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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO Fabiana Bigaton Tonin LEITURA FRUIÇÃO NA ESCOLA: O QUE ALUNOS E PROFESSORES TÊM A DIZER? CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

Fabiana Bigaton Tonin

LEITURA FRUIÇÃO NA ESCOLA:O QUE ALUNOS E PROFESSORES TÊM A DIZER?

CAMPINAS2016

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FABIANA BIGATON TONIN

LEITURA FRUIÇÃO NA ESCOLA: O QUE ALUNOS E PROFESSORES TÊM A DIZER?

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Educação, na área de concentração de Ensino e Práticas Culturais

Orientadora: Ana Lúcia Guedes Pinto

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA FABIANA BIGATON TONIN, E ORIENTADA PELO(A) PROF. (A) DR.(A) ANA LÚCIA GUEDES-PINTO

CAMPINAS2016

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Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica.

Ficha catalográficaUniversidade Estadual de Campinas

Biblioteca da Faculdade de EducaçãoRosemary Passos - CRB 8/5751

Tonin, Fabiana Bigaton, 1979- T614L TonLeitura fruição na escola : o que alunos e professores têm a dizer? /

Fabiana Bigaton Tonin. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

TonOrientador: Ana Lúcia Guedes-Pinto. TonTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de

Educação.

Ton1. Leitura. 2. História oral. 3. Prática cultural. I. Guedes-Pinto, Ana

Lúcia,1969-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação.III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Reading by pleasure : what do students and teachers say about it?Palavras-chave em inglês:ReadingOral historyCultural practicesÁrea de concentração: Ensino e Práticas CulturaisTitulação: Doutora em EducaçãoBanca examinadora:Ana Lúcia Guedes-Pinto [Orientador]Caroline PacievitchMaria Aparecida Lapa de AguiarDirce Djanira Pacheco e ZanMárcia Rodrigues de Souza MendonçaData de defesa: 14-06-2016Programa de Pós-Graduação: Educação

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINASFACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

LEITURA FRUIÇÃO NA ESCOLA: O QUE ALUNOS E PROFESSORES TÊM A DIZER?

Autora : Fabiana Bigaton Tonin

COMISSÃO JULGADORA:

Orientadora Profa. Dra. Ana Lúcia Guedes Pinto

Profa. Dra. Caroline Pacievitch

Profa. Dra. Maria Aparecida Lapa de Aguiar

Profa. Dra. Dirce Djanira Pacheco e Zan

Profa. Dra. Márcia Rodrigues de Souza Mendonça

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2016

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Aos meus pais, primeiras histórias,

À Mônica (in memoriam), ledora inesquecível,

Ao Alexandre, história sem fim.

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Agradecimentos

À professora Ana Lúcia Guedes-Pinto, que teve paciência e foi leitora atenta, respeitosa e generosa. Aos diálogos sempre precisos e preciosos, às contribuições mais que necessárias, enriquecedoras do texto e da experiência acadêmica. Agradeço-lhe não só a orientação, mas, sobretudo, o contato acolhedor, as lições de respeito e atenção que extravasam os corredores acadêmicos e o cuidado paciente comigo e com meu trabalho.

Ao IFSP, sobretudo aos colegas do câmpus Capivari, especialmente ao diretor, professor Waldo de Lucca, pela generosidade e pelo incentivo para que este trabalho fosse concluído.

Aos meus alunos – os que já foram e os que são parceiros em sala de aula - , jovens com quem sempre aprendo, que me incentivam e me fazem querer ir além.

Aos colegas professores, companheiros de jornadas, agruras e descobertas, a quem muito devo pelas experiências e pelas conversas de apoio, respeito e partilha.

Aos professores Lilian Silva e Roberto Goto, pelo prazer e pelo privilégio de contar com suas aulas e com seus exemplos – mestres que me receberam e ajudaram este trabalho a caminhar.

À professora Norma de Almeida, pela oportunidade não só de ser aluna, mas de partilhar as preciosas lições no exercício do diálogo docente. Pelo abraço e pela acolhida, pelo incentivo, obrigada.

Às professoras Dirce Zan e Márcia Mendonça, pela interlocução preciosa que muito contribuiu para que esse trabalho crescesse e se consolidasse – e também para a vontade de seguir nesses caminhos do ensino e da pesquisa.

Às professoras Caroline Pacievitch e Maria Aparecida Aguiar, pela generosidade e pelo diálogo atento que permitiram ajustes e aberturas para outras caminhadas.

Aos meus professores de outros tempos – de colégio e de faculdade, mestres de outras épocas, minha gratidão por terem contribuído, cada um a seu modo, para meu percurso.

Aos colegas da Faculdade de Educação, em especial, ao Nilton e ao Oton, meus companheiros de disciplinas e boas conversas.

Aos amigos de jornada outras: Cidinha, Chico, Mayra, Ronaldo, Ricardo Márcio, Bete, Liliana, Heitor, Ricardo Nunes, Lilian, Lena e Eugênia, minha gratidão pela doação e pelo exemplo.

Aos amigos de caminhos em curso: Maria Amélia, Irlla, Tiago Pellim, Tiago Berg, André Valente, Carol, Cleidson, Adelino, Éverton, Ana Karina, Flávio, Luciana, Elisa, meu muito obrigada por me ensinarem que é sempre possível ir além e ser melhor.

Aos amigos que acompanham esse percurso acadêmico e pessoal: Fá, Estela, Hugo, Fernando Adorno, Carol Marmo, Fernando Morato, Ju de Oliveira e Carol Martins: obrigada por provarem que distância, falta de tempo não são nada perto do carinho e da presença de sua amizade sempre atenta.

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À Cris, exemplo de educadora e de pessoa; agradeço pela confiança e apoio, pelo abraço sempre acalentador, pelo colo disponível e por acreditar em mim e nesse trabalho – e por incentivá-lo e a mim, mesmo quando tudo parecia tão difícil.

Ao Ricardo, amigo querido, exemplo acadêmico, abraço sempre pronto. À Flávia, minha irmã de alma, incentivadora, pesquisadora ímpar, querida sempre pronta para cuidar e receber.

Ao meu querido Dexter, colega de sala, companheiro de empreitada, amigo que me acolhe e cuida de mim, minha gratidão pelo sorriso e pelo cuidado sempre atento.

À Patrícia, amiga-irmã preciosa, sempre atenta e carinhosa, por cuidar de mim há tanto tempo e por me afagar e dialogar, em especial, em tempos tão turbulentos.

À Ana Cláudia, irmã de alma e de leituras, madrinha desta tese, coração e abraço abertos para me acolher; diálogo atento para orientar, colo generoso para escutar e afagar.

À Mônica Gentil (in memoriam), responsável pelas primeiras leituras fruição, pelo exemplo e pela vontade de fazer dessa aprendizagem algo maior e compartilhar essa alegria. Gratidão pelo exemplo inesquecível e pela semente que culminou neste trabalho.

À minha família de Goiânia, dr. Antônio, d. Sueli, Aline, Marcelo, Janete e Filipe, d. Ana. seu Latim (in memoriam), d. Leonora e seu Oswaldo (in memoriam), queridos que acreditaram, me acolheram e ajudaram para que essa jornada se cumprisse.

Às minhas tias Elza (in memoriam), Lourdes, Antonieta, pelo abraço sempre carinhoso.

À minha tia Nenê, mulher forte e sempre disposta a me abraçar e incentivar; aos meus tios Edenir, Augusto, tia Ivete e tio Aristides pelo carinho.

Aos meus padrinhos Maria Valentina e Rui (in memoriam), pelo exemplo e pelo sorriso e orgulho de contar com vocês.

À minha tia Mara, exemplo de força, que sempre teve a acolhida pronta para cuidar de mim. A meus primos Flávia, Marcos, Ramira, Xis, Enzo, Patrícia, Manu, Maria Augusta, meu muito obrigada por estarem sempre a postos para me receber e cuidarem de mim - especialmente em tempos tão atribulados.

À minha querida Rapha, interlocutora preciosa, amiga querida de leituras e abraços sempre disponíveis e preciosos.

À minha tia Cecília, referência e força, sempre. Obrigada pela acolhida sempre pronta e pelo cuidado encorajador.

Aos meus pais, Durval e Cida, pelo apoio irrestrito, pelo cuidado, pelo afago, pelo colo, pelo amor desmedido que me acalma e me coloca no rumo. Esse trabalho só foi possível pelo apoio que deram, pela fé que sempre demonstraram por mim.

Ao meu irmão Eduardo e à minha cunhada Patrícia, pela acolhida, pela amizade e cumplicidade (e pelos jantares e boas conversas).

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Ao Joaquim, meu filho de bigodes, pelo ronrom restaurador, pelo olhar que diz tudo que eu preciso ouvir quando se aninha no meu colo.

Ao Alexandre, minha paz, meu companheiro de vida, meu ledor particular, que me incentivou com força, leituras, livros e palavras tantas – pequenos grandes signos que me faltam para dizer tudo que você se tornou em minha vida. Esse trabalho deve muito a seu exemplo de pesquisador e de leitor, mas deve mais ainda à sua presença indelével na minha vida.

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Resumo

Este trabalho se propõe a analisar os depoimentos de alunos e professores sobre as práticas de leitura fruição – a leitura que não é obrigatória, feita por escolhas dos professores, em momento e espaço privilegiados. Trata-se de uma forma de leitura partilhada entre professores e alunos, sem que haja avaliações ou quaisquer outras cobranças. O objetivo desta pesquisa é entender um pouco mais da leitura fruição e seus desdobramentos, a partir da análise dos relatos sobre como se realizaram tais práticas, como se concretizaram no ambiente escolar, bem como seus impactos, e como poderiam influenciar a formação de leitores, em especial, dos alunos.

Embora a leitura fruição seja, por vezes, pouco valorizada e legitimada (programas de formação de professores como o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC – têm buscado fortalecê-la), ficando, por vezes, restrita aos anos iniciais do Ensino Fundamental, procuro refletir sobre sua realização sistemática – incluindo nesta análise os anos finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Proponho reflexões sobre como tal contato com os mais diversos textos, com mediação ativa dos professores (PETIT, 2008 e 2009), influencia alunos e também docentes e constitui-se diálogo efetivo e afetivo entre eles (BAHKTIN, 2003 e 2009). Inicialmente, procuro consolidar algumas definições de leitura fruição, concebendo-a a partir das definições de prática (CHARTIER, 1991, 1994,1999a e 1999b, 2002), e como jogo entre táticas e estratégias (CERTEAU, 2012). Busco ainda configurá-la como possibilidade de humanização, segundo PETIT (2008, 2009 e 2013) e Candido (2004) e também caracterizá-la como experiência (BONDÍA, 2002) e performance (ZUMTHOR, 2014). Procuro, ainda, conceber que essa leitura gratuita pode incentivar à “alegria cultural” (SNYDERS, 1993) e à fruição essencial para a constituição subjetiva (PETIT, 2008, 2009; ORDINE, 2016).

Para realizar tais objetivos, realizei entrevistas com ex-alunos e professores de um tradicional colégio privado em Campinas/SP, no qual trabalhei e onde vivenciei a prática de leitura fruição. Para analisar tais depoimentos, recorri aos referenciais teórico-metodológicos da História Oral, que possibilitam a análise dos discursos construídos por ex-alunos e professores numa perspectiva crítica e dialógica.

Palavras-chave: leitura fruição; leitura; história oral; práticas culturais.

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Abstract

This work proposes to analyse testimonials of students and teachers towards reading by pleasure in the classroom, i.e. reading which is not mandatory, carried out through teachers’choices in a privileged moment and space. It is a way of Reading which is shared between teachers and students without any type of evaluation or demands. The aim of this research is to listen to reports about how such practices are conducted, about how they happened in the school environment as well as about their impact and how they could influence reader education, especially, students.

Reading for pleasure is at times undervalued and not fully legitimised (programs for teacher education, such as the Deal for Literacy at an Appropriate Age - Pacto pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC are trying to strengthen it), remaining sometimes restricted to early elementary education. Nevertheless, this work tries to reflect upon its systematic practice – including late elementary school years and secondary education on data analysis. It proposes reflections on how such contact with a great variety of texts, through active teacher’s mediation (PETIT, 2008, 2009), influences both students and teachers. Furthermore, it constitutes effective and affective dialogue between them (BAKHTIN, 2003, 2009). At first, some reading for pleasure definitions are consolidated with conceptions from a perspective of the practice (CHARTIER, 1991, 1994, 1999a, 1999b, 2002) and as some type of game between tactics and strategies (CERTEAU, 2012). It is also featured as a possibility of humanization, according to PETIT (2008, 2009, 2013) and Candido (2004). Besides this, it is characterized as experience (BONDÍA, 2002) and performance (ZUMTHOR, 2014). Finally, this free reading experience is conceived as a way to encourage “cultural joy” (SNYDERS, 1993) and essential reading pleasure for the constitution done by the subject (PETIT, 2008, 2009; ORDINE, 2016).

In order to reach those objectives, interviews with teachers and former students of a traditional private school in Campinas/SP were conducted. The researcher of this study worked as a teacher at the mentioned school where she could experience reading for pleasure in the classroom. To analyse those testimonials, Oral History theory and methodology were used so that analysis of discourses built by teachers and former students in a critical and dialogical perspective was possible.

Keywords: reading for pleasure; reading; oral history; cultural practices. �

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Sumário

Introdução: a história de uma tese ........................................................................................ 16

Memorial ................................................................................................................................. 20 I. Dos primeiros caminhos da formação pessoal e escolar .................................................. 20

II. Da academia e dos primeiros desafios da docência ........................................................ 24

III. Do amadurecimento, das frustrações e novos encantamentos ....................................... 27

IV. Do doutorado – ou “das epifanias” ................................................................................ 31

V. Da tese e do andamento dos trabalhos ............................................................................. 37

1. A escola e a(s) leitura(s) ...................................................................................................... 39 1.1. Pressupostos teóricos: passeios pelos bosques da teoria .............................................. 39

1.2. Ler na escola: motivações e interlocutores ................................................................... 60

1.2.1. Leitura como “obrigação”: uma breve história ..................................................... 60

1.2.2. Os leitores, esses ilustres (des)conhecidos ............................................................ 77

1.2.3. Um leitor para e com outros leitores: o professor ................................................. 83

1.3. Cânone, escolhas e “crise” ............................................................................................ 86

2. Uma proposta: a leitura fruição ........................................................................................ 96 2.1. Uma breve história da leitura fruição. .......................................................................... 96

2.2. Leitura fruição: o direito ao prazer ............................................................................. 107

2.3. Leitura fruição como experiência ............................................................................... 115

2.4. Leitura fruição: a importância da voz e da performance ............................................ 120

2.5. O professor como ledor: sujeito e mediador ............................................................... 126

2.6. Leitura fruição: o paradoxo entre prazer e dever ........................................................ 132

2.7. Afinal, para que serve a leitura fruição? ..................................................................... 136

3. Preparando a tecedura: pressupostos metodológicos .................................................... 141 3.1. Primeiros fios e urdiduras ........................................................................................... 141

3.2. Preparando as teias: as entrevistas .............................................................................. 154

3.3. Conhecendo o cenário: breve caracterização da escola .............................................. 163

3.4. Buscando os tecelões: caracterização dos entrevistados ............................................. 169

4. Teias de histórias de leitura fruição ................................................................................ 174 4.1. Contando histórias: hora de entretecer entrevistas ..................................................... 174

4.2. Leitura fruição: espaço e opiniões .............................................................................. 176

4.3. Escolhas para fruição: a supremacia da literatura ....................................................... 197

4.4. A presença da literatura infantil na leitura fruição ...................................................... 217

4.5. Performances e modos de fazer na leitura fruição ...................................................... 231

4.6. Leitura fruição e (a)feições – vínculos que se estreitam ............................................. 240

Considerações Finais ............................................................................................................ 252

Referências bibliográficas .................................................................................................... 256

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Anexos .................................................................................................................................... 268 Anexo I – Roteiro base para entrevistas ............................................................................ 268

Anexo II – Termo de consentimento da entrevista ............................................................ 269

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Introdução: a história de uma tese

das coisas que eu fiz a metro todos saberão quantos quilômetros são

aquelas em centímetros sentimentos mínimos ímpetos infinitos não?(LEMINSKI, 1997, p. 31)

Quando começa uma tese? Com certeza, bem antes das mãos no teclado, dos

olhos no livro, da cadeira em frente ao computador e da primeira linha (muitas vezes

reescrita) do texto. Deve começar, ao que tudo indica, antes mesmo das escolhas teóricas e

das concepções a serem tecidas e esgarçadas. Para mim, essa tese começou há muito, muito

tempo – numa distância quase rarefeita de história de outras eras, em tempos longínquos da

graduação em Letras (2000-2005), no Instituto de Estudos da Linguagem, da UNICAMP.

Essa tese – pelo menos, o gérmen dela – começou numa noite de segunda ou quarta-feira (ah,

a musa Memória que nem sempre nos socorre...), numa sala comprida, no prédio de salas de

aula da Faculdade de Educação. Éramos muitos, eu e meus colegas azedos do último ano da

graduação. E éramos cansados, desanimados, quase deixando de existir como os professores

que nem tínhamos sido plenamente. Daí, nessa atmosfera de tédio e descrença, ela, a

professora, entrou. Pequena, frágil (o ledo engano dos olhos do senso comum), abriu um livro

e leu. Simples, repentina, sem pedir licença e sem explicar. A professora Mônica Salles Gentil

leu e nos encantou e nos ganhou e nos acarinhou. Para mim, começava ali um novo caminho a

trilhar. Já que eu gostava tanto de ler e de literatura, nada melhor para fazer do que: ler.

Nunca, em minha história, alguém tinha lido para mim. Não tive a experiência (um hábito,

para alguns ou para vários) de meus pais lerem para mim. O incentivo que me deram foi

outro, com outros gestos, válidos e fundamentais certamente. Mas eu nunca tinha

testemunhado essa simples prática, desse jeito: alguém que tinha escolhido um livro, uma

história, e leria para mim – ou melhor, para nós, minha turma e eu, sem cobrança, sem

perguntas, sem controle (no sentido da mensuração, da “amarra” que indica o como e por que

se fazer isso). No começo, estranhei (e muitos estranhamos), mas houve algo maior: o

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encantamento. E, assim, de modo descompromissado, gentil (como já anunciava o seu

sobrenome, literal, para ela), Mônica nos seduziu. Ficamos apaixonados por ela, pelas aulas, e

pela possibilidade de partilharmos leituras naquele momento inicial dos nossos encontros.

Naqueles idos de 2003, eu jamais imaginara que aquele gesto – tão simples em essência, mas

extremamente forte e marcante - me daria o embrião do que se tornou este meu trabalho de

pesquisa.

Ao longo dos anos, como professora, fui me (re) descobrindo no exercício da

prática da leitura fruição – então parte do projeto pedagógico do colégio onde trabalhei

durante quase oito anos, em Campinas, e pude não só exercitar essa prática, como também,

em diálogo constante com colegas professores, tecer considerações e ter boas conversas sobre

isso. Começar a aula compartilhando com meus alunos textos que me eram caros, ou de que

eu simplesmente gostara, ou ainda, que me incomodavam ou me tocavam de algum modo, se

tornou parte extremamente prazerosa e essencial de meu trabalho – a ponto de hoje, como

professora do IFSP/câmpus Capivari, eu ter instituído essa prática como minha “marca

registrada” e considerá-la parte integrante do que sou, de minhas crenças e de minha

percepção sobre o mundo, sobre a educação e do meu relacionamento com o outro –

principalmente, com meus alunos.

Em tempos de tecnologia e complexidades mil – disfarçadas de simplicidades de

redes sociais e gadgets vários, falar sobre leitura pode parecer algo menor ou já tão

desgastado (já se disse tanto, será que já se disse tudo?) – ainda mais em se tratando de algo, à

primeira vista, aparentemente singelo – ainda mais quando a proposta é falar da leitura que

pretende tão somente o prazer, a fruição. Porém, das coisas menores também (ou

principalmente) se fazem algumas observações interessantes. Talvez pensar a leitura, simples

e quase despida de rótulos e legitimações, em tempos tão complexos, “tempos de homens

partidos”, como nos diz Drummond, seja redescobrir um pouco de traços humanos, mínimos,

que nos unem e se mostram repletos da matéria que nos compõem, a nós e nossas relações;

talvez sejam (in)finitudes que mereçam alguma análise mais detalhada. Ao longo dos anos, a

partir de 2010, mais especificamente, a leitura fruição se tornou algo não só obrigatório, como

vital em minha prática em sala de aula. Sempre tomei esse momento de encontro entre mim,

os alunos e autores queridos, como um espaço de diálogos agradáveis, despidos (quase

sempre) de interesses acadêmicos que poderiam ser ditos mais explícitos e regrados, sendo

esse instante muito mais centrado na ideia de partilhar gostos e prazeres e assim interagir com

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os alunos – um espaço privilegiado, que, por vezes, a sala de aula não nos abre, dadas as

urgências e premências do cotidiano escolar.

Ao passar dos anos, fui percebendo que aquele gesto diário era algo mais: era

demonstração de carinho, era planejamento, era cuidado com o outro, era momento esperado,

era entrega e sentimento, era envolvimento e diálogo. Por tudo isso e pelo caráter de traço

diferencial, identitário, que a leitura fruição representa nesse colégio, decidi me debruçar e

estudar um pouco mais o que era, como se desenvolvia, que desdobramentos poderia ter.

Afinal, trata-se de instaurar a leitura pelo prazer como parte do cotidiano da escola – e, como

sabemos e, adiante se discutirá – essa não é uma empreitada simples, mas, certamente, trata-se

de luta válida, apaixonada e apaixonante.

O primeiro desafio, sem dúvidas, é entender o que é, do que trata a leitura fruição.

Sabemos que a leitura, em suas múltiplas roupagens, tem suas finalidades, algumas mais,

outras menos “pragmáticas” e se conceitua a ideia de ler para fruir pode parecer dispensável

ou mesmo redundante para muitos. Entretanto, conhecendo e vivenciando o ambiente escolar,

bem como as práticas de leitura típicas dessa instituição, podemos dizer, com certa

desenvoltura, que ler por prazer, na sala de aula, não é algo tão comum ou natural como se

pensaria ou se postularia. Assim, a ideia de ler para fruir, por prazer, como muitos têm (note-

se que, em geral, o prazer e o gosto, por vezes, não são associados às leituras escolares,

principalmente, para muitos alunos), merece ser discutida e talvez até ressignificada,

considerando-se o contexto escolar. São essas inquietações que alimentam esse trabalho e me

movem a analisar essa prática “mínima”, mas, parece-me, capaz de “quilômetros” de

permanência e significância.

Ao longo deste trabalho, irei me debruçar, portanto, sobre a leitura fruição, sua

configuração, seus impactos e reverberações, considerando, para tanto, minhas experiências

em sala de aula e os depoimentos, colhidos por meio de entrevistas, com ex-alunos e

professores. No primeiro capítulo, apresento meus pressupostos teóricos fundamentais e

também proponho uma breve revisão histórica sobre como a leitura foi se configurando,

muitas vezes, como obrigação nem sempre agradável no ambiente escolar. Também

apresentarei brevemente a questão do cânone e algumas relações deste com as escolhas de

leitura de alunos e professores. Por fim, pretendo analisar um pouco a chamada “crise” na

leitura, relacionando-a às questões históricas e culturais previamente delineadas.

No segundo capítulo da tese, pretendo discutir um pouco mais o que seria,

efetivamente, a leitura fruição: como se constituiu historicamente; como se instaurou no

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ambiente escolar; qual o papel desempenhado pelo professor – ledor, a meu ver – ao se

envolver com tal prática; quais as posturas dos alunos, que interações e relações estabelecem,

a partir dessa prática, com professores e textos. Concebendo a leitura – em especial, essa

categoria, a da fruição – como diálogo efetivo entre alunos e professores, tentarei analisar

implicações e desdobramentos dessa prática, concebendo-a como, mais que leitura,

performance. Nessa seção do trabalho, haverá ainda breves considerações acerca da leitura

literária – pois, como se mostrará adiante, embora não exclusiva, a presença do literário é

bastante intensa nas leituras dos professores aos seus alunos. No final desse capítulo,

elaborarei também algumas considerações acerca do quanto essa leitura, a princípio,

desvinculada de utilidade, se mostra essencial.

No terceiro capítulo, apresento os pressupostos teóricos da História Oral (HO), os

quais me fornecem bases para o trabalho com as entrevistas e para análise dos depoimentos.

Nessa seção, apresento também a caracterização mais detalhada da escola em que ocorreu a

leitura fruição ora analisada e também apresento os entrevistados, compondo, ainda um breve

delinear destes enquanto leitores,à luz de dados de pesquisas de relevância nacional.

Por fim, no último capítulo, analisarei as entrevistas com ex-alunos e professores,

colhidas ao longo do trabalho, valendo-me dos pressupostos da HO e dos embasamentos

teóricos anunciados no primeiro capítulo. Ao cruzar e analisar possíveis ligações entre os

relatos e considerações de ex-alunos e professores, pretendo alçar perspectivas mais amplas

das práticas de leitura fruição, buscando entender melhor sua contribuição e sua presença no

espaço escolar, bem com algumas de suas interferências para os leitores. Nesse sentido, serão

basilares as contribuições da HO, as quais permitirão traçar considerações acerca da

subjetividade dos indivíduos e também vislumbrar nuanças da identidade social e cultural dos

grupos pelos quais circulam. A partir dos pressupostos teóricos dessa área, pretendo também

observar e tecer considerações sobre o trabalho da memória, do esforço em recuperar e

(re)construir impressões e representações acerca da leitura, da escola e das relações travadas

entre alunos e professores, dever e prazer.

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Memorial

quando eu tiver setenta anos então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja aproveitar as oportunidades de virar um pilar da sociedade e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência quando acabar esta adolescência. (LEMISKI, 1985, p. 42)

I. Dos primeiros caminhos da formação pessoal e escolar

Ecléa Bosi, em Memória e Sociedade – Lembranças de velhos (1994), retomando

os estudos de Henri Bergson a respeito da memória, nos diz:

(...) a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (BOSI, 1994, p. 9)

Sempre me considerei alguém com “boa memória” – lembro-me, com certa

facilidade, de pessoas, de momentos diversos (e mínimos) de minha vida, de situações que

podem parecer “menores a muitos”; nos primeiros meses de aula já consigo reconhecer quase

todos os meus alunos e chamá-los pelos seus nomes. No entanto, a empreitada de vasculhar as

lembranças e selecionar o que é relevante para essa ou aquela consideração, faz-se mais

complexa quando se trata de tentar delinear um pouco sobre a pessoa que é a pesquisadora, a

professora, a leitora. Trazer à tona as águas do passado, reconhecer como se encontram e

como se mesclam com o presente, reconhecer que sou o que essas correntes muitas me

fizeram: eis um exercício complexo e um quê sujeito à idealização – na verdade, recuperar e

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relatar já é (re) construir, é elaborar uma nova “eu”, escolhendo, amplificando mínimos, mas

também extrapolando e destacando deveras o que, talvez, nem merecesse assim tanto crédito.

De qualquer forma, como Bosi sinaliza, memória é trabalho. Rememorar, a empreitada desta

pesquisa.

Desde pequena, fui apaixonada por leitura. Cresci numa família de classe média

baixa, no interior do estado (em Piracicaba), numa casa que não tinha muitos livros, mas que

tinha um grande leitor: meu pai. Lembro-me de, aos seis anos, já “ler” revistinhas da Turma

da Mônica, não conseguir decifrar tudo o que estava ali e ficar meio incomodada por não

reconhecer aqueles “símbolos” todos. Depois disso, na 1a série, aprendi a ler, de fato – com

direito à cartilha elaborada pelas professoras (feita de fichas de cartolina colorida, que íamos

colocando num pequeno fichário) e à comemoração do “dia do livro” - não sei se era esse

exatamente o nome que se dava, mas era a comemoração do dia da entrega do nosso primeiro

livro de leitura, ou seja, um “livro de verdade”, que não era mais a cartilha.

Daí em diante, sempre que podia estava lendo. Eram os meados da década de

1980 e livros eram caros e raros (ao menos, para minha família) – lembro-me que, em minha

escola de Ensino Fundamental (onde estudei do chamado pré até a então 8a série) não havia

biblioteca. Cada sala tinha um armário com livros, cujo acesso era restrito à professora.

Algumas vezes pegávamos livros desse lugar, mas não me lembro com empolgação de

nenhum título. Na verdade, lembro-me de reclamar do que muitos de meus alunos hoje

reclamam: os livros que a escola recomendava eram “chatos” e pouco interessantes. Então, a

caçada pelos livros se tornou algo muito pessoal e solitário, eu diria. Li muitos gibis –

sobretudo, da turma da Mônica durante muitos anos. Adorava. Depois, passei aos livros

vários.

Como eu disse, nossa casa não era de muitos livros – lembro-me de alguns

emblemáticos, como uma espécie de enciclopédia sobre sexualidade, com ilustrações e fotos

“proibidas” para menores (que, às vezes, eu espiava) e de uma coleção literalmente pequena,

de três volumes de Machado de Assis em livros de miniatura. Uma vez, quis ler os tais

livrinhos, tão bonitinhos, e minha mãe advertiu que “era chato”. Começava aí (embora eu não

soubesse) meu enfrentamento com o cânone (e meu fascínio por ele) e minha vontade de

provar e perguntar: será mesmo tão chato? Entretanto, como eu disse, meu pai era leitor – e

até hoje o é. Quando criança, sempre encontrava no banheiro de nossa casa, lá em Pira,

livrinhos de bolso, de banca, com páginas de papel jornal – de caubóis e aventuras – que meu

pai lia avidamente. Lembro-me de que, várias vezes, meu saudoso tio Agenor chegava, de São

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Paulo, com sacolas daqueles livrinhos, para trocar com meu pai. Era uma espécie de “clube do

livro” entre eles – e eles eram leitores vorazes! Cada vez que o tio Agenor vinha (umas duas

ou três por ano, mais ou menos), lá vinham e iam sacolas imensas com os ditos livrinhos. Mas

eram livros proibidos para mim, eram livros de “gente grande”, aos quais eu não tinha acesso

– embora de vez em quando, espiasse alguma página fortuita, lesse algum diálogo regado com

tons que, hoje reconheço, pelas lembranças que me ficaram, são típicos de histórias de bang

bang ou de aventura. Creio que presenciar os gestos de leitura de meu pai, vendo-o ler,

trocando livros, comentando, foi uma influência importante para minha percepção da leitura

como algo agradável e significativo.

Felicidade mesmo foi quando meus pais se tornaram sócios do prestigiado Círculo

do Livro, espécie de clube de leitores, pelo qual cada associado recebia um livro a cada dois

ou três meses (lembro que houve certa oscilação dessa periodicidade enquanto participamos

desse clube). Eu devia ter uns sete anos quando começaram e a ideia de ter que comprar um

livro a cada dois ou três meses não me parecia nem um pouco complicada. Difícil era esperar

todo esse tempo. Grande era minha alegria quando vinha a revista do Círculo do Livro chegar

em casa. Foi por meio dela – sim, eu lia a revista todinha, embora só pudesse comprar um ou

dois livros – que eu conheci alguns autores como Shakespeare, Dante (numa edição

estranhíssima da Divina Comédia, com uma capa um quê bizarra, composta por colagens de

fotos). Quando nos tornamos sócios, meu grande sonho era ler Monteiro Lobato. Não sei

quem plantou essa vontade em mim – e não foi a escola, não li nada do Sítio do Pica-pau

Amarelo como aluna, em sala de aula; talvez tenha sido a TV, pois me recordo um pouco do

seriado exibido no início da década de oitenta. Depois de perturbar minha mãe e meu pai

durante anos, porque eu queria a coleção completa, um dia ela veio! Eram volumes em capa

dura, amarelinhos, cujas lombadas formavam um movimento como quadros de desenho

animado: era o saci pulando, subindo até o volume do “meio” da coleção e, depois, descendo,

nos últimos volumes. Foi uma alegria inenarrável. E daí, li todo o Sítio do Pica-pau Amarelo

e me maravilhei, adorei; eu devia ter uns dez ou onze anos (já era uma criança “grande”).

Outro episódio marcante, anterior ao dos livros de Monteiro Lobato, de que me

recordo, ocorreu quando compramos a enciclopédia Conhecer – eu sempre quis ter uma

Barsa, mas essa era artigo de luxo, caríssima. Então, ficamos com a Conhecer. Logo que os

volumes grandes e coloridos chegaram, devorei um sobre planetas, fiquei fascinada – e tive

comigo “altos” questionamentos sobre de onde tinha vindo todo o universo, para onde ia – a

história do Big Bang não me parecia lá muito convincente. Os demais volumes, li a conta-

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gotas ou folheei – por exemplo, mal abri o volume sobre animais e insetos. Passei os olhos

nas figuras, mas não me animei a ler tanta coisa sobre esqueletos, tecidos, sistemas e coisas do

tipo, assuntos que nunca me atraíram muito.

Depois, vieram vários livros mais da categoria infantis e muitos best-sellers – com

direito a vários Sidney Sheldon – até a epifania dos meus quinze anos: o Círculo lançou uma

coleção (que, descobri anos depois, já tinha sido publicada e seria relançada no final dos anos

1990 pela então Editora Abril Cultural) de clássicos da literatura universal. Vi aquilo na

revista e enlouqueci. Eu não tinha referências, não conhecia nenhum autor. Mas os livros eram

bonitos, de capa dura (como todos do Círculo), com as páginas revestidas em dourado e

gravação em dourado também na capa e na lombada dos volumes – suportes já interessavam e

me atraíam muito. Meu pai apoiou e financiou. Foi puro maravilhamento quando recebi os

dois primeiros volumes - Crime e Castigo, de Dostoiévski, e O vermelho e o negro, de

Stendhal. Li o Dostô (como eu o chamo até hoje, somos íntimos) em dois ou três dias e fiquei

passada, encantada, fascinada. A partir desse, fui ler Recordações da casa dos mortos e tudo

mais que eu encontrasse escrito pelo meu querido autor russo. Foi um divisor de águas.

Curiosamente, o Stendhal esperaria até a graduação em Letras para ser devidamente

apreciado.

Daí em diante, as leituras se intensificaram. Certa vez, ainda no 1o colegial, com

meus quinze anos, tive a minha fase Pablo Neruda, estimulada pelo primeiro capítulo da

autobiografia do poeta, lido em sala pelo professor de Redação. Acho que ele, o professor,

nunca soube o impacto que esse texto teve em mim. Além do Neruda, tive meu primeiro

“casinho” com Edgar Allan Poe, depois de uma aula do mesmo professor, em que lemos “O

gato preto”. Em casa, tinha acabado de receber o volume de contos do Poe (da mesma coleção

dos clássicos) e fui ler “Berenice”. Lembro com nitidez como meu coração disparou e como

tudo ficara mais sombrio, como parecia haver barulhos vários na minha até então pacata casa.

Enfim, foram muitos autores daí até a faculdade. Com direito a uma obsessão que cresceu e se

cultivou durante o ensino médio: Arthur Rimbaud. Certa vez, o mesmo professor de Redação

me sugeriu que lesse Manuel Bandeira, Clarice Lispector e Arthur Rimbaud. Bandeira e

Clarice, bebi na fonte – a biblioteca do colégio tinha vários volumes (graças às listas de

vestibular) e eu li tudo o que encontrei. Mas o Rimbaud, esse foi uma odisseia, com o perdão

do trocadilho. Nunca havia nada. Nem no colégio, nem na parca biblioteca municipal, nem

ninguém conhecia o dito cujo. Era o início da década de 1990 e não havia internet e as

livrarias de Piracicaba ofereciam poucas opções. Busquei avidamente Rimbaud. Achei

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informações esparsas, mas nunca os textos dele. Aquietei meu coração e minha vontade como

pude e fui lendo outras coisas. Rimbaud ainda demoraria três anos para chegar até mim – ou

eu até ele.

Terminei o Ensino Médio em 1996 e, após os exames vestibulares, fui para São

Paulo, cursar a tradicional faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco.

II. Da academia e dos primeiros desafios da docência

Além de apaixonada por literatura, era uma boa aluna – e isso me levou a prestar

Direito na USP. Durante o Ensino Médio, fora bolsista num colégio de elite em Piracicaba e

fui seduzida a prestar vestibular num curso “sério”, afinal, era uma aluna de certo destaque e

não poderia me contentar em prestar Letras e ser professora. Pois bem, prestei Direito, passei

e morei um ano em São Paulo, com meus tios Agenor e Cecília. Foi um ano de crescimento e

amadurecimento, de autonomia e descobertas. Conheci livrarias e bibliotecas, participei de

saraus e até integrei brevemente uma academia de letras marginal, paralela à oficial, no Largo

São Francisco, onde estudei por quase um ano. Foi nessa época que eu li e reli muita Clarice

Lispector. E foi um ano em que eu descobri que não queria ser advogada nem juíza nem nada

do gênero. Eu queria ler, pesquisar, escrever – queria me dedicar à história e à literatura. Foi

um período de errâncias e achamentos no que diz respeito aos caminhos intelectuais e

pessoais também.

Um dia, na casa dos meus tios, após tanto buscar meu querido Rimbaud, recebi

uma caixinha de sedex, que tenho até hoje – dentro dela, uma carta e um volume de poesias

de Arthur, meu tão buscado poeta. Presente do meu ex-professor de Redação que, comovido

(ou muito incomodado por minha insistência), decidiu me dar o volume dele. Um presente e

tanto, um encontro bonito, nesse período de tantos desencontros. Afinal, ter “errado” e ter

morado em São Paulo me ensinou muito e me definiu vontades e desejos futuros. E me fez

partir.

Após o baque – afinal, eu deixara um curso prestigiado, em uma das mais

tradicionais universidades do país -, vim a Campinas para fazer História na UNICAMP. Meus

planos eram fazer História e, depois, Letras. O curso de História foi um “achamento”, tanto

intelectual, quanto pessoal. Aprendi, li textos marcantes e que me deram muitas das bases que

trago comigo até hoje – Sófocles, Duby e até um pouco de Chartier (cujas obras eu

praticamente não compreendi naquela época), para citar alguns. Por um tempo, quis trabalhar

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com literatura antiga, com tragédias, mais especificamente. Dentre os professores, me

marcou, especialmente, o professor Paulo Miceli. Ele citava Borges e autores que eu nunca

tinha lido e que me encantavam. Decidi fazer um caderno com referências de leitura – perdi o

caderno, mas não a vontade de ler muitos daqueles livros (alguns já li, mas sei que nunca

darei conta de toda aquela lista, até porque não me recordo de tudo, obviamente). Apesar de

estar muito feliz no curso de História, a vida prática urgia: era preciso pagar as contas e me

manter em Campinas. Prestei concurso e me tornei funcionária da Caixa Econômica Federal

em setembro de 1998, atividade que exerci até abril de 2001, quando, em mais um “rompante

de loucura”, deixei meu emprego estável e, para horror e espanto de muitos, me tornei

professora.

O intervalo entre 1998 e 2001 trouxe consigo também uma crise pessoal, pois não

consegui cumprir regularmente as matérias do curso de História (integral) na UNICAMP . Ia

lendo, contudo, de modo bissexto e pouco sistemático; frequentando livrarias; conversando

com pessoas que gostavam de ler. Finalmente, no final de 1999, cansada de esperar pela

abertura de um curso noturno de História (até hoje, não existe), decidi prestar vestibular

novamente e tentar o tão adiado curso de Letras. Enfim, em casa, no caminho.

Ingressei na graduação em Letras em 2000. Sim, aquele era o meu lugar, pensei.

No primeiro semestre, conheci aquele que, até hoje, é uma de minhas grandes inspirações,

professor que admirei e em quem tento, muitas vezes, me espelhar: o professor Luiz Carlos da

Silva Dantas. Com ele, conheci Mérimée, redescobri Dostô, re-apaixonei-me perdidamente

pela literatura, pelo modo que ele lia e pelo jeito com que falava dos livros. Com certeza, ele

foi o primeiro a ler, para nós, com paixão, com entrega, os textos. Certa noite, lembro-me dele

começando a aula, abrindo o volume de Moby Dick. Ele leu o primeiro capítulo e chorei.

Aplaudimos. Era uma leitura de quem conhece o texto, ama, e quer mostrar ao outro, assim,

porque é bonito e pronto – acho que foi meu primeiro contato, ainda sem saber, com a leitura

fruição. Dantas lia porque amava, porque queria partilhar, porque era gratuito. Lia para fruir.

Mesmo quando lia as leituras obrigatórias, o prazer suplantava qualquer coisa. Ele me fez

amar textos que eu nunca tinha lido e admirar mais ainda outros conhecidos, pela doçura e

pela entrega que ele tinha, pelo envolvimento. E até a pós-graduação – eu tive o privilégio de

fazer uma disciplina de mestrado com ele – foi assim. Dantas me marcou e até hoje me dói

lembrar que não posso mais partilhar com ele autores que acabo de conhecer. Uma vez, anos

depois da sua morte, quando li Marguerite Yourcenar pela primeira vez, fiquei tão impactada,

pensei tanto no que ele diria, como e o que comentaria, que sonhei estar discutindo com ele,

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nos corredores do IEL, sobre a beleza dos Contos orientais, em especial, sobre a delicadeza

estarrecedora da “Nossa Senhora das Andorinhas”, uma de minhas histórias favoritas desse

livro.

Outra presença fundamental – que, como o professor Dantas, hoje é ausência

física e saudades – é da professora Mônica Gentil. No final do curso de Letras, conheci a

professora ao fazer disciplinas específicas de licenciatura, na Faculdade de Educação. Já na

primeira aula, ela chegou mansamente e nos presentou – a mim e a minha turma – com a

leitura fruição. Foi um “choque” quando ela comunicou que ia “ler por ler” antes de começar

todas as aulas. Até então, eu nunca tinha me deparado com a possibilidade de ler sem

obrigatoriedade em sala de aula – e nunca ninguém havia lido para mim. A cada aula, Mônica

trazia um livro, um texto e eu ia me apaixonando cada vez mais por essa possibilidade, pelo

ler e dar-se a ler, pela emoção, pela escolha dos textos, pela partilha. A voz delicada mas forte

nos cativou. Além da leitura em si, essa experiência também me apresentou várias obras da

literatura dita infantojuvenil, a qual, até hoje pouco conheço – mas que conheceria menos

ainda não fossem as leituras de Mônica. Desde então, fiquei profundamente tocada por essa

experiência que me reaproximou do gosto pela literatura e pela leitura com e para os alunos.

Durante o curso de Letras, sempre estive dando aulas, desde mesmo antes do

início dessa graduação. Minha formação acadêmica se mesclou, ao longo de quase cinco anos

de curso, com a formação mais prática, dos sistemas de ensino, dos manuais e livros que fui

conhecendo e com os quais fui trabalhando. Entrei em sala de aula como professora pela

primeira vez em 1998, num cursinho popular organizado pela Faculdade de Odontologia da

UNICAMP, em Piracicaba. Dei aulas voluntariamente, por alguns meses, nesse projeto e,

depois, em 2000, comecei a trabalhar no então Cursinho do DCE – hoje, Cooperativa do

Saber – como professora de produção de texto/redação. Em 2001, passei a ministrar aulas

como professora de Produção de Texto, Gramática e Literatura em escolas particulares da

região de Piracicaba – Cerquilho, Tietê, Limeira e Piracicaba. Em 2006, comecei a trabalhar

em um colégio particular, onde permaneci até o final de 2014, quando me tornei docente do

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, no câmpus Capivari.

Durante os anos de docência, tive experiências diversas com leitura, presenciando

desde práticas não só tradicionais, como, de certa maneira, limitadas e limitantes, mas

também experiências empolgantes. Várias vezes repeti gestos, a meu ver, esvaziados,

despidos de significado, como os que, por vezes, são ditados para a abordagem da leitura e

literatura para o vestibular – provas cerceadas por características pré-determinadas, leituras

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“super” direcionadas, análises pautadas pelo que os exames queriam. Entretanto, também tive

espaço e apoio para, outras vezes, propor abordagens diversas e extrapolar as amarras das

avaliações e do controle do vestibular – nos anos de 2003 a 2005, trabalhando em um colégio

particular, em Piracicaba, pude propor leitura de clássicos como 1984 e Admirável Mundo

Novo, com direito a sessão de debates dos alunos e análises críticas empolgantes construídas

conjuntamente.

Entretanto, só ao chegar, em 2006, ao colégio em que mais tempo trabalhei, pude

vivenciar, de fato, um ambiente não só de valorização e incentivo da leitura para os alunos,

como também (e, talvez, sobretudo) para os professores. Foi nesse colégio que reencontrei a

leitura fruição, aquela que a professora Mônica e o professor Dantas tinham me apresentado.

Parte essencial do projeto pedagógico, essa modalidade de leitura no início de dia me

reaproximou da literatura, me fez rever e repensar os porquês das escolhas dos textos e

também redobrar cuidados com a recepção e como as reações dos alunos. Enfim, foi uma

experiência que mostrou como é possível concretizar o gosto pela leitura e também torná-lo

contagiante. Por vezes, mesmo diante de uma aula que eu sabia ser mais maçante, eu me

animava ante a perspectiva de ler para meus alunos, ter um momento de certa liberdade,

contudo, momento de diálogo, de dizer e ouvir, ainda que sem palavras, como os estudos do

doutorado me fariam ver.

III. Do amadurecimento, das frustrações e novos encantamentos

Formada em Letras (Licenciatura) pela UNICAMP, até o momento do Doutorado,

me percebia posta em xeque com a perspectiva de ser vista mais como uma especialista da

área de Língua Portuguesa, da Literatura, do que como educadora – tanto que, em 2009,

obtive o título de Mestre em Teoria e História Literária também pelo Instituto de Estudos da

Linguagem, na UNICAMP, porém, sem muitas convicções acerca dos estudos desenvolvidos.

Em meu Mestrado, detive-me na análise e preparação para publicação (não realizada ainda)

da obra memorialística de Alberto Rangel, autor que viveu na transição do século XIX para o

século XX, contemporâneo e amigo pessoal de Euclides da Cunha. Meu trabalho de pesquisa

(sob orientação do professor Francisco Foot Hardman) concentrou-se em elaborar uma

espécie de edição crítica dos dois primeiros volumes das suas memórias, intituladas Águas

Revessas, obra ainda hoje inédita. O estudo de Rangel abriu portas para novas perspectivas e

me colocou em contato com possibilidades até então inéditas de análise da obra de um autor

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praticamente desconhecido do público e da academia. Entretanto, nunca me contentei

plenamente com esse trabalho. Estudar literatura, pensando que boa parte de meu esforço e de

meus escritos ficariam restritos ao ambiente acadêmico e muito “especializado” sempre me

incomodou. Conforme disse antes, desde o início da graduação em Letras, em 2000, eu estava

em sala de aula, estudando literaturas outras, refletindo e tentando propor modos de ler e de

discussão da leitura. Assim, a perspectiva acadêmica ora vivenciada no Mestrado não atendia

meus anseios e me trazia mais dúvidas e questionamentos sobre por que me deter em tais

estudos se eu não conseguia estabelecer diálogo entre tais análises e a sala de aula. Sem saber

como me encaminhar, eu ia alimentando vontades de falar mais do que acontecia na sala de

aula entre mim e meus alunos, de compartilhar mais minhas leituras com meus alunos, de ser

para eles um pouquinho do que o Dantas e a Mônica tinham sido para mim.

Esse impasse delineou-se, em especial, quando, após o Mestrado, pus-me a

reconsiderar minhas opções e minha atuação como professora e como pesquisadora. Nesse

ínterim, oscilei em permanecer nos estudos da Teoria Literária ou mudar de área – o que

significava sair de uma aparente zona de conforto, na Letras, e partir para novas abordagens

teóricas. Depois de algumas incursões teóricas na área de Educação, em especial, de estudos

do letramento e de práticas de leitura, decidi arriscar-me e submeter um projeto de Doutorado

à Faculdade Educação da UNICAMP. Tomei tal decisão após envolver-me cada vez mais com

perspectivas de ensino: de 2009 a 2011, passei a atuar, a partir do convite da professora Ana

Lúcia Guedes-Pinto, como formadora do Pró-Letramento, programa do Ministério da

Educação, para formação continuada de professores dos anos iniciais do Fundamental I. A

partir desse momento, minha atuação como professora de Ensino Fundamental II e Ensino

Médio foi diretamente impactada por reflexões e perplexidades trazidas dos diálogos com

meus colegas, professores das séries iniciais. Não me parece exagero dizer que minhas

práticas e minha percepção acerca da educação, do ensino e aprendizagem sofreram alterações

e revisões profundas, a partir do momento que comecei a conhecer e a pensar com um pouco

mais de profundidade o percurso dos alunos, na área de linguagem, desde sua entrada na

escola.

Minha primeira tentativa de voltar aos estudos acadêmicos ocorreu em 2010,

quando submeti um projeto no processo seletivo para o Doutorado em Educação, na

Faculdade de Educação da UNICAMP. Tratava-se de uma proposta para avaliar o ensino de

poesia a partir do que traziam alguns livros didáticos. Não fui aprovada, o que me causou

bastante frustração, mas também me fez repensar algumas perspectivas e me colocou em

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movimento para buscar mais embasamento teórico e para reelaborar minhas questões. De

fato, naquele momento, minhas concepções eram muito mais incipientes e insipientes. Era

preciso estudar, ler e reconsiderar, reelaborar o que eu pensava como objeto de estudo.

Após tal (não) acontecimento, decidi “dar-me um tempo” em relação à academia.

Dediquei-me totalmente à docência e também à formação de professores. Durante os anos de

2010 ao final de 2014, trabalhei praticamente em período integral no colégio já citado, em

Campinas, com as turmas de Fundamental II e Médio. Com esses alunos, redescobri muito do

prazer da literatura – com os 9os anos, turmas em que eu trabalhava Língua e Texto (algo

como Gramática e Literatura no Ensino Médio), pude ler e reler clássicos e propor trabalhos, a

meu ver, interessantes, como o “famoso” trabalho com vídeos a partir da leitura dos contos de

Machado de Assis1, atividade que mobilizava os alunos. Para mim, era absolutamente

encantador perceber meus alunos envolvidos com os contos de Machado, gostando dos textos,

comentando, tecendo perspectivas críticas – e ouso dizer, audazes e perspicazes. Isso me fez

ver que o “fantasma do cânone”, da obrigação, de fato, dependia muito do modo como nós,

professores, apresentamos os textos aos alunos, como deixamos (ou não) que os jovens se

aproximem das leituras e teçam suas considerações – em outros termos, dependendo muito

sobre como compomos e exercitamos a mediação. Fui aprendendo que mediar é, talvez,

sobretudo, deixar que eles se aproximem, que provem por si mesmos, que tenham voz em

relação ao que leem. Claro que sempre me preocupei para que os alunos tivessem respaldo e

elaborassem suas considerações com coerência, mas parece-me que o exercício da liberdade,

do poder falar sobre, é essencial. Por vezes, a escola, com “amarras” e pressões, impõe seu

modo de ler, determina as análises possíveis e subjuga (ou se mostra indiferente) a quaisquer

outras possibilidade de leitura e compreensão. A mim, parece-me que tenho aprendido, ao

longo desses anos, com o trabalho de leitura e discussão, que os alunos podem muito mais do

que supomos, desde que oportunizemos espaços e momentos para que eles, jovens, também se

construam e construam os sentidos das leituras. Isso não quer dizer se omitir ou não orientar,

não mediar. Penso que é fundamental reconhecer esse processo como diálogo, ainda que um

dos lados – o do professor, geralmente – seja o do especialista. Mesmo como suposto detentor

de conhecimentos mais profundos, o professor precisa abrir-se à oportunidade de reconhecer

nos alunos interlocutores sagazes, observadores argutos, como sugere a metáfora de Gaarden,

no início de O mundo de Sofia: são curiosos, estão nas pontas dos pelos do coelho, ou seja,

1 Sobre esse trabalho, apresentei comunicação no Congresso Internacional da Abralic, em julho de 2015, em

Belém.

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não estão acomodados e querem ver mais, olhar de outros ângulos. Embora saibamos que os

nossos alunos já têm, por vezes, bagagens culturais interessantes e muito diferenciadas, nem

sempre cedemos espaço, em sala de aula, para que as bibliotecas pessoais deles conversem e

se “cruzem” com o que trazemos como professores - como assinala Goulemot, é preciso

considerar que há o “fora-do-texto [que] é também uma história coletiva e pessoal”

(GOULEMOT, 2009, p. 110). Se por um lado, é amplamente conhecido o esforço dos

professores no que tange à valorização dos conhecimentos linguísticos e culturais dos alunos

nos primeiros anos escolares, em relação à alfabetização e ao letramento, talvez não se possa

dizer o mesmo quando pensamos a leitura no segundo ciclo do Ensino Fundamental ou

mesmo no Ensino Médio.

Enquanto tudo isso vinha ocorrendo e muitas ideias e dúvidas digladiavam-se em

minha cabeça, implantou-se, definitivamente, no colégio em que eu trabalhava, a prática da

leitura fruição: cada professor, no início de sua primeira aula da manhã, deveria ler algo para

os alunos. Gostaria de me deter, aqui, um pouco sobre o que se concebe como “ler” – numa

perspectiva bem ampla, a ideia de ler, nesse contexto, dizia respeito tanto à leitura que

poderia ser dita “convencional”, de textos verbais, mas também contemplava a leitura de

imagens, a apreciação de músicas, vídeos ou trechos de filmes – em alguns casos

privilegiados, contaria ainda com professores que podiam cantar e concretizar performances

incríveis frente a seus alunos.

Prontamente, abracei a ideia e passei a ler. Não sou uma leitora “performática”, no

sentido de desempenhar gestos teatrais, tenho plena consciência disso, mas julgo-me uma boa

leitora. E, como já disse, a oportunidade de ler para meus alunos, de ser, para eles, um

pouquinho do que Dantas e Mônica tinham sido para mim, sempre me encantou. Tal prática se

integrou ao que sou e, certamente, deixou meus dias e minha rotina escolar mais leve e mais

animada. Ler para meus alunos se tornou momento de encontro, de desvelamento, de extrema

humanidade, em que me dei a conhecer e procurei dialogar e doar um pouco mais de mim,

indo um pouco além da figura institucional da professora.

Também ao longo dos anos de 2009 a 2011, conforme já mencionado, atuei como

formadora do programa Pró-Letramento, sob coordenação da professora Ana Lúcia Guedes-

Pinto. Nas formações, a leitura fruição (ou deleite) era prática constante e fundamental, o que

me possibilitou também estreitar vínculos com as professoras cursistas do programa. Foi mais

uma oportunidade de vivenciar a força dessa prática e os efeitos da constância e da partilha da

leitura.

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Em 2011, como uma espécie de extensão ou prolongamento da ideia da leitura

fruição, eu e minha colega de área, implantamos o projeto da “Leitura do Prazer”: cada aluno

escolheria um livro e, a partir dele, apresentaria um trabalho ou produção – qualquer produto

que não fosse um texto. A ideia era romper com as estruturas escolares, tanto no que diz

respeito à imposição das leituras, como ao processo de avaliação. Cada aluno escolhia uma

obra de seu interesse e produzia algo que lhe fosse significativo: maquetes, ilustrações,

objetos diversos, caricaturas.

Tais experiências me fizeram atentar para a importância desse espaço de

gratuidade, de confiança: dar a ler, dar-se a ler, ler e compartilhar o prazer. Algo que parece

óbvio, mas, que, como professores, podemos verificar que não é. Ler e prazer não rimam,

ainda que essa sugestão possa parecer clichê, natural e naturalizada. Porém, ao longo dessas

duas experiências, da leitura fruição e das leituras do prazer, pude perceber que dar espaço e

promover leituras que fossem além da avaliação trazia nuanças muito particulares e

diferenciais consideráveis no que diz respeito ao olhar dos alunos para a leitura e para a

literatura. Assim, fui guardando observações e alimentando questões para quem sabe, um

futuro estudo.

Em 2011, ocorreu o que hoje, olhando a certa distância, me parece um fato muito

significativo. Eu dava as duas primeiras aulas para o 3º ano do Ensino Médio, às terças-feiras

pela manhã. Era uma turma muito especial e carinhosa, que eu conhecia desde o Ensino

Fundamental. E essa turma me convidou para ser paraninfa. Nunca antes eu tinha tido esse

privilégio. Penso que muito da especialíssima relação entre mim e meus alunos dessa turma

deveu-se à prática da leitura fruição. Isso nos aproximou e nos fez alçar uma esfera além da

relação professora-alunos. Outro ponto que me parece importante citar aqui é que essa turma

sempre me incentivou a retomar os estudos e voltar para a Academia. Eles sabiam o quanto

isso era importante para mim e me animavam a pensar nesse retorno, embora eu ainda não

soubesse como concretizá-lo.

IV. Do doutorado – ou “das epifanias”

Após esses anos de “retiro”, em 2012, voltei a acalentar a ideia do Doutorado.

Queria retomar diálogos com a Academia, ter contato com pesquisas, livros, ideias, pessoas.

Sozinha, sem muita noção e sem muito aparato teórico, lancei-me às leituras sobre leitura e

escrevi um modesto projeto. Interessavam-me (e ainda me interessam), em especial, as

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questões relativas à leitura (em especial, a literária) na escola. Assim, movida pelas

experiências construídas no chão da sala de aula, propus-me a investigar relações que me

fascinam, mas que também (e especialmente) me desafiam: como encantar os alunos para o

universo da leitura? Como compartilhar com eles práticas que podem ser tão prazerosas, mas

que, por vezes, a escola transforma em exclusiva obrigação? E como contemplar o que é

prazer (as leituras extraescolares) como práticas a serem também partilhadas e experienciadas

na escola? Desse modo, tendo contato mais direto com a leitura fruição e praticando-a,

encontrei um possível caminho e teci meu projeto, repleto de questões e anseios.

Aprovada no processo seletivo para o Doutorado na Faculdade de Educação, no

início de 2013, comecei a cursar as disciplinas do programa e a viver momentos de verdadeiro

maravilhamento. Há tempos eu não me (re)encontrava tanto com minhas convicções e com

ideias afins às minhas concepções de educação, ensino e aprendizagem. Vinda da área de

Letras, vi-me fora de uma zona de conforto e convidada a galgar nova empreitada teórica –

desafiadora e convidativa. Desde o prédio até a biblioteca, tudo era novidade – e nem sempre

o novo é, de cara, acolhedor. Ainda hoje me perco nos corredores da faculdade, mas

rapidamente me habituei à biblioteca e me vi muito bem recebida por professores e colegas.

As disciplinas cursadas no primeiro semestre de 2013 trouxeram novos auspícios

para minha vida acadêmica. Preciso destacar que as primeiras impressões foram de extremo

estranhamento: vi-me num ambiente novo, numa nova faculdade (afinal, toda minha vida

acadêmica, até então, fora traçada no IEL), com novos colegas e professores. Sou uma pessoa

tímida e tendo à reclusão, o que redobrava a intensidade do desafio. Contudo, a acolhida me

surpreendeu, bem como minha capacidade de adaptação – não sem pequenos movimentos de

incômodo que, por vezes, ainda existem. Mesmo assim, o reconhecimento de estar num

espaço e num contexto mais afinado às minhas expectativas traz-me serenidade para seguir e

dar meus passos nessa nova empreitada.

O primeiro curso que vivenciei foi o do professor Roberto Goto, “Filosofia da

Educação e Literatura”. A proposta era ler obras literárias e desenvolver, a partir delas,

análises sobre o exercício docente e sobre as perspectivas do que é educar e como se constitui

a educação. Desse modo, além de mergulhar em discussões teóricas acerca da filosofia da

educação, o professor Goto nos propôs repensar, por exemplo, o valor da escola e

questionamentos sobre a relação entre alunos e professores. Outrossim, foi elemento essencial

dessa disciplina a análise estética das obras, retomando, para mim, componentes estruturais da

literatura, bem como a possibilidade de exercitar a leitura detida e crítica dos livros

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escolhidos. Ler literatura e, a partir e por meio dela, pensar a realidade, refletir sobre as

práticas docentes, mostrou-se um exercício prazeroso e muito profícuo. Ter encontrado no

professor Goto e nos meus colegas (cada um de uma área diferente de atuação, eu era a única

professora de Português) interlocutores dispostos a discutir e problematizar literatura e

valorizá-la como construção artística e “testemunha ocular” de fatos e períodos fez com que

eu me aproximasse da Educação e me sentisse, de fato, parte dessa nova área de estudos.

Prova do rico diálogo promovido nesse curso é que o professor Goto organizou, a

partir de nossas resenhas/ensaios, um livro publicado em março de 2013 (já na 2ª edição), que

traz, em forma de artigos, nossos (meus e de meus colegas de curso) os trabalhos

desenvolvidos ao longo do semestre. Foi, portanto, uma rica experiência de disciplina e

escrita, fundamental para o fôlego exigido nessa etapa de vida acadêmica em que me

encontro.

No mesmo semestre, cursei a disciplina “Cultura, Educação e Leitura” e tive

contato com as professora Norma Ferreira e Lilian Silva, autoridades em leitura. Foram

encontros muito enriquecedores e que trouxeram a oportunidade de ler, de modo mais atento e

crítico, a obra de Bakhtin, referência fundamental para meu trabalho de pesquisa: as relações

dialógicas estabelecidas entre a autoridade da escola e as escolhas dos alunos, o diálogo

constante e o reverberar das leituras apresentadas e da leitura que os alunos fazem dessa

leitura são alguns dos pontos a serem tratados com mais profundidade neste trabalho.

As professoras Norma e Lilian se mostraram interlocutoras atentas, indicando

referências e abordagens que julgo essenciais para o delineamento dessa pesquisa. A

possibilidade de ler detidamente trechos importantes de Bakhtin, de discutir seus conceitos,

bem como encontrar colegas de pós-graduação também estudando esse importante pensador,

mostrou-se uma oportunidade que julgo fundamental para meu amadurecimento acadêmico e

também para definir o que penso serem alguns pilares da análise proposta por esta tese.

Destaco também o desafio crucial na atividade de avaliação dessa disciplina: encontrar

afinidades, pontos em comum, entre nosso objeto de pesquisa e os conceitos trabalhados ao

longo do curso. Esta foi uma oportunidade de me debruçar criticamente sobre as leituras

partilhadas e aprofundar alguns conceitos de Bakhtin, de modo a já ensaiar um pouco da

análise proposta neste texto.

Também nesse primeiro semestre, na disciplina “Atividades Programadas de

Pesquisa de Doutorado I”, pude conhecer e ter acesso à História Oral2, referência teórico-

2 Doravante referida como HO.

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metodológica importante para o desenvolvimento da análise de entrevistas – que serão

apresentadas e analisadas neste trabalho. Aquele foi um momento para pensar como realizar o

trabalho de campo e proceder a movimentos de análise do material, bem como de

considerações importantes acerca de questões éticas envolvidas e que permeia essa prática da

entrevista. O contato com as obras de Portelli e Amado, sobretudo, trouxe-me o interesse e

firmou a decisão de trabalhar com depoimentos de alunos, primeiramente.

O trabalho de fortalecimento de fundamentação teórica teve continuidade no

segundo semestre de 2013, com “Atividades Programadas de Pesquisa de Doutorado II”,

quando pude estudar um pouco mais autores da antropologia e da história cultural,

complementando a formação básica para a construção das bases de minha tese.

Concomitantemente, cursei a disciplina “Seminário IV: Práticas de leituras”, em que estudei

mais profundamente a obra de Roger Chartier, autor da História Cultural, referência

obrigatória para se pensar práticas de leitura e, portanto, também base para meu trabalho de

análise da leitura fruição. Daí, surgiu, então, a ideia de aprofundar questões como a influência

do suporte, análise dos gestos de leitura, bem como das relações travadas entre comunidades

de leitores – o que se pode ver na escola e na relação construída entre alunos e professores por

meio da leitura fruição. Nesse momento, também comecei a sistematizar melhor trabalhos de

fichamentos de textos teóricos e elaboração de dados (no caso, anotações de diário de campo).

Também nesse segundo semestre de 2013, em setembro, participei, por meio de

apresentação oral, do X Encontro Regional Sudeste de História Oral, realizado em Campinas,

na UNICAMP. Fora meu primeiro evento acadêmico nessa nova fase, a do doutorado. A partir

de minha experiência com o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), programa em

que atuei como formadora entre os anos de 2013 e 2014, propus uma análise de relatos de

professoras sobre memórias escolares e sua relação com a formação proposta pelo PNAIC.

Por meio desse trabalho, pude vivenciar o cuidado com o relato do outro, respeito com a

palavra proferida e toda carga por ela trazida e desenvolver um primeiro exercício de análise a

partir desse, para mim, novo referencial teórico (HO).

Ainda durante o ano de 2013 foi marcante em minha experiência docente e

intelectual o contato com as Orientadoras de Estudo (OEs) do PNAIC. Convidada e

incentivada, sobretudo, pela professora Ana Lúcia Guedes-Pinto, tive, ao longo de dois anos,

a oportunidade de partilhar, auxiliar e muito aprender com professoras, coordenadoras e

diretoras de diversos municípios, além, claro, de poder aprofundar meus estudos sobre

alfabetização, letramento e leitura. Destaco, como ponto alto dessa experiência, os contatos

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pessoais com profissionais comprometidas com a educação e sua qualidade. Um dos

importantes frutos desse programa foi o projeto de pesquisa que passei a integrar, juntamente

às professora Ana Lúcia, Adriana Momma e outras colegas formadoras do PNAIC, o qual

pretendeu analisar impactos e desdobramentos do programa. Entre o final de 2014 e durante o

ano de 2015, esse projeto se mostrou uma oportunidade de reflexão ativa sobre a formação

docente e nossas atividades enquanto núcleo formador.

No primeiro semestre de 2014, ao cursar a disciplina “Trabalho docente, práticas

escolares: contribuições da História Cultural e das ciências da linguagem”, ministrada pela

professora Ana Lúcia Guedes-Pinto, pude ampliar meu leque de referências da História

Cultural, consolidar conceitos importantes como o de dialogismo e também incluir novas

perspectivas de análise na tese – em especial, pensando-se na análise discursiva/linguísticas

de elementos colhidos ao longo da pesquisa a partir de leituras de textos do professor Sírio

Possenti, por exemplo. Ao longo das aulas, as leituras e discussões propostas mostraram-se

muito profícuas, em especial, dada a heterogeneidade da turma, com alunos e ouvintes de

várias áreas de atuação. Nesse caso, penso que tal diversidade foi fundamental para ampliação

de horizontes e também para o exercício efetivo de respeito e de admiração pela

multiplicidade.

Nesse mesmo semestre, também fiz parte do Programa de Estágio Docente (PED),

acompanhando a professora Norma Ferreira, na disciplina “Escola, Alfabetização e Culturas

da Escrita”, o que possibilitou maior imersão na esfera da docência do ensino superior,

configurando-se como importante etapa dos fazeres acadêmicos. Ao longo da disciplina, tive a

oportunidade de reler textos teóricos, literários e, em especial, de me relacionar com alunos da

graduação e também ministrar algumas aulas. Inevitável, como se pode imaginar, meu

estranhamento em relação àqueles outros tão diferentes de mim – e por isso, tão importantes,

me ensinando rever e ser mais tolerante. Essa experiência se confirmou como um importante

passo no que se refere à preparação teórica, à mediação de leituras e ao exercício da discussão

coerente no ambiente acadêmico.

Em julho de 2014, participei do COLE (Congresso de Leitura do Brasil) em sua

19ª edição. Apresentei duas comunicações orais, a primeira, em coautoria com as professoras

Ana Lúcia Guedes-Pinto e Ana Cláudia Fidelis e Silva, “Práticas de leitura deleite no processo

de alfabetização: diálogos com a proposta de formação continuada do Pacto/UNICAMP” e a

segunda, individual, versando mais próxima de meus estudos do doutorado, “Práticas de

leitura fruição: discursos, enunciados e diálogos”, trabalho que retomava também reflexões

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desenvolvidas ao longo das disciplinas cursadas por mim até então – sobretudo da disciplina

“Cultura, Educação e Leitura”.

Ainda em 2014, no segundo semestre, segui com os trabalhos de leitura,

intensifiquei análises teóricas que embasam os trabalhos de entrevistas e análises de dados,

retomando questões relativas à HO. Nesse período, participei do Programa de Estágio

Docente (PED), agora, na disciplina “Metodologia do Ensino Fundamental I”, sob condução

da professora Ana Lúcia. Mais uma vez, pude aprofundar contato com as relações docentes e

de pesquisa permeadas e oportunizadas pela esfera acadêmica. Destaco que foi uma disciplina

em que aprendi muito com leituras – como a de Comenius, pensador que me marcou com sua

Didática Magna - e também com o diálogo aberto e franco construído entre a professora Ana

Lúcia e seus alunos. Tanto nessa participação do PED, como na experienciada antes, com a

professora Norma, sublinho a oportunidade de crescer e aprender como aluna e como

professora. Tanto a professora Ana Lúcia quanto a professora Norma não só incentivaram

minha atuação e participação nas disciplinas, desde o planejamento das aulas até a

concretização de atividades, como também impulsionaram minhas intervenções e confiaram

para que eu integrasse ativamente o percurso da disciplina.

No final de 2014, vivi um momento de ruptura e bons auspícios: aprovada em

concurso público, deixei meus muitos anos de atuação na rede privada e me tornei docente de

Língua Portuguesa e Literaturas do IFSP/câmpus Capivari. Nesse novo momento de atuação

profissional, descobri um contexto de trabalho que fomentava o entrelaçamento intenso entre

pesquisa e docência. No IFSP, integrei, até o momento, três projetos de pesquisa/extensão:

Batuque de Umbigada, que se propôs a entender e estabelecer espaço e valorização dessa

manifestação cultural ímpar, ainda muito presente na comunidade negra do município de

Capivari; o Cursinho Popular “Semeando o Futuro”, voltado à população carente do

município, visando ao acesso à universidade pública e de qualidade; o projeto, apoiado pelo

CNPq, “Indústria sucroalcooleira: mais que uma identidade regional”. Cada um desses

projetos pediu uma participação e atenção diferenciadas, mas todos me fizeram cuidar da

perspectiva de uma pesquisa mais aplicada e mais alinhada com questões vivas e pulsantes,

peculiares e intrínsecas à comunidade do município de Capivari. Tal perspectiva de atuação

tem modificado meu modo de conceber a educação e minha atividade docente e penso que

tenho me tornado mais sensível e atenta à necessidade reais dos alunos, de suas famílias e dos

moradores da cidade.

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A partir desse ingresso no IFSP, senti-me incentivada a retomar (ou, melhor

dizendo, começar propriamente) a participação mais ativa em eventos acadêmicos como

congressos e simpósios. Assim, em maio de 2015, participei do I Eplitec (I Encontro de

professores de línguas e tecnologias), realizado pelo IFSP/câmpus São João da Boa Vista.

Nessa ocasião, apresentei o relato de experiência “Leitura fruição: desejo e desafio na sala de

aula”, referente à experiência de projeto desenvolvido com meus alunos do 1º Ano do Ensino

Médio no câmpus Capivari. Nessa comunicação, somei análises desenvolvidas como base

dessa tese à minha atuação como professora no IFSP, propondo que os alunos escolhessem

leituras e as compartilhassem. Desse modo, foi um trabalho que somou um pouco dos estudos

desenvolvidos até então à nova etapa profissional por mim vivida.

Em julho de 2015, participei do XIV Congresso Internacional da Abralic,

realizado na UFPA, em Belém. Apresentei meu projeto com as leituras de Machado de Assis,

realizadas com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental II, quando era professora de um

colégio particular em Campinas, trabalho mencionado neste memorial. Participar desse evento

me proporcionou contato com olhares e perspectivas diversificadas na área da leitura e da

literatura, permitindo diálogos vários com professores e estudiosos da área e também me

instigando a buscar mais em minhas leituras e estudos.

A partir do segundo semestre de 2015, obtive, como incentivo para minha

qualificação acadêmica e profissional, licença de afastamento para concluir o doutorado ora

em fase final. Assim, pela primeira vez desde o início de minha atuação como professora,

estive fora da sala de aula, longe, fisicamente, de meus alunos, exclusivamente dedicada à

leitura, à realização das entrevistas e à escrita do texto desse trabalho. Entretanto, meus alunos

e minhas práticas se fazem presentes, à medida que reflexões e análises se constroem a partir

das experiências e convivências que me proporcionaram.

V. Da tese e do andamento dos trabalhos

Procurei aproveitar meus primeiros meses de afastamento para concluir uma etapa

fundamental desse trabalho: a realização das entrevistas. Inicialmente, quando concebi o

projeto, não conhecia praticamente nada sobre HO e não concebera, ainda, a possibilidade de

trabalhar com entrevistas. Vinda de áreas mais “áridas”, cujas pesquisas, por vezes, se fazem

principalmente com livros (o que, enfatizo, de modo algum diminui a relevância desses

trabalhos), jamais considerei a possibilidade de ser parte da pesquisa e de construí-la tão

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pulsante, a partir de minhas vivências de sala de aula e de depoimentos de colegas e alunos.

No primeiro semestre de 2013, meu primeiro no doutorado, conheci os pressupostos teóricos

da HO e aí se inaugurava uma novo caminhos para as abordagens de meu trabalho.

Entretanto, devido às atividades de docência e formação de professores, vi-me impossibilitada

de começar as entrevistas e o trabalho de análise desse material.

Por fim, após um período de rearranjo profissional, conheci uma pouco mais de

calma e pude me dedicar ao diálogo real com os envolvidos nas práticas de leitura fruição. No

começo do ano de 2015, entre os meses de março e abril, consegui realizar quatro entrevistas.

Em julho e agosto de 2015, realizei as demais – no total, foram oito entrevistas com ex-alunos

do colégio em que trabalhei, feitas presencialmente, e duas concedidas por escrito, via e-mail.

Quatro encontros foram individuais, dois outros, devido à urgência do tempo (meu e dos

jovens), em duplas. Enquanto eu procedia a essas entrevistas, muitas perguntas mais iam se

delineando para mim. Por vezes, percebi-me um pouco frustrada com o que ia colhendo,

notando que muitas expectativas projetadas por mim se esvaíam. No entanto, rememorando

uma importante reunião de orientação com a professora Ana Lúcia, punha-me a pensar que é

preciso sempre rever as expectativas e aprender a observar, a ouvir o que se tem – mesmo

muito diferentes do pretendido, tais palavras são ricas e nos dizem muito, basta acolhimento

para ouvir.

Durante as conversas com os alunos, o papel dos professores leitores foi me

chamando cada vez mais a atenção. Assim, decidi fazer entrevistas também com alguns

professores, citados pelos alunos, protagonistas na prática da leitura fruição. Entrevistei,

então, presencialmente, quatro ex-colegas de trabalho, sendo que três continuam em sala de

aula e um aposentou-se recentemente. Também realizei uma entrevista por escrito (e-mail),

tendo em vista a impossibilidade de um encontro presencial com esse meu colega professor.

Essas conversas com meus colegas não tinham sido uma etapa prevista por mim inicialmente,

quando me lancei nessa empreitada. Contudo, ao ouvir meus ex-alunos e ao perceber a

relevância do professor leitor, pareceu-me importante dar voz também a este sujeito, para

conhecer o seu lado da história, sua participação no projeto e saber um pouco mais sobre suas

percepções sobre o alcance da leitura fruição. Desse modo, o referencial teórico da HO foi

fundamental, tendo em vista que os dados desta pesquisa se constroem a partir de diferentes

versões (PORTELLI, 1996).

E chego, enfim, ao momento final. Por vezes, pensei que escrever um memorial

tinha um quê de egoísmo, de excesso de importância a uma história comum, como tantas

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outras, menos interessante, com certeza, que a de muitos. Mas, como se diz, todos temos uma

história, temos necessidade de histórias – e talvez, temos, por vezes, de (re) construir a nossa.

E como afirma Michèle Petit: “Talvez toda pessoa que trabalha com leitura deveria pensar em

seu próprio percurso como leitor” (PETIT, 2013, p.17). Eis o meu – que, longe de ter sido

concluído, vê neste trabalho uma pausa para refletir, mas nunca um ponto de chegada

definitivo. Viver é preciso, ler é preciso – e pensar sobre esses caminhos e essas leituras nos

faz respirar, ter uma pausa para novas empreitadas e novos maravilhamentos.

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1. A escola e a(s) leitura(s)

1.1. Pressupostos teóricos: passeios pelos bosques da teoria

Finalmente, numa bela manhã a comissão saiu da biblioteca e foi entregar o relatório ao comando supremo; e, diante do Estado-maior reunido, Fedina expôs os resultados da investigação. Seu discurso era uma espécie de compêndio da história da humanidade, das origens aos nossos dias, no qual todas as ideias mais indiscutíveis para os bem-pensantes da Panduria eram criticadas, as classes dirigentes denunciadas como responsáveis pelas desventuras da pátria, o povo exaltado como vítima heroica de guerras e políticas equivocadas. Era uma exposição um pouco confusa, com afirmações muitas vezes simplistas e contraditórias, como costuma acontecer com quem abraçou há pouco novas ideias. Mas sobre o significado geral não podia haver dúvida. (CALVINO, 2001, pp.78-9)

Este é um trabalho ancorado na experiência: incentivado por perplexidades,

incertezas e movido por inquietações. Como feito pelo general Fedina, muitos foram os livros

consultados, cada um levando a vários outros; muitas ideias conduzindo a tantas outras; fios

emaranhados, equilíbrio esquálido do processo de conhecer (a si e ao outro). Assim, a

exposição pode talvez ficar um pouco confusa, mas creio fornecer indicativos suficientes. E

também, como Fedina, movi-me a partir da experiência real com os livros e com leitores –

sendo eu mesma parte integrante dos processos, práticas e versões aqui analisados. Farei

minha exposição, que pode ser um discurso com muito mais a dizer ainda, mas é, sobretudo,

tentativa de busca e de partilha, conversa com o outro – seja esse outro, aluno, professor, livro

ou autor.

Comecemos, pois, pelos diálogos – concebendo que toda pesquisa, bem como

todo e qualquer enunciado, concebido como atividade verbal – constroem-se pelo ir e vir de

palavras, movimento contínuo, dialético, espesso de sentidos e transbordante de

possibilidades de análise. Partimos, então, do contexto/espaço em que se instaura essa

pesquisa: a escola. Embora faça parte do senso comum a ideia dessa instituição como aquela

que legitima e orienta a prática de leitura, não é preciso muito esforço para se perceber que o

dito e o praticado divergem – e muito. A escola, por vezes, configura-se como ambiente hostil

quando se pensa na leitura como prazer. Tomemos como exemplo o curta The Fantastic

Flying Books of Mr. Morris Lessmore (2011), premiado com o Oscar de melhor animação.

Trata-se de uma história de amor aos livros e ao ato de ler. A animação narra as aventuras

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entre livros de Mr. Morris Lessmore – desde uma sugestiva tempestade que transporta o

personagem ao mundo incrível da leitura (do qual ele não mais sairá) até o fim de sua vida –

no desfecho, a metáfora que sugere a morte do protagonista apresenta-se delicadamente

construída a partir de imagens sobre leitura, cumplicidade e partilha. Começo invocando a

lembrança desse filme, uma vez que tal obra ressalta que, por mais que haja discussões,

celebrações, dúvidas e medos a respeito da vitalidade dos livros e da leitura, o ato de ler

continua vivo e servindo como ponto de partida seja de análises acadêmicas, seja como tema

para outras produções críticas e/ou artísticas. Interessante notar, ainda sobre o citado curta-

metragem, que as práticas de leitura são retratadas em espaços como uma cidade qualquer, a

biblioteca aconchegante, lar do personagem – e não há qualquer menção à escola. A trajetória

do personagem é ancorada em suas experiências de leitura prazerosa e compartilhamento

destas com outras pessoas, mas nenhum episódio faz referência ao ambiente escolar que

poderia ser descrito como mais tradicional.

Em contrapartida, ainda tomando referências cinematográficas, cabe citar

Escritores da Liberdade (Freedom Writers), de 2007, dirigido por Richard LaGravese,

produção baseada em relatos reais de Erin Gruwell. Trata-se da história de uma jovem

professora que consegue não só aproximar os alunos da leitura, mas também promover e

estimular reações de paixão pelo livro e pela história que ele traz (no caso específico do filme,

O diário de Anne Frank) – e aqui podemos conceber paixão não só como o gosto, o apego,

mas também como o transbordamento de sentimentos como raiva, incompreensão e frustração

do leitor que, decepcionado, briga com a obra, se revolta e quer reescrevê-la. A escola, nesse

caso, é o palco que oportuniza o contato, o conhecimento, o prazer – ainda que nesse prazer

também haja o desconforto e incompletude. Os alunos problema da professora se revelam

leitores ativos e críticos a partir de movimentos de identificação entre eles e a história de

Anne Frank. Por meio dessa obra, os jovens e a professora se envolvem, se aproximam, se

dão a conhecer. A leitura instaura-se como elo e como oportunidade de crescimento.

Esses dois filmes nos introduzem à questão central deste trabalho: poderá, a

escola, ser o espaço da leitura do prazer? Como e qual(is) será (ão) essa(s) leitura(s)? É

possível, ainda que haja limitações diversas e obstáculos, que esse ambiente tão consagrado

também proporcione o (re)encontro com a leitura prazerosa que dá sentido, alimenta e

modifica, de modo profundo, a trajetória de alunos e professores? Parece-me que é preciso,

para pensarmos sobre tais questões, analisar que escola(s) é(são) essa(s), que leituras são

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propostas e que respostas são dadas por alunos e professores – tanto às práticas quanto às

ideias que as ancoram.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa (do Ensino

Fundamental II e do Ensino Médio) ressaltam a necessidade de diálogo, sobretudo, no que

tange ao movimento de escuta do aluno. Nos PCNs referentes aos terceiros e quarto ciclos do

Ensino Fundamental, lê-se: “a razão de ser das propostas de leitura e escuta é a compreensão

ativa e não a decodificação e o silêncio (...)” (BRASIL, 1998, p.19). A ideia aqui proposta, a

da interação, da leitura que contemple o outro e se construa em diálogo, no qual o aluno

elabore significados e vá além do que é prescrito e delimitado pela escola, embora possa

parecer dada, é, na verdade, algo que talvez ainda se mostre incipiente se observarmos

algumas das práticas escolares mais comuns e efetivamente exercitadas. Exigências de

exames externos e expectativas culturais construídas sobre as “boas obras”, as “que valem e

devem ser lidas”, podem, por vezes, suplantar qualquer tentativa de debate e se impor, de

modo sufocante, mesmo quando revestidas das melhores intenções. Vale ainda salientar que,

como se discutirá adiante, é possível que o obrigatório seja agradável, alimentando a “alegria

cultural” e que o sonho da escola como espaço de encontros significativos se torne palpável

(SNYDERS, 1993) para alunos e professores – entretanto, cabe refletir sobre como o

obrigatório circula na escola e como é percebido por professores e alunos, principalmente, no

que concerne às práticas de leitura.

Se, por um lado, a escola parece se esforçar para fomentar o gosto de leitura (o

que não garante, vale dizer, leitura de qualidade e significativa para formação do sujeito) e

sustentar a importância deste por meio de práticas diversas, por outro, pouco espaço se dá, via

de regra, para que os alunos e mesmo professores palpitem, opinem sobre aquilo que lhes é

previsto ou prescrito por currículos e planejamentos ou mesmo escolham mais livremente os

textos. Conforme atestam políticas públicas e perspectivas acadêmicas, bem como o senso

comum, a escola consolidou sua posição enquanto instituição autorizada no que diz respeito à

sistematização de práticas de leitura e escrita, desempenhando o papel daquela que determina

ou corrobora o que é bom e pode e deve ser lido3. Assim, parece haver se naturalizado uma

percepção de qualidade inquestionável quanto às leituras – em especial, as literárias -

propostas aos alunos via avaliações e verificações institucionalizadas. Portanto, ainda que não

seja recente o debate, cabe rever e pensar o questionamento acerca da validade e pertinência

3 Por vezes, a escola reproduz e enfatiza leituras escolhidas e consideradas válidas, modelares, por exemplo,

pela universidade e pelos críticos literários. Acerca disso, mais à frente, comentarei a questão do estabelecimento do cânone.

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(ou não) das práticas de leitura propostas pela escola, uma vez que esta é vista como baliza

obrigatória, que define quais obras têm ou não qualidade e devem ser lidas e apreciadas pelos

estudantes. Afigura-se também importante continuar o questionamento sobre o discurso

institucional, que ainda é pouco (ou insuficientemente) problematizado, efetivamente, em

relação à validade ou não de suas escolhas, por exemplo, no que diz respeito às leituras

obrigatórias. Pode-se justificar isso quando se considera que, embora haja trabalhos e análises

vários, pouco perceptíveis são as mudanças efetivas nas práticas escolares, no sentido de se

buscar resultados mais expressivos quanto ao gosto dos alunos pela leitura e quanto às

habilidades desenvolvidas por crianças e jovens4.

A partir de tais considerações, proponho, inicialmente, tomar a prática de leitura

fruição, analisando as leituras que são escolhidas pelos professores e partilhadas no início das

aulas como leituras prazerosas, delineando, a princípio, algumas perspectivas de análise a

partir de conceitos bakhtinianos. Como explanado anteriormente, meu projeto se iniciou

propondo a análise da leitura fruição enquanto prática diária de um tradicional colégio

particular de Campinas/SP, onde fui professora durante oito anos. Trata-se de um colégio

centenário, localizado na região central da cidade. É uma escola de grande porte, que atende

alunos de todos os segmentos da Educação Básica: Ensino Infantil, Fundamental (I e II) e

Médio. O público é constituído, majoritariamente, por crianças e jovens das classes média e

alta, que têm acesso privilegiado a mídias e produtos culturais, como livros, revistas, jornais

jogos, espetáculos diversos, a viagens tanto de estudo do meio quanto de lazer. Em seu

Projeto Político Pedagógico (PPP), a escola privilegia o processo de ensino-aprendizagem

ancorado em perspectivas críticas e reflexivas, promovendo atividades que permitam

relacionar conteúdos à vivência individual. Segundo o PPP, alunos e professores são

protagonistas em um ambiente de diálogo, seriedade, respeito e formação consistente, no que

tange à sua formação cidadã e intelectual:

Temos como objetivo oferecer atividades que sejam significativas aos nossos alunos, entendendo que a organização destas deve fazer sentido a todos os envolvidos, assim, importa-nos a compreensão das práticas e dos fazeres no ambiente escolar bem como, o estabelecimento de relações entre os diferentes conteúdos e entre eles e as experiências pessoais. (PPP, 2009, p.7

4 Avaliações como o PISA, Provinha Brasil e ENEM confirmam que habilidades e competências leitoras dos

alunos brasileiros estão, em geral, muito aquém do que se espera. Nesse âmbito, entretanto, é preciso se discutir, ainda, os parâmetros dessas avaliações, como e o que, de fato, se pretende avaliar, e relativizar seus resultados, tendo em vista que são instrumentos que cerceiam atuações e práticas, elegendo certos textos e certas formas de ler. Considerá-las como instrumentos absolutos e seus resultados como imagens fiéis das práticas de leitura pode ser uma forma simplista e incompleta de se olhar para a questão.

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5)

Em todos os segmentos de ensino, a escola concebe o trabalho com a linguagem,

em especial, a verbal, como um dos eixos norteadores das atividades. A partir do Ensino

Fundamental II, enfatiza-se a importância de atividades de leitura, escrita e expressão oral

embasadas na concepção da discursividade e da dialogicidade, conforme a perspectiva de

Bakhtin (2003 e 2009). No Ensino Fundamental II, a leitura ganha ainda mais destaque, aliada

à ideia de um conhecimento mais sistematizado e crítico das estruturas linguísticas, de modo

que o desenvolvimento dos alunos acerca da língua e da linguagem possa se constituir como

oportunidade de amadurecimento para elaboração de textos escritos e orais. Desse modo, a

leitura, no PPP, é sublinhada como atividade pautada pelo diálogo e que também favorece o

crescimento individual, conforme fundamentado por Montibeller (2005).

A leitura fruição, nesse contexto, pode ser concebida como estratégia auxiliar para

que se fundamente e se fortaleça a formação do leitor e mesmo como momento de refrigério,

de leveza, como relata o aluno Davi6, um dos entrevistados ao longo deste trabalho7:

Eu sempre me senti muito envolvido ao perceber que os professores escolhiam textos a dedo para

ler para minha classe. Sempre prestava atenção para entender o porquê da escolha.

Não custa reforçar o quanto ler é importante, e, no Ensino Médio, por exemplo, em meio a tantas

provas, estudos e obrigações, às vezes nos falta tempo para ler um bom texto pelo simples motivo

de apreciá-lo, de refletir. E nesse ponto também, a leitura fruição se faz presente e importante.

Traz sempre leveza para o enfrentamento de toneladas de matérias e faz com que a aula flua

muito mais fácil na sequência.

O jovem Davi, hoje estudante universitário, em sua análise, reconhece a leitura

fruição como prática que reforça a importância da leitura; caracteriza o momento desse

encontro como de leveza, sem perder a legitimidade. Ora, dentre suas práticas pedagógicas, a

escola em que esse trabalho vem se desenvolvendo, desde os anos 1990, procura exercitar

protocolos de leitura fruição ao longo de todos os seus segmentos. Inicialmente, eram leituras

praticadas pelas bibliotecárias tendo como alvo as turmas de Educação Infantil e Fundamental

I. Gradativamente, as rodas de leitura foram ganhando o espaço das classes durante as aulas e

os professores foram desenvolvendo com suas turmas momentos de leitura fruição, de modo

5 Documento consultado durante a pesquisa de campo. 6 Todos os nomes de ex-alunos e professores foram substituídos por nomes fictícios para preservar a identidade

dos entrevistados. 7 A caracterização e descrição detalhadas dos ex-alunos, professores e da escola encontra-se no terceiro capítulo

deste trabalho.

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mais sistematizado, sem preocupação com aferição ou avaliação do material lido. Ano após

ano, percebeu-se que tais momentos de leitura do prazer foram se tornando não só uma prática

peculiar e agradável às crianças, como também uma possibilidade pedagógica outra, a de

continuar na escola o que muitas famílias sempre fizeram por seus filhos, o “ler histórias”,

estimulando o gosto pela leitura8. Essas atividades de leitura integram, como dito acima, o

cotidiano de atividades do colégio e amparam-se num discurso que pretende promover uma

abertura para participação mais efetiva, partilha de repertório e consolidação das práticas de

leitura dos professores e dos alunos. Desse modo, os professores devem escolher textos de

qualquer gênero e temática e partilhar suas preferências com os alunos (embora estejam

atentos quanto à adequação do tema e da linguagem à idade, os docentes nunca eram

impelidos a essa ou àquela escolha), enfatizando gestos de leitura, colocando-se em posição

de modelo e tendo suas escolhas, muitas vezes, vistas como “referências culturais” pelos

alunos.

Em 2009, a prática dessa leitura do prazer já era considerada um aspecto crucial e

ponto diferenciador das práticas pedagógicas da escola. Ancorado no compromisso de

formação de leitores críticos, incentivando e valorizando o caráter dialógico e interacional das

práticas de leitura e convidando à apreciação estética mais consistente, o colégio decidiu,

então, estender a leitura fruição a todas as turmas, de todas os anos, em todos os segmentos.

Em 2010, a prática da leitura fruição consolidou-se como “oficial”9: todos os dias, cada

professor deveria começar suas atividades lendo para sua turma. Os textos eram de escolha

pessoal do docente – literatura, jornal, crítica, música e até filmes, peças publicitárias,

quadros, enfim, os mais diversos gêneros, sobre os mais diversos assuntos. Caberia a cada

educador selecionar aquilo que julgasse pertinente partilhar com seus alunos nos primeiros

dez ou quinze minutos da primeira aula do dia, todos os dias. A ideia era que o professor

fosse, de fato, modelo de leitor e que pudesse contribuir para incremento do repertório de

mundo dos alunos; na prática, que lesse em voz alta aquilo que tivesse escolhido e, em troca,

tivesse os “ouvidos”, a atenção e a cumplicidade de seus alunos. Na verdade, objetivava-se

bem mais que isso: almejava-se compartilhar um gosto, um desejo, um encontro, uma

curiosidade, uma admiração ou até espanto – repartir a complexa experiência de ser leitor e,

quem sabe, como postula Proust, promover o encontro do leitor consigo mesmo:

(…) todo leitor, enquanto está lendo, é o leitor do seu próprio eu. O trabalho do escritor é simplesmente uma espécie de instrumento ótico oferecido ao

8 Para tais considerações, parto das considerações de Heath (1982), Pennac (1993), Petit (2008). 9 Discutiremos adiante que o ideal do projeto não encontrou, infelizmente, ampla adesão dos professores.

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leitor para lhe permitir distinguir o que, sem o livro, ele talvez nunca fosse vivenciar em si mesmo. E o reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o livro diz é a prova da sua veracidade. (PROUST, 2008, p. 486)

Ressalte-se, nesse processo, a importância do papel e da performance do

professor, leitor e “transmissor” das leituras e seus conteúdos, como enfatiza Petit: “Para

transmitir o amor pela leitura, e acima de tudo pela leitura de obras literárias, é necessário que

se tenha experimentado esse amor” (PETIT, 2008, p. 161). Leitores, experimentadores desse

amor, professores poderiam partilhá-lo e, quiçá, contaminar com seu exemplo e suas

vivências de leitura. É possível ainda se pensar que esse processo almeja também, por meio

do diálogo e da interação (como explicitarei adiante), contribuir para a construção individual

dos percursos de leitores e da subjetividade, sobretudo, dos alunos. Nos jogos propostos pelas

práticas de leitura, a constituição da identidade é entendida como obra individual, cada leitura

e cada leitor, nesse contexto, são únicos (KLEIMAN, 2010).

Enfim, estimulada pela experiência e sendo entusiasta dessa prática, principiei,

timidamente a delinear algumas reflexões sobre a leitura fruição. Por meio de anotações de

campo elaboradas entre 2011 e 2014, além de entrevistas (2015) e análise de exposições feitas

pelos alunos (entre os anos de 2012 a 2015), propus-me a traçar considerações acerca das

práticas escolares relacionadas à fruição. Assim sendo, um primeiro ponto fundamental é

delinear brevemente o que tenho concebido como leitura, especialmente no ambiente escolar.

Como define Orlandi : “A leitura (...) não é uma questão de tudo ou nada, é uma questão de

natureza, de condições, de modos de relação, de trabalho, de produção de sentidos, em uma

palavra: de historicidade.” (ORLANDI, 2002, p.9) – isto me faz pensar nas tantas práticas,

performances e atividades que são denominadas “leituras” como sendo primordialmente

diálogos, processos e percursos históricos que integram vivências individuais, coletivas,

históricas e culturais. E mesmo quando obrigatória, a leitura pode trazer em si alegria e

satisfação (SNYDERS, 1993)10.

É concepção basilar deste trabalho, portanto, a leitura como diálogo, momento de

interlocução peculiar na sala de aula. Obviamente somada a essa concepção está a da leitura

como processo cognitivo e de linguagem, “(...) um processo mental de vários níveis, que

muito contribui para o desenvolvimento do intelecto” (BAMBERGER, 2008, p.10). Ou ainda,

conforme bem sintetiza o verbete leitura, do CEALE11:

10 Discutirei mais detalhadamente tais ideias no desenvolvimento deste capítulo. 11 Verbete elaborado por Delaine Cafiero Bicalho para o glossário do CEALE – Centro de alfabetização, leitura e

escrita da UFMG; disponível em http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/leitura; acesso

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A leitura é tanto uma atividade cognitiva quanto uma atividade social. Como atividade cognitiva, pressupõe que, quando as pessoas leem, estão executando uma série de operações mentais (como perceber, levantar hipóteses, localizar informações, inferir, relacionar, comparar, sintetizar, entre outras) e utilizam estratégias que as ajudam a ler com mais eficiência. Como atividade social, a leitura pressupõe a interação entre um escritor e um leitor, que estão distantes, mas que querem se comunicar. Fazem isso dentro de condições muito específicas de comunicação, pois cada um desses sujeitos (o escritor e o leitor) tem seus próprios objetivos, suas expectativas e seus conhecimentos de mundo.

No caso da leitura fruição, acrescentaria que, além do escritor e do leitor acima

referidos, temos a figura do professor, o qual é visto como mediador, mas que, ao mesmo

tempo, também é leitor para o aluno e para si. O aluno, por sua vez, na maior parte dos casos

observados e dos depoimentos ouvidos nesta pesquisa, tem acesso ao texto exclusivamente

pela voz do professor – não tem, portanto, na maior parte dos casos, acesso visual ao texto;

precisa confiar e fiar na voz do professor que lê para a turma. Estabelece-se, portanto, uma

teia intrincada de interações. Trata-se de uma prática que se concretiza pela interlocução real e

acontece quando temos um quadro rotineiro e simples: um professor, leitor, que lê, em voz

alta, um texto de sua escolha para os alunos no início do dia de trabalho. Sabemos que,

quando se trata de crianças menores (Educação Infantil e início do Ensino Fundamental), tal

prática – que recebe diversas denominações – é relativamente comum. Contudo, ao

avançarmos para os anos finais do Ensino Fundamental (Ensino Fundamental II), bem como

para o Ensino Médio, essa figura do professor leitor, por vezes, vai se esvaindo, talvez porque

os alunos sejam já considerados leitores proficientes, talvez por premências outras dos

docentes – talvez por ambas justificativas e outras mais. A leitura fruição vem recuperar, de

certo modo, e ressignificar a partilha do texto entre os alunos maiores e os professores. Ora,

trata-se de um diálogo, uma situação de enunciação, como prevista por Bakhtin (2009): de um

fenômeno social da ordem da interação verbal que pode ser decomposto em duas camadas – a

da “situação social mais imediata”, caracterizada pelas “condições reais da enunciação” (o

professor lendo, naquele momento, o texto para os seus alunos, que “respondem” de

diferentes modos a essa performance, naquele espaço, naquele cenário social e cultural) e a

situação extralinguística marcada pelos lugares sociais dos interlocutores (grosso modo, por

contextos mais amplos e exteriores ao texto: que texto é esse? De onde veio? Como foi

escolhido e por quem? Para quem? O que diz para o professor e para os alunos (e o que diz

sobre esses interlocutores)? Como diz? Que efeitos de sentido, que reações causa?). Portanto,

em 13 out. 2015.

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a leitura fruição é uma forma que assume a palavra dirigida diretamente a determinados

interlocutores, os quais formam, por sua vez, um auditório social a ser observado, respeitado,

considerado com cuidado em suas idiossincrasias. Outrossim, como se trata de interlocução e

diálogo, a palavra, aqui concebida como metonímia para a leitura, em especial, a de fruição,

comporta as “duas faces” em veemente jogo:

Ela [a palavra] é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação a outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 2009, p. 117)

É preciso lembrar ainda que, para Bakhtin, a palavra existe como depositária

plena das ideologias que circulam e que são construídas, de modo dinâmico, pelas interações

sociais; é sempre carregada de conteúdo social, de um sentido ideológico ou vivencial, ou

seja, um valor que a perpassa e que construirá novas possibilidades de diálogo entre

determinados interlocutores em situações reais de uso da língua – o que deve contemplar,

como já assinalamos, os aspectos extraverbais. Sendo assim, como analisar as leituras

apresentadas aos alunos pelos professores, compreendendo que em tais escolhas estão

implicadas seu (dos professores) direito à palavra, à enunciação? O que essas palavras dos

docentes – consolidadas na voz dada a suas escolhas, de suas leituras – nos dizem sobre as

ideologias que circulam na sociedade, seja sobre escola, seja sobre mercado, seja sobre

cultura e lazer? O que podem nos dizer sobre o exercício de liberdade e a possibilidade de se

conversar além da disciplina, do cânone literário, dos ditames da sala de aula e das obrigações

do cotidiano escolar?

Ao analisarmos essa palavra, veremos que ela se concretiza e torna-se vívida no

enunciado, fenômeno social que comprova a interação verbal e a extralinguística (pois carrega

em si um contexto muito mais amplo e rico), é um elo na cadeia dos atos de fala: cada

enunciação é ressonância ideológica e traz em si o que se disse antes e vai direcionar também

o que se dirá a seguir (BAKHTIN, 2003). Assim, uma enunciação prolonga e carrega em si

outros enunciados que a precederam e trava polêmica com eles, traz reações ativas sobre si e

abre caminho para novas compreensões que também se tornarão enunciados – ou seja,

teremos sempre uma espiral em que círculos concêntricos – as enunciações anteriores –

reverberam e se estendem em novos (e renovados) movimentos. Bakhtin assinala: “Toda

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compreensão da fala viva, do enunciado é de natureza ativamente responsiva (embora o grau

desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou

naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante” (Ibid.: p.271). Acrescente-

se a isso que, por meio e na enunciação, os indivíduos vão se formando e no contexto da

escola, professor e aluno vão se (re) constituindo, tendo em vista que cada leitura

desenvolvida, realizada, é campo de tensões, construção constante de significados. Nessa

perspectiva, podemos ainda redefinir a leitura e todo esse processo aqui estudado, o da leitura

fruição, como “forma de atribuição contínua de significados” (SILVA, 2005 p.30).

Como prática e gesto de leitura, como palavra que se concretiza em enunciação, a

leitura fruição sobre a qual se discute neste trabalho, é uma ponte, veículo, meio e modo de

aproximação entre professores e alunos, extrapolando questões acadêmicas e ampliando

potencialidades das relações construídas em sala de aula12, conforme relatam professores e

alunos entrevistados. É modo de ler e dar-se a ler; é possibilidade de reconhecer-se num

espaço de leitura e de partilhar saberes e apreciações – tanto para os alunos quanto para os

professores. Enfatizo, ainda, que é um processo dinâmico e que comporta sentidos múltiplos

que vão se ressignificando, se reelaborando em movimentos de revisão, construção e

desconstrução a cada nova leitura, a cada novo diálogo que se estabelece e se põe em cena.

Esses sentidos se constroem também a partir de como o texto se materializa, de seus diversos

suportes –, como assinala Chartier:

As obras, mesmo as maiores, ou sobretudo, as maiores – não têm sentido estático, universal, fixo. Elas estão investidas de significações plurais e móveis, que se constroem no encontro de uma proposição com uma recepção. Os sentidos atribuídos às suas formas e aos motivos dependem das competências ou das expectativas dos diferentes públicos que delas se apropriam. Certamente, os criadores, os poderes ou os experts sempre querem fixar um sentido e enunciar a interpretação correta que deve impor limites à leitura (ou ao olhar). Todavia, a recepção também inventa, desloca e distorce. (CHARTIER, 1994, p. 9)

Acredito que a cada leitura, são os alunos, juntamente aos professores, aqueles

que constroem o sentido do texto e do ato de enunciação vivenciado naquela situação – a da

fruição (como o farão com as demais interações verbais):

(...) os leitores apropriam-se dos textos, lhes dão outro significado, mudam o sentido, interpretam à sua maneira, introduzindo seus desejos entre as linhas: é toda a alquimia da recepção. Não se pode jamais controlar o modo como um texto será lido, compreendido ou interpretado. (PETIT, 2008, p. 26)

12 Considerações mais específicas sobre tais aproximações serão desenvolvidas no capítulo 4 desta tese.

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Além dessa saudável (e salutar) falta de controle (pois é a possibilidade de

extrapolação e de construção única que cada um exerce a partir e pelo texto), há de se

considerar aspectos outros no caso da leitura fruição: o professor que lê, seu posicionamento

corporal em sala, seu tom de voz, sua apresentação pessoal da obra e sua história com o texto

também contribuem para esse processo que, como se verá, está muito além de ouvir,

compreender e esquecer (talvez para sempre) o que foi partilhado ali, no começo das aulas.

A partir dessas considerações, parece-me possível questionar: que enunciados

estão em jogo quando os professores são chamados a escolher suas leituras e concretizam suas

preferências? Como estão dialogando com os discursos da escola, enquanto legitimadora e

“senhora” dos referenciais, aquela que, em geral, dita escolhas e cânones e como estão se

portando como aqueles que são modelo de leitura? O que querem dizer a seus alunos com sua

escolha e com aquela leitura, naquele dia, naquele espaço? Como ler as entrelinhas dessa

enunciação complexa instaurada pelo jogo aparentemente simples em que um professor lê

para seu aluno? Como esses alunos leem esse momento? Como leem esse texto, trazido pela

voz e pelas mãos de outrem? Como eles, jovens, analisam as escolhas, o que pensam desses

textos diversos e dos professores que partilham suas escolhas? São muitas questões, muitas as

reflexões possíveis13.

Numa consideração inicial, cabe notar que os alunos, e mesmo os professores,

normalmente reagem (no melhor sentido bakhtiniano) aos discursos escolares, de modo a,

simultaneamente, negá-los – isso pode ser notado em relação às leituras obrigatórias, em

especial, no Ensino Médio, mas, por vezes, a reforçar encaminhamentos, convenções e

clichês. A escola, por vezes, tem uma postura firme (talvez, em alguns casos, inflexível) em

relação a seguir listas de leituras obrigatórias. A qualidade das obras presentes nessas listas

pode ser relativizada e precisa ser compreendida como construção social e cultural, como

alerta Abreu (2006) ao problematizar, por exemplo, a questão dos rankings de best-sellers,

bem como das leituras canônicas escolares, consideradas por muitos como as melhores e mais

válidas (embora muitos assumam que nunca tenham lido os livros proclamados como os

melhores). De fato, a escola tem autoridade para orientar processos e mesmo indicar obras

ditas importantes para a formação linguística e cultural do aluno, conforme defende o

professor Georges Snyders (1993): a instituição pode ser um espaço privilegiado para o

incremento cultural, para o acesso a obras e autores. Nesse ambiente, professor se destaca

13 Pretendo traçar respostas às questões aqui propostas no capítulo 4, quando se procederá à análise dos relatos de

ex-alunos e professores.

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como um modelo de leitor cujo espaço e influência são considerados privilegiados, dada a

persistência e a possibilidade de estreitar laços com seus alunos, bem como o conhecimento e

a experiência que detém, enquanto especialista.

Entretanto, há que se questionar os discursos que permeiam e baseiam tais

práticas, bem como pensar em atividades que possam enriquecer e alterar positivamente as

atividades escolares. Para tanto, é mister recuperar de modo breve e panorâmico como se

construiu histórica e socialmente a leitura na escola – sobretudo os mecanismos de imposição

e pressão que contrastam com e nos permitem falar em liberdade, pressuposto da leitura

fruição, como farei a seguir.

Até aqui, concentrei-me na ideia da leitura como processo dialógico, ou ainda,

como prática dialógica. Neste sentido, vale recuperar os conceitos de prática e de

representação, tão imbricados um no outro e tão caros para entendermos os fios que tecem

esta trama aqui analisada. Primeiramente, vale destacar que são, de fato, as práticas de leitura

– e não esta em si – que está em foco: “(...) na escola, não é a leitura que se adquire, mas são

maneiras de ler que aí se revelam” (HÉBRARD, 1996, p.37). Refletindo sobre suas

experiências e práticas como professora de educação infantil, Silva (2008) recorre a Certeau

(1985) para pensar como acontecem algumas práticas escolares, bem como a participação não

só dos alunos e professores, mas de outros sujeitos fundamentais da comunidade escolar,

como pais, porteiros, seguranças da escola e destaca a inventividade de cada um deles. Estes,

como aponta Certeau (1985), fazem das práticas formas de enfrentamento, de defesa frente à

vida – por vezes, os diversos atores do contexto escolar movem-se e caçam alternativas para

transformar práticas, o que inclui, também, um intenso jogo de representações.

Para definir a ideia da leitura como prática, recorro à definição de Chartier (2002)

- práticas como as ações efetivas, aquilo que, de fato se constrói, que constrói o mundo; os

atos concretos – o que não quer dizer que as práticas se reduzam a mera conformidade ou

cumprimento de protocolos institucionais, por exemplo, no caso da escola. Mais que isso, as

práticas se revelam movimentos diversos, como uma caça furtiva (CERTEAU, 2012). As

práticas são, assim, ordenadoras, pois delimitam distâncias e divisões, mostrando como e o

que, de fato, constrói o mundo. As práticas contêm em si, ainda, um elemento ético

fundamental, como destaca Silva (2008), à medida que inauguram um novo espaço e uma

vontade de ser, existir enquanto defesa e resposta à ordem e aos fatos:

O ético é a recusa à identificação com a ordem ou com a lei dos fatos. É o abrir de um espaço. Um espaço que não é fundado sobre a realidade existente mas sobre uma vontade de criar alguma coisa. Assim, na

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multiplicidade dessas práticas cotidianas, dessas práticas transformadoras da ordem imposta, há constantemente um elemento ético. Isto é, uma vontade histórica de existir. O que também deve ser restaurado como realidade histórica das práticas cotidianas. (CERTEAU, 1985, p.8 apud SILVA, 2008, p. 35)

As práticas, então, dão corpo a operações diversas, fazem encarnar o que era

vontade de ser, de existir historicamente – desse modo, como assinala Silva (2008), faz-se

salutar aproximar-se dos sujeitos, escutar suas vozes e buscar entender como ressignificam as

experiências, como puseram em cena novas práticas ou recriaram/redimensionaram outras –

no nosso caso, interessam-nos, sobretudos, as escolares relacionadas à leitura. Ora, a

percepção dessa presença concreta, possibilitada pela prática, é acessada por nós via

representação – outro conceito fundamental para este trabalho. Como Chartier , considero a

leitura como “(…) uma operação abstrata de intelecção: é pôr em jogo o corpo, é inscrição

num espaço, relação consigo ou com o outro. Por isso devem ser reconstruídas as maneiras de

ler próprias a cada comunidade de leitores (...)” (CHARTIER, 1991, p. 181). Para entender

esse ato, que é prática, gesto e componente ele mesmo de representações e gerando ainda

outras, cabe contemplar o conceito de representação. Segundo o mesmo autor, as

representações se realizam no discurso e sempre se constroem a partir de outras; são formas

estabilizadas, autorizadas e reconhecidas; historicamente datadas e partilhadas por

determinado grupo e mediadas por jogos de força e poder (CHARTIER, 2002). Trata-se,

portanto, de esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o

presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado.

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.(Ibid.: p. 17).

Também é fundamental assinalar que diferentes representações estão em

permanente disputa de poder, originadas pelos lugares em que nascem. Desse modo, cabe

investigar que representações socialmente estabelecidas estão em jogo no caso da leitura e,

em especial, da leitura fruição. Chartier (2002) estabelece a ideia de representação como

forma simbólica – como tal, são “determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam”.

No ambiente escolar, espaço em que se desenrola a prática ora investigada, a da leitura

fruição, há permanente jogo de forças – alunos, professores, pais, funcionários e comunidade

escolar envolvidos em tensões e expectativas que mobilizam diferentes representações e,

consequentemente, se concretizam em práticas diversificadas – logo, tanto as representações,

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modos de apreender o real, como as práticas, o que seria real, palpável em si, travam intensas

disputas e ocupam espaços ora comuns, ora diferenciados, não raro se entrelaçando e se

permeando. Aqui cabe falar ainda que os diferentes sujeitos, podem ser ditos consumidores,

usuários, e lançam mão de diferentes táticas para enfrentar as estratégias (ou mesmo outras

táticas) (CERTEAU, 2012) em exercício na instituição escolar.14

Voltando à questão da imagem, é possível conceber a construção de uma

(poderíamos dizer) representação bastante difundida, sobre a importância da leitura e do papel

da escola na fundamentação e legitimação das práticas que tornariam as leituras efetivas e/ou

eficazes. Ler é importante, é fundamental, a escola deve incentivar e motivar seu aluno –

encontramos nesse enunciado uma construção histórica bastante arraigada e naturalizada para

muitos. No caso desta pesquisa, considerando-se o projeto institucional que ancora a leitura

fruição, podemos afirmar que há uma representação que se relaciona ao clichê acima citado,

mas que, dadas as particularidades e as propostas pedagógicas específicas do colégio, tenta

elaborar para si e para sua comunidade escolar, uma representação peculiar, que vai proclamar

essa prática como diferenciadora e basilar para a formação crítica do aluno,15 bem como

exercício tomado como diferencial das práticas de leitura componentes do cotidiano escolar.

Dito de outro modo e complementando, temos, aqui, a análise de dizeres sobre uma prática

que, antes de mais nada, se configura como parte de um projeto institucional, ou seja, é parte

integrante e compõe a identidade dos fazeres escolares do colégio – há, portanto, uma

legitimação e incentivo da instituição para que os professores leiam e partilhem suas leituras

com os alunos. Constata-se, então, uma força importante (e que não pode ser desconsiderada)

a da instituição que define as linhas gerais da prática e assim mobiliza uma representação da

leitura como algo obrigatório, porque componente fundamental da formação discente e

docente, pode-se dizer. Essa prática deve(ria) ser concretizada pelos professores, nos dez

primeiros minutos de suas aulas – as primeiras do dia, independente da disciplina ministrada –

e deveria (ou poderia) se converter em momento de prazer e compartilhamento – uma outra

concepção possível, que encerra em si outra representação da leitura – a leitura fruição tem a

proposta de ser uma atividade prazerosa, uma “obrigação grata”,16 uma “alegria cultural”,

14 Mais à frente, aprofundarei os conceitos de estratégia e tática, segundo Certeau (2012). 15 Conforme será analisado no capítulo 4 desta tese, essa representação sobre a leitura fruição é corroborada por

ex-alunos e professores da escola. 16 Durante as entrevistas a professores, é possível perceber que, para vários, sobrepõe-se à obrigação a satisfação

e o prazer trazidos pela prática da leitura fruição, seja por ser possível estabelecer laços e/ou estreitá-los, seja por se configurar como uma oportunidade de mostrar-se além do docente, como “pessoa física”, além dos deveres institucionais. Para alguns ex-alunos, algo similar também se configurou: a possibilidade de fruir esteve, por vezes, bastante presente no partilhar da leitura no início das aulas. Esses aspectos serão retomados

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despertada pelo dever – tal qual o ideal de Snyders:, que sonhava com a escola como esse

espaço de partilha privilegiado, de acesso a repertórios diversos, deveres os quais, segundo

ele, estariam sempre intrinsecamente ligados à alegria:

(…) a alegria da escola exigiria a obrigação. Porque é preciso passar primeiro por uma espécie de túnel, porque há um momento em que, no fundo, ainda não se acha bonito o poema. É preciso que o professor diga: estudem-no, vamos estudá-lo todos. E o meu sonho seria que os alunos ao cabo de duas semanas (…) dissessem: “Ah, sim, isto merecia que eu fizesse o que me disseram para fazer, valia a pena tanto esforço, porque agora sinto uma felicidade que não teria encontrado se não tivesse feito esse esforço”. (…) Mas meu sonho seriam alunos que pudessem conquistar dificilmente, e eu quase diria dolorosamente, através das obrigações escolares, uma alegria que de outro modo não poderiam conhecer. (SNYDERS, 1984, p. 22)

Do ponto de vista ideal, do “sonho”, da utopia, como propõe Snyders, a

obrigação, no caso deste trabalho, a leitura proposta e indicada pela escola, seria um caminho

para descobrir possibilidades de fruição, de apreciação estética e também para estreitar laços

acadêmicos e, especialmente, pessoais, como deixam explícito as entrevistas. Para o

professor, então, pode ser uma oportunidade de mostrar-se e aproximar-se dos alunos e

também convidar à aproximação deles, bem como contribuir para o repertório cultural das

crianças e jovens.

Mesmo assim, contemplando diferentes olhares e concebendo diferentes

representações, como as anteriormente propostas, a relação hierárquica escola-professor-aluno

não desaparece quando observamos o exercício da leitura fruição – o jogo de forças está lá,

presente, por exemplo, quando tal prática torna-se parte obrigatória do cotidiano escolar. E a

figura do professor guarda certa hierarquia, como aquele que conduz o processo com

autoridade (e não autoritarismo). Reconhece-se, assim, que “O educador é, simultaneamente,

superior aos alunos por sua posição, seu saber e sua experiência de vida e é superado pelos

alunos na mesma proporção em que o amanhã supera o hoje, em que a força que se anuncia

supera as realizações já fixadas.” (SNYDERS, 1993, p. 84) – então, a ideia de superação pode

ser concebida como a fluência da interação proposta e desencadeada pela leitura fruição: se o

professor é quem conduz, quem determina o que e como se lê naquele momento, por outro

lado, o aluno é aquele que primordialmente ressignificará o texto, extrapolando controles e

limites e elaborando novas e imprevistas leituras a partir do texto apresentado – desvio e

reformulações que também podem ser propostas pelo professor, quando conduz e desempenha

sua leitura para os alunos.

no capítulo das análises.

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Além disso, fatores espaciais contribuem para que a leitura fruição se confunda

com outras modalidades de leituras escolares. Em geral, no momento da leitura fruição, os

alunos permanecem sentados, ouvem, não fazem comentários; o professor, por sua vez, está

em pé, discursando para seu auditório – ou seja, talvez, para alguns, uma ideia de “submissão”

dos alunos em relação ao professor, o que vem corroborar uma prática que apenas repete e

remete a outras “tradicionais”17, tendo em vista que a organização já conhecida permanece;

seria mais uma obrigação escolar e “Todos sabem que o obrigatório é objeto das mais

violentas imprecações por parte dos alunos, e é considerado o que mais se opõe à alegria. Para

a maioria, alegria é sinônimo de opção. Como esperar alegria de um lugar onde não existe

opção?” (SNYDERS, 1993, p. 102). Então, como considerar a leitura fruição como um

momento prazeroso, sendo ela um dever? Entendo que a experiência proposta18 pretende

extravasar os ditames usuais de práticas de leitura escolares, quando propõe um momento de

gratuidade e de compartilhamento em que a ideia de hierarquia casmurra pode dar lugar à

ideia de diálogo e partilha – e como dito anteriormente, da superação. Cabe ainda se pensar,

conforme analisa Snyders, na leitura fruição como uma possibilidade de “alegria do

obrigatório”: “(...) uma primeira alegria consiste em que a obrigação escolar pode oferecer ao

aluno um leque de experiências emotivas que não tem equivalente no mundo cotidiano, na

liberdade comum: emoções vivas, às vezes violentas, mas controladas pelo conjunto da

situação” (SNYDERS, 1993, p. 104). Além desse controle confortável, cabe considerar que

A obrigação é a chance que cada um tem de encaminhar-se para aquilo que ainda não o atraía, onde ainda não fora bem-sucedido. O encontro da criança com Rimbaud tem muito mais chances de ocorrer caso seja imposto pela escola. Resta também ao aluno tomar consciência de que ele não se teria encaminhado para isso “espontaneamente. (Ibid., p. 106)

Então, o que é dever pode perder seu lastro de repressão se pensarmos nessa

situação não como imposição mera e simples, cumprimento de um currículo, mas sim como

uma atividade planejada, prevista sim na grade cotidiana, ancorada, porém, na ideia de

oportunizar contatos e quiçá emoções num espaço privilegiado – o da sala de aula. Passamos

a pensar na obrigação não mais como aspecto entediante, mas sim como oportunidade de

crescimento e conhecimento: “No sentido mais global, a obrigação escolar é a esperança de

incitar o aluno a ir ao máximo de suas forças, ao limite de suas possibilidades, ao extremo de

si mesmo; transcender o nível habitual e seu desleixo por demais sossegado” (Ibid., p. 106).

17 Adiante, ainda neste capítulo, tratarei de algumas práticas “tradicionais”, que se manifestam na escola no

processo histórico-cultural. 18 A ideia de leitura fruição como experiência será mais desenvolvida e fundamentada no capítulo 2 desta tese.

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Essa poderia ser a síntese da prática e, assim, chegaríamos a uma representação da

leitura fruição que mistura tradição e inovação, obrigação e prazer – por um lado, mais uma

leitura institucional em que os atores têm pouca mobilidade e liberdade em termos

geográficos e temporais, já que a leitura se desenvolve na sala de aula, nos momentos inicias

da aula, e mesmo no aspecto curricular, porque é uma atividade que deve ser feita por todos

no início do período; porém e mais importante: o professor exerce a liberdade de escolha e

convida os alunos a apreciarem um texto e também se “deixarem levar” por aquele momento

em que nada mais que a fruição é pedido. Há, ainda, a possibilidade de se vislumbrar essa

prática como adaptação da antiga contação de histórias, aquela mesma experienciada e

apreciada pelas crianças quando pequenas, em casa – a leitura em voz alta feita, por vezes,

pelos pais, prática difundida pela cultura ocidental, celebrada e até um quê idealizada por

Pennac (1993) como fonte de prazer e curiosidade para as crianças e discutida em

profundidade e ainda como importante evento de letramento na construção da identidade e da

proficiência de crianças leitoras, conforme analisa Heath (1982) em seu estudo etnográfico

sobre a complexa relação entre as práticas de letramento cotidianas domésticas e as escolares.

Tal faceta – a de uma contação de histórias – oferece um momento de aconchego e de

intimidade, o que pode aproximar alunos, professores e textos/autores, propondo outros

olhares mesmo sobre “velhos” textos – como textos que podem ser ditos canônicos e que

poderão ser ressignificados19 e apreciados por alunos e professores.

Desse modo, percebe-se que há muitas representações em jogo e também em

potencial contraste: as institucionais, que propõem a leitura fruição como uma diretriz de

trabalho, uma orientação a ser seguida; e a possibilidade mais libertadora, que pode permitir

conceber a leitura fruição como recuperação de um passado (não muito distante), de (re)

construção de um momento de aconchego e aproximação – em qualquer caso, tais

representações podem comportar em seu bojo a máxima do incremento cultural e da partilha.

Diversas também se mostram as práticas: embora houvesse linhas gerais para como se realizar

a leitura fruição, cada professor tinha liberdade para suas caçadas particulares, delineando

formas muito peculiares para concretizar suas leituras. Desse modo, a leitura fruição fora se

consolidando em performances20 muito distintas – indo da leitura que poderia ser considerada

convencional a episódios mais teatrais Também se pode acrescentar que, para alguns alunos e

19 No capítulo 4, as falas de professores, como Célia, confirmam isso. A professora tem Fernando Pessoa como

uma de suas escolhas para a leitura fruição, e o modo como ela conta fazer a leitura e apresentar o autor aos alunos traz encantamento e muito prazer a ela e aos jovens.

20 No próximo capítulo, o conceito de performance aplicado à leitura fruição será desenvolvido e fundamentado.

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professores, a leitura fruição representa a possibilidade de fazer da escola “menos escola”, no

sentido de ampliar o alcance e o sentido da leitura, permitindo que haja mais espaço de

encontro e de construção de relações mais pessoais e consistentes.21 No caso do colégio em

questão, enfatizo que as leituras obrigatórias são, em geral, trabalhadas de modo dialogado e

os professores promovem projetos que buscam contemplar a participação ativa dos alunos , de

modo a convidá-los à apreciação do texto – ou seja, práticas que promovam a já citada

“alegria cultural” (SNYDERS, 1984), de modo que os alunos se sintam sujeitos participativos

de suas leituras. Por exemplo, Bruna, ex-aluna, uma das jovens que entrevistei, enfatiza o

gosto que sempre teve pelas leituras obrigatórias:

(…) muita gente fala que os livros que ela lê na escola, ela não gostou. Eu discordo, porque eu já li

muitas coisas que eu gostei muito, que foram livros que marcaram, sabe? Por exemplo, “O médico

e o monstro”, nem sei que série... (…)22 Eu não li de novo, mas eu lembro que eu gostei tanto do

livro (...). Daí eu cheguei no 3o ano, falei, beleza, agora eu tenho que ler livros de vestibular e me

surpreendeu, porque, mesmo Til [romance de José de Alencar], que eu não leria de novo, sabe,

tenho um monte de críticas, (…) achei que fosse pior. E até que eu li e, (...) até que dá pra ler. Não

era o livro que eu queria ler.

Bruna, ao relatar sua experiência, reconhece sua surpresa diante das leituras

obrigatórias. Em suas palavras, vemos o que Snyders (1993) anunciara: a jovem se superou,

ela descobriu na obrigação uma oportunidade de conhecimento – inclusive para optar ou não

pela releitura da obra. De qualquer forma, Bruna pôde reelaborar seu posicionamento crítico e

percebeu na obrigação, além do dever, a oportunidade23. Essa mesma jovem pondera que a

leitura fruição seria também um outro caminho de incentivo à leitura:

Acho que [a leitura fruição] abriu muita porta para as pessoas, sabe, acho que incentiva, você tem

vontade de conhecer mais. Uma experiência incrível. Os professores apresentarem essas leituras,

principalmente... Eu tive acesso a coisas que eu sempre quis ter, não sei, acho uma parte muito

legal. Tem essa parte do prazer, não sei, não sei exatamente a palavra... não sei, acho que eu não

consigo falar assim. (…) Foi também pra gente analisar, mas (...) não de um ponto de vista chato.

21 Aprofundarei tais ideias a partir das análise dos relatos no quarto capítulo desta tese. 22 Por vezes, na transcrição de depoimentos, repetições e hesitações típicas da oralidade foram suprimidas. 23 Outro aspecto a ser observado em sua fala se refere ao processo de reelaboração de conceitos, ideias, que é

proporcionado pela entrevista. Guedes-Pinto, Gomes e Silva (2008) destacam o caráter “formativo” provocado pela perspectiva do trabalho com a memória, por meio da História Oral (HO). No capítulo metodológico, esse aspecto será retomado.

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A partir desse contexto, a inserção da leitura fruição no cotidiano escolar pode ser

vista como mais uma alternativa à ampliação de repertório e também de estabelecimento de

vínculos e diálogos com leituras obrigatórias, como algumas entrevistas mostram; um espaço

apreciado e que vem somar forças às práticas que se realizam no dia a dia escolar.

Essa problematização anteriormente proposta, fundamentada nos conceitos de

práticas e representações, soma-se a outro pressuposto importante – o da historicidade da

leitura. Conforme descrevi antes, essa prática de leitura foi se construindo e se consolidando

como “marca do colégio”. Trata-se de uma prática historicamente construída. Chartier define

que

(…) a operação de construção de sentido efetuada na leitura (ou na escuta) como um processo historicamente determinado cujos modos e modelos variam de acordo com os tempos, os lugares, as comunidades. A segunda considera que as significações múltiplas e móveis de um texto dependem das formas por meio das quais é recebido por seus leitores (ou ouvintes). (CHARTIER, 1991, p.178)

No caso da leitura fruição aqui contemplada, detive-me na análise dos dizeres

sobre a prática no segmento do Ensino Fundamental (anos finais – 6o a 9o anos) e do Ensino

Médio. Do Ensino Fundamental, entrevistei professores que faziam a leitura no início de suas

aulas, abraçando o projeto proposto pela escola. No caso do Ensino Médio, entrevistei ex-

alunos, jovens que cursaram este segmento nos anos de 2012 a 201424. Em geral, os

professores optavam por textos, no suporte de livros impressos – porém, há casos daqueles

que, esporadicamente, levavam para os alunos textos avulsos em cópias para todos ou ainda

situações em que o professor cantava alguma canção, declamava poemas de cor. Também

houve momentos em que vídeos ou trechos de filmes foram partilhados e considerados

também leitura fruição.25

Considerando-se a situação assim delineada – a da sala de aula, do grupo de

alunos e do professor, condutor, mediador e, na maior parte das vezes, leitor efetivo e

cúmplice dos alunos, fazendo de sua voz um segundo suporte para o texto lido (poderia haver

um “primeiro suporte” real, o do livro, revista, folha de papel) – é preciso, por conseguinte,

contemplarmos o que se pode considerar, nesse dado cenário e nessa tal configuração – a

construção de uma comunidade de leitores muito peculiar. Para tanto, faço uma ressalva:

embora não houvesse obrigatoriedade, nem por parte da coordenação, nem da direção da

24 Um dos ex-alunos entrevistados permaneceu menos tempo, tendo sido estudante no colégio em 2013 e 201425 Considero bastante legítima essa extensão da ideia da leitura; no caso, na prática da leitura fruição, o professor

poderia levar canções, vídeos, filmes, além, obviamente do texto. Trata-se de uma concepção mais ampla da ideia de leitura com a qual corroboro.

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escola interferindo na escolha dos textos e autores, é patente que os professores os quais, de

fato, realizavam a leitura fruição, optavam, boa parte (se não, na maior parte das vezes) por

textos literários – assim, por vezes, leitura pressupõe literatura.26 Penso ser importante

comentar tal fato, pois a definição de comunidade de leitores se apresenta historicamente

construída, a princípio, em relação à ideia de leitura do texto literário. Cosson recupera essa

definição a partir de Stanley Fish, no texto Is there a text in this class? (1995), dizendo que:

O ponto principal da argumentação de Fish é que não há nem leitor nem texto fora das convenções de uma comunidade, que só podemos pensar a nós mesmos e aos textos a partir e dentro de uma comunidade interpretativa. Reconhecer, portanto, que toda interpretação é resultado das convenções de uma comunidade, que são regras dessa comunidade que informam o que lemos e como lemos, não tem por objetivo superar essas regras e convenções em busca de uma definição objetiva ou mais adequada de leitor ou texto, mas sim compreender que nossas leituras são construídas dentro do jogo de forças de uma comunidade e que é por meio da participação nessa comunidade que nos constituímos como leitores. (COSSON, 2014, p.137-8)

Tais considerações podem ser ainda confrontadas e enriquecidas com o olhar de

Chartier, que nos lembra que a leitura é encarnada, ou seja, se faz real e concreta a partir do

exercício efetivo dos leitores e das condições materiais e históricas do momento da leitura:

Deve-se levar em conta, também, que a leitura é sempre uma prática encarnada em gestos, em espaços, em hábitos. Distante de uma fenomenologia que apaga qualquer modalidade concreta do ato de ler e o caracteriza por seus efeitos, postulados como universais de ler (como também o trabalho de resposta ao texto que faz com que o assunto seja mais facilmente compreendido graças à mediação da interpretação), uma história das maneiras de ler deve identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura. A clivagem entre alfabetizados e analfabetos, essencial mas grosseira, não esgota as diferenças em relação ao escrito. Aqueles que são capazes de ler textos não o fazem da mesma maneira, e há uma grande diferença entre os letrados talentosos e os leitores menos hábeis, obrigados a oralizar o que leem para poder compreender, ou que só se sentem à vontade com algumas formas textuais ou tipográficas. Há contrastes, igualmente, entre as normas e as convenções de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, os usos legítimos do livro, as maneiras de ler, os instrumentos e procedimentos da interpretação. Contrastes, enfim, encontramos entre os diversos interesses e expectativas com os quais os diferentes grupos de leitores investem a prática de leitura. Dessas determinações que governam as práticas dependem as maneiras pelas quais os textos podem ser lidos – e lidos diferentemente por leitores que não mantêm uma mesma relação com o escrito. (CHARTIER, 1994, p. 13)

No caso deste estudo, a comunidade de leitores contemplada inclui os alunos e os

professores, uma composição por si só bastante heterogênea, quer porque os professores são

26 Autoras como Regina Zilberma e Marisa Lajolo (2003) corroboram, com seus estudos, essa relação que pode

ser considerada de sinonímia.

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vários, de disciplinas diferentes e carregam histórias pessoais e profissionais diversificadas e,

a priori, teriam mais experiências e vivências, o que se poderia traduzir em mais repertório

cultural acumulado e mais conhecimentos; quer porque os alunos são muitos, diferentes e

únicos, porém, reunidos num grupo que se define como “turma” ou “sala”, numa tentativa de

homogeneização. Cosson sintetiza que, para Chartier, “(...) uma comunidade de leitores é um

espaço de atualização, por conseguinte também de definição e transformação, das regras e

convenções da leitura. Uma forma de interação social por meio da qual as práticas de leitura

ganham a especificidade e concreticidade dos gestos, espaços e hábitos” (COSSON, 2014,

p.138). A proposta ora analisada de leitura fruição atualiza, pois, a leitura, trazendo-a como

exercício do prazer (quiçá da contemplação, mais ou menos crítica, dependendo da recepção

dos leitores e de suas posturas de recepção) e concretizando-a pela interação fundadora entre

professores e alunos no espaço da sala de aula. Busca-se, assim, de algum modo, ressignificar

um breve momento do que seria a aula, transformando-o em possibilidade de troca

descompromissada, mas prenhe de oportunidades de enriquecimento.

Ao compreender o estabelecimento de uma comunidade de leitores naquele

espaço, naquele tempo e com aqueles gestos ali desempenhados, voltamos à análise das

posições assumidas por professores e alunos, e concepções que nem sempre estão explicitadas

no cotidiano escolar: o aluno também tem seus saberes acumulados, sua biblioteca pessoal,

sua experiência “fora-do-texto” que foi se sedimentando na escola e também fora (e apesar)

dela (GOULEMOT, 2009). Recorrendo ao que Chartier nos diz, cada aluno e cada professor é

um indivíduo e cada um tem relações muito distintas em relação ao escrito, porém, nem

sempre tais distinções vêm à baila. Talvez a leitura fruição ofereça espaço para que, mais que

semelhanças, diferenças se exercitem e se façam notar de maneira positiva: ao abrir o espaço

para um exercício de liberdade de escolha dos professores e a partilha dos textos com o aluno,

sem interferências ou orientações estritas em termos de autores e conteúdos, a leitura em voga

se ergue a partir de nova regulação. A escola e o professor legitimam aquele lugar e aquele

momento como próprio para aquela maneira de ler; os alunos aceitam (ou não, pois podem

lançar mão de táticas que lhes permitam escapar da leitura fruição, como fazer tarefa ou

dormir de olhos abertos) a configuração e o exercício da leitura – criam-se, então, de certo

modo, regras e convenções para a leitura do texto ali apresentado. Nessa regulação também é

implícita – ou bastante explicitada, dependendo do caso – a reação esperada do aluno:

silêncio, interesse, solidariedade ao professor que lê; todavia, por vezes, é preciso aceitar que

se faz marcante o desinteresse, a apatia, o sono típico das primeiras horas da manhã ou do

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momento pós-almoço. Assim, vai se constituindo uma comunidade de leitores, como dito,

peculiar, porque não se trata do exercício corriqueiro de ler o texto e analisar segundo um

questionário ou direcionamentos teóricos X, Y ou Z propostos pelo material didático.

Tampouco se trata de uma leitura a ser cobrada, verificada. Trata-se, como analisaremos no

segundo capítulo, de uma leitura da gratuidade e que se direciona ao prazer – e para que tanto

ocorra, os fios que tecem a comunidade de leitores podem ser mais frágeis.

Ainda me parece válido, sobre a definição de comunidades de leitores, evocar o

verbete homônimo, do CEALE:27

(…) uma comunidade de leitores consiste num grupo de pessoas que se reúne periodicamente para debater obras previamente acordadas, sugeridas ou não por um coordenador, muitas vezes uma pessoa de renome - por exemplo, um escritor. É frequente também o alerta para o fato de não se pretender, nesses encontros, discutir conhecimento acadêmico ou desenvolver análises textuais profundas. Tão simplesmente é uma modalidade mais ativa e social de promoção da leitura e do livro. Nos fundamentos dessa modalidade coletiva de leitura, alimentada pela cumplicidade, os participantes nem sempre detêm todos o mesmo conhecimento sobre o tema ou a obra. Nesse processo, encontram-se duas perspectivas: a natureza dos processos de construção de sentidos e a aprendizagem. Quanto à construção de sentidos, as comunidades de leitores são devedoras da noção de que os sentidos que construímos sobre os textos são partilhados por comunidades interpretativas: entidades públicas e coletivas compostas por todos aqueles que detêm uma mesma estratégia de interpretação ou um mesmo modelo de produção de textos.

Tal definição, como deve ser a de um verbete, é ampla e genérica e, no caso da

pesquisa aqui apresentada, caberiam algumas ressalvas e ajustes para adequá-la à realidade

por mim investigada. No caso da leitura fruição em análise, embora haja um grupo de alunos

e um professor, ou seja, um grupo de pessoas reunidas diariamente e alguém que se poderia

dizer “coordenador” - o professor que escolhe e faz a leitura -, a discussão não está

necessariamente em pauta. O objetivo da leitura, como o nome diz, é a fruição, o prazer do

contato mais descompromissado com o texto. Porém, como indica a definição, há, por vezes,

a cumplicidade entre leitores e obra. Por outro lado, não há como se garantir uma plenitude

em termos de interpretação: como o objetivo da leitura não é a discussão aprofundada ou a

análise detida no texto, não há como se objetivar ou se controlar as interpretações criadas ou

veiculadas – em contraste a isso, cada leitor terá suas interpretações personalíssimas. Há,

obviamente, episódios relatados nas entrevistas que atestam momentos de discussão e análise,

seja do professor, seja dos alunos – ou mesmo do debate que se instaura, muitas vezes,

27 Disponível em http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/comunidades-de-leitores; acesso

em: 13 Out.2015.

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“acidentalmente” em aula e toma conta desta. Contudo, inicialmente, não é objetivo dessa

prática que tais desdobramentos, comuns a outras atividades de leitura, necessariamente

aconteçam. Aliás, é essa expectativa de gratuidade e liberdade, um dos pontos, a meu ver,

interessantes nessa prática. E, ouso dizer, tais aspectos, longe de invalidar a leitura, podem

torná-la mais humana e mais próxima do que ocorre no “mundo real”, aquele fora da escola,

em que as pessoas leem os mais diferentes textos, em especial os literários, sem a obrigação

de preencher questionários ou de elaborar análises aprofundadas. Se há (e certamente há)

reflexões e conversas, estas ocorrem pela predisposição das pessoas que, encantadas ou

incomodadas, “mexidas” ou tocadas de alguma forma pelo texto, decidem externar

considerações que lhe parecem relevantes – o que pode acontecer num café, na fila do cinema,

no ônibus, enfim, nas situações mais corriqueiras. Isso não significa que as leituras não

tiveram importância ou não foram consistentes – talvez, ao contrário, sejam essas leituras, as

que não são avaliadas, mas são entendidas, comentadas, sugeridas de leitor para leitor, as mais

marcantes e que nos constituem efetivamente como sujeitos.

1.2. Ler na escola: motivações e interlocutores

1.2.1. Leitura como “obrigação”: uma breve história

Paulo Freire (2009), educador brasileiro reconhecido mundialmente por sua

perspectiva emancipatória da alfabetização, já nos elucidou: começamos a ler muito antes da

escola e da escrita – lemos os gestos da vida cotidiana, lemos as pessoas, lemos as situações,

enfim, lemos o mundo em que nos encontramos – a nós mesmos e ao outro, seja ele nosso

colega, amigo ou um estranho, muito antes de ler o texto. Certeau, por sua vez, nos diz que

vivemos a “hipertrofia da leitura”. Segundo este autor, a leitura é

(...) foco exorbitado da cultura contemporânea e de seu consumo (…). Da televisão ao jornal, da publicidade a todas as epifanias mercadológicas, a nossa sociedade canceriza a vista, mede toda a realidade por sua capacidade de mostrar ou se mostrar e transforma as comunicações em viagens do olhar. É uma epopeia do olho e da pulsão de ler. (CERTEAU, 2012, p.47).

A consciência lúcida de tal configuração, ou ainda, de tais condições reais e

experimentações efetivas, ou poderíamos dizer, como Certeau, de “caça”, de “modos de

fazer” que vão além e subvertem tempo e espaço, pode nos ajudar a entender um pouco mais

criticamente a questão da leitura especificamente no ambiente escolar e também deveria nos

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auxiliar em intervenções.28 Porém, o que parece já ser um clichê no mundo das pesquisas

acadêmicas ainda nos surpreende, enquanto professores e alunos: por vezes, a leitura proposta

pela e na escola pode parecer tão distante das esferas da leitura do mundo e se restringir à

ideia dos olhos no texto, presos por especificidades desligadas do mundo exterior. A

amplitude da leitura, a “epopeia do olho e da pulsão de ler” são, por vezes, desconsideradas e

até desprezadas, reduzindo-se o ato de ler à verificação em exercícios e provas em muitas

escolas ainda hoje.

Há, porém, espaços outros, possibilidades além, que se encarnam nas táticas de

professores que buscam abordagens mais participativas e “criativas”, por assim dizer, fazeres

“indisciplinados” (CERTEAU, 2015) na busca da “alegria cultural” (SNYDERS, 1984), de

um gosto que possa ser construído no diálogo e na apreciação compartilhada, seja por leituras

obrigatórias, seja por meio de práticas mais flexíveis e que dão mais espaço às escolhas e

opções de professores e alunos, como ocorre na leitura fruição. Contudo, mesmo não sendo o

caso da instituição aqui contemplada, a qual se propõe a incentivar a leitura e possibilita que

leituras obrigatórias sejam “momentos de prazer e de alegria” para alunos,29 parece-me

importante percorrer um pouco da história da leitura e da implantação de certas práticas

escolares no contexto brasileiro.

Muitas vezes, ainda hoje, escolas e modos de ensinar, são tributários de uma

tradição que se definiria como mais conservadora, seja por escolhas (títulos canônicos,

escritores clássicos), seja pela forma de condução do processo (fichas de leitura, resumos e

resenhas estanques em si mesmos). São situações em que, não raro, se cria um mundo à parte,

uma realidade um tanto artificial e pouco entusiasta e entusiasmante no que se refere à leitura

ela-mesma – a qual deveria ser prática significativa, interlocução pulsante –; situações em que

a leitura pode dizer muito pouco aos jovens. Voltando aos conceitos já apresentados de

representação e prática, parece-me válido dizer que, para entendermos melhor que práticas

são essas e as representações que as cercam e as sustentam, é preciso percorrer um pouco das

questões históricas, dos fazeres e pensares que construíram a leitura na escola, transformando

as práticas no que por vezes ainda encontramos hoje, início do século XXI. Em suma:

A história oficial da leitura escolar brasileira é também uma história marcada pela censura. Antigamente, a leitura dos professores — e sobretudo das

28 Retomarei os conceitos de Certeau e ampliarei a discussão sobre tais ideias na próxima seção deste capítulo,

quando tratar do leitor. 29 No capítulo 4, comprovarei isso com trechos de entrevistas. Ex-alunos como Jéssica, Heitor e Bruna

confirmam o prazer que tinham em aulas com leituras obrigatórias e expressam reconhecimento por essas leituras em seus depoimentos.

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estudantes que se preparavam para o magistério — era muito controlada. A família e a própria escola vigiavam severamente o que liam os jovens, sobretudo as jovens. (LAJOLO, 2005, p.9)

Um primeiro ponto a destacar é que aquilo que, em geral, se concebe como

práticas de leitura na escola está muito relacionado, num primeiro momento, à questão do

estabelecimento da literatura como disciplina.30 O que se pode conceber como um modelo

tradicional de escola remonta a instituição seculares (e, por vezes, ainda reproduz atividades

arcaicas, como os exercícios de repetição) e a leitura inicialmente incorporada – e que

persistiu por séculos, podemos dizer – foi a de textos considerados belos e dignos de estudo:31

a Bíblia, as obras fundadoras da literatura ocidental, como Ilíada e Odisseia, bem como

clássicos que assim se constituíram e se reafirmaram ao longo de séculos. Interessante notar

que, à medida que se foram incorporando às atividades escolares gêneros textuais diversos –

como bulas, receitas, artigos de jornal e revista –, tomou espaço um certo estranhamento de

professores e alunos em relação a escritos que não nasceram “propriamente escolares” -

lembrando que, efetivamente, poucos ou pouquíssimos, podem ser caracterizados estritamente

como tal.32 Porém, no caso do que se considera leitura no ambiente escolar, o que salta aos

olhos são, via de regra, os textos literários. Nesse caso, parece que tal estranhamento ou

questionamento sobre o fato de esses textos serem “escolares” - ou melhor dizendo, nascidos

e pensados para serem produzidos e circularem no ambiente escolar, permanece um tanto

adormecido. Seria como se pensar que clássicos da literatura teriam sido escritos e

direcionados para a escola, o que, obviamente, é uma falácia que decepcionaria e frustraria

profundamente muitos autores (ZILBERMAN, 2008). Percorrer, pois, a história da leitura e

de seu exercício na escola significa pensar em como essa prática foi se transferindo de

contextos sociais outros – a família, a igreja – para dentro das salas de aula.

Concordar com a ideia de que as aulas de leitura e os textos não surgiram prontos

para a escola, mas que foram sendo moldados e construídos nela e por meio das práticas e

representações desta e nesta instituição, de acordo com objetivos diversos, é importante

30 Essa quase (con)fusão, por vezes, entre literatura e leitura encontra-se ainda muito presente no ambiente

escolar. Por vezes, a leitura é considerada válida se se tratar de obras historicamente instituídas como canônicas. Daí se nota a dificuldade, por exemplo, de se proporem leituras outras, de textos de gêneros diversos. Embora essa orientação tenha se alterado a partir da década de 1980, ainda hoje para muitos professores e alunos, as aulas de leitura são obrigação da disciplina de língua portuguesa – no caso do Ensino Médio, da disciplina de literatura. Claro que aqui se trata de uma concepção restrita sobre leitura, mas que parece ainda bastante presente no ambiente escolar.

31 Abreu (2006) também problematiza essa questão de permanência de alguns textos considerados mais dignos que outros.

32 Exceções que podem ser citadas: as cartilhas, os livros didáticos e paradidáticos, os quais, por vezes, recorrem a fragmentos de outras obras.

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pensar como, então, chegaram às mãos de alunos e professores. Lajolo e Zilberman (2003)

traçam um detalhado percurso sobre como a leitura foi se configurando e se construindo na

sociedade brasileira. Pelo percurso e pela pesquisa minuciosa das autoras, é possível se

entender um pouco melhor como temos as escolhas historicamente desenhadas e incorporadas

pelo currículo – que podem se traduzir, por vezes, em imposição – e desencontros que ainda

hoje assombram as práticas de leitura, apesar de ciosas políticas públicas, cuidadosos planos

de ensino e projetos pedagógicos bem intencionados.

Se consideramos um pouco mais detidamente o percurso histórico deste país, no

que diz respeito à educação e à leitura, notaremos os descompassos e as escolhas que nos

trouxeram ao contexto que ainda hoje encontramos em boa parte das escolas brasileiras –

mesmo nas de elite e que se destacam em exames de referência como o Enem. Colônia de

Portugal até o final do século XIX, o Brasil só começou a se mostrar como ambiente propício

para a construção e desenvolvimento de uma sociedade leitora a partir da vinda da família

real, em 1808. A partir da instalação da nobreza portuguesa nas terras brasileiras, surgiu a

Imprensa Real e se estabeleceram as primeiras escolas propriamente ditas – inicialmente, de

educação superior. Aliás, serão tais instituições, as de ensino superior, as responsáveis pela

implantação do livro didático, personagem fundamental para se compreender os caminhos da

construção da leitura no Brasil. A partir do estabelecimento destas escolas, a necessidade de

obras didáticas para abastecer professores e alunos se fez premente e livros de retórica,

gramática, matemática, além de gramáticas latinas e tratados de retórica (como a Arte Poética,

de Horácio) são obras registradas pelos livreiros da época:

Sem dúvida, a expectativa de público, sugerida por essa bibliografia, aponta um horizonte cultural em que a mocidade se alfabetiza, e os meninos aprendem a tabuada e as operações matemáticas. É esta escola elemento essencial para, através da difusão do ensino e do patrocínio da familiaridade com os livros, favorecer o estabelecimento e o fortalecimento de práticas correntes de leitura. Nem sempre, no entanto, a escola satisfaz tais expectativas, a julgar pelos comentários que a situação educacional brasileira suscitou nos primeiros anos do século passado. A instrução pública ia mal, e não são poucas as reclamações. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, p.133)

Nesse contexto, a escola, às vezes, percebe-se ineficiente ao tentar abrir espaço e

incentivar a leitura, tomando os modelos que poderiam ser definidos como clássicos - autores

considerados pilares da cultura literária ocidental. Some-se a tal cenário, professores

autoritários e leituras reputadas desinteressantes pelos alunos (como registram vários

romances, como Infância, de Graciliano Ramos ou Menino de Engenho, de José Lins do

Rego). Enfatize-se também a forte presença do latim, como língua estruturante, cujo

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conhecimento gramatical é considerado base para aprendizagem de outros idiomas e,

consequentemente, impulso para que se cultive o gosto literário:

O latim aparece como língua padrão pela qual se conhecem outras, observando-se ainda que o professor tem liberdade de escolha do livro didático, mas que, de novo, se toma por certo que ele tenha a intenção de escrever uma obra, embora, mais que espelhar liberdade de cátedra, essa expectativa resulte da carência de opções. No programa, ressalta ainda que o ensino de línguas estrangeiras visa tanto à educação do gosto literário, quanto à capacitação oral do aluno, sendo os exemplos escolhidos o francês da literatura clássica do século XVII e os autores quinhentistas portugueses. A crônica da escola prossegue, todavia, no antigo diapasão que registra invariavelmente ou a carência de livros escolares ou a inadequação dos existentes às demandas culturais. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, p.150)

Começa, assim, a determinação oficial, via escola, de modelos, textos literários

importados, consagrados como bons e belos para e pela escola, sem que houvesse efetiva

preocupação com interesses ou adequação ao público brasileiro. Aqui parece, portanto, haver

um importante paralelo (ou seria permanência?) em relação ao que se observa

contemporaneamente em várias escolas: por vezes, a definição das obras a serem lidas pode

soar mera imposição, resultando de um julgamento das ditas autoridades (escolares, em

especial) do que é bom, de uma postura que baliza e referencia escolhas culturais. Claro que

também é preciso se considerar que, no caso do século XIX, falamos de um mundo de

incipiente mercado editorial e predominante influência europeia. Somem-se a isso as

limitações materiais da época, e a consequente oferta de textos bem mais modesta e um

número pouco expressivo de leitores (ao menos, segundo os dados oficiais mais conhecidos).

Modelos de textos e manuais didáticos que tinham sido, de alguma maneira bem sucedidos,

ditavam as escolhas e se impunham, a exemplo do que acontecia em liceus e escolas

europeias e os editores iam delineando os gostos por meio da oferta de títulos na colônia.

No Brasil República, faltavam livros brasileiros efetivamente: boa parte das obras

didáticas e mesmo das lidas como lazer eram traduzidas – será o Romantismo, no caso da

leitura de entretenimento ou de lazer, que trará a presença marcante de obras que podem ser

consideradas nacionais, por terem autores brasileiros. No caso dos livros didáticos, só em

finais do século XIX e começo do XX é que encontraremos os primeiros compêndios e

manuais didáticos nacionais – até então, eram obras estrangeiras traduzidas o apoio para

muitos professores e alunos. Ressalte-se, outrossim, que as aulas a partir de compêndios e

seletas, por vezes, eram hostilizadas por alunos e professores, como indica o protagonista de

O seminarista, de Bernardo Guimarães:

Suas primeiras aulas de latim valem-se do compêndio de Antônio Pereira,

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com resultados negativos; o narrador comenta que o aproveitamento teria sido maior se o rapaz estivesse estudando a matéria nos poemas de Ovídio e Virgílio.” Ao comentar nesses termos o ensino do latim, Bernardo Guimarães inaugura duas atitudes frequentes relativas à presença da literatura no currículo escolar. A primeira aposta no envolvimento decorrente do contato do jovem com o texto literário; a segunda preconiza que a escola tire vantagens deste envolvimento, transformando a relação com a literatura em pretexto para outras aprendizagens. (GUIMARÃES, 1991, pp.27-8 apud LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, p. 203)

Nesse reconhecimento do que podemos identificar como práticas de ensino

vigentes e, mais especificamente aqui, como práticas de leitura de outrora (mas não tão

distante, por vezes), veem-se os movimentos iniciais da escolarização da literatura.

Impossível, pois, pensar-se numa história da leitura ou ainda no estabelecimento de um

cânone, sem considerarmos que a literatura, aquela das belas letras, foi alçada (ou rebaixada)

à condição de disciplina escolar. No caso da escola, historicamente, a leitura se mistura

obrigatoriamente à literatura – entendida aqui como poesia e prosa de ficção; sobretudo, de

obras “consagradas” e que foram eleitas para integrar um cânone. Zilberman (2008), em sua

recuperação atenta ao percurso histórico da construção da disciplina de literatura, lembra-nos

de que essas obras (os clássicos latinos, gregos e mesmo os portugueses, como diremos

adiante) não nasceram para a escola ou para esses alunos – nem para os alunos que hoje, na

segunda década dos anos 2000, temos. Escolhidas em nome de uma identidade nacional, as

leituras apresentadas como obrigatórias aos alunos, por vezes, afugentam em vez de

aproximar. Em nome de obras boas e belas, há professores que seguem, de modo muitas vezes

literal, o livro ou material didático, esvaziam ou simplificam o potencial literário, artístico dos

textos e dão como certo que, uma vez que o aluno leia aquele livro, aquele texto consagrado

(e faça uma prova ou ficha de leitura), será um bom leitor. Tal expectativa pode ser

questionada e debatida, pois a obra clássica pode sim se configurar como uma escolha

apreciada, uma marca na formação do leitor; pode se constituir como arcabouço cultural,

repertório artístico acessível a todos, como obras de excelência, “obras-primas” que

provoquem admiração e prazer (SNYDERS, 1993). Porém, é fundamental a mediação do

professor (PETIT, 2008) e a construção de uma atmosfera de apreciação e leitura ativa. A

ideia de que um livro clássico faz o bom leitor pode também ser vista como uma imagem

genérica, de senso comum, que, por vezes, integra as expectativa, inclusive, de alunos e pais.

Abreu (2006) traz um pouco dessa discussão quando comenta as divergências entre as listas

de best-sellers publicadas em revistas de ampla circulação e jornais e as listas de livros

escolhidos por intelectuais e professores. São opções muito diversas, por vezes, excludentes –

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na lista dos professores e especialistas, sobressaem-se obras que muitos nunca leram ou lerão

– e haverá quem se sinta “envergonhado” e vá “pensar que sua formação literária é

inadequada; culpar-se, acreditando que deveria se esforçar mais, ler mais, ser mais culto...”

(ABREU, 2006, p. 12). Na opinião da autora, não há consenso sobre o gosto literário. A

escola, contudo, por vezes, vai considerar o gosto como inerente à leitura proposta – o ponto

sobre o qual cabe sempre reflexão. É possível, sim, alimentar o gosto, mais que isso, orientá-

lo e mostrar aos alunos que obras clássicas podem ser interessantes, instigantes, belas;

promover, via aulas de literatura (e de outras ciências e artes) a “alegria da obrigação” e,

consequentemente, a “alegria cultural” (SNYDERS, 1993). Não se trata de distanciar,

portanto, os jovens de leituras como Machado de Assis ou Graciliano Ramos, mas sim de

incentivar uma aproximação significativa e convidativa – tal proposta é bastante frequente nas

práticas da escola contemplada neste trabalho, como atestam os alunos, sobretudo e se

constitui, para vários deles, como uma marca positiva de sua formação de leitor.33 Ou seja, o

gosto, o prazer pelo obrigatório também contamina e se torna um grato dever, como atestou

Renata, ex-aluna do colégio:

Eu sempre gostei de ler. Da escola, assim, é chato. O bom da escola é chato. Mas depois de um

tempo, eu comecei a valorizar muito essa parte do aprendizado dentro da escola. Talvez tenha tido

uma influência, porque quanto mais contato você tem, mais você vai conhecendo. E conforme eu

fui conhecendo, mais eu fui gostando.

Ao discutir como foi se configurando essa história de leituras escolares, Lajolo e

Zilberman (2003)34 indicam que Camões foi um dos primeiros grandes autores a ser

incorporado nos manuais escolares. Contudo, tal escolha daquele que, então, já era

considerado um autor exemplar, longe de agradar a todos, entediava ou espantava os

discípulos. A presença do poeta português era detestada por alunos que, depois, se tornariam,

por sua vez, grandes nomes de nossa literatura, como Graciliano Ramos, o qual em Infância,

manifesta seu desagrado. Temos, assim, testemunhos sobre como o cânone, por vezes se

configurou como tragédia e mortificação para o aluno brasileiro já nos primeiros tempos da

escola:

Aparentemente, não por acaso, o poeta português tornou o uso que dele se fez na escola brasileira sinônimo de um certo tipo de ensino, no qual a obra

33 Tais ideias serão desenvolvidas no capítulo 4 desta tese. 34 É importante destacar que as autoras também analisam a questão do mercado editorial como um aspecto da

produção material constituinte das leituras. Embora não seja o foco deste estudo, lembro que outros autores como Ferreira (2006) enveredam para o âmbito da materialidade do livro e da influência das editoras.

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literária serve de motivo para o conhecimento das idiossincrasias e dificuldades da língua portuguesa; ou então da valorização de um cânone pouco afim às expectativas e anseios da juventude estudantil. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, p.205)

Não seria exagero dizer que, ainda hoje, certas aulas, docentes e exames

reproduzem encaminhamento bastante similar em relação à obra literária: tratam-na como

pretexto para ensino da língua ou mesmo integram um cânone cujo sentido parece esvaziado

para os jovens que se amontam na arcaica estrutura de várias escolas. Mesmo havendo

programas como o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), contando os

direcionamentos e diretrizes dos PCNs, faz-se necessário reconhecer que nem todas as escolas

atualmente têm bibliotecas ou as têm acessíveis a alunos e professores. Entre estes, por sua

vez, há os que desenvolvem projetos e trabalhos cuidadosos e auspiciosos com leitura.

Entretanto, também há os que passam ao largo das oportunidades e se mantêm em certo

conformismo e talvez até certa acomodação, restringindo a leitura à reprodução de modelos

simplistas e esvaziados de sentido para si e para os alunos. Percebe-se que é sim possível ler

muito, ler bem e conduzir o dever para que se torne encontro e alegria. Para tanto, faz-se

fundamental a presença do professor como modelo de leitor, alegre com sua tarefa, sentindo

que esta é oportunidade e não mero dever; professor que encarna aquele que conhece o texto

e possibilita uma aproximação efetiva – e talvez afetiva – da obra, um “cúmplice apaixonado”

e disposto a dialogar, segundo dizeres de alunos e professores entrevistados nesta pesquisa e

como nos descreve Snyders:

Um educador que conheça sua profissão, que tenha o domínio daquilo que se propõe e que tenha preparado minuciosamente seu curso – ao mesmo tempo, os alunos sentiriam que ambas as partes são associadas na mesma tarefa e que participam juntas da mesma busca. A alegria de descobrir com um professor que também descobre, que busca, explora, tenta, tateia com eles e, talvez, um pouco graças a eles. Vivacidade, imprevistos, o contrário da rotina. (SNYDERS, 1993, p. 85)

Esse trabalho de aproximação que, não raro, se concretiza em apropriação alegre e

prazerosa do texto, numa rotina que se torna possibilidade de encontro e de conhecimento –

em contraste a estranhamentos que afastam e atitudes monótonas – faz de práticas de leituras

ditas obrigatórias um caminho possível, uma vez que o obrigatório não precisa se configurar

como imposição, mas sim se apresentar como oportunidade e tempo privilegiado, “protegido”

para desempenhar determinada atividade. Leituras canônicas podem ser apresentadas e

desenvolvidas via diálogo que mostre, por exemplo, a importância histórica do texto, sua

relevância em relação a outras obras, como o autor foi lido, por que tem permanecido; leituras

que se configurem como patrimônio e como enriquecimento de repertório e como convite à

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cultura e à história construídas e acumuladas por séculos (SNYDERS, 1993). Uma

possibilidade para tal aproximação entre obras e alunos é a abordagem mais discursiva, via

gêneros textuais – o que é previsto e orientado, por exemplo, pelos PCNs e também

fomentado por programas como o PNLD e o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da

Escola). Por meio de atividades mais contextualizadas, via abordagem mais crítica e

convidativa à participação, a escola possibilita que o aluno a entenda a motivação daquelas

leituras, antes apenas obrigatórias, de modo que não se submeta a ela, mas se sinta parte da

conversa, convidando ao diálogo de reverberações contínuas (BAKHTIN, 2003 e 2009) e à

superação (SNYDERS, 1993). Vale ressaltar que o exercício dessa apreciação dialogada não

implica esquecer aspectos estruturais e linguísticos específicos de cada texto; ao contrário, a

leitura bem orientada, bem mediada, assinala tais características, além de chamar o aluno ao

debate e à apreciação – o que inclui o direito de não gostar, inclusive, da obra - e incentivá-lo

à autonomia crítica.

Ainda sobre a complicada imposição, por vezes, e recepção de medalhões da

literatura, juntam-se outras marcas que permanecem perceptíveis, como a confluência e

obrigatória apreciação estética (talvez idealizada, por vezes) da leitura dos autores nacionais

no espaço escolar:

A presença de Camões e dos clássicos portugueses marca a aprendizagem dos escritores, que relembram ora positiva, ora negativamente a influência sofrida. Assim, às restrições que escritores portugueses inspiravam a alguns autores brasileiros em virtude de suas manobras pela conquista de gorda fatia do ralo mercado disponível para o livro didático, somam-se as carrancudas e não poucas vezes literalmente dolorosas lembranças dos primeiros contatos com as armas e os barões assinalados... Mas talvez a literatura portuguesa pagasse as contas de uma monotonia que não era dela, e sim da escola brasileira do século XIX; de qualquer modo, sua maciça presença na sala de aula como que ocupa (indevidamente?) o lugar que os primeiros historiadores de nossa literatura tinham sonhado reservar para as letras nacionais. Também consequência dessa hegemonia é a permanência de uma atitude ambígua dos letrados brasileiros em relação à literatura portuguesa: se muitos a admiram, raros a apreciam, porque ficou impregnada do caráter coercitivo e conservador com que circulou na escola. Some-se a isso outro fator – o desejo de emancipação do domínio lusitano, forte durante o século XIX, por efeito do processo de independência política, e exacerbado após o Modernismo - , e ter-se-á a rejeição de um padrão cultural e de uma tradição literária. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, p. 206)

Historicamente, a eleição de obras modelares caminhou lado a lado com a

valorização de uma forma de escrever “bonita”, “tendendo ao literário” (LAJOLO e

ZILBERMAN, 2003, p.206). Como bem nota Zilberman (2008), as obras literárias que

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parecem hoje “naturalizadas” e vistas como escolares desde sempre, não nasceram com tal

intuito, para tal instituição e para tais leitores35 - a escola foi se apropriando de tais obras e

colocando-as como leituras obrigatórias, tendo em vista sua qualidade linguística/literária e

sua importância histórica e cultural. Esse processo foi calcando o que se reconhece por

muitos, até hoje, como as obras de qualidade, as referências culturais que um aluno deve ter e

que devem compor seu repertório. Não se trata, conforme já apontei, de negar o arcabouço

cultural acumulado por séculos de produção cultural, pois, por vezes, a escola é o principal

canal de aproximação entre os alunos e tais obras, oportunizando às crianças e aos jovens

aproximar-se e apreciar tais obras e desenvolver o gosto por elas (SNYDERS, 1993).

Contudo, em tempos de internet e mídias cada vez mais ágeis, esse capital cultural pode ser

questionado e relativizado e sua abordagem pelo professor ao aluno pedem reavaliação e

cuidado – bem como outras formas de mediação.

Constata-se, assim, a profundidade das raízes de posturas consideradas

autoritárias - não são peculiaridades de nosso tempo, mas heranças arraigadas que ainda hoje

cumpre entender e, se possível, desconstruir e reelaborar, visando às necessidades

contemporâneas de alunos e professores. Por exemplo, ainda hoje, temos, na escola, um

ensino de literatura que traz em si a influência francesa (muitas vezes, incompreendida e/ou

mal explicada, contextualizada), se não em obras, na delimitação e ensino da história da

literatura - que, por vezes, pouca (ou nenhuma) relação tem com a leitura efetiva das obras.

Tendo em vista o século XIX, Lajolo e Zilberman sintetizam:

Num outro sentido, talvez o francês representasse uma alternativa à dominação da literatura portuguesa, que, na escola, se alinhava com o conservadorismo da pedagogia vigente. De toda maneira, a literatura francesa foi por muito tempo uma presença marcante, e, segundo os escritores que a vivenciaram, deu vitalidade ao ensino da literatura e lhe conferiu sentido, justificativa e legitimidade. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, pp.209-210)

Basta recorrer a qualquer manual, livro ou material didático do Ensino Médio para

verificarmos que o chamado ensino de literatura é pautado pela apresentação e resumo de

35 Relato uma breve experiência que, para mim, ilustra muito bem como essa “naturalização” dos textos como

sendo sempre escolares é forte: no ano de 2013, eu trabalhava como formadora do programa PNAIC. Em uma das etapas de formação, nosso tema de estudo e discussão eram os gêneros textuais. Em certo momento, pedi às orientadoras de estudo (OEs) que citassem gêneros textuais tipicamente escolares. Rapidamente, várias me responderam: fábula, conto de fadas, parlendas. Tal episódio me faz pensar que há muito ainda que se trabalhar com professores e também com alunos para que seja compreendida essa apropriação dos textos literários pela escola. Ao passo que todos (ou quase) sabem que uma receita culinária ou uma bula de remédio não “nasceu” para ser texto escolar, deveríamos ter clareza que uma fábula, um conto e uma parlenda, por exemplo, também circulam, inicialmente, em outras esferas de atividade humana e servem a outros interesses e objetivos que não apenas os da escola.

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escolas literárias (e suas estanques características) assim enumeradas: o Trovadorismo,

Humanismo, Classicismo, Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo,

Simbolismo, Modernismo, períodos e/ou estéticas artísticas que trazem ao aluno brasileiro o

contato com autores e obras portugueses e brasileiros (sendo que estes últimos demoram a

aparecer nessa cronologia de estudo). Ou seja, mesmo hoje, muitas escolas e professores não

se libertaram de um modelo proposto no século XIX e pressupõem, por vezes, o acúmulo de

um conhecimento enciclopédico e simplificado, ancorado na ideia de reconhecimento de

“origens”, justificado pelas raízes coloniais e históricas – mais grave pensar que tal

encaminhamento das aulas de literatura, vistas por muitos (alunos e professores) como

espaços, por excelência, de leitura, confunde-se com as supostas práticas de leitura. Ora, não

se trata de negar tal origem ou a importância de se conhecer obras e movimentos artísticos,

mas, parece-me, cabe questionar se os mesmos métodos, a mesma abordagem de textos (em

geral, fragmentos soltos), via história literária, o que, por vezes, consiste em listagem de

características de caráter dogmático, uma reprodução de práticas sacralizadas (CHARTIER e

HÉBRARD, 1995), por meio de obras e autores cada vez mais distantes, surte os efeitos

pretendidos – dentre os quais, espera-se, a formação efetiva e significativa do leitor. Não é o

caso, outrossim, de banir o cânone ou demonizá-lo: antes, seria interessa propor uma

formação mais ampla e sólida que pretenda discuti-lo, repensá-lo, mas também dar espaço a

obras reconhecidas como importantes para nossa formação nacional, tais como José de

Alencar, Machado de Assis, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Graciliano Ramos. Por

exemplo, o contato direto com a obra literária, ou seja, leituras integrais, dialogadas, em que

postura crítica e apreciação tenham mais espaço, para além das listas dos vestibulares ou das

provas que “cavam” características e determinam, quase que completamente, como e o que os

alunos e professore devem ler (n)os textos.

Postura similar pode ser pensada em relação às demais práticas escolares de

leitura. Nesse ponto, faz-se necessária uma ressalva: pensar a leitura em sala de aula, na

escola, comumente, é atribuir, por vezes, seu ensino (e toda sua complexidade)

exclusivamente ao professor de Língua Portuguesa – estando aqui incluída, em lugar

privilegiado, o que concebe como ensino da literatura. Entretanto, a leitura, como há séculos,

está longe de se realizar de maneira satisfatória, especialmente nas aulas de língua portuguesa

e literatura. O ensino de literatura pode ser considerado equivocadamente como sinônimo de

ensino ou prática de leitura, mas sabemos que não o é. Ouvir de um aluno que a aula do

professor X é tão boa que “não é preciso ler o livro” soa como ofensa e como atestado de

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fracasso se pensarmos que a experiência de leitura pressupõe (ou deveria) a ideia do contato

efetivo (e quiçá, afetivo) com o texto – o que não significa dizer que não pode (e, por vezes,

deve) haver mediação. Por vezes, as aulas se tornam representações, debates (válidos, com

certeza), entretanto não são espaços efetivos de leitura e de contato real com o texto, com as

palavras, com as estruturas sintáticas, as metáforas e o que elas criam – representações e

formas cuja percepção deve ocorrer no contato que não precisa ser obrigatoriamente solitário,

mas deve acontecer via indivíduo com o texto. E nessa relação, o professor é convidado a ser

também protagonista e analisar com alunos, por exemplo, como construções gramaticais,

escolhas linguísticas contribuem para os efeitos de sentido do texto (BAKHTIN, 2013).

Logo, ainda hoje, muito tempo depois de todo esse modelo cunhado no Brasil do

século XIX (e que seguiu similar no século XX, embora, obviamente, tenha havido mudanças,

como a inserção do trabalho com gêneros nas últimas décadas), deparamo-nos com situações

que tendem a copiar e parecem perpetuar fracassos já experimentados pela sociedade daquela

época: se obras e autores portugueses e brasileiros já apareciam como deslocados pouco

interessantes ao leitor do liceu dos 1800, hoje a situação não é tão diferente. Parece-me que o

problema, como apontado antes, não está no fato de a escola trazer tais obras, propor seu

estudo ou leitura, mas sim o modo como essa leitura é proposta ou ainda como tais livros, por

vezes, tendem a aparecer como os únicos dignos de atenção e debate no ambiente escolar;

desconsiderando, por vezes, totalmente, contribuições além do cânone que podem ser trazidas

por professores e alunos. Como assinalei, a postura dos professores e a abordagem da obra

fazem toda diferença. Não raro, jovens leitores como os aqui entrevistados – por exemplo,

Bruna, Heitor, Fernando e Jéssica – não só reconhecem, como valorizam as experiências de

leituras obrigatórias e as concebem como fundamentais em seu percurso escolar e pessoal. A

partir disso, evidencia-se que haver leituras obrigatórias não significa, necessariamente, o

desinteresse por vezes descrito e verificado no passado e no presente – pelo contrário, tais

leituras podem sim significar o adensamento da formação do leitor e se constituir como

marcas integrantes dos percursos de leitura dos alunos (SNYDERS, 1993; CHARTIER &

HÉBRARD, 1995).

Eis, pois, à contemporaneidade com dilemas seculares. Hoje, reconhecidamente

um dos pilares da educação formal, as práticas de leitura são descritas pelos PCNs como

pedra angular do trabalho escolar, base em que devem ser concentrados esforços pedagógicos

e cujas atividades e desenvolvimento de habilidades e competências devem receber toda

atenção. Atualmente, como é sabido, a leitura comporta a variedade de gêneros e embora seja

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premissa e elemento basilar das aulas de língua portuguesa, não deve ser prática restrita a tal

disciplina. Embora tais pressupostos sejam tão amplamente conhecidos e repetidos, e

sabendo-se que as práticas escolares têm experimentado mudanças e alguns importantes

avanços, isso não garantiu o sucesso dos alunos brasileiros no quesito “competências

leitoras”, ao menos, segundo os resultados do último PISA ou dados de exames nacionais

como a Prova Brasil e o ENEM. Obviamente, não se deve limitar a questão da proficiência do

leitor a essas provas e os aspectos por elas previstos. Há muito além dos exames, perspectivas

outras que não cabem ou não se mensuram. Vale destacar ainda que, no caso dos mencionados

exames, nos referimos a leituras mais pragmáticas, em geral – exames como os citados,

pretendem avaliar, primordialmente, as competências de entendimento e compreensão de

textos do cotidiano, como notícias, artigos de opinião, anúncios publicitários, cartazes.36 Há

também o espaço, ainda privilegiado, para o texto literário, travestido, sobretudo, da história

literária ou da abordagem, por vezes, reducionista de uma crítica voltada para questões

estilísticas e linguísticas, ditada por exames como o vestibular. Contudo, conforme

assinalado, é possível pensar espaços em que a leitura se configure como diálogo e se mostre

como prática significativa – como Fernando, Léo e Bruna, ex-alunos entrevistados por mim,

pontuam. Para eles, as leituras chamadas de obrigatórias lhes forneceram possibilidades de

ampliar repertório, de conhecer e se encantar – e esses jovens atribuem muito dessa feliz

experiência ao modo como foram introduzidos e orientados: não passivamente, mas como

sujeitos com direito à voz, apreciação e opinião. Tais experiências mostram como práticas de

leituras obrigatórias podem se configurar como marco, como referencial cultural e linguístico

a partir dos quais se ganha a atenção dos alunos e também dos professores, visto que os

sujeitos podem se (re)descobrir nesse percurso de leitura, análise e discussão. Por exemplo, a

jovem Jéssica, quando pergunto se houve mudanças em seu comportamento como leitora, em

seus interesses, se a leitura fruição teria interferido, pontua:

J: Olha, não sei se a partir dessa leitura. Eu lembro que a minha visão de literatura mudou

bruscamente com o M. [cita o nome do professor de literatura com quem teve aulas nos 1o e 2o do

Ensino Médio]. Porque ele também fazia leitura fruição. Sempre. Sempre. Agora, eu lembrei disso.

No Ensino Médio eu tive leitura fruição pra caramba com o M. E foi quando as coisas mudaram pra

36 Parece-me que é válido problematizar essa categorização do que seriam os textos do cotidiano – geralmente,

estes são concebidos como aqueles relacionados a aspectos mais úteis, mais imediatos do dia a dia. Contudo, como nos lembra Candido (2004), a fabulação, em suas mais diversas roupagens – as novelas de TV, as canções do rádio, os filmes – também pode fazer dos textos literários textos do cotidiano.

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mim, que eu decidi que eu ia fazer isso, que eu ia estudar isso.37

P38: Mas por que você acha que mudou? O quê que tinha na leitura dele que te fez mudar?

J: Tinha paixão, tinha abertura, entendeu? Eu sempre tive pouca abertura para parnasianismo,

pouca abertura para leituras de clássicos, pouca abertura para tudo isso. Eu sempre achei uma

besteira. Eu curtia beatniks39, e o resto para mim podia ir para o inferno. E o M. foi uma pessoa que

me fez quebrar esses preconceitos, entendeu? Quebrar todos os preconceitos em relação a

algumas práticas de leitura, sabe?

Jéssica, como Léo, Fernando e Bruna, alçara leituras obrigatórias, escolarizadas, à

condição de leitura fruição, consolidando a ideia de que quem atribui o sentido ao texto é, de

fato, o leitor (PETIT, 2008). Mais que isso, vai se maravilhar com a possibilidade de

aproximar-se desses textos e rever suas próprias opiniões sobre eles, “quebrar preconceitos”,

segundo as palavras da própria jovem. Desse modo, o que todos sabemos - que o exercício da

leitura plena vai muito além da decodificação e deve contemplar jogos de linguagem,

consideração de repertórios prévios dos alunos, profundidade de significados e a riqueza de

um processo discursivo (ORLANDI, 2012) mostra-se vívido no contexto escolar quando o

professor é capaz de mediar e encantar seus alunos.

Todavia, o pressuposto de desenvolver a leitura como trabalho com alfabetismos

diversos e destes para capacidades complexas que permitam ao leitor ler, analisar, cotejar,

(inter) relacionar, é tarefa desafiadora ainda. Vários estudiosos, professores e pesquisadores

têm acordado que ler ultrapassa o decodificar ou reconhecer palavras. Kleiman (2010), por

exemplo, insiste que ler significa muito mais que “passar os olhos pela linha”: “(...) leitura

implica uma atividade de procura por parte do leitor, no seu passado, de lembranças e

conhecimentos” (p.27). Ler significa buscar coerência, ativar repertório, conhecimento de

mundo e buscar construção de sentido – e dialogar, interagir com o outro, seja este outro o

autor, seja o interlocutor com quem partilhamos nossa experiência, no constante diálogo em

que a leitura se erige e se realiza – e isso vários jovens e professores ouvidos nesta pesquisa

confirmam, provando que é possível reconfigurar e repensar o contexto escolar das práticas.

37 Essa jovem, atualmente, cursa Estudos Literários na UNICAMP. 38 Para identificar os turnos de fala dos entrevistados, optei por manter as letras iniciais de seus nomes; quando

houver referência a professores (que não os entrevistados, mas sim outros, citados pelos alunos, adotei o mesmo critério. A letra P, por sua vez, identifica meus turnos de fala (professora pesquisadora).

39 Beatniks é um termo que se refere à geração beat, movimento de artistas norte-americanos (principalmente escritores), que se tornaram muito conhecidos no final dos anos 1950 e início da década de 1960. Tais artistas defendiam a vida nômade e antimaterialista, criticando o consumismo da época e fundando comunidades – tais pressupostos foram o embrião para o movimento hippie.

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Em artigo apresentado no Congresso Internacional de Promoção da Leitura,

“Formar leitores para ler o mundo”, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, em

2009, Galeno Amorim, analisando resultados da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”,

assinala que tem havido ganhos e importantes mudanças no que tange ao campo da leitura e à

difusão desta entre o público brasileiro. Os brasileiros, segundo comprovam dados do citado

estudo, estão lendo mais, porém, há de se ter cuidado, pois nem tudo é tão promissor. Amorim

ressalta que, embora crianças e jovens estejam lendo mais, permanecem questões

preocupantes.

Segundo o autor, verifica-se que a leitura ainda não é, de fato, valorizada: “(...) a

sociedade brasileira, embora associe a questão da leitura ao conhecimento e de forma

altamente positiva, ainda não consegue reconhecer a questão do livro e da leitura como um

valor social e estratégico para o futuro” (AMORIM, 2009, p.171). Tal constatação se mostra

bastante concreta quando, mesmo na escola particular, cujo público dispõe de melhores

condições de acesso a livros, os alunos repetem um discurso já sedimentado de que “livros

são caros” ou “é absurdo gastar muito (ou tanto) com livros”. Ou seja, experimentamos, de

modo patente, quer como professores, quer como interessados pelo assunto, um paradoxo de

difícil solução: embora haja um consenso sobre a importância da leitura e da escola enquanto

instituição responsável pela difusão desta e que deve orientar práticas e ações que formem

leitores, sabemos que, no cotidiano, por razões diversas, muito além da disputa com outras

mídias e meios de comunicação, permanece bastante forte o desinteresse – em alguns casos,

até o desprezo – pela leitura. Entretanto, há experiências positivas que comprovam que as

práticas estão atingindo o público jovem. Petit (2008), ao comentar sua experiência

entrevistando jovens, em geral, marcados pela marginalidade e por situações traumáticas,

afirma:

Para os jovens (…), o livro desbanca o audiovisual na medida em que permite sonhar, elaborar um mundo próprio, dar forma à experiência. (…) Ora, para os rapazes e moças que encontrei, a leitura representava tanto um atalho para elaborar sua subjetividade quanto um meio de chegar ao conhecimento. (PETIT, 2008, p. 20)

Ora, a possibilidade de elaborar e constituir a subjetividade, fazer suas escolhas –

incluindo nelas os livros apresentados pela escola – também se faz notar a partir de práticas

consolidadas, como algumas citadas pelos jovens ouvidos neste trabalho. Do mesmo modo

que Jéssica, Léo enfatiza a importância da professora de literatura e produção de texto quando

lia textos e envolvia os alunos:

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Tipo, a aula da T[professora de literatura e redação do Ensino Médio]., eu gostava muito, porque

era muito isso de conhecimento de mundo mesmo, (…) da realidade, de criticar as coisas. Isso me

mostra que não tem que ser uma coisa focada só no vestibular, sabe? Que a gente pode pegar (...)

cultura e conhecimento geral, sem ser uma coisa tão obrigatória, metódica, mas de um jeito que a

gente queira levar. Eu acho que isso pode ter ajudado um pouco, porque quebra esse negócio de

ser obrigatório.

Na fala de Léo, sobressai-se o valor que ele atribui às leituras feitas pela

professora – eram leituras que convidavam os alunos a exercitar a perspectiva crítica, diziam

respeito a assuntos que os interessavam e que os incluíam; eram leituras em que eles, alunos,

tinham autonomia reconhecida e estimulada para discutir. Assim, havia envolvimento e gosto.

Tanto que ele diz que não eram tão obrigatórias, metódicas - sendo que se tratava de aulas

semanais, regulares, mas dada a mediação e a aproximação que se estabelecia, eram aulas

muito agradáveis aos alunos. O obrigatório, neste caso, torna-se refrigério; constata-se, então,

o gozo por conhecer, a “alegria cultural” (SNYDERS, 1993).

Ora, assim vê-se que não é impossível se mudar ou se repaginar as práticas de

leitura. Boa vontade, disposição, conhecimento do professor, espaço para os alunos podem

ajudar a mudar os contextos. Diante de tantas possibilidades e desafios conhecidos, espanta

que algumas escolas e alguns modos de ensinar tenham mudado tão pouco. Há escolas que,

por meio de seu currículo e determinação de leituras, legitimam obras e olhares, controlam e

dizem, ainda hoje, em alto e bom som, o que pode ser lido ou não, por vezes, com postura de

tom autoritário. Se o leitor frente ao texto, em si, sem intermediação, já não é livre, tampouco

tem qualquer chance de escolha, sequer de palpite quando se pensa no currículo. As

imposições do cânone escolar, os objetivos cunhados por provas externas ditam as regras

desse jogo, no que tange às leituras obrigatórias e, na maioria das vezes, são banidas ou

duramente discriminadas leituras que são julgadas como não-dignas de servirem a quaisquer

objetivos considerados maiores, sejam estes linguísticos ou históricos – são leituras quase

clandestinas. Assim, como bem descreve Zilberman (1991), a escola vê-se numa encruzilhada,

pois, embora não seja exclusiva detentora dessa tarefa, deve ensinar a ler e a gostar de ler. E

tendo em vista a complexidade dessa empreitada e as expectativas sociais, quando falha, é

duramente criticada.

E, conforme se apontou antes, essa importância cultural, esse dever da leitura

escolar impõe-se, principalmente, no campo da leitura literária. Por mais que a exigência pelo

gosto do que é lido possa ser partilhada – que família, igreja e outros grupos possam colaborar

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para o desenvolvimento e incentivo do gosto –, percebe-se que a escola detém o privilégio

(ou, para alguns, seria o fardo?) de ensinar a leitura (e também que obras se devem ler) e

despertar o gosto por essa prática e pelas obras rotuladas como clássicas ou obrigatórias.

Zilberman nos alerta:

A escola é o lugar onde se aprende a ler e escrever, conhece-se a literatura e desenvolve-se o gosto de ler [ou deveria]. Ou então estes objetivos não se concretizam, ocasionando dificuldades que rapidamente se refletem na área cultural, mas que precisam ser sanadas com a ajuda da educação. (ZILBERMAN, 1991, p. 10)

Há de se reconhecer, portanto, a supremacia escolar em alguns aspectos das

práticas de leitura, como ensino e apresentação de referências literárias, bem como o objetivo

de aproximar os leitores dessas obras, estimulando processos de apreensão e construção

crítica de sentido. Ou seja, é a instituição que deve primar pela orientação e mediação das

leituras consideradas como fundamentais e formadoras. Logo, é praticamente incontestável

sua importância enquanto aquela que deve ensinar maneiras de entrada e apropriação dos mais

diversos gêneros, com especial destaque para o texto literário, o qual, como já se disse, não é

um texto qualquer e que, mesmo sendo quase monopólio das práticas escolares, sofre

empobrecimento ou simplificação durante as aulas.40

Temos séculos de práticas de leitura – diversificadas, algumas válidas, sem

dúvida, ancoradas em percursos pedagógicos divergentes, nem sempre considerando que o

dever escolar poderia contemplar a alegria da formação e do conhecimento, da construção da

subjetividade pela leitura (PETIT, 2008 e SNYDERS, 1993). Ler para aprender bons valores e

bons costumes, ler para escrever bem, ler para entender, ler para conhecer o país, o mundo –

todas perguntas curtas e repletas de meandros traiçoeiros. Então, por vezes, cabe lembrar: e

ler para apreciar? Por vezes, a determinação de obras e autores via escola nos diz que a

apreciação, a fruição, é inerente ao processo, assim, não seria necessário particularizá-la,

certo? Acredito que não. As entrevistas aqui reunidas mostram que dar espaço à apreciação

mais gratuita configura-se como prática reconhecida e valorizada. Muitos dos jovens

entrevistados por mim, bem como os professores com quem conversei, reconhecem a

particularidade da escola em questão e elogiam não só o momento da leitura fruição, mas

também outras práticas de leitura – as quais, mesmo não sendo, a princípio, de fruição, se

configuram como tal, tendo em vista o prazer e o envolvimento relatado sobretudo pelos ex-

alunos ouvidos.

40 Nesse sentido, Cosson (2009 e 2014) insiste na necessidade de um trabalho particular e cuidadoso de

letramento literário, de modo a privilegiar as características e peculiaridades dos textos literários.

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O que me parece temeroso é que, por vezes, as atividades regulares, limitadas pelo

tempo escasso, pelas exigências ásperas de índices, provas e expectativas (válidas, não

esqueçamos) esgotem ou limitem práticas de leitura e excluam as abordagens do prazer, da

fruição. Embora façam parte do ideal teórico, as atividades que preveem o prazer poucas

vezes conseguem ser incorporadas às práticas de maneira consistente, seja pela dificuldade em

planejá-las e implantá-las, seja porque a leitura pelo prazer não suporta, obviamente, os

instrumentos de avaliação das leituras do dever, como postulava Pennac, numa citação quase

clichê, dada sua rememoração: “O verbo ler não suporta o imperativo” (PENNAC, 1993,

p.13). Contudo, esse mesmo prazer, se encontrado, pode abrir portas e facilitar caminhos,

ampliando olhares e práticas, numa retroalimentação poderosa e que pode partir de fazeres

simples, como o ler em voz alta que propõe a leitura fruição. Petit (2009) nos ensina que, para

haver o envolvimento, é preciso o contato sem pudores, o diálogo sem medo:

De fato, para “encontrar vida nas palavras”, é preciso “estar com os livros, sem pudores”, como essa jovem diz tão bem. [A autora se refere à jovem Soledad, cujo testemunho fora transcrito anteriormente]. Em outras palavras, esses objetos não podem constituir um monumento intimidador, enfadonho. Se o adulto impõe à criança o comportamento que ela deve ter, o bom jeito de ler, se ela se submete passivamente à autoridade de um texto, encarando-o como algo que lhe é imposto e sobre o que ela deve prestar contas, são poucas as chances de o livros entrar na experiência dela, na sua voz, no seu pensamento. Apropriar-se efetivamente de um texto pressupõe que a pessoa tenha tido contato com alguém – uma pessoa próxima para quem os livros são familiares, ou um professor, um bibliotecário, um fomentador de leitura, um amigo – que já fez com que contos, romances, ensaios, poemas, palavras agrupadas de maneira estética, inabitual, entrassem na sua própria experiência e que soube apresentar esses objetos sem esquecer isso. Alguém que descobriu o monumento, fazendo com que encontrasse uma voz singular. Alguém que manifesta à criança, ao adolescente, e também ao adulto, uma disponibilidade, uma recepção, uma presença positiva e o considera como sujeito. (PETIT, 2009, pp. 47-8)

Em suma, mais que imposição, doação; mais que avaliação, partilha; um diálogo

que conjugue, some e contribua, em vez de um processo punitivo ou esvaziado de sentido

para o leitor – penso que é isso que se busca para que a leitura se torne, de fato, menos

obrigação e mais construção dos indivíduos – contemplados aqui professores e, sobretudo,

alunos.

1.2.2. Os leitores, esses ilustres (des)conhecidos

Leitores

Do fidalgo de seca e cítrea tez E de um heroico afã se conjectura

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Que, em véspera perpétua de aventura, Na biblioteca se encerrou de vez.

Seus empenhos, que as crônicas pontuais Narram, e os tragicômicos desplantes, Quem as sonhou foi ele, não Cervantes: São crônicas de sonhos, nada mais.

Tal, também, é minha sorte. Existe algo Imortal e essencial que sepultei Nessa biblioteca do antigo, sei,

Em que li a história do fidalgo. As lentas folhas volta a criança e grave Sonha com vagas coisas que não sabe. (BORGES, 1999, p. 293)

Empresto de Borges a imagem do leitor-sonhador a fim de discutir quem seriam

os leitores – ou melhor dizendo, os leitores dos bancos escolares. Note-se que o leitor de

Borges parece estar na biblioteca; um quê melancólico, absorto, sonhando com o que não sabe

– talvez sua leitura venha elucidar, talvez só traga mais sonhos; talvez esse sujeito apenas leia,

simplesmente. No poema, a imagem da biblioteca guarda o personagem e o sonho em uma

perspectiva suave. No mundo real, esse do dia a dia, ou como quereria Guimarães Rosa (1988,

p. 13), da “linguagem de em dia-de-semana”, o leitor talvez esteja mais aborrecido e menos

sonhador – sobretudo se o encontramos na escola de práticas mais tradicionais, cumprindo o

cotidiano de obrigações e exercícios, em vez de poder estar sonhando à revelia das

imposições. No século XIX, no Brasil, período que delineamos anteriormente neste trabalho,

o leitor, muitas vezes, será descrito e invocado por autores como Machado de Assis ou de

Manuel Antônio de Almeida como alguém a ser seduzido e a ser conduzido (LAJOLO e

ZILBERMAN, 2003), posto que era considerado pouco experiente – tais traços vão persistir

se pensarmos nas posturas escolares (CHARTIER e HÉBRARD, 1995) e também, mais

tardiamente, na transformação da mulher em leitora – caberá, muitas vezes, a tutela e

autorização do homem para que as leituras femininas se efetuem, mesmo no ambiente

doméstico. Embora o leitor tenha adquirido, ao longo de séculos, um pouco mais de respeito e

autonomia, permanece sendo, para muitos, um enigma. É um “desconhecido”, como

proclamam Lajolo e Zilberman (2003), indivíduo também não está dado e pronto, como, por

vezes, parece a muitos – inclusive para a escola:

Quem é o leitor? Se não podemos escrever a biografia do leitor, temos condições de narrar sua história, que começou com a expansão da imprensa e desenvolveu-se graças à ampliação do mercado do livro, à difusão da escola, à alfabetização em

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massa das populações urbanas, à valorização da família e da privacidade doméstica e à emergência da ideia de lazer. Ser leitor, papel que, enquanto pessoa física, exercemos, é função social, para a qual se canalizam ações individuais, esforços coletivos e necessidades econômicas. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, p.14)

Essa função social se estabelece dentro e a partir das posições de diálogo – que

pode ser debate ou enfrentamento – se constrói na escola e por meio das condições materiais,

históricas e sociais que estão em jogo. Também o leitor se delineia considerando sua

disposição em relação ao texto e à forma como este lhe é apresentado, imposto, sugerido.

Assim, imagens, disposições e intencionalidades se desenham.

Bellenger, em sua proposta de melhor entendimento das práticas de leitura, nos

lembra das imagens sociais construídas sobre o leitor – muitas presentes, de modo mais ou

menos explícito, no contexto escolar. Há imagens negativas – ler é uma “atividade trabalhosa,

cansativa. É um passatempo inútil e sobretudo passivo. Quando se lê, não se faz “nada”. Ler é

afastar-se dos outros; socialmente, ler significa isolar-se, ensimesmar-se. A leitura possui uma

imagem pouco ativa.” (BELLENGER, 1979, pp.11-12). Não é difícil verificar a validade de

tais imagens: ao se colher as opiniões de jovens alunos sobre leitura, mesmo de classes mais

favorecidas, não será difícil encontrar aqueles que assim pensem e se expressem sem pudor,

vendo o leitor como aquele que aspira à solidão, que não quer se relacionar com o outro. O

autor também lembra que, muito comumente, a leitura está ligada ao indivíduo “que pensa”,

ao “intelectual” – o que, por mais estranho que nos pareça, a nós, professores, constitui, para

muitos, uma imagem negativa. Ainda, um tanto provocador, Bellenger questiona: “Para que

serve ler? A leitura está desligada de qualquer projeto. Sem ter um objetivo, ela pode ser

objeto de desprezo, de preconceitos, de aversão.” (Ibid., p.12). Seguindo, conclui:

Socialmente, ainda, a leitura é muitas vezes deixada para mais tarde: “Hei de ler quando me aposentar.” A leitura é reduzida aos momentos excepcionais da vida, como o hospital ou a prisão. É reservada também aos momentos difíceis ou desagradáveis: uma longa viagem de trem ou o metrô. É a leitura tapa-buraco, a leitura de “pose”, a leitura passatempo. (Ibid., p.12)

Obviamente, cabem questionamentos sobre tal representação de leitores. Contudo,

essa imagem extremamente pejorativa relacionada ao momento em que “nada mais

interessante e ativo” pode se instaurar e confirmar o desprezo (nem sempre nomeado ou

assumido) de muitos em relação à leitura, em especial, na escola. Necessário lembrar que o

desinteresse pode se relacionar a obras que pouco ou nada dizem aos alunos – conforme

apontei antes, desde o século XIX, quando se delineou um cânone literário, em especial, nota-

se um descompasso entre obras e autores e interesse dos alunos. Além de desajustes culturais

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e habilidades pouco trabalhadas, o que, fatalmente, impacta a leitura e pode torná-la um fardo,

talvez tal apatia também esteja ligada a uma inaptidão de alguns professores para se

aproximar e aproximar os alunos das obras. Ainda hoje, por vezes, a formação do professor é

apontada como deficiente – remontando, mais uma vez, ao triste quadro do século XIX, como

descrito por Lajolo e Zilberman (2003) – e a determinação das obras a serem lidas nem

sempre parece passar por discussão ou análise dos docentes. Docentes e alunos podem se

permitir mergulhar na leitura como experiência, fazendo do espaço das aulas momento de

encontro, momentos de “alegria cultural” (SNYDERS, 1993), em que a leitura seja encontro:

“Um encontro pode dar a ideia de que é possível ter outro tipo de relação com os livros. Uma

pessoa que ama os livros em certo momento desempenha o papel de iniciador, alguém que

pode recomendar livros.” (PETIT, 2009, p. 25) – e o professor pode ser esse anfitrião que

convida o jovem a mares de leitura nunca dantes navegados.

Desse modo, há as imagens valorizadas do leitor – a do indivíduo crítico,

participante, do interlocutor atento, que não é passivo, nem esperará a aposentadoria ou o

“fazer nada” para ler; há mesmo os alunos que se interessam e leem com prazer, mesmo

quando as leituras são obrigatórias. Há o leitor dinâmico, o sonhador, como o descrito pelos

versos de Borges e de outros autores. Enfim, há leitores, únicos e tantos quanto sejam as

leituras; leitores que recriam o que leem, que se (re) constroem o tempo todo a partir e por

meio dos textos que escolhem (PETIT, 2008 e 2013); o “bom leitor”, “(...) [aquele que] opera

uma travessia dos livros, [que] sabe que cada um carrega uma parte dele mesmo e pode

mostrar-lhe o caminho, se ele tiver a sabedoria de não parar por ali […], a linguagem pode

encontrar na travessia do livro o meio para falar daquilo que geralmente nos escapa”

(BAYARD, 2007, pp. 153-5 apud PETIT, 2013, p. 110).

Tendo em vista as concepções de leitura delineadas anteriormente, cabe aqui,

pensar num leitor ativo, em constante ação e reação, em busca e movimento. Para tanto,

recorramos a Certeau, para o qual, como dito antes, a leitura é presença indelével,

característica máxima de nossa sociedade. Para entender melhor tal conceituação, é mister

retomarmos os conceitos de estratégia e tática, basilares no pensamento desse autor:

Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e os objetos de pesquisa etc). Como na administração de empresas, toda racionalização ‘estratégica’

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procura em primeiro lugar distinguir de um ‘ambiente’ um próprio’, isto é, o lugar do poder e do querer próprios. Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro. Gesto da modernidade científica, política ou militar. (CERTEAU, 2012, p.93)

Já a tática seria “a arte do fraco”, ou ainda:

(...) chamo de táticas a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem lugar senão a do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si mesma, à distância numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’, [...] e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera, golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela ganha não se conserva. (CERTEAU, 2012, pp. 94-95).

Mediante tais ideias, poderíamos situar a escola “no meio”, como um elo entre

forças maiores que a instituição – leis, currículos, expectativas culturais e profissionais -, um

elo da cadeia de dominação de uma elite hegemônica. Ainda que seja um espaço legitimado,

ela, a escola, precisa pensar táticas em relação ao que se lhe impõe. Mas também é possível

pensar que, em relação aos alunos exerce e tenta controlar relações de força, mais ainda, quer

gerir (ou tenta) relações entre indivíduos que a integram e e entre esses e o conhecimento –

aqui incluída a leitura. Determinando seus “lugares de poder e de querer”, ela dita, por vezes,

no caso das leituras, via cânone e instrumentos de avaliação, por exemplo, o que devem fazer,

como e o que devem ler alunos e professores, justificando escolhas via seu projeto

pedagógico, por exemplo.

Numa outra perspectiva, concebe-se que a escola pode deter, de certo modo,

algumas estratégias em relação a professores e alunos; segundo esse olhar, os leitores que,

comparativamente, seriam mais “fracos”, exercitariam suas táticas e jogam, “golpe por

golpe”, “lance por lance”, para “estocar benefícios”. Somando-se essas duas ideias, de

estratégias e práticas, poderíamos dizer que as “táticas” encerram o jogo mais sutil dos

consumidores em oposição às “estratégias”, vinculada à hegemonia. Nesse jogo, quem tem o

poder, tem o sentido, autorizando-o ou não aos leitores – porém, estes, sagazes, articulam seus

golpes e também constroem sentidos outros. Segundo Certeau

A leitura fica de certo modo obliterada por uma relação de forças (entre mestres e alunos, ou entre produtores e consumidores), das quais ela se torna o instrumento. A utilização do livro por pessoas privilegiadas o estabelece como um segredo do qual somente eles são os “verdadeiros” intérpretes.

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Levanta entre texto e seus leitores uma fronteira que para ultrapassar somente eles entregam os passaportes, transformando a sua leitura (legítima, ela também) em uma “literariedade” ortodoxa que reduz as outras leituras (também legítimas) a ser apenas heréticas (não “conformes” ao sentido do texto) ou destituídas de sentido (entregues ao ouvido). (CERTEAU, 2012, p.243)

Em outras palavras, há detentores das leituras legítimas, leitores “melhores”,

poderíamos dizer, mais autorizados a ler os textos e construir seus sentidos – em geral, seriam

os críticos, estudiosos, por extensão, os professores, especialistas no texto e na leitura. Aos

alunos, a priori, restaria a posição de leitores “iniciantes”, menos aptos e, portanto, menos

autorizados. Não estamos propondo analisar aqui questões como alfabetismos ou habilidades

e competências, sendo estas, certamente, responsabilidade da escola desenvolver e exercitar

junto aos alunos. Preocupa-me a questão da construção dos sentidos, de permitir ao leitor –

professor e aluno – exercitar sua liberdade, em especial, no que se refere à interpretação do

texto. Porém, permitir e reconhecer a liberdade – o exercício das táticas do leitor – pode

significar enfraquecer as estratégias, as rédeas da instituição: “A criatividade do leitor vai

crescendo à medida que vai decrescendo a instituição que a controlava”(CERTEAU, 2012,

p.243). Dizer ao leitor que ele tem liberdade é minimizar a autoridade legitimada e dar brecha

ao indizível para que se faça presente e se mostre. Por isso, por vezes, reina a opressão e a

imposição:

(…) se a manifestação das liberdades do leitor através do texto é tolerada entre funcionários autorizados (…), ela é, ao contrário, proibida aos alunos (simplesmente ou habilmente reduzidos à escuderia do sentido “recebido” pelos mestres) ou ao público (cuidadosamente advertido sobre “o que se deve pensar e cujas invenções são consideradas desprezíveis, e assim reduzidas ao silêncio”). (Ibid., p.243)

Outrossim, embora haja diretrizes, currículo e projetos, os professores não estão

proibidos de exercitar e demonstrar liberdade. Há espaço, como sugeri e comentarei, a partir

da entrevistas, para inventividade e para “táticas”. Apesar da força do mercado editorial e da

maciça oferta de obras literárias e didáticas (FERREIRA, 2006), bem como a delimitação do

cânone ao longo de séculos, contextos e situações que parecem dizer que livros ler

(CHARTIER e HÉBRARD, 1995), que sentidos são permitidos e que, consequentemente,

ditariam os rumos que as aulas de leitura – ou mesmo as leituras fora dos muros da escola –

deveriam ter, há espaço, há brechas para as “artes do fazer”, para a reinvenção da leitura

(CERTEAU, 2012). Mesmo se sentindo pressionado ou sem acesso a recursos outros (além da

mídia e do mercado “oficiais”), cercado por ofertas mercadológicas ou mesmo conduzidos

pelo planejamento didático, os professores não são forçados a reproduzir práticas. Há espaço

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na sala de aula para se fazer “diferente”, promover práticas e experiências (BONDÍA, 2002)

significativas – como comprovam os relatos de alunos e professores ouvidos nesta pesquisa.

Por outro lado, se é fato que esses leitores podem ser considerados consumidores,

são, contudo, como adverte Certeau (2012, p.38), dominados (o que não quer dizer passivos

ou dóceis): retomando a ideia das estratégias e práticas, não são simples alvos de submissão,

estão em permanente luta para bular o poder e dar vazão a seus desejos e vontades. Fraco

talvez, mas não dócil, o leitor subverte e mostra-se, segundo outra imagem de Certeau, como

“(...) produtor de jardins que miniaturizam e congregam o mundo” (CERTEAU, 2012., p.245)

e ainda:

Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros de servos de antigamente, mas agora trabalhando no solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-los. A escritura acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar e multiplica sua produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a gente se esquece e esquece), ela não conserva ou conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por onde ela passa é repetição do paraíso perdido. (CERTEAU, 2012, p.245)

Compõe-se, assim, uma paisagem: leitura como tática, escrita como estratégia.

Viajantes e entusiastas do “paraíso perdido”, os leitores vão, por assim dizendo, criando seus

golpes e estabelecendo novos modos de fazer; são táticas multifacetadas, as quais nem sempre

são (ou querem ser) reconhecidas pela escola – esta, por vezes, prefere se fechar em seus

muros, cerrar os livros e tentar encerrar neles os percursos dos leitores, como se pudesse

controlar e prever os movimentos todos desses nômades.

Relacionando tais considerações à leitura fruição, pode-se pensar nesta prática

como um terreno que mistura táticas dos professores e dos alunos, dado que se trata, no caso

deste estudo, de uma atividade, mesmo parte do projeto pedagógico do colégio, propõe a

liberdade e a opção – inclusive no modo como cada um, professor e aluno, vai “lidar” com

leitura. Há os que fazem desse momento e espaço oportunidade para táticas outras, visando a

aproximação e ampliação de relações acadêmicas e interpessoais. Pela leitura fruição, pode-se

promover mais uma abertura, mais uma possibilidade de liberdade, em que o professor seja

“mediador” e também faça “um trabalho sobre si mesmo, sobre seu lugar, sobre sua própria

relação com os livros” (PETIT, 2009, p. 26) e partilhe essa reflexão com seus alunos.

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1.2.3. Um leitor para e com outros leitores: o professor

Retomando ideias já apresentadas, a leitura é concebida neste estudo como prática

dialógica, constituída em contato e conversa com o outro, mas também, como jogo de forças e

táticas frente a estratégias previamente estabelecidas. As práticas de leitura estão em constante

construção e exigem constante negociação entre o eu e o outro – sejam eles leitor e obra,

leitor e autor, ou ainda, leitor e outro leitor. Na escola, a figura do professor toma, por vezes, a

posição que legitima o poder institucional e o corporifica frente aos alunos; alteridade que é,

por vezes, estranhamento e que acaba encarnando em si uma espécie de “para-raios” - é

mediador, por excelência, mas é autoridade (às vezes, autoritária); confirma um suposto e

equivocado monopólio do conhecimento, mesmo em tempos de internet e circulação frenética

de informações. Contudo, nenhum projeto de leitura na escola será bem-sucedido se não for

considerado e valorizado o papel do professor como mediador e principalmente como leitor.

Nos jogos e nas negociações em que se constituem, as práticas de leitura pedem

que, assim como na infância de muitos, os pais e outros familiares foram modelos, o professor

assuma sua participação decisiva no processo de ensino-aprendizagem. O educador deve

traçar caminhos para que se delineie e se aprimore o percurso de leitores de seus alunos – com

eficácia, mas também com gosto. É preciso parceria e cumplicidade, tomar os jovens leitores

pelas mãos e também indicar possibilidades novas em horizontes diversos, incentivar a

autonomia, de modo a respeitar suas escolhas e seu repertório prévio, dando-lhes, a crianças e

jovens, oportunidades de escolha. Todavia, também se deve, enquanto indivíduo que

representa a instituição, corroborar práticas e preceitos que auxiliem no desenvolvimento e

aprimoramento de competências e habilidades linguísticas e textuais, de modo a confirmar

lugares de autoridade e de orientação – garantir, pois, o título de especialista. Petit sugere que

“O iniciador [aos livros] é aquele ou aquela que exerce uma função-chave para que o leitor

não fique encurralado entre alguns títulos, para que tenha acesso a universos de livros

diversificados, mais extensos. Porque uma das especialidades dos livros é a sua enorme

variedade”(PETIT, 2008, p. 175) – cabe, pois, ao professor ser mediador, ser “orientador”, no

sentido do que mostra, oferece os livros e pode tornar o contato com eles mais afável e/ou

sedutor.

Na escola, a mediação é fundamental – sobretudo em relação aos alunos menores

– e ela deve se construir como um processo de admiração, confiança, um jogo de espelhos e

de convite ao conhecimento de textos vários – ou seja, como um processo em que o professor

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permita a aproximação e convide a ela, em que ele, professor, seja um apaixonado que

contamine seus alunos:

Tudo o que podem fazer os iniciadores de livros é levar as crianças – e os adultos – a uma maior familiaridade e a uma maior naturalidade na abordagem dos textos escritos. É transmitir suas paixões, suas curiosidades, questionando seu lugar, seu ofício e sua própria relação com os livros. É dar às crianças e aos adolescentes a ideia de que, entre todas essas obras, certamente haverá alguma que saberá lhes dizer algo em particular. É multiplicar as ocasiões de encontros, de descobertas. É também criar espaços de liberdade onde os leitores possam traçar caminhos desconhecidos e onde terão disponibilidade para discutir com eles sobre essas leituras, se assim o desejarem, sem que ocorram intromissões caso esses leitores queiram guardar suas descobertas para si. (PETIT, 2013, p. 37)

Esse papel de modelo deve ir muito além da imagem daquele que propõe a leitura

como obrigação e confirma posturas institucionais mais ou menos engessadas: o professor

deve também ser um leitor apaixonado, ao qual é facultado, além das leituras e do cânone

oficial (SNYDERS, 1993), escolher e partilhar o que está além. Ao presenciar e partilhar o ato

da leitura do outro, seja dos familiares, em casa, e, posteriormente, do professor, as crianças e

jovens podem se sentir convidadas à “imitação”, no melhor sentido do termo – fazer aquilo

que parece bom, também praticar e experienciar o que parece tão sedutor. O professor deve

ser, pois, um facilitador, uma presença que permita o conhecimento e que o estimule,

incitando, inclusive, ao desafio e, se possível, ao encontro de si próprio e à construção da

subjetividade:

Se, em certo sentido, existe uma contradição irremediável entre o ensino da literatura da escola e a leitura que fazemos por conta própria, ao menos cabe aos professores fazer com que os alunos tenham uma maior familiaridade, que sintam mais confiança ao se aproximarem dos textos escritos. Fazer com que sintam sua diversidade, sugerir-lhes a ideia de que, entre todos esses textos escritos – de hoje ou de ontem, daqui ou de outro lugar – haverá certamente alguns que dirão algo muito particular a eles. (PETIT, 2008, p. 178)

Modelo de leitor, o professor, como lembra Pennac, promove o “gesto do ato”, o

que convida à aprendizagem: “aquilo que uma criança aprende primeiro não é o ato, mas o

gesto do ato, e que, se por um lado, ela pode ajudar na aprendizagem, essa ostentação é, acima

de tudo, destinada a tranquilizá-lo, nos contentando” (PENNAC, 1993, p. 46). Nota-se, assim,

a importância do gesto de ler para o outro e como essa atitude simples pode resgatar o prazer

da leitura: “Ler. Em voz alta. Gratuitamente. Suas histórias preferidas.” (Ibid., p.56) Some-se

a isso o fato de que, além de modelos prévios, o jovem leitor já tem seus percursos outros,

além da instituição, como o professor também o tem. Reconhecer tais movimentos ou, ao

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menos, respeitar essas trajetórias externas à escola também se configura como prova de

respeito e pode auxiliar os diálogos a serem travados no ambiente institucional.

Assim, além das leituras mais dirigidas e voltadas a objetivos curriculares estritos,

a proposta de praticar algo simples, porém eficiente, segundo testemunhos de leitores

apaixonados, pode surpreender: ler em voz alta, mostrar a leitura ao outro, revisitar “jeitos de

ler” e convidar, no caso, o aluno, a partilhar disso e recuperar o encanto descrito por Pennac.

“– O mais importante era o fato de que ele nos lia em voz alta! Essa confiança que ele

estabelecia, logo no começo, em nosso desejo de compreender... O homem que lê em voz alta

nos eleva à altura do livro. Ele se dá, verdadeiramente, a ler!” (Ibid., p. 91).

Certamente, o professor não será o único modelo – familiares e bibliotecários, por

exemplo, são figuras que também se confirmam fundamentais para nutrir esse gosto, como

bem analisa Petit (2008). Entretanto, é crucial a presença do professor e o seu exercício como

leitor do prazer, aquele que não só cobra, avalia, mas aprecia e compartilha isso com seus

alunos, que “dá a ler” (e a se ler também) - e não só sob as vistas da cobrança e da imposição,

mas também da gratuidade. Ele não deixa de ser mediador e também leitor: sempre o será,

mantendo, porém, essa fagulha do encantamento ao permitir o compartir de suas experiências

únicas de leitura e também se mostrar sujeito viajante pelos caminhos dos textos.

Nesse sentido, lembra-nos Kleiman, da importância do modelo de leitor –

relacionada à necessidade da mediação e do exemplo do professor, de que: “(...)

indiretamente, através do modelo que o adulto lhe fornece, esse leitor estabelecerá

eventualmente seus próprios objetivos, isto é, desenvolverá estratégias metacognitivas

necessárias e adequadas para a atividade de ler” (KLEIMAN, 2010, p.35).

Portanto, a posição modelar não anula a da orientação, na verdade, complementa-

a e pode despertar a admiração. O aluno pode ser conduzido e orientado, mantendo-se e

garantindo-se o diálogo que deve marcar seu caminho de leituras e o respeito a sua história e

experiências pregressas. O que se pode propor, como ingrediente decisivo que enriqueça as

atividades típicas da escola, é que haja espaço para exercício de autonomia e que isto seja

valorizado. Outrossim, cabe repensar a figura do professor com um leitor especial, talvez um

pouco mais experiente, posto que tem “mais tempo de estrada”, mas não necessariamente

melhor – talvez mais autorizado em termos técnicos, linguísticos, mas aberto a possibilidades

de se fazer e se ressignificar constantemente.

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1.3. Cânone, escolhas e “crise”

Ao analisar como as práticas de leitura foram se constituindo no Brasil, Lajolo e

Zilberman (2003) descrevem todo um percurso histórico, comentado neste trabalho, que

integra e, por vezes, torna leitura e literatura indissociáveis. De fato, não há como se negar

que mesmo hoje, décadas depois de a escola ter incluído em seu currículo a diversidade de

gêneros textuais e o ensino, em tese, ser pautado pela concepção da discursividade e da

diversidade,41 a literatura ainda ocupa espaço privilegiado, sendo, por vezes, considerada

como o objeto de leitura, por excelência, na escola. Mesmo para alunos e até professores, falar

sobre leitura é, majoritariamente, falar sobre literatura42 – por mais polêmica que essa

ideia/concepção seja.43

Historicamente, obras e autores foram consagrados como presenças obrigatórias

nos bancos e livros escolares. Em geral, são aquelas produções reconhecidas por um certo

senso comum culturalmente constituído, dadas como supostas unanimidades, embora nem

sempre sejam, de fato, apreciadas e estimadas por alunos e professores. Contudo, por trás do

que parece algo inquestionável – grandes autores, grandes obras, cuja qualidade parece

indiscutível e a qualidade, intrínseca - , cabe refletir um pouco sobre como foi se construindo

o processo de escolarização e de canonização de certas obras em detrimento de outras.

Zilberman, ao recapitular a história da literatura como disciplina, lembra:

A literatura não passou a fazer parte do currículo escolar sob sua identidade original. Primeiramente integrou o Trivium, dissolvendo-se entre a Gramática, a Lógica e a Retórica; depois, quando a Renascença privilegiou o ensino da cultura clássica, serviu de modelo para a aprendizagem das línguas grega e latina. A pedagogia do século XVII opôs-se a essa prática e sublinhou a necessidade de os alunos estudarem o vernáculo; subiu de cotação o trabalho com a poesia em tradução, mas a pretexto de facilitar o conhecimento das normas clássicas de criação artística, de compreensão cada vez mais difícil, dada a distância temporal e vivencial. Só após a Revolução de 1789, os franceses introduzem na escola a literatura nacional, que, a partir de então, torna-se objeto da história literária, disciplina que ensaia seus primeiros passos nesse momento e consolida-se algumas décadas depois em toda a Europa, para reinar inconteste por muitos anos.(ZILBERMAN, 2008, p.19)

41 Conforme ditam os PCNs de Língua Portuguesa (1998). 42 Não é objetivo deste trabalho conceituar o que é literatura. Como Abreu (2006), acredito que a construção da

ideia do literário se dá historicamente, a partir de diferentes referenciais e expectativas. Não se trata de um conceito pronto, acabado, mas de uma concepção que comporta conceituações, mas não se fecha numa definição cabal.

43 Escolhi privilegiar aqui a questão da literatura e do cânone, pois, como se verá adiante, no capítulo 4 desta tese, em sua maior parte, tanto alunos quanto professores, as práticas de leitura são reconhecidas e valorizadas principalmente a partir do que se pode chamar de texto literário, seja este canônico ou não.

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A partir daí, a literatura apoiou-se, no início do Romantismo, não por acaso,

período da ascensão burguesa ao poder, à ideia de exaltação da identidade nacional, por meio

da supremacia da língua nacional: “Nada mais conveniente do que consagrar a língua dos

poetas como a nacional, desprezando os fatos regionais e populares, e usar a escola como

veículo de difusão, apostando no prestígio da literatura para validar as opções feitas”(Ibid., p.

20). Sintetiza a autora:

Desde então [ascensão do Estado burguês] o ensino da literatura oscila entre dois objetivos: ajuda a conhecer a norma linguística nacional, de que é simultaneamente a expressão mais credenciada; arranjada segundo um eixo cronológico, responde por uma história que coincide com a história do país de quem toma o nome e cuja existência acaba por comprovar. Não por acaso todas as histórias da literatura brasileira se esforçam por demonstrar que a produção literária nacional nasce com o início da colonização do território americano, assumindo componente diferenciais desde as primeiras manifestações, e acompanha, pari passu, as várias fases de nossa história, de que passa atestado reconhecido por todos. (Ibid., p.20)

A aceitação desses princípios se constituem, então, como os pilares para entender

como se estabeleceu o cânone que temos hoje nas escolas. Partindo de obras consideradas

representativas de uma “identidade nacional” e que consolidavam uma suposta autonomia

linguística, a literatura se estabeleceu e ainda hoje pode ser reconhecida nesses moldes, se

examinarmos qualquer material didático disponível no mercado e nas escolas. Nesse ponto,

cabe pensar, além dos fatores nacionais, o que mais colabora para que o cânone se estabeleça

como tal?

Partindo das concepções de Even-Zohar, Fidelis propõe que

(…) a literatura em sua face mais concreta – os textos – passa por um processo de canonização que se relaciona às leis e normas de funcionamento estabelecidas no interior do sistema (polissistema) por seus elementos constitutivos, entre eles: produtores, consumidores, produtos, repertório, as instituições e o mercado. O processo de canonização relaciona-se à produção dos textos literários e diz respeito a certas propriedades que se tornam canonizadas, ou seja, refere-se a normas (leis) e obras literárias aceitas como legítimas pelos círculos dominantes e dignas de serem perpetuadas. A canonicidade de um texto, portanto, não é uma característica intrínseca, mas dá-se por um processo em que algumas leis podem ser consideradas universais e outras estão sujeitas a diferentes períodos e culturas (Even-Zohar,1990, pp. 17-19 apud FIDELIS, 2008, p.10).

Em linhas gerais, tornar um texto canônico significa proclamar que este apresenta

valores estéticos e linguísticos dignos de nota e de representatividade cultural, considerando-

se determinado contexto histórico e é, portanto, uma referência e modelo para leitura e até

para escrita. Esses valores são determinados, por assim dizer, por críticos, estudiosos,

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especialistas – profissionais que, não raro, estão distantes da realidade da sala de aula. Porém,

a distância, em vez de ser questionada, é alavancada, por vezes, à condição “superior”, de

quem pode impor, ficando assim, pressuposta, uma desqualificação ou incapacidade da

própria comunidade escolar para definir e escolher suas leituras. A esse quadro complexo,

soma-se o abismo por vezes existente entre professores e academia – lugar de onde, por vezes,

vêm as imposições e escolhas das “belas obras”. Também integram essa teia interesses

mercadológicos que dizem o que se publicar, para quem e com que objetivo – por exemplo,

munir os alunos das obras das listas do vestibular ou de paradidáticos. Assim, o texto se torna

modelo a ser respeitado e paira no ar a obrigação de ser ovacionado pelos leitores. Como

aponta Fidelis:

Os textos, portanto, transmutam-se em uma literatura canonizada e esta, por sua vez, torna-se sinônimo de cultura oficial – o centro do sistema – e o repertório de maior prestígio. Este repertório cultural passa a ser o conjunto de modelos (normas e obras que devem ser preservados pela comunidade como herança cultural. (FIDELIS, 2008, p.10)

Essa determinação de uma modelo cultural, via, principalmente, uma literatura

nacional, escolarizada, de obras consideradas basilares para compor o repertório cultural dos

alunos pode, então, ser hoje confrontada e questionada: identidade de quem, para quem?

Modelo para quê? Não se trata mais de obras consideradas modelos para escrever bem, pois a

produção de texto está mais “afinada” com a perspectiva discursiva do que com as aulas de

leitura em si. Ora, como nos bancos escolares do século XIX, os alunos não se reconhecem e

não reconhecem como expressão sua ou de sua comunidade os cânones assim estabelecidos

pela escola. A consagração destas obras, por vezes, gera o efeito contrário ao pretendido: em

vez de aproximação e interesse, marca presença o afastamento e a ojeriza: será que o aluno (e

o professor) se reconhece no épico de Alencar ou no humor (humor?) de Macedo? Será que

esses leitores conseguem reconhecer como expressão deles ou de sua família, de amigos, a

ironia machadiana, tão elogiada e celebrada? Claro que há de se considerar que a escola deve

ser espaço para tomar contato com obras que talvez não venham pela mídia ou não se

mostrem interessantes pelas redes sociais – e que podem se mostrar agradáveis e de leitura

prazerosa. Pensando de outro modo: a escola deveria ser o espaço da admiração, e o professor,

aquele que conduz à admiração (SNYDERS, 1993). Tudo depende, acredito, da predisposição

e preparo do professor, bem como das atividades que movimentarão para aproximar alunos e

textos. Não se trata de banir a apresentação de Machado, Alencar ou outros nomes –

outrossim, tal arcabouço, tal repertório de “obras primas” deve se fazer desejável; que a

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escola em si fosse o espaço que permitisse a relação do aluno com a obra-prima como

“dialética continuidade-ruptura”:

Continuidade: esforço para vincular o novo ao que já constitui a experiência e o gosto. Ruptura: existem coisas que ultrapassam e até mesmo transcendem o habitual. Que os alunos percebam que existem grandes obras, grandes ações, grandes personagens – muito acima do que se faz diariamente. Choque, atração do choque, atração pelo que passa das medidas ou, pelo menos, das minhas medidas. A continuidade é a valorização da vida, da pessoa, da cultura dos alunos. A ruptura é a confiança nas obras-primas, na ação das obras-primas e no papel da escola de modo que o aluno não fique alheio a elas. Pretendo valorizar o cotidiano e a obra-prima; não pretendo renunciar nem ao cotidiano nem à obra-prima. (SNYDERS, 1993, p. 161).

Tudo pede adequação e mais que mediação, como já dito, o professor, modelo de

leitor, deve ser ele mesmo um leitor em “sentido pleno”, ciente do potencial cultural dos

textos, experimentando e dando a provar o texto, criando e estimulando meios para isso.44

Entretanto, há de se considerar a pressão da instituição e também a postura de

acomodação de vários (infelizmente, às vezes, dos próprios professores): é válido e bom o que

a escola assim diz, assim prescreve. Tais e tais obras são “boas” porque “nasceram” assim,

como se houvesse uma qualidade inerente a elas. Para muitos alunos e professores, o que

parece realmente bom e interessante está “fora da sala de aula”, mesmo que isso não possa ser

dito abertamente ou reconhecido. O que agrada é o romance da moda, o best-seller que se

tornou filme (e que, a partir do cinema levou muitos à leitura), a indicação um tanto

clandestina que não cabe nas carteiras nem no livro didático – e muitas vezes agrada porque

“não cai na prova” e não será submetido a nenhum crivo avaliativo. Em geral, um jogo de

exclusões e até de radicalismos em que todos saem perdendo, porque não se cede, não se troca

de posição com o outro para ver o que ele, o outro, o que não é considerado, tem a oferecer.

Ainda hoje é preciso estabelecer referenciais, fazer escolhas, eleger cânones – não

é possível ler tudo na escola e se faz mister, como em outras épocas, bancar escolhas – talvez

o que exija um pouco mais de atenção é como esse processo deve se instaurar, a partir de que

pressupostos e tendo-se mais clareza quanto aos objetivos. Não há como se negar que

instrumentos de aferição de alguns níveis de leitura – daí a importância de exames como a

Prova Brasil, ENEM e o PISA – nos fornecem também parâmetros para análise e intervenções

44 Há, nas entrevistas a serem apresentadas no capítulo 4 desta tese, relatos de ex-alunos e de professores que

encontram muito prazer nas leituras obrigatórias, canônicas. São casos em que a mediação e também a abordagem das obras, com espaço para diálogo, apreciação e discussão parecem ter feito a diferença. Não se trata, assim, de reduzir as obras à história literária ou a linhas do tempo. Exercitar a leitura de modo compartilhado, como se demonstrará, pode ser um caminho interessante para valorização e revitalização deste cânone.

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necessárias e que se faz necessário escolher leituras, no sentido de determinar algumas obras e

autores, tendo em vista as limitações do tempo escolar. Outrossim, os alunos, ao final de seu

percurso escolar, devem ter desenvolvido habilidades que lhes garantam a leitura bem-

sucedida e eficaz de gêneros textuais diversos, em especial, no que tange à leitura aplicada ao

exercício da cidadania e de suas funções no mercado de trabalho. Porém, uma vez superada a

preocupação da formação escolar/profissional, abre-se a lacuna e o desafio para que as

práticas de leitura vão além das razões mais pragmáticas e atinjam o indivíduo em seu âmago

mais pessoal – que a leitura lhes toque e lhes faça sentido também no âmbito do humano,

pessoal, intransferível – inclusive a leitura literária:

A leitura contribui assim para criar um pouco de “jogo” no tabuleiro social, para que os jovens se tornem um pouco mais atores de suas vidas, um pouco mais donos de seus destinos e não somente objetos do discurso dos outros. Ajuda-os a sair dos lugares prescritos, a se diferenciar dos rótulos estigmatizantes que os excluem, e também das expectativas dos pais ou dos amigos, ou mesmo do que cada um deles acreditava, até então, que era o mais adequado para o definir. (PETIT, 2008, p. 100)

Enfim, mais que leitores pragmáticos e “usuários” da leitura, instaura-se o desafio

de serem apreciadores: que haja, além da experiência da prática, a experiência da estesia e do

reconhecimento de si, de suas relações e do mundo no texto, além da possibilidade de

deslocamento e transgressão.

Nesse cenário em que exclusões (a das leituras não canônicas) e aparências (a

aparente e irrevogável qualidade e validade dos “clássicos”, aqui considerados como

sinônimo de obras canônicas) se digladiam, o leitor, astuto, por meio de suas táticas, busca

margens e caminhos além do oficial para dar vazão a seus gostos – e ir se formando, além das

estratégias da escola. Como descrito por Lajolo e Zilberman, “(...) raras vezes as leituras que

produzem prazer circulam em ambiente sancionado, como a escola” (2008, p.219). Isso valia

para o século XIX e parece, por vezes, valer ainda hoje.

Desse modo, considerando desencontros e inadequações, talvez faça sentido se

pensar em “crise na leitura”, em especial, no que se refere à literatura. Segundo Zilberman

A crise levou o ensino de literatura a se indagar sobre o seu sentido e finalidade. De certo modo, a literatura precisa descobrir, considerando as novas circunstâncias, em que consiste sua natureza educativa. Não pode ser a que desempenhou na Antiguidade, porque a escola se interpôs entre a obra e o leitor, com consequências inegáveis. Mas não pode ser a consagrada pela sociedade burguesa , que lhe conferiu o papel de intermediária entre o indivíduo e a língua escrita e/ou história nacional, por essas ideias não terem sentido para os grupos sociais de origem popular que hoje reivindicam o acesso à escola. (ZILBERMAN, 2008, p. 22)

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Não se trata mais, como apontara a autora, de grupos em movimento de ingresso

na escola. Hoje, a democratização do ensino abarcou as classes menos favorecidas e, mesmo

entre os alunos de elite, não se pode pleitear uma identificação absoluta em relação ao que a

escola prega como referencial cultural e, portanto, de leitura – embora talvez se devesse,

conforme propõe Snyders (1993), pensar a escola como um espaço para acesso a obras

consagradas, por meio de aproximação que não ocorreria da mesma forma (significativa, via

admiração e necessidade cultivada) em outros lugares. Assim, repensar as práticas de leitura,

avaliar o que se faz, o que se pode fazer para formar o leitor efetivamente é premente.

Zilberman assinala que “Compete hoje ao ensino da literatura não mais a transmissão de um

patrimônio já constituído e consagrado, mas a responsabilidade pela formação do leitor”

(Ibid., p. 22). Ouso extrapolar que o ensino da leitura em si deveria almejar a formação do

leitor e não a mera verificação linguística ou de compreensão básica de texto – tendo-se em

vista que tais aspectos poderiam ser contemplados, mas como componentes de competências e

habilidades mais complexas e significativas para os alunos.

No caso do texto literário, que tem espaço privilegiado na e pela escola,

diferenciado também é o trabalho a ser feito, como analisa e propõe Cosson (2009) ao

esmiuçar práticas e abordagens a serem dedicadas a esse, que segundo o autor, é uma

categoria muito especial de letramento. Seja como for, Zilberman sintetiza bem o papel

marcante que a presença da literatura pode desempenhar na formação do indivíduo:

Dúbia, a literatura provoca no leitor um efeito duplo: aciona sua fantasia, colocando frente a frente dois imaginários e dois tipos de vivência interior; mas suscita um posicionamento intelectual, uma vez que o mundo representado no texto, mesmo afastado no tempo ou diferenciado enquanto invenção, produz uma modalidade de reconhecimento em que lê. Nesse sentido, o texto literário introduz um universo que, por mais distanciado do cotidiano, leva o leitor a refletir sobre sua rotina e a incorporar novas experiências. A leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, na medida em que permite ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade, sem perder de vista sua subjetividade e história. O leitor não esquece suas próprias dimensões, mas expande as fronteiras do conhecido, que absorve através da imaginação mas decifra por meio do intelecto. Por isso, trata-se também de uma atividade bastante completa, raramente substituída por outra, mesmo as de ordem existencial. Essas têm seu sentido aumentado, quando contrapostas às vivências transmitidas pelo texto, de modo que o leitor tende a se enriquecer graças ao seu consumo. (ZILBERMAN, 2008, p. 23)

Mais uma vez, ressalto que me detenho na questão do texto literário dada sua

presença marcante não só na escola, mas como parte integrante crucial do objeto de estudo

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deste trabalho, a leitura fruição. Sendo uma prática de leitura diferenciada,45 marcada pelo

diálogo e também pela expectativa em se recuperar e/ou incentivar o gosto à leitura, sobretudo

de textos literários, parece-nos válido relativizar o que se concebe por crise. Seria

imprescindível que a leitura estimulasse a proximidade entre leitores e texto, em exercício de

interlocução e condições de igualdade para a apreciação, como Zilberman ressalta:

A leitura estimula o diálogo, por meio do qual se trocam experiências e confrontam-se gostos. Portanto, não se trata de uma atividade egocêntrica, se bem que, no começo, exercida solitariamente; depois, aproxima as pessoas e coloca-as em situação de igualdade, pois todos estão capacitados a ela. Em certo sentido, a leitura revela outro ângulo educativo da literatura: o texto artístico talvez não ensine nada, nem se pretenda a isso; mas seu consumo induz a algumas práticas socializantes, que, estimuladas, mostram-se democráticas, porque igualitárias. (ZILBERMAN, 2008, p. 24)

Embora as considerações acima não versem especificamente sobre a leitura

fruição, parece-me válido pensar que há traços que se aplicam diretamente a ela. O

movimento indivíduo – grupo, pressupondo uma “igualdade”de apreciação que aproxima e a

ideia de uma prática que estimule uma postura democrática, posto que o acesso ao texto é

oportunizado a todos me parecem pontos a destacar. Nem sempre outras leituras realizadas no

ambiente escolar permitem esse exercício de proximidade e socialização. Seria muito

gratificante e enriquecedor se assim o fosse e não é porque a leitura fruição pode oportunizar

isso que outras práticas de leitura não busquem os mesmos objetivos.

Outro aspecto que gostaria de enfatizar é que, por vezes, o que se concebe como

“crise da leitura” ou falta de leitura dos alunos pode ser confundida com um afastamento das

leituras propostas pela escola – mas não das leituras como um todo. Conforme Zilberman

diagnostica:

A escola dificilmente o estimulou [o exercício da leitura], a não ser quando condicionado a outras tarefas, a maior parte de ordem pragmática. Hoje, quando o ensino está em crise, apresenta-se como necessidade prioritária, pois faculta a reaproximação a um objeto tornado estranho no meio escolar. Porém, talvez se constitua também no ponto de chegada, na medida em que oferece alternativas diversas daquelas recorrentes na história da educação (ZILBERMAN, 2008, p. 24)

Ponto de partida ou de chegada, a leitura está lá, espreitando e acontecendo,

oficial ou clandestinamente. Na verdade, é mister perceber que reações díspares - como a

aparente rebeldia dos alunos os quais não querem ler o que a escola dita ou dos professores

cujas atividades são pouco interessantes; ou ainda a esperança daqueles que sonham conduzir

45 Ampliarei as considerações acerca da leitura fruição no próximo capítulo.

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seus alunos às viagens impagáveis dos livros e mesmo os alunos que são leitores apaixonados

(sim, eles existem) – e seus respectivos discursos contraditórios têm uma origem bastante

conhecida.

Nem sempre a escola respeita as escolhas dos alunos, desautorizando a autonomia

e a voz do outro, do interlocutor, tratando “(...) a leitura [como se fosse] (...) um processo só,

pois as diferentes maneira de ler (para ter uma ideia geral, para procurar um detalhe) são

apenas diversos caminhos para alcançar o objetivo pretendido” (KLEIMAN, 1992, p.35). A

escola pretende formar leitores competentes e, ainda, por vezes, ousa desejar leitores que

sejam capazes de ver o belo, que estejam abertos a essa sensação, mas nem sempre lhes dá

liberdade ou oferece outros caminhos se não aqueles institucionalizados e legitimados por

suas práticas, ainda que estejam desgastadas e esvaziadas – ou ainda, não provoca nos alunos

(e, por vezes, nem nos professores) a admiração necessária para abordar e se apropriar de um

amplo repertório cultural acumulado, considerando-o válido e desejável (SNYDERS, 1993).

Assim, vale repensar como são encaminhadas nossas atividades de leitura, como conduzem

(ou não) a tão desafiadores objetivos. É Kleiman que destaca:

Cabe notar que a leitura que não surge de uma necessidade para chegar a um propósito não é propriamente leitura; quando lemos porque outra pessoa nos manda ler, como acontece frequentemente na escola, estamos apenas exercendo atividades mecânicas que pouco têm a ver com significado e sentido. Aliás, essa leitura desmotivada não conduz à aprendizagem; como vimos anteriormente, material irrelevante para um interesse ou propósito passa despercebido e é prontamente esquecido. (KLEIMAN, 2010, p.35)

Dessa forma, resume-se parte do fracasso e das frustrações enfrentados por

professores e alunos; assim, desenha-se a crise, em linhas gerais. É provável que os

professores estejam repletos das melhores intenções quando conduzem e determinam títulos e

estratégias de leitura, bem como de avaliação. Porém, tal condução, por vezes, tem se provado

ineficiente e a leitura torna-se, então, mais uma atividade escolar enfadonha e vazia de sentido

para os alunos. E a interlocução entre leitores e obras vai, pois, esmorecendo e se

desintegrando.

É verdade que, em geral, nos primeiros ciclos da Educação Básica – Educação

Infantil e do Ensino Fundamental I –, os alunos são convidados e envolvidos por estratégias

lúdicas que visam despertar o gosto de ler. Infelizmente, tais propostas, por vezes, à medida

que se avança para os ciclos do Fundamental II e Ensino Médio, tendem a se esvair ou são

cruelmente destruídas por exigências como provas (internas e externas), trabalhos

bur(r)ocráticos, fichas de leitura e outros exercícios cujas finalidades se esgotam em si

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mesmas, sem maiores contribuições para formação de leitor. São práticas que tendem a

reforçar as posturas autoritárias da escola e pouca margem dão para que o leitor atue e tenha

voz, seja esse leitor o aluno ou o professor. É certo, ainda, que cada recurso tem seu porquê,

sua justificativa de existência e cada professor sabe (ou deveria) o que o conduz a optar por

tais instrumentos de avaliação.

Não é descabido admitir, portanto, que várias estratégias de leitura utilizadas em

sala de aula têm objetivos específicos para avaliar apreensão ou desenvolvimento de

competências linguísticas – sim, o texto, por vezes, é pretexto para ensino não só das

convenções ortográficas, ou fixação dos alfabetismos necessários, para que se desenvolvam,

posteriormente, atitudes mais refinadas de leitura, como compreensão de inferências,

ambiguidades e outras habilidades mais complexas. Enquanto instituição detentora dos

saberes formais, autorizada e também cobrada pela família e sociedade, a escola,

historicamente, se tornou a responsável por desenvolver e verificar habilidades de leitura, de

modo a legitimar certas práticas, mantendo-se, outrossim, o dever de apresentar obras, autores

e fomentar o lendário “gosto literário”. Considere-se, contudo, que nem sempre esse dever se

desenvolve e se concretiza em prazer. É possível – ex-alunos entrevistados confirmam – que

as leituras previstas pelo currículo, canônicas, sejam prazerosas e significativas. Porém, isso

demanda cuidado e trabalho cuidadoso do professor ao encaminhar e orientar as leituras,

postura possível, nem sempre constante.

Parece faltar, por vezes, o espaço para “boas” leituras – obrigatórias ou não - ,

bem como para que se entenda melhor, na prática, que a leitura, como tenho defendido, se

deflagra por diálogos entre autor e leitores e leitores com outros leitores – espaço esse

possível, como mostram as entrevistas e análises que apresentarei mais à frente. Cabe pensar

também não só em tornar o obrigatório desejável, mas também em suscitar possibilidades

outras de leitura – tais como a leitura fruição – práticas que permitam os movimentos fortuitos

e inesperados dos leitores:

As divisões que estabelecem uma oposição entre leituras “úteis” e leituras de “distração” não valem mais: eles [os jovens] podem se divertir com o movimento das estrelas, e pensar que seja infinitamente “útil” e precioso descobrir palavras que dão voz a seus medos ocultos ou um sentido à sua vida. Também são igualmente imprevisíveis na forma como recebem um texto: deslizam sua fantasia entre linhas, deturpam seu sentido. Muitas vezes, extraem apenas alguns fragmentos, uma frase, uma metáfora, que copiam ou esquecem rapidamente, mas que de todo modo deslocam o ponto de vista a partir do qual se pensam ou pensam sua relação com o mundo. (PETIT, 2008, p.57)

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Trata-se de repensar categorizações e rótulos aos quais as leituras são submetidos,

tendo em vista os movimentos inusitados que os leitores, em suas caças imprevisíveis, fazem.

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2. Uma proposta: a leitura fruição

Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade. (CANDIDO, 2004, p. 186)

2.1. Uma breve história da leitura fruição.

Há quem considere que toda leitura pressupõe e comporta, obrigatoriamente,

fruição. Talvez isso se aplique à leitura quando conquistada como prática autônoma, escolhida

e procurada pelo sujeito, sem preocupação com prazos, avaliações, aferições ou ainda quando

as tarefas escolares se mostram interessantes e significativas aos alunos, constituindo-se a já

citada “alegria cultural” (SNYDERS, 1993). Contudo, conforme breve panorama traçado no

capítulo anterior, a questão do prazer nem sempre acompanha a leitura – sendo uma situação

um pouco mais delicada e complexa quando buscada nas práticas escolares. Ao longo de uma

trajetória em que o dever de ler sempre esteve em pauta (se consideramos a história traçada

por Lajolo e Zilberman (2003), bem como de outros autores), o gosto e a fruição, por vezes,

não foram contemplados ou o foram de modo pouco marcante.

Segundo Pennac (1993), por vezes, para as crianças, a leitura é preciosa porque se

mostra gratuita, sem obrigações e imposições; é um convite ao prazer, ao encontro do outro,

das aventuras. Pennac diz que, na infância, as leituras eram presentes (no sentido temporal e

também de dádiva) e faziam não querer dormir, havia o prazer do livro, da história contada e

compartilhada46; depois, veio o tempo em que ler se tornou obrigação da escola e a imposição

pela autoridade passa a provocar sono e desinteresse invencíveis – esvaindo-se, então, o

prazer de adormecer nas ondas da voz do pai (ou do adulto que fosse). E assim, Pennac diz,

vamos esquecendo o que é ler por prazer, para degustar outros mundos. Gratuidade seria o

ingrediente fundamental para que tal encantamento existisse: “A gratuidade, que é a única

moeda da arte” (PENNAC, 1993, p.34). Desse modo, segundo a crítica proposta por Pennac,

parece que a escola se dispõe a despedaçar aquela fruição primeira da leitura:

46 É válido lembrar que nem todos vivenciam na infância essa situação da leitura prazerosa e, talvez se possa

dizer, frequente, partilhada e incentivada por pais, avós ou outros adultos. Heath (1982) já demonstrou, em seu detalhado estudo etnográfico, tal impasse, confrontando exemplos de crianças que frequentemente ouviam/liam histórias e de outras em cujos lares tal prática eram menos assídua ou até inexistente. Em seu trabalho, a autora comenta como acontece tal evento de letramento, bem como alguns possíveis reflexos que a leitura de histórias como contos de fadas pode ter na vida escolar e no desempenho de crianças nos primeiros anos escolares.

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Parece estabelecido por toda a eternidade, em todas as latitudes, que o prazer não deva figurar nos programas das escolas e que o conhecimento não pode ser outra coisa senão fruto de um sofrimento bem comportado. Tudo isso é defensável, entende-se. E não faltam argumentos. A escola não pode ser uma escola do prazer, o qual pressupõe uma boa dose de gratuidade. (PENNAC, 1993, p.78)

Tal crítica seria, parece-me, também provocação, convite à perplexidade: não há

mesmo espaço para o prazer da leitura na escola? Caberia ainda considerar que essa descrição

de Pennac, na verdade, é uma opinião, portanto, parcial, e cabe a dúvida. A fim de que haja

mais dureza (talvez mais choque para aqueles que leem suas palavras), num olhar superficial,

afigura-se o julgamento de Pennac como uma concepção que não comporta a possibilidade da

“alegria cultural” proposta por Snyders (1993). Para este autor, conforme já se citou, a escola

poderia ser o lugar em que aprendizado e prazer se encontram e se provocam de modo

auspicioso e frutífero: saber e aprender mais e perceber nisso a possibilidade de crescimento e

de acesso a repertórios diversos, a “obras-primas”, seria algo deveras satisfatório e

estimulante para comunidade, professores e sobretudo alunos. Objetivando-se tal fusão entre o

dever e a fruição, é preciso relativizar e repensar, então, se, necessariamente, a ideia da

obrigatoriedade seria autoritária e esvaziada de significado – em especial, ao que se refere à

leitura e à importância que esta tem para a construção da identidade e incremento de

referências para percepção de mundo.

A pesquisadora Michèle Petit, importante referência para nossas discussões, ao

defender a leitura e a maciça importância desta na formação e consolidação da subjetividade,

faz uma importante ressalva em relação à postura que talvez fosse a mais desejável em relação

ao ato de ler:

Ninguém deveria ser obrigado a “gostar de ler” (além do que nada dissuade mais a se aproximar de um livro do que tais injunções). Que cada um seja livre, bem entendido, para preferir os trabalhos manuais, os esportes ou o pôquer à leitura e à escrita: estamos aí no campo dos “lazeres”, socialmente construído, onde as inclinações pessoais prevalecem. (PETIT, 2009, pp. 286-7)

Entretanto, ressalta a autora, a experiência da apropriação da cultura escrita seria

bastante desejável por três motivos: necessidade prática de se ter e manter certa habilidade

com escrita; exercício de vencer a dificuldade de ter voz ativa no espaço público e o fato de

que o acesso à literatura permitiria construir um repertório cultural para “se construir ou se

reconstruir na adversidade” (PETIT, 2009, pp. 287-8). Mais uma vez, vemos que dever e

prazer podem caminhar juntos e se imiscuírem num objetivo comum: ler para ser, se construir

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como pessoa e ampliar vivências e laços; enfim, construir uma subjetividade que não exclua o

outro, mas sim saiba dialogar com a alteridade e com a adversidade, respeitando o diferente

(PETIT, 2008; 2013).

Se consideramos possíveis esses encontros entre o obrigatório e a fruição, entre

leitura e construção de si e do outro, cabe, então, pensar o que seria esse deleite, como se

daria e como seria possível criar ambientes, momentos e situações oportunas e adequadas para

que o contato prazeroso com os mais diversos textos ocorresse. Aqui, contudo, surge mais

uma questão: o que seria, pois, esse prazer?

Barthes é categórico ao dizer que não há como explicar ou racionalizar o “prazer

do texto” e que essa percepção do que é prazeroso é extremamente individual:

Se aceito julgar um texto segundo o prazer, não posso ser levado a dizer: este é bom, aquele é mau. Não há quadro de honra, não há crítica, pois esta implica sempre um objetivo tático, um uso social e muitas vezes uma cobertura imaginária. Não posso dosar, imaginar que o texto seja perfectível, que está pronto a entrar num jogo de predicados normativos: é demasiado isto, não é bastante aquilo; o texto (o mesmo sucede com a voz que canta) só pode arrancar este juízo, de modo algum adjetivo: é isso! E ainda mais: é isso para mim! Este “para mim” não é nem subjetivo, nem existencial, mas nietzschiano (“no fundo, é sempre a mesma questão: O que é que é para mim?...”). (BARTHES, 2002, pp. 19-20)

Nessa reflexão – e tudo que ela carrega de complexo, rico e incômodo - , temos a

percepção do prazer que, além de extremamente pessoal, é, talvez, indescritível em si, mas

possibilita, de modo misterioso, dialético, dizer muito de si e do outro. Como analisa Petit, a

leitura nos forma, é ingrediente fundamental para que se construa a nossa identidade (em

relação a nós, aos outros, ao mundo); é exercício individual, busca particular, pois “cabe a

cada um construir sua própria identidade”(PETIT, 2008, p. 11); contudo, é possibilidade viva

de interação para que se estabeleçam vínculos em vez de práticas excludentes:

Em muitos países, as pessoas se preocupam justamente com o aumento das condutas de risco entre crianças e jovens. Este é um motivo a mais para nos interessarmos pelo papel que a leitura pode desempenhar na elaboração da subjetividade, na construção de uma identidade singular e na abertura para novas sociabilidades, para outros círculos de pertencimento. Estes, na maior parte do tempo, fundam-se sobre uma exclusão: é meu país, minha cidade, meu time de futebol, meu pedaço de calçada contra o seu. Compartilhar histórias lidas ou contadas dá, às vezes, o sentimento de que os pertencimentos podem ser mais flexíveis. (PETIT, 2008, p.12)

Embora este trabalho não tenha se desenvolvido com jovens em situação de

risco/marginalidade (como as pesquisas de Petit), acredito que é plausível uma analogia: são

“tempos bárbaros”, segundo análise do crítico Antonio Candido:

Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate

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de uma barbárie ligada ao máximo de civilização. Penso que o movimento pelos direitos humanos se entronca aí, pois somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade à busca, não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam, mas do máximo viável de igualdade e justiça, em correlação a cada momento da história. (CANDIDO, 2004, p. 170)

Tempos em que a intolerância (religiosa, política, cultural, entre outras) manifesta-

se com força por vezes estarrecedora e questões identitárias se fazem, por vezes,urgentemente

atuais,47 causando perplexidade a qualquer um que se mostre minimamente sensível aos fatos,

por vezes, inverossímeis que a humanidade produz. Nesse contexto, jovens e adultos, alunos e

professores recorrem à leitura – e às discussões e aos diálogos ofertados por ela – como uma

alternativa para entenderem melhor seu mundo, entenderem a si, ao outro e talvez

estabelecerem redes de pertencimento e de acolhida. Lemos, ainda, para aliviar e para nos

salvar das tragédias e das dores; é a leitura como possibilidade terapêutica (PETIT, 2009).

Mas lemos também para (sobre)viver à normalidade, por vezes, estarrecedora e que nos

soterra: “Fora dos espaços em crise, vários homens e mulheres leem assim, dia após dia, para

abrir o espaço e suportar o confinamento ao qual são submetidos (…)” (PETIT, 2009, p. 80).

Para que a leitura, então, se confirme como território de discussão, de conhecimento de si e do

outro, de contextualização e indagação sobre o mundo, de liberdade e de refrigério, muitos

encontros possíveis devem ser oferecidos e vão muito além do que é indicado pelo escola;

porém, passam, sem dúvida, pelas práticas escolares de leitura e creio ser possível que se

consolidem por elas e a partir delas, o gosto e o prazer oportunizados via leituras escolares.

Muitos, incluindo programas do Estado de incentivo à leitura, especialistas e

estudiosos – veem as práticas de leitura na escola como aquelas mais aptas e mais

incentivadoras ao gosto e, consequentemente, ao prazer de fruir o texto. Isso pode acontecer

(e somos desejosos que assim seja, cada vez mais). Contudo, conforme se discutiu

anteriormente, a escola se construiu, historicamente, como o lugar do dever, das atividades de

leitura dirigidas e das imposições de leitura (principalmente no que concerne a que textos e

autores se deve ler), excluindo ou desconsiderando-se, por vezes, se haveria gosto ou

apreciação. A sala de aula pode ser também o lugar do prazer (inclusive por meio do dever) –

e essa abertura pode ser decisiva para que ocorra uma experiência de fato marcante e

47 No momento em que escrevo essa tese, vemos a crise dos refugiados na Europa, bem como o recrudescimento

(e extravasamento brutal) da intolerância no Brasil – o que pode ser comprovado por casos como o da menina de 11 anos que foi agredida no Rio de Janeiro (junho/2015) por ser praticante do candomblé – além dos muitos casos frequentes de desrespeito e agressão motivados por questões de gênero, etnia, entre outras questões, enfim, situações várias, cotidianas e que passam por “banais”, muitas vezes.

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significativa para alunos e professores. A ideia basilar da leitura fruição é a de recuperar um

contato com a leitura que parta, sobretudo, da partilha e da gratuidade – e isso não significa

deixar de lado a formação do leitor, ao contrário, essa prática está concentrada na ideia de

fortalecer práticas significativas, que comportem em si leitura, socialização e construção de

significados.

Nos primeiros anos da vida escolar, ou seja, no período de alfabetização, pode ser

notável essa configuração da leitura como prazer, revestida, comumente, de ludicidade e

diversão. À medida, porém, que avança a formação escolar, nota-se que prazer e leitura vão,

muitas vezes, se dissociando. Bellenger (1979) e Pennac (1993) resumem, com pertinência,

um pouco do percurso “tradicional” de muitos enquanto leitores: passa-se daqueles que amam

àqueles que odeiam a leitura ou são indiferentes a ela, posto que esta deixa de ser sedução e

diversão e se torna odiosa obrigação, dever sem finalidade reconhecida, sem razão aparente

em nossa vida. Tal transmutação, por vezes, parece ocorrer devido a atividades escolares as

quais despem as leituras (literárias, inclusive) do prazer e da curiosidade, aquelas que, quando

crianças, atraíam e convidavam ao mergulho no texto e “faziam sentido”.

Desse modo, desaparece ou arrefece, para várias pessoas, o gosto pela leitura –

principalmente, pela leitura direcionada pela escola – pois outras leituras “rebeldes”

continuarão acontecendo. Busca-se fora dos muros escolares, longe de provas e fichas, o

prazer, o encantamento primeiro que já fora sentido um dia. Lajolo e Zilberman admitem,

como já citei, que a clandestinidade será a via do prazer:

Essas leituras são clandestinas porque nada têm de pragmáticas. A escola, prática e aplicada, considera-as indesejadas e bane-as, estabelecendo-se uma dicotomia intransponível e inconciliável. Se a escola patrocinar leituras que atendam apenas à imaginação e ao gosto, rompe o pacto educacional; se evitá-las, torna-se detestável, sem impedir que as leituras prediletas continuem a proliferar, na clandestinidade ou não. A escola, num caso, torna-se incompetente; no outro, impopular. (LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, p.231)

As autoras assinalam que a postura da escola tem sido, em geral, de

distanciamento e, mais, de condenação em relação às leituras que podem ser ditas

“clandestinas”, “marginais”, o que fomenta uma postura “inconciliável” - não há espaço, via

de regra, para que a sala de aula comporte o obrigatório e o que, escapando à imposição, seria

prazeroso.48 Esse gosto viria pelas obras não reconhecidas pelo cânone ou, hoje (e outras

48 Guedes-Pinto (2002), em seu doutorado, ouviu depoimentos de histórias de leituras de professoras

alfabetizadoras. Muitas de suas entrevistadas relatam a leitura clandestina como componente de suas trajetórias. A autora aponta que esse é um aspecto que contribui para o desprestígio da figura da professora dos anos iniciais.

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épocas, como o próprio século XIX), aquelas celebradas pelo mercado editorial como best-

sellers (e automaticamente tachadas como impróprias e indignas pela e para a escola), ou

ainda qualquer texto que não tenha recebido o reconhecimento e “sagração” dos professores e

estudiosos – em outras palavras, qualquer obra que, por motivos diversos, divirja em relação a

temáticas, qualidades literárias, linguísticas e/ou estéticas propostas como referenciais

culturais pela escola.49

É preciso lembrar que obras canônicas são capazes de oferecer momentos de

apreciação e fruição, por assim dizer50 e que a aproximação entre texto e leitor, no âmbito

escolar, guarda forte relação com o professor e o tipo de mediação e as atividades propostas.

Tendo em vista situações em que professores não leem em voz alta para a turma ou não têm o

costume de ler para si, ou ainda aqueles que estão “presos” a estratégias questionáveis no que

se refere à abordagem e mediação da leitura – como a limitação a provas, resumos ou fichas

de leitura –, nota-se que o gosto, por vezes, murcha. Nesses casos, embora seja citado como

um dos objetivos a se atingir, sabe-se que a leitura por prazer vai se tornando fato raro na

escola. Contraditoriamente, ao conhecermos os leitores mais apaixonados, será possível

averiguar que muitos devem à escola boa parte de sua competência leitora. No entanto, há

quem se proclame leitor apesar da escola. Martins, por exemplo, aponta:

Os estudos da linguagem vêm revelando, cada vez com maior ênfase, que aprendemos a ler apesar dos professores que, para aprender a ler e compreender o processo da leitura, não estamos desamparados, temos condições de fazer algumas coisas sozinhos e necessitamos de alguma orientação, mas uma vez propostas instruções uniformizadas, elas não raro causam mais confusão do que auxiliam. (MARTINS, 1994, p.12)

Ou seja, muitos aprendem a ler e a gostar de ler apesar dos professores e das

demandas escolares – não são raros os testemunhos de escritores sobre esse comportamento

que deixou de ser pitoresco e se tornou um terrível clichê daqueles que são considerados bons

leitores. Sabe-se que cada pessoa tem uma relação muito peculiar com os textos – tal

afirmação, carregada de obviedade, pede atenção mais cuidadosa. A ideia de oportunizar,

disponibilizar leituras outras, em especial, pelo viés da gratuidade, seria mais um caminho

para o incentivo e o despertar do interesse – objetivos almejados mas nem sempre atingidos,

note-se.

49 Chartier e Hébrard (1995) mostram como esse controle/tutela sobre a leitura é herdado pela escola das práticas

leitoras religiosas. Quando a igreja dominava a vida política, social e cultural da sociedade ocidental, a vigilância ao que se lia era forte e intensa. Os leitores clandestinos eram punidos de forma grave, conforme o romance O nome da rosa, de Umberto Eco, retrata.

50 Afirmo isso considerando relatos de ex-alunos nas entrevistas colhidas para este trabalho.

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Nesse contexto, a leitura fruição – também chamada leitura deleite – nasce muito

ligada à ideia do estímulo e da propagação da leitura e vem se constituindo há décadas, como

resposta a demandas e reivindicações dos professores e da sociedade:

A leitura deleite vem na esteira de uma história de mais de 30 anos de mobilização da sociedade civil, por meio da organização de entidades, hoje mais conhecidas por ONG (organização não-governamental) pela defesa da formação do leitor brasileiro. É importante lembrar, que a leitura deleite, identificada também pelas nomenclaturas “leitura prazer”, “leitura fruição”, “hora do conto”, etc., remete, portanto, a uma história de muitas lutas pelos educadores brasileiros ocorridas durante as décadas dos anos 1970, 1980 e de 1990, pela promoção da prática leitora no país. Nessa época o número de pessoas analfabetas, somadas às altas taxas de evasão e reprovação nas escolas, configurando o fracasso escolar, retratava uma realidade difícil, que desafiava a todos os profissionais que trabalhavam com a educação. Nesse período vivenciamos uma série de campanhas e de eventos que reivindicavam a democratização do acesso da leitura e da escrita a todos os cidadãos brasileiros. Podemos citar os Congressos de Leitura do Brasil (COLE), e a formação de entidades como a Associação de Leitura do Brasil (ALB), e posterior consolidação de outras mais antigas, como a da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ)51, que têm ocupado um lugar muito importante frente à luta pela ampliação do número de leitores, das bibliotecas e pela expansão e divulgação dos livros para a população. (GUEDES-PINTO, 2016, p.2)

Seguindo em seu percurso que permite recuperar e entender como se implantou,

gradativamente, a leitura fruição, Guedes-Pinto lembra ainda a importância de iniciativas do

Ministério da Educação (MEC),52 o qual, por meio de programas como Literatura em Minha

Casa (1998), posteriormente denominado como Programa Nacional da Biblioteca Escolar

(PNBE), possibilitou a formação e circulação de acervos mais amplos às escolas e à

comunidade escolar. Tais ações contribuíram para o maior acesso a obras de literatura de

qualidade e permitiu também que professores, alunos e outros interessados tivessem mais

opções de leitura. Tais iniciativas se traduzem também como mais oportunidades de escolha e

também possibilidade de flexibilização e ampliação das práticas de leitura. É preciso ressaltar

que, tanto em suas “origens” como em sua implantação na escola, a leitura fruição surge

muito ligada à alfabetização, ou seja, aos anos iniciais do Ensino Fundamental, tornando-se,

assim, prática e estratégia formativa fundamental de programas de formação de professores

51 Ainda podemos citar outras entidades importantes como o CEDES, a CNTE, a ANDES (no âmbito da

educação). Junto a elas pode-se mencionar o trabalho das universidades por meio da divulgação dos resultados de pesquisa, por exemplo, na área do ensino da leitura e da escrita e também por meio da participação de muitos de seus docentes em cargos técnicos de governo, podendo, então, atuar de forma direta em algumas políticas públicas.

52 Ainda sobre as campanhas de leitura que percorrem a história do Brasil, Lajolo e Zilberman (2009) asseveram que o fato de tais campanhas terem se multiplicado principalmente a partir da década de 1980 é um elemento indicador de que o sistema educacional brasileiro inaugurado por José de Anchieta e Manuel da Nóbrega no século XVI não deu frutos.

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como o Pró-Letramento e, mais recentemente, o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa

(PNAIC).53

No caso deste último e mais recente programa de abrangência nacional, desde seu

início em 2013, a leitura deleite fora alçada à condição de estratégia formativa basilar,

corroborando o ideal do “alfabetizar letrando” que permeia e ancora toda a proposta formativa

do PNAIC (GUEDES-PINTO, 2016). A leitura deleite, então, é parte estratégica, pois propõe

estimular professores, incentivando o gosto à leitura, postura a ser multiplicada e cada vez

mais estimulada em sala de aula, o que é corroborado por Lajolo (2005), também citada por

Guedes-Pinto (2016): “alunos que têm professores que gostam de ler de verdade e que

acreditam na leitura têm mais chances de também gostar de ler” (LAJOLO, 2005, p. 27).

Guedes-Pinto também ressalta que a leitura deleite deve ser incorporada às rotinas

alfabetizadoras, fortalecendo e ampliando as práticas de leitura:

Especialmente a prática da leitura deleite, como frisado antes, ao se tornar uma atividade permanente no cotidiano escolar para as crianças e para o professor, ao longo do tempo, ela pode ganhar mais significados. Se anteriormente não estavam acostumados a guardar um tempo e um espaço próprios para o desenvolvimento e a fruição da leitura deleite, ao terem a chance de usufruírem dos textos e a apreciá-los, esses – o tempo e o espaço, - podem ser redimensionados dentro da sala de aula. As carteiras podem ser organizadas em formato de U para se ter a possibilidade de ouvir melhor a história lida e de se acompanhar as ilustrações, tornando o ambiente mais aconchegante. O tempo pode ser ampliado, de forma que textos de diferentes tamanhos possam capturar a atenção de quem escuta. (GUEDES-PINTO, 2016, p. 4)

Percebe-se, portanto, que além de proporcionar o contato com obras variadas, a

leitura fruição ainda oferece a oportunidade de se alterar positivamente a geografia da sala e o

planejamento do tempo das atividades, enfatizando a importância de momentos dedicados

exclusivamente à leitura e à apreciação do texto, por exemplo, no suporte livro – ou qualquer

outro que conte com linguagens outras, além da verbal. Desse modo, a leitura extrapola

definitivamente a ideia de decodificação, convidando aluno e professor para apreciação

estética que contemple linguagens diversificadas e também comporte outras possibilidades de

ser e estar em sala de aula.

Implantando-se ligada aos anos iniciais, tal proposta enfatiza a convivência no

ambiente escolar de diferenciadas práticas de leitura. Ora, a escola pode permitir essa

confluência e reencontrar-se com esse desejo proposto e reavivado, em muitos casos, pela

leitura fruição; as escolhas dos alunos e professores e tudo que isso significa pode contribuir

53 Também pode ser citado, nesta direção, a proposta “Olimpíada de Língua Portuguesa” (2009), promovida pelo MEC com instituições parceiras como CENPEC, Itaú Cultural.

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para o enriquecimento do repertório intelectual, mas também emocional do leitor e colaborar

com práticas pedagógicas, à medida que algumas barreiras ou resistências podem ser

enfraquecidas ou mesmo revistas54. Seria possível, dessa forma, buscar redescobrir o

encantamento que, quando crianças, muitos tinham com a leitura e a escrita – como diz

Pennac, resgatar a descoberta que fora como a da “pedra filosofal”, metamorfose indelével, da

qual “ninguém se recupera”, viagem da qual “não se retorna ileso” (PENNAC, 1993, p. 43). A

liberdade alimenta, pois, o gosto. Tal objetivo – da leitura gratuita, mais “leve”, é enfatizado e

garantido, pois, em atividades dos anos iniciais do Ensino Fundamental, aliada a e

intensificada por outras atividades relacionadas à alfabetização e ao letramento dos alunos

mais jovens. Nesse segmento, são reconhecidos os benefícios oferecidos pela prática de

apreciação desinteressada traz aparentemente. À medida, porém, que se avança na

escolaridade, tal gratuidade, por vezes, vai sendo substituída pelo peso do dever, como se a

ideia de “leitura séria” e significativa necessariamente implicasse a exclusão ou

desconsideração do gosto – além disso, essa leitura sem justificativa que não a da apreciação

parece pouco adequada aos alunos maiores, cobrados por exames externos. Em tempos de

provas e exigências que pressionam a todos, o tempo urge e tempo é conhecimento – e se a

leitura não serve para nada, além da fruição, para muitos, não merece tomar o precioso

tempo/espaço da sala de aula – uma concepção pautada, certamente, por ditames econômicos

(ORDINE, 2016).

Assim, instaura-se o confronto entre dois lugares que são a infância e a vida

escolar do dever, da leitura como obrigação, e instaura-se, segundo Pennac “a erosão de nosso

prazer” (PENNAC, 1993, p.37). A infância feliz, de leituras que eram presentes e faziam não

querer dormir torna-se, muitas vezes, o tempo improvável em que ler se tornou obrigação da

escola/autoridade, tarefa que dá sono (e antes o impedia, tamanha a ansiedade e desejo pela

história e sua continuidade, qual fôssemos vítimas de Sherazade), leituras que não são do

prazer, do dormir embalados pelas aventuras que flutuam nas ondas da voz do pai, seguindo a

princesa ou cavalgando com o príncipe. Ou seja, à medida que se cresce e fichas de leitura e

relatórios são impostos, diz o autor, e se vai esquecendo o que é ler por prazer, para conhecer

outros mundos, divertir-se – pelo menos, no ambiente escolar. Veio a imposição e nos

atrapalhou, diz ele, depois de haver acendido em nós o desejo pelos livros, pelas histórias,

pelas linhas mágicas. A mesma instituição que antes instigava, agora, controla e silencia: “A

54 No capítulo 4, pretendo fundamentar melhor tal ideia, analisando relatos de professores e ex-alunos que

atestam ser a leitura fruição possibilidade de aproximação não só pessoal, mas até em termos acadêmicos.

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escola não pode ser uma escola do prazer, o qual pressupõe uma boa dose de gratuidade”

(PENNAC, 1993, p. 78).

Como professora e leitora, partilho da perplexidade e também de certo tom

melancólico do texto de Pennac. A isso soma-se, contudo, certo idealismo Parece-me possível

que, apesar dos percalços, além e somado ao dever (que, como dito anteriormente, também

pode educar e conduzir ao gosto, à apreciação grata do texto), o percurso do desejo e do

prazer da leitura seja retomado, que haja um espaço para certa gratuidade – e que isso

aconteça além dos anos iniciais. Quando revisitamos o histórico da leitura fruição como

proposta escolar, conforme o percurso traçado por Guedes-Pinto (2016), percebemos que tal

prática aparece muito relacionada ao Ensino Fundamental, principalmente, aos anos iniciais.

Os professores reportam a experiência de tal leitura e parecem encantados com essa

possibilidade. Porém, à medida que se avança para os anos finais do Ensino Fundamental e

para o Ensino Médio, tal prática, com suas especificidades, parece desaparecer. Considero,

como professora, que incentivar (e até ensinar, no sentido de orientar, mostrar) o gosto e a

fruição deveriam ser objetivos inerentes às práticas de leitura escolares. Contudo, vivenciei,

como docente e também como aluna, situações em que o gosto não “vinha ao caso” ou era

dado como intrínseco às leituras propostas. Por vezes, não há espaço para esse exercício do

prazer, da apreciação gratuita e desvinculada de avaliação. Acredito, apesar de tudo, ser

possível tentar experienciar esse prazer do texto, em especial, permitindo a autonomia, o

compartilhamento de apreciações, dando, aos professores e aos alunos, voz e espaço para que

tragam as suas leituras, não de forma a pôr necessariamente em xeque o que o planejamento

escolar prevê, mas sobretudo como maneira outra, mais uma oportunidade para contato e

experiência com o texto. Certamente, isso também pede, da parte de professores e alunos,

desprendimento e tolerância, como Barthes nos ensina: “Se aceito julgar um texto segundo o

prazer, não posso ser levado a dizer: este é bom, aquele é mau” (BARTHES, 2002, p. 19).

Acredito que a leitura fruição, em especial, se pensada para leitores mais “experientes” -

como alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e jovens do Ensino Médio, permite que

se compartilhem textos vários, extrapolando ou mesmo recuperando o cânone, mas com outro

objetivo – o da apreciação, em especial, no que se refere à leitura literária.

Entretanto, bem como ocorre com qualquer práticas ou proposta, a leitura fruição

não é uma unanimidade, mesmo sendo notáveis seus possíveis efeitos, quando implementada

como proposta a ser levada a sério. Nem mesmo no colégio contemplado por esta pesquisa,

onde tal leitura faz parte do projeto pedagógico, os professores a abraçaram tal como se

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esperaria.55 A não-adesão ou até mesmo o sentimento de desconfiança vizinhos a essa leitura

talvez possam ser explicados justamente por aquilo que me parece mais caro: a falta de

controle, de “verificação” ou de “objetivo palpável”: apreciar, fruir é algo que não admite

mensuração, ou seja, algo incontrolável. Além disso, a leitura fruição abre espaço para que

diferentes modos de ler, em especial, modos de ler e de se ouvir, além do escolar, se

manifestem – e venham à tona instabilidades e efemeridades que não são bem quistas pelo

ambiente escolar, posto que permitem táticas diversas dos sujeitos e põem em xeque a

autoridade das leituras legitimadas. Admite-se, assim, que o leitor exponha suas fragilidades e

que não sejam estas mais consideradas como tal, mas sim como situações e táticas outras

(CERTEAU, 2012), “golpes sorrateiros”, além do que é esperado, cotidianamente, nos limites

da escola. Portanto, o espaço e o tempo para a fruição estabelecem outra relação com o texto,

relação de honestidade com as diferenças e instabilidades, como descreve Barthes acerca da

leitura:

(…) não lemos tudo com a mesma intensidade de leitura; um ritmo se estabelece, desenvolto, pouco respeitoso em relação à integridade do texto: a própria avidez do conhecimento nos leva a sobrevoar ou a passar por cima de certas passagens (pressentidas como “aborrecidas”) para encontrarmos o mais depressa possível os pontos picantes da anedota (que são sempre suas articulações – o que faz lançar a revelação do enigma ou do destino): saltamos impunemente (ninguém nos vê) as descrições, as explicações, as considerações, as conversações, tornamo-nos então semelhantes a um espectador de cabaré que subisse ao palco e apressasse o strip-tease da bailarina, tirando-lhe rapidamente as roupas, mas dentro da ordem, isto é: respeitando, de um lado, e precipitando, de outro, os episódios do rito (qual um padre eu engolisse a sua missa). A tmese, fonte ou figura do prazer, põe aqui em confronto duas margens prosaicas: ela opõe o que é útil ao conhecimento do segredo e o que lhe é inútil; é uma fenda surgida de um simples princípio da funcionalidade; ela não se produz diretamente da estrutura das linguagens, mas apenas no momento do seu consumo; o autor não pode prevê-la: ele não pode querer escrever o que não se lerá. No entanto, é o próprio ritmo daquilo que se lê e do que não se lê que produz o prazer dos grandes relatos: ter-se-á alguma vez lido Proust, Balzac, Guerra e Paz, palavra por palavra? (BARTHES, 2002, p.17; grifos do autor)

Abrir espaço para a fruição é, portanto, conceber que a escola pode permitir

movimentos não planejados, ou pior ainda, o ritmo ditado pela individualidade e pelas

preferências do sujeito – que é bem diferente daquele por vezes previsto pela rotina

pedagógica – embora, paradoxalmente, neste caso, a leitura fruição seja ela mesma parte desta

rotina. Exercitar o prazer é descontrolar-se, permitir-se o transbordamento, a “deriva”:

O prazer do texto não é forçosamente do tipo triunfante, heroico, musculoso.

55 No capítulo 4, desenvolverei a análise sobre a não-adesão à prática da leitura fruição, partir dos relatos dos

entrevistados.

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Não tem necessidade de se arquear. Meu prazer pode muito bem assumir a forma de uma deriva. A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imóvel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo). (Ibid., 2002, p. 26)

“Intratável”, assim Barthes descreve a fruição.56 E como poderia a escola lidar e

permitir o “intratável”, a “deriva” que pode ser personificação do prazer? Para os leitores mais

jovens, isso parece permitido e é estimulado, posto que há o objetivo do contato intenso com

o texto durante o processo de alfabetização. Mas quando ofertado aos alunos “mais velhos”,

isso parece ameaçador ou até despido de sentido. Outrossim, vai se sedimentando uma ideia

de que o prazer já está construído (inclusive, supostamente, pelas leituras obrigatórias) e é

plenamente exercido pelos experientes leitores, não havendo, então, necessidade de (mais?)

espaço para ele no ambiente escolar. O prazer, adverte Barthes, sempre foi repreendido e,

como comentado, não é uma percepção segura, sólida:

Todo mundo pode testemunhar que o prazer do texto não é seguro: nada nos diz que esse mesmo texto nos agradará uma segunda vez; é um prazer friável, cortado pelo humor, pelo hábito, pela circunstância, é um prazer precário (…); daí a impossibilidade de falar deste texto do ponto de vista da ciência positiva (sua jurisdição é a da ciência crítica: o prazer como princípio crítico). (BARTHES, 2002, p. 62)

Podemos relacionar a impossibilidade de “falar [do] texto do ponto de vista da

ciência positiva” como a impossibilidade de controle e de regramento que a proposta da

leitura fruição traz em si – talvez por conta disso muitos professores e alunos estranhem essa

proposta e até a desqualifiquem. Não há certezas, não há garantias quando se oportuniza esse

contato direto e gratuito com o texto – o que ocorre é que se faculta ao leitor exercer

“direitos” que outras práticas de leitura talvez não possibilitem, dando entrada ao

imponderável.57 Certeau já nos disse: “A criatividade do leitor vai crescendo à medida que vai

decrescendo a instituição que a controlava” (2012, pp. 267-8). Por vezes, como prática escolar

que, sem dúvida é, a proposta de fruição pode, inclusive, ser confundida com outras leituras

mais “utilitárias” e daí ser descaracterizada. E retorna a pergunta: que espaço há na escola

para tal exercício de gratuidade?

56 Em O Prazer do Texto, Barthes tece detalhadas considerações que diferenciam prazer e fruição. Neste

trabalho, a exemplo do que faz o dicionário Houaiss, tomo prazer e fruição como sinônimos, embora reconheça que há sutilezas e nuanças entre essas duas ideias e que não tratam necessariamente das mesmas concepções estritas.

57 Aqui me refiro tanto ao que Barthes (2002), em trecho anteriormente citado, descreve, quando diz que “lemos de maneiras diferentes”, como aos “direitos imprescritíveis do leitor”, listados por Pennac (1993, p. 139-167).

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2.2. Leitura fruição: o direito ao prazer

Responder de modo objetivo à questão proposta anteriormente, ou seja, assumir se

haveria e qual seria o espaço na escola para a leitura fruição, revela-se um trabalho quase

hercúleo e para isso é preciso um conhecimento profundo do universo escolar em sua

diversidade e complexidade, análise que não se configura como objetivo deste breve estudo.

Contudo, parece-me possível traçar algumas ideias que podem ajudar a delinear respostas e

direcionamentos.

Começo partindo das concepções de Petit (2008; 2009; 2013), para a qual a leitura

é experiência fundamental e fundadora da subjetividade; possibilidade de ver ao mundo e ao

outro, interagir e agir. Além disso, Petit questiona a ideia de uma “crise da leitura”: “Certos

escritores também temem que, no burburinho do mundo, ninguém mais queira saber desse

território íntimo que é a leitura, dessa liberdade e solidão que, aliás, sempre assustaram os

seres humanos” (PETIT, 2008, p, 17). A autora cita escritores, mas talvez fosse pertinente

pensar em outros sujeitos e agentes - afinal, a quem interessaria a solidão e a vivência de uma

situação que é, sobretudo, individual, mesmo quando praticada coletivamente? Há ainda

espaço em nosso mundo superconectado, afeito à felicidade constante (ainda que virtual e

artificial) para experimentar a solidão ainda que tal experiência não seja negativa e traumática

– concebendo-se, inclusive, que a solidão pode trazer a alegria, outros olhares e percepções,

aberturas e, quiçá, enriquecimento pessoal?

Ao analisar as entrevistas com jovens da periferia de Paris, moças e rapazes que

convivem com famílias divididas entre sua cultura tradicional (muitos são imigrantes) e a

proposta pela cidade multifacetada, divididos entre os hábitos ancestrais e os

descortinamentos propostos por novidades que representa a leitura para muitos, Petit diz:

E para além das grandes pesquisas estatísticas, ao escutarmos esses jovens falarem, compreendemos que a leitura de livros tem para eles algumas vantagens específicas que a distingue de outras formas de lazer. Compreendemos que por meio da leitura, mesmo esporádica, podem estar mais preparados para resistir aos processos de marginalização. Compreendemos que ela os ajuda a se construir, a imaginar outras possibilidades, a sonhar. A encontrar um sentido. A encontrar mobilidade no tabuleiro social. A encontrar a distância que dá sentido ao humor. E a pensar, nesses tempos em que o pensamento se faz raro. (PETIT, 2008, p. 19)

Penso que as prováveis benesses descritas por Petit não são exclusivas aos jovens

pobres, marginalizados. Podem ser experienciadas por qualquer pessoa que esteja disposta a

abrir-se à diversidade de pensamentos e concepções que os textos suscitam, sejam elas

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carentes materialmente, intelectualmente ou não – claro que tal abertura e proximidade

precisa ser oferecida, ser oportunizada e, nesse sentido, a escola e o professor têm papel

fundamental. Seja como for, por vezes, o convite que a leitura faz a um distanciamento é a

chance de, paradoxalmente, nos aproximar de nós e dos outros: “A leitura é “um texto todo

seu”, para citar o título de um livro de Virginia Woolf. Distanciamo-nos do mais próximo, das

evidências do cotidiano. Lemos nas beiradas, nas margens da vida” (PENNAC, 2008, p. 27).

Às vezes é isso: é preciso distanciar para ver melhor, para entender um pouco mais e daí

voltar a reintegrar-se e dialogar e tornar-se quem se é. Ou, como diz Certeau, “ler é peregrinar

por um sistema imposto” (2012, p. 264) - e podemos entender peregrinar como caminhar,

explorar, errar; buscar, encontrar e desencontrar; traçar rotas imprevistas.

O contato com a leitura – aqui e em contexto outros tomada principalmente como

sinônimo da leitura de literatura, como já comentado e como abordarei mais adiante – como

experiência fundamental, humana deve extravasar classificações (o que não significa que

ordenações e historizações não possam auxiliar), ainda mais quando essas versam sobre a sua

pretensa utilidade:

(...) com esta classificação em leituras úteis, leituras de distração e de alta cultura, parece-me que passamos ao largo de uma das dimensões essenciais da leitura, mencionadas com frequência pelos leitores quando relembram sua descoberta de textos: seu encontro com as palavras que lhes permitiram simbolizar sua experiência, dar um sentido ao que viviam, construir-se. Entretanto, não é um luxo poder pensar a própria vida com a ajuda de obras de ficção ou de testemunhos que tocam no mais profundo da experiência humana. De obras que nos ensinam muito sobre nós mesmos, e muito sobre outras vidas, outros países, outras épocas. Parece-me inclusive que seja um direito elementar, uma questão de dignidade. E é claro que se poderá recorrer outra vez aos livros em outros momentos da vida: se o papel da leitura na construção de si mesmo é particularmente sensível na adolescência e na juventude, pode ser igualmente importante em todos os momentos da vida em que devemos nos reconstruir: quando somos atingidos por uma perda, uma angústia, seja por um luto, uma doença, um desgosto de amor, o desemprego, uma crise, todas as provas de que são constituídos nossos destinos, todas as coisas que afetam negativamente a representação que temos de nós mesmos, o sentido de nossa existência. (PETIT, 2008, p. 78)

Ressalto a reflexão de Petit sobre a importância da leitura para nossa reconstrução,

especialmente, na adolescência e juventude – períodos em que a escola deveria ser uma

referência mais que presente, significativa aos alunos. A leitura fruição, nesse contexto,

apresenta-se como mais uma alternativa de encontro para que crianças e jovens tenham

escolhas para pensar a si e ao mundo, suas relações, valores e percepções. Tais considerações,

penso, se reforçam à luz das ideias de Candido, no ensaio “O direito à literatura” (2004). O

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crítico inicia seu texto comentando que haveria uma nova “postura” em relação a

desigualdades e à pobreza, “certas mudanças no comportamento quotidiano e na ideologia

das classes dominantes” (CANDIDO, 2004: p. 171). Reconhecendo que ainda há muita

hipocrisia quando se pensa sobre as desigualdades, Candido adverte que, ao menos, diferente

de “seu tempo de menino”, as representações sobre e da pobreza ao menos constrangem e

fazem pensar:

De um ângulo otimista, tudo isso poderia ser encarado como manifestação infusa da consciência cada vez mais generalizada de que a desigualdade é insuportável e pode ser atenuada consideravelmente no estágio atual dos recursos técnicos e de organização. Nesse sentido, talvez se possa falar de um progresso no sentimento do próximo, mesmo sem a disposição correspondente de agir em consonância. E aí entra o problema dos que lutam para que isso aconteça, ou seja: entra o problema dos direitos humanos. (CANDIDO, 2004, p. 172)

Discutir direitos humanos no Brasil, ainda hoje, por vezes, apresenta-se como o

enfrentamento de um nó górdio (e por vezes evitado, sobretudo, conforme os interesses

econômicos em jogo) – as ideologias e as palavras podem ter mudado, mas as ações efetivas,

embora existam e tenham ganhado espaço, ainda carecem de muitas iniciativas. A partir

dessas ideias, Candido define a literatura58 como direito inalienável, partindo do seguinte

pressuposto para pensar a questão dos direitos humanos: “reconhecer que aquilo que

consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo” (Ibid., p. 172).

Seguindo em sua explanação, Candido adverte que “(...) a tendência mais funda é achar que

os nossos direitos são mais urgentes que os do próximo” (Ibid., p. 172) e se, ainda assim, a

questão da literatura parecer distante ou desconexa em relação aos direitos humanos, o

professor esclarece:

Nesse ponto as pessoas são frequentemente vítimas de uma curiosa obnubilação. Elas afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde, coisas que ninguém bem formado admite hoje em dia que sejam privilégio de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoievski ou ouvir os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intenções no outro setor, talvez isto não lhes passe pela cabeça. E não por mal, mas somente porque quando arrolam os seus direitos não estendem todos eles ao semelhante. Ora, o esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que reivindicamos está na base da reflexão sobre os direitos humanos. (Ibid., 2004, p. 172)

58 Como citei, na leitura fruição, privilegiou-se a leitura de textos literários – ainda que não houvesse nenhuma

imposição quanto a isso. Portanto, parece-me possível tomar literatura aqui como metonímia para leitura fruição e entender que os direitos que Candido defende em relação à literatura podem ser estendidos para a leitura fruição.

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Recorrendo aos conceitos de bens compressíveis e incompressíveis do fundador

do movimento Economia e Humanismo, o sociólogo francês e padre dominicano Louis-

Foseph Lebret, Candido propõe que a fronteira entre os bens fundamentais, os quais não

podem ser negados a ninguém e aqueles que seriam caracterizados como supérfluos. Tal

definição seria problemática, porque, segundo o crítico brasileiro, cada época e cada cultura

determina o que seria essencial ou não; mais ainda, cada classe social diria o que lhe é

imprescindível (sendo que o mesmo bem poderia ser julgado supérfluo para outros grupos).

Daí a necessidade de leis para garantir os direitos materiais mínimos, por exemplo. Candido

conclui esse movimento de análise dizendo:

Por isso, a luta pelos direitos humanos pressupõe a consideração de tais problemas, e chegando mais perto do tema eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc. e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura. (CANDIDO, 2004, p. 174)

Embora pareça ter afirmado que a literatura é sim bem incompressível, portanto,

direito básico, Candido é cauteloso e a seguir propõe a questão que norteará a sequência de

sua análise:

Mas a fruição da arte e da literatura estaria mesmo nesta categoria? Como noutros casos, a resposta só pode ser dada se pudermos responder a uma questão prévia, isto é, elas só poderão ser consideradas bens incompressíveis segundo uma organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração mutiladora. A nossa questão básica, portanto, é saber se a literatura é uma necessidade deste tipo. (Ibid., p. 174)

Seu próximo passo é definir a literatura de modo amplo como qualquer

“possibilidade de fabulação”: “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em

todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos

folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das

grandes civilizações” (Ibid., p.174) e enfatizar: ninguém vive um dia sem o tempo (ainda que

breve) dessa fabulação e conclui: “Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem

mergulhar no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me

referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e cuja

satisfação constitui um direito” (Ibid., p. 175) e ainda:

(…) assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste

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modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. (Ibid., p. 175)

Candido distingue a literatura ela mesma da educação escolar em si – sendo que

esta, obviamente, se estende por saberes, práticas e exercícios diversos, podendo incluir aí,

então, a leitura e apreciação da obra literária. Interessante notar que o crítico está

considerando a literatura, a princípio, fora da escola: a literatura em circulação livre, não

restrita aos espaços acadêmicos. Ressaltar isso me parece importante porque, como já

sinalizei, a literatura, por vezes, é reconhecida como sinônimo de disciplina escolar e aí pode

ter muito de seus significados diminuídos, restritos ou esvaziados. Quando Candido recupera

a ideia de literatura como fabulação, como sonho necessário à sobrevivência diária, torna-a

mais viva e vibrante e aproxima-se da ideia de Petit: lemos para resistir ao cotidiano que nos

oprime, seja ele qual for, da forma como for – ou seja, a literatura é muito, muito maior do

que um livro proposto pela escola (embora o contato possa começar ou se dar também por

meio desta).

Candido reconhece esse poder da literatura e explica:

Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante. (CANDIDO, 2004, p. 175)

Para o autor, a literatura, seja “sancionada”, autorizada, seja “proscrita”,

condenada, é indispensável, uma vez que, por meio e a partir dela, podemos pensar os valores,

o repertório cultural proposto, o que se elogia e o que se execra – ou seja, teríamos uma

espécie de retrato social via representações e imagens oferecidas pelas fabulações em

circulação e pela relação que se autoriza (ou não) em relação a elas. Porém, lembra Candido,

essa ambivalência da literatura é perigosa, pois assim como pode formar, pode deformar e

perturbar, alertando que “nas mãos do leitor o livro pode ser fator de perturbação e mesmo de

risco” (Ibid., p. 176). Mais ainda: essa dupla faceta remete ao que o autor chama de poder

humanizador (já que contraditório) da literatura: “Ela não corrompe nem edifica, portanto;

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mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza

em sentido profundo, porque faz viver" (Ibid., p. 176). Por humanização, o crítico entende

(…) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2004, p. 180)

Retorno, então, a um ponto já sinalizado: sendo a leitura fruição uma proposta de

liberdade, de partilha do texto, sobre a qual e sobre o qual não se tem controle, esse risco pode

aumentar, uma vez que, talvez, tenhamos nessa prática uma tentativa de exercício da literatura

em seu estado mais arredio: a literatura que será lida, comentada (ou não), compartilhada e

pensada de formas e em roupagens que não serão controladas ou verificadas. Ou seja, a

literatura que circula em estado bruto.

Mais uma vez, acredito que as ideias de Candido e Petit se encontram em

consonância, à medida que se defende a literatura como potencial processo para ser e estar

talvez de modo mais íntegro e integrante no mundo, sobreviver a ele, a si e aos outros – além

de exercitar o olhar à alteridade, possibilitar idiossincrasias e percepções diversificadas. Pela

literatura, pode-se aprender, refletir, rir e, quiçá, tornar-se mais compreensível e aberto: “As

produções literárias, de todos os tipos e todos os níveis, satisfazem necessidades básicas do

ser humano, sobretudo através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa

visão do mundo” (CANDIDO, 2004, p. 179). Candido ainda enfatiza que esse poder

humanizador deve muito, sobretudo, à forma literária, às construções estéticas e linguísticas, à

organização das formas, o que permite a reorganização do caos. Analisando os versos iniciais

de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, o crítico diz, acerca dos sentimentos e

emoções aparentemente triviais explicitados pelo poeta:

(...) na experiência de cada um de nós esses sentimentos e evocações são geralmente vagos, informulados, e não têm consistência que os torne exemplares. Exprimindo-os no enquadramento de um estilo literário, usando rigorosamente os versos de dez sílabas, explorando certas sonoridades, combinando as palavras com perícia, o poeta transforma o informal ou o inexpresso em estrutura organizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representa mentalmente as situações amorosas deste tipo. (Ibid., p. 179)

Ouso propor, a partir dessas considerações, que o leitor organiza-se a si e ao

mundo, permitindo talvez que nosso próprio caos pessoal, individual, também encontre essa

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possibilidade de “ajuste” e de expressão plausível, talvez de vasão e de catarse, talvez de

reconhecimento, numa cumplicidade íntima e inaudível com o autor e seu texto; momento de

refrigério mediante a realidade opressora, como já apontara Candido e como supõe Petit

(2008 e 2009).

Após essas incursões por meio das quais analisa, além da questão da estrutura

formal, a importância do que chamaríamos de “literatura social” (mais engajada e preocupada

em desvelar conflitos sociais e promover a crítica atenta sobretudo em relação aos mais

pobres e a mazelas, como a escravidão), Candido conclui que “a literatura pode ser um

instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição

dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto

num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos”

(CANDIDO, 2004: p. 186).

Tal consideração reforça o caráter humanizador e, portanto, a configuração da

literatura como direito inalienável ao ser humano: “(...) a literatura corresponde a uma

necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo

fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e

portanto nos humaniza” (CANDIDO, 2004, p. 186).

Então, se julgo que tenho direito seja às obras de Dostoiévski, seja ao best-seller

do momento, esse direito deveria se estender ao meu semelhante – esse direito deveria ainda

ser mais lembrado e valorizado em se tratando dos alunos, crianças e jovens em formação. Em

vez de rememorar a ideia bíblica (transferida para o ditado popular) de “atirar as pérolas aos

porcos”, penso que deveríamos (sobretudo nós, professores) considerar que cada obra de arte

(ainda que caiba – e sempre cabe – o questionamento do que é arte e do que seja seu valor ou

qualidade) deveria ser acessível a todos. Daí, mais uma vez, entra a responsabilidade da

escola, instituição que é sim referência (SNYDERS, 1993) e do professor, agente privilegiado,

mediador fundamental, aquele que pode oportunizar o contato reflexivo a arcabouços

culturais, sejam estes seculares ou contemporâneos, e incitar seus alunos à apreciação, sem

que isso signifique excluir o viés reflexivo – ao contrário, estimulando o posicionamento

crítico, seja para o elogio ou para a crítica. Como alerta Candido “A organização da sociedade

pode restringir ou ampliar a fruição deste bem humanizador” (CANDIDO, 2004: p. 186). Essa

restrição, por vezes, explica-se pela limitação de acesso a bens culturais e pelo baixo nível de

alfabetismos da população, além de ser recrudescida a partir de interesses de classes sociais

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mais abastadas as quais podem considerar que bens culturais ditos “eruditos” não seriam

essenciais aos menos favorecidos, conforme sinaliza Candido.59

Note-se que é preciso enfrentar uma sociedade ainda bastante arraigada em

desigualdades, seja oportunizando acesso à leitura e à literatura para aqueles que não o tem,

seja sensibilizando os que têm, mas nem sempre se deixam atingir por tais práticas (uma vez

que ter acesso a bens culturais, como bem se sabem, não garante a apreciação destes). Assim,

parece-me que cabe falar em acesso a esses bens e fruição destes, essenciais, que são os da

literatura, como mais um desses desníveis a combater e a superar – e um desnível que não é

privilégio das classes menos favorecidas social e economicamente. Há muitos que poderiam

ser considerados privilegiados, de classes mais abastadas e que nem por essa condição

acessam, aproveitam o que práticas como a leitura lhes poderia proporcionar. Talvez uma

alternativa para pensar esse acesso, esse encontro do prazer, como a proposta pela leitura

fruição, seria pensar essa prática revestindo-a e consolidando-a como experiência, no sentido

de vivência que pode tocar e transformar aquele que a ela tem acesso e que se permite passar

por ela.

2.3. Leitura fruição como experiência

Tomarei, para discorrer sobre a questão da leitura fruição como experiência,

observações que o professor Jorge Larrosa Bondía tece, em sua conferência “Notas sobre a

experiência e o saber da experiência”, na qual ele sugere “pensar a educação a partir do par

experiência/sentido”. Para o autor, a experiência corresponderia à

(…) possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, [e que] requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA, 2002, p. 24)

Antes dessa definição sobre o que seria a experiência, Bondía se põe a analisar,

no início do seu texto, por que hoje seria cada vez mais raro viver o que ele considera como

59 Candido (1997) ao assinar o prefácio do livro Uma vida entre livros, de José Mindlin, reafirma suas crenças

sobre o poder da literatura ao referir-se ao leitor voraz, o autor Mindlin: “Indiscriminado e seletivo, glutão e refinado, ele é o tipo ideal de leitor, porque sabe que praticamente nenhuma leitura é perda de tempo se der prazer, e que as leituras indisciplinadas acabam dando lugar às leituras seletivas” (p. 11).

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experiência: excessos de informação, de opinião, de trabalho e falta de tempo. Todos me

parecem pertinentes para pensar também por que a leitura fruição por vezes é preterida.

Contudo, considero fundamental, para compreender a definição anterior de experiência e

como esta pode ser aplicada em relação à leitura fruição, considerar as questões do excesso de

trabalho e da falta de tempo. Explico-me: como alerta Bondía, vivemos em tempos

acelerados, de muita informação, muita opinião (sobre as informações), muito trabalho – em

que se acredita que o acesso desenfreado a dados, conhecimentos, a formulação quase insana

de pretensos juízos e a sobrecarga de atividades nos valorize e nos faça melhores, mais

produtivos. Entretanto, falta tempo para outras vivências básicas e essenciais – e entre estas,

nos interessa, especialmente, a da experiência.

Retomando a definição anteriormente transcrita, temos que a experiência seria

algo por que se passa, algo que nos exige parar, esperar, escutar, parar de falar, uma espécie de

passividade, o que pode ser absolutamente impensável em tempos de vivências fragmentadas,

frenéticas, instantâneas:

Nós somos sujeitos ultrainformados, transbordantes de opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E por não podermos parar, nada nos acontece. (BONDÍA, 2002, p. 24)

Acredito que essa inquietante caracterização que o autor faz de nós, sujeitos

contemporâneos reféns do rápido, do frenético, desejosos do transbordante (que nem sempre

ou quase nunca é realmente significativo) pode explicar muito do que observei sobre a leitura

fruição. A proposta dessa prática é criar, no início de cada dia, um tempo e espaço em que

tanto o professor quanto os alunos teriam que parar e deixar-se tocar por algo que interrompe

o cotidiano dito de trabalho, de produção, propondo-se, portanto, um momento de

convivência outra – de silenciar e de partilhar, sem a frenética necessidade de produtividade e

de trabalho. Os alunos teriam que ouvir, ou seja, ficar em silêncio; os professores teriam que

interromper sua rotina de conteúdos, de cumprimento estrito de calendários e planejamentos

(embora, obviamente, a aula não se restrinja a isso), e seria desejável que todos se deixassem

tocar por essa prática. Assim, pedir-se-ia paciência para um tempo que não seria, via de regra

produtivo, conforme parâmetros escolares tradicionais. Seria um convite a acalmar-se e fruir

um tempo de partilha via texto, em vez da agitação das ingentes tarefas escolares.

Desse modo, a leitura fruição configurar-se-ia como experiência, uma vez que

interrompe o tempo comum do cotidiano e convida a um tempo mais lento (ainda que seja

mais breve em um aspecto quantitativo, cronológico), a uma vivência que não está ancorada

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na urgência da produtividade; seria uma prática que convida a ouvir, a escutar, a calar. Talvez

por propormos, em geral, na escola, poucos exercícios como esse, que sugerem paradas, seja

difícil para alunos e mesmo para professores partilhar da leitura fruição. É sabido que no

cotidiano escolar (ainda mais do 3o ano do Ensino Médio), a rotina é frenética, há muito

trabalho, há muita atividade. Como os próprios alunos comentam, não há tempo para mais

nada além das exigências do vestibular, das provas, da rotina sufocante. Bruna, ex-aluna que

entrevistei, reconhece essa pausa como algo válido quando diz:

Ah, eu acho bacana [a leitura fruição], porque é antes de você entrar num assunto totalmente

diferente. Um coisa mais lenta, sabe, que você não tem que parar pra pensar e anotar, muita coisa,

sabe? Acho que é um momento bom, porque quebra a rotina. Não só porque você mostra algo

diferente, mas porque é um momento antes de começar.

Bruna reconhece a leitura fruição como um momento particular, um instante de

quebra e ruptura com o cotidiano, “um momento antes de começar” as rotinas por vezes

desgastantes. Mais adiante na entrevista, quando lhe perguntei se ela percebia alguma

influência da leitura fruição em outras leituras, obrigatórias, por exemplo, a jovem pontuou:

Como eu falei, eu gosto de ler, eu sempre gostei. Então, para mim, era interessante, interessante

conhecer e estimulava. Até porque, como eu falei, no 3o ano, eu não tinha tempo de ler o que eu

queria, eu tinha que ler lista, era obrigada a ler, e muita gente fala que, quando lê um livro pela

escola, não gosta. Eu achei isso, porque eu já li livros muito bons, de lista de vestibular, que eu

gostei bastante, então, pra mim, era importante, porque eram livros que eu gostaria de ler, gostaria

de conhecer e quebrava muito aquela rotina, permitia descansar uns segundos, sabe? Porque

leitura é um prazer, sabe? A leitura pela leitura era uma coisa muito interessante. Eu acho que sim,

pelo menos, me estimulou, porque eu tinha vontade de ler, não tinha tempo de ler e, sei lá, era

bom. Tava com a cabeça no livro do vestibular e você lia uma coisa diferente. Me dava vontade.

A jovem confirma, em suas palavras, que a rotina exigente lhe impedia de ler

outros textos talvez mais prazerosos – embora ela se defina como alguém que gosta de ler e

que tenha apreciado várias das leituras obrigatórias.60 Ela reconhece, portanto, a leitura

fruição como uma oportunidade, um disparador para conhecer e buscar outros textos. Parece-

me, então, que a leitura fruição propõe, então, a experiência, já que tanto encanta como

60 Nessa direção, Guedes-Pinto (2008, p. 425), ao problematizar, por meio de narrativas, os diversos mediadores

das práticas de leitura, na história pessoal dos professores em formação inicial, comenta: “Era muito comum os professores mencionarem essas listas [de livros obrigatórios para o vestibular] como produtoras de um contato positivo com a prática leitora, principalmente no sentido de os porem em contato com autores literários que se tornaram marcantes em sua trajetórias”.

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desperta a vontade para que leituras outras aconteçam. Bruna se permite deixar tocar, passar

pela experiência, está aberta a isso.

A experiência, ela mesma, guarda também em si gérmens de sua etimologia, que

Bondía percorre de modo a embasar a defesa de suas ideias: desde sua origem do latim

experiri, que significa provar, experimentar, passando pela raiz indo-europeia (e, depois,

grega) per, que contém a ideia de travessia, passagem, e que, em português, por exemplo, dará

origem a palavras como “pirata”, a experiência guarda na essência de seu signo e significado

a ideia do atravessar e chegar a algum lugar (novo e por vezes perigoso) e assim “O sujeito da

experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço

indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua

ocasião” (BONDÍA, 2002, p. 24). Tal concepção parece afim às ideias de Petit, quando esta

diz:

(...) a leitura é uma experiência singular. E que, como toda experiência, implica riscos, para o leitor e para aqueles que o rodeiam. O leitor vai ao deserto, fica diante de si mesmo; as palavras podem jogá-lo para fora de si mesmo, desalojá-lo de suas certezas, de seus “pertencimentos”. Perde algumas plumas, mas eram plumas que alguém havia colado nele, que não tinham necessariamente relação com ele. E às vezes tem vontade de soltar as amarras, de mudar de lugar. (PETIT, 2008, p. 147).

A seguir, a autora cita o grupo que “perde” o indivíduo para a solidão da leitura –

no caso da leitura fruição, essa solidão é amplificada para um “momento congelado”, um

momento único, sagrado no início das aulas, de uma solidão que é de cada um, mas que é

construída pelo grupo, num determinado espaço. Em suma, um momento perigoso e único,

uma escuta coletiva e, ao mesmo tempo, individual, solitária.

Entendo que tudo isso diz respeito à leitura fruição quando esta prática propõe,

por vezes, alçar outros voos, empreender movimentos de caça furtiva, aos modos de Certeau

(1994), por territórios até então estrangeiros, como das leituras e referências além da escola

ela mesma, extravasando limites de cânones e conteúdos tradicionais – essa travessia não é

confortável ou desejável, como alguns poderiam supor, pois tantas vezes se advoga na escola

pela liberdade de escolha. Arrisca-se aquele que escolhe, que dá a conhecer mais de si e

também aquele que se desarma e se mostra suscetível a algo novo – de que pode ou não

gostar. Mas o perigo e o risco também está em propor uma partilha que não será verificada e

não será submetida aos mesmos controles (aliás, a ideia é que não haja nenhum controle) que

outras atividades. Abre-se, assim, a um consumo que pode ser subversivo, inventivo

(CERTEAU, 1994).

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Parece-me, então, que seria possível entender melhor por que a leitura fruição,

ainda que pareça interessante, pode incomodar e encontrar tanta resistência, em especial, entre

os alunos e professores dos ciclos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Para

muitos, seria inadmissível perder dez ou quinze minutos da aula, deixar de trabalhar

conteúdos, produzir conhecimento, investindo numa atividade despida de cobranças e de

avaliações, na qual o que de fato interessa é o quanto cada um se deixa tocar e as

reverberações (ou não, porque o convite à fruição nem sempre se concretiza como tal) que

isso pode proporcionar ao indivíduo.

Mesmo que haja os que não se deixam tocar, não se deixam passar por ela, há os

que reconhecem esse momento como “algo além”, válido, porque propõe o que a rotina não

prescreve. Para tanto, vale reconhecer que a experiência – seja da leitura fruição ou qualquer

outra – exige de nós, para que nos tornemos sujeitos da experiência - algumas condições

especiais, não porque novas, mas porque nos faz “baixar a guarda” frente a comportamentos

que nos são colocados como naturais ou desejáveis:

(…) seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. (BONDÍA, 2002, p. 24)

Numa época em que somos tão cobrados, a todo momento, para sermos

produtivos, ativos, senhores de opiniões e de certezas, deixar-se ser passivo, ter abertura e

disponibilidade, enfrentando expectativas e demandas, pode soar por demais ousado – ou,

simplesmente, descabido. Assim, acredito que a leitura fruição vem também nos desafiar a

sermos outros que não aqueles sujeitos da produção e do número: sermos sujeitos feitos de

paixão, no caso, aquela que a leitura e seus desdobramentos podem nos fazer – em outras

palavras, retomando as de Bondía, permitir que sejamos transformados pela experiência que

se propõe.

Baseado nas ideias do filósofo Heiddeger, Bondía (2002) ressalta a proposta de

uma passividade formadora, um deixar-se levar que vai nos transformar em algo mais. Gosto

dessa definição porque ela remete a essa concepção de uma submissão que não é anulamento

nem mera aceitação; antes de tudo, parece-me, é propor-se a ser outro, a tornar-se algo – e tal

transmutação pode fazer bem a nós e a nossos diálogos. Como ainda ressalta Bondía: “O

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saber de experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana” (BONDÍA,

2002, p. 26).

Como Petit, destaco que a experiência da leitura é formadora da subjetividade,

integrante das relações e das integrações – somando-se ao que diz Bondía, não é passividade

amorfa, entrega que apaga o sujeito. Ao contrário, é movimento de abertura e de aceitação, ou

ainda, de decifração e autoconhecimento:

(...) ler permite ao leitor, às vezes, decifrar sua própria experiência. É o texto que “lê” o leitor, de certo modo é ele que o revela; é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões dele que ele mesmo não saberia nomear. As palavras do texto constituem o leitor, lhe dão um lugar. Os escritores, sobretudo, colocam palavras ali onde dói. Como escreve Jean Grenier: “Vim dar meu testemunho, diz o escritor, para tirar esse peso de seu peito. Não pode nos curar; mas lhe agradecemos por ter visto nosso mal”. As palavras podem manter a dor e o medo a distância; as palavras que lemos, as que escrevemos, as que ouvimos. (PETIT, 2008, p. 38)

São, portanto, as palavras que nos mantêm vivos, lúcidos, que nos permitem ir ao

outro e nos mostrarmos. Enfim, elas nos permitem estarmos no mundo de maneira ativa.

Bondía, no artigo aqui citado, também ressalta – retomando sentença célebre de Aristóteles –

que mais que seres dotados de razão, somos, enquanto homens, viventes dotados de palavras,

destacando a força que essas exercem, não só porque nos representam, mas, sobretudo, porque

nos fazem quem somos: “(...) o homem é palavra, que o homem é enquanto palavra, que todo

humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido de palavras, que o modo de

viver próprio desse vivente, que é homem, se dá na palavra e como palavra” (BONDÍA, 2002,

p. 21). Pela leitura fruição, portanto, é oferecida mais uma alternativa para essa construção e

para a consolidação e revisitação de outras palavras que já nos constituem, desde que haja,

como já pontuei, a abertura para tal experiência.

2.4. Leitura fruição: a importância da voz e da performance

Discorri bastante, penso, sobre alguns prováveis porquês da resistência ou não-

aceitação à leitura fruição, bem como apontei algumas razões que podem justificar sua

prática. Fiz isso a fim de esclarecer que embora a proposta seja considerada parte da

identidade do colégio em que a prática foi observada, não era, de forma alguma, algo unânime

e bem aceito (algo que é confirmado quando alunos como Fernando e Sabrina, por exemplo,

afirmam que pensavam se tratar de uma prática minha, de uma ideia pessoal que eu tinha

enquanto professora). Porém, nem tudo são decepções. Houve muitos que aceitaram a

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proposta e fizeram da leitura fruição experiência: foram por ela tocados, permitiram-se

transformar, sendo que muitas vezes também se transformaram por ela, pois foram sujeitos

não só suscetíveis, como ocuparam o papel de agentes – acredito que isso se aplica sobretudo

em relação aos professores.

Então, de que modo aqueles que aceitaram fazer da leitura fruição uma

experiência conseguiram isso – ou estiveram no caminho para que tal acontecesse? Parece-me

que algumas hipóteses podem nos ajudar a entender o sucesso e como a leitura fruição

recupera e/ou incentiva o gosto por textos e produções várias que poderiam se constituir como

ponto de partida para a prática. Um dos primeiros pontos que, a meu ver, merece destaque é a

simplicidade extrema, porém marcante de um pressuposto aparentemente simples e decisivo:

a leitura em voz alta. Pennac, quando se questiona sobre os motivos que explicavam o encanto

que muitos tinham pela leitura na infância, diz que ler em voz alta era decisivo e, optar por tal

modalidade de leitura, seria uma alternativa para recuperar o prazer perdido:

Ora, este prazer está bem próximo. Fácil de reencontrar. Basta não deixar os anos passarem. Basta esperar o cairo da noite, abrir de novo a porta do seu quarto, nos sentarmos à sua cabeceira e retomarmos nossa leitura em comum. Ler. Em voz alta. Gratuitamente. Suas histórias preferidas. (PENNAC, 1993, p.56)

A proposta de Pennac apresenta, da forma como está descrita, alguns

complicadores: os adolescentes têm suas idiossincrasias (como as crianças têm as delas) e

talvez não seja tão simples abrir a porta do quarto e ler para eles, do modo como se faz com os

menores. Contudo, outros aspectos são possíveis: reservar um tempo em que a leitura seja

comum e que o texto encontre novo suporte na voz do outro – que não mais o pai, a mãe, o

adulto da família, mas sim o professor, outro adulto, que trava outras relações com o jovem –

ainda parece plausível. Contudo, é possível. Podemos entender que Petit reforça a proposta de

Pennac quando diz: “Portanto, no início está a recepção e a voz. Ler, apropriar-se dos livros, é

reencontrar o eco longínquo de uma voz amada na infância, o apoio de sua presença sensível

para atravessar a noite, enfrentar a escuridão e a separação” (PETIT, 2009, p. 65). Recuperar

esse desejo, reencontrar, mais que um eco, uma nova voz que convide à leitura é reavivar o

gosto:

Um desejo que pode ser revelado porque alguém soube tocar essa sensibilidade primitiva, suscitar, pela voz, idas e vindas entre corpo e pensamento, e possibilitar a recuperação, sob o texto, de um mundo interior de sensações, um movimento, um ritmo. Permitir que se entre na dança.

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Porque os textos agem em vários níveis – sejam eles lidos em voz alta ou ouvidos no segredo da solidão: através de seus conteúdos, das associações que suscitam, das discussões que promovem; mas também de suas melodias, seus ritmos, seu tempo. (Ibid.,: p. 61)

Essa dança de que fala Petit, seja ela a leitura ou algo mais que chamaremos, mais

adiante, de performance (ZUMTHOR, 2014), a voz e as sensações suscitadas por ela e,

obviamente, pelo que se lê, ajudam a perceber que os textos têm ritmos, melodias, forma

diferenciada – a construção literária a que Candido (2004) já aludira – camadas além das do

sentido ele mesmo, responsáveis pela sensibilização e que nos provocam:

Assim como as mãos que seguram uma criança, o ritmo ampara. Independentemente do aspecto riquíssimo da simbolização da linguagem, de dar forma à experiência, graças às metáforas apresentadas pelo texto (…), a leitura, particularmente de obras literárias, participará então de um nível mais próximo do sensorial e das primeiras interações que permitiram a constituição dos limites e de si mesmo. Ainda mais quando se trata de leitura em voz alta, e de poesia. (PETIT, 2009, p. 62)

Conforme indicam fortemente as análises de Petit, que a leitura em voz alta não

constitui mera oralização dos textos – diz respeito a algo mais profundo, que procura se

mostrar mais sensível e também nos atingir de modo mais visceral. Sublinha a autora:

Apesar de tudo, os mediadores culturais podem recriar situações de oralidade bem-sucedidas, permitindo uma nova travessia, um desvio por esse tempo no qual as palavras são bebidas como se fossem leite ou mel. E eles observam às vezes que, ao ouvi-los, alguns adolescentes se esticam e se curvam em posição fetal, enquanto outros fecham os olhos. (Ibid., p. 59)

A experiência da leitura em voz alta parece, pois, reforçar a sensibilidade à

apreciação, podendo tocar o âmago dos que ouvem. José Mindlin, bibliófilo e, mais que tudo,

leitor apaixonado, ao traçar um panorama de sua vida entre livros, falando de seu especial

apreço por poesia, comenta: “Todos gostamos [de poesia], mas em relação à Guita [esposa de

Mindlin] e a mim, há uma particularidade meio rara: gosto de ler poesia em voz alta, e ela, de

ouvir. Poderia ser melhor?” (MINDLIN, 1997, p. 199). A sorte de Mindlin traduz um contato

que se constrói na partilha real, sonora e presencial e revela-se como forma de se deixar tocar

a si e ao outro – ou seja, experiência de contato com o texto e de apreciação solidária e

apaixonada da obra. A experiência que se constitui, na maior parte das vezes pela voz, a qual

“quando (...) percebemos, estabelece ou restabelece uma relação de alteridade, que funda a

palavra do sujeito” (ZUMTHOR, 2014, p. 80). Mais que suporte, forma concreta do outro,

representação sonora, real e simbólica da personalidade que carrega, “(…) a voz é o lugar

simbólico por excelência; mas um lugar que não pode ser definido de outra forma que por

uma relação, uma distância, uma articulação entre o sujeito e objeto, entre o objeto e o outro.”

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(Ibid., p. 80). Outrossim, a voz é a encarnação etérea do outro, do mediador e do autor,

fundidos num único timbre, num momento em que se comunica um texto a outrem, momento

que remonta à infância:

Dizendo qualquer coisa, a voz se diz. Por e na voz a palavra se enuncia como a memória de alguma coisa que se apagou em nós: sobretudo pelo fato de que nossa infância foi puramente oral até o dia da grande separação, quando nos enviaram à escola, segundo nascimento. Não se sonha a escrita: a linguagem sonhada é vocal. Tudo isso se diz na voz. (Ibid., p. 83)

Além de dizer, o que reveste o texto de uma existência sensorial palpável (ou

melhor dizendo, audível), a voz também confirma a alteridade – há alguém mais, que não é o

autor, não é o aluno leitor, é o professor, de modo que se rompe a distância entre esses

interlocutores, ao menos em parte, porque aquele que lê se doa em parte ao outro, tomando a

linguagem, o ritmo do texto como veículo de transmissão e possibilidade de aproximação:

(...) a voz é uma subversão ou uma ruptura da clausura do corpo. Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompê-lo; ela significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal. Nesse sentido, a voz desaloja o homem do seu corpo. Enquanto falo, minha voz me faz habitar minha linguagem. Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele. (Ibid., 2014: p. 81)

Manifestar a voz é também desprender-se, perder-se um pouco (perigosamente,

confirmando a condição intrínseca da experiência) para tentar atingir e seduzir o outro, pois

algo de si estará, de certo modo, fora de controle, à mercê do outro e da linguagem a que dá

vida, buscando, assim, compor algo maior. Paradoxalmente, talvez seja preciso desalojar-se

para compor; perder-se para encontrar uma nova ou renovada possibilidade de interação

contida em gérmen na leitura que se propõe. Ler em voz alta é, de certa forma, despir-se para

mostrar-se pleno dos sentidos do texto – porque a voz precisa estar repleta do texto para que

essa prática tenha sentido:

O homem que lê de viva voz se expõe totalmente. Se não sabe o que lê, ele é ignorante de suas palavras, é uma miséria, e isso se percebe. Se se recusa a habitar sua leitura, as palavras tornam-se letras mortas, e isso se sente. Se satura o texto com a sua presença, o autor se retrai, é um número de circo, e isso se vê. O homem que lê de viva voz se expõe totalmente aos olhos que o escutam. (PENNAC, 1993, p.166)

Em se tratando de grupos maiores – como é o caso de uma sala de aula do Ensino

Médio e, mais especificamente, da sala de aula na qual conviveram os ex-alunos entrevistados

para esse trabalho – nem sempre o dono da voz e a voz do dono conseguiram manter a

atenção, seduzir plenamente sua plateia pela leitura oralizada. Relatos como os de Giovane

mostram que a leitura fruição também pode ser espaço para divagação, palco para estar fora

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da sala da aula e fora do texto lido e que nem sempre a voz consegue manter o encanto e guiar

ouvidos e imaginação pelos caminhos do texto:

(…) na hora [da leitura fruição], assim, foi difícil acostumar sem o impresso, porque você fica

olhando meio pro nada. Então, começa a “brisar”...61

Seja como for, ela, a voz, é instrumento/meio fundamental na prática da leitura

fruição como se realizava nas práticas aqui tomadas como referência. Vale ainda salientar que

os alunos, em geral, mesmo não se interessando ou acompanhando plenamente a leitura,

tinham, em geral, respeito pelo professor que lia. Talvez haja nesse respeito reflexo o

reconhecimento da voz como presença e vínculo, como Snyders comenta: “A presença do

educador e o papel muito particular daquilo que é a expressão mais direta de uma pessoa e

que cria um vínculo imediato com o outro: a voz, a voz do educador que comunica a emoção,

o fervor, a exaltação própria às grandes obras” (SNYDERS, 1993, p. 76).

Percebemos, ainda, que a voz pode integrar uma reverberação que vai além do

momento vivido (que é experiência única e subjetiva), compor um espetáculo maior, além da

leitura como oralização, configurando-se, pois, como performance (ZUMTHOR, 2014). Nas

entrevistas que fiz, um dos professores mais lembrados é Roberto, conhecido não só pelas

piadas e anedotas que gostava de contar, mas sobretudo por suas performances mais teatrais

(por exemplo, Giovane, ex-aluno citado anteriormente, lembra-se de certa vez em que o

professor levou uma gaita para a sala de aula). Ele próprio, Roberto, quando o entrevistei,

começou nossa conversa dizendo que, desde pequeno, apreciava contar histórias para outras

crianças de seu bairro e que sempre gostou da ideia de “representar”, de certo modo. Ora, o

que entendo, então, por performance? Recorro, pois, a Zumthor para delinear esse conceito.

Para este autor, “A performance é (...) um momento da recepção: momento

privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido” (ZUMTHOR, 2014, p. 52).

Ampliando o conceito, temos:

A performance é outra coisa [que não a recepção]. Termo antropológico e não histórico, relativo, por um lado, às condições de expressão, e da percepção, por outro, performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata. (ZUMTHOR, 2014: p. 51 – grifo meu)

61 No caso das práticas de leitura fruição aqui analisadas, na maior parte das vezes, os alunos não tinham em

mãos o texto impresso, tinham que acompanhar a leitura exclusivamente pela voz do professor.

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Mais que recepção, a performance é tudo o que aquele momento permite captar e

viver: é o texto, a voz que dá vida e consistência a ele, é o espaço e o tempo em que tudo

ocorre. É, em síntese, a soma de tudo – não se limita ao texto ou à voz, mas sim inclui o gesto,

a postura, o timbre, o auditório e as reverberações desses aspectos todos. Ao contextualizar e

introduzir as bases de sua análise, Zumthor rememora episódios de sua adolescência, quando

ele e seus colegas ouviam cantores de rua – eram situações em que o texto, em si, não bastava

e era fundamental o “espetáculo”:

Ouvia-se uma ária, melodia muito simples, para que na última copla pudéssemos retomá-la em coro. Havia um texto, em geral, muito fácil, que se podia comprar por alguns trocados, impresso grosseiramente em folhas volantes. Além disso, havia o jogo. O que nos havia atraído era o espetáculo. Um espetáculo que me prendia, apesar da hora de meu trem que avançava e me fazia correr em seguida até a Estação do Norte. (Ibid., p. 32)

Os movimentos, as risadas das outras pessoas, a música, os gestos, tudo

compunha, então, a “canção” ouvida por ele, uma “(...)“forma”: não fixa nem estável, uma

forma-força, um dinamismo formalizado; uma forma finalizadora” (Ibid., p. 32); ou ainda:

“não um esquema que se dobrasse a um assunto, porque a forma não é regida pela regra, ela é

a regra. Uma regra a todo instante recriada, existindo apenas na paixão do homem que, a todo

instante, adere a ela, num encontro luminoso” (ZUMTHOR, 2014, p. 33). Parece-me ser

assim também a leitura fruição como performance – pode ser um espetáculo no que tem de

singular por conta da configuração entre interlocutores e seu diálogo; uma regra (posto que é

frequente) que a todo momento pode ser reinventada, repensada e movida pela paixão do

professor que lê, mas também dos alunos. Também é encontro (luminoso ou não) em que não

basta o texto, é preciso que haja o espetáculo e tudo que ele carrega, momento próprio, espaço

para isso, preparação daquele que conduz (o professor), expectativa e receptividade daqueles

que ouvem e veem:

As regras da performance – com efeito, regendo simultaneamente o tempo, o lugar, a finalidade de transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a resposta do público – importam para comunicação tanto ou ainda mais do que as regras textuais postas na obra na sequência das frases: destas, elas engendram o contexto real e determinam finalmente o alcance. (ZUMTHOR, 2014 , p. 34)

Dizendo de outro modo: tão importante quanto o texto (ou, por vezes, mais

importante que ele próprio) é aquilo que o reveste, que o circunda e que se estabelece a partir

dele e com ele; no caso da leitura fruição, toda circunstância, todo contexto, toda encenação

de que pode dispor e propor, no caso, o professor que conduz a prática. Jovens como Giovane,

por exemplo, ao rememorar leituras marcantes, refere-se a Roberto e seu jeito grandiloquente,

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sua voz potente e sua encenação por vezes cômica. Roberto e outros professores, como

Adriana, por vezes, parecem ser mais lembrados por seus gestos, tom de voz, enfim, sua

performance, do que os textos lidos em si.

Zumthor comenta, ainda, como esse encontro entre texto/performance é mais que

leitura e como atinge de modo muito pessoal o espectador:

Não é menos verdade, no entanto, que toda leitura seja produtividade e que ela gere um prazer. Mas é preciso reintegrar, nesta ideia de produtividade, a percepção, o conjunto de percepções sensoriais. A recepção, eu o repito, se produz em circunstância psíquica privilegiada: performance ou leitura. É então e tão somente que o sujeito, ouvinte ou leitor, encontra a obra; e a encontra de maneira indizivelmente pessoal. Essa consideração (…) lhe acrescenta uma dimensão que lhe modifica o alcance e o sentido. Ela a aproxima, de algum modo, da ideia de catarse, proposta (em um contexto totalmente diferente) por Aristóteles! Comunicar (não importa o quê: com mais forte razão um texto literário) não consiste somente em fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem se dirige; receber uma comunicação é necessariamente sofrer uma transformação. Ora, quando se toca no essencial (como para aí tende o discurso poético... porque o essencial é estancar a hemorragia de energia vital que é o tempo para nós), nenhuma mudança pode deixar de ser concernente ao conjunto da sensorialidade do homem. Falta ver a que nível corporal intervém essas modificações e, sem dúvida, neste ponto não há resposta universal. (ZUMTHOR, 2014, p. 53)

A ideia de que o encontro com a obra – recepção que pode se apresentar como

performance ou leitura – se aproxima da catarse, de que a resposta a esse encontro é pessoal e

diz respeito a círculos muito peculiares, que incluem também o sensorial, o corporal, é algo

complexo e fascinante. Nesse trecho de Zumthor, há também um ponto de contato que

confirma a ideia da leitura fruição como experiência: dizer que receber uma comunicação –

que pode ser a leitura prazerosa – é sofrer, necessariamente, uma transformação. Retomando o

que diz Bondía (2002), é preciso abrir-se, deixar-se perpassar e sofrer a transformação – estar

sensível a ela, experiência que modifica e, como bem pontua Zumthor, não há resposta

universal, única, previsível, para isso.

Parece-me que essa condição do imponderável e do imprevisível é algo que pode

ser tanto assustador quanto encantador em se tratando da leitura fruição. E isso se aplica tanto

ao professor quanto ao aluno. Por vezes, muito do que cada leitura ou performance apresenta

vai além do que se previa, dadas (ou não) as respostas e receptividade das turmas, dos jovens

e devido à própria disposição do professor, personagem fundamental para que a prática se

desenvolva.

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2.5. O professor como ledor: sujeito e mediador

Ator, dono da voz, autor da performance ou da leitura, ele, professor é parte

indissociável da leitura fruição e desempenha papel fundamental nessa experiência. Defendo

que, além de mediador, é agente integrante e mobilizador – mas isso não quer dizer que a

função de mediador seja menor ou menos importante. Petit esclarece tal protagonismo quando

nos diz: “O iniciador [aos livros] é aquele ou aquela que exerce uma função-chave para que o

leitor não fique encurralado entre alguns títulos, para que tenha acesso a universos de livros

diversificados, mais extensos. Porque uma das especialidades dos livros é a sua enorme

variedade” (PETIT, 2008, p. 175). Sabe-se, obviamente, que o professor não é o único

iniciador, entretanto, conforme sua presença e a relação que se estabelece entre ele e seus

alunos, pode ser um dos principais e mais influentes. Partindo-se da ideia de que a leitura, em

si, como já dissera Candido (2004) sobre a literatura, não é boa nem má, a presença e

orientação do professor podem se fazer decisivas para que o aluno se aproxime deste ou

daquele texto, de modo que se rompa ou se evite uma postura ingênua ou simplista:

Embora haja um tipo de leitura que ajuda a simbolizar, a sair de seu lugar, a abrir-se para o mundo, há outra que conduz apenas aos prazeres da regressão. E se alguns mediadores contribuem para que algo aconteça, outros limitam seu papel a uma espécie de patronagem, onde a leitura teria apenas uma função tranquilizadora. (PETIT, 2008, p. 176)

Anteriormente, ao citar Candido, comentei brevemente a importância do acesso a

bens culturais. Além dessa garantia, é fundamental que essa ligação, essa relação se torne

íntima, favorável, convidativa. Nesse contexto, a configuração de um mediador que atraia e

indique caminhos se faz premente. É esse mediador cuja “interferência” pode se fazer

fundamental, decisiva que pode tornar decisivo o convite ao gosto, já que apenas a

proximidade material não garante isso:

O gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com os livros. (…) Se a pessoa se sente pouco à vontade em aventurar-se na cultura letrada devido à sua origem social, ao seu distanciamento dos lugares do saber, a dimensão do encontro com um mediador, das trocas, das palavras “verdadeiras”, é essencial. (PETIT, 2008, p.154)

Em muitas ocasiões, o conhecimento mais maduro e/ou diversificado do professor

atua como alternativa para que limites sejam ultrapassados e os territórios da leitura – bem

como o que eles constroem – se ampliem. Daí sua responsabilidade nas escolhas e também na

condução de leituras obrigatórias, pois por meio dele, professor, o aluno pode ter acesso e

entender como se torna viável supor e compor novos universos :

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O imaginário não é algo com que se nasce. É algo que se elabora, se desenvolve, se enriquece, se trabalha ao longo dos encontros. Quando se viveu sempre em um mesmo universo de horizontes estreitos, é difícil imaginar que exista outra coisa. (…) Trata-se, no fundo, de ser receptivo, de estar disponível para propor, para acompanhar o jovem usuário, procurar, com ele, inventar com ele, para multiplicar as oportunidades de fazer descobertas, para que o jogo esteja aberto. Trata-se de inventar pontes, estratagemas que permitam a quem frequenta uma biblioteca não ficar encurralado anos a fio em uma mesma estante ou coleção. (Ibid., p.179)

Desempenhar esse papel de mediador não é, contudo, função simples, tampouco

isenta de riscos, uma vez que na tentativa de interagir, convidar, temos que burlar a

obrigatoriedade de que por vezes se reveste a leitura – no caso tanto de leitura previstas pelo

currículo, como da leitura fruição analisada neste trabalho. Se houver cuidado, respeito ao

outro – o que quer dizer, entre outras coisas, respeito pelas reações de gosto ou de recursa,

proximidade ou indiferença – , penso que a presença do professor pode se tornar, de fato,

condutora e integradora da experiência da leitura, conforme prevê Petit:

Contudo, se não é intrusiva, uma terceira pessoa pode propor uma situação de intersubjetividade benéfica em torno de objetos culturais, capaz de criar uma margem de manobra. Relatos, poemas, mitos, lendas transmitidos por um mediador, transmitidos pela sua voz protetora, abrem por vezes um espaço de devaneio, de fantasia, quando este falta. (PETIT, 2009, p. 86)

E longe de essa ser uma função mística, na verdade, é preciso que seja simples e

despida de arrogância – que seja postura de humildade e de paixão, dando o exemplo de si e

de sua conexão com as obras oferecidas. Compreendo, então, que mediar é tornar habitáveis

outros territórios e convidar a outros voos e caças (CERTEAU, 2012), prezando pela

individualidade e pela autonomia. Nota-se, portanto, a partir dessas considerações que o papel

do mediador vai muito além do de aproximar fisicamente leitor e obra e passa por questões

sociais e pessoais, muitas vezes indizíveis ou pouco visíveis no ambiente escolar, por

exemplo. Mesmo num contexto de classes sociais privilegiadas, como é o caso desta pesquisa,

pois os entrevistados, em geral, apresentam um perfil que poderia ser considerado

diferenciado frente à maior parte da população brasileira, é possível notar que falta a alguns –

ou vários – proximidade com textos, filmes, músicas. Como professora de Ensino

Fundamental II e Médio (neste último segmento, atuo há quinze anos), pude notar muitas

vezes que o poder econômico não se traduz necessariamente em consumo de bens culturais.

Desse modo, a presença de um mediador que mostre a obra, por vezes, via a paixão que ele,

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professor, tem pelo texto, música, filme, constitui um ponto essencial para influenciar e

seduzir os jovens.62

Seria desejável que o jovem percebesse, como a criança, que há na leitura mais do

que ela mesma parece ter, um toque talvez misterioso ainda, mas que se poderá desdobrar em

descobertas outras. Petit sugere isso quando cita Bruno Bettelheim, segundo o qual, para

sentir muita vontade de ler, uma criança não precisa saber que a leitura lhe seria útil mais

tarde. Ao contrário, “ela deve ser convencida de que a leitura lhe abrirá todo um mundo de

experiências maravilhosas, dissipará sua ignorância, a ajudará a compreender o mundo e a

dominar seu destino” (BETTELEHIM, 1993, p.50 apud PETIT, 2008, p.155). Petit completa:

“Segundo ele, a criança deve sentir que na literatura há uma “arte esotérica” que lhe

desvendará segredos até então ocultos, uma “arte mágica” capaz de lhe oferecer um poder

misterioso” (PETIT, 2008, pp. 155-156).

Cabe, portanto, ao professor, enquanto leitor, sugerir essa faceta um quê

misteriosa e fascinante que a leitura pode apresentar e não ser simplesmente aquele que impõe

ou dirige uma leitura. Petit reporta, por exemplo, pesquisas francesas em que jovens afirmam

não achar a escola prazerosa. Os rapazes e moças dizem que a obrigação os teria afastado da

leitura; reconhecem o desafio dos professores em ensinar o “domínio da língua”, bem como

partilhar o patrimônio cultural e iniciar as crianças no “prazer de ler”. A autora, porém, à luz

das entrevistas que colheu, afirma: “Hoje, como em outras épocas, ainda que “a escola” tenha

todos os defeitos, sempre existe algum professor singular, capaz de iniciar os alunos em uma

relação com os livros que não seja a do dever cultural, a da obrigação austera” (Ibid., p.158).

Retomando Snyders e seu sonho, o da escola como lugar da “alegria cultural” e o acesso a

obras diversas visto como oportunidade constante de aprendizagem e construção do

indivíduo, podemos relacionar com estas as ideias de Petit:

Se o adulto impõe à criança o comportamento que ela deve ter, o bom jeito de ler, se ela se submete passivamente à autoridade de um texto, encarando-o como algo que lhe é imposto e sobre o que ela deve prestar contas, são poucas as chances de o livros entrar na experiência dela, na sua voz, no seu pensamento. Apropriar-se efetivamente de um texto pressupõe que a pessoa tenha tido contato com alguém – uma pessoa próxima para quem os livros são familiares, ou um professor, um bibliotecário, um fomentador de leitura, um amigo – que já fez com que contos, romances, ensaios, poemas, palavras agrupadas de maneira estética, inabitual, entrassem na sua própria experiência e que soube apresentar esses objetos sem esquecer isso. Alguém que descobriu o monumento, fazendo com que encontrasse uma voz singular. (PETIT, 2009, pp. 47-8)

62 No capítulo 4, analisarei depoimentos como os dos jovens Bruna, Heitor, Giovane e Jéssica, que comprovam o

poder da influência e do exemplo dos professores.

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Longe de ser uma relação tachada como paradoxal, esse misto de repulsa (leitura

obrigatória; cobrança) e encanto proporcionado pelo contato mediado do professor parece

integrante do contexto escolar. E se o professor e sua paixão pesarem mais na balança, sua

influência, com certeza, se fará decisiva para o aluno: “Para transmitir o amor pela leitura, e

acima de tudo pela leitura de obras literárias, é necessário que se tenha experimentado esse

amor” (PETIT, 2008, p. 161). Ou seja, enfatizamos a ideia da experiência como vivência

decisiva (BONDÍA, 2002) e não somente individualizada em sua percepção, mas altamente

“transmissível” considerando-se essa relação entre leituras, professores e alunos que a escola

torna possível. Relação que não raro pode se configurar como sedução intelectual: “O

encontro autêntico entre um mestre e um aluno não pode prescindir da paixão e do amor pelo

conhecimento” (ORDINE, 2016, p. 132).

Essa paixão pode transparecer numa outra condição que talvez nos ajude a

entender e confirmar a figura do professor como mediador no que a experiência da leitura

fruição tem de significativa e marcante: sua caracterização como ledor. Segundo o dicionário

on-line Houaiss, ledor é “que ou aquele que lê; leitor”.63 Ou seja, a princípio, um sinônimo de

leitor. Um artigo sobre o assunto, da professora Maria Justo (2008), considera ledor “aquela

pessoa que se dispõe a realizar leituras para aqueles que não podem ler”. Nesta definição, vê-

se que há algo um pouco diferente do verbete do dicionário, já que se explicita, no ato de ler, a

disposição expressa de fazer isso para o outro.

Ledor é um termo muito utilizado para designar aquele que lê para deficientes

visuais. Denise Schittine, pesquisadora da área de Comunicação, em sua tese de doutorado

defendida no Departamento de Letras da PUC/RJ, analisa como leitores e autores que se

tornaram cegos procuraram manter seu contato com os textos, sendo a presença do ledor uma

alternativa para essas pessoas conservarem o vínculo com o mundo da leitura e do texto

escrito. Segundo essa autora, “os cegos têm o hábito de chamar ledor a esta figura que se

interpõe entre eles e o texto, emprestando voz ao que está criptografado atrás de palavras que

eles já não podem mais ler” (SCHITTINE, 2011, pp. 17-8). Mas a própria pesquisadora

argumenta contra essa aparente distância entre o leitor que vê e o que tem alguma deficiência:

Todo leitor é cego quando vai iniciar um texto. Cego aos objetivos do autor. Cego aos caminhos que vai percorrer. Cego ao que irá descobrir sobre si mesmo e sobre a escrita. A leitura é um ato de prazer, como diria Roland Barthes, mas é também um ato de coragem. É um entregar-se de olhos fechados a um caminho que não é traçado nem pelo leitor nem pelo autor

63 Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa – versão Beta; disponível em

http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=ledor; acesso em 04. jan.2016.

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nem pelo texto, mas por uma quarta via que se articula a partir dos três. É um labirinto de imagens e sons, que mesmo não sendo vistos ou ouvidos, precisam ser percorridos. Ao se entregar, nada garante que o leitor não se perca. Nem quando autor já é conhecido nem quando o assunto já foi lido. Cada texto é um texto, e cada leitor procura se localizar e ser guiado de forma diferente, de acordo com sua própria subjetividade, mesmo que o texto que está lendo seja o mesmo que tantos outros leitores já leram. Sobre o texto, ninguém tem o poder. Nem o autor nem o leitor que tem um texto conhecido nas mãos. Cada leitura do mesmo escrito é uma nova leitura, um novo labirinto que se estende sem respostas iguais ou os mesmos caminhos (SCHITTINE, 2011, p. 10)

Cada vez que adentramos um texto (e acrescento, podemos ser “cegos” mesmo

quando já “estivemos” no texto, tempos antes, e resolvemos voltar a explorá-lo), o percurso

de encontros e desencontros é único e, assim, sempre são novas (e um quê imprevistas) as

paragens a serem descortinadas seja por nossos olhos, seja por nossos ouvidos (ou ambos).

Segundo a imagem poética que Certeau (2012) delineia, enquanto leitores, somos caçadores,

peregrinos sempre em construção e em busca. Sozinhos ou com o outro, a leitura de um texto

é algo sempre novo, sempre possível experiência, prenhe de desdobramentos e potenciais

descobertas. Ser ledor é ser um responsável direto por influenciar outros leitores nos seus

percursos de caça (CERTEAU, 2012).

Segundo Schittine, uma alegoria modelar dessa responsabilidade e do alcance que

tem um bom ledor, seria Sherazade, a habilíssima narradora de As mil e uma noites, porque

sua atividade de contar histórias configurou-se não só como a grande estratégia para evitar e

adiar sua morte, mas também como prática habitual que a fez amada pelo sultão: “Sherazade é

o nosso ledor no ponto zero. Uma ledora porque estende o fio entre este leitor e o texto, e uma

contadora porque parece ter testemunhado cada uma daquelas histórias” (SCHETTINE, 2011,

p. 126). Como ela, nós, leitores-ledores, buscamos adiar ou, ao menos, suspender a dor, a

perda, a infelicidade, buscamos romper com o cotidiano de fazeres por vezes esvaziados ou

repletos de exigências que oprimem nossos sonhos e nosso prazer, sejam quais forem e nos

conduzir e ao outro às paragens da ficção – fabulação inexorável ao ser humano, conforme já

definira Candido (2002), leitura que se mostra mais que lazer, remédio (PETIT, 2009). Mais

ainda, como Sherazade, aquele que se proponha a ser ledor – sem que isso exija, por exemplo,

uma performance extrema, necessariamente teatralizada – pode revelar-se, como esta

narradora, um sedutor, pois “Ler para o outro ou ouvir uma leitura passa, invariavelmente, por

um filtro amoroso. É possível que, com o tempo, façamos menos: leiamos menos, escutemos

menos. Mas todas as vezes em que revisitamos esse lugar de ledores a sensação é a mesma”

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(SCHETTINE, 2011, p. 127). Sensação essa que, como a própria leitura, pode ser

extremamente prazerosa e, quem sabe, até contagiosa.

Não basta, portanto, ser apenas leitor e oralizar o texto. É preciso conhecer essa

obra, ter lido antes – em suma, pensar sobre o que ler, escolher, preparar.64 E assim fazer

daquela leitura momento de doação cuidada ao outro. Ao desempenhar, pois, o papel de

mediador, leitor e ledor, o professor, na leitura fruição, carrega em si a responsabilidade de

transportar pela voz o texto escolhido e, sobretudo, via essa exposição que é sensorial, como

já apontei, dedicar um momento de partilha ao outro e transmitir paixão – a qual se traduz no

gesto ali desempenhado e se confirma pelo cuidado (ou não) na escolha do texto, pelo gosto

que sua voz pode transmitir quando oferece esse texto ao outro, no caso, seus alunos.

Somando-se, então, a voz, a disposição da escolha do texto, o colocar-se em posição de leitor

apaixonado, tornar-se ledor é uma condição importante para ganhar atenção e mediar o

contato entre o texto e os alunos. Insisto que, nesse caso, o professor leitor é mais do que seria

se lesse para si e reaviva a ideia de existência do texto, “(...) a existência do texto é silenciosa,

silenciosa até o momento em que um leitor o lê” (MANGUEL, 1997, p. 207). Talvez fosse

possível parafrasear e glosar Manguel dizendo que, no caso da leitura fruição, o texto passa a

existir sensorialmente e pulsa na voz do professor ledor que o oferece a crianças e jovens.

Preocupando-se em como embasar o conceito de ledor, Schittine recorre também a

Barthes e começa por diferenciar escrevente e escritor. Segundo ela, para Barthes (1993),

“(…) os escritores têm uma relação de guardiões com a palavra: transformam o trabalho de

linguagem em dom de escrita e a técnica em arte. Os escreventes encontram na palavra um

meio para chegar a um fim: testemunhar, explicar, ensinar” (SCHITTINE, 2011, p. 129).

Criam-se, assim, segundo a autora, duas modalidades de escrita: a de informação,

desempenhada pelo escrevente, e da criação, defendida pelo escritor enquanto autor. A partir

dessa análise, discute-se, então, o conceito de ledor:

O ledor, a princípio, surgiu para representar a mesma função do escrevente. Ele é a ferramenta de ligação entre o autor ou o leitor e o texto. Então a diferença que Barthes impõe entre escritor e escrevente pode ser usada também para definir a diferença entre leitor e ledor. O ledor é aquele para quem o texto só se justifica no ato mesmo da leitura. O leitor é quem usa o texto como instrumento de análise: para aprender e criticar. O que não significa certamente – assim como entre escreventes e escritores – que as duas funções não se confundam. Contemporaneamente, o ledor sabe, entende e analisa muito mais um texto do que um ledor em outras épocas (SCHITTINE, 2011, p. 130)

64 Aconselha Lajolo (2005, p.33): “Se achar necessário, ensaie sua leitura. Para que se entenda o que alguém lê, é

necessário que quem lê leia bem. (…) Afinal, é pela voz do leitor que os ouvintes vão ler o texto!”.

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Hábil, o professor ledor desenvolve sua análise mesmo ao optar pelo que será

lido: em sua escolha há inúmeras variantes que permitem entrever muito de si e de sua relação

com a turma, bem como tal prática revela o que julga importante, o que lhe parece pertinente

oferecer ao outro naquela situação ali delimitada. Se for apaixonado, sua leitura o fará

mesclar-se ao texto, fusão que não passa despercebida aos ouvintes, tal como indicam os

relatos de meus ex-alunos. Vários deles disseram perceber que os textos lidos na atividade de

leitura fruição não eram aleatórios.

Nesse sentido, ainda que leia para quem já sabe ler, como faz o professor que

pratica a leitura fruição junto a alunos letrados, o docente pode desempenhar o papel de ledor

à medida que sua performance pode trazer ou dar nova luz ao texto lido e sua voz, nova

percepção, propondo novas imagens mesmo para aqueles que são leitores considerados

hábeis.

Reconhecer esse incorporar-se ao texto que a figura do ledor promove é pensar

que o professor torna-se parte da “metamorfose” impulsionada pelo prazer de ler. Esse

professor ledor torna-se, portanto, modelo, tão sedutora pode ter sido sua condução da prática,

pois o gesto marca e é apre(e)ndido, como nos diz Pennac: “aquilo que uma criança aprende

primeiro não é o ato, mas o gesto do ato, e que, se por um lado, ela pode ajudar na

aprendizagem, essa ostentação é, acima de tudo, destinada a tranquilizá-lo, nos contentando”

(PENNAC, 1993, p.46). Uma vez contaminado pelo gesto e pela paixão, crianças e jovens

trilharão seus próprios caminhos, empreenderão suas próprias caçadas – o que pressupõe

acertos e deslizes, encontros proveitosos e frustrações, mas nem por isso menos “alegria

cultural” e menos interação efetiva com a leitura.

2.6. Leitura fruição: o paradoxo entre prazer e dever

Procurei, até aqui, argumentar a favor da leitura fruição enquanto prática escolar.

Nessa defesa, existe, entretanto, como já assinalei, um paradoxo inerente, pelo menos, no

contexto de que partiu essa pesquisa. Embora assegurasse a liberdade de escolha do professor,

incentivando-o a buscar textos de sua preferência, obras de que gostasse e que lhe seria

agradável partilhar, a leitura fruição, como delimitada no colégio onde trabalhei, partia de

uma diretriz tomada como parte da identidade da escola – ou seja, era, via de regra, uma

obrigação a ser cumprida pelos professores e alunos, o que poderia soar como

descaracterização da proposta. Aqui reside algo incômodo, porque obrigar o prazer de ler, dito

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assim, de modo simples e simplista, parece soar como um oximoro, é proclamar o absurdo:

“(...) há algo na leitura que não é compatível com a ideia de programação, de promoção.

Ocorreria a alguém promover o amor?” (PETIT, 2013, p. 23). Creio, todavia, que a questão

merece um pouco mais de cuidado para que essa aparente contradição seja examinada com

cautela.

De fato, a prática de leitura fruição constituía-se um forte encaminhamento da

direção e coordenação do colégio, conforme relatei: todos os professores, de todos os

segmentos, deveriam ler para seus anos no início das primeiras aulas do dia. A ideia de ter que

fazer algo, de ser obrigado a isso, ainda mais quando o fazer relaciona-se à leitura - e uma

leitura que se pretende prazerosa -, parece algo repressor e autoritário – como talvez tenham

sido e ainda sejam tantas outras práticas do ambiente escolar, algumas das quais já comentei.

No entanto, acredito que é preciso ir além dessa inevitável crítica.

A escola, do mesmo modo que outras instituições, guarda suas regras e suas

rotinas – as quais mantêm, por vezes, os contornos que permitem entender por que tais

situações são escolares ou não e para que e a quem se destinam. Outrossim, como qualquer

campo de atividade humana que se pretenda organizada, são necessários parâmetros e alguma

liderança – presença de autoridades, o que não quer dizer, ressalto, autoritarismo. Se fizermos

um esforço, podemos, como Snyders, perceber que a obrigação, como está posta na escola,

pode ser “obrigação alegre” e pode ser, sobretudo, oportunidade: “A obrigação é a chance que

cada um tem de encaminhar-se para aquilo que ainda não o atraía, onde ainda não fora bem-

sucedido” (SNYDERS, 1993, p. 106). Essa obrigação, segundo Snyders, nos protege porque

pressupõe cuidados e tratamento equânimes: “(...) pode-se amar esses medos nascidos do

obrigatório na medida em que, simultaneamente, nos sentimos protegidos pelo obrigatório,

que passa a ser garantia, alívio e alegria de sentir-se protegido. Todos devem submeter-se,

logo todos devem ser tratados da mesma maneira e, portanto, todos devem ter seus direitos

estabelecidos.”(Ibid., p. 105), além de promover, via de regra, “uma conduta mais firme e

mais estruturada do que as da vida habitual (...)”(Ibid., p. 105). Dito de outra maneira: pelo

que é obrigatório, temos condutas regulares que podem nos alçar a conhecimentos, atitudes e

relações a que, de outras formas, não teríamos acesso. A partir do que se delineia obrigatório,

encontramos apoio para que outros desdobramentos e outras ideias e modos de fazer se

mostrem possível e factíveis.

Creio, outrossim, que a proposta de determinar um momento do dia – no caso, o

início das aulas – para ler o que quiser é oportunidade rara de alçar a leitura a um patamar de

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importância e aproximá-la da vida, ela mesma, de forma mais intensa. Numa entrevista à

Revista Nova Escola, a autora Ana Maria Machado, ao comentar o uso do livro em sala de

aula, dá como exemplo de iniciativa interessante um projeto realizado na Inglaterra: “Num

determinado horário, toda a comunidade escolar do porteiro à diretora para o que está fazendo

para ler. Cada um escolhe o assunto que quiser, ficção ou não-ficção. Quando acaba esse

tempo, tudo volta ao normal”. Quando o entrevistador pergunta à escritora se não haveria

nenhuma atividade após essa leitura, ela responde: “Não precisa. Ninguém lê para fazer

prova. O resultado é que, espontaneamente, surgem inúmeras discussões sobre as histórias. Os

níveis de leitura sobem e as pessoas passam a se expressar melhor”. Ora, o projeto citado,

parece-me, guarda semelhanças com a leitura fruição: o privilégio de um horário exclusivo

para se ler o que quiser, sem cobranças, sem provas. As reverberações surgiriam por si só,

conforme cada um fosse (ou não) impactado pelo que foi lido. Alguns contra-argumentariam

que a escolha do que ler seria do professor, portanto, não haveria contribuição ou opção de

escolha dos alunos. Entretanto, não acho que os professores se negariam a atender sugestões

ou acatar ideias dos alunos – ao contrário, de bom grado, leriam textos indicados, pedidos

pelos alunos, como relata a professora Célia, numa das entrevistas que fiz.65

Desse modo, ter delineamentos, obedecer a certas normas e realizar atividades que

são reputadas como integrantes do projeto pedagógico (ainda que confirmadas num contrato

não escrito) não me parece algo tão opressor se pensarmos que, para cada estratégia, haverá

numerosas táticas que deixam entrever quem é o sujeito, seus valores, marcando, assim, o

território de sua personalidade naquele fazer (remeto-me aqui a Certeau), além de permitir

certa segurança, ao garantir minimamente ideias e valores que a escola, no caso, julga

importantes e que permitem ver certa unidade na ação de seus integrantes. Acredito que não

se trata necessariamente de engessar o trabalho do professor, já que sempre houve, ao menos

na instituição ora referida (e há em muitas outras), espaço para diálogo, questionamento e

crítica. Para quem praticava, abraçava, por assim dizer, a leitura fruição, tal espaço, por vezes,

se convertia em momento de refrigério e partilha de conhecimento além do que o currículo

propunha – coloco-me entre os professores que viam na leitura fruição um momento de

deleite, de extravasamento e de construção de algo indizível, etéreo, mas forte e persistente.

Algo que não sei nomear, mas que reconheço como parte integrante de meu cotidiano;

65 No próximo capítulo, apresento o trecho do depoimento de Célia em que ela comenta que atende a pedidos dos

alunos.

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momento que não me empobrecia; ao contrário, foi me transformando e me fazendo mais

sensível aos alunos e aos textos.

Por vezes, não temos realmente poder de escolha sobre alguns acontecimentos –

nem sempre o clichê do “querer é poder” se faz real, ainda que engrosse o senso comum e os

posts de redes sociais. Porém, acredito que, em vez de uma postura amarga em relação àquilo

que, no caso, a instituição determina e reputa como constituinte de sua identidade, uma vez

que concordamos em trabalhar nela e com ela, podemos sim dialogar e transformar aquilo que

parece dever terrível na já comentada “alegria cultural” e “obrigação alegre” (SNYDERS,

1993). Obviamente, nem sempre isso é possível e não sou ingênua a ponto de afirmar tal

disparate – há sim situações delicadas, imposições intransponíveis ou sobre as quais é difícil

falar, quanto mais alterar. Insisto, todavia, que, no caso da leitura fruição, essa imposição

poderia facilmente se transformar em momento de encontro e de liberdade, permitindo rever

ranços e quiçá preencher lacunas acadêmicas e até afetivas, tanto de alunos quando de

professores.

Petit nos ensina que:

Se, em certo sentido, existe uma contradição irremediável entre o ensino da literatura da escola e a leitura que fazemos por conta própria, ao menos cabe aos professores fazer com que os alunos tenham uma maior familiaridade, que sintam mais confiança ao se aproximarem dos textos escritos. Fazer com que sintam sua diversidade, sugerir-lhes a ideia de que, entre todos esses textos escritos – de hoje ou de ontem, daqui ou de outro lugar – haverá certamente alguns que dirão algo muito particular a eles. (PETIT, 2008, p. 178)

Essa consideração permite ecoar também algumas das ideias de Snyders (1993),

para quem a escola pode ser transmutada de espaço da obrigação para espaço agradável –

inclusive no que o obrigatório permite organizar e oportunizar a alunos e professores - , em

que aprender mais se torna algo não só constitutivo sujeito, mas também desejado por este. À

luz do que diz Petit, no trecho anterior, podemos supor que para que esse caminho de pedras

se transmute em percurso de descobertas, a postura do professor e o modo como este assume

sua mediação podem ser o divisor de águas entre a amargura do currículo e a oportunidade do

desbravamento. Enquanto sujeitos atentos, caçadores apaixonados nos bosques da leitura,

penso que podemos, sobretudo, nós, professores, tentar transformar vivências, contato com

informação e tempo escasso em experiência – ou seja, permitir que aquele momento inicial da

aula seja especial, seja de prazer e de fuga do ordinário (por mais que a prática o faça

cotidiano).

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Talvez caiba rever o peso e a conotação quase sempre negativa que damos à ideia

de obrigação. Pode haver – e a leitura fruição atesta isso – um espaço regrado, obrigatório,

portanto, em que se exercite a liberdade de escolha do texto, de leitura e de elaboração de uma

performance. Faz-se, assim, possível a essência do paradoxo. A escola, parece-me, precisa

misturar bem o dever e a liberdade e só é possível reconhecer um ou outro no contraste – daí a

existência de ambos ser interessante.66 No entanto, o movimento dialético é tanto mais rico

que a simplificação estanque. Num contexto que preza o conhecimento, o científico, a

experiência da leitura fruição resgatar ou enfatizar o humano que, longe de ser excludente, é

integrante (ou deveria ser) ao saber.

O saber da experiência caracterizado por Bondía reforça que é possível se

complementarem outros dois aspectos vistos comumente como excludentes: o subjetivo e o

objetivo. Revistar a experiência de outrem e trazê-la para si, eis algo que também se pode

aprender com a leitura fruição. Note-se ainda que é uma experiência por meio da palavra e

embasada por ela – e como o ser humano, conforme nos diz Bondía, é um vivente da palavra,

essa prática pode dizer muito de nós e a nós: “Quando fazemos coisas com as palavras, do que

se trata é como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos

as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos

ou sentimos o que nomeamos” (BONDÍA, 2002, p. 21).

Desse modo, creio que mais que paradoxo, caso insolúvel, a leitura fruição pode

ser vista como momento que recupera a paixão pela leitura em sua versão talvez mais

solidária e mais idealista e nos permite pensar uma deliciosa subversão: a de um espaço do

dever que se transmuta em palco de convivência e sensibilidade, experiência sensível e

acessível que remete ao que de mais humano há em nós.

2.7. Afinal, para que serve a leitura fruição?

O que nos torna felizes é o desfrutar, não o possuir. (MONTAIGNE, 2002, p.390)

Propus-me a argumentar, ao longo das seções anteriores, que a leitura fruição se

justificaria segundo as contribuições que a leitura, ela mesma, pode trazer ao sujeito e ainda se

concebendo as benesses que essa prática, como experiência a qual permite encarnar um

66 Silva (2011), em seu doutorado, problematiza essa relação paradoxal entre a prescrição e o espontâneo quando

toma para reflexão o planejamento escolar no âmbito da Educação Infantil. A autora traz diversos indícios de como a prescrição, ao fornecer o modelo, pode enriquecer as liberdades de escolha de trabalho para os professores.

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direito fundamental do indivíduo. Conforme Petit (2008, 2009 e 2013), acredito na leitura

enquanto possibilidade de construção (que não acontece apenas na infância e juventude,

embora talvez seja mais forte nessas épocas) constante da subjetividade, de superação de

opressões e dores, enfim, de interação com o mundo, em vez de isolamento estéril – pois

mesmo quando a leitura convida à solidão, isso pode ser um modo de nos reinventarmos para

voltar às relações e encará-las.

Tais ideias também encontram respaldo em Candido (2004), ao qual já me referi

quase exaustivamente, tomando emprestado a ideia do direito à literatura como inalienável a

qualquer ser humano. Do mesmo modo que precisamos sonhar, diz Candido, precisamos da

fabulação – e no caso da leitura fruição, esse espaço se torna possível num tempo determinado

para isso em que dever (aquele prescito pelo acordo pedagógico proposto) encontra o prazer

do compartilhar, lendo e dando-se a se ler. Esse direito a um momento de conforto em meio à

rotina esmagadora pode nos salvar do mundo e, quiçá, de nós mesmos e nossos monstros,

traumas, dores – e nos fazer voltar a um contato com o sensível.

Vivemos um tempo em que conhecimento e sensibilidade, por vezes, se

dissociaram (BONDÍA, 2002), daí a importância de experiências que não se reduzam a

experimentos e que, de fato, toquem a sensibilidade do sujeito. Retomo tais ideias a fim de

introduzir mais algumas considerações que me parecem interessantes para defender a prática

da leitura fruição. Para tanto, recorro às reflexões do filósofo italiano Nuccio Ordine. Em sua

obra A utilidade do inútil (2016), o professor da Universidade da Calábria defende que apenas

os saberes não “vendáveis”, os que escapam à lógica do mercado (tudo que está ligado ao

lucro, à produtividade e, por vezes, se reduz a tais condições) nos salvam da autodestruição.

Acredito que a leitura fruição se constitui como um desses saberes “inúteis” – e por isso tão

essenciais, como defende o professor italiano.

Na introdução do livro, Ordine critica a lógica excludente e redutora do mercado,

pautado por interesses exclusivamente econômicos, o que, segundo o autor, está cada vez

mais destituindo o ser humano de sua humanidade, de sua sensibilidade. Assim Ordine

explica seu trabalho:

Numa acepção muito mais universal, coloco no centro das minhas reflexões a ideia da utilidade daqueles saberes cujo valor essencial está completamente desvinculado de qualquer fim utilitarista. Há saberes que têm um fim em si mesmos e que – exatamente graças à sua natureza gratuita e livre de interesses, distante de qualquer vínculo prático e comercial – podem desempenhar um papel fundamental no cultivo do espírito e no crescimento civil e cultural da humanidade. Nesse sentido, considero útil tudo o que nos ajuda a nos tornarmos melhores.

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Mas a lógica do lucro solapa as bases das instituições (escolas, universidades, centros de pesquisa, laboratórios, museus, bibliotecas, arquivos) e disciplinas (humanísticas e científicas) cujo valor deveria coincidir com o saber em si, independentemente da capacidade de produzir ganhos imediatos ou benefícios comerciais. (ORDINE, 2016, pp. 9-10)

Essa lógica do lucro também se encontra, por exemplo, no ambiente escolar,

travestida de diferentes roupagens. No caso das leituras, muitas vezes, são valorizadas aquelas

que podem surtir um efeito imediato, que podem ensinar algo realmente útil – embora,

conforme discute Ordine, a acepção que essa palavra assume varie muito. Por exemplo,

seriam úteis as leituras cobradas em exames como o vestibular ou aquelas que fornecem

informações consideradas “práticas” e de ciências, cuja aplicação podem ser verificadas e

notadas no cotidiano, como a biologia ou a química. O lucro aqui seria o resultado esperado: a

informação prestes a ser usada poderia se converter em um conhecimento aplicado e que

ajudaria o indivíduo a fazer ou obter efetivamente algo. Ordine salienta:

Nesse contexto brutal, a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse exclusivamente econômico, está progressivamente matando a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a educação, a livre pesquisa, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte civil que deveria inspirar toda atividade humana. No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte. (ORDINE, 2016, p. 12)

No universo escolar, a leitura fruição não se traduz como um conteúdo

identificável, nem representa algo que vá dar frutos de modo imediato – não é, a princípio,

algo que os alunos usarão, como seria uma equação matemática ou um conceito de física,

conforme a área profissional para a qual se dirijam. Mesmo para os alunos de humanidades

pode não parecer algo útil. Estamos, mais uma vez, num terreno de incômodos: há a defesa da

leitura na escola, mas que seja, preferencialmente, uma leitura útil. E, no caso da leitura

fruição, não há algo que a torne palpável ou verificável: “O que não produz lucro é realmente

considerado como um luxo supérfluo, como um obstáculo perigoso. “Tudo o que não é útil é

desprezado”, observa Diderot, citado por Ordine, porque “o uso do tempo é precioso demais

para perdê-lo com especulações ociosas” (ORDINE, 2016, pp. 12-3). Assim, como usar o

precioso tempo da aula para uma atividade sem um sentido imediato, praticamente

inquantificável e sem uma utilidade verificável?

Essa gratuidade é motivo de alegria para uns e de incômodo e até recusa por parte

de outros. Por vezes, ouvi colegas criticando a prática da leitura fruição porque diziam não ter

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tempo, havia muito conteúdo a ser ministrado, as provas estavam chegando e, assim, não

havia tempo para leituras como essa. Os alunos, por vezes, reconheciam tais ideias, como

atesta a fala de Giovane; quando pergunto sobre o projeto, se os professores liam no início das

aulas, o jovem diz:

Teve professor que parou de fazer [a leitura fruição] justamente porque falou que não ia dar tempo

de dar a matéria.

Talvez houvesse quem pensasse que, nesse contexto de exigências e cobranças,

como é o do Ensino Médio, dos alunos às vésperas do vestibular, eram leituras inúteis essas

ofertadas sem controle e sem sujeição a avaliações; leituras que nada ou quase nada

acrescentariam. Claro que não se trata aqui de negar que o tempo para desenvolver as

atividades escolares, por vezes, é deveras escasso e que há cobranças diversas e ferozes, da

instituição, das famílias, dos alunos. Creio que às vezes esse contexto de pressão e cobrança,

de exigência de produtividade – que, no caso do 3o ano do Ensino Médio se confirma pela

condução do aluno ao Ensino Superior (e tanto melhor se numa instituição renomada) –

reproduz a lógica do mercado e da produtividade a qualquer custo. Isso quer dizer que, se for

necessário sacrificar momentos de fruição em nome do sucesso, isso deve ser feito.

Certamente nem todos os professores e alunos pensam assim – contudo, deve haver aqueles

que acreditam nessa lógica que julgo perversa e que Ordine (2016) denuncia.

Parece-me possível, entretanto, que haja uma conjunção, um equilíbrio entre os

deveres normalmente prescritos na rotina escolar e o tempo da leitura fruição. De fato, há dias

e ocasiões em que tudo é mais “corrido”, urgente, mas acredito que ler um breve poema ou

um trecho de romance não prejudicaria tanto o andamento das atividades – ao contrário,

poderia criar, como vivenciei, abertura e simpatia não só àqueles textos lidos, mas até em

relação à aceitação do professor.67 Sobretudo, penso que esse momento de encontro, de

gratuidade, é necessário, porque, como defende Ordine (2016) – em consonância com Petit

(2008; 2009; 2013) e Candido (2004) – exercita o que há de mais humano em nós. Acredito,

como Ordine, que saberes como a literatura, a filosofia e outros vários que não trazem em si

eficácia ou efeitos mensuráveis são fundamentais e nos são essenciais.

Creio que a leitura fruição pode ser uma das “dobras supérfluas”, tão estimulantes,

apontadas por Ordine (2016); momento de respirar profundamente frente à asfixia dos deveres

67 No último capítulo, apresentarei relatos em que os alunos afirmam terem desenvolvido simpatia pelo professor

e, às vezes, até por alguns conteúdos a partir do contato da leitura fruição.

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urgentes. É preciso ler no espaço escolar. Leitura fruição é leitura, então, pode ser incluída no

planejamento escolar. Essa prática configura-se como oportunidade para que formas diversas

de arte – literatura, música, cinema – despertem questões, curiosidade para e pelas “coisas

humanas” e toquem sensivelmente os indivíduos. Outrossim, como doce inutilidade, a leitura

fruição confirma aquele tom de humanidade que é condição que nos separa da brutalidade,

transformação esta que o professor Ordine comprova por meio de uma breve história retirada

do Livro do chá, do autor japonês Kakuzo Okakura e que reproduzo a seguir: “Ao oferecer a

primeira guirlanda à sua amada, o homem primitivo transcendeu o bruto. Dessa forma,

humanizou-se e se alçou acima das rudes necessidades da natureza. Penetrou no reino da arte

quando percebeu o sutil uso do inútil” (OKAKURA apud ORDINE, 2016, p. 95). Dessa

forma, conclui Ordine, “(...) com um simples gesto a humanidade soube colher ocasião para

se tornar mais humana” (Ibid., pp. 94-5) – palavras que se confirmam na bela afirmação do

escritor Bartolomeu Campos de Queirós (1999, p. 23): “Acredito que ler é configurar uma

terceira história, construída parceiramente a partir do impulso movedor contido na fragilidade

humana, quando dela se toma posse. A fragilidade que funda o homem é a mesma que o

inaugura, mas só a palavra anuncia”.

Acredito na leitura fruição como parceria e construção de sensibilidade,

possibilidade de exercício de humanidade a fim de despertar o que há de bom em cada um,

permitindo exercitar o olhar crítico e tolerante, a escuta e a doação. Desse modo, parece-me

possível defender esse “saber desinteressado”, nas palavras de Ordine, que a leitura fruição

propõe. Ainda mais: oferecer ao outro, na forma de leitura, uma delicadeza talvez impensada,

que alivia pressões e resgata a arte como exercício pleno de humanidade.

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3. Preparando a tecedura: pressupostos metodológicos

3.1. Primeiros fios e urdiduras

Diz a sabedoria popular que “quem conta um conto aumenta um ponto”. No caso

deste trabalho, contar significa não só “aumentar um ponto”, acrescentar detalhes: contar

também significa ampliar pontos de vista, criar teias intensas (e tensas) em que histórias e

memórias se entretecem, a fim de não apenas reconstruir ou recuperar experiências, mas eu

diria, sobretudo, a fim de criar possibilidades de análise e de compreensão sobre a leitura

fruição – além de, como se verá adiante, proporcionar diferentes versões e impressões acerca

desta prática. Como já referido na primeira parte deste trabalho, parti de considerações sobre a

leitura como prática historicamente localizada, tomando-a como um processo dialógico

(BAKHTIN, 2003 e 2009) e, portanto, discursivo:

(…) a leitura é o momento crítico da produção da unidade textual, da sua realidade significante. É nesse momento que os interlocutores se identificam como interlocutores e, ao fazê-lo, desencadeiam o processo de significação do texto. Leitura e sentido, ou melhor, sujeitos e sentidos se constituem simultaneamente, num mesmo processo. Processo que se configura de formas muito diferentes, dependendo da relação (distância maior ou menor) que se estabelece entre o leitor virtual e o real. (ORLANDI, 2012, pp.9-10)

Esse processo de constituição da leitura, dos sentidos e dos sujeitos depende, pois,

da relação entre leitor virtual, aquele desejado pelo escritor, e aquele real, o leitor ele-mesmo,

de carne e osso, o que encontra (juntamente a suas expectativas, repertório, leituras outras e

toda sua história) o texto (GOULEMOT, 2009). No caso desta pesquisa, conforme caracterizei

antes, procuro analisar de que modo a leitura fruição pode se constituir não só como prática,

mas também como direito, experiência e performance. Alunos e professores, protagonistas

dos depoimentos aqui analisados, têm histórias para muito além do enfoque deste estudo,

portanto é preciso fazer escolhas e determinar alguns pontos para deter atenção. Ainda que o

recorte seja bastante limitado, é mister reconhecer que há, em cada fala, elementos que

remetem a contextos e situações outras, a leituras e lembranças que extrapolam o enfoque

proposto. Reconhecer essas marcas, parece-me, é fundamental para a análise proposta, pois

busca-se respeitar o sujeito e sua história e perceber que nenhuma pessoa é estanque e se

limita ao que diz um depoimento.

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Conforme comentado, acredito que no caso da leitura fruição é preciso se

considerar a prática de modo um tanto mais “complexo” (não que a leitura, em si, entre um

leitor e o livro já não o seja): há, ao menos, necessariamente, dois leitores reais envolvidos –

sendo que um desses leitores, não raro, dá parte de si como suporte para o texto: o professor

que lê em voz alta – o ledor –, como acontece na maior parte das vezes, é leitor real,

corporeamente presente e que, de certo modo, já estabeleceu certo sentido com o texto, e

também dá a ler o texto e talvez um pouco desses sentidos a outros leitores, os alunos. Esses

leitores – professores e alunos – são interlocutores e compreender e valorizar isso é

fundamental para se pensar nas práticas de leitura fruição. Para tanto, chegamos ao ponto em

que cabe observar mais de perto aqueles que considero os protagonistas deste trabalho:

alunos68 e professores, indivíduos que compartilham entre si a experiência da leitura fruição e

a constituíram efetivamente não só como prática, mas sobretudo como experiência (BONDÍA,

2002). Considerando ouvir tais pessoas, busquei uma alternativa teórico-metodológica que

pudesse me orientar e instrumentalizar para que fosse possível elaborar dados e propor alguns

caminhos de análise. Desse modo, cheguei à História Oral (HO), a qual traz consigo a

possibilidade de, revisitando memórias e reconstruindo-as, por meio de narrativas, retomar as

experiências pessoais e coletivas, levando-se em conta particularidades e especificidades de

cada sujeito no processo sofisticado de construção embasado e fundamentado pela “memória-

trabalho”, isto é, pelo esforço de rememorar (BOSI, 1994).

Começo, pois, a partir de algumas considerações sobre a ideia de memória.

Recorro ao Dicionário Houaiss69 para alguns apontamentos iniciais:

memória - substantivo feminino ( sXIII) 1 faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos (...) 2 lembrança que alguém deixa de si, quando ausente ou após sua morte, mercê de seus feitos (bons ou maus), qualidades, defeitos etc.; nome, reputação (...) 3 aquilo que ocorre ao espírito como resultado de experiências já vividas; lembrança, reminiscência (...) 4 p.met. monumento erigido para celebrar feito ou pessoa memorável (...) 8 ( 1783 ) p.us. exposição escrita ou oral de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos sequenciados; relato, narração (...) 10 p.met. aquilo que se anota para não esquecer; apontamento, lembrete, memento (...) 13 fisl psic faculdade de conservar as modificações sofridas pelo organismo com possibilidade de reproduzir a ação que as provocou (...)

68 No caso, são ex-alunos. Contudo, como analisarei relatos que recuperam o momento em que eram alunos,

penso ser apropriado referir-me a esse jovens desse modo, quando tratar das práticas de leitura fruição. 69 Grande Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa – versão Beta; disponível em

http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=mem%25C3%25B3ria; acesso em 30 Out.2015.

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18 psic função geral que consiste em reviver ou restabelecer experiências passadas com maior ou menor consciência de que a experiência do momento presente é um ato de revivescimento (...) 19 psic termo geral e global para designar as possibilidades, condições e limites da fixação da experiência, retenção, reconhecimento e evocação (…)

Partir dos verbetes de dicionário é um modo de aclarar objetivos, considerações e

também traçar outras (novas, talvez) pretensões. No caso dos fragmentos do verbete, parece-

me interessante destacar que a definição de memória – pelo menos, esta que é ampla e voltada

a qualquer pessoa, a um público “universal” - compreende nuanças que se fazem marcantes

neste trabalho. As duas primeiras acepções do verbete remetem à lembrança, mas também à

conservação – compor os relatos, colher as histórias de outrem, por meio de entrevistas, como

fiz. Memória, então, está associada a buscar, mas também conservar, posto que os relatos

passam a integrar arquivos, produzem documentos e passam a compor trabalhos com este.

Mais à frente, temos acepções (3 e 10) que corroboram tal ideia, pois remetem, de diferentes

modos, à ideia de registro, de se guardar de algum modo “o que se passou”, o que foi vivido -

embora valha enfatizar, como adverte Alberti (2004), importante pesquisadora da HO, que o

passado nunca é recuperado em sua totalidade; o que temos são fragmentos descontínuos,

nunca o fato vivido, passado, ele mesmo (o que, de modo algum, invalida a pesquisa;

entretanto, é preciso ter atenção e assumir que temos versões sempre parciais do que se

passou). A acepção 4 refere-se à ideia de “monumento” - ainda que não seja meu objetivo, ao

rememorar e fazer desse exercício algo digno de nota, valorizando seus narradores, de alguma

forma, dá-se a pessoas comuns o status de “memoráveis”, dignas de importância e

reconhecimento, uma vez que se reveste a fala delas de valor. Também há as acepções que se

firmam a partir da narrativa, do relato (8) – fundamental, como se dirá adiante – e que

definem a memória como revisão e revisitação do que já foi vivido (18) e como possibilidade

de fixar a experiência. Essas acepções, parece-me, podem ser tomadas como entendimento do

que se busca fazer neste trabalho. Recuperar, reconstruir, revisitar – trabalho que é, sobretudo,

discursivo, construído na relação com o outro e que buscam entender e valorizar algo que se

passou e que pode ser considerado importante para compreender, no caso desta pesquisa, a

prática da leitura fruição num determinado contexto e momento histórico.

Para seguir, ainda, nas incursões sobre a questão da memória, recupero algumas

considerações e definições sobre seu conceito de memória. Começo pela bela imagem

mitológica, retomada por Le Goff:

Os Gregos da época arcaica fizeram da Memória uma deusa, Mnemosine. É a mãe das nove musas que ela procriou no decurso de nove noites passadas

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com Zeus. Lembra aos homens a recordação dos heróis e dos seus altos feitos, preside a poesia lírica. O poeta é pois um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é do futuro. É a testemunha inspirada nos “tempos antigos”, da idade heroica e, por isso, da idade das origens. A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sageza, uma sophia. O poeta tem o seu lugar entre os “mestres da verdade” [cf. Detienne, 1967] e, nas origens da poética grega, a palavra poética é uma inscrição viva que se inscreve na memória como no mármore [cf. Svenbro, 1976]. Disse-se que, para Homero, versejar era lembrar. Mnemosine, revelando ao poeta os segredos do passado, o introduz nos mistérios do além. (LE GOFF, 1996, p. 423)

Mãe de musas, aquela que revela “segredos do passado” e permite acesso

privilegiado aos “mistérios do além”, a memória é o atributo comum entre o poeta e o

adivinho, ambos narradores, cada um de um tempo e de circunstâncias e modos de narrar

muito peculiares. Recorrer, pois, a essa poderosa entidade, significa responsabilizar-se por

histórias já vividas e contadas, mas também por aquelas que podem vir a se tecer. A memória

seria, assim, mais que um dom, matéria-prima para artes da escrita, quer seja para

reconstrução de versões do que foi experienciado, seja para delinear ações e percursos futuros

– ou seja, pedra angular que permite análises e entendimentos para além dos tempos do

vivido.

Trabalhar com a memória significa, pois, reconhecer a escrita, um registro que se

fixa, permanece, a partir de imagens, percepções do vivido. Selligman-Silva (2006), baseado

em Aristóteles, descreve o que seriam essas imagens mentais que construímos:

Em Aristóteles, (…) encontramos tanto uma concepção da memória como escritura na nossa placa mnemônica das impressões do mundo, como também uma forte concepção de reminiscência ou recordação, como um procedimento de leitura — e, como é evidente, a comparação com as letras do alfabeto não é de modo algum casual aqui. O elemento ativo da memória é comparado ao modo de ação de um pesquisador ou viajante que busca a inscrição mnemônica pelos labirintos de nossa memória-arquivo. A noção de associação também é essencial no nosso contexto: a estruturação da recordação – e portanto do discurso de um modo geral, que sempre está recuperando informações arquivadas – funciona a partir de um princípio de leitura de semelhanças que não deixa de lembrar a definição aristotélica, da sua Poética, do homem como um “ser mimético”. (SELIGMANN-SILVA, 2006, p.33-4)

Recuperar as informações arquivadas, acessar as imagens, permitir que se

(re)avivem e se organizem expressões do que foi vivido e que assim também se revele um

pouco das entrelinhas do cotidiano e das relações, eis algumas das pretensões quando se

propõe re-construir memórias. Pesquisadores-viajantes vão, pois, atuando para buscar esses

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recônditos que guardam o que ficou gravado na memória-arquivo, grafias que dependem do

trabalho e que também se misturam a este, renovando-o e fazendo-o outro e além.

Ora, no caso deste trabalho de pesquisa, as entrevistas que se tecem a partir de

relatos de experiência, ou ainda, as conversas, por vezes, quase informais, constituem-se

gêneros textuais que ajudam a avançar e visitar esses recônditos, os quais, apoiada nos

aparatos teóricos apresentados, pretendo analisar. Contar e relatar é um modo de (re)construir

e trazer à tona o que se viveu, o que se experienciou, criando versões dos fatos e tecendo

impressões com significados polissêmicos – a escavação e a busca se fazem, portanto, a partir

da palavra e pela palavra, reforçando o caráter dialógico e polissêmico de todo esse processo

(BAKHTIN, 2012).

Marilena Chauí, no texto de abertura de Memória e Sociedade – lembrança de

velhos, ao comentar o trabalho de Ecléa Bosi, diz, sobre os entrevistados: “(...) os

recordadores são, no presente, trabalhadores, pois lembrar não é reviver, mas re-fazer. É

reflexão, compreensão do agora a partir do outrora; é sentimento, reaparição do feito e do ido,

não sua mera repetição” (CHAUÍ, 1994, p. 20).

No caso deste trabalho, a memória é apanhado do recente em termos históricos,

pois as pessoas (os “recordadores”) que falam nesta pesquisa, relatam o que viveram há

pouco, há alguns anos ou mesmo há alguns meses. Entretanto, independente da proximidade

do relato em relação ao vivido, a elaboração das narrativas e os depoimentos fazem, de certo

modo, visível e palpável algo que havia ficado no passado recente, posto que é reconhecível o

trabalho da reconstrução da memória, permitindo o fazer de versões e, como diz Chauí, a

compreensão do presente a partir do que se viveu. Essa (re)construção inclui a ideia de se (re)

elaborar também enquanto sujeito e também lançar novas luzes, ou ainda, simplesmente

reconhecer que há o notável por trás do comum e aparentemente banal. Nas palavras de quem

relata, representações tornam consistentes realidades que, até então, poderiam parecer etéreas

ou pouco concretas. Alberti, pesquisadora da HO, comenta, sobre o valor e a importância das

entrevistas e entrevistados:

Representações são tão reais quanto meios de transporte ou técnicas agrícolas, por exemplo. Quando um entrevistado nos deixa entrever determinadas representações características de sua geração, de sua formação, de sua comunidade etc., elas devem ser tomadas como fatos, e não como “construções” desprovidas de relação com a realidade. É claro que a análise desses fatos não é simples, devendo-se levar em conta a relação de entrevista, as intenções do entrevistado e as opiniões de outras fontes (inclusive entrevistas). Antes de tudo, é preciso saber “ouvir contar”: apurar o ouvido e reconhecer esses fatos, que muitas vezes podem passar despercebidos. (ALBERTI, 2004, p. 9-10)

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Segundo Alberti (2004), ouvir os entrevistados contarem e entender que a

entrevista-diálogo proporciona o contato com fatos construídos conjuntamente pode ser

tomado como princípio dentro da HO. Destaca-se, então, que o trabalho da memória aqui

proposto é uma tecedura conjunta e solidária, feita em parceria, entre pesquisadora e

entrevistados. Guedes-Pinto, Gomes e Silva, ao analisar narrativas acerca da formação de

professores, destacam essa possibilidade de trabalhar “(...) a memória, enfocando-a a partir

da relação com o outro” (2008: p. 13). Nesse sentido, segundo as pesquisadoras, a memória

exerce várias funções: é possibilidade de alteração do momento presente e do futuro;

trabalho; versão e também esquecimento. Retomo tal demarcação acerca da memória, pois

acredito que, neste trabalho, cabe também pensar nesses encaminhamentos. Tecer

considerações sobre a leitura fruição, narrar vivências e impressões significa defrontar-se com

o passado, pinçar fragmentos e também reconstruir e ressignificar momentos e passagens

marcantes de alguma forma), num esforço de trabalhar o próprio narrar e as versões possíveis

a partir desse trabalho – o qual se faz também por lapsos, apagamentos e silêncios.70

Após essa exposição de algumas concepções e considerações sobre a memória,

apresento mais detidamente o referencial teórico-metodológico que ancorou a

geração/elaboração de dados deste trabalho de pesquisa, a História Oral (HO). A partir da

memória individual dos entrevistados, materializada em textos, torna-se possível compor uma

visão coletiva, mas com particularidades, das práticas de leitura fruição – característica, aliás,

de qualquer trabalho que faça da HO seu pressuposto. A ideia é buscar novos significados

pelo diálogo provocado pela situação da entrevista, pela construção conjunta. Como diz

Alberti, ainda que só seja possível alcançar o passado tendo consciência da fragmentação, da

parcialidade, a HO torna factível um visão totalizadora:

O campo da história oral é acentuadamente totalizador; entrevistado e entrevistadores trabalham conscientemente na elaboração de projetos de significação do passado. O esforço é muito mais construtivista do que desconstrutivista (inúmeras vezes ouvimos, com efeito, que o entrevistado “constrói o passado”), e tem como base a experiência concreta, histórica e viva, que graças à compreensão hermenêutica, é transformada em expressão do humano. É importante ter consciência dessa “vocação totalizante” da história oral, em um mundo em que a fragmentação e a dissipação de significados, o desaparecimento do sujeito e o privilégio da superfície (em detrimento da profundidade) também estão na ordem do dia. (ALBERTI, 2004, p. 22)

70 Por exemplo, dentre os alunos, vários, quando questionei se havia, a partir da leitura fruição, algum autor ou

obra marcante, confessaram não se lembrar de nenhum nome específico. Eles tinham mais lembranças do todo – talvez, da performance – e não tanto dos textos lidos. Além disso, não fez parte da dinâmica da entrevista oferecer objetos – livros como muletas de memória ou disparadores de memória (GUEDES-PINTO, GOMES e SILVA, 2008).

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Ao construir, então, juntamente aos entrevistados, versões dos fatos vividos, das

experiências partilhadas, pretendi, como pesquisadora, mais que guardar ou recuperar um

pouco do que se passou, viabilizar versões, tendo Portelli (1996) como referência, valorizando

perspectivas singulares e expressivas no seu esforço de rememorar, e dar significado, ao

menos, parte do que se constituiu como a experiência da leitura fruição. Trata-se do escolher e

lapidar da lembrança, mas, sobretudo, do trabalho de rememorar e compor novos breves

panoramas a partir de outro já travado por meio das práticas de leitura aqui referidas. Desse

modo, adotando a HO como base teórica e metodológica, pretendi dialogar com meus

entrevistados, percebendo os depoimentos como narrativas repletas de impressões, versões

possíveis e pessoais. Como Guedes-Pinto, Gomes e Silva apontam:

Dialogamos com os depoimentos coletados, confrontando-os com outras fontes documentais, com o contexto amplo de produção, à luz das pressões sociais que os envolvem, assim como temos interesse pela ótica das pessoas, as quais envolvemos na pesquisa que nos contam o que por elas foi experienciado. Elas não são tomadas meramente como fontes e, sim, compreendidas como sujeitos vividos e com experiências a partilhar e com os quais pretendemos aprender ao conversar e que enriquecem nossa experiência do ponto de vista pessoal e profissional. Esses são alguns dos princípios de trabalho defendidos pela História Oral. (2008, p.14-5)

Compreender esse todo – base teórica, relações pessoais, discursos partilhados,

análises possíveis – foi, posso dizer, algo desafiador e que convidou ao movimento de

pesquisa e escrita: colocar em palavras o que, por muito tempo, versões do que teria

permanecido como prática e experiência. Trabalhei durante oito anos no colégio referido

anteriormente, cenário onde presenciei e exercitei a leitura fruição. Desse modo, meu

envolvimento com os sujeitos entrevistados foi muito além do interesse acadêmico, havendo

uma forte aproximação pessoal e afetiva. Assim, tão logo tomei contato com a perspectiva da

HO, julguei serem os pressupostos desse campo do conhecimento os mais adequados para

orientar e embasar o trabalho, em especial no que se refere à questão da produção de dados –

no caso, as entrevistas – justamente por entender que esse encontro entre pesquisador e seus

entrevistados pode ser território de diálogos, pela perspectiva bakhtiniana de diálogo. A ideia

de trabalhar com entrevistas, perguntas e respostas que se mesclam em novos textos e novas

perspectivas mostrou-se algo enriquecedor. Sem ser o meu primeiro intento, percebi que

estava de volta aos campos da História,71 menos pela análise textual, documental de praxe, e

mais pela busca de discursos que viessem a documentar e construir memórias proporcionada

pela HO (Alberti, 2004).

71 Como citado no Memorial, cursei, por dois anos, a graduação em História, na UNICAMP.

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Creio, inclusive, que não se trata de mera coleta, no sentido de se recolher algo

pronto e acabado, que será simplesmente lido ou comentado. Tourtier-Bonazzi discutindo a

questão da “criação das fontes orais”, assevera que o entrevistador/pesquisador “(...) não

colhe, não cria, mas acolhe um relato que irá depois difundir, seja porque pensa em escrever

um livro ou porque pretende conservá-lo para pô-lo à disposição dos que queiram ouvi-

lo”(2006, pp.234-235). Ouso ir mais além e pensar que esse processo, em sua construção,

constitui-se como constante e profundamente dialógico, retomando o que já expus no primeiro

capítulo, conforme Bakhtin (2009 e 2013) – enunciações várias estão em jogo, se construindo

mutuamente, se influenciando – a palavra do entrevistador, do pesquisador, já está prenhe de

conhecimentos e análises prévias, feitas quando da pesquisa, da preparação para a entrevista.

Por sua vez, os relatos e narrativas que os entrevistados trarão ecoam as perguntas e

encaminhamentos, bem como contêm todo o repertório e história de cada um dos sujeitos –

elementos que vão se imiscuir e interferir na condução do entrevistador e nas versões

produzidas pelos entrevistados. Trata-se, parece-me, de círculos concêntricos, num reverberar

contínuo, enquanto durarem os percursos da entrevista e da análise dos dizeres trazidos por

ela – ou seja, o espelhamento e a influência recíproca desses dizeres entre si podem alçar

espaços muito além dos primeiramente concebidos, posto que as palavras vão se

multiplicando em diálogos que, não raro, extravasam – e muito – os primeiros domínios do

encontro entre interlocutores.

Tal perspectiva, a do processo construído a partir dos dizeres entre

entrevistadora/pesquisadora e os entrevistados, enquanto jogo dialógico, tem estreita ligação

com os pressupostos teóricos da HO. Assumo a perspectiva defendida por Amado e Ferreira,

tomando a HO como metodologia e também como aporte teórico:

(…) a história oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho – tais como os diversos tipos de entrevista e as implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre seu trabalho - , funcionando como ponte entre teoria e prática. Esse é o terreno da história oral – o que, a nosso ver, não permite classificá-la unicamente como prática. Mas, na área teórica, a história oral é capaz apenas de suscitar, jamais de solucionar, questões: formula as perguntas, porém não pode oferecer as respostas. (AMADO e FERREIRA; 2006, p. xvi – grifos das autoras)

Considerando, portanto, a natureza teórico-metodológica que a HO assume, adotei

tal embasamento para auxiliar na elaboração de perguntas e traçar encaminhamentos

plausíveis para analisar as práticas de leitura fruição. A possibilidade do trabalho com as

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entrevistas e a orientação para análise desses depoimentos apoia-se na HO como abordagem

de pesquisa, não apenas prática, mas também como referencial teórico. Cabe ressaltar

algumas outras preocupações propostas por esse campo teórico:

[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos. (THOMPSON, 1992, 17).

Ressalvo que, neste trabalho, meus objetivos são bem mais modestos em relação

ao que pontua Thompson: não almejo uma “memória nacional”, mas sim a “memória de

alguns”, de um grupo específico, escolhido para ser ouvido e para compor versões sobre e a

partir da prática estudada – um alcance mais modesto, entretanto, penso, ainda assim

interessante por permitir pensar e conhecer outros olhares no cotidiano escolar. A memória

individual permite entrever um quadro mais amplo, aspectos de uma coletividade; assim,

parece-me cabível considerar que cada narrador, por “menor” ou “menos importante” que

seja, tem algo importante a dizer e como esse dizer aparentemente menor pode compor um

quadro maior, um desenho representativo de coletividade. Ora, a leitura fruição, como já foi

apresentada, estabelece-se como diálogo, como possibilidade de conversa com o outro, em

que professor e aluno criam sentidos diversos a textos lidos em atitude de compartilhamento.

Pensar nas reverberações dessa prática como reflexos de um ambiente coletivo, o qual, se

constrói a partir de subjetividades, parece-me pertinente. Desse modo, a escolha pelas

entrevistas – coleta-construção de narrativas de ex-alunos do colégio que vivenciaram por

anos a prática da leitura fruição, bem como de professores que participaram ativamente do

projeto, colocando-se como leitores/interlocutores, permite confeccionar um mosaico

multifacetado e por isso mesmo interessante. Ou seja, o exercício – o da escrita das memórias

– pode ajudar na construção e no reconhecimento de identidades, como Amado ressalta:

Cada ser humano pode ser identificado pelo conjunto de suas memórias; embora estas sejam sempre sociais, um determinado conjunto de memórias só pode pertencer a uma única pessoa. Somente a memória possui as faculdades de separar o eu dos outros, de recuperar acontecimentos, pessoas, tempos, relações e sentimentos, e de conferir-lhes significados; por isso, sua ausência, a amnésia, necessariamente conduz à perda da identidade. (AMADO, 1995, p.11-12)

A construção dessas memórias procura entender relações particulares, visões

individuais e atribuir significados à experiência da leitura fruição. O olhar individual, as

percepções de cada um permitem entrever os sujeitos e o grupo que se forma – no caso da

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proposta deste trabalho, vê-se não como uma coletividade amorfa, mas sim como uma

comunidade particular de leitores, segundo regras talvez mais rarefeitas e flexíveis do que

aquelas perceptíveis no cotidiano escolar mais “tradicional”.72 Assim, dar vozes aos sujeitos e

torná-las públicas significa tomar outras facetas de interpretações e pensar a prática como um

todo complexo e plural, respeitando e ouvindo o que cada um tem a dizer. Outrossim, trata-se

de ter sensibilidade às escolhas que cada um faz, ao que se recorda e se diz e também ao que

se silencia:

Ao narrar, os sujeitos optam por dizer uma ou outra coisa, tendo por referência o contexto social imediato de produção da narrativa e o interlocutor com quem falam. (…) Ao narrar, os sujeitos re-significam as suas experiências e as reconstroem. E essa reconstrução se dá em função de os interlocutores – aquele que narra e aquele que escuta – estarem em relação com o outro. (GUEDES-PINTO; GOMES; SILVA; 2008, p. 35)

Esta perspectiva funda-se, portanto, no reconhecimento da diversidade dos relatos

e do que cada um, em suas particularidades, têm a dizer. Portelli, que é referência nos estudos

da HO, concebe esse campo de estudos como processo dialógico, “uma sequência dos

processos e construções verbais, gerados pelos encontros culturais e pessoais no contexto do

campo de trabalho entre narrador (ou narradores) e o historiador” (PORTELLI, 2001, p.10). O

autor ainda ressalta que “a história oral é, então, ao mesmo tempo, um gênero de narrativa e

um discurso histórico, e um agrupamento de gêneros, alguns compartilhados com outros tipos

de discurso, alguns peculiares a ele” (Ibid., p. 11). Tal diversidade de gêneros está presente

nesse trabalho, nas escolhas que foram feitas para que houvesse material para as reflexões

aqui propostas. As entrevistas, por exemplo, reúnem em si tal diversidade: houve as que se

configuraram como conversas informais ou aquelas que se constituíram mais “sérias”; houve

relatos de experiência e momentos confessionais. E há o momento da escrita deste texto,

outro gênero que se embasa nesses tantos outros, anteriores.

Cabe aqui citar novamente Portelli (2001), quando o autor propõe que o trabalho

com HO vai além da narrativa e dos aspectos linguísticos; refere-se também e,

principalmente, à análise do discurso e da performance dos entrevistados. Constituindo-se

como um campo particular, com pressupostos teóricos peculiares, a HO se configura, pois,

como forma específica de discurso – e discurso dialógico “criado não somente pelo que os

entrevistados dizem, mas também pelo que nós fazemos como historiadores – por nossa

presença no campo e por nossa apresentação do material” (PORTELLI, 2001: p.10). Instaura-

72 Explicarei com mais detalhes tais particularidades a seguir, analisando as entrevistas no próximo capítulo.

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se, assim, um caráter ambivalente da HO: o que se ouve (as fontes) e o que se diz, o que se

escreve – a heterogeneidade como elemento constitutivo:

A história oral é, consequentemente, um gênero composto, que apela para uma aproximação crítica estratificada: além do uso do gênero coletado do narrador (dos narradores), necessitamos também reconhecer o gênero no discurso público do historiador e o gênero no espaço entre eles. Se definirmos o gênero como um construto verbal moldado por dispositivos verbais compartilhados entre várias pessoas – pouco importa se convencionados ou não - , a história oral é, então, ao mesmo tempo, um gênero de narrativa e um discurso histórico, é um agrupamento de gêneros, alguns compartilhados com outros tipos de discurso, alguns peculiares a ele. (PORTELLI, 2001, pp. 10-11)

Delineia-se, assim, uma composição discursiva e cultural, específica, própria da

HO:

Enquanto os gêneros de expressão oral e cultural atuam dentro do mundo da oralidade, a história oral se inicia na oralidade do narrador, mas é encaminhada (e concluída) em direção ao texto escrito do historiador. Os narradores orais estão cientes dessa destinação escrita e têm isso em mente na medida em que dão forma às suas performances: por outro lado, a tarefa do historiador “oral” é escrever de tal modo que os leitores constantemente relembrem as origens orais do texto que estão lendo. Por fim, podemos definir a história oral como o gênero de discurso no qual a palavra oral e a escrita se desenvolvem conjuntamente, de forma a cada uma falar para a outra sobre o passado. (PORTELLI, 2001, p. 13)

Outrossim, é preciso ressaltar que esse discurso que se vai construindo pelo oral e

pelo escrito configura-se, como já dito, em trabalho partilhado, esforço conjunto realizado

entre o pesquisador e seus entrevistados. Daí o protagonismo, a valorização da voz dos

entrevistados como versões não só válidas, mas relatos fundamentais para se entender melhor

experiências tocantes nos âmbitos individual e coletivo, como é o caso da prática da leitura

fruição. São relatos subjetivos e este é também um dos desafios do trabalho proposto pela

HO, conforme nos lembra Portelli:

Nossa tarefa não é, pois, a de exorcizá-la [a subjetividade], mas (sobretudo quando constitui o argumento e a própria substância de nossas fontes) a de distinguir as regras e os procedimentos que nos permitam em alguma medida compreendê-la e utilizá-la. Se formos capazes, a subjetividade se revelará mais do que uma interferência; será nossa maior riqueza, a maior contribuição cognitiva que chega a nós das memórias e das fontes orais. (PORTELLI, 1996, pp. 3-4)

Destaco também a variedade e as escolhas feitas pelos narradores (ex-alunos e

professores) ao compor suas narrativas, opções que procuram entender de que forma,

considerando-se suas peculiaridades, a leitura fruição foi se constituindo e consolidando – ou

não – para esses sujeitos. Os diálogos oportunizados pelas entrevistas permitem, tendo em

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vista a HO, a aproximação do que nos dizem esses narradores por meio da força constitutiva

dos discursos abarcados em suas vozes. Segundo Portelli, um dos traços distintivos da HO se

torna visível na possibilidade de haver “combinação entre a prevalência da forma narrativa, de

um lado, e a pesquisa por uma conexão entre biografia e história, entre uma experiência

individual e as transformações da sociedade, de outro” (PORTELLI, 2001, p. 14). Assim, a

força da narrativa individual pode ser reconhecida tanto como representativa e representante

de determinados fatos, percepções e possibilidades de se narrar a(s) história(s) e também

como impulso ou incentivo a se repensar a realidade – isso tudo aliado às incursões teóricas já

referidas no primeiro capítulo desta tese.

No caso da leitura fruição, conhecer relatos de experiências individuais nos

proporciona (re)conhecer um pouco dos impactos, das reações a essa prática – os jovens,

recém egressos do Ensino Médio, por vezes, ao longo das entrevistas, se mostravam surpresos

com algumas questões que eu propunha, dizendo algo como: “Nunca tinha pensado nisso” ou

“Nunca tinha prestado atenção”; já os professores entrevistados mostravam ter mais ciência

do processo, inclusive demonstrando controle da prática, no que se refere ao planejamento

dela e também ao alcance, prevendo reações, sem com isso deixar de se surpreender com

algumas reações dos alunos. Obviamente, cada sujeito traz, em suas narrativas, sua percepção

única. Entretanto, é possível traçar semelhanças e se entrever a construção de uma

comunidade de leitores (CHARTIER 1991 e 1994; COSSON, 2014 e CEALE) bastante

peculiar, cuja identidade vai sendo marcada não só pelos fazeres acadêmicos estritamente

previstos e planejados, mas também pelo imprevisto que a leitura fruição em seus

transbordamentos traz.

Há ainda que se considerar a elaboração e as escolhas que os narradores vão

fazendo ao tecer suas narrativas e assim dar forma e consistência à sua subjetividade. Como já

afirmara Bosi (1994), “memória é trabalho”, reconstruir. Dar corpo ao vivido por meio da

narrativa se trata de um fazer árduo. Segundo a autora, é possível conceber que não é só aos

velhos que a memória reconstrói: na verdade, parece-nos, que todo exercício de recuperar,

retomar, reelaborar e reconstruir (re)faz e traz novas possibilidade de ser e existir àqueles que

se dispõem a tal empreitada. O processo de analisar a si e suas experiências, escolher e

construir narrativas recuperam e reestruturam a experiência e nos refazem enquanto pessoas,

individual e profissionalmente.

No caso dos jovens, narrar suas experiências talvez tenha possibilitado entrever

uma importância além do “previsto”, em termos de valorização e reconhecimento das

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experiências escolares. Alberti (2004) cita essa característica – a dos falares individuais, a

subjetividade intrínseca a esse diálogo proporcionado pelas entrevistas da HO como um dos

motivos de fascínio por essa proposta teórico-metodológica:

(…) há nela [na entrevista] uma vivacidade, um tom especial, característico de documentos pessoais. É da experiência de um sujeito que se trata; sua narrativa acaba colorindo o passado com um valor que nos é caro: aquele que faz do homem um indivíduo único e singular em nossa história, um sujeito que efetivamente viveu – e, por isso dá vida a – as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão distantes. E, ouvindo-o falar, temos a sensação de que as descontinuidades são abolidas e recheadas com ingredientes pessoais: emoções, reações, observações, idiossincrasias, relatos pitorescos. (ALBERTI, 2004, p. 14)

Não só eu, entrevistadora, me vi fascinada pelas impressões e comentários que

surgiam ao longo das entrevistas. Os entrevistados também, por vezes, se mostraram

surpresos. Vários se diziam muito lisonjeados quando os convidei para conversar e explicava

que era importante para mim ouvi-los e saber da versão e impressões deles sobre os fatos;

houve quem, inclusive, fizesse reflexões muito pessoais, confessionais, o que, muito

provavelmente, não tivesse espaço nem motivação no ambiente escolar comumente

estabelecido, como atesta a professora Célia.73 Parece-me que há pouco espaço no ambiente

escolar comumente organizado para que o professor exponha sua sensibilidade e se emocione

ao revisitar seu próprio percurso, suas escolhas e também para que partilhe tais histórias.

Ordine (2016) bem delimitou: na contemporaneidade, reina o que é útil e produtivo. Essa se

revela como uma das contribuições trazidas pela entrevista. Ela se torna, para o entrevistado,

um momento de reflexão sobre si, assim como uma oportunidade de construir entendimento e

elaboração sobre seus percursos de vida (PORTELLI, 1997; GUEDES-PINTO, 2015). Ao

relatar sua experiência com poesia, Célia revisita não só seus fazeres profissionais, mas, busca

referências afetivas que lhe foram fundamentais para que ela compusesse as performances de

leitura fruição. Quando a professora reconhece que, em mais de vinte anos de magistério,

nunca pudera “usar” a poesia e, na sequência, consta como é reconhecida pelos alunos por tal

opção – a de ler poesia - , penso que é possível afirmar que ela própria, professora, reconhece

que houve alterações significativas trazidas pela leitura fruição ao seu exercício docente.

Assim, como explorarei mais profundamente no próximo capítulo, tanto para os

jovens como para os professores, um dos pontos em comum e talvez aquele que mais tenha se

destacado diz respeito ao reconhecimento do outro e das relações interpessoais, reforçadas e

estreitadas a partir da leitura fruição.

73 O depoimento da professora que justifica essa afirmação será apresentado no próximo capítulo.

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É base, portanto, para este trabalho, a tecedura de relatos e de impressões que, por

vezes, podem parecer esparsos, mas cujo potencial representativo cada entrevistado ressalta

ao rememorar e transformar em texto algo que viveu:

No plano textual, a representatividade das fontes orais e das memórias se mede pela capacidade de abrir e delinear o campo das possibilidades expressivas. No plano dos conteúdos, mede-se não tanto pela reconstrução da experiência concreta, mas pelo delinear da esfera subjetiva da experiência imaginável: não tanto o que acontece materialmente com as pessoas, mas o que as pessoas sabem ou imaginam que possa suceder. E é o complexo horizonte das possibilidades que constrói o âmbito de uma subjetividade socialmente compartilhada. (PORTELLI, 1996, pp. 7-8)

As perspectivas da HO, então, configuram-se como moldura e tela de fundo que

permitem desenhar os traços e nuanças do que foi a leitura fruição para os sujeitos aqui

contemplados. Aliados a esse campo do conhecimento, outras perspectivas teóricas, como da

concepção da leitura como processo discursivo e dialógico, bem como conceitos da história

cultural – a partir dos estudos de Chartier (1991, 1994, 1999, 2002) e de Certeau (2012) -, vão

se mostrando como recursos para pensar um pouco mais a fundo a prática da leitura fruição.

3.2. Preparando as teias: as entrevistas

À medida em que planejava as entrevistas e conversava com meus interlocutores,

percebi que estávamos, eu e meus gentis colaboradores, construindo diálogos e versões talvez

antes impensadas; narrativas que relatavam não só a prática da leitura fruição em sua

“concretude”, mas também em que se mostravam enquanto sujeitos: quem somos, quem

éramos naqueles momentos e que táticas tínhamos, a que golpes recorríamos para que a

leitura fruição tivesse o semblante que cada um julgava pertinente.

Um ponto que me é crucial esclarecer trata do meu intenso envolvimento pessoal

e afetivo com esta pesquisa. Trabalhei no colégio, com esses alunos, por cinco anos,

aproximadamente – no mesmo período, fui colega de todos os professores entrevistados. Tal

convivência me trouxe uma posição privilegiada: pude acompanhar os alunos e também os

colegas, bem como trocar ideias, presenciar debates por vezes acalorados sobre a leitura

fruição e perceber como, em certos momentos, essa prática parecia se constituir como algo

notável. Penso, portanto, que minha vivência, ao longo desta pesquisa, somou-se, o tempo

todo, à minha participação e à minha reflexão sobre os meus fazeres em sala de aula e sobre

como eu percebia a recepção dos alunos – ficando intrigada, por vezes, ou até frustrada

mediante reações de desinteresse, tédio e indiferença de alunos e também de outros colegas.

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Essa gama de emoções e percepções interferiu diretamente para desenhar os traços desse

projeto, bem como propor as análises aqui apresentadas.

A socióloga Lícia Valladares, ao comentar o livro de Whyte, Sociedade de

esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada, propõe como contribuição à

obra resenhada, comentar o que chama de “verdadeiro guia da observação participante em

sociedades complexas” (VALLADARES, 2007). Embora esta pesquisa não se configure como

tal, a autora enumera “dez mandamentos da observação participante”, que, de alguma forma,

me chamaram a atenção para pontos importantes em meu trabalho. Dentre eles, destacam-se a

questão do tempo – nunca é rápido elaborar uma pesquisa de que se faz parte e na qual o

pesquisador também está imerso, é preciso, antes, tornar-se efetivamente parte do grupo ou

comunidade, envolver-se efetivamente com essas pessoas, num processo normalmente longo;

além da disposição que o pesquisador deve demonstrar em relação ao inusitado, pois nunca se

sabe exatamente onde se está aterrissando, que terrenos são estes por percorrer. Destaco ainda

os seguintes aspectos sublinhados pela autora e que me foram especialmente caros ao longo

das entrevistas realizadas: o envolvimento (interação) com os entrevistados, o saber/aprender

ouvir e o reconhecimento dos erros. Para mim, foi uma descoberta permanente o quanto as

entrevistas me faziam voltar ao projeto inicial, às perguntas formuladas previamente para

rever, reconsiderar, recompor ou até mesmo desfazer expectativas e repensar objetivos, não só

da pesquisa, mas de minhas práticas enquanto professora.

Outrossim, percebi, principalmente durante o trabalho de transcrição dos áudios, o

quanto eu me expunha e o quanto exteriorizava minhas concepções sobre leitura, leitores,

literatura, escola, quando eu falava, respondendo ou intervindo para compor os diálogos com

meus entrevistados. Também fui desenvolvendo mais atenção ao que cada um dizia e como

dizia – lembrando, como nos diz Portelli (2001), que a performance dos entrevistados também

deve ser considerada como parte do processo que vai compor as narrativas. Desse modo,

vários novos contornos foram se delineando e diversas perspectivas de análise foram

redefinidas, bem como outras, inicialmente não consideradas, foram incluídas no trabalho –

por exemplo, uma questão que eu não tinha previsto surgiu durante as entrevistas feitas como

Giovane e Heitor74. Ao comentar sua relação com a leitura fruição, a experiência do contato

com o texto, Heitor sinalizou:

74 Logo adiante apresentarei com mais detalhes o grupo de ex-alunos e professores entrevistados.

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(…) eu acho que (…) a gente tá muito acostumado a ler o texto ao invés de escutar o texto, sabe?

Acho que, tipo, é uma mudança na forma como o texto entra e, pra mim, acho que entra um pouco

mais difícil, sabe, quando eu tô ouvindo.

Tal observação me fez questionar o porquê da dificuldade expressa pelo jovem e

ainda ampliar a questão:

H: Não sei, acho que é por causa do costume mesmo, tô bem mais acostumado a ler. Quando eu

ouço, preciso, tipo, quando eu ouço é difícil lembrar o que já foi citado, lembrar o começo do

poema, por exemplo.

P75: Se você tivesse o texto impresso você ficava mais concentrado?

H: Um pouquinho mais concentrado, mas daí seria muito desperdício de papel. Mas mudar a forma

como eu leio no dia a dia, eu não sei dizer, acho que não. Tipo, deu pra ir atrás de algumas coisas

e, assim, por exemplo, meu gosto por poesia veio muito das aulas do M., que a gente teve que ver

poesia a aula inteira, mas, aí, a partir do momento que eu já tava mais atento a esse mundo,

prestei bastante atenção nas coisas, no tipo de poesia que você lia, que outras pessoas já leram,

sabe. E foi agregando, sabe, acho que é mais uma questão de, se você se permite, tipo, agregar

referência do que outra coisa. Pelo menos, é isso que eu sinto.

Os comentários de Heitor me levaram a pensar na questão da performance e da

leitura oral: ler pelo outro, embalado pela voz do outro, de fato, não é o mesmo que ler o

impresso (PETIT, 2009). E isso me levou a estender essa questão e levá-la para outras

entrevistas que fiz depois dessa, com Sabrina e Jéssica, por exemplo. Outro acréscimo

importante que as entrevistas dos alunos promoveram na pesquisa foi a decisão de entrevistar

os professores. Ora, à medida que ocorriam as entrevistas com os jovens e ouvia as

referências aos seus professores, fui percebendo a importância dos professores – não que não

a reconhecesse, mas esta presença se mostrou cada vez mais efetiva e pareceu-me

fundamental, então, ouvi-los. Desse modo, busquei apoio em uma ideia fundamental da HO: a

subjetividade, a experiência pessoal é válida como possibilidade de análise dos fatos, ou

melhor dizendo, como no caso deste trabalho, das práticas e, sobretudo, dos discursos – e que

esses diferentes discursos vão proporcionando versões diversas, ora complementares, ora

contrastantes dos mesmos fatos. Alberti afirma que: “(...) a história oral tem o grande mérito

de permitir que os fenômenos subjetivos se tornem inteligíveis – isto é, que se reconheça,

neles, um estatuto tão concreto e capaz de incidir sobre a realidade quanto qualquer outro

fato”(ALBERTI, 2004, p. 9). Tal atributo de inteligibilidade permite que as histórias e

75 Todas as letras P que aparecem em trechos de transcrição de entrevistas se referem ao meu turno de fala.

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lembranças, as impressões e vagas imprecisões de cada entrevistado fossem também uma

faceta, um outro novo olhar. Assim, ampliaram-se as chances de entender melhor a

experiência da leitura fruição, à medida que foi possível reunir versões diferentes e muito

pessoais sobre a prática. A perspectiva da HO destaca bastante a questão de se apresentarem

diversas versões sobre o mesmo fato (PORTELLI, 1997; AMADO, 1995; GUEDES-PINTO,

GOMES e SILVA, 2008).

Portanto, conforme o percurso foi se desenhando, os diálogos vinham à tona, revi

a perspectiva inicial do projeto de pesquisa e além de entrevistar apenas ex-alunos –

almejando com isso leitores talvez um pouco mais maduros e com certo distanciamento da

escola –, acrescentei as entrevistas com os professores. Independente da natureza do relato –

mais ou menos similar, mais ou menos parecido com o de outro entrevistado – cada um

guarda a marca individual, as escolhas subjetivas de cada pessoa e sua história com a leitura

fruição – cada um é uma peça nesse mosaico aqui apresentado.

Penso que outro aspecto destacado por Valladares confirma-se bastante caro para

mim: o cuidado e a disposição constante para ouvir: “(...) saber ouvir, escutar, ver, fazer uso

de todos os sentidos. É preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, assim

como que perguntas fazer na hora certa”(VALLADARES, 2007, p. 154). Fui percebendo, à

medida que iam transcorrendo as entrevistas, que, mais que perguntar, era preciso ouvir,

atentamente, e convidar ao relato, à fala (quase) descompromissada e que estabelecesse

relações a partir e sobre a leitura fruição. Inicialmente, quando explicava aos entrevistados

que nossas conversas seriam gravadas, tive receio de que se intimidassem. Entretanto, todos

se mostraram muito à vontade – houve, claro, aqueles mais expansivos e os mais tímidos, mas

todos foram generosos e creio que estiveram tranquilos durante nossos encontros. A fim de

colaborar para que ficassem à vontade e relatassem o que julgassem pertinente, fui

abreviando, muitas vezes, as perguntas, e deixando-os à vontade para falarem o que

quisessem – ainda que, por vezes, isso significasse “desvio” das questões propostas – aliás,

aprendi que tais mudanças de direção são preciosas e podem trazer muito mais do que se

espera das perguntas “elas-mesmas”, em seu direcionamento estrito.

Outra escolha que julgo ter sido importante é que, principalmente, com os jovens,

meus ex-alunos, optei pela linguagem informal, de tom bastante coloquial, para que eles se

sentissem confortáveis – cada gênero textual, como se sabe, faz uso de determinada

linguagem, permite ou não variação em relação à norma culta. Assim, propus que as

entrevistas pudessem se configurar também como conversas mais informais.

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Ao longo do processo das entrevistas, percebi que eu cometera equívocos ao

formular questões ou abordar alguns aspectos – por exemplo, “forçar”, por vezes, os alunos a

se aterem apenas à leitura fruição, sendo que outras leituras escolares poderiam ser alçadas à

condição de leituras prazerosas e tal mudança de estado, reconfiguração de concepção, muito

me interessava. Logo, fatos que me pareciam os mais relevantes mostraram-se secundários à

medida que eu ouvia os relatos de meus entrevistados e questões aparentemente acessórias

assumiram importância central, como, por exemplo, ocorreu ao longo da entrevista com

Bruna. Em vários momentos de nossa conversa, ela ressaltou seu prazer pelas leituras

escolares obrigatórias, as quais, inicialmente, não estava me referindo:

É, tem muita gente que fala o que eu falei antes, muita gente que fala que os livros que ela lê na

escola, ela não gostou. Eu discordo, porque eu já li muitas coisas que eu gostei muito, que foram

livros que marcaram, sabe? Por exemplo, “O médico e o monstro”, nem sei que série...

Este livro citado por Bruna, um clássico da literatura ocidental do século XIX,

fora lido por ela e pela turma no 8o ano – ou seja, quase cinco anos antes de nossa conversa.

Apesar de obrigatório – ou talvez por sê-lo e por ter sido mote para discussões, trabalhos e

análises, ela se lembra dele com gosto e escolhe esta obra como uma das que gostou. Perceber

que as leituras obrigatórias também eram fonte de prazer e eram reputadas como importantes

para a sua formação de leitor foi algo muito gratificante de notar, comentários cuja força eu

não tinha previsto, inicialmente, ao elaborar o projeto ou o roteiro básico das entrevistas.

Recordar essas leituras apresentou-se como um movimento de revisitar a relação com a escola

e o cânone. Ainda em sua entrevista, Bruna citou outra obra canônica como exemplo de que

gostava das leituras obrigatórias:

E, como esse [livro], “Memórias de um sargento de milícias”, mas, sinceramente, mesmo sendo um

livro que eu gostei, não é um livro que eu leria de novo... Eu li, achei legal e... [silêncio].

A pausa/interrupção de Bruna me parece significativa: embora tenha tido

assumido que gostou do livro, confessa que não leria de novo. Ou seja, nem todas as leituras,

obviamente, marcaram e agradaram do mesmo modo. Nesse ponto, com certeza, fazem

diferença a mediação e a própria disposição do leitor em relação à obra, à sua temática, enfim,

aspectos vários que, por si só, renderiam um estudo em particular. Seja como for, o silêncio

que ela escolhe ao final da afirmação me parece significativo. Talvez pese uma aparente

pressão (que poderia ser bem explicada por demandas escolares). Silva (2008), baseada em

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Thompson (1992), aborda a questão das pressões sociais sobre o dizer do entrevistado: como

não ler novamente um clássico, um livro canônico, tão laureado como esse? É uma hipótese

que faço, mas, claro, não é a única possível para a pausa de Bruna. Enfim, esse é um exemplo

de que os silêncios são cheios de significado – pode ser que contivessem ideias que os

entrevistados julgassem melhor não expressar ou ainda que indicassem minha inaptidão,

inadequação de minhas questões, pouco pertinência de minhas intervenções ou talvez

significassem uma recusa em não querer falar ou até em não querer expressar ou opinar,

posturas e escolhas que me esforcei para respeitar. Tais adversidades foram me ensinando a

rever abordagens e também a ouvir com mais cuidado, prestando atenção às entrelinhas, ao

não dito repleto de significados.

Em relação a recusas, não as tive propriamente; enfrentei alguns percalços como a

dificuldade em conciliar datas e horários, pois os jovens entrevistados ou moravam fora de

Campinas, cidade em que resido, ou tinham incompatibilidade de horário em relação a mim;

no caso dos professores, como eu já conhecia os horários de trabalho, foi um pouco mais

tranquilo o processo de agendamento dos encontros – sendo que procurei para adequar-me às

demandas deles, encontrando-os nos lugares e horários que lhes fosse mais confortáveis.

Esforcei-me, pois, para adequar minha agenda ao que era possível a eles, bem como deixei-os

à vontade para escolher o lugar em que aconteceria a entrevista.

Ao começar as entrevistas com os alunos, convidei a todos para um café em

minha casa (há um grupo de Whatsapp mantido pela turma e, num primeiro convite feito a

eles, cerca de cinco ou seis tinham manifestado interesse em participar). Expliquei que

gostaria de entrevistá-los para meu trabalho de pesquisa e me propus a receber aqueles que se

dispusessem a colaborar. Esclareço que esses ex-alunos já conheciam meu trabalho desde

2013, quando ingressei no doutorado e era, então, professora deles. Eventualmente, em aulas

ou intervalos, eu comentava com eles o que fazia, o que pretendia estudar, quais meus

interesses e objetivos. Mesmo assim, quando os convidei, retomei os aspectos gerais do

projeto e expliquei-lhes o porquê de meu convite e como iria proceder, gravando as

entrevistas, transcrevendo-as e, posteriormente, trabalhando com a análise dos relatos.

Prontamente, tive a aceitação de Fernando e Léo e marquei com eles o primeiro encontro.

Optei por fazer a entrevista76 com os dois juntos – como ocorreria algum tempo depois, mas,

então, em um café, com Giovane e Heitor, pela possibilidade de conciliar horários e encontrá-

los (dadas as dificuldades comentadas anteriormente). As demais entrevistas ocorreram em

76 O roteiro básico utilizado nas entrevistas encontra-se como anexo ao final deste texto.

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outros cafés (lugares, em geral, sugeridos pelos jovens, para os quais eu me descolocava) e

foram todas individuais. Natália e Davi me forneceram as entrevistas por escrito (por e-mail),

devido à impossibilidade de conciliar horários para um encontro presencial.

Com os professores, as entrevistas aconteceram também em diferentes lugares, à

escolha dos entrevistados: Célia e Roberto pediriam que eu fosse até o colégio, local da leitura

fruição analisada neste trabalho. Adriana almoçou comigo num restaurante próximo à escola e

Bia me recebeu em sua casa.

Partilhar das decisões dos lugares, bem como dos dias e das condições da

entrevista foi algo fundamental para que meus colaboradores se sentissem não só à vontade,

mas também prestigiados e valorizados, reforçando o vínculo de cumplicidade que eu tentava

estabelecer em relação à pesquisa em curso. Como dizem Portelli (1997) e Amado (1997), a

entrevista começa bem antes do encontro marcado: ela já se inicia nesses contatos de convites

e acesso aos sujeitos depoentes Todos os que decidiram partilhar e construir comigo os relatos

que apresentarei a seguir foram muito simpáticos e muito prontos a colaborar e doar um

pouco do seu tempo, ajudando-me, fazendo-me amadurecer perspectivas e, como já destaquei,

conduzindo-me a uma constante autoavaliação do projeto, das perspectivas e expectativas

deste trabalho. Bosi (2003) particularmente ao trabalho e memória de idosos, salienta o

quanto a entrevista se configura como uma doação por parte dos entrevistados.

Inicialmente, para orientar as entrevistas, elaborei um roteiro básico, que seguia as

mesmas linhas gerais para ex-alunos e professores, sendo as questões bastante similares.

Interessava-se, sobretudo, entender que impactos haveria a partir da leitura fruição – assim,

concebi tais entrevistas como semidirigidas, segundo Tourtier-Bonazzi (2004) ou

semiestruturadas, ou seja, mais “flexíveis”, em especial, ao tentar ampliar as possibilidades do

que os entrevistados teriam a me dizer.

Ainda que com o roteiro prévio, depois das primeiras conversas com os jovens,

tomei o cuidado de reelaborar um pouco – ou totalmente – algumas questões e me fazer mais

receptiva (penso que tive tal postura desde o começo, mas é sempre possível aprimorá-la) para

questões não previstas, assumindo que o inusitado, o inesperado, era de grande valia para a

análise que eu estava propondo – exercitando e esforçando-me para ouvir mais que perguntar.

Portelli (1997) discorre a respeito desse aprendizado sobre o ouvir da HO. Quando comecei as

entrevistas com os professores, penso que algumas posturas e expectativas (constantemente

revistas e remodeladas) estavam mais amadurecidas e a escuta, talvez um pouco mais atenta –

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o que me faz crer que, inclusive, as últimas entrevistas com alunos parecem mais bem

conduzidas que as primeiras.

Acredito que, à medida que as entrevistas-conversas iam tomando corpo, o

exercício de revisitar e construir as memórias também ganhava espaço e consistência, por

meio das escolhas tanto minhas como dos entrevistados. Conforme diz Amado, é fundamental

distinguir entre o vivido e o recordado, entre a experiência e a memória, entre o que se passou e o que se recorda daquilo que se passou. Embora relacionadas entre si, vivência e memória possuem naturezas distintas, devendo, assim, ser conceituadas, analisadas e trabalhadas como categorias diferentes, dotadas de especificidade. O vivido remete à ação, à concretude, às experiências de um indivíduo ou grupo social. A prática constitui o substrato da memória; esta, por meio de mecanismos variados, seleciona e reelabora componentes da experiência. (AMADO, 1995, p.11)

Sendo a memória um exercício de elaboração, de esculpimento de versões sobre o

que se vivenciou, nesse esforço de seleção, faz-se mister que haja atenção redobrada, por

exemplo, às palavras e estruturas escolhidas pelos narradores, bem como à combinação entre

elas e às redes de significado que se constroem nos textos (orais ou escritos) apresentados

como essas retomadas. Trata-se, portanto, não só de um fazer que vai ressignificar as

experiências, mas, sobretudo, de trabalho que vai delinear novas possibilidades de análise e

compreensão para pesquisador, seus colaboradores e também para quem as ouve ou lê. Fui,

desse modo, comprovando encontro a encontro, o complexo enovelamento criado pelos fios

da enunciação (BAKHTIN, 2003 e 2009) – minha palavra ecoava a dos entrevistados, cujas

escolhas, relatos, impressões também iam sendo, fatalmente, desenhadas e permeadas por

minhas escolhas, devolutivas ou réplicas. Por exemplo, ao entrevistar Bruna, quando eu

julgava já estar finalizando a conversa, a jovem me perguntou qual era a minha abordagem,

que tipo de análise eu faria. Ao responder, retomei algumas das bases teóricas do projeto e ela

continuou conversando comigo, trazendo observações importantes sobre a leitura fruição:

P: Então, me interessa pensar nisso, entendeu, como esse projeto se realiza, o que ele significa. A

ideia é um pouco essa. Acho que é isso. Acho legal.

B: Também acho legal. Acho que abriu muita porta pras pessoas, sabe, acho que incentiva, você

tem vontade de conhecer mais. Uma experiência [trecho inaudível]. Os professores apresentarem

essas leituras, principalmente... Eu tive acesso a coisas que eu sempre quis ter, não sei, acho

uma parte muito legal. Tem essa parte do prazer, não sei, não sei exatamente a palavra... não sei,

acho que eu não consigo falar (...). Assim, foi também pra gente analisar, mas (...), não de um

ponto de vista chato. Assim, não tem uma prova, só pra ter conhecimento (...). E você acaba não

fazendo com um livro que você lê, e, às vezes, sim, às vezes, você lê um livro e não presta muito a

atenção nas coisas. Eu costumo prestar, porque acho interessante a forma como escreve. Mas

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acho que todo mundo acaba prestando atenção nisso, principalmente quando você ouve alguém

lendo, porque vai notando as frases da forma como a história é montada. E, sabe, acho

interessante, porque quando você ouve, acho que você tem vontade de ler, sabe? Nossa, queria

ter esse livro pra acompanhar essa leitura. E ler de novo, sabe? E eram muitos textos, que, às

vezes, distraíam, acha legal, acha interessante, sabe, fica refletindo sobre aquilo. Às vezes, nossa,

surpreendia, sabe, nossa, meio pesado, meio diferente, e acho que isso faz com que os alunos

levem muito disso pra casa. Porque a gente tem muitas leituras pra fazer e a gente é estimulado a

ler o tempo todo. Só que a gente é estimulado a ler coisas muito diferentes. Quando criaram o

Clube do Livro,77 né, que faz um tempinho, no 3o ano eu parei de ir, eu senti isso também, só que

mesmo assim, já era uma coisa diferente, porque já era mais, você tem que ler o livro de uma

forma mais crítica. Tudo bem que a gente não vai fazer uma prova, mas a gente sabia que era

interessante, sabe, mas só que também era uma coisa que você tinha que estar prestando a

atenção no que você tá lendo, então, decidir se você gosta ou não. Porque não necessariamente

você gosta de tudo, né? Porque nem tudo que os professores liam você gosta. Só

que mesmo assim são coisas diferentes, tem coisas que você não vê, tem coisas que se você não

tivesse acesso e, não sei, sabe, é legal ter acesso a essas coisas.

Essa continuidade imprevista da conversa trouxe contribuições muito ricas para

minha análise. Bruna se propôs a complementar e trazer outras impressões que, durante nossa

conversa, não tinham se mostrado tão claramente – por exemplo, fez considerações que julgo

importantes, como a que recupera sua experiência com o professor M. no Clube do Livro,

equiparando essa experiência à da leitura fruição. Desse modo, fui aprendendo que embora

não devesse me desvencilhar de um planejamento das entrevistas, de questões previamente

elaboradas, conforme os objetivos do projeto, era fundamental me manter atenta e aberta a

outras possibilidades não previstas que se anunciassem. Era fundamental, então, ouvir

atentamente e tentar afrouxar as possíveis “amarras” que pudessem intimidar ou tolher os

entrevistados, e ofertar-lhes a possibilidade instigante de ir além e extravasar minhas

questões.

O trabalho da escavação das memórias trouxe relatos que mesclam impressões por

vezes inusitadas e revelam que o ambiente escolar e as relações entre professores, alunos e

leituras vai muito além do previsto e previsível no contexto da sala de aula. Por exemplo,

77 O Clube do Livro fora uma proposta de leitura gratuita alavancada pelo professor M., citado no depoimento de

alguns ex-alunos, e, posteriormente coordenada e conduzida pela professora Adriana, uma das entrevistadas neste trabalho. A ideia era escolher um livro qualquer – em geral, brevemente apresentado pelo professor aos alunos – e depois, em reuniões semanais, discutir o texto e expor as percepções, inquietações e apreciações dos jovens. Os alunos eram convidados a fazer parte do grupo. Pude acompanhar alguns encontros do grupo no ano de 2013.

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Jéssica, uma jovem extremamente crítica, que atualmente cursa Estudos Literários na

UNICAMP, confessou seu encantamento diante de um cânone:

Eu não lembro exatamente qual foi o professor, mas eu lembro que uma vez alguém leu Augusto

dos Anjos. Eu acho que talvez tenha sido o Roberto. E eu já tinha ouvido falar de Augusto dos

Anjos porque a gente estudou, e tal, mas passou por cima. Eu nunca tinha pegado para ler. E aí eu

lembro que nessa aula, quando leram Augusto dos Anjos, eu e o Heitor, a gente ficou perplexo,

assim: "Nossa, olha esse cara. Que ótimo (...). Que maravilha! Que lindo!" a gente foi atrás, assim,

e a gente curtiu muito. A gente foi bem atrás.

Foi muito interessante notar que, mais que uma referência literária escolar,

Augusto dos Anjos tinha sido motivo de maravilhamento e busca – tanto que a própria Jéssica

lembrou, um pouco adiante na entrevista, que a partir deste autor e de outros, como Edgar

Allan Poe, que conhecera também pela leitura fruição feita pela professora Bia, ela e outros

colegas fizeram uma espécie de sarau de contos de terror numa Mostra Cultural78 do colégio.

Penso que isso extrapola o que, por vezes, se espera do ambiente escolar porque é possível se

notar o gosto da leitura movimentando atitudes, como a da organização do sarau – evento que,

parece-me, mostra ainda a vontade e necessidade de partilhar, ampliar as leituras e fazê-las

ecoar e espalhar-se.

Desse modo, enfatiza-se que as entrevistas possibilitaram a tomada de voz

daqueles que, embora mencionados e reconhecidos como protagonistas no ambiente escolar,

nem sempre podem falar abertamente sobre o que ocorre “dentro dos muros da escola”.

Portelli argumenta que

A entrevista, implicitamente, realça a autoridade e a autoconsciência do narrador e pode levantar questões sobre aspectos da experiência do relator a respeito dos quais ele nunca falou ou pensou seriamente. Assim, uma entrevista da história oral tende a ser uma história não contada, ainda que largamente recheada de episódios relatados duas vezes; e o falante tende a lutar pela melhor dicção possível. A novidade da situação e o esforço da dicção acentuam uma característica de todo discurso oral: a de ser um “texto” em elaboração, que inclui seus próprios esboços, materiais preparatórios, tentativas descartadas. (PORTELLI, 2001, p. 12)

Grande responsabilidade esta, a do pesquisador, em lidar, organizar e categorizar

os relatos que nos são concedidos e que, junto à sua voz, daquele que, a princípio, conduz o

processo (ou pensa conduzir), vão se juntando em novas versões e novos textos sobre os fatos.

Maior responsabilidade ainda é a de viabilizar a escuta das vozes muitas vezes inaudíveis,

78 A Mostra Cultural é um evento cultural que acontece anualmente no colégio e reúne trabalhos dos alunos. São projetos das diversas áreas de conhecimento e arte apresentados por todos os alunos do colégio em um único dia, reunindo as crianças, jovens, famílias e toda comunidade escolar.

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quer por questões hierárquicas, quer por jogos de poder que visam silenciar o que pode ser

destoante ou desafiador. Assim, reforçando a pertinência do embasamento teórico-

metodológico aqui apresentado, temos que “(…) a história oral é mais intrinsecamente ela

mesma quando concerne as pessoas que ainda não foram reconhecidas como protagonistas da

esfera pública (...)” (Ibid., p. 14). Embora seja uma ideia praticamente de senso comum que

professores e alunos são as figuras centrais da escola e das práticas escolares, é notável que

nem sempre são ouvidos, nem sempre o diálogo possível entre eles faz jus a seu potencial

transformador e reflexivo. Por vezes, o que eles têm a dizer sucumbe às amarras do cotidiano,

às exigências e urgências que dão por “conhecido” o que jovens e mestre pensam, suas

experiências, suas crenças. Ao ouvir esses (des)conhecidos, propus um olhar ao detalhe, ao

“mínimo e ao escondido”,79 como forma de entender um pouco mais os desdobramentos de

uma prática que pode ser cotidiana, mas não banal – como é o caso da leitura fruição.

3.3. Conhecendo o cenário: breve caracterização da escola

Conforme apontado no primeiro capítulo deste trabalho, a escola a partir da qual

desenvolvi este trabalho encontra-se na região central do município de Campinas/SP. Trata-se

de um bairro nobre, considerado tradicional, cujos moradores, majoritariamente, integram o

que se reconhece como classes média-alta e alta. O colégio, centenário, bastante conhecido na

cidade, oferece Educação Básica em todos os segmentos: Ensino Infantil, Fundamental I e II e

Ensino Médio e tem como público-alvo alunos oriundos, em sua maior parte, de classes

sociais mais privilegiadas não só dos arredores, mas de regiões várias de Campinas e até

alguns de cidades vizinhas. Em sua estrutura física, o colégio oferece, além das salas de aula,

um amplo pátio, parques e quadras de esporte, laboratório de ciências e informática, cozinha,

horta, cantina e refeitório, sala para música, anfiteatro e uma biblioteca.

Nesta biblioteca, há o espaço das estantes, pelas quais os alunos podem circular e

buscar as obras que lhes interessam, além de mesas e baias com computadores para pesquisa e

leitura. As estantes estão ordenadas por assunto/tema e também segundo a própria

organização escolar – há estantes voltadas, por exemplo, ao Ensino Médio, com obras

canônicas da Literatura Brasileira e outras voltadas para o Ensino Fundamental, com livros

paradidáticos, por exemplo. Há uma parte da biblioteca (uma espécie de sala aberta) dedicada

79 Como diz Machado de Assis em crônica de 11 de novembro de 1900, publicada na Gazeta de Notícias (Rio de

Janeiro).

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aos alunos menores (crianças do Ensino Fundamental, que frequentam até o 5o ano). Nessa

parte, há mesas e cadeiras menores, adequadas a estes alunos, os quais, semanalmente,

visitam o espaço, e os livros estão organizados segundo etiquetas de cores diferentes,

indicando a quem determinada obra é mais adequada.80 Há um regulamento que,

recentemente implantado, prevê, entre outras ideias, a do cuidado com os suportes físicos,

bem como a responsabilidade em cumprir o prazo de empréstimo das obras. A biblioteca

oferece, para os alunos menores (até o 5o ano do Ensino Fundamental), projetos que preveem

apresentação do espaço e orientação quanto às normas de utilização dos livros e cuidados com

as obras. Na semana da Mostra Cultural, que ocorre anualmente no colégio, a biblioteca

transforma-se num espaço temático homenageando algum autor ou tema – em 2014, por

exemplo, as obras de Monteiro Lobato foram a inspiração para a decoração do espaço, bem

como para a realização de atividades como contação de histórias. Neste evento, os alunos de

todos os segmentos expõem trabalhos das diversas áreas de conhecimento – sendo vários

relacionados direta ou indiretamente a práticas de leitura desenvolvidas ao longo do ano

letivo. Essa é uma oportunidade de expor interpretações, apropriações e também fazer circular

sentidos construídos a partir dos diálogos travados em sala de aula, além, obviamente, de

promover e mostrar o trabalho desenvolvido à comunidade.

Academicamente, trata-se de uma escola que pode ser caracterizada como

exigente - a média para aprovação é 7,0, considerada alta por muitos alunos e pais. Em cada

segmento, são enumerados determinados objetivos e conteúdos específicos, de acordo com os

PCNs e respeitando-se as especificidades de cada faixa etária. Além disso, o colégio defende,

em seu Projeto Político Pedagógico (PPP), que deve haver confluência entre a formação

escolar e as experiências pessoais dos alunos e incentivo ao processo contínuo de ensino-

aprendizagem:

Entendemos que é importante para o processo de ensino-aprendizagem conhecer o repertório construído nas experiências que os alunos já possuem, incluindo, principalmente, os conhecimentos propiciados pelo segmento anterior, aproveitando as aprendizagens já desenvolvidas e avançando na direção de outros saberes. Temos como objetivo oferecer atividades que sejam significativas aos nossos alunos, entendendo que a organização destas deve fazer sentido a todos os envolvidos, assim, importa-nos a compreensão das práticas e dos fazeres no ambiente escolar bem como, o estabelecimento de relações entre os diferentes conteúdos e entre eles e as experiências pessoais. (PPP, 2009, pp. 6-7)

80 Essa catalogação por cor respeita a seguinte organização: obras com etiqueta amarela são dedicadas ao público

do Ensino Infantil; as de etiqueta verde são voltadas ao 1o e 2os anos; os livros com etiqueta vermelha são indicados para os 3o e 4os ano e os de etiqueta azul, para o 5o ano.

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Ainda a partir desse trecho do PPP, nota-se o destaque do texto às “atividades

significativas” e “o estabelecimento de relações entre diferentes conteúdos e entre eles e as

experiências pessoais” - práticas que abarcam, entre outras, a da leitura fruição, embora esta

não seja especificada ou nomeada neste documento. A leitura, aliás, é lembrada pelo PPP, em

todos os segmentos, como prática dialógica fundamental e basilar para as atividades

acadêmicas, sendo reconhecida a influência do espaço escolar para formação de leitores:

Podemos dizer que a escola é um espaço diferenciado na formação de leitores, pois os sujeitos que organizam o trabalho nesse ambiente têm a possibilidade de refletir, interpretar, ressignificar suas próprias ações em função dos objetivos que se propõem e das concepções que defendem. Temos clareza de que as condições de produção da leitura não se encerram na relação aluno – escola. No entanto, consideramos as ações que se desenrolam nesse espaço como possibilidades concretas que, certamente, têm grande poder de influência na constituição do aluno como leitor. (PPP, pp. 20-1)

No caso específico da leitura fruição, trata-se de uma diretriz combinada,

acordada entre coordenação e professores, reconhecida por alunos, pais e responsáveis, mas

não registrada formalmente em documentos. Desde 2010, a direção do colégio orientou os

professores de todos os segmentos para que realizassem a leitura nos minutos iniciais da

primeira aula do dia. Alguns professores, como eu e os por mim entrevistados, aceitaram

prontamente a ideia e seguem com a prática até hoje. Outros, contudo, por motivos diversos,

não persistiram. Isso é reconhecido pelos alunos que entrevistei, quando alguns afirmam que

pensavam se tratar de uma iniciativa individual minha, como mencionei antes, não

reconhecendo essa ideia como um projeto do colégio como um todo. Há também jovens como

Giovane, que têm hipóteses para explicar por que os professores não aderiram a essa leitura:

falta de tempo, excesso de conteúdo, cobranças outras (como as provas dos vestibulares)81.

Parece-me válido, ainda, antes de explorarmos mais detidamente os depoimentos

de alunos e professores, traçar uma breve caracterização dos sujeitos enquanto leitores, tendo

outros indicadores, levando em conta o contexto nacional. Se consideramos os dados do

último estudo especial do INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional), de 2015, “Alfabetismo

no Mundo do Trabalho”, espera-se que os alunos deste colégio, grosso modo, possam ser

enquadrados nos níveis intermediário (os mais jovens) e proficiente (os dos Ensino Médio,

sobretudo) de alfabetismo e, os professores, como representantes daqueles que atingiram o

81 Citei o fragmento dessa entrevista de Giovane no capítulo anterior desta tese (p. 135).

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máximo grau de alfabetismo, ou seja, o grupo correspondente ao “nível proficiente”.82 O

indivíduo integrante desse grupo é assim caracterizado:

- Elabora textos de maior complexidade (mensagem, descrição, exposição ou argumentação) com base em elementos de um contexto dado e opina sobre o posicionamento ou estilo do autor do texto. - Interpreta tabelas e gráficos envolvendo mais de duas variáveis, compreendendo elementos que caracterizam certos modos de representação de informação quantitativa (escolha do intervalo, escala, sistema de medidas ou padrões de comparação) reconhecendo efeitos de sentido (ênfases, distorções, tendências, projeções). - Resolve situações-problema relativos a tarefas de contextos diversos, que envolvem diversas etapas de planejamento, controle e elaboração, que exigem retomada de resultados parciais e o uso de inferências. (INAF, 2015, p. 3)

Esta é uma estimativa que faço considerando o grau de exigência do colégio e

observações que fui colhendo ao longo de meu trabalho como professora e baseando-me nas

entrevistas.83 No caso dos professores, minha estimativa baseia-se em dados mais concretos:

todos os docentes entrevistados possuem Ensino Superior completo e todos têm pós-

gradução: Especialização lato sensu, Mestrado e Doutorado (e até Pós-Doutorado) em suas

áreas de conhecimento, o que confirma que se trata de usuários competentes, plenamente

habilitados no que se refere à leitura e à escrita.

Desse modo, alunos e professores dessa escola pertenceriam à exígua parcela dos

proficientes, os quais, segundo o estudo do INAF de 2015, correspondem a apenas 8% da

população – são sujeitos que integram um grupo muito seleto, infelizmente, da população

brasileira. Pode-se afirmar que, considerando-se válidas as estimativas por mim assinaladas,

tanto os professores quanto os alunos do colégio podem se caracterizados como sujeitos

diferenciados na questão do letramento, sendo representantes de uma elite no que se refere ao

domínio da leitura e escrita. Valendo-me também dos dados deste estudo do INAF de 2015,

faço outros apontamentos: essa pesquisa indica que, entre aqueles que cursaram o Ensino

Médio (mas não necessariamente o concluíram), 9% podem ser considerados proficientes.

82 O estudo realizado pelo INAF (2011-12) previa, anteriormente, quatro níveis de alfabetismos – analfabetismo,

nível rudimentar, nível básico e nível pleno –, verificados por testes que propõem “leitura e interpretação de textos do cotidiano (bilhetes, notícias, instruções, textos narrativos, gráficos, tabelas, mapas, anúncios, etc.). Além do teste, aplica-se um questionário que aborda as características sócio demográficas e as práticas de leitura, de escrita e de cálculo que os sujeitos realizam em seu dia a dia.” (INAF, 2011-2012; p. 5). No estudo especial realizado em 2015, os quatro níveis foram desdobrados em cinco: Analfabeto, Rudimentar, Elementar, Intermediário e Proficiente.

83 Não é objeto desta pesquisa verificar tal caracterização, portanto, não aprofundarei minhas considerações acerca disso. Faço a estimativa considerando o perfil do colégio, as exigências acadêmicas e as origens dos alunos – sendo boa parte proveniente de classes sociais mais privilegiadas economicamente.

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Entre aqueles que podem ser enquadrados no Ensino Superior (e Pós-Graduação), 22% podem

ser caracterizados como proficientes.

Assim, tomando como válida a hipótese de que os alunos do Ensino Médio e os

professores da escola pesquisada poderem ser reconhecidos dentro do nível proficiente; eles,

então, representam uma parcela menor em relação aos demais níveis de alfabetismo. Tal

possível caracterização pode ser corroborada pelo perfil de alunos do colégio. Oriundos de

classes sociais mais abastadas, em sua maioria, são crianças e jovens que têm amplo acesso a

bens culturais (livros, revistas, filmes, teatro) e a bens de consumo como celulares e

computadores. Partindo do pressuposto que várias famílias desses alunos integrem a parcela

dos que recebem mais de 5 salários mínimos (parcela mais favorecida economicamente,

segundo os dados do INAF de 2011-12), isso confirma a análise de que: “Apenas entre as

pessoas que têm renda familiar maior que 5 salários mínimos o nível pleno é predominante,

(52%), seguido pelo nível básico (41%), o que caracteriza quase a totalidade deste grupo

(93%) como funcionalmente alfabetizada.” (INAF, 2011-12, p: 16).84 O recorte trazido pelo

estudo especial de 2015 é diferente, mas é possível se supor que os mais ricos continuem

compondo a maior parcela dentre aqueles considerados proficientes.

Outro estudo que pode confirmar esse perfil é a pesquisa “Retratos do Brasil”,

promovida pelo mercado editorial brasileiro, por meio do Instituto Pró-Livro e aplicada pelo

Ibope Inteligência (edição 2012). Segundo esse estudo, “Leem mais aqueles que pertencem às

classes sociais privilegiadas” (p. 7). Uma outra consideração inicial que esse estudo traz é que

haveria menos brasileiros lendo (em relação à edição anterior da pesquisa, de 2007): 50% das

pessoas se declararam leitores em 2011, em contraste a 55%, em 2007. Ainda segundo os

dados, o principal fator que explicaria tal diminuição seria a “falta de interesse”: “A falta de

interesse fica em primeiro lugar, com 78% e a falta de tempo em segundo, com 50%” (p. 9). E

mais um dado interessante: “O índice de leitura por prazer também subiu em 2011: é de 75%

contra 70% em 2007” (p. 10).85 Entre as pessoas ouvidas pela pesquisa, apenas 13% daqueles

pertencentes a famílias que recebem mais de cinco salários mínimos e 40% daqueles cuja

renda está entre 2 e 5 salários mínimos podem ser considerados leitores.

84 Utilizei aqui os dados do INAF 2011-12 por avaliar que este enquadramento era o mais apropriado à

caracterização em curso. No estudo de 2015. o INAF traz caracterizações de renda baseadas em origem de remuneração por “rótulos de linha” e gêneros.

85 A pesquisa “Retratos do Brasil” é bastante ampla e procura mapear a penetração da leitura e dos livros na população brasileira, considerando variáveis como classe social, escolaridade, gênero e região geográfica. Nesse trabalho, selecionamos alguns poucos aspectos que podem elucidar a caracterização dos sujeitos envolvidos na pesquisa empreendida.

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À luz de tais dados, pode-se, mais uma vez, pensar que os alunos e professores

ouvidos ao longo da pesquisa proposta por essa tese integram de uma parcela pequena,

privilegiada, uma elite, mas que nem por isso se caracteriza majoritária ou plenamente como

um grupo de leitores. Analisando as práticas de leitura no Brasil, no período de 2001 a 2011, a

partir dos dados de relatórios do INAF, Batista, Vóvio e Kasmirski (2015) assinalam que,

mesmo essas parcelas privilegiadas da população (com mais renda e escolaridade) concentrem

mais fortemente práticas de leitura de impressos, é notável o decréscimo de leitores de livros

entre os mais jovens, os mais ricos e os mais escolarizados. Tal ponderação feita pelos autores

têm eco nos achados deste estudo. Ao longo das entrevistas, houve aqueles que se assumiram

como não-leitores, como Léo. Quando lhe perguntei se houvera alguma alteração em seu

hábito de leitura, se haveria influência da leitura fruição, ele prontamente respondeu:

“Mantive o meu não hábito de leitor”. Léo é, dentre os jovens entrevistados, o que menos

tempo estudou no colégio, mas penso que esse não é o único fator a ser considerado,

tampouco o que explica o que ele próprio define como “não hábito de leitor”. Mesmo

Fernando, um dos que mais tempo estudou nesta escola (16 anos), reconheceu que nem

sempre fora um leitor ávido. Em sua trajetória, a leitura se implantou de modo mais

sistemático mais tardiamente:

No Fundamental II, eu não era muito de ler e buscar outros livros, era muito difícil. Acho que eu li

um livro só por conta própria, mas demorou. Eu comecei no Fundamental II, parei esse livro e fui

retomar ele só no Ensino Médio.

Batista, Vóvio e Kasmirski afirmam que “os impressos – jornais, revistas e,

especialmente, os livros – estão deixando de fazer parte da cultura letrada de prestígio, e

sendo substituídos por uma cultura técnica, bem como por outros suportes e meios (...)”

(2015, p. 193). O acesso à internet, às redes sociais e a outras fontes de informação e

entretenimento ajudariam, pois, a explicar a diminuição de leitores nas regiões mais ricas do

país, dizem os pesquisadores. Outros fatores que ajudariam a explicar essa alteração, segundo

ressaltam, dizem respeito a questões de renda e escolarização relacionadas a padrões culturais,

num emaranhado de questões complexas a serem analisadas para melhor compreensão.

Há, contudo, aqueles que se reconhecem e se proclamam leitores, como Bruna,

Heitor, Sabrina e Jéssica. Dentre os professores entrevistados, é perceptível, considerando-se

as obras citadas, bem como as diversas práticas e gestos de leitura mencionados (assinar

jornais, procurar reunir uma biblioteca pessoal, comprar e ganhar livros), que se trata de

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leitores experientes, que leem com frequência e, ouso dizer, com paixão, o que se comprovará

no próximo capítulo, quando apresentarei mais detalhadamente os depoimentos desses

sujeitos. Acredito, portanto, que o grupo aqui apresentado representa uma parcela privilegiada

não só social e intelectualmente, mas também pela relação muito particular que se

desenvolveu em relação aos livros e à leitura. E talvez, em razão especial pela proposta

defendida pela escola.

3.4. Buscando os tecelões: caracterização dos entrevistados

As entrevistas de colegas e ex-alunos constituem-se como ponto de partida e

também de chegada para a realização deste trabalho, uma vez que fornecem pistas para

entender as práticas de leitura fruição, mas também, de certo modo, representam um

panorama a se ler e compreender. A possibilidade de tecer histórias vivas, construídas em

cumplicidade, configurou-se como verdadeiro desafio, mas se mostrou possível a partir da

imersão nos estudos da HO. Os relatos aqui tecidos, em exercício de diálogo e escuta, fazem

parte de experiências muito recentes (em relação ao momento de concepção deste trabalho) e

sobretudo muito singulares, aspecto que também confirma a pertinência do embasamento

teórico da HO:

(…) a pesquisa com fontes orais apoia-se em pontos de vista individuais, expressos nas entrevistas; estas são legitimadas como fontes (seja por seu valor informativo, seja por seu valor simbólico), incorporando assim elementos e perspectivas às vezes ausentes de outras práticas históricas – porque tradicionalmente relacionados apenas a indivíduos - , como a subjetividade, as emoções ou o cotidiano (…). (AMADO e FERREIRA, 2006, pp.xiv -xv)

Condição muito peculiar esta: as fontes orais são constituídas a partir dos dizeres

dos indivíduos, cada um com sua história; cada um, sujeito muito particular, que pode estar

mais ou menos aberto à experiência da leitura fruição – e pode ser atingido (ou não) por esse

contato, de manerias muito diversas (BONDIA, 2002). Desse modo, também se torna

importante o cuidado com a preparação, a realização e encaminhamento dos encontros, bem

como a escolha dos entrevistados.

Ao decidir fazer as entrevistas, comecei a organizar minhas escolhas, tanto das

pessoas com quem eu conversaria, como das questões que proporia para análise e reflexão.

No final de 2014, conforme relatei, eu era professora de uma turma de alunos do 3o ano do

Ensino Médio. Tinham sido meus alunos desde 2009 e eu estabelecera uma relação muito

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estreita com esses jovens, de proximidade afetiva, respeito e admiração que julgo serem

mútuos.86 Retomando Bosi (1994), considero que me pautei, sobretudo, em vínculos de

amizade, respeito e confiança para escolher os entrevistados e encaminhar os diálogos que

travei com cada um. Alguns alunos e professores foram mais receptivos a meus convites e se

mostravam mais abertos à ideia de colaborar com minha pesquisa. Eis um dos motivos por

que convidei alguns e não outros.

Assim, ao dar início ao processo das entrevistas em 2015, entrei em contato com

alguns jovens, então, ex-alunos, egressos recentemente do Ensino Médio, com quem eu

mantinha bom relacionamento e que eu sabia, por manifestações e conversas anteriores,

estarem interessados em colaborar com minha pesquisa. Fiz um convite amplo para a turma,

quando ainda era professora. Depois, quando efetivamente comecei o trabalho de campo,

escolhi alguns que me eram mais próximos, com quem, de fato, tinha estabelecido vínculos

mais estreitos de afetividade ao longo dos vários anos em que fui professora. Vários, a

princípio, aceitaram; contudo, minha lista se definiu por dez jovens que se dispuseram a

partilhar de seu precioso tempo comigo. A partir de então, fui buscando (não sem alguma

insistência, talvez alguma inconveniência, uma vez que os compromissos acadêmicos e

profissionais desses jovens e também os meus, por vezes, complicavam e inviabilizavam

alguns encontros) oportunidades para conversar com Fernando, Léo, Bruna, Renata, Giovane,

Heitor, Sabrina, Jéssica, Natália e Davi.87 Eis um breve quadro para melhor caracterizar cada

um deles:88

Nome Idade Curso/ocupação atual Período em que estudou no colégio

Fernando 19 anos Engenharia de Alimentos (UNICAMP) 16 anos

Léo 18 anos Publicidade e Propaganda (ênfase em Marketing (PUC/CAMPINAS)

2 anos

Bruna 18 anos Cursinho Pré-Vestibular 8 anos

86 Uma justificativa para tal ideia é que essa turma me convidou para ser paraninfa na cerimônia de conclusão do

Ensino Médio, em 2014, episódio detalhado no próximo capítulo deste trabalho. 87 Retomando nota do capítulo 1, ressalto que os nomes verdadeiros foram substituídos por outros, fictícios, para

preservar a identidade dos ex-alunos – o mesmo procedimento foi usado em relação aos professores entrevistados neste trabalho. A ordem dos nomes apresentados segue a ordem das entrevistas realizadas com os jovens.

88 As idades e os intervalos de tempo presentes neste quadro e no que será apresentado na p. 172 foram calculados no momento de escrita desta tese (final de 2015- início de 2016).

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Renata 19 anos História (UNICAMP) 7 anos

Giovane 18 anos Filosofia (UNICAMP) 12 anos

Heitor 19 anos Audiovisual (USP) 13 anos

Sabrina 18 anos Artes Cênicas (UFBA) 6 anos

Jéssica 19 anos Estudos Literários (UNICAMP) 5 anos

Natália 19 anos Direito (PUC/Campinas) 6 anos

Davi 18 anos Arquitetura e Urbanismo (PUC/Campinas) 15 anos

Como se pode observar, vários desses jovens estudaram no colégio em que foi

realizada esta pesquisa desde muito pequenos – é o caso de Fernando, Giovane, Heitor e Davi,

colegas desde o Ensino Infantil. Outros passaram pelo menos cinco anos de sua vida nessa

escola – ou seja, são jovens que conviveram, durante tempo considerável no ambiente

privilegiado de uma escola particular respeitada, cujo projeto pedagógico destaca a formação

do leitor e o papel da literatura.89 Depois de concluído o Ensino Médio, a maioria ingressou

em cursos superiores de diferentes áreas, em diferentes instituições – todas universidades

reconhecidas e vistas como referência de ensino e pesquisa. Apenas uma das jovens, Bruna,

decidiu, após o Ensino Médio, tirar um “ano sabático” para viajar e aprimorar seus

conhecimentos de língua estrangeira90 antes de prestar vestibular novamente – hoje a jovem

está estudando para as provas do final do ano e frequenta um curso pré-vestibular. Conforme

dito, no final de 2013, quando decidi que iria trabalhar com entrevistas, fiz um convite a toda

a turma, então, alunos de 2o ano do Ensino Médio. Alguns desses alunos – como Renata –

prontamente me responderam e se dispuseram a colaborar com meu trabalho. Outros, mais

tímidos, aceitaram num segundo ou terceiro convite mais pessoal. Alguns me cobravam

carinhosamente ao longo dos últimos anos no colégio, lembrando-me de que queriam muito

participar de minhas incursões acadêmicas – isso porque meus primeiros convites informais

aconteceram muito tempo antes de as entrevistas efetivamente se realizarem.

Durante os primeiros encontros, ao notar a ênfase que os ex-alunos davam aos

professores-leitores, fui percebendo, como expliquei anteriormente, que seria importante

89 Ressalvo que a inserção nesse contexto não implica serem todos “leitores exemplares”, segundo os critérios da

própria escola. Cada um, conforme será visto mais à frente, tem relações muito peculiares com a leitura – relações que vão do gosto extremo à indiferença, por vezes.

90 Outro apontamento que me parece válido acerca dos jovens entrevistados é que se trata de um grupo muito heterogêneo em termos de identidade e rendimento acadêmicos – havia desde os alunos que seriam reconhecidos como “exemplares” ou acima da média, como aqueles de desempenho não tão expressivo ou até mesmo recriminado por professores e colegas. Julgo pertinente assinalar isso porque, em nenhum momento, tomei como critério a pressuposição de que tal aluno fosse mais ou menos “capaz” de refletir sobre o processo. Interessava-me, sempre, a disposição que eles demonstravam durantes as leituras e a prontidão com que receberam meu convite para as entrevistas.

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ouvir também a estes, os outros protagonistas da prática de leitura fruição. Professores os

quais, já nas primeiras conversas com os jovens, eram lembrados com carinho e/ou

admiração. Desse modo, entrei em contato com alguns desses professores, os mais citados e

lembrados pelos alunos, meus ex-colegas de trabalho, e consegui falar pessoalmente com

quatro deles: Célia, Adriana, Bia e Roberto. Consegui ainda uma entrevista por escrito de

Luís, um colega mais novo em termos de tempo de trabalho nesta escola. Vale destacar que

quase todos os professores contatados (com a exceção de Luís, que ingressou mais

recentemente na escola) tinham ministrado aulas aos alunos entrevistados no Ensino

Fundamental II – conforme relatos dos próprios alunos, a prática de leitura fruição no Ensino

Médio era cada vez mais rara91. Segue breve apresentação e caracterização de cada um deles:

Nome Idade Formação acadêmica Tempo de experiência na docência

Tempo de docência

no colégio

Célia 49 anos Licenciatura plena em Ciências Biológicas (PUC - Campinas); Mestrado em Genética (UNICAMP)

20 anos 18 anos

Adriana 44 anos Licenciatura em Letras (UFAC); Mestrado em Teoria Literária (UNICAMP); Doutorado em Linguística Aplicada (UNICAMP)

25 anos 8 anos

Roberto 65 anos Licenciatura e Bacharelado em Matemática; Especialização (UNICAMP)

38 anos 18 anos

Bia 55 anos Licenciatura em Geologia (UNESP); Licenciatura em Geografia (Claretiano) Pós-graduação lato

senso em Ensino de Geociências (UNICAMP).

25 anos 8 anos

Luís 47 anos Bacharelado e Licenciatura em Química (UNICAMP); Mestrado e Doutorado em Química Analítica (UNICAMP); Pós-doutorado em Química (UNICAMP)

16 anos 2 ano

Nota-se que cada um desses professores é especialista em sua área e tem muita

experiência docente – a menor é de 16 anos, sendo que os outros quatro professores têm 20

anos de experiência. São profissionais de formação consistente em suas diferentes áreas, todos

com pós-graduação. Aleatoriamente, esse grupo tem representantes de todas as áreas de

conhecimento – Letras, Ciências, Matemática e Humanidades. Digo aleatoriamente porque,

como aconteceu com os alunos, um dos critérios de escolha para entrevistá-los foi a

91 Quando questionados sobre a leitura fruição no Ensino Médio, poucos nomes de professores eram citados –

entre eles, o meu. Tendo em vista a dificuldade em identificar professores do Ensino Médio que fizessem a leitura fruição, mantive, para as entrevistas, a escolha dos professores do Ensino Fundamental II.

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proximidade e amizade que eu tinha com eles, bem como a disposição que eles, professores,

demonstravam em relação à proposta da leitura fruição – não houve, pois, critério ligado à

área de atuação e/ou formação acadêmica. Considero, assim, um acaso feliz, pois me foi dada

a possibilidade de conversar com professores de todas as áreas sobre a leitura fruição, o que

me permitiu conhecer recônditos e versões muito diferenciadas da prática, como comentarei

no próximo capítulo. Outro critério para escolha destes e não de outros professores foi saber

que estes docentes promoviam a prática de leitura fruição como parte de seu cotidiano,

conforme acordado com o colégio. Eu sabia, fosse por contato pessoal, fosse por relato dos

alunos, que estes eram professores que tinham acolhido a proposta, colocando-a em prática,

ou seja, liam no início de suas aulas para fruição – sendo, conforme disse anteriormente –

lembrados e comentados muitas vezes nas entrevistas com os ex-alunos.

Outro ponto a ser destacado é que dois dos professores – Célia e Roberto –

trabalharam por mais de quinze anos no referido colégio, conhecendo a fundo o projeto

pedagógico e o cotidiano escolar da instituição. Foram professores que acolheram

prontamente a ideia da leitura fruição como prática integrante do cotidiano da sala de aula. Já

Adriana e Bia trabalham no colégio há oito anos, tempo bastante considerável e também

encamparam o projeto tão logo foi proposto. Luís é o mais “jovem”, sendo parte da equipe de

professores há dois anos. Todos têm ampla experiência com a docência e com o público-alvo,

formado por crianças e jovens.

Desse modo, confirmo que meu critério de escolha, tanto para a seleção de alunos

como para a de professores moveu-se, sobretudo, pela afetividade, mas, no caso dos docentes,

saber que eles faziam a leitura fruição fora decisivo.92 Entretanto, penso que foram grupos

muito interessantes e profícuos, dadas as peculiaridades e os contrastes perceptíveis. O

contato com a diversidade mostrou-se fundamental e permitiu exercitar olhares muito além

dos meus e construir um panorama mais amplo acerca da leitura fruição.

92 Infelizmente, não fiz entrevistas com outros professores que não realizavam a leitura fruição ou ainda a

promoviam de forma irregular; preferi privilegiar aqueles que se envolveram efetivamente com a prática. Penso que teria sido interessante ouvir outros docentes, os quais, com certeza, trariam outros olhares e considerações sobre a prática.

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4. Teias de histórias de leitura fruição

Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. (MELO NETO, 1994, p.345)

4.1. Contando histórias: hora de entretecer entrevistas

No capítulo anterior, apresentei os pressupostos teóricos e metodológicos que

embasaram a realização deste trabalho, no que se refere à questão das entrevistas e análise dos

depoimentos. É tempo, pois, de percorrer as narrativas e buscar vislumbrar como se ligam e se

relacionam alguns fios desse intrincado tecido discursivo acerca da leitura fruição. Alertam-

nos os historiadores, entre eles, Alberti (2004), que não é possível reconstruir um

acontecimento passado tal qual ocorreu; ao buscar entender um fato, o que se encontram são

partes, peças de mosaico; não é um processo linear, é um percurso com interrupções,

descontinuidades, do qual só acessamos pedaços. Em uma pesquisa como esta, defrontamo-

nos com fragmentos que permitem entrever determinadas impressões, facetas das situações

vividas – mas que nem por isso são menos válidas. Ao contrário, a percepção única de cada

sujeito é que dá o sabor da pesquisa e da descoberta de olhares que podem ser percebidos

como terras nunca antes navegadas.

Ao escolher a HO e pautar-me por este referencial teórico-metodológico, um dos

pontos deveras atraente e, ao mesmo tempo, delicado e que demanda responsabilidade,

consiste na valorização dos dizeres dos entrevistados, pois são essas narrativas que nos

permitem concretizar o que, até então, se configurava como passado etéreo e talvez relegado a

uma circulação e rememoração mais individual (e talvez, por isso, mais limitada). Trazer à

tona as versões que nos permitem entrever detalhes e ampliar nosso olhar e a divulgação de

determinadas vivências:

A experiência histórica do entrevistado torna o passado mais concreto, sendo, por isso, atraente na divulgação do conhecimento. Quando bem

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aproveitada, a história oral tem, pois um elevado potencial de ensinamento do passado, porque fascina com a experiência do outro. Esse mérito reforça a responsabilidade e o rigor de quem colhe, interpreta e divulga entrevistas. (ALBERTI, 2004, p. 22)

Cada entrevistado tem também, obviamente, suas particularidades, suas

idiossincrasias. Contudo, não se pode deixar de pensar que, juntos, esses relatos constroem

algo maior do que os textos isolados, compartimentados. Ou seja, embora as memórias

sejam, a princípio, individuais, particulares, constituem-se como “fenômeno coletivo e social,

ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações,

transformações, mudanças constantes”, conforme dito por Halbwachs (apud POLLAK, 1992,

p. 200) ou ainda como nos esclarece Alberti (2004) da representatividade da experiência

individual. Desse modo, cada versão elaborada vai se entrelaçando às demais, de modo a

configurar um todo maior, caracterizador de uma coletividade – ou como comentei

anteriormente, uma comunidade de leitores peculiar, no caso deste estudo que contempla a

leitura fruição.

Para compor esse todo – constituído por textos - a matéria-prima da qual

dispomos são também os textos “eles-mesmos” e suas marcas indissociáveis e singulares,

conforme esclarece Portelli:

Não dispomos de fatos, mas dispomos de textos; e estes, a seu modo, são também fatos, ou o que é o mesmo; dados de algum modo objetivos, que podem ser analisados e estudados com técnicas e procedimentos em alguma medida controláveis, elaborados por disciplinas precisas como a linguística, a narrativa ou a teoria da literatura. (…) [os textos são] (...) expressões altamente subjetivas e pessoais, como manifestações de estruturas do discurso socialmente definidas e aceitas (motivo, fórmula, gênero, estilo). Por isso é possível, através dos textos, trabalhar com a fusão do individual e do social, com expressões subjetivas e práxis objetivas articuladas de maneira diferente e que possuem mobilidade em toda narração ou entrevista, ainda que, dependendo das gramáticas, possam ser reconstituídas apenas parcialmente. (PORTELLI, 1996, p. 4)

É preciso, então, ter atenção para uma representatividade qualitativa e para uma

autoridade narrativa que se estabelece em cada relato, autoridade esta que também se reflete

em escolhas peculiares e por isso mesmo instigantes: “(...) os fatos importantes são os que se

desenvolvem dentro da consciência: não são os fatos vistos, mas o processo de visão,

interpretação e, em consequência, de mudança” (Ibid.: p. 5). Enfatizando o que nos diz

Portelli: nosso material, aqui, são os textos – construções complexas, enunciados que

respondem e reverberam outros tantos ditos e sugeridos, que incluem além dos explícitos e

impressões óbvias, lacunas, silêncios, implícitos, subentendidos. Devido a tal complexidade, a

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análise deve se propor a perscrutar, além das camadas superficiais de sentido, estruturas mais

delicadas e não tão óbvias como as escolhas de palavras, as formulações, enfim, a construção

discursiva em jogo. Afinal, este trabalho, como um todo, é uma tentativa de visitar um

passado recente e interpretá-lo por meio do que alunos e professores têm a dizer sobre o que

presenciaram na escola, em suas aulas. Conforme ponderou Alberti (2004), é um processo de

negociação e disputa de significados e desencadeamento de ações.

Passarei, então, neste capítulo, a analisar os depoimentos dos entrevistados. Optei

por uma organização em tópicos. Trata-se de temáticas que permitem aproximar as

entrevistas, traçando pontos ao mesmo tempo comuns, sobre os quais, contudo, cada

entrevistado tece seus comentários e suas considerações.

4.2. Leitura fruição: espaço e opiniões

Ao começo de nossas conversas, eu solicitava aos entrevistados que esboçassem

impressões gerais sobre a proposta da leitura fruição conforme a tinham conhecido no

colégio. Algo como uma avaliação ampla, uma opinião pessoal sobre essa prática de leitura:

como eles a compreendiam; que valores tal leitura assumia para cada um; se era válida como

incentivo à leitura, obrigatória ou não. Considero que era uma maneira de disparar ideias,

convidar à reflexão sobre o projeto e também delinear meus objetivos enquanto pesquisadora,

propondo uma abordagem um pouco mais panorâmica para que cada entrevistado focalizasse

o que julgasse mais pertinente – dando espaço, assim, para que a subjetividade de cada um se

manifestasse com liberdade.

Em geral, as primeiras respostas traziam consigo o elogio e, muitas vezes, uma

exaltação do projeto: “muito válido”, “muito bom”, “muito apropriado”, “muito interessante”.

No início de todas as entrevistas, praticamente, houve um destaque dos meus interlocutores

para o potencial positivo da prática, bem como para os benefícios que tanto ex-alunos quanto

professores percebiam na leitura fruição. Um aspecto geralmente mencionado e considerado

dos mais válidos pelos entrevistados era, por exemplo, a possibilidade de ampliação de

repertório por meio do contato com autores e obras – preceito esse que seria uma das

justificativas da proposta da leitura fruição, conforme a ex-aluna Renata atesta:

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Eu particularmente gostava [da leitura fruição], porque era uma forma de conhecer novos textos.

Sempre era alguma coisa diferente (…), algumas eu já conhecia, outras não, e quando você não

conhece e tem contato com alguma coisa nova é bem legal.

Renata e outros jovens vão ressaltar essa possibilidade do conhecimento do novo,

do contato com obras e autores “diferentes” - diferença essa que, por vezes, pode ser

entendida como aquela estabelecida entre os canônicos, apresentados comumente pela escola,

fazendo parte do currículo regular, e aqueles trazidos pelos professores nesse espaço facultado

pela leitura fruição. A abertura para outras novas obras e novos autores foi algo lembrado de

modo recorrente ao longo das entrevistas. A jovem Bruna também atesta tal aspecto positivo

da leitura fruição, quando diz:

Então, acho muito interessante [a leitura fruição], porque é uma maneira de mostrar uma cultura

pras pessoas, sabe, que é muito diferente do que a gente vê no colégio. Tudo que você leu pra

gente é muito diferente dos livros que a gente lia, ainda mais no terceiro ano, que é tudo livro de

vestibular (...). E a gente tinha contato com livros muito interessantes, (…) com coisa muito... até os

livros infantis que você lia pra gente era muito diferente. Era muito legal conhecer, sabe? E às

vezes você não tem tempo, (…) é o tipo de coisa que você só conhece tendo contato com alguém.

E era legal, porque, sei lá, a gente não precisava pedir uma indicação pra você... você lia um texto,

e a gente passava a conhecer um autor, ou uma obra diferente, então eu achei muito legal isso.

Na fala de Bruna, destaca-se o papel da leitura fruição como alternativa para

ampliação de repertório, canal de acesso a leituras além das escolares, canônicas – incluindo-

se aí leituras de livros infantis,93 o que, segundo ela, permite o contato com “culturas” outras,

além do que é comumente trabalhado no colégio – ou seja, como se a leitura fruição

proporcionasse voos além do que a rotina e os conteúdos escolares tradicionais permitiam

(pelo menos, segundo a visão dela, aluna). Segundo a jovem, era a possibilidade de conhecer,

ter acesso a outros autores e obras além daqueles trabalhados segundo as demandas escolares

– e ainda num tempo que, normalmente, não se teria, dadas as demandas do 3o Ano do Ensino

Médio. Outro ponto importante em sua fala é a ênfase dada – ainda que não de maneira

explícita – ao papel do mediador – no caso, o professor ledor e leitor. Conforme nos lembra

Petit (2008), não basta haver o contato material, físico, com os livros ou quaisquer outros

suportes de leitura – é fundamental que haja um mediador que proporcione trocas e palavras

“verdadeiras”. Bruna reconhece tal importância quando cita, inclusive, que não era necessário

93 Analisarei, adiante, neste capítulo, de modo mais detido e aprofundado os depoimentos acerca dos livros ditos

infantis na leitura fruição.

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pedir indicação – esta já acontecia quando a leitura se dava e ficava, para quem quisesse,

aquela sugestão.

Essa presença do mediador se faz notar mesmo quando Bruna mencionou a leitura

que estava fazendo então. Vale ainda comentar que esta jovem foi a única entrevistada que

tinha consigo, em mãos, no momento de nossa conversa, um livro – o primeiro volume da

saga The Game of Trones. Quando lhe perguntei se ela havia lido todos, o que achava deles,

respondeu:

Nossa, a T. [professora de Literatura] é apaixonada [pela saga]. Não sei se pelos livros, na

verdade. Mas ela vê a série. Ela chegava na aula falando, “Nossa, quem viu Game of Trones

ontem?” e é um livro que, desde que eu vi a série, eu falei: eu quero muito ler. Só que no 3o ano eu

não consegui ler, sabe, e assim, um maior que o outro. (…) Este é o menor de todos e tem 1000

páginas [ aponta o dedo para o livro sobre a mesa].(...) É, então, eu deixei pra esse ano. Nossa, o

ano que eu tiver livre, assim, eu vou ler. E foi aquela coisa, porque o ano começou e, nossa, que

livro eu vou ler agora? Porque se eu começar a ler, eu vou querer ler os cinco (...). Não vou

consegui parar. Então eu li outras coisas primeiro. (…) Comecei a ler esse e não vou conseguir

parar. Então, acho que eu vou ler todos.

Embora Bruna não deixe claro se houve ou não influência direta de T. para ler esta

obra, a jovem inclui, em sua referência um quê apaixonada ao livro, a lembrança da

professora, a qual comentava a série em alguns momentos da aula. Parece-me, assim, que a

presença do professor, ainda que de modo indireto, se faz notar e reforça o valor daquela

leitura que Bruna escolheu fazer num momento em que não mais estava na escola. Portanto, a

presença do mediador se estende para muito além da escola e parece marcar de modo

indelével o percurso desta jovem – importância assinalada por Petit (2008) e fundamental para

que os leitores se sintam mais confortáveis e se deixem atrair pela leitura.

Fernando, ex-aluno com quem fiz a primeira entrevista, cita, em sua avaliação

sobre a leitura fruição, considerações afins às de Bruna:

Às vezes, pelo conteúdo do texto, [a leitura] acarretava algum conhecimento, de autor, que você

nunca teve contato, um autor francês, um autor mesmo brasileiro, que (...) nossa, nunca li nenhum

texto assim, (…) dele antes. E (...), agregava conhecimento de mundo também, pessoal, novas

experiências de, como é que eu vou definir? De (...) conteúdo, de aprender coisas novas, só que

pra vida, em vez de ser só um conteúdo de português...

Percebe-se que Fernando elogia a novidade trazida pela leitura fruição, o contato

com o desconhecido. Ele diz buscar nas leituras – não só na de fruição -, além de conhecer, de

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ter mais referenciais culturais e textuais, “agregar conhecimento de mundo”, indo além do

“conteúdo de português”, disciplina que, não raro, é vista como a responsável principal pelas

práticas de leitura. Interessante notar os implícitos nas considerações de Fernando: para ele, a

leitura fruição traz possibilidades de conhecimento que talvez os textos regulares, aqueles

previstos para aula, não trouxessem – ou não provocassem, dado o contexto de leitura e o

modo como eram propostos os textos. Curiosa essa declaração, pois um dos pilares da escola,

quando propõe seus conteúdos, é o da ampliação do repertório, do conhecimento – e mesmo

nós, professores de leitura e literatura, sonhamos que os textos ampliem as possibilidades de

reflexão e se tornem constitutivos dos sujeitos (PETIT, 2008 e 2009; CANDIDO, 2004).

Talvez haja uma crítica aos conteúdos e leituras escolares, obrigatórias, quando Fernando

destaca que a leitura fruição lhe trazia essa possibilidade de “agregar conhecimento”. Talvez

ele, enquanto aluno, atribuísse significado diferenciado nas leituras feitas no início da aula do

que em outras – um significado mais voltado para uma formação pessoal que seria, para ele,

mais válida. Quando diz: “aprender coisas novas, só que pra vida, em vez de ser só um

conteúdo de português”, fica pressuposto que o conteúdo de português, por exemplo, não

seria um conteúdo “para vida” - seria apenas mais um conteúdo escolar, “descolado”, pois, da

vida. Tal observação feita pela jovem reforça o elo, sempre defendido entre educadores

(FREIRE, 2009; SILVA, 2005; ZILBERMAN, 1991) entre a leitura de literatura na escola e a

realidade dos alunos.

Outro aspecto destacado por Fernando em seu depoimento é a importância da

frequência de discussões e leituras vivenciadas na escola – práticas que ele relaciona à leitura

fruição. Quando analisa o impacto da leitura fruição em sua formação, estabelece oposição em

relação ao que ele encontra, agora, na universidade:

Fez [diferença a leitura fruição], eu acho que agregou bastante no caráter essas reflexões e todos

esses textos e conhecimentos que eu tive acarretados por essas leituras. (…) Na universidade,

eles também falam isso, que ( …) eles vão preparar a gente no conteúdo, mas também na questão

ética, pessoal. Mas eu acho que isso fica meio perdido na universidade por não ter um enfoque

assim frequente, uma fluência.

Percebe-se que, além do caráter formador de repertório cultural, Fernando atribui

à leitura fruição um caráter de formação pessoal, que teria agregado importantes contribuições

ao que ele chama de seu caráter. Desse modo, um dos pressupostos que sustenta o projeto e

justifica a leitura fruição estaria, conforme esse jovem, garantido: segundo pressupostos do

projeto pedagógico do colégio, a leitura fruição, sendo uma das diversas práticas de leitura

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proporcionadas pela escola, deveria também embasar a formação crítica do cidadão – aspecto

no qual poderíamos, talvez, incluir a ideia de “formação ética” citada pelo jovem. Também é

notável nas palavras de Fernando a diferença que ele instaura entre a universidade e o ensino

básico: fica subentendido que a frequência, a insistência de determinadas práticas fazem

diferença para uma formação mais “pessoal”, que talvez ele julgue mais substancial. Quando

comenta que lhe parece que “isso fica perdido na universidade”, ele está admitindo o

predomínio de conteúdos talvez mais impessoais e descontextualizados, em detrimento de

questões que impactem diretamente a formação pessoal dos alunos. Considerar, então, que a

leitura fruição trouxe incremento pessoal, crítico à sua formação, seria reconhecer seu

potencial de experiência (BONDÍA, 2002): foram ocasiões em que leituras tocaram este

jovem e o aproximaram, inclusive, de questões relacionadas à sua formação cidadã

(CANDIDO, 2004) – o que pode, de certo modo, comprovar o papel humanizador que textos

literários desempenhariam.

No caso de Fernando, ressalto ainda que ele reconhece a leitura fruição como

estímulo e como prática válida para incrementar sua formação de leitor. Quando questionado

se a leitura fruição de alguma maneira havia impactado, influenciado de algum modo seus

hábitos de ler, ele ponderou:

F: Eu acho que mudou, (…) Fabi. No Fundamental II, eu não era muito de ler e buscar outros

livros, era muito difícil. Acho que eu li um livro só por conta própria, mas demorou. Eu comecei no

Fundamental II, parei esse livro e fui retomar ele só no Ensino Médio.

P:94 (…) em relação às leituras obrigatórias (...), enfim, de alguma maneira [a leitura fruição] te

influenciou?

F: É, pela familiaridade com leituras, dessas leituras frequentes, eu acho que se tornou até um

hábito, né? Aí eu encarei a leitura, né, ah, tem que ler esse livro, tal. Ah, tá bom. Lia, tal, sem

problema nenhum. Lia até com frequência, porque antes eu lia o livro, demorava uma semana,

duas semanas, pra ler dez páginas. Aí, tipo, em uma hora, eu passei, depois dessas leituras, uma

hora eu lia cem páginas, às vezes, acabava o livro.

Fernando comenta que, além de se reconhecer como um leitor mais assíduo,

também passou a “encarar a leitura”, enfrentar livros e lê-los com certa rapidez. É preciso

ponderar que reconhecer a leitura como hábito e a proclamar a rapidez não significa ler bem.95

Contudo, o rapaz reconhece, em seu dizer, essas ações como benefícios e faz ligações entre

94 Como apontei anteriormente, a letra P indica os meus turnos de fala (professora pesquisadora). 95 Talvez valha ressaltar que Fernando, ao longo de sua vida escolar, foi considerado, via de regra, um dos

melhores alunos de sua turma pelos professores e também pelos colegas. Mesmo assim, reconhece que a leitura nem sempre havia sido uma constante ou mesmo um hábito em sua vida escolar e pessoal.

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tais ganhos e a prática da leitura fruição. Seu depoimento vem reforçar a importância do

elemento mediador (o professor, na relação direta com o aluno, a escola na relação indireta,

pelo projeto de leitura fruição. Retomando os resultados do INAF apresentados antes, ao

integrar o percentual das camadas mais abastadas, espera-se encontrar um leitor pleno,

proficiente. No entanto, isso não garante essa condição, conforme indicam e analisam Batista,

Vóvio e Kasmirski (2015). Ou seja, o processo de mediação é relevante para que o estado

pleno de alfabetismo seja alcançado.

Jéssica, por sua vez, desde sempre, como aluna, se proclamou uma leitora voraz.

Para ela, a leitura fruição tinha importância por não ser obrigação e pelo que considera um uso

bem dosado do tempo. Quando lhe perguntei se achava que a prática valia como incentivo,

convite à leitura, ela disse:

Sim, porque primeiro você não está impondo nenhum aluno a ler nada, você está lendo para o

aluno, e, segundo, que é um tempo curto. Ninguém fica uma hora e meia lendo nada. É um

estímulo mesmo. E as pessoas não leem um livro inteiro, elas leem um capítulo, um trecho. Então,

é bem isso. É bem no sentido de estimular a pessoa a ler, e não de impor a ela uma leitura, o que

eu acho complicado.

Um primeiro eco perceptível nas palavras de Jéssica é a crítica à falta do tempo –

aspecto também comentado por Bruna, em trecho analisado anteriormente. Essas jovens, bem

como Fernando, Heitor e Giovane, fazem referência às demandas urgentes, ao tempo que é

escasso – e, nesse caso, a leitura fruição viria oferecer uma alternativa a leituras outras, que

não seriam possíveis habitualmente. Talvez a leitura fruição venha trazer um pouco do “tempo

roubado” que a leitura desinteressada propõe, “(...) um tempo para si mesmo, tempo de

disponibilidade, de ócio. Tempo de reflexão, em que se evita a precipitação.”(PETIT, 2008, p.

79) – tempo que, porque inútil, seria proveitoso e fundamental (ORDINE, 2016), lembrando-

nos de nossa humanidade e nossa capacidade de apreciar, fruir sem objetivos específicos, sem

preocupação com eficácia ou aproveitamento. Um dos ganhos desta prática, então, segundo

Jéssica, seria o contato com a leitura rápida, dosada. Essa atração seria reforçada pela ideia da

não obrigação. Quando se há muito o que fazer, rápido e urgentemente, e pouco tempo,

privilegiam-se as questões mais importantes – no tocante ao assunto deste trabalho, os jovens

mencionavam a pressão por contemplar as leituras obrigatórias para os exames vestibulares.

Embora haja aqueles que, como Bruna, gostam de tais leituras, vários, como Jéssica, criticam

o que chama de obrigação – nem sempre tão feliz, como gostariam os professores e suas boas

intenções (SNYDERS, 1993):

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Quando você entra no Ensino Médio, é aquela mesma loucura de ler para o vestibular, e isso

acaba fazendo as pessoas a perderem o interesse. Então, eu acho que ser um convite e não uma

imposição, é muito importante. Porque quando você (...) tem a obrigação de fazer aquilo, a leitura

perde o caráter lúdico e começa a ter um caráter concreto, um caráter..., da mesma forma que eu

faço uma conta matemática, eu leio um livro, entendeu? De obrigação.

Se concebermos a leitura fruição como experiência, conforme Bondía (2002),

pode-se ainda considerar que a falta de tempo, a velocidade acelerada em que as ações

precisam se desdobrar (ação, opinião, informação – o que não implica experiência), são

inimigas da leitura significativa, conforme assinala o professor espanhol. Jéssica ressalta

ainda que reconhece na gratuidade da leitura fruição uma forma de incentivo, algo que pode

recuperar o que chama de “caráter lúdico”. Ela também assinala a não-obrigatoriedade –

característica inerente à leitura fruição, mas nem por isso menos polêmica, quando tratamos

dessa prática para os alunos “maiores”, como os do Ensino Médio. Quando se defende ler

para fruir, para os menores, alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, recebe-se

incentivo, celebração, elogios. Já propor a leitura descompromissada, em movimento de

partilha, como experiência que, de fato, toque o aluno, parece a muitos algo deslocado, fora

dos propósitos, por vezes, conteudistas demais, do Ensino Médio. Jéssica marca bem isso

quando avalia que, para ela, a leitura deixa de ser lúdica, agradável e assume um caráter duro

(“concreto”), similar ao da matemática – comparação que entendo aqui como uma crítica,

como se determinadas práticas de leitura, então, assumissem um aspecto mais frio e menos

humano – sendo esta última característica, a da humanidade, não só desejável como

inextricável à leitura e, sobretudo, à literatura (CANDIDO, 2004). É possível, portanto,

retomar as ideias de Ordine (2016): o caráter utilitarista dos meios acadêmicos, que, segundo

o professor italiano, estariam cada vez mais relacionados ao mundo financeiro, no qual só

valorizam o que é útil, o que se mede e pode ser monetarizado, gerando, consequentemente,

lucro (no caso da escola, a moeda é forjada pela nota e pela promoção). Ler sem ter um

objetivo – uma prova, uma atividade avaliativa – corresponderia, então, a desperdício do

precioso tempo. Muitos não concebem que se possa usufruir de dez ou quinze minutos da aula

lendo por ler – o que, para mim e outros, como Jéssica, parece ser justamente o que traz mais

encanto à leitura fruição.

Além disso, a escola (e o senso comum), muitas vezes, dá como certo que o

jovem, passada a infância, já desenvolveu totalmente o gosto pela leitura ou que esse prazer é

inerente - ou deveria ser – a toda e qualquer leitura. Então, como Pennac (1993) assinala,

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sufoca-se o gosto, a curiosidade e a proximidade pela leitura em nome de exercícios, de fichas

de leitura, resumos, provas – como se tais instrumentos e práticas confirmassem ou

autorizassem leituras mais sérias e maduras. Ler passa a ser dever, toma a forma do temido

imperativo insuportável, segundo o autor francês. Jéssica, contudo, assinala que essa

gratuidade é que encanta e se constitui como incentivo – gratuidade já lembrada por Ordine

(2016) e também por Petit (2008 e 2009) como essencial para a fruição da leitura.

Ainda refletindo sobre a questão da validade ou não da leitura fruição, entre o

contraste entre o útil e o não útil, num momento de análise conjunta entre mim, Léo e

Fernando, travou-se o seguinte diálogo:

P: Eu lembro assim, no começo [quando comecei a implantar a prática da leitura fruição], não com

vocês, porque vocês eram uma turma com quem eu já tinha muita proximidade, então com vocês

eu me sentia muito à vontade pra chegar sete e dez e ler. Mas até hoje, assim, existem turmas

[para] que às vezes a gente chega pra fazer isso e há um olhar de estranhamento do tipo: "O que

você está fazendo?"

L: É, por que que ela está lendo isso aqui?

P: Exatamente.

F: Qual a necessidade disso?

P: Isso, perfeito. E aí, essa coisa pragmática. Se não tem um motivo...

F: Do imediatismo.

P: Do imediatismo.

F: Todo conhecimento tem que ter uma aplicação instantânea. (…)

L: Então, puxando um pouco do que você estava falando agora, você falou de que todo

conhecimento tem que ter um tipo de aplicação. Eu não acho nem que é uma questão de

conhecimento, (…) porque não é como se tivesse uma coisa, tipo, pra gente absorver ali. Eu acho

exatamente o contrário. Quando a gente está na aula, o professor fala, a gente vai absorvendo as

coisas, sabe? Tipo, "Ok, estou aprendendo isso". No momento da leitura, às vezes, você levava

(...) contos, que não tinham coisa pra você aprender, mas é mais uma coisa reflexiva mesmo. Mas

é isso, você não aprende, você reflete. É um jeito de pensar diferente, da aula.

F: Você associa com os sentimentos no momento e acaba refletindo isso em uma ação ou um

pensamento diferente.

L: Deve ser por isso que pode acontecer um estranhamento de quem não está habituado com essa

atividade. "Nossa, por que ela está lendo isso?" Porque é uma coisa diferente, sabe? Não é só "Ah,

a necessidade...". A leitura é uma coisa bem diferente, né. A gente precisa pensar a reação...

F: Eu acho que devido a nossa sociedade ser muito instantânea, assim, as pessoas estarem

parando de fazer reflexões sobre si mesmos. Tanto é que você vê a dificuldade das pessoas

decidirem o quê vão fazer na faculdade. Isso acaba dificultando ali no começo a leitura. Dá um

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embate. Mas aí o cara começa perceber: "Ah, mas isso é bom até". Porque isso daqui vai... está

trazendo uma reflexão sobre mim, sobre o mundo.

A criticidade de Léo e Fernando se sobressai quando examinam a questão do

imediatismo, do conteúdo em confronto com a proposta da leitura fruição. Retomam, em suas

falas, algumas das considerações de Jéssica. Eles admitem que não se trata de uma “leitura

para o conhecimento”, no sentido mais frequente, utilitarista – da prevalência do útil

(ORDINE, 2016). Eles criticam esse aspecto na escola e na sociedade – a necessidade da

produção, do útil, do rápido em detrimento do tempo para pensar, refletir – e reconhecem que

há na leitura fruição uma alternativa para aprendizagem. Destacam, outrossim, em seus

dizeres, o que pode parecer uma contradição, mas não é: a leitura proposta no momento de

fruição não é para o conhecimento, mas para a reflexão. Conhecimento pode ser sinônimo de

informação e “A informação não é experiência”(BONDÍA, 2002, p. 21) – mas, para os dois

jovens, a leitura pode incitar à reflexão sobre eles, sobre o mundo, ou seja, pode permitir que

sejam tocados, que sejam marcados positivamente – ou seja, o que parecia supérfluo mostra-

se essencial (ORDINE, 2016). Nesse sentido, concebe-se que, além do conteúdo, essa prática

de leitura como fruição concebe ainda um indissociável elemento humano e humanizador

(CANDIDO, 2004). Fernando, em vários momentos da entrevista, destaca uma ideia

enunciada no trecho acima: a da associação da leitura com sentimentos. Para ele, a leitura

fruição o tocou em vários momentos, num âmbito mais pessoal, mas afetivo - o que se opõe,

via de regra, à abordagem geralmente pretendida pelos conteúdos tradicionais e pela forma

como são ministrados na escola.96

Talvez um pouco amparadas em ideias como as acima descritas – aquelas que

entendem o ambiente escolar como o da produção, da eficiência (como bom espelho da

sociedade capitalista), nem todas as avaliações acerca da leitura fruição foram tão elogiosas

ou tão entusiastas. Quando questionados sobre se essa prática se constituía como um incentivo

à leitura, Heitor e Giovane comentam:

H: Eu acho [que sim], pro meu caso, por exemplo, que eu fui atrás do livro. É que (...) você tem que

ver algo que as crianças, os adolescentes tenham algum interesse, acho que se partisse do mundo

deles [eles se interessariam]. Eu sei que quem é mais novo gosta muito, geralmente, de umas

coisas mais misteriosas, sabe, algumas coisas mais sobrenaturais, não sei por quê, mas, sei lá,

acho que faz parte da psicologia da criança, pré-adolescente, adolescente. Não sei. Isso entrou em

96 Ainda nesse capítulo, em seção posterior, desenvolverei mais detalhadamente esse aspecto afetivo da leitura

fruição.

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contato comigo, com o que eu gostava. Mas, não sei (…).

P: Você acha que quando era [a temática da leitura fruição] muito diferente era mais

desinteressante necessariamente, ou não?

H: Não necessariamente, assim. Eu só sei que, por exemplo, o conto do “Barril de Amontillado”,97

(...) eu lembro que eu olhava em volta e tinha muita gente[pensando], ah, isso de novo não, sabe?

Não sei, talvez por ser uma história mais velha, sabe? Por se passar em outro contexto ou talvez

pelo não interesse por esse tipo de história, sabe. Eu acho que (…) tem como ter uma abertura aí,

mas, uma abertura de quem tá ouvindo pra leitura, mas, eu acho que (…) quem não tem interesse

nenhum, [talvez] seja difícil conquistar por meio disso, sabe. Essa é uma sensação que eu tenho,

não sei.

G: Eu acho um pouco que, na visão da criança, assim, de porque ela tá na escola, um pouco.

Porque eu lembro de muita gente que falava que usava o horário da leitura fruição pra fazer uma

lição que não tinha feito antes ou qualquer outra coisa. De falar, ah, não tá tendo aula agora.

Porque não era matéria. Então, eu acho, que na verdade, o problema era esse. Não é matéria,

começa a não prestar atenção. Não cai na prova, eu acho.

Nas falas de Heitor e Giovane indicia-se uma avaliação incômoda àqueles, que

como eu, defendem a prática de leitura fruição e que retoma uma postura escolar (tanto de

professores como de alunos) que poderia ser considerada mais utilitarista. Heitor pondera que

os textos escolhidos deveriam ser mais “próximos dos alunos” - chega a exemplificar casos de

mais ou menos interesse, dependendo do gênero ou da temática do texto. Talvez as escolhas

feitas pelos professores não tenham lhe parecido as melhores ou mais adequadas. Isso me leva

a perguntar: se o texto escolhido fosse diferente do que os jovens “pareciam gostar”, haveria

desinteresse? Ele mesmo afirma que não necessariamente e destaca um ponto que me parece

crucial: a abertura dos alunos para a atividade, a receptividade para a leitura. O comentário de

Giovane complementa estas observações, quando ele assinala que muitos alunos se punham a

usar “produtivamente” o tempo da leitura fruição para fazer tarefa ou estudar – talvez, porque

não reconhecessem propósito nesse momento de leitura e na própria leitura em si, preferissem

produzir algo em vez de perder tempo, “porque não era matéria”. Essa postura – a de

transformar o tempo da fruição, tido como ocioso e estéril, em tempo útil (ORDINE, 2016)-

confirma que nem todos reconheciam validade ou sentido na prática de leitura, o que talvez

nos aponte uma dificuldade em se perceber a gratuidade como alternativa de formação do

leitor e do cidadão (CANDIDO, 2004).

Tais observações contrastantes acerca da validade ou não da leitura fruição

permitem conhecer um pouco mais sobre a heterogeneidade dos leitores e a recepção e

97 Conto de Edgar Allan Poe, publicado pela primeira vez em 1846.

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interação com a prática. Ainda que se conceba a proposta de uma comunidade de leitores

muito particular, as percepções sobre a leitura e o que ela pode significar se constituem,

obviamente, de modo muito individual, endossando ou não a prática em jogo. Longe de ser

unanimidade, a leitura fruição divide opiniões, por mais que seus pressupostos sejam

considerados louváveis e ancorados nas mais respeitadas propostas teóricas de ensino.

Também sob a perspectiva da discordância, Léo, quando indagado sobre se a

leitura fruição representaria um diferencial em sua formação de leitor, assume que se sente

pouco atingido pela prática e comenta:

Olha, o que me faz pensar que sim é que, eu tava pensando nas suas aulas, e era o que eu

chegava mais próximo de participar, prestar atenção. Eu sei que ainda assim, sabe, nossa, como

eu tava longe, mas era o que eu chegava mais perto, entendeu?

Em sua fala, Léo faz referência à minha aula (da disciplina de gramática), na

época em que era aluno do 3o ano. Eu sempre começava conforme ditava o

protocolo/combinado: fazendo a leitura fruição – tanto que muitos dos ex-alunos entrevistados

acabaram por julgar que a ideia dessa leitura era minha e não uma proposta do colégio.

Embora tenham presenciado a leitura fruição com mais intensidade no Ensino Fundamental II,

no Ensino Médio poucos professores a realizavam, menos ainda no 3o ano, momento decisivo

em que havia muita cobrança por conta do vestibular. Provavelmente, por conta desse

contexto, os alunos associavam que a prática era uma opção minha (concebida por mim) – e

muito frequentemente também da professora Adriana, que vez ou outra me substituía. Para

Léo, a atividade mais descompromissada era a que, para ele, trazia algum interesse, fazia com

que prestasse alguma atenção – em oposição a outras atividades tradicionais propostas do

cotidiano escolar. Léo assume sua sinceridade e proclama não ver diferenças em relação a sua

postura enquanto leitor, ao ser questionado se houvera influência da leitura fruição: “Mantive

o meu não hábito de leitor”, afirma ele. Mais à frente, comenta, todavia, que acha que a

resistência em relação à leitura diminuiu e que hoje cogita, ao menos, abrir um livro e que tem

buscado algumas leituras. É também Léo que, mesmo não se reconhecendo leitor, afirma que,

em determinadas aulas, como a de Literatura e Redação, ministradas pela mesma professora,

tinha interesses redobrados – e acaba se referindo a essas leituras – obrigatórias, parte

fundamental das aulas – como fruição:

Então, é que o que a gente discutia ali não é que nem fosse matéria, assim. Sabe, era uma coisa

mesmo pra levar como se fosse conhecimento da vida. Tanto que não era nem de literatura, era de

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redação no aprofundamento. Porque ela [a professora] falava que era uma coisa que a gente

poderia usar, aquele conhecimento na hora de... dava para usar, pra fazer citações... (…) Sabendo

do que “cê” tá falando direito, sabe? Então, não adianta “cê” achar bonito uma coisa e jogar o

nome nisso se você não sabe do que você tá falando. Eu acho que (…) me ajudou a olhar uma

crítica de algumas coisas, pra, na hora de fazer uma proposta de intervenção social, como você

tem que fazer na redação do Enem. Eu acho que foi muito melhor, porque ajudava a ver o que,

(…) eu deveria debater um pouco melhor, sabe, na hora de fazer redação, porque dava pra ir

acompanhando o jeito que era feita toda a discussão na aula. Eu acho que isso ajudava um pouco.

As leituras obrigatórias comentadas por Léo, assumem, para ele – e para outros

entrevistados como Heitor, Giovane e Bruna, o status de leitura fruição. Ao atribuir o sentido

de fruição a práticas que são tipicamente escolares, portanto, obrigatórias, impostas por

definição, Léo e Heitor mostram um pouco de suas táticas em relação a estratégias da escola

(CERTEAU, 2012): atribuem a essas leituras uma roupagem – a de serem leituras

interessantes e prazerosas. Isso também confirma que, enquanto leitores, eles, alunos,

atribuem novos sentidos, constroem outras possibilidades de entendimento e envolvimento

com os textos (PETIT, 2008).

Também há de se reconhecer que tal valorização pode estar ligada a um aspecto

um pouco mais utilitário do texto, à medida que concebem as leituras interessantes porque

auxiliavam na elaboração da redação – note-se, porém, que os jovens não reduzem as leituras

a esse caráter que se poderia dizer “prático”, utilitário, nos termos de Ordine (2016). Desse

modo, parece-me que optam por uma valorização dos textos, conforme os encaminhamentos

dados pela professora e a maneira como ela organizava as aulas, promovendo debates,

sobretudo, e fomentando, assim, o potencial crítico dos alunos. Os movimentos de

aproximação com o cotidiano – inclusive com aquele mais imediato, como o da produção de

textos – e o convite ao debate, à polêmica e à inclusão deles, alunos, como leitores ativos,

críticos e com voz fazem, a meu ver, que esses jovens vejam essas leituras como mais válidas

e interessantes e as reconheçam como leitura fruição – parecem se converterem leitura

prazerosas para eles, uma vez que provocam e convidam a uma interlocução ativa e

significativa – ou seja, não se configuram como “mero conteúdo” despejado, sem maiores

desdobramentos.

Em outro momento, Fernando, ao lembrar a leitura de um conto de Machado de

Assis, texto que julgara marcante, me “corrige” e reforça que leitura fruição, para ele, é aquela

buscada, apreciada pelos alunos, independente de ter sido proposta como tal:

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F: Ah, eu lembro daquele texto do aprofundamento, acho que do rato, né? Uma coisa assim.

P: Do rato? (…) Ah, “A causa secreta”?

F: Isso.

P: Tá. Mas daí também, em aula, né?

F: É. (…)

P: Do Machado, que o cara picota o rato. O Garcia, a Maria Luiza, e um outro que eu não lembro o

nome. (…) Foi (...) o ano passado. [No conto] (…) ele corta as patinhas do rato. Foi uma aula bem

bacana aquela. Gostei bastante. Mas aí foi como leitura mesmo obrigatória. Obrigatória, que eu

digo, assim, tava dentro da aula, estava prevista como leitura de aula. Assim, não era essa leitura

fruição.

F: É, mas, em teoria, essa aula, quem fazia era quem estava atrás.

P: Quem estava atrás, é verdade. Então, a leitura não tinha esse peso tão obrigatório pra vocês.

F: É.

Fernando insiste que a leitura não “tinha peso obrigatório”, que era partilhada por

quem a buscava – no caso, dos alunos que compareciam às aulas de aprofundamento,

atividade oferecida à tarde, fora da grade obrigatória, e frequentada, em geral, por um número

bem reduzido de alunos. Assim, como Léo havia feito, Fernando enquadra uma leitura

“oficial” como fruição, pelo prazer e interesse que o texto lhe despertara – mais ainda ele,

meu entrevistado, muda o teor dos termos e interage firmemente na entrevista, escancarando

seu “golpe” (CERTEAU, 2012) enquanto interlocutor e leitor atento, corrigindo minhas

considerações e propondo novos enquadramentos para o que eu, então, chamava de “leitura

obrigatória”. Ou seja, segundo o depoimento dos estudantes, a leitura fruição é reconhecida

por eles além do seu período oficial dos dez ou quinze primeiros minutos da aula e encontra-

se em diversos momentos e práticas várias do cotidiano escolar, comprovando o papel ativo

dos alunos no processo de apropriação do conhecimento e das práticas escolares:

O leitor não é passivo, ele opera um trabalho produtivo, ele reescreve. Altera o sentido, faz o que bem entende, distorce, reemprega, introduz variantes, deixa de lado os usos corretos. Mas ele também é transformado: encontra algo que não esperava e não sabe nunca aonde isso poderá levá-lo. (PETIT, 2008, p.28-9)

Essa observação cabe muito bem como síntese geral do que se vem observando no

projeto da leitura fruição: ao conceber leituras obrigatórias como momentos de prazer, os

alunos comprovam não ocupar o lugar de meros espectadores, mas sim de atores e de

construtores de modos de ler e ressignificar o que leram.

Analisar o espaço que a leitura fruição delimita junto a outras práticas de leitura

escolares, no contexto de uma escola de contornos mais conteudistas, também é um aspecto a

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ser considerado e que permite conhecer mais sobre seu alcance. Num trecho da conversa entre

mim e Jéssica, tivemos o seguinte diálogo:

P: Então, você acha que abrir esse espaço, que eu acho que você falou bem, é uma escola

conteudista, é uma escola ainda de moldes tradicionais, mas também é uma escola muito

preocupada com essa coisa da formação do leitor. Está no projeto pedagógico. E quando a C.

[diretora] trouxe esse projeto, a ideia era fomentar a formação de leitor, (...) através de uma outra

prática não tão tradicional, mas a ideia era um pouco essa. Você acha que isso foi positivo? Abrir

esse espaço foi positivo?

J: Com certeza! Com certeza!

P: Mesmo sem a cobrança? Porque, por exemplo, uma outra coisa que eu acho forte e você fala, é

isso: quando a gente pensa numa aula de literatura, as coisas são muito sistematizadas e são

muito voltadas, por exemplo, para o vestibular. Ali, naquele momento [da leitura fruição], não.

Naquele momento, a ideia é um pouco de uma troca, eu diria, quase toda gratuita, porque eu estou

lendo para o outro, e a gente está todo mundo ali naquela ideia de fruir (...). Mas você acha que,

mesmo assim, é válido?

J: Eu acho que, justamente por isso, é válido. Porque, o que eu vejo, cada vez mais assim, é: as

pessoas vão perdendo o gosto pela leitura. E acho que o vestibular tem uma influência muito

grande nisso. Eu acho que o vestibular tem uma influência muito grande, porque você impõe livros

que em sua grande maioria não são leituras fáceis, não são leituras simples. As pessoas não

tiveram nenhum contato intenso com leitura a sua vida inteira e, quando chegam no ensino médio,

quando chegam no vestibular, as pessoas têm que ler Machado de Assis. E nós estamos numa

escola de elite, porque essa é uma escola de elite, então, para a gente ainda não foi uma coisa tão

brusca, assim, não foi uma coisa tão absurda. Mas eu imagino uma pessoa que estudou na escola

pública, que não teve nada a vida inteira e, de repente, chega e tem que ler uma coisa dessa.

Então, realmente, eu acho que o vestibular é um desfavor para criar qualquer tipo de leitor.

Qualquer estímulo para a leitura, o vestibular é um desfavor. É um desfavor.

Numa de minhas perguntas, provoco intencionalmente Jéssica, quando digo

“mesmo assim”, ao relacionar a gratuidade e não obrigação da leitura fruição à sua

legitimidade. Assumo que se tratou de algo pensado, num momento em que, de certo modo,

assumi uma provável postura institucional, revelando a crença do senso comum, segundo a

qual apenas aquilo que será verificado, cobrado, seria visto como válido (ORDINE, 2016).

Jéssica responde de forma crítica; enfática, cita o vestibular como desfavor ao estímulo da

leitura. Em suas palavras, a crítica não é só à obrigatoriedade das leituras, mas sobretudo ao

que considera uma imposição, agravada ainda por serem cobradas obras difíceis, densas, com

as quais o leitor não tem familiaridade e nas quais não encontra, por vezes, pontos de

interesse. Tais reflexões nos fazem retomar a análise de Zilberman (2008), quando esta autora

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critica essa imposição de obras canônicas e ressalta que é preciso, pois, repensar o papel do

ensino de literatura e sua contribuição efetiva para a formação do leitor. Talvez possamos

dizer que Jéssica está pensando num percurso de leitor que não tenha contemplado a

preparação gradativa para leituras que podem ser consideradas complexas, mais exigentes e

que permitam ver mesmo a literatura canônica como oportunidade de envolvimento e de

formação pessoal oportunizada pela escola (SNYDERS, 1993).

Seguindo nosso diálogo, conversamos um pouco mais sobre as intenções e

propósitos da leitura fruição. Pergunto o que ela pensa sobre outros professores – que não os

de língua portuguesa – se ocupando da leitura fruição:

Olha, eu acho isso incrível. Primeiro, porque, primeiro leitura não... literatura e leitura não é uma

área restrita, assim. É uma área que, querendo ou não, todo mundo vai passar, porque todo mundo

tem que ler para fazer qualquer tipo de coisa que você quiser. Tem que ler símbolo de matemática,

você tem que ler tudo. E ver que o corpo docente do C. [cita o nome do colégio] tem um interesse

realmente de leitura... Cada qual a sua forma, entendeu? E tem um interesse de passar isso para

os alunos. O C. tem uma linha realmente diferente aí dos próprios colégios tradicionais, ele tem

uma linha diferente (…) que não tem como negar. (...) E você vê um professor de matemática tão

apaixonado por literatura, é uma coisa que começa a instigar as pessoas que são “exatoides”, por

exemplo. Então, a pessoa que está lá, e ela só curte matemática: "Ah, não, eu não curto ler, eu li

cinco livros na minha vida. Eu acho horrível. Chapeuzinho Vermelho e a Cinderela, e acabei por

aí". Ela ter uma pessoa que ela admira e que é um puta de um matemático, entendeu, ter uma

paixão tão grande pela leitura... Eu não sei como é, porque eu estou me colocando no lugar de

outra pessoa. Porque eu sempre tive [vontade, disposição para ler]. Então, eu não sei como que é.

Mas eu imagino que essa pessoa se sinta estimulada a procurar pela leitura, porque é uma pessoa

que tem um gosto aproximado com ela, tem uma visão de mundo aproximada, sabe? E aí você vê

o professor, porque o professor, querendo ou não, é um ícone, uma coisa que você admira, que

você se espelha, e você vê ele fazendo isso, acaba te estimulando a procurar por esse tipo de

coisa.

Jéssica assinala, portanto, o que poderia ser uma outra contribuição da leitura

fruição: a influência do professor, a força deste como modelo de leitor e também como

mediador (PETIT, 2008) – a ponto de, segundo ela, não-leitores serem influenciados a se

tornarem leitores. Ela também expressa sua admiração por um matemático que compartilha

seu amplo repertório cultural com os alunos – trata-se de uma referência a Roberto, um dos

professores mais lembrados e citados pelos alunos, quer pelas suas performances, quer pelas

escolhas de textos – piadas, filmes, músicas.

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Para Jéssica, bem como para os demais jovens entrevistados, um ponto sempre

assinalado é a perceptível “doação”, a postura adotada pelos professores na leitura fruição. Os

professores mais lembrados – e que, para minha felicidade, consegui entrevistar – são os que

liam sempre, faziam da prática um hábito (não esvaziado, mas uma ação preparada) marcante

para os alunos e que podem ser reconhecidos como ledores (SCHITTINE, 2011). Tais leituras

– algumas verdadeiras performances (ZUMTHOR, 2014) parecem refletir o envolvimento e a

crença que os professores depositam na prática, constituindo-se como mediadores

extremamente marcantes para seus alunos (PETIT, 2008; LAJOLO, 2005).

A jovem Natália também destaca a presença do professor e considera que, a partir

da figura docente, instaura-se o interesse pelo texto que era lido:

O projeto com certeza é uma proposta válida para incentivar a leitura e conhecimento dos alunos,

porque é fato que o aluno que se interessar pelo o que estiver sendo lido pelo professor, o que era

muito provável porque todos os textos eram interessantes e prendiam a nossa atenção,; [o aluno]

irá buscar mais sobre o autor em questão, procurar o livro para poder ler na íntegra ou se informar

com o professor sobre o tema abordado. Além disso, acredito que o projeto de leitura fruição traz

uma aproximação do professor com a sala, considerando que não haverá apenas o assunto da

matéria de aula como única questão que envolva os dois lados.

As opiniões de Natália reforçam, pois, alguns pontos que também aparecem em

outras entrevistas: a ideia de que a leitura fruição incentivaria os alunos, promovendo um

movimento de busca e aprofundamento dos alunos (o que, pelas entrevistas que fiz,

acontecera algumas vezes, mas não todas). Outro ponto que me parece importante na fala

dessa jovem é a ideia de a leitura fruição promover uma aproximação entre alunos e

professores, alimentando interesses mútuos entre o que ela chama de “dois lados” e

corroborando o papel fundamental do mediador como aquele que pode aproximar o jovem de

leituras outras e várias (PETIT, 2008). Essa ideia da aproximação oportunizada pela leitura

fruição é partilhada por professores como Célia. Quando peço que ela avalie, comente a

prática, a professora diz:

Pra mim, foi uma novidade. Quando a direção da escola pediu que a gente fizesse a fruição e que

escolhesse aquilo que gostava, imediatamente, eu pensei em poesia, porque é o que eu gosto.

Mas, até então, nem eu não tinha uma vida estão próxima à poesia, e aí eu tive que acabar

escolhendo a poesia (…). Quando eu comecei a procurar poesia pra eles, eu também, vamos

dizer, me aproximei mais. E à medida que eu ia lendo, eu sentia que eles gostavam, e eu gostava

muito. Acho que eles viam também o meu encantamento ao ler. (…)

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Na sequência, quando continuamos falando dos motivos pelos quais Célia se

dedicou à leitura fruição, como se davam suas escolhas e como os alunos a reconheciam como

uma professora leitora, sobretudo, de poesia, ela comenta:

C: (…) Eu acho isso tudo muito importante, mas é uma outra veia minha. Assim, uma veia mais

emocional, né, do que ficar só com a ciência.

P: Então, isso foi e tem sido a possibilidade de mostrar essa outra faceta?

C: Essa outra faceta, do professor.

Mostrar a faceta além da institucional, da pessoa que está não só por trás, mas que

é o professor ele mesmo, uma versão mais holística e mais humana, alguém que se encanta e

transmite esse encanto; alguém mais humano, menos “pessoa jurídica” e mais acessível,

talvez, eis algumas justificativas que podem ser compreendidas nas palavras de Célia,

motivações para encampar a leitura fruição. Quando a professora ressalta que vê na poesia,

sua principal escolha para leitura, a possibilidade de se aproximar, de “chegar aos alunos”, seu

dizer permite entrever muito de suas considerações sobre a prática e de como revestiu esse

momento com um toque muito particular e reconhecido por vários alunos. Mais uma vez, a

leitura fruição parece imbuída de um elemento humanizador que talvez escape ao cotidiano e

aos fazeres da sala de aula, revestindo-os dos pressupostos que podem ser ditos os mais

essenciais da literatura e, por extensão, da leitura (CANDIDO, 2004). Outra percepção a ser

citada diria respeito a esse compartilhar de textos proposta pela leitura fruição, de modo a

oportunizar espaços de pertencimento, de afinidade, apesar das diferenças (PETIT, 2008) – no

caso de Célia, ela busca na leitura de poesia uma aproximação e identificação que talvez não

se tornasse visível via o ensino de ciências.

Assim, na fala de Célia identificamos elementos afins aos depoimentos dos alunos

– no caso, a alternativa da leitura fruição enquanto canal de aproximação entre professores e

alunos. Isso foi recorrente quando entrevistei os professores: vários aspectos ressaltados pelos

alunos também lhes eram caros. Luís, professor de Química, um dos mais “novos” (em tempo

de aula no colégio) e um dos que também praticavam a leitura fruição, concorda quanto à

importância dessa experiência como possibilidade formadora, como incremento ao repertório

dos alunos:

[É papel da leitura fruição] instigá-los [os alunos] e motivá-los a serem leitores críticos sobre temas

variados em suas vidas acadêmicas, compreendendo textos, extraindo e correlacionando

informações com outras áreas do conhecimento. É um trabalho árduo e que demanda tempo, mas

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ao final, uma parte dos alunos, acredito, sente-se tocada quanto à importância da leitura em suas

vidas, principalmente aqueles que têm comprometimento e gostam dessa área de Humanas.

Nas palavras de Luís, vê-se o destaque para uma formação que se poderia dizer

acadêmica fortemente ancorada nos textos, almejando-se a ampliação do repertório – assim,

percebe-se afinidade entre a percepção do professor e de alunos, como Fernando e Bruna,

cujas impressões foram anteriormente apresentadas. Luís também enfatiza a leitura como

percurso de acesso multidisciplinar e comenta que boa parte dos alunos talvez se deixe tocar

mais por já gostarem de ciências humanas. Mesmo assim, o professor ressalta a necessidade

da variedade de textos e do tempo dedicado à tarefa. Enfatiza a questão de os alunos se

sentirem tocados por aquilo – ou seja, a leitura fruição pode ser, de fato, experiência, se

aceitarmos, como diz Bondía: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos

toca”(BONDÍA, 2002: p. 21).

Roberto, professor que se tornou quase uma referência unânime quando conversei

com os alunos sobre quem realizava a leitura fruição, também remete à possibilidade de

crescer, tocar e se sentir tocado pela arte por meio desta prática. Quando peço sua avaliação,

ele começa dizendo que sempre, ao longo de sua carreira docente, fizera leitura fruição,

apenas não tinha a roupagem dada pelo colégio e nem ele, professor, reconhecia

necessariamente a importância do que fazia:

Olha, na realidade, eu sempre fiz isso, sabe? Só que não era organizado. Não era nos dez

primeiros minutos das aulas. Porque a matemática, conta a lenda que existe, ela é uma ciência

muito rica. E ela está inserida em todos os aspectos da sociedade, inclusive no artista. Então,

sempre que acontecia, contextualmente, alguma coisa matemática que eu estava falando, que

acontecia de contar alguma coisa que estava relacionada com outras ciências, eu falava. Talvez,

isso é que tenha tornado as minhas aulas agradáveis, né. Dos alunos, espontaneamente, dizerem

que gostavam, e etcetera. Então, quando eu vim aqui no C.[colégio], pra essa nova orientação

pedagógica. Aí, pela primeira vez, houve alguma coisa orgânica. Então, era uma determinação que

nas primeiras aulas, nos dez primeiros minutos, a gente fizesse isso. Então, eu fiz uma coisa mais

organizada (...). Mas eu não deixei nas outras aulas, segunda, terceira, quarta e quinta, também,

quando, eventualmente, calhasse, fazer também algum, citar alguma coisa, ler alguma coisa fora

da matemática para os alunos (...). E também acontecia o seguinte: os alunos que tinham as

primeiras aulas comigo, às vezes, contavam para os seus irmãos, para seus colegas: "Ah, você

falou tal coisa na outra classe. Então, a gente queria que você falasse aqui também." Então, a

gente falasse aqui também. Então, falava. Lógico, eles tinham me pedido (...). Então, quer dizer

que é um projeto que eu assim que enriquece o currículo dos alunos. Quer dizer, a escola não é só

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aquele negócio, compartimentado. Não precisamos nem falar sobre isso (...). Isso daí é uma coisa

que vai só enriquecer a formação deles. Então, eu acho que é uma coisa altamente positiva.

Inicialmente, a fala de Roberto chama a atenção para a ressignificação de práticas

que ele, professor, encontrou por meio da leitura fruição. Ao contar que ele já fazia leituras no

começo e ao longo das aulas, mas que não eram feitas de forma sistemática (o que veio a

ocorrer pelo contato com a leitura fruição), Roberto reconhece sua abertura para a prática e se

identifica com ela. Ele também expressa preocupação acerca da possibilidade de haver

enriquecimento do repertório e também relata o reconhecimento dos jovens: quando os alunos

comentavam entre si, com amigos ou irmãos, as leituras, as performances, instigava-se o

desejo deles e também, com certeza, incentivava-se o professor a continuar com a leitura –

bem como a professora Adriana, cuja prática comentarei adiante. Roberto sempre fora

bastante lembrado como uma figura divertida, de voz e postura imponentes (a professora Bia

se refere a ele comentando que ele tinha “um vozeirão”). Pode-se supor que, além da

justificativa quase comum acerca da ampliação de repertório, os professores estivessem

preocupados também em incentivar a leitura de seus alunos – o cuidado de Bia e de Roberto,

por exemplo, quando esmiúçam seus processos de escolha e de organização,98 permite

entrever que, mais ou além de mostrar a si e seus gostos, havia um interesse, ainda que latente

e não explicitado, de ganhar a atenção dos alunos e, quem sabe, convidá-los a ler mais e

conhecer outras manifestações artísticas.

Mesmo havendo essa percepção bastante positiva e, às vezes, bastante

entusiasmada da leitura fruição, é preciso que se diga que vários outros docentes, por motivos

diversos, desistiram ou sequer aderiram à prática. A professora Adriana, quando faz sua

análise acerca da leitura fruição, pontua;

Bom, eu acho que o projeto só não funcionou melhor porque a adesão foi baixa. A adesão foi

pequena, não há um grupo de professores como um todo que faz as leituras fruição às sete da

manhã, ou que se coloca nesse lugar de leitor para os alunos. Então, eu acho que, nesse sentido,

o projeto fracassa porque ele não consegue essa ampla adesão dos profissionais que não se

sentem confortáveis de ocupar esse lugar. Por outro lado, na minha experiência, eu acho que é um

sucesso, porque os alunos são muito receptivos às leituras, porque eles gostam do momento da

leitura. E como os meus colegas deixaram de fazer a leitura às sete da manhã, eu passei a fazer a

leitura em todas as salas que eu entro, independente do horário. O projeto previa que todos os

professores que dessem a primeira aula da manhã fizessem a leitura. No entanto, meus colegas,

98 Analisarei a questão das escolhas a seguir, neste capítulo.

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nem todos aderiram. E exatamente por sentir esse vazio em relação à experiência que os alunos

poderiam ter, eu passei a ler em todas as aulas independente do horário em que eu entro. Então,

hoje eu consigo fazer a leitura nos nonos anos, nos oitavos anos e nos sextos anos, que são as

turmas em que eu dou aula.

Adriana pode ser considerada uma entusiasta do projeto e em várias entrevistas

era referida como uma das professora que sempre lia para suas turmas. Reconhecendo que

vários colegas abandonaram a prática e considerando que esta seria crucial para a formação

dos alunos enquanto leitores, ela, a exemplo do professor Roberto, aplica sua tática e passa a

fazer a leitura no começo de todas as suas aulas, ampliando os combinados iniciais e

imprimindo sua marca ao projeto. Além disso, em sua opinião, os alunos parecem apreciar

esse momento, recebem bem os textos, mais um motivo para que ela persista e dê

continuidade à leitura fruição.

Foi perceptível, portanto, que, entre os alunos entrevistados, nem todos

reconheciam a leitura fruição como algo institucional, amplo e que deveria ser praticado por

todos os professores. Conforme mencionado antes, vários jovens como Bruna, ponderaram

que julgavam ser uma escolha pessoal minha – e não algo maior, um projeto da escola:

P: E você reconhece isso[a leitura fruição] como um projeto do colégio? Assim, de todas as séries?

Eu tô te perguntando isso, porque eu já tive um retorno de pessoas dizendo pra mim que achavam

que era uma coisa minha e, na verdade, não é. É uma coisa do colégio. Isso ficava claro pra você

ou não.

B: No começo sim. Várias pessoas faziam. O Roberto levava muitas coisas engraçadas, inclusive

umas notícias cômicas. Só que depois não. No ensino médio, só você fazia isso. No começo,

muitos professores faziam. No começo, A. [professora de História do EFII] lia], vários liam coisas

diferentes, mas, no Ensino Médio, só você. Ainda mais terceiro ano.

P: Entendi. Então é mais intenso no fundamental II. A Bia, eu sei que é uma professora que

sempre faz, o Roberto...

B: É, no Fundamental vários professores faziam. Aí no Médio foi sumindo, sabe... Sei lá, só quando

algum professor via alguma coisa interessante. Aí ele trazia pra gente.

Jéssica confirma essa ideia de que a leitura fruição ia se escasseando no Ensino

Médio:

No Ensino Médio, poucas pessoas faziam. No Ensino Médio, só você fazia.

Ser reconhecida pela leitura fruição provocava-me reações contraditórias: por um

lado, ficava feliz e lisonjeada ao ser identificada com esta prática; por outro, ficava um pouco

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decepcionada ao perceber que poucos colegas (ou nenhum, segundo alguns alunos, no caso do

3o ano do Ensino Médio) seguiam com ela. No capítulo dois deste trabalho, comentei que a

adesão dos professores à prática não era total. Dentre os vários motivos apresentados, a

escassez do tempo é a mais citada: tendo em vista as demandas diversas, como os exames

vestibulares, no caso dos alunos do Ensino Médio, em especial, do 3o ano, o calendário

imprimia pressão, impunha conteúdos e não haveria brechas para que se lesse – ainda mais,

uma leitura solta e sem avaliação. Nas falas dos alunos, como transcrevi anteriormente,

aparecem referências à rotina pesada do Ensino Médio, o que deixava pouco (ou nenhum)

tempo para outras atividades e leituras além daquelas previstas e indicadas pela escola. Talvez

isso explique por que nem todos os professores (ou apenas alguns) tenham permanecidos fiéis

à prática.

Considerando ainda esse aspecto temporal, que, quando citado, tinha relação com

as obrigações, responsabilidades e, por vezes, pressões e opressões, parece-me interessante

comentar que vários jovens se referiram à leitura fruição como um momento de deleite no

sentido de descanso da rotina, de leveza, uma boa forma para começar o dia, conforme

comenta a ex-aluna Renata:

P: Era bom de ler assim, começando.

R: Exatamente, de manhã, assim, pra começar o dia. É bom.

P: Então, na sua avaliação, foi importante, valeu a pena?

R: Foi, foi. Acho que pra começar bem a aula, nesse sentido, foi ótimo.

Além de Renata, Bruna é outra ex-aluna que via na leitura fruição algo como

instantes de refrigério:

B: Ah, eu acho bacana, porque é antes de você entrar num assunto totalmente diferente. Um coisa

mais lenta, sabe, que você não tem que parar pra pensar e anotar, muita coisa, sabe. Acho que é

um momento bom, porque quebra a rotina. Não só porque você mostra algo diferente, mas porque

é um momento antes de começar. Então, você lê num momento antes de começar uma série de

coisas que vão fixar nosso pensamento, sabe? Também é bom porque, imagina, você começa

numa aula e depois você faz a leitura, acho que quebraria um pouco e não no sentido bom, sabe,

porque daí a gente já taria focado numa coisa, então, do nada, vem uma coisa diferente. É bom,

porque antes da aula, sei lá, ninguém tá muito focado, todo mundo tá num momento meio que se

preparando pra estudar. Então, achei interessante. (…) Até porque deixa o ambiente mais leve,

sabe, é um jeito diferente...

P: Quebra um pouco da tensão do ambiente.

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B: É, das preocupações do estudo, da escola. Então, tem uma coisa diferente que a gente pode

respirar um pouco.

Nesses comentários de Bruna, percebe-se como a leitura fruição configura-se

como experiência que toca pela leveza e uma desaceleração positiva da rotina escolar – ou

seja, um momento em que a produção e eficácia não estão em pauta, mas sim destaca-se a arte

ela mesma e o convite à apreciação descompromissada (ORDINE, 2016) – entendida,

portanto, como um percurso mais suave que nem por isso deixa de ser impactante. Para

muitos, o que seria um momento inútil torna-se, na verdade, uma oportunidade de conhecer,

de se aproximar da arte – e, assim, o inútil confirma-se fundamental (ORDINE, 2016) e ainda

reveste de um nova atmosfera o cotidiano de obrigações e demandas escolares – Bruna diz

que se podia respirar na brecha proposta pela fruição. Talvez não seja exagero sugerir que a

leitura fruição arejava a sala de aula e também as relações entre leitores, obras e escola,

professores e alunos.

4.3. Escolhas para fruição: a supremacia da literatura

Em geral, segui um roteiro semelhante para as entrevistas dos ex-alunos e dos

professores. Porém, havia obviamente diferenças – estas ligadas, em especial, aos papéis e

posturas assumidas pelos leitores no configurar da prática. Para os professores, eu perguntava

como as escolhas dos textos eram feitas, que critérios eles consideravam para optar por um ou

outro texto e autor. Além de dizer respeito diretamente aos professores, pensar a dinâmica das

escolhas parece ter sido relevante também aos alunos. Davi, um dos jovens que eu sempre

percebera muito atento às leituras, comentou:

Eu sempre me senti muito envolvido ao perceber que os professores escolhiam textos a dedo para

ler para minha classe. Sempre prestava atenção para entender o porquê da escolha.

Na fala deste jovem, chama-me a atenção seu interesse pelo processo de escolha:

ele buscava entender o que motivava os professores a levar um texto e não outro. Parece-me

que, segundo suas palavras, ele se sentia valorizado (além de envolvido), porque os

professores tinham esse esforço da escolha, da preparação da leitura e Davi entendia que

deveria haver ali, portanto, intenções, objetivos – afinal, ele escolhe dizer que os textos eram

escolhidos “a dedo”, o que mostra que ele percebia o cuidado, a atenção dos professores ao

preparar aquelas leituras. Então, que critérios pautavam a seleção de textos e de outras

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produções artísticas como filmes e músicas a serem partilhados no momento da leitura

fruição? Como cada docente fazia suas escolhas? Esta foi uma questão que fiz aos professores

entrevistados.

Quando conversei com Célia, ela ressaltou sua preferência pela poesia, sua ligação

com esse gênero, justificando sua opção:

Eu apresentava sempre o autor, falava. Cada ano eu escolhia um. Às vezes, eu repetia. Fernando

Pessoa, foram dois anos. Não tinha como ser menos que isso. Esse ano eu fiz o Drummond, fiz o

Mário Prata. Então, assim, e algumas esporádicas (...). Então, vamos dizer, a gente se aproximou

emocionalmente, porque a minha matéria, dar aula de ciências, é uma coisa meio técnica (...). A

gente vai pro laboratório, elabora hipótese, faz experimento. É tudo muito exato. E a poesia tira um

pouco isso. Então, pra mim foi uma vivência, está sendo uma vivência muito interessante.

Célia faz questão de destacar que a poesia representa um contraponto em relação à

sua disciplina – em vez da técnica, a vivência de algo, segundo ela, mais sensível, daquilo que

toca mais diretamente o âmbito pessoal. Quando peço que ela explique um pouco mais essa

opção, ela relembra, emocionada, seu percurso pessoal como aluna e leitura:

Então. Todo professor tem um professor [risos]. Quando eu estudei no Estado, Fabi, o Estado já

estava bastante decadente. Minha formação toda foi no Estado. Mas, na quinta série, na época,

era quinta série, no ginásio, eu tive um professor (…), professor Vanderlei. E ele gostava demais

de poesia, e ele (...) pedia que a gente escolhesse um tema (…).. Um tema, não, uma poesia

pequena. E a gente tinha que recitar na aula dele. Só que era declamar. Então, toda aula, ele

chamava alguns alunos. (…) Só que era uma coisa muito formal. A gente tinha que levantar e tinha

que falar algum trecho. E ele deixava, assim, eu não vou lembrar direito os autores, mas eram

coisas assim bem pequenas, eram trechos pequenos. Foi o meu primeiro contato. (...) Esse

professor só me deu aula na quinta série. Depois mudaram. Eram outros professores. Não teve

mais isso. Mas aí, eu comecei, porque como a gente tinha que procurar poesia pra ler, e (…) o

meu irmão mais velho sempre foi um grande estimulador na minha vida de leitura, então, eu

comecei a ter contato. Aí eu comecei a gostar de poesia. Aí era uma coisa minha, né. Então, eu

lembro que na adolescência eu lia muito o Neruda. Eu gostava. E a gente trocava presentes,

assim, entre as amigas. Eram sempre livros de poesia. Então, começou aí, assim, a minha paixão

pela poesia. (...) eu fui dar aula, eu nunca usei. E com mais de vinte anos de magistério que eu

começo a usar.

Ao recuperar sua história como leitora, o porquê da escolha de poemas, Célia

busca explicações nas memórias de sua trajetória escolar. Seu dizer é introduzido pelo

destaque ao papel do mediador: “Todo professor tem um professor”. Ela traz à tona o episódio

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do professor que fazia os alunos declamarem poemas – situação cercada por muita

formalidade, mas que nem por isso lhe foi menos significativa. Célia atribui um valor positivo

à experiência, pois esta, juntamente à influência do irmão, promoveu sua aproximação com

poetas e obras, a ponto de reconhecer a integração dessas leituras à sua individualidade

quando reconhece ser “uma coisa sua” - e por ser tão pessoal constitui sua escolha99. Quando,

na sequência, pergunto sobre os autores que ela escolhe e por que privilegia, por exemplo,

Fernando Pessoa,100 a professora explica:

(...) Então, como eu falei, eu sou a mais nova dos irmãos, e o meu irmão, ele sempre me

presenteou com livros, né. E Fernando Pessoa, eu ouvia falar. Eu pouco estudei Fernando Pessoa

quando eu fiz o colegial. Pouco. Naquela época também que eu fiz vestibular, na década de

oitenta, os vestibulares também eram muito mais... eram bem diferentes de hoje. Mas foi meu

irmão. Um livrinho - é pocket que chama? (…)Ele e minha cunhada (...) me emprestam muitos

livros. Me dão livros e me emprestam também. Então, quando eu vou na casa deles, eu escolho, e

fico um ano com o livro e depois devolvo. Então, tanto, assim, o Fernando Pessoa, ou mesmo o

Drummond, que eu tive mais contato na adolescência. O Drummond, eu estudei mais. Acho que na

época, eles ensinavam mais, né, aquilo na minha formação. Neruda também. Depois você me

apresentou Leminski (risos). Leminski pra eles, eu escolho muito pra ler, por causa da idade deles.

E porque também eu preciso me apropriar mais, porque ele é bom pra mim. Ainda não para as

crianças. Eu acho (...) Leminski é uma leitura mais minha. É uma coisa mais pessoal, (...) ele me

desconstrói (risos). Então, e assim, foi isso. Eu acho que por livros mesmo, que eu ganhei, por

emprestar livros do meu irmão, foi assim que eu fui conhecendo.

Célia reconhece, em seu dizer, em suas escolhas de professora, a aluna que foi, e

busca revistar obras que não conheceu tanto (Fernando Pessoa) e outras com que tem mais

familiaridade – no caso, Drummond. Mas há também espaço para a aprendizagem e para o

enriquecimento pessoal, dela, Célia, que busca ler novos autores. Certa vez, dei-lhe de

presente um livro de Paulo Leminski. E ela o converteu em uma escolha para os alunos –

opção que parece corajosa, pois confessa se sentir “desconstruída” pelos textos do poeta

curitibano. O depoimento de Célia é permeado de muita emoção, mas também de muito

compromisso com o que julga serem textos de qualidade: textos literários consagrados. Não

se assusta com autores e obras que poderiam fazer parte, por exemplo, daquele cânone já

citado pela ex-aluna Jéssica, formado por livros cuja leitura seria mais densa e complexa.

99 Ressalto que, na seção anterior, quando transcrevi um trecho do depoimento de Célia, destaquei que sua

avaliação positiva acerca da leitura fruição se relacionava fortemente à possibilidade de aproximação pessoal dos alunos que a professora percebia ser possível via essa prática.

100 Entre os alunos, Célia é muito lembrada como a professora que sempre leva Fernando Pessoa para a leitura fruição – referência que muito a lisonjeia e que se tornou uma “marca registrada” da professora.

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Mais que a seriedade, uma fisionomia austera, para Célia – bem como para Adriana, Roberto

e Bia – a leitura literária oferece-se como alternativa para crescimento pessoal e intelectual,

concepção que se apoia no entendimento de que o texto literário é capaz de humanizar

(CANDIDO, 2004) e ampliar horizontes e relações, como confirma Zilberman:

A leitura estimula o diálogo, por meio do qual se trocam experiências e confrontam-se gostos. Portanto, não se trata de uma atividade egocêntrica, se bem que, no começo, exercida solitariamente; depois, aproxima as pessoas e coloca-as em situação de igualdade, pois todos estão capacitados a ela. Em certo sentido, a leitura revela outro ângulo educativo da literatura: o texto artístico talvez não ensine nada, nem se pretenda a isso; mas seu consumo induz a algumas práticas socializantes, que, estimuladas, mostram-se democráticas, porque igualitárias. (ZILBERMAN, 2008, p. 24)

Acredito que mesmo não reconhecendo explicitamente esse potencial do texto

literário como agregador, os professores estimavam o valor artístico, histórico de obras e

autores e por isso escolhiam partilhar, por exemplo, textos que julgavam clássicos, referências

obrigatórias de cultura – o que se soma à preocupação em instigar a aproximação dos alunos

com autores e obras – cuidado perceptível na fala de Célia, por exemplo. A partir dessas

considerações, proponho-me, então, a discutir um aspecto que me parece instigante na leitura

fruição: a presença maciça da literatura na leitura fruição – escolha privilegiada que me levou

a considerar leitura fruição como sinônimo de leitura literária na maior parte dos casos. Há,

nas escolhas de Célia, por exemplo, forte presença do cânone: Fernando Pessoa integra a lista

de autores comumente estudados (o que não significa necessariamente lidos – e bem lidos) na

escola, em especial, no Ensino Médio. Além dele, a professora também cita Drummond, outro

nome consagrado da poesia brasileira. Há também o espaço para o não-canônico, como

Neruda e um autor de fronteira, como seria o caso de Leminski, o qual, até muito

recentemente era citado quando se falava, nas aulas de literatura, sobre poesia marginal e que,

há pouco tempo, por conta da publicação de sua obra poética completa, pela Companhia das

Letras, em 2013, tornou-se mais presente e conhecido no ambiente escolar. Os textos

canônicos marcam presença em várias leituras da trajetória de Célia e se fazem lembrados e

apreciados pelos alunos – questionando a visão de muitos sobre a ideia de que a leitura dos

“clássicos” é algo fadado ao fracasso. Numa passagem da entrevista que fiz com Fernando e

Léo, citada neste capítulo em seção anterior,101 os garotos recordaram de uma aula em que

lemos, eu e eles, um conto de Machado de Assis – e se referem a esse texto quando lhes

perguntei sobre alguma leitura que julgassem marcante.

101 Ver trecho da entrevista nas pp. 187-188.

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A opção pela literatura, em especial, dos grande autores e clássicos, também é

característica de Adriana. Sobre suas escolhas, ela disse:

De fato, se eu fosse pensar profissionalmente, noventa por cento da leitura que eu faço [na leitura

fruição] é uma leitura literária. Mas eu não, eu não sinto que eles vejam que é mais do mesmo,

pelo fato de a gente já ler tanto nas aulas de português, pelo fato de eu ser parceira privilegiada

deles nesse diálogo de formação literária. E de a gente ter um carga de leitura extensa ao longo do

ano. Eu não vejo como mais do mesmo. Eles, acho que, certamente, eles conseguem separar

como duas modalidades diferentes de atos de ler, né, assim, de modos de ler. Então, quando eu

leio um texto, seja o texto do material didático, ou sejam dos livros escolhidos como leitura

obrigatória, dos sete que eles têm, e quando eu leio a leitura fruição, eles, eu acho que eles

enxergam duas personas diferentes. E eu acho que o fato de alguns outros professores fazerem

também essa leitura, ajuda também isso. Acho que se eu fosse a única professora a ler, talvez isso

misturasse mais. No caso do Médio, como lá eu dou gramática, eu não trabalho com textos

literários, eles também conseguem fazer essa distinção. Fica pra eles mais claro que essa leitura

ela está num outro lugar de leitura, num outro espaço de leitura, então acho que eles não fazem

essa relação direta. "A Adriana escolhe textos literários, porque ela é professora de literatura."

Muito também em função dos meus colegas. Então, a professora de ciências lê textos literários pra

eles também, a professora de geografia lê, então, nesse sentido isso acaba auxiliando.

As escolhas de Adriana variam, mas, em geral, se mantêm no campo do literário, e

ela reconhece que essa leitura tem “lugar privilegiado” - e que não é o mesmo lugar dos textos

lidos em aula, dos livros obrigatórios, das atividades previstas pela rotina escolar. Tal

diferenciação, segundo a professora, é reconhecida pelos alunos, que sabem distinguir esses

diferentes momentos de leitura. Talvez esse outro lugar diga respeito à possibilidade de

aproximação e de integração com o texto, ao invés do distanciamento e da alteridade que, às

vezes, ainda que de modo não desejável, se estabeleça nas aulas de literatura mais

tradicionais. Uma vez que não há cobranças e provas, alunos e professoras podem se deixar

tocar e definir um lugar mais democrático de apreciação do texto (ZILBERMAN, 2008).

Adriana ainda se reconhece como parceira privilegiada no espaço instaurado pela leitura

fruição – talvez uma possibilidade de resgatar um encanto por vezes perdido ou minimizado

em relação à literatura e transformar esse contato em experiência (BONDÍA, 2002). Adriana

também ressalta a importância dos professores de outras disciplinas lerem literatura –

inclusive ela faz referência direta à Célia, a professora que lê Fernando Pessoa, Paulo

Leminski e outros (poetas, preferencialmente) – destaque que a ex-aluna Jéssica também fará,

como mostrarei mais adiante. Esse papel do professor enquanto leitor de literatura confirma-

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se, então, basilar para que o gosto literário seja fomentado e para que outras alternativas de

leitura se mostrem aos alunos (MAGNANI, 1989). Trata-se, então, de nós, professores

acreditarmos na influência possível e no poder “trans-formador” da leitura literária, conforme

bem analisou Magnani (1989), assumindo um certo protagonismo nesse campo e nesse

aspecto da formação acadêmica e cidadã dos alunos.

Adriana ainda ressaltou, ao comentar como faz suas escolhas, o indissociável

elemento subjetivo e também circunstancial:

(…) Isso [a escolha dos textos] depende muito acho que do momento, do que a gente está lendo.

Eu acho que é uma escolha muito pessoal, né. Então, acho que em momentos que, por exemplo,

em que eu estou mais numa postura mais política, eu escolho textos que tenham uma vertente

mais política, ou quando eu estou mais envolvida com a literatura infantil, eu acabo trazendo textos

de literatura infantil, ou quando eu descubro um texto que tem impacto muito grande sobre mim, eu

vou e compartilho com eles. (...) Nesse aspecto, a leitura fruição é mais legal porque está mais

relacionada ao próprio momento de vida do profissional e o modo como ele está encarando a

leitura naquele momento.

Ao reconhecer esse elemento subjetivo que reflete, na escolha, o momento vivido,

Adriana confirma a inextricável presença das experiências pessoais para escolha do texto.

Para ela, a literatura configura-se como uma espécie de reflexo próprio, mas também de

oportunidade, por exemplo, para discussão, ainda que indireta, de questões políticas e sociais,

configurando-se, então, como uma escolha diretamente ligada a aspectos de formação pessoal

e cidadã (CANDIDO, 2004).

A professora Adriana também faz considerações que me parecem preciosas acerca

desse espaço privilegiado que a leitura fruição oferece quando se foca na literatura. Durante

nossa conversa, quando comentei que, na leitura fruição, haveria um olhar para a literatura

poderia ser considerado privilegiado, Adriana disse:

(…) Acho que esse projeto é interessante, porque ele abre um novo espaço para esse contato

literário que não é esse espaço sistemático e que visa a uma aferição à uma avaliação de leitura,

mesmo que essa avaliação transgrida os moldes tradicionais (...), ou uma ficha de leitura, ou uma

prova de livro, etcetera. Então, a gente tem, hoje, uma preocupação muito grande com outros

níveis de aferição, mas abre um espaço que é esse espaço (...) de um compartilhamento sem a

necessidade da aferição (...). A leitura por si. Então, que não substitui, assim, a preocupação das

estratégias de leitura com a densidade da leitura, etcetera, mas que possibilita um outro contato

com a literatura que eu também acho que é muito legal e interessante. Eu sei que tem vários

teóricos que acham que não, mas vivendo (...) como professor, eu acredito que sim, que é muito

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interessante. Não como substituto (...) a um trabalho sistemático de formação literária, mas como

um trabalho paralelo a esse contato com o texto literário.

A professora considera que a leitura fruição contribui para a formação do leitor,

que é uma prática que pode aproximar o aluno de obras e leituras, sendo mais uma alternativa

para provocar o gosto e estreitar laços entre os jovens e a literatura. Em sua fala, há também

uma interessante ressalva: como professora de língua portuguesa, especializada em literatura,

Adriana reconhece que, embora válida, a leitura fruição em si não substitui um trabalho

sistemático com a leitura, que pressupõe, por exemplo, debates mais densos, atividades mais

direcionadas a aspectos linguísticos e temáticos dos textos. Entretanto, por ser uma outra

possibilidade, um outro caminho para se achegar à literatura, a leitura fruição afigura-se

válida e pode ser profícua – eu diria, até surpreendente como a própria Adriana comenta

quando fala de algumas reações dos alunos:

(…) Tem algumas reações que são super inusitadas. Tem alguns textos que você acha que eles

vão gostar bastante e, simplesmente, passam batido. Mas teve uma reação esse ano com alguns

contos do Grimm que eu achei muito interessante. Tem um conto dos irmãos Grimm, em que as

crianças brincam de açougueiro. É um conto, uma história cumulativa, porque as personagens vão

morrendo sucessivamente. É uma família em que as crianças começam a brincar de açougueiro,

um irmão mata o outro porque não entende a questão das fronteiras entre a ficção e a realidade e,

aí, a mãe desesperada larga uma criança que está tomando banho pra acudir. Chega lá, fica

revoltada e mata o filho (…) E, (…) quando volta, o terceiro filho morreu afogado na banheira. Aí,

ela, em desespero, se suicida. E quando o marido chega, em desespero, morre de tristeza. E eles

ficaram revoltadíssimos com a histórias. E eles fizeram comentários assim: "Mas que história é

essa? Porque isso é um absurdo, etcetera e tal!" E "Por que que é uma história tão curta?" Então,

assim, eles reclamam das histórias muito curtas que, a princípio, não tem um fechamento. Eles

estão muito viciados: "Ah, cadê a continuação?" Eles estão muito viciados na ideia de que a

história tem que ter a continuação, de que as histórias têm que ter um desfecho (…) que resolva

(…) . Então, as narrativas em suspenso, pra eles, causam reações, assim, eles não se conformam.

Teve uma outra história também dos irmãos Grimm dessa outra coletânea que é interessante

porque também é uma história muito curta e que o final fica em suspenso. E eles assim: "Mas cadê

o enredo? Onde está o enredo?" Vários alunos me questionavam assim: "Mas isso não é uma

história! Isso não tem um enredo. A gente quer um enredo!" E aí isso virou uma piada para os

próximos, porque, assim, aí, toda vez que eu entrava, eles: "Mas hoje você vai ler uma com

enredo, né?" Então, eles tem essas reações assim que eu acho que tem a ver com a formação

mesmo deles como leitor e com a, menos com as histórias que nós lemos de maneira obrigatória

com eles, e mais com as histórias que eles escolhem por vontade própria (…) . Então, eles estão

muito acostumados a histórias que sejam, do ponto de vista narrativo, palatáveis, no sentido de

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que vão garantir pra eles, todas as lacunas de um tempo passado. Na verdade, é isso. E que as

leituras que a gente faz na escola os desafiam exatamente a perceber que um texto literário não

diz tudo e que, portanto, tem que ter esse encontro do leitor com o texto. Então, eles têm esse tipo

de reação (...). Ele se emocionam, às vezes, profundamente, com os textos. Chegam a chorar em

alguns momentos com alguns textos. E dão risada com alguns textos. E renegam alguns textos,

(…) do tipo: "Não gostei desse texto. Esse texto não é legal. Porque que esse texto é literatura se

não tem enredo, se não tem a história?".

Na descrição feita por Adriana, as reações dos alunos ao texto literário

compreendem uma ampla gama de expressões: da revolta pelo enredo que não parece enredo,

pelo final aberto, sem solução definitiva (rompendo com a expectativa dos finais que

resolvem problemas e tendem aos encerramentos felizes, talvez) e também a surpresa (ou até

choque) diante de uma história que, sendo um conto de fadas, não poderia ser tão violenta.

Nessas reações esboçam-se interessantes ideias sobre o que seria literatura – especialmente

esse gênero, o conto de fadas, considerado como literatura infantil – e o que seria aceitável ou

não em tais narrativas, segundo esses jovens leitores. Ao esboçar tais expectativas, os alunos

reproduzem e reafirmam critérios que muitas vezes são ensinados e endossados pela escola –

mas não só por ela, também pela mídia, pelo cinema e também pelo próprio mercado

editorial. Também é notável o fato de, mesmo se tratando de uma leitura não obrigatória, os

alunos aplicarem ao texto em questão as categorias desenvolvidas nas aulas regulares –

enredo e desfecho, por exemplo. Isso pode sugerir que houve uma incorporação crítica das

habilidades e competências de análise literária trabalhadas na escola e, ainda que não

percebam ou não tenham ciência, os alunos transferem tais critérios e categorias para avaliar e

apreciar os textos lidos pela professora. Acredito que tal exemplo nos mostra como a leitura

fruição pode acompanhar outras práticas escolares e auxiliar tanto na formação do repertório,

como também na consolidação e confrontação de saberes escolares: em contato com os contos

dos irmãos Grimm, os alunos põem em xeque seus conhecimentos e questionam aqueles

textos, comprovando seu potencial crítico e sua postura ativa de leitores. Tal relato, pela

palavras da professora Adriana, põe em relevo diversos aspectos da função formativa

proporcionada pelas práticas escolares que buscam contribuir no processo de apropriação da

cultura. (SNYDERS, 1993; CHARTIER, 1999 e 2002; CANDIDO, 2004).

Ainda comentando a importância que pode assumir a prática da leitura fruição,

Adriana justifica:

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(…) eu acho que pode contribuir. Pelo interesse inclusive (...). Então, (…) pra ainda ficar nos

irmãos Grimm, porque é o livro que atualmente eu estou lendo, (...) vários alunos que passam a se

interessar e que vão à livraria e que pedem para os pais comprarem livros. Ou seja, não é apenas:

"A Adriana leu, eu gostei, e ponto." Não, é um livro que eu quero ter pra mim. E aí, eu quero crer

que se ele quer ter pra ele é porque ele também vai buscar essa leitura. Ele vai fazendo essa

leitura. Isso não só pros Grimm. Eu li Dalton Trevisan. O Ensino Médio e vários alunos também

foram buscar a leitura do Dalton Trevisan pelos seus próprios caminhos. Então, o professor como

um veículo possibilitador do contato do aluno com certos autores que nem sempre a gente

consegue colocar no espaço institucional, no sentido desse trabalho mais sistemático e avaliativo,

porque a gente tem que fazer escolhas, e escolher alguns significa deixar outros tantos de fora.

Então, nesse sentido a leitura fruição é interessante, porque aí o aluno toma contato com aquele

autor e diz: "Nossa, eu acho que eu gosto e vou ler outras coisas desse autor".

Nesse trecho de seu depoimento, Adriana pontua questões que me parecem

fundamentais e que também fazem parte de minhas crenças, quando se trata de leitura fruição.

Ler determinada obra e incentivar o aluno a buscá-la, aproximar-se dela e conhecer mais

daquela história, do autor, são intenções que me parecem sempre presentes quando

apresentamos determinado texto, quando privilegiamos este ou aquele autor. Adriana destaca

o papel do professor como “possibilitador do contato dos alunos com certos autores” - em

outras palavras, mediador fundamental, conforme assinala Petit (2009), pois por meio desse

leitor privilegiado que é o professor, o aluno se sente convidado, quiça mais à vontade e

incitado a conhecer outras leituras. E como Adriana comenta, o trabalho institucional

pressupõe escolhas – que, por vezes, coincidem com o cânone e o reafirmam, porque,

enquanto professores, consideramos que há um repertório a ser acessado e conhecido

principalmente por meio da escola (SNYDERS, 1993). Contudo, por vezes, outras tantas

obras e autores não têm espaço para serem apresentados. Daí a leitura fruição com uma

oportunidade de ampliação de repertório – possibilidade que os ex-alunos reconhecem.

Mesmo que não haja um trabalho mais sistemático, acredito que os alunos, sobretudo os

maiores, os quais já têm certa maturidade e desenvolveram perspectivas críticas acerca do

texto literário, podem se aproximar e criar suas hipóteses de análise e leitura de modo bem

sucedido – ou seja, o trabalho feito com leituras obrigatórias em sala de aula, parece-me, pode

impactar essas outras leituras, ainda que isso não seja mensurável. Ou, simplesmente, a leitura

pode convidar o aluno a ler mais e isso já me parece um benefício.

Sobre suas escolhas para leitura fruição, os outros professores entrevistados

também apresentam processos de escolha peculiares. Bia e Roberto, por exemplo, além de

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lerem literatura, de modo que se diria convencional,102 mostram-se adeptos de performances

que chamam a atenção como encenações.103

Bia, uma professora muito entusiasta do que poderíamos chamar de recursos

multimídia, não só lia em voz alta, mas exibia filmes, compartilhava canções e anúncios

publicitários – além de, em certas ocasiões, arriscar-se a fazer algo mais, como cantar. Do

mesmo modo que os outros professores, uma de suas preocupações principais era oferecer

autores e obras novos, incrementar o repertório cultural dos alunos:

(…) Acabei investindo um tempo,(...) porque eu já fiz várias coisas na leitura fruição, (...) a proposta

era mostrar um pouco quem é você, o que você lê, qual é o seu universo cultural, pelo menos, eu

entendi assim e se aproximar dos alunos. Então, eu já li desde livros que eu lia na idade deles, li

crônicas que eu achava que eles iam gostar, até pra ter uma adequação de tempo, né? Cantei,

passei trecho de filme, eu não fiquei só lendo obras determinadas, né? Li e li coisas variadas, li

coisas que eu gostava, poemas que eu lia na época deles, li Maiakóvski, li Gabriel Garcia Márquez,

li Pablo Neruda e você acaba mostrando pra eles outras coisas, você fala [de] coisas que

contribuíram pra sua formação. Eu gosto muito do Edgar Allan Poe, então eu li muito, tenho obras

completas, então lia pra eles. (…) Cheguei no Poe eu tinha, era uns dez anos, pelos meus irmãos

mais velhos. Tinha uma revista na época chamada “Cripta” e eu acabei, pela revista em

quadrinhos, indo procurar o autor e cheguei nos livros, né? E eu gosto muito de literatura

fantástica. Aí li Borges, li um monte de coisa pra eles.

Nas palavras da professora ecoa a ideia de que a leitura fruição, para ela, permitia

mostrar-se um pouco mais – pