos os discursos questionando, pois a eficácia do sistema
de organização em ciclos de formação e a viabilidade dos processos de inserção de
crianças com deficiência no sistema comum de ensino organizados sob tal lógica.
Que profissão uma criança dessa vai ter? Então, quer dizer, a sua função como educadora fica aí frustrada, justamente por isso. Eu
estou formando esse aluno prá vida, prá ele competir no mercado? Claro que não! Ele vai conti... ele vai ser um excluído! Ele não sabe falar, ele não sabe escrever. Ele vai passar pela escola! (E. M. Zélia Gattai) Isso que, a princípio, talvez na melhor das intenções, foi criado como um direito, quando é um caso de um menino que não dá conta de acompanhar passa a ser, assim, um castigo. [...] Não é reprovar o menino. [...] é dar a ele o direito de ter mais um tempo ali. (E. M. Maria Adelaide Amaral)
Remetendo-se a um contexto global, marcado pela competitividade, pela baixa
escolarização da população em geral, pela má distribuição de renda, pelas altas taxas de
desemprego, enfim, pela segregação em seus mais diversos aspectos, diversos
professores compreendiam que admitir diferenças em torno das possibilidades de
construção de conhecimentos em parte manifestas nas variações de rendimento escolar
dos alunos e, portanto, abandonar os padrões e níveis de expectativa preestabelecidos
configuraria uma perda na qualidade da formação e uma violação de direitos que
poderiam influir decisivamente no futuro dos educandos, o que produzia a sensação de
que a sua função como educadora fica aí frustrada.
Ainda que justa e necessária, tal preocupação em torno da possibilidade de que o
aluno viesse a ser um excluído devido, em parte, a carências em sua formação
acadêmica, nem sempre se traduzia em efetivas melhorias nos processos de ensino.
Relacionando a questão da padronização às discussões sobre inclusão escolar,
Hoffmann (2004, p. 34) afirma que
Inclusão pode representar exclusão sempre que a avaliação for para classificar e não para promover, sempre que as decisões levarem em conta parâmetros comparativos, e não as condições próprias de cada aluno e o princípio de favorecer-lhe oportunidade máxima de aprendizagem, de inserção na sociedade, em igualdade de condições educativas. Essa igualdade nada tem a ver com a visão padronizada da avaliação, como uma exigência de igualar-se aos colegas, de corresponder às exigências de um currículo fixo, ou de um professor. Tem a ver com a exigência de delinear-se concepções de aprendizagem e formar-se profissionais habilitados que promovam condições de escolaridade e educação a todas as crianças e jovens brasileiros em sua diversidade.
Nossas análises indicavam, entretanto que, em geral, o discurso pedagógico
evitava identificar as barreiras à aprendizagem que, possivelmente, pudessem estar
sendo ocasionadas pela própria organização escolar ou pela dinâmica da sala de aula e
restringia ao aluno, à sua deficiência, aos seus familiares ou ao sistema a
responsabilidade pelo que identificava como fracasso.
Parecia que, apesar da preocupação com os processos de exclusão que poderiam
ser vividos por seus alunos no futuro, poucas escolas envolviam-se com a superação dos
processos de exclusão que os alunos viviam dentro da escola ou com a formação dos
professores, habilitando-os a promover condições de escolaridade e de educação a todas
as crianças, conforme nos propõe Hoffman (2004). É como se, para a lógica que regia as
instituições pesquisadas, a vivência e a esperada superação meritocrática dos
mecanismos de segregação escolar preparassem os estudantes para a vivência numa
sociedade essencialmente excludente.
Neste sentido, dar a ele o direito de ter mais um tempo na escola era uma
estratégia apontada como solução mais evidente, como se o longo histórico de
reprovações que marca a história do sistema escolar brasileiro já não nos tivesse dado
suficientes sinais de sua ineficiência. Sinais que, segundo Esteban (2003), são
percebidos pelo próprio professor que
Às vezes, sabe, ou suspeita, que muitas vezes a reprovação não faz o aluno ou aluna aprender, que nem sempre é uma nova oportunidade; mas sabe, também, ou continua suspeitando, que para não classificar e excluir é preciso que muita coisa mude na escola, inclusive em si mesma.
Acreditamos que tais mudanças dificilmente serão implementadas sem que se
estabeleça uma relação de apoio e cooperação mútuos entre os profissionais das escolas,
seus alunos, a comunidade escolar e os órgãos administrativos dos sistemas de ensino.
Isso porque uma educação inclusiva só se estabelece em ambientes cooperativos em que
essas várias instâncias trabalham juntas, compartilhando responsabilidades, avaliando e
refletindo sobre os processos educativos e não em relações nas quais predomina a
culpabilidade recíproca.
Embora nos faltem dados estatísticos, sabemos que, na ocasião da pesquisa, em
grande parte do sistema de educação do Município de Belo Horizonte um significativo
número de alunos concluía o segundo ciclo sem o domínio de habilidades básicas de
leitura e escrita devido a diversos fatores, dentre eles a dificuldade das instituições
escolares em construir um trabalho cooperativo e em produzir modificações
significativas em sua organização pedagógica. Tal fato vinha gerando uma insatisfação
generalizada e contribuía para acirrar os debates sobre a relação entre qualidade do
ensino, rendimento escolar e retenção.
A Escola Plural não impede a retenção. Porém, ela quer que você proponha alternativas prá essa retenção. Você tem que justificar porque da retenção e quais são as suas intenções educativas. Ele vai ficar retido por ficar? Ou ele vai ficar retido aqui para ter um trabalho com ele? (E. M. Maria Adelaide Amaral) A questão da retenção que acho que o que pega mais na Escola Plural atualmente é isso, né? Eu acho que ela tem que ser revista. Ter a possibilidade, mas analisando caso por caso, não é? Que é o que tá começando a acontecer, agora. (E. M. Cecília Meireles)
Em linhas gerais, compreendemos que o que tá começando a acontecer, agora
era uma espécie de retrocesso na estratégia diante dos resultados insatisfatórios
apresentados. Ainda que documentos publicados na ocasião da implantação da Escola
Plural admitissem a possibilidade de “permanência de alunos no Ciclo de idade, por
mais um ano” (BELO HORIZONTE, 1994/2002, p. 22), tal prática vinha sendo, até
então, evitada por orientação dos setores administrativos responsáveis pelo
acompanhamento das escolas, provavelmente na expectativa de que estas conseguissem
desenvolver práticas alternativas mais eficientes que a reprovação.
De fato, ainda que diversas escolas considerassem mais adequado justificar
porque da retenção e quais são as suas intenções educativas ao invés de promover
mudanças efetivas em sua organização, outras vinham buscando instaurar processos
mais amplos de avaliação, envolvendo a instituição e seus participantes.
Aluno, pai, todo mundo avalia todo mundo em todos os aspectos. [...] E organiza esse seminário com debates e, depois, faz a assembléia prá plenária de aprovação. E a assembléia decide do que foi proposto no passado se já foi resolvido, né? E as novas demandas. (E. M. Rachel de Queiroz) Foi tirado do Congresso Pedagógico que a avaliação seria da escola inteira, né? Mas, agora, nesse momento da escola surgiu até um grupo de alunos que está preparando uma avaliação. Eles estão preparando uma avaliação dos professores, do ensino, da escola. Eles estão tendo esse cuidado e, inclusive, construindo junto com alguns professores, com a direção, uma avaliação. (E.M. Ruth Rocha)
Buscando a superação da dimensão unilateral, na qual apenas o aluno é avaliado,
esses discursos revelavam a tentativa de promover um processo mais aberto e
democrático em que todo mundo avalia todo mundo em todos os aspectos, a fim de
identificar do que foi proposto no passado se já foi resolvido e as novas demandas.
Processos como este, evidentemente, são marcados por negociações e conflitos,
por tocarem em antigas estruturas de poder. Difíceis de serem instaurados, expõem não
só as conquistas mas, especialmente, as fraquezas do grupo, embora contribuam para
alcançar a construção de novas forças. Por tudo isso, os processos de avaliação
institucional demandam organização, cuidado e persistência, por parte de um coletivo
engajado no aprimoramento solidário de todos e não no desenvolvimento competitivo
de alguns.
Concluímos, por fim, esse item considerando que os movimentos de reflexão
que envolveram tanto o nosso trabalho como o dos professores entrevistados constituem
indícios de possíveis transformações no modo como pensamos o cotidiano escolar e
nele atuamos. Neste sentido, atribuímos aos processos avaliativos o valioso papel de
desestabilizar velhas certezas, possibilitando a construção de caminhos alternativos para
superar os desafios encontrados.
Como Esteban (2001, p. 14), acreditamos que tais caminhos certamente têm
“desvios, atalhos, pistas erradas, e até alguns retornos que podem fazer com que tudo
volte ao seu início”, causando a impressão de voltar à estaca zero. Ainda assim,
estamos sempre caminhando e nos aprimorando, mesmo que velhos sentidos insistam
em se manifestar em nosso discurso.
4.6 ESTRATÉGIAS DE ACOLHIMENTO E INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA
Ao longo de nossas análises, identificamos uma série de indícios que nos
permitiram supor que havia, por parte de diversos professores entrevistados, a
preocupação em garantir um atendimento educacional de qualidade aos seus alunos.
Com o propósito de acolher e intervir pedagogicamente, visando ao atendimento à
diversidade dos mesmos, em cada um dos contextos pesquisados tal preocupação se
traduzia em estratégias e esforços variados. São, justamente, essas estratégias que nos
interessam no presente item.
De acordo com as reflexões de Esteban (2003, p. 32), “muitas vezes, o que dá
sentido às palavras, atos, produções, processos, possibilidades, carências, está
silenciado, nem por isso, ausente. Apenas invisibilizado no discurso e nas práticas.”
Buscamos, pois, compreender os possíveis sentidos envolvidos nos discursos, sempre
tomando como pano de fundo as discussões sobre Escola Plural e inclusão escolar. Para
tal, contamos com as contribuições teóricas de Sampaio (2001), Santos (2002), Skliar
(2002), Mantoan (2002b), entre outros.
Olha, ele já teve oportunidade de ir para uma escola especializada. Só que o pai cobra esse direito dele estar inserido aqui na escola. (E. M. Lygia Fagundes Telles) Tem uma que a [professora] tá querendo colocar prá escola especial. (E. M. Ana Maria Machado)
Diante das dificuldades em elaborar estratégias pedagógicas, para intervir em
favor de todos os educandos, uma primeira iniciativa adotada por algumas escolas era a
de colocar prá escola especial a responsabilidade pelo atendimento ao aluno com
deficiência, permanecendo com o mesmo apenas quando o pai cobra esse direito de ele
estar inserido na escola comum. Iniciativas como essa costumavam vir acompanhadas
de argumentos em torno do bem-estar da criança, todavia, tendemos a concordar com o
ponto de vista de D’Antino (1998) e C.Marques (2001b) de que tais gestos de exclusão
beneficiariam unicamente a manutenção da seletividade da escola, por desobrigá-la de
promover modificações em suas estruturas.
Pelo amor de Deus, como é que é? Olha, eu estou deixando o [aluno com deficiência] sozinho na sala. Eu tô dando revista prá ele porque ele quer fazer! (E. M. Zélia Gattai) Então, eu comecei a dar uma assistência individual prá ela. Coloquei na primeira carteira, toda atividade dela era separada. Então, eu dava a minha aula lá, para os meus alunos, corria na carteira dela, para orientá-la. (E.M. Cecília Meireles)
Pudemos perceber que o principal desafio apresentado aos professores diante da
heterogeneidade das turmas era a elaboração de atividades que propiciassem a
participação e o aproveitamento por parte de todos os alunos, de acordo com suas
possibilidades individuais.
Em geral, tal habilidade ainda não havia sido alcançada, o que, por vezes, fazia
com que o professor ou acabasse deixando o aluno com deficiência sozinho na sala,
adotando medidas paliativas – como dar revista prá ele porque ele quer fazer – ou
tivesse que se desdobrar para dar uma assistência individual através de atividades
separadas e, paralelamente, dar minha aula lá para os meus alunos. Note-se, aliás, que
a criança com deficiência, nesse contexto, era física e discursivamente segregada do
grupo dos meus alunos.
Grande parte dos entrevistados, no entanto, manifestou-se incomodado com
situações como essas, pois, além de aumentarem exaustivamente a carga de atribuições
do professor, pouco contribuíam para o desenvolvimento dos alunos. Em muitos casos,
tal incômodo era acompanhado da expectativa de que apoios externos pudessem
viabilizar uma melhor organização do trabalho.
Ela tá o tempo todo com a estagiária. Eu só passo a atividade. (E. M. Cecília Meireles) Desde o primeiro dia [a estagiária] sabe disso. Ela assumiu esses meninos, mesmo, sabe? (E. M. Maria Adelaide Amaral) Com a chegada do estagiário, eu achei que o melhor lugar prá [criança com deficiência] seria o fundo da sala, porque tem mais espaço. [...] Mas essa disposição não foi boa, porque eles acabaram ficando isolados lá atrás.
Em todos os contextos pesquisados, a presença do(a) estagiário(a) em sala de
aula era apontada enquanto requisito necessário ao trabalho em classes comuns onde
fossem inseridos alunos com deficiência, entretanto, existia uma grande indefinição
quanto ao papel desse(a) personagem no cenário educacional já que, em muitos casos,
ao invés de apoiar o professor em seu trabalho com toda a turma, ele(a) assumiu esses
meninos, mesmo, de tal modo que os alunos com deficiência – e, em alguns casos,
outros consideradas “lentos” – permaneciam o tempo todo com a estagiária, ocupando,
por vezes, o fundo da sala, onde acabaram ficando isolados do grupo.
Alguns recortes discursivos revelaram, por outro lado, que, à medida que as
discussões sobre os princípios da educação inclusiva alcançavam as escolas, seus
professores se viam compelidos a reavaliar suas ações – essa disposição não foi boa – e
a identificar as que eram incompatíveis com uma educação que atendesse a todos.
Essa professora que atende uma vez por semana, ela é psicopedagoga, trabalha em escola especial. Ela tem mais contato, né? Com esse tipo de criança. (E. M. Ana Maria Machado) A sala de recursos dá uma assistência muito boa, né? Tá sempre vindo aqui na escola, sempre tá olhando, sempre tá conversando. Mas eu, particularmente, ainda não tive nenhuma conversa com ela. Eu
tenho visto com a [outra professora] que faz um atendimento mais próximo. Nesse atendimento, apesar de eu ser a professora que está todo dia, mas a [outra professora] faz um atendimento mais específico nessa área, né? Com os meninos. Mas eu, particularmente, ainda não tive, ainda, essa conversa, esse acompanhamento não, tá? Eu ainda não tive, não. Prá mim, nada.Prá mim, não chegou nada, não. Eu ainda não recebi nada, não.
Também nos foi relatado o esforço de algumas escolas em designar um
professor para a realização de um atendimento mais específico com esse tipo de
criança, fora de sala, no horário das aulas. Assim como no caso do atendimento
realizado por estagiários(as), esse professor acabava se tornando a referência quando o
assunto era a criança com deficiência.
Assim sendo, apesar de haver uma professora que está todo dia trabalhando
junto à turma, era a outra que fazia um atendimento mais próximo, que tinha acesso a
essa conversa, esse acompanhamento oferecido às escolas por salas de recursos ou
instituições similares de apoio. Tais procedimentos, além de dificultarem ao professor
da turma comum o acesso às informações disponíveis – prá mim, não chegou nada,
não – fazia com que se perpetuasse, no interior de uma mesma escola, a divisão do
ensino em comum e especial. De acordo com Mantoan (2002b, n.p.),
a presença de professores especialmente destacados para acompanhar o aluno com deficiência nas atividades de sala de aula, servindo como apoio ou mesmo respondendo diretamente pela inserção desse aluno no meio escolar, [...] constitui mais uma barreira à inclusão, pois é uma solução que exclui, que segrega e desqualifica o professor responsável pela turma e que o acomoda, não provocando mudanças na sua maneira de atuar.
Em outros contextos, buscava-se garantir a aprendizagem dos alunos através da
adoção do que nomeamos por “estratégias homogeneizantes”, dentre as quais
destacamos novamente a organização das chamadas “turmas-projeto”.
Na escola tinha a turma-projeto, aquela turma com mais dificuldade prá fazer um trabalho especializado, voltado prá eles. A Prefeitura cortou isso esse ano. Não existe mais. (E.M. Zélia Gattai) Como nós estamos com um pedido na Prefeitura de uma sala projeto, eu senti uma certa pressão prá que essa sala seja aprovada e essa criança [com deficiência] seja inserida nela. (E. M. Maria Adelaide Amaral)
Eu já escutei essa fala aqui dentro da escola. Uma professora já falou que seria muito mais fácil se juntasse: “_Faz uma turma com dez, com oito, que a professora fica ali por conta". Eu até questionei isso mesmo: _Mas isso aí não é inclusão! Você tá juntando, você tá excluindo os alunos dentro da escola! Aí você tá fazendo uma sala especializada! (E. M. Bárbara Heliodora) A gente não quer ter sempre uma turma-projeto, ninguém quer assumir isso. (E. M. Bárbara Heliodora)
Baseada no princípio de que seria muito mais fácil se juntasse aquela turma
com mais dificuldade prá fazer um trabalho especializado, a adoção de “turmas-
projeto” – normalmente destinadas a um único professor que fica ali por conta – ainda
era planejada por algumas escolas que mantinham um pedido na Prefeitura, mesmo
depois que a Prefeitura cortou isso.
Ao mesmo tempo, tal prática vinha sendo questionada por professores que
pareciam compreender que isso aí não é inclusão uma vez que você tá juntando, você
tá excluindo os alunos dentro da escola! Aí você tá fazendo uma sala especializada!
Outra questão que parecia mobilizar o questionamento da adoção de “turmas-projeto”
era o fato de que ninguém quer assumir isso e, sozinho, responsabilizar-se pelo
atendimento às necessidades de todas as crianças que eram segregadas pelos demais
professores.
[Num determinado dia da semana, uma das professoras] vai ficar com um grupinho fraco, vamos chamar de fraco. Que são os alunos dela e de todas as outras salas do mesmo nível da dela. Menino pré-silábico tá lá. No segundo horário, ela volta prá sala dela e aí outra professora vem ficar com outro grupinho, entendeu? (E. M. Maria Adelaide Amaral) Na primeira hora do dia eles são enturmados. Aí, tanto o primeiro ciclo quanto o segundo, todo mundo da escola entra. Eles são enturmados por habilidade. [...] É a alfabetização e letramento que a gente trabalha nesse horário. Então, tá todo mundo envolvido. (E. M. Lygia Fagundes Telles) Nós temos um projeto de intervenção, que é voltado prá leitura e escrita. Então, duas vezes por semana, [...] os meninos são reorganizados. Então, eu pego, por exemplo, os que ainda nem conhecem letras, a outra coordenadora pega aqueles que já lêem, mas estão em sala de meninos que não são leitores [...] e as professoras de sala ficam com mais um tanto. (E. M. Ana Maria Machado) Esse atendimento a esses alunos, essas dificuldades, né? Específicas de cada aluno, a gente também já tá fazendo através de um projeto de
oficinas, né? Três vezes por semana, e envolve todos os alunos, todos os professores. Uma reenturmação, mesmo, né? Um reagrupamento de alunos [...] por habilidades. [...] porque a gente gostaria muito que os alunos encerrassem o primeiro ciclo todos alfabetizados. (E. M. Cecília Meireles)
Diante da dificuldade de lidar com a heterogeneidade nas/das turmas e
manifestando o desejo de que os alunos encerrassem o primeiro ciclo todos
alfabetizados, a maioria das escolas visitadas adotava como estratégia um
reagrupamento de alunos [...] por habilidades.
Reconhecemos, por um lado, que tais reagrupamentos, ao promoverem o
envolvimento de todos os alunos, todos os professores, num objetivo comum em que
todo mundo da escola entra, pareciam representar um avanço em direção à construção
de um trabalho de caráter mais coletivo, condição necessária tanto à superação do
exercício individualista e solitário da função docente, quanto à construção de uma
organização escolar mais participativa e democrática.
Todavia, acreditamos que a adoção da proximidade nos níveis de domínio das
habilidades de leitura e escrita como único critério de reagrupamento dos alunos
representava não apenas um retorno às bases seletivas do sistema escolar seriado como
também uma forma de perpetuá-las.
Isso porque tal procedimento parecia estar contribuindo para que os professores,
ao invés de buscarem a reflexão e a elaboração de estratégias para lidar com a
diversidade – em cujos parâmetros a diferença é atributo comum a todo e qualquer
aluno – permanecessem recorrendo à homogeneidade como forma mais adequada de
trabalho, na qual a diferença continuava sendo considerada como um distúrbio e
representava o desvio de um grupinho fraco, vamos chamar de fraco.
Ele chamou o menino de burro, sabe? Aí eu fui conversando com ele. [...] Aí ele soltou: “_A minha mãe me chama de burro”. E eu fui percebendo como é que é a história, ele é excluído lá [no grupo familiar] também, né? O emocional tá dançado, mesmo. E daí, tentando trabalhar esse lado de auto-estima deles e tal. Eu tento muito trabalhar, fazer o trabalho em grupo e levar prá sala de aula. Às vezes, eu trabalho uma determinada coisa neles, no atendimento. Pontuação, por exemplo, eu trabalhei antes com eles, né? Falei: “_Olha, na sala eu vou trabalhar com os meninos e vocês vão fazer o favor, porque eu vou perguntar é prá vocês! E aí, foi muito engraçado, porque um dia eu tava trabalhando pontuação, fiz uma parlenda com travessão e falei o nome com eles, e tal. E aí, um ficou,
assim, toda hora, ele passou o recreio me perguntando como é que chama o travessão! [Nos horários de reagrupamento e dos atendimentos em grupo] fica o tempo todo só eles, não tá entrando outros meninos do primeiro ciclo. São só eles, a semana toda. (E. M. Rachel de Queiroz)
Esse recorte discursivo que contém o relato sobre a freqüente separação de um
grupo de alunos dos demais colegas de sua turma – tanto nos horários de reagrupamento
que envolvem toda a escola, quanto em horários específicos de “reforço” destinados
somente a um determinado grupo, fora da sala, nos horários de aula – nos explicitou um
outro aspecto contraditório dessas “estratégias homogeneizantes”.
Apesar da intenção do professor em estar tentando trabalhar esse lado de auto-
estima deles, o fato de mantê-los isolados do grupo – fica o tempo todo só eles, não tá
entrando outros meninos do primeiro ciclo. São só eles, a semana toda –
indiretamente contribuía para que o estigma de burro se cristalizasse e o emocional
continuasse dançado mesmo. No entendimento de Sampaio (2001, p. 5, grifos da
autora), “ser retirado da turma para o grupo de apoio já significa “ser o diferente”, “o
que tem dificuldades” e que precisa voltar à “normalidade”. A estigmatização tem início
nessa indicação”.
Ao manifestar a compreensão de que ele é excluído lá [no grupo familiar]
também, o professor parecia demonstrar a percepção da estigmatização sofrida pelo
aluno na escola. O esforço do garoto que passou o recreio inteiro me perguntando
como é que chama o travessão apresentava-se, assim, como um indício de sua
necessidade em participar de outros agrupamentos, sem precisar ficar restrito a uma sala
onde os colegas seriam “burros” – Ele chamou o menino de burro.
Os dois últimos horários [uma vez por semana] são de oficinas. Eles passam por várias oficinas [...], tem oficina de xadrez, tem oficina de culinária, tem oficina de esportes, tem oficina de bijuterias e tem a oficina de Português e de Matemática. Então, os alunos mais fracos, eles são encaminhados prás oficinas de Português e de Matemática. Quando eles já são capazes de... já adquiriram aquele básico que a gente queria, aí eles vão prás outras oficinas. [...] Só no caso do Português e da Matemática que tem um critério diferente. O resto, não. O resto é mesmo prá socialização, entendeu? (E. M. Adélia Prado)
Em linhas gerais, acreditamos que esse recorte discursivo ainda manifestava um
caráter, predominantemente, regulatório do conhecimento, mantendo uma noção
homogeneizante que classifica alunos mais fracos, encaminhados prás oficinas de
Português e Matemática, para adquirir aquele básico que a gente queria.
Por outro lado, o fato de a escola também adotar oficinas de caráter mais lúdico
– tem oficina de xadrez, tem oficina de culinária, tem oficina de esportes, tem oficina
de bijuterias – poderia representar um possível deslocamento de sentidos, à medida que
se percebesse o valor das mesmas como espaços de interação, aprendizagem e formação
humanas.
Os alunos se inscrevem, são cinco alunos por sala. Então, dá um total de vinte alunos por oficina. [...] Às vezes, a gente faz mais lúdica e, às vezes, Matemática, mesmo. [...] Reciclagem de papel, fazem cartõezinhos com papel reciclado, [...] já tivemos oficinas bem variadas. E eu acho que os alunos participam, realmente. Eles gostam tanto que tem hora que eles não querem nem trocar mais de oficina, querem repetir, querem fazer mais, sabe? (E. M. Ruth Rocha)
Identificamos, no presente recorte, outro possível sentido numa direção
emancipatória. Note-se que, ao invés de serem encaminhados, nesse contexto os
alunos se inscrevem, os alunos participam, realmente. Além disso, disciplinas como
Português e Matemática que, em outros contextos, recebiam uma ênfase quase exclusiva
e pareciam incluídas no currículo sem a desvalorização ou exclusão de outras
possibilidades.
Segundo nosso entendimento, a valorização de algumas disciplinas até então
eliminadas dos currículos escolares pode representar um importante passo para que nos
habituemos a enxergar nos alunos uma série de habilidades que, apesar de fazerem parte
da constituição dos sujeitos, ainda não são consideradas como alternativas de construção
do conhecimento.
Eles ficam todos num canto, no grupo, por causa da intérprete. (E. M. Adélia Prado)
A presença de intérpretes de LIBRAS em salas de aulas comuns onde eram
inseridos alunos com deficiência auditiva foi outra estratégia de intervenção apontada
por algumas escolas. Conforme já comentamos no item 4.2 “A educação de pessoas
com deficiência na Escola Plural: sentidos em construção” do presente trabalho, esse
tipo de organização, ainda que mantivesse todos num canto, no grupo, por causa da
intérprete, nos parecia representar um certo avanço com relação às salas ou escolas
especiais, por proporcionar a todos os alunos e professores a oportunidade de
aprenderem a se comunicarem através da LIBRAS, o que, no futuro, poderia dispensar a
presença dos intérpretes.
Podemos considerar, finalmente, que grande parte das iniciativas de
reorganização dos tempos e espaços nas escolas visitadas ainda estava, de algum modo,
relacionada ao caráter regulatório do conhecimento representado, nestes casos, pelo
controle dos comportamentos e pelas tentativas de promover a padronização do domínio
de conteúdos curriculares restritos. Assim sendo, mesmo que manifestassem a intenção
de alcançar a emancipação dos educandos, tais iniciativas se pautavam,
predominantemente, nas bases do que Skliar (2002, p. 213, grifos do autor) chamaria de
pedagogia do outro como hóspede.
Uma pedagogia que tenta alcançar o outro, capturar o outro, domesticar o outro, dar-lhe voz para que diga sempre o mesmo, exigir-lhe sua inclusão, negar a própria produção de sua exclusão e de sua expulsão, nomeá-lo, confeccioná-lo, dar-lhe um currículo “colorido”, oferecer-lhe um lugar vago, escolarizá-lo cada vez mais para que cada vez mais, possa parecer-se com o mesmo, ser o mesmo.
A superação dessa pedagogia parece depender, pois, da nossa capacidade de
inventar alternativas emancipatórias que não se convertam gradual e insidiosamente em
mais mecanismos de regulação. Segundo Santos (2002, p. 331), o único caminho para
pensar essas alternativas parece ser a exploração, através da reflexão e da imaginação
utópica, “de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade e a oposição da
imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo
radicalmente melhor porque vale a pena lutar e a que a humanidade tem direito”.
No próximo item, nos dedicamos a analisar os espaços de formação que, na
ocasião das entrevistas, vinham sendo oferecidos aos professores para que, individual
ou coletivamente, promovessem a avaliação e aprimoramento de suas concepções e
prática pedagógica.
4.7 PROFESSORES: SEUS SABERES E SUA FORMAÇÃO
Cada diferente teoria da cognição, cada setor político ou econômico, cada
mudança na proposta que orienta os sistemas escolares carrega consigo uma concepção
variável de professor e de seu papel na formação dos educandos. O mesmo ocorre nas
discussões sobre educação inclusiva na medida em que, para que seus princípios se
efetivem, um novo perfil de professor – incompatível com os padrões tradicionais – é
requerido. Assim, as demandas apresentadas a nós, professores, são cada vez mais
amplas, variáveis e, muitas vezes, contraditórias.
Ao longo da presente pesquisa, os professores entrevistados expuseram uma
série de queixas, expectativas e táticas relativas aos processos de formação continuada
que serviam de subsídios para o enfrentamento dos desafios que o cotidiano de trabalho
apresentava, especialmente dos relativos à inserção de crianças com deficiência em
turmas comuns e à efetivação dos princípios da organização escolar em ciclos de
formação.
Valemo-nos, neste ponto, das contribuições de Certeau (2002) para diferenciar
as noções de tática e de estratégia. Segundo o autor, os procedimentos do tipo
estratégico – como os militares e científicos – são organizados pelo postulado de um
poder e permitem a gestão das relações e do tempo, possibilitando a chamada prática
panóptica “a partir de um lugar de onde a vista transforma as forças estranhas em
objetos que se podem observar e medir, controlar portanto e ‘incluir’ na sua visão. Ver
(longe) será igualmente prever, antecipar-se ao tempo pela leitura de um espaço”
(CERTEAU, 2002, p. 100, grifo do autor).
Os procedimentos do tipo tático, no entanto, jogam com o terreno que lhes é
imposto por uma força estranha. Assim, não possuem meios para se manter num lugar
circunscrito ou numa posição recuada que permita a previsão e o controle. Denominada
“a arte do fraco”, a tática é dócil aos azares do tempo, aproveitando e dependendo das
possibilidades oferecidas por um instante. Opera golpe por golpe, lance por lance, sem
base para estocar benefícios ou prever saídas. “Sem lugar próprio, sem visão
globalizante, cega e perspicaz como se fica no corpo a corpo sem distância, comandada
pelos acasos do tempo, a tática é determinada pela ausência de poder” (CERTEAU,
2002, p. 101, grifo do autor).
Com base em tais diferenciações, localizamos os procedimentos de formação
docente desenvolvidos no cotidiano das escolas como sendo do tipo tático, por não
contarem com muito planejamento e previsão, além de estarem sempre dependendo das
possibilidades oferecidas pelas circunstâncias.
Buscamos, a partir daí, a compreensão dos discursos e a análise de algumas
alternativas de formação continuada adotadas pelas escolas a partir das necessidades de
formação de seus professores. Para tal utilizamos, além das reflexões suscitadas por
Certeau (2002), das contribuições teóricas de Mazzeu (1998), Tardif (2000, 2002),
Arroyo (2002, 2004), entre outros autores que abordam a questão da construção do
saber docente e fornecem subsídios para refletir sobre os mecanismos de formação de
professores.
É um conflito muito grande. Não dá prá você falar assim "olha, o profissional tem que se adequar". Mas, se adequar como? Com que condições, com que preparo? (E. M. Zélia Gattai) A gente fica, mesmo, achando que você não usou todos os recursos que você poderia ter usado por falta de conhecimento, né? Então vai dando uma angústia, porque você gostaria de ter feito mais. [...] Então, pode dar certo e pode não dar! E, quando não dá vem a frustração, né? O que eu poderia ter feito? Onde foi que eu errei? (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Convidados a relatar que aspectos de sua prática pedagógica foram alterados a
partir da reorganização escolar em ciclos de formação e da inserção de crianças com
deficiência em suas salas comuns, os professores entrevistados eram unânimes em
manifestar um conflito muito grande gerado pela dificuldade em se adequar e em usar
todos os recursos que poderia ter usado. A falta de conhecimento, de condições, de
experiência e de preparo eram fatores citados como geradores de angústia e frustração
em quem gostaria de ter feito mais.
Aí fica a nossa angústia porque o trabalho da escola, que seria a formação acadêmica, a gente não faz com esses meninos. (E. M. Zélia Gattai) O que a gente não conseguiu ainda e que é o que adoece os professores, o que mata, é dar o conteúdo, entendeu? Ninguém ainda conseguiu estruturar nada que faça eles aprenderem esse conteúdo. (E. M. Adélia Prado)
Os recortes discursivos também revelavam que a principal fonte da nossa
angústia e daquilo que adoece os professores relacionava-se, possivelmente, à redução
do trabalho da escola à formação acadêmica e ao não reconhecimento de todos os
outros aspectos da formação humana que a complexidade da relação educativa abarca.
Assim, à medida que assumimos a postura de “professor explicador” (RANCIÈRE,
2004), reduzindo nossa função a dar o conteúdo e não conseguimos estruturar nada
que faça eles aprenderem esse conteúdo, frustramos as expectativas em nós
depositadas pelo imaginário social e nos sentimos questionados em nossa competência
profissional.
De acordo com Arroyo (2002, p. 161), um dos traços mais inovadores das
propostas educativas, como a da Escola Plural, que pretendeu desviar a ênfase dada ao
conteúdo para a formação humana é, justamente, o de provocar um clima coletivo de
dúvida, no qual nosso ofício é obrigado a transitar em coordenadas inseguras. Segundo
o autor,
São dúvidas sérias, que é bom que aflorem. O que demonstra que os profissionais estão se defrontando com os valores, as concepções que guiavam suas escolhas e decisões no sistema seriado e têm de repensá-las ou superá-las para serem capazes de fazer as novas escolhas postas pela organização escolar centrada nos educandos e seus tempos de desenvolvimento.
Essa falta de certezas sobre o que eu poderia ter feito ou sobre onde foi que eu
errei é, segundo Tardif (2000), comum às profissões que lidam com seres humanos e
que, portanto, não podem contar com tecnologias eficazes e operatórias de previsão e
controle de situações e de comportamentos. O mesmo autor também ressalta que, por
implicar em relações humanas, o trabalho docente suscita conflitos de valores e dilemas
éticos que residem no próprio cerne do discernimento profissional a ser exercido na
prática cotidiana e co-institui essa prática.
Mas o que angustia é, justamente, porque a gente vai muito pela intuição até maternal da gente e tal. A gente não vai por um embasamento científico, né? (E. M. Lygia Fagundes Telles) Eu estou fazendo o que Deus me ilumina, porque eu não sei! A gente vai tateando no escuro! (E.M. Bárbara Heliodora) Nós, professores, não temos esse preparo, até de faculdade, né? Então, a gente tá aprendendo aí é, realmente, tentativa e erro. (E.M. Ruth Rocha)
Tardif (2000, p. 14) afirma ainda que, nos primeiros anos de prática profissional,
e, segundo nosso entendimento, também nas primeiras experiências de trabalho em
situações inusitadas, como as geradas pela recente inserção de crianças com deficiência
em classes comuns, “a maioria dos professores aprende a trabalhar na prática, às
apalpadelas, por tentativa e erro. [...] Essa aprendizagem, freqüentemente difícil e ligada
àquilo que denominamos sobrevivência profissional, quando o professor deve dar
provas de sua capacidade ocasiona a chamada edificação de um saber experencial.”
Esse tipo de saber origina-se, pois, na nossa prática cotidiana, em confronto com as
condições de nossa profissão.
Como herdeiros da modernidade, costumamos acreditar que somente um
preparo, até de faculdade e um embasamento científico supostamente sólido, obtido
através de uma formação prévia, possa a tudo responder. Recentes pesquisas em torno
da questão da formação de professores tendem a afirmar, no entanto, que
os saberes dos professores não são oriundos sobretudo da pesquisa, nem de saberes codificados que poderiam fornecer soluções totalmente prontas para os problemas concretos da ação cotidiana, problemas esses que se apresentam, aliás, com freqüência, como casos únicos e instáveis, tornando assim impossível a aplicação de eventuais técnicas demasiadamente padronizadas (TARDIF, 2002, p. 65).
Ao contrário, a prática profissional exige sempre uma parcela de adaptação a
situações novas, o que impossibilita uma “resolução instrumental do problema”
(SCHÖN, 1983 apud TARDIF, 2000, p. 7), baseada na aplicação de teorias e técnicas
prévias. Assim sendo, por atuarem num processo de trabalho que apresenta um alto grau
de indeterminação, os profissionais da educação precisam contar com suas experiências
pessoais para coordenar seu ambiente de trabalho e construir julgamentos em situações
de ação variáveis e, muitas vezes, imprevisíveis.
Tais situações demandam, pois, a capacidade de reflexão e discernimento para a
“construção do problema” (SCHÖN, 1983 apud TARDIF, 2000, p. 7) a fim de que se
possa não apenas compreendê-lo, mas também organizar e esclarecer os objetivos que
se almejam e os meios adequados para atingi-los.
A partir dessas discussões, pudemos deduzir, enfim, que o saber docente “pode
ser racional sem ser um saber científico, pode ser um saber prático que está ligado à
ação que o professor produz, um saber que não é o da ciência, mas que não deixa de ser
legítimo” (GAUTHIER et al., 1998 apud NUNES, 2001, p. 34).
Eu não posso fazer nada por ela enquanto não tiver uma orientação! (E.M. Bárbara Heliodora)
Eu acho que eu tô muito, assim, muito aquém do que ele precisa, sabe? (E. M. Lygia Fagundes Telles) Agora, cadê o profissional que entende como lidar com esses alunos? (E. M. Zélia Gattai) Eles tinham que colocar profissionais prá estar vindo na escola, prá estar trabalhando com o aluno. (E. M. Cecília Meireles)
Ao legitimar as especializações e a compartimentação do conhecimento como
formas ideais de organização do saber científico, a modernidade também acabou
gerando em nós a noção de que somente especialistas são aptos a lidar com educandos
com deficiência e de que sua presença seria indispensável na escola, prá estar
trabalhando com o aluno.
Buscando melhor compreender os sentidos expressos pelos recortes discursivos
apresentados, recorremos novamente a Tardif (2000) e às suas críticas ao modelo
aplicacionista do conhecimento que, durante muito tempo, tem guiado as práticas de
formação docente. Segundo o autor, esse modelo habituou-nos a conceber a pesquisa, a
formação e a prática como pólos separados e a atribuir cada um deles a diferentes
grupos de agentes: os pesquisadores, os formadores e os professores.
Tal modelo gera uma série de problemas fundamentais, dentre eles a separação
entre os processos de conhecer e de fazer. Sob tal lógica é que concebemos, por
exemplo, que para atuar de forma adequada, devemos primeiro conhecer bem e, em
seguida, aplicar o conhecimento ao fazer. É, pois, a partir de premissas como essas que
acreditamos não ser possível fazer nada [...] enquanto não tiver uma orientação.
Assim sendo, nós, professores de classe comum, histórica e ideologicamente
formados para ensinar conteúdos preestabelecidos, aplicar teorias e métodos e
selecionar os que possuem ou não as características requeridas para serem aprovados,
não fomos habituados a valorizar os conhecimentos que produzimos em nossa prática
docente nem a utilizá-los para suprir às necessidades educacionais de todos os alunos.
Assim, permanecemos, julgando-nos muito aquém do que ele precisa e à espera do
profissional que entende como lidar com esses alunos.
O que você consegue com um você não consegue com outro. Cada caso é um caso. Então, você não pode falar: – “Ah, eu começaria assim”. (E. M. Zélia Gattai)
Eu queria que alguém viesse e falasse assim: – “Gente, é assim que a gente tem que lidar” [...] Não é passar receita, não! Mas é dar subsídios, uns toques prá poder lidar, entendeu? (E. M. Zélia Gattai) Mas, efetivamente, um trabalho, essas dicas que nós precisamos nós não temos não, sabe? (E. M. Maria Adelaide Amaral)
Com muita freqüência, os discursos expressavam noções e expectativas
contraditórias dos professores com relação ao seu trabalho. Se, por um lado, a
experiência profissional lhes revelava que cada caso é um caso – porque todos os seus
alunos e não apenas aqueles com deficiência, são diversos e suas necessidades variáveis
– e que, portanto, você não pode falar: – “Ah, eu começaria assim”; por outro lado,
esperavam que alguém viesse e falasse assim: – “Gente, é assim que a gente tem que
lidar.”
Na mesma direção que nos foi anteriormente apontada por Tardif (2000) em
seus estudos sobre o modelo aplicacionista do conhecimento, Mantoan (s.n.t.) afirma
que diversos professores
introjetaram o papel de praticantes e esperam que os formadores lhes ensinem o que é preciso fazer. [...] Acreditam que os conhecimentos que lhes faltam para ensinar as crianças com deficiência ou dificuldade de aprender por outras incontáveis causas referem-se primordialmente à conceituação, etiologia, prognósticos das deficiências e que precisam conhecer e saber aplicar métodos e técnicas específicas para a aprendizagem escolar desses alunos.
Outros sentidos envolvendo a relação entre inclusão e formação docente
pareciam ter emergido à medida que os professores reconheciam as possibilidades de
construção de conhecimento ao longo de sua atuação cotidiana junto aos educandos.
Eu acho que a gente fica cobrando muito da gente, porque a gente acha que a gente não sabe. Mas, eu acho que isso é novo é prá todo mundo, né? É uma experiência nova, mesmo. Eu acho que tá todo mundo é buscando caminhos. (E. M. Lygia Fagundes Telles) E só faz, fazendo, né? A gente tem que estar com eles aqui dentro prá gente ir procurando algumas formas, um meio. (E. M. Ana Maria Machado) Então, eu vejo a inclusão, também, como construção, sabe? A gente tá pegando aqui, ali. Vendo aqui, ali. Tá sendo mais aquela coisa, mesmo, da prática. E tentando buscar um pouco de teoria, né? Prá cada caso. (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Nos recortes discursivos em destaque, o fato de os professores atribuírem à
inclusão o sentido de construção para a qual tá todo mundo buscando caminhos,
parecia ter sido uma das maneiras encontradas para reduzir a ansiedade e evitar ficar
cobrando muito da gente, porque a gente acha que a gente não sabe.
Tal sentido poderia, por um lado, estar associado a uma compreensão
reducionista da inclusão, através da qual se adiaria o atendimento às necessidades
educacionais do aluno com deficiência pelo fato de a escola não estar preparada. Por
outro lado, o sentido de inclusão enquanto construção poderia também estar vinculado à
noção de que nenhum de nós está totalmente preparado para qualquer função, muito
menos a educacional, marcada pelo complexo relacionamento entre sujeitos
infinitamente diversos e entre esses e um contexto histórico-cultural em permanente
transformação.
Assim, “vai-se adquirindo a competência quando trabalha-se com o aluno e vai
buscando-se atender a necessidade dele. É preciso que o aluno esteja lá para que se
prepare” (MANTOAN, s.d., p. 1), ou seja, a gente tem que estar com eles aqui dentro
prá gente ir procurando algumas formas, num processo contínuo no qual, a cada dia,
surgem situações diferentes para desafiar nossa competência e nos provocar a
ultrapassar nossas limitações.
Esses saberes experenciais ou práticos adquiridos, mesmo, da prática têm sido
apontados por diversos pesquisadores envolvidos no estudo da questão da formação de
professores como o “núcleo vital do saber docente” (TARDIF, 2002, p. 54) e como
importantes indícios para a compreensão das competências, das habilidades e dos
conhecimentos mobilizados pelos docentes no exercício de sua profissão.
Em suas pesquisas sobre o saber docente, Tardif (2002) afirma que, além dos
saberes experenciais ou práticos – focalizados em nossas análises até o momento – nós,
professores, mobilizamos diversos outros tipos de saberes, heterogêneos e variados, que
provêm de inúmeras fontes e formam um amálgama mais ou menos coerente.
O autor se refere, primeiramente, aos saberes pré-profissionais que
compreendem nossas experiências familiares e escolares. Tais saberes não são inatos,
mas produzidos pela socialização, isto é, “através do processo de imersão dos
indivíduos nos diversos mundos socializados (famílias, grupos, amigos, escolas etc),
nos quais eles constroem, em interação com os outros, sua identidade pessoal e social”
(TARDIF, 2002, p. 71).
Ao longo de nossa carreira docente desenvolvem-se ainda os saberes de origem
profissional, quais sejam: os saberes pedagógicos, constituídos de doutrinas e teorias
pedagógicas produzidas pelas ciências da educação e incorporados, em geral, através da
formação inicial ou contínua; os saberes disciplinares, que envolvem saberes sociais
definidos e selecionados pelas instituições universitárias para compor os diversos
campos do conhecimento, sob a forma de disciplinas (por exemplo, matemática, história
etc), os saberes curriculares, que se apresentam sob a forma de programas escolares
(objetivos, conteúdos, métodos) que nós, professores, aprendemos a aplicar e os saberes
experenciais ou práticos, sobre os quais já comentamos em momentos anteriores.
Em geral nos relacionamos de forma diferente com esses diversos tipos de
saberes, ressignificando-os de acordo com as necessidades de nossa prática cotidiana. A
partir dessas considerações, Tardif (2000, 2002) e outros pesquisadores da mesma linha
fazem uma crítica veemente às concepções vigentes em relação à formação de
professores, geralmente guiadas por uma concepção aplicacionista do conhecimento que
concebem a prática profissional como simples campo de aplicação de teorias elaboradas
fora dela.
Suas pesquisas apontam, pois, os limites dos conhecimentos acadêmicos e da
formação prévia na constituição do saber docente e afirmam a centralidade da
instituição escolar enquanto locus de formação do magistério. Propõem, assim, que as
dimensões da formação, da ação e da pesquisa sejam interligadas e estejam presentes
em nosso contexto de trabalho, numa concepção similar à do “prático reflexivo”,
proposta por Schön apud Tardif (2002), em oposição à visão do professor,
simplesmente, como um prático.
Conceber a formação docente na perspectiva prático-reflexiva significa
transformar nossa prática profissional em um espaço original e, relativamente,
autônomo de aprendizagem e de formação, bem como um espaço de produção de ações
e de saberes inovadores. A formação de um professor “prático reflexivo” exige, pois,
um vaivém constante entre o exercício cotidiano da profissão e a formação teórica, entre
a experiência concreta nas salas de aula e a pesquisa a fim de se evitar a simples
reprodução das práticas existentes e a noção equivocada de que a atividade profissional
representaria uma fonte espontânea de aprendizagem e de conhecimento.
De acordo com Freire (2002, p. 51), nenhuma formação docente pode fazer-se
alheia, de um lado, ao reconhecimento do valor das emoções e da intuição e, por outro,
não resta dúvida de que o importante é não paramos satisfeitos em nível das intuições,
mas submetê-las ao “exercício da criticidade que implica a promoção da curiosidade
ingênua à curiosidade epistemológica.”
Neste ponto, trilhando o caminho das reflexões suscitadas pelos recortes
discursivos e pelo referencial teórico utilizado até o momento, alcançamos uma questão
delicada, proposta por Arroyo (2002, p. 42), que nos serve como introdução de um outro
aspecto relativo à formação dos professores:
Que possibilidades reais têm os mestres de Escola Básica de se desenvolverem, como seres humanos? [...] Que condições lhes são oferecidas para participar, dialogar, estudar, reunir-se, qualificar-se? Para ser pedagogos de seu próprio percurso humano e poder acompanhar o percurso cultural, social, cognitivo da infância e da adolescência?
Tendo essa questão em mente, buscamos refletir sobre as táticas de formação
continuada adotadas pelas escolas a partir das condições de trabalho disponibilizadas
aos professores – pela legislação municipal, pela Escola Plural e pelos gestores
responsáveis pelo apoio às escolas – para que tal formação se efetivasse.
Primeiramente, acreditamos que a dinâmica de organização dos tempos na
escola seja fator determinante para que se possam articular atividades de formação
continuada. A princípio, ao implementar a proporção de 1,5 professores por turma
enquanto critério para definir a quantidade de professores em cada escola, o Programa
Escola Plural possibilitou a ampliação do quadro docente e, conseqüentemente, da carga
horária disponível para estudo e planejamento individuais e coletivos.
De forma variável, a complexa distribuição dessas horas de trabalho e a
demarcação de tempos para a formação continuada eram definidas em cada escola,
através de acordos internos entre os profissionais. De acordo com Soares (2002, p. 141),
“é possível afirmar que a forma de organizar esse tempo, o uso que se faz dele e a
natureza do trabalho que ali se desenvolve expressam, em grande medida, o
entendimento que os professores estão construindo deste aspecto na Escola Plural.”
Vejamos, pois, algumas das principais experiências que nos foram relatadas ao longo
das entrevistas.
Informalmente, a gente troca muita experiência e, assim, eu acho que é uma fonte de conhecimento, sim. Do jeito que nós estamos, minha filha, tudo o que a gente sabe, é lucro. (E. M. Maria Adelaide Amaral) É você sentar, bater um papo, com quem foi professor, passar essas informações. Mas, é uma coisa mais informal. (E. M. Lygia Fagundes Telles)
Alguns entrevistados apontavam o bater um papo e a troca informal de
experiências para passar essas informações como uma fonte de conhecimento e como
a principal e, em certos casos, única tática utilizada no cotidiano da escola. Com base
nas formulações de Vygotsky sobre a questão da zona de desenvolvimento proximal,
Mazzeu (1998, n.p.) considera que o debate entre professores é de vital importância,
uma vez que esses interlocutores podem atuar como mediadores da elaboração do
conhecimento e na consolidação de novos patamares de desenvolvimento intelectual uns
dos outros. O mesmo autor afirma, no entanto, que
Esse resultado não decorre, de modo natural, da interação e do diálogo entre os professores, mas depende do objeto e da forma dessa reflexão e desse diálogo. Se não se toma como ponto de partida da reflexão os problemas essenciais da prática pedagógica, a interação entre professores pode se deteriorar em bate-papo, sem maiores conseqüências para um avanço do trabalho docente.
Segundo Mazzeu (1998), não basta que os professores permaneçam trocando
entre si os chamados conceitos espontâneos, advindos de sua prática cotidiana. Faz-se
necessário que ocorra uma ruptura com tais formas de pensamento e ação através de sua
transformação em conceitos científicos que estariam num nível mais elevado de
pensamento. Sobre essa questão, Vygotsky (2001, p. 539) também afirma que “o
surgimento dos conceitos científicos não se torna possível senão em certo nível de
desenvolvimento dos conceitos espontâneos”.
Compreendemos, pois, que os conceitos científicos devam ser introduzidos nos
momentos em que se pretendem o debate e a problematização sobre e a partir de nossa
prática pedagógica. Assim, podem exercer uma função mediadora, acionando nosso
desenvolvimento mental na superação do nível dos conceitos espontâneos, permitindo a
conscientização sobre os mesmos e a modificação de sua estrutura, ao passo que o
estudo de conceitos científicos, realizado de modo verbal e esquemático como, muitas
vezes, ocorre em palestras e cursos de formação docente, é improdutivo e não gera
rupturas.
Eu tenho três [horários de] projetos que eu fico sozinha, comigo, só. (E. M. Rachel de Queiroz) São quatro [horários de projeto] ao longo da semana. Então, um é grupo de estudos [para a elaboração de projetos e do currículo das disciplinas] e os outros três, é livre. (E. M. Ana Maria Machado) Os outros três horários [de projeto] são divididos entre planejamento, discussão com pequenos grupos, com a coordenação, né? E a gente vai adaptando isso aí. (E. M. Cecília Meireles)
Os “horários de projeto”40 figuram entre os tempos disponíveis aos professores
para a realização de diversas atividades no interior da escola. Na concepção da Escola
Plural, tais tempos deveriam ser especialmente destinados à consolidação do trabalho
coletivo e à formação docente.
Desta forma, incluem-se no tempo remunerado do profissional, as atividades coletivas de formação e aperfeiçoamento – expresso no tempo de projeto que consta da sua jornada de trabalho – bem como na definição do quantitativo de professores por turma que leve em consideração as necessidades de capacitação, seja no plano individual, seja no plano do coletivo da escola (BAPTISTA, 1998).
Os recortes discursivos revelavam que, mesmo os horários de projeto sendo
divididos entre momentos em que eu fico sozinha, comigo, só e momentos de discussão
em pequenos grupos, a descrição das atividades realizadas nas duas situações
evidenciava uma dimensão essencialmente pragmática, marcada pelo atendimento a
demandas operatórias – como elaboração de currículos, confecção de materiais
didáticos ou correção de atividades – e pela resolução de uma infinidade de imprevistos
que surgiam, incessantemente, no cotidiano do trabalho escolar.
40 Em termos legais, a jornada individual de trabalho dos servidores da educação foi definida pela Lei Municipal n. 7.577 de 21 de setembro de 1998 (BELO HORIZONTE, 1998) que, em seu artigo 4º estabelece, para o cargo de professor municipal, 22:30 (vinte e duas e meia) horas semanais de efetivo trabalho escolar. Desse montante, a mesma lei determina que o equivalente a 20% (vinte por cento) – excluído o tempo diário reservado para recreio na escola – seja destinado à realização de atividades coletivas de planejamento e avaliação escolar, que compreendem as tarefas definidas pelo projeto pedagógico da escola e administradas por seu Colegiado, a serem desempenhadas pelo servidor na unidade escolar a que se vincular, salvo se exigida a sua prestação em outro local.
Tal instabilidade – também apontada por Soares (2002) em seu estudo sobre a
organização do tempo docente – exigia, dia após dia, que, se fosse adaptando isso aí, de
acordo com as possibilidades e necessidades mais urgentes, geralmente não associadas à
questão da reflexão e formação continuada.
Tem a biblioteca do professor que já foi feita, também, na sala de professores, com obras teóricas diversas. Você vê gente lendo na escola. (E.M. Bárbara Heliodora)
A exposição de obras teóricas diversas numa biblioteca [...] na sala de
professores era outra alternativa apresentada por uma das escolas, tendo em vista a
formação continuada. Sobre a iniciativa, em si, pouco foi dito ao longo das entrevistas,
o que dificulta compreender os sentidos que os professores vinham atribuindo à mesma.
Por um lado, a consulta e utilização de tal acervo poderiam estar vinculadas,
unicamente, ao esforço e interesse particular de cada professor – você vê gente lendo na
escola – sem constituir-se em atividade de formação para o coletivo. Por outro tal
investimento, se atrelado à concomitante criação de tempos e espaços conjuntos de
leitura e discussão, poderia estar contribuindo para a reflexão e aprimoramento da
prática pedagógica do grupo como um todo.
Nos temos, anualmente [...] uma semana de formação dos professores. E aí, envolve todo mundo outra vez. Então, assim, tem muita coisa legal. O ano passado a gente fez voltado prá dentro da escola. No ano anterior [...] foi ao nível de Regional, sabe? (E. M. Rachel de Queiroz)
Uma outra iniciativa relatada dizia respeito à organização anual de uma semana
de formação dos professores, que envolve todo mundo – inclusive os pais ou
responsáveis pelos alunos – na preparação e participação em palestras, discussões,
grupos de estudos, entre outras atividades, realizadas nas dependências da escola.
Prevista no projeto político-pedagógico, essa estratégia parecia possibilitar a reunião de
dois aspectos importantes para o aprimoramento da prática pedagógica: trabalho
coletivo e formação docente.
A gente procura privilegiar o pedagógico, mesmo. Então, muitas reuniões de estudo, de planejamento, de troca de experiência, né? Avaliação, tomada de decisões. (E. M. Ana Maria Machado)
Vai ter dia que [as professoras, em quartetos] vão sentar juntas prá organizar uma avaliação, Páscoa, essas coisas. E, na sexta, é geral. De quinze em quinze dias, a gente tem um trabalho [com uma consultora] em cima de leitura, escrita, capacitação. E, geralmente, essa reunião é o dia que dá prá direção encontrar com o turno todo. (E. M. Maria Adelaide Amaral) A gente tem um cronograma, né? Uma é encontro de trio. Então, onde as professoras se encontram, prá estar planejando, né? Projetos, atividades, coisas a trabalhar. Outra é formação, que aí é todo mundo. Geralmente, a gente chama alguém prá vir fazer alguma palestra, alguma coisa, assim. Outras vezes, a gente mesmo elabora, né? Recolhe textos, assim, prá gente estar lendo, discutindo, refletindo, né? A outra é reunião pedagógica, mesmo. No caso, administrativa e pedagógica. Têm assuntos que a gente tem que estar discutindo, mesmo, no coletivo, né? Que se refere à escola toda, de modo geral. E o outro, planejamento de oficinas. (E. M. Cecília Meireles)
Na ocasião das entrevistas, cada uma das nove escolas visitadas apresentava
diferentes formas de organização das atividades desenvolvidas nos horários de reunião
pedagógica, mas eram unânimes em apresentá-la como o principal espaço destinado à
organização do trabalho coletivo e à formação de professores.
Em geral, essas reuniões ocupavam as duas últimas horas/aula, às sextas-feiras.
Somente uma das escolas optava por dividi-las em dois dias, sendo um período de uma
hora, às sextas-feiras, para o encontro de todo o grupo com a direção e coordenação
pedagógica e outro período, de uma hora – chamado reunião escalonada ou por
quartetos – para encontros de professores, alternadamente agrupados por ciclos, em dias
variados.
Os recortes discursivos apontavam para o fato de que grande parte das atividades
desenvolvidas nesses horários coletivos – tomada de decisões, planejamento em
grupos, reunião administrativa, organizar uma avaliação, Páscoa, essas coisas –
relaciona-se, novamente, à resolução de questões objetivas, de caráter instrumental ou
burocrático, referentes à organização e ao andamento do trabalho na escola.
Percebemos, no entanto, o esforço empreendido por parte de algumas escolas na
consolidação do horário da reunião pedagógica enquanto espaço de formação
continuada do professor. Uma das alternativas apresentadas neste sentido era a
sistematização de um cronograma mensal, estipulando os assuntos a serem abordados
em cada semana. Para as reuniões destinadas à formação, uma das escolas chama
alguém prá vir fazer alguma palestra, alguma coisa, assim ou, alternadamente, a
própria coordenação pedagógica elabora, né? Recolhe textos, assim, prá gente estar
lendo, discutindo, refletindo.
Uma alternativa diferente, também relacionada à formação docente realizada
durante os horários destinados à reunião pedagógica, era a contratação41 de consultores
para, de quinze em quinze dias, coordenar o estudo de temas escolhidos pelos
professores – como, por exemplo, um trabalho em cima de leitura, escrita – em uma
outra escola.
Neste ponto parece-nos interessante mencionar um fato recente, caracterizado
pela supressão, a partir do ano de 2005, da possibilidade de dispensa de alunos para a
realização de reuniões pedagógicas semanais. Tal procedimento visa ao cumprimento da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394/96 que, em seu artigo 34,
determina: “A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas
de trabalho efetivo em sala de aula” (BRASIL, 1996), entretanto, a supressão de tal
horário pode representar, ao menos em curto prazo, a descontinuidade e, até mesmo, a
extinção de uma série de estratégias de organização do trabalho e de formação dos
professores, em andamento até então. Recorremos, a partir daí, a uma questão proposta
por Arroyo (2004, n.p.) em uma de suas reflexões sobre a questão da formação docente.
Quem deforma o profissional da educação? Falamos muito em quem forma, [...] mas é bom falar de quem deforma. [...] Por que tanta teoria sobre a formação do trabalhador não colocou no devido destaque os processos deformadores que acompanham as formas concretas de trabalho?
Diante de todas as dificuldades enfrentadas e de outras tantas estratégias criadas
e recriadas pelas escolas para o atendimento às demandas que lhes são apresentadas, a
questão proposta por Arroyo nos suscita novas interrogações, com as quais encerramos
o presente capítulo: Que outros fatores deformadores estão presentes no cotidiano de
trabalho do professor? Que táticas têm sido elaboradas pelos professores a partir das
recentes modificações efetuadas na organização desse seu trabalho? Que rupturas ou
reinvenções essas modificações estão produzindo? Que possibilidades de atendimento à
diversidade humana vêm sendo gestadas no cotidiano escolar?
41 Algumas consultorias pedagógicas foram contratadas com a utilização da verba de intervenção pedagógica destinada às escolas em 2003.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da complexidade dos temas abordados ao longo da presente pesquisa e
cientes de que há diversos tópicos que merecem ser ainda aprofundados, estruturamos
algumas considerações finais com o intuito de retomar questões que se destacaram e de
manter aberto o espaço para o debate em torno das mesmas.
Inicialmente, seguindo as orientações metodológicas fornecidas pela Análise de
Discurso francesa, através das quais buscamos alcançar uma melhor compreensão dos
sentidos que os professores entrevistados vinham construindo a respeito do Programa
Escola Plural, dos princípios da educação inclusiva e da relação de ambos com a
inserção de crianças com deficiência nas classes comuns, procuramos contextualizar seu
discurso, remetendo-o a diversas formações discursivas e ideológicas que, ao longo dos
séculos, vêm sofrendo modificações e orientando os posicionamentos sociais em torno
da questão da pessoa com deficiência.
A fim de compreender tais discursos recorremos ainda a um breve histórico
sobre a origem de diversos mecanismos de seletividade e segregação escolar,
profundamente arraigados no imaginário social e educacional. Pudemos, assim,
vislumbrar que tais mecanismos possuem uma origem histórica e vêm servindo a uma
sofisticada rede de controle e ordenação social, embora, muitas vezes, sejam vistos
como naturais e necessários ao desenvolvimento e à manutenção da ordem nas
sociedades modernas.
Por meio desse tal histórico, também tivemos acesso às discussões sobre
alternativas de reorganização escolar que, partindo do princípio de que certas estruturas
escolares são inadequadas ao atendimento às necessidades educacionais de todos os
alunos, evidenciam a não existência de justificativas sólidas para a segregação de tantos
indivíduos que vêm sendo privados de um convívio social e escolar mais amplo.
A partir daí, voltamos nossa atenção para a proposta de reestruturação do ensino
em ciclos de formação humana, implantada no sistema de educação do Município de
Belo Horizonte/MG, por meio do Programa Escola Plural. Compreendemos que esse
tipo de organização deve estar muito mais relacionado a um processo de resistência à
lógica excludente e seletiva da escola do que a uma solução pedagógica ou econômica
para o problema do fluxo escolar.
Constatamos que, embora as modificações promovidas pela implantação do
Programa Escola Plural tenham gerado perplexidade e muita resistência, também
mobilizaram os profissionais de algumas escolas em direção à construção de novas
alternativas. Assim sendo, mesmo que manifestando ressalvas com relação a alguns
aspectos do Programa – como falhas em seu processo de implantação e implementação,
por exemplo – grande parte dos professores reconhecia avanços com relação aos
mecanismos de avaliação, à organização dos tempos, à flexibilização dos currículos etc.
Apesar disso, através de observações e da análise das entrevistas identificamos
que ainda não havia, por parte dos professores, uma ampla percepção de que a escola
continua estruturalmente excludente e, por isso, precisa ser revista para se tornar
inclusiva e capaz de atender tanto os estudantes que, tradicionalmente, fazem parte de
sua clientela, quanto as demais crianças que, recentemente, vêm sendo nela inseridas.
Vimos, por exemplo que, em muitas ocasiões, mesmo atribuindo à organização
proposta pela Escola Plural o mérito de favorecer a inserção de crianças antes
segregadas, diversos professores tendiam a recorrer novamente à retenção – ou, até
mesmo, à segregação em instituições especiais – quando os patamares esperados de
comportamento e de domínio dos conteúdos curriculares não eram alcançados.
Por outro lado, à medida que passavam a ser desafiados a atender a crianças com
deficiência, condutas típicas e/ou dificuldades de aprendizagem, até então
encaminhadas para atendimento exclusivamente nas escolas especiais, alguns
professores mostravam-se empenhados na revisão de suas práticas, na criação de novas
competências e na construção de estratégias educacionais mais condizentes com as
necessidades do alunado em geral.
A fim de alcançar a compreensão dos possíveis sentidos associados a essas
estratégias perpassamos diversas temáticas ao longo do texto, recorrendo a um vasto
referencial teórico. Ao discutir, por exemplo, a questão da construção, execução e
avaliação do projeto político-pedagógico das escolas nos deparamos, em alguns
contextos pesquisados, com a noção de manter o esquema que já tem associada à não
ruptura com o instituído.
Com relação à mesma temática pudemos identificar também um sentido,
predominantemente, regulatório ou técnico em discursos que manifestavam a
compreensão de projeto político-pedagógico enquanto um documento de caráter
burocrático que pouco contribuía para o movimento de repensar a escola.
Por outro lado, deslocando-se dessa formação discursiva regulatória ou técnica,
outras escolas propunham um projeto político-pedagógico capaz de mexer com todo
mundo e pareciam buscar uma articulação em torno de inovações de caráter
emancipatório ou edificante, capazes de romper com o isolamento dos diferentes
segmentos da instituição educativa, exercitando-lhes a capacidade de problematizar e
enfrentar as questões educacionais enquanto competência de todo mundo.
À medida que nos voltamos para as análises, envolvendo a articulação entre a
escola e a comunidade, um primeiro sentido, presente no discurso de diversos
professores entrevistados, reduzia tal relação ao cumprimento de exigências legais e
burocráticas. Nos contextos em que o projeto político-pedagógico vinha sendo
construído nesta perspectiva, era comum estarem associadas críticas e queixas com
relação ao pouco envolvimento dos pais no que se refere à educação de seus filhos.
Ao contrário, nas instituições em que os educadores se mostravam dispostos a
articular diferentes vozes na elaboração de alternativas partilhadas, novos sentidos
emergiam em seus discursos e a interação com a comunidade parecia assumir um
significado mais amplo, de efetiva participação e parceria. Em contextos como esses,
diversas estratégias de aproximação foram apresentadas e não localizamos
manifestações de queixa com relação aos pais.
Uma outra temática que emergiu da análise das entrevistas relacionava-se às
concepções que os professores manifestavam a respeito dos processos de aprendizagem
e desenvolvimento de seus alunos e que serviam de base para a enturmação dos
mesmos. No discurso de grande parte dos professores identificamos a expectativa de
que todas as crianças fossem capazes de acompanhar a turma, sendo que a não
aprendizagem de algumas era, muitas vezes, justificada com base em argumentos
predeterministas, como a imaturidade de funções psicológicas.
Percebemos, além disso, que a ampliação da heterogeneidade nas salas de aula,
provocada pela adoção da enturmação por idade e pela inserção de crianças com
deficiência, vinha possibilitando um repensar das práticas pedagógicas e fazendo com
que alguns professores questionassem a intenção de provocar uma suposta
homogeneização das turmas, abrindo possibilidades para o deslocamento de sentidos e
para a criatividade.
Apesar disso, tais reflexões pareciam ainda não ter sido acompanhadas de uma
compreensão ampliada sobre a diversidade humana e um dos principais desafios
enfrentados pelos professores diante da heterogeneidade nas/das turmas ainda era a
elaboração de atividades que propiciassem a participação e o aproveitamento por parte
de todos os alunos, de acordo com suas possibilidades individuais.
Buscando a superação de tal dificuldade, recorriam permanentemente à
classificação das aprendizagens em níveis, através da comparação das crianças com um
padrão de desenvolvimento. Associada a tal classificação, estava a noção de que admitir
diferenças em torno das possibilidades de construção de conhecimentos, em parte
manifestas nas variações de rendimento escolar dos alunos, configuraria uma perda na
qualidade da formação e uma violação de direitos que poderiam influir decisivamente
no futuro dos educandos, entretanto, ainda que justa, tal preocupação pouco se traduzia
em efetivas melhorias nos processos de ensino visando ao atendimento à diversidade.
Manifestando incômodo com relação a não aprendizagem de alguns alunos, a
maioria das escolas adotava o que chamamos de “estratégias homogeneizantes”, como a
organização de “turmas-projeto” e/ou a reenturmação de alunos com base no critério da
proximidade nos níveis de domínio das habilidades de leitura e escrita.
Em alguns contextos, essas “turmas-projeto” vinham sendo questionadas por
professores que pareciam ter compreendido que as mesmas são incompatíveis com os
princípios da inclusão. As práticas de reagrupamento, por sua vez, apesar de
promoverem o envolvimento em direção à construção de um trabalho de caráter mais
coletivo, representavam, segundo nossa compreensão, não apenas um retorno às bases
seletivas do sistema escolar seriado, como também uma forma de perpetuá-las; isso
porque tais procedimentos pareciam estar contribuindo para que, ao invés de buscarem a
reflexão e a elaboração de estratégias para lidar com a diversidade, os professores
permanecessem recorrendo a mecanismos segregacionistas e à homogeneidade como
forma mais adequada de trabalho. Assim sendo, grande parte dessas iniciativas de
reorganização dos tempos e espaços nas escolas ainda estava, de algum modo, atrelada
ao caráter regulatório do conhecimento representado, nestes casos, pelas tentativas de
controle dos comportamentos e de padronização do domínio de conteúdos curriculares
predeterminados.
Pelo que pudemos apreender quanto à questão da avaliação no ambiente escolar,
os professores que receberam em suas turmas alunos com deficiência reconheciam seu
desenvolvimento com relação ao que chamavam socialização, todavia, diante do peso
dado ao domínio dos conteúdos, grande parte deles entendia que esses alunos haviam
alcançado pouquíssima aprendizagem. Desconsiderando as questões relativas ao
desenvolvimento potencial, admitiam como autêntico somente o desenvolvimento que
podia ser registrado por meio de instrumentos de avaliação supostamente objetivos e
padronizados, envolvendo conteúdos específicos e relegavam a segundo plano as
potencialidades e os conhecimentos relativos, manifestos pelos alunos em atividades
realizadas sob orientação, com ajuda, por indicação e em colaboração.
Na temática relacionada à formação dos professores, a troca informal de
experiências era apontada como a principal e, em certos casos, única tática utilizada no
cotidiano das escolas para o aprimoramento da prática pedagógica. Os horários de
reunião pedagógica, por sua vez, eram, unanimemente, apresentados como o principal
espaço destinado à organização do trabalho coletivo e à formação de professores.
A descrição das atividades realizadas tanto nessas reuniões pedagógicas, quanto
nos “horários de projeto” evidenciavam, no entanto, uma dimensão,
predominantemente, pragmática, marcada pelo atendimento a demandas operatórias e
pela resolução de uma infinidade de imprevistos que surgiam, incessantemente, no
cotidiano escolar.
Diante de tal fato, apresentamos a necessidade de transformação da prática
profissional em um espaço de formação constante, a fim de evitar a simples reprodução
das práticas existentes e a noção equivocada de que a atividade profissional
representaria uma fonte espontânea de aprendizagem e de conhecimento.
Nas entrevistas realizadas com os professores de escolas comuns da Rede
Municipal de Educação de Belo Horizonte/MG identificamos ainda uma série de
concepções e estratégias que remetiam o conceito de inclusão a variados sentidos,
filiando-o a diferentes formações discursivas.
Assim como outros pesquisadores, percebemos que grande parte das discussões
sobre a inclusão ficavam restritas à inserção de crianças com deficiência que não tinham
acesso às escolas comuns e, em alguns casos, às questões relativas às crianças de
periferia que, submetidas à vivência na chamada situação de risco social, possuíam
hábitos e valores não condizentes com as expectativas da escola.
Acreditamos que o fato, aparentemente simples, do uso corrente do termo
inclusão estar associado às noções de “colocar dentro, inserir”, poderia estar
contribuindo para o aparecimento de interpretações simplistas, que mantinham o mundo
dicotomizado e focado na “hospedagem” dos chamados excluídos, esvaziando o
conceito de inclusão de seu conteúdo ético e político de reestruturação social e
educacional para o atendimento a todos, em sua diversidade.
Talvez por isso, fosse tão comum ocorrer, por exemplo, a adjetivação dos
sujeitos. A aluna de inclusão e os demais alunos incluídos eram destacados do grupo
como um todo e, algumas vezes, agrupados na chamada turma de inclusão. Através
desse mecanismo de adjetivação, o olhar homogeneizante da modernidade manifestava-
se, produzindo a impressão de que a diferença que nitidamente você vê era atributo
exclusivo da aluna de inclusão e não de todas as crianças atendidas pela escola.
Utilizado como sinônimo de inserção, o conceito de inclusão permanecia, pois,
filiado à formação discursiva da integração, contribuindo para que se mantivessem em
destaque atributos utilizados como referência para agrupar os indivíduos em categorias
“desviantes”, o que dificultava a reflexão em torno dos mecanismos excludentes
próprios das estruturas sociais e escolares.
Um outro sentido encontrado foi o de inclusão enquanto processo em
construção. Por um lado, tal sentido aparecia associado a uma compreensão reducionista
do conceito sempre que utilizado para adiar o atendimento às necessidades educacionais
do aluno com deficiência pelo fato de ainda não haver pré-condições disponíveis.
Esse sentido de construção manifestava-se, por exemplo, quando os professores
reconheciam que a inclusão não se dá simplesmente de ele ter o direito de estar dentro
de uma escola comum e, ao invés de investirem num possível aprimoramento do
sistema escolar para atender a todos, mostravam-se desacreditados e deduziam que, se
as atuais condições de inserção na escola comum não eram adequadas, a solução seria o
retorno à escola especial até que a escola comum estivesse devidamente preparada.
Enfim, a impressão que tivemos, a partir das análises do discurso dos
professores e das iniciativas oficiais foi a de que ainda predomina na Rede Municipal de
Educação de Belo Horizonte/MG o chamado “Sistema de Cascata” (PEREIRA, 1980),
um processo de integração gradual e progressivo, que pressupõe a preparação do aluno
para que, lentamente, alcance níveis mais avançados de convivência em ambientes cada
vez menos segregados.
Acreditamos que, enquanto as discussões na área educacional mantêm suas
reivindicações ainda ancoradas na reafirmação de um mundo dicotomizado em
incluídos e excluídos não favorecem a compreensão da diversidade humana em toda a
sua plenitude o que, no nosso entendimento, vem permitindo que o princípio da inclusão
venha sendo constantemente cooptado por práticas e discursos regulatórios e associado
à formação discursiva integracionista.
Pessoalmente, situamos a inclusão como uma alternativa de caráter
emancipatório, que visa romper com as estruturas excludentes próprias dos paradigmas
anteriores e promover uma ampla reorganização dos sistemas sociais e educacionais, a
fim de que estes se tornem aptos a atender à diversidade de todos os indivíduos.como
enquanto parte de uma transição paradigmática impulsionada por uma série de lutas
subparadigmáticas, cujo principal papel seria o de questionar o que está estabelecido e
é, convencionalmente, aceito como normal, inevitável ou necessário, apontando-lhe as
inconsistências, acumulando frustrações e fazendo com que os estereótipos vigentes
sejam rejeitados e completamente substituídos, possibilitando o advento de novo(s)
paradigma(s).
Assistindo aos inúmeros debates, aos conflitos, às possíveis inovações e aos
deslocamentos de sentido gerados não só pela inserção de crianças com deficiência nos
sistemas escolares comuns, como pelos demais embates sociais que, simultaneamente,
denunciam o não atendimento às necessidades de todos, podemos inferir que o
paradigma da modernidade está sendo desmontado e que os princípios da inclusão nos
permitem vislumbrar os primeiros traços de um novo paradigma.
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______. Projeto Político-Pedagógico da escola: uma construção coletiva. In: ____ (org.). Projeto Político-Pedagógico da escola: uma construção possível. Campinas, SP: Papirus, 1995. p. 11-35. VYGOTSKY, Lev Semenovich. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleção Psicologia e Pedagogia). WERNECK. Cláudia. Sociedade inclusiva: quem cabe no seu todos. Editora WVA, Rio de Janeiro, 1999. ZAIDAN, Samira. Ciclos no Ensino Fundamental: um projeto de inclusão? Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 5, n. 30, p. 50-59, nov./dez. 1999.
ANEXO A
___________________________________________
FACULDADE DE EDUCAÇÃO TEL. (032)229-3665 FAX( 032) 229-3665
EMAIL: ppge@ faced.ufjf.br
FORMULÁRIO DE PESQUISA – I
Escola Municipal ___________________________________________________________
Localização: ______________________________________________________________
Telefones: ________________________________________________________________
Diretora: _________________________________________________________________
Vice-Diretora: _____________________________________________________________
Acesso: __________________________________________________________________
Regional: _________________________________________________________________
DADOS GERAIS DA ESCOLA
Turno Número de turmas
Faixa etária dos alunos
Número de professores
Número de alunos com deficiência
DADOS SOBRE O ATUAL PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO (P.P.P.) DA ESCOLA:
Em que ano foi elaborado o atual Projeto Político Pedagógico da Escola? Quem coordenou os processos de elaboração do P.P.P? Quem participou da elaboração do P.P.P.? Exemplifique algumas metas, previstas no P.P.P., que já foram alcançadas. ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Exemplifique metas futuras, previstas no P.P.P., que o coletivo da escola busca alcançar. ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
DADOS SOBRE A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ESCOLAR:
Como são, atualmente, distribuídos os professores entre as turmas? Trios? Professores-referência e professores-itinerantes? Cada professor com sua respectiva turma e aulas especializadas como artes, educação física? Salas-ambiente com um professor para cada área do conhecimento? Oficinas temáticas? Outras formas de organização?
__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Atualmente, quais são as atribuições da coordenação pedagógica no turno pesquisado?
______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
Outros dados sobre a organização do trabalho escolar que julgar interessantes:
__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
DADOS SOBRE O ESPAÇO FÍSICO DA ESCOLA (ASSINALAR): Biblioteca Sala de audiovisual Sala com espelhos Quadra (des) coberta Sala dos professores Playground (parquinho) Banheiro feminino Diretoria Brinquedoteca Banheiro masculino Secretaria Anfiteatro Vestiários Laboratório Sala de Coord. Pedag. Banheiro de professores Sala de computação Sala atendim. Pedag. Oficina de... Pátio Sala de recursos - PBH Horta Depósito de alimentos Almoxarifado Jardim/área gramada Copa Número de salas de aula Estacionamento Cantina Observações:
________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
ANEXO B
___________________________________________
FACULDADE DE EDUCAÇÃO TEL. (032)229-3665 FAX( 032) 229-3665
EMAIL: ppge@ faced.ufjf.br
FORMULÁRIO DE PESQUISA – II
Escola Municipal ___________________________________________________________
Localização: ______________________________________________________________
Telefones: ________________________________________________________________
Diretora: _________________________________________________________________
Vice-Diretora: _____________________________________________________________
Acesso: __________________________________________________________________
Regional: _________________________________________________________________
DADOS GERAIS SOBRE OS PROFISSIONAIS ENTREVISTADOS:
Função: ____________________________________ Pseudônimo: ____________
Tempo de experiência no cargo: anos Tempo de experiência no trabalho com crianças com deficiência: anos Graduação acadêmica máxima: Em sua formação inicial ou continuada buscou acesso a informações sobre o atendimento educacional à crianças com deficiência:
Congressos ou Seminários Palestras Cursos de Especialização Vídeos Cursos no CAPE Grupo de estudos Experiência em Escolas
Especiais Pesquisas via internet
Matérias/disciplinas Não buscou acesso a informações
Livros sobre o tema Outros: Ações e/ou mudanças implementadas em sua prática pedagógica visando ao atendimento das necessidades dos alunos: ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ Relações que se estabelecem entre a organização escolar em ciclos e a inserção de crianças com deficiência nas escolas comuns (avanços, entraves, possibilidades, dificuldades). ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
ANEXO C
___________________________________________
FACULDADE DE EDUCAÇÃO TEL. (032)229-3665 FAX( 032) 229-3665
EMAIL: ppge@ faced.ufjf.br
FORMULÁRIO DE PESQUISA – III
Escola Municipal ___________________________________________________________
Localização: ______________________________________________________________
Telefones: ________________________________________________________________
Diretora: _________________________________________________________________
Vice-Diretora: _____________________________________________________________
Acesso: __________________________________________________________________
Regional: _________________________________________________________________
DADOS GERAIS SOBRE A RELAÇÃO ESCOLA/COMUNIDADE
Situações/eventos promovidos pela Escola relacionados à interação com a comunidade local. ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________
DADOS GERAIS SOBRE O BAIRRO/COMUNIDADE LOCAL
Número de habitantes: Nível sócio-econômico familiar predominante: Principais ocupações dos pais/responsáveis: Atividade econômica predominante no bairro: Estabelecimentos comerciais (quantidade e tipo): Estabelecimentos de educação (quantidade e tipo): Espaços de lazer/recreação (quantidade e tipo): Linhas de ônibus que servem o bairro: Bairro atendido por serviços de: Água e esgoto Posto de Saúde Ruas asfaltadas Eletricidade Posto Policial Ruas calçadas Telefone particular Agência dos Correios Salão de beleza Telefones públicos Igreja/templo/centro Outros:
ANEXO D
REGIONAIS DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE E ESCOLAS VISITADAS
E. M. ANA
E. M. RACHEL DE QUEIROZ
ANEXO E
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FACULDADE DE EDUCAÇÃO TEL. (032)229-3665 FAX( 032) 229-3665
EMAIL: ppge@ faced.ufjf.br
CONSENTIMENTO INFORMADO
Eu, _____________________________________________________________, diretor(a) da Escola Municipal _____________________________________________, após consulta e aprovação dos professores e professoras, autorizo a mestranda Jerusa de Pinho Tavares Silva a realizar entrevistas e observações durante duas ou três reuniões pedagógicas, realizando anotações e gravações em áudio e/ou vídeo das mesmas.
Estou ciente de que os dados coletados em tais observações serão usados como elementos de análise para a dissertação de mestrado da referida mestranda, assim como poderão vir a ser utilizados em futuros trabalhos acadêmicos.
Será resguardado o anonimato dos sujeitos da pesquisa através do uso de pseudônimos para referir-se a eles na redação do relatório final da pesquisa.
Juiz de Fora, ______ de ________________ de 2004.
____________________________________________
- Diretora -
ANEXO F
___________________________________________
FACULDADE DE EDUCAÇÃO TEL. (032)229-3665 FAX( 032) 229-3665
EMAIL: ppge@ faced.ufjf.br
TERMO DE COMPROMISSO
Eu, Jerusa de Pinho Tavares Silva, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, realizarei entrevistas e observações de reuniões pedagógicas da Escola Municipal _____________________________________ durante o ano letivo de 2004, realizando anotações e gravações em áudio e/ou vídeo das referidas reuniões.
Estou ciente de que os dados coletados nessas observações deverão ser utilizados exclusivamente para fins acadêmicos.
Comprometo-me a resguardar o anonimato dos sujeitos da pesquisa através do uso de pseudônimos para referir-me a eles na redação do relatório final da pesquisa.
Juiz de Fora, ______ de ________________ de 2004.
__________________________________________
Jerusa de Pinho Tavares Silva
Mestranda
__________________________________________
Profa. Dra. Luciana Pacheco Marques
Professora Orientadora
ANEXO G
___________________________________________
FACULDADE DE EDUCAÇÃO TEL. (032)229-3665 FAX( 032) 229-3665
EMAIL: ppge@ faced.ufjf.br
QUESTÕES NORTEADORAS DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA
O PROGRAMA ESCOLA PLURAL INSERÇÃO DE CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA NA ESCOLA PLURAL
O que pôde ser modificado na
organização do trabalho escolar a
partir do Programa Escola Plural no
que se refere aos seguintes aspectos:
� Projeto político-pedagógico
� Trabalho coletivo
� Enturmação de alunos
� Objetivos educacionais
� Organização dos espaços
� Organização dos tempos
� Conteúdos
� Avaliação
� Formação de professores
� Relação escola/comunidade
� Escola Plural e inserção de crianças com
deficiência nas salas de aula comuns:
limites e possibilidades.
� Organização do trabalho escolar,
considerando a inserção de crianças com
deficiência no cotidiano das escolas.
� Posicionamento dos profissionais da
escola diante da inserção de crianças com
deficiência em escolas comuns.
� Táticas e/ou estratégias voltadas para o
atendimento à diversidade.
� Reflexos das discussões sobre inclusão
no P.P.P. da escola.
� Critérios para enturmação.
� Experiências que gostariam de ver
divulgadas.
ANEXO H
Resolução 0443 de 25 de Abril de 1980 APROVA CONVÊNIO QUE ENTRE SI CELEBRAM A PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE E A APAE COM O OBJETIVO DE ATENDER ALUNOS DE 1.º GRAU DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO. A Câmara Municipal de Belo Horizonte decreta e promulga a seguinte Resolução: Art. 1º - Fica aprovado convênio que entre si celebram a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte e a APAE com o objetivo de atender alunos de 1 grau da Rede Municipal de Ensino, nos seguintes termos: A Prefeitura Municipal de Belo Horizonte ora designada apenas Prefeitura, neste ato representada pelo Prefeito Municipal, lr. Maurício de Freitas Teixeira Campos, "ad referendum" da Câmara Municipal, de conformidade com o artigo 77 (XIII) da lei complementar n4 03, de 28 de dezembro de 1972, presentes, também, os Srs. Secretário Municipal de Educação, Professor Guilherme Azevedo Lage, Secretário Municipal de Administração, Professor José Antônio Torres, e o Procurador Geral do Município, Dr. Nelly de Morais Silva, e a Associação de Pais e Amigos de Excepcionais, doravante denominada simplesmente APAE de Belo Horizonte, registrada no Conselho Nacional de Serviço Social sob o n 268.532, C.G.C. 18.21 6.336/ 0001-68, estabelecida na Rua Cristal, 78 - Santa Tereza, representada por sua Presidente, Lucy Spindola Garrido, de acordo com as cláusulas e condições seguintes: CLÁUSULA PRIMEIRA - Do objeto - Será objeto deste Convênio o atendimento de alunos excepcionais do 1º grau da Rede Municipal de Ensino, integrados na sociedade através de assistência médico-psico-pedagógica especializada e preparando-os para o trabalho em oficinas protegidas. CLÁUSULA SEGUNDA - Compete à Prefeitura a) Colocar à disposição da APAE 4 (quatro) Professores Municipais I, com ônus para a Municipalidade para exercerem a atividade de regência de classe. b) Encaminhar à APAE até 40 (quarenta) alunos que apresentarem deficiências físicas ou mentais para tratamento especial, sem ônus para os alunos e Prefeitura. c) Exercer supervisão direta através de visitas, entrevistas e acompanhamento dos trabalhos, bem como a supervisão indireta, mediante análise de relatórios e registros preparados pela APAE. CLÁUSULA TERCEIRA - Compete à APAE a) Receber, nos termos da letra "b" da Cláusula segunda, os alunos indicados. b) Fazer triagem dos alunos indicados através de uma equipe médica psicopedagógica social, se for o caso. c) Apresentar relatório anual contendo quadro de pessoal: plano geral das atividades executadas, registro dos alunos e balanço geral. d) Exercer a direção, a administração e a orientação pedagógica da Escola. CLÁUSULA QUARTA - Da Vigência - O presente Convênio terá duração de 03 (três) anos, a partir da data de sua assinatura, podendo ser renovado se não houver denúncia de nenhuma das partes. CLÁUSULA QUINTA - Do Foro - Fica eleito o foro de Belo Horizonte para dirimir quaisquer questões que se originarem da execução deste Convênio.
Por estarem de pleno acordo com as clausulas e condições acima especificadas, firmam o presente convênio, para um só efeito na presença de testemunhas, para os fins de direito. Belo Horizonte, 07 de dezembro de 1979. O Prefeito de Belo Horizonte (a.) MAURÍCIO DE FREITAS TEIXEIRA CAMPOS. Presidente da APAE (a.) LUCY SPINDOLA GARRIDO. Secretário Municipal de Educação (a.) GUILHERME AZEVEDO LAGE. Secretário Municipal de Administração (a.) JOSÉ ANTÔNIO TORRES. Procurador Geral do Município (a.) - NELLY DE MORAIS SILVA. Art. 2º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando as disposições em contrário. Mandamos portanto, a quem o conhecimento e a execução desta pertencer, que a cumpra e a faça cumprir, tão Inteiramente como nela se contém. Belo Horizonte, 25 de abril de 1980. Presidente (a.) TOMAZ EDSON. Secretário (a.) IVONE BORGES BOTELHO. Publicada no "Minas Gerais" de 07 de maio de 1980.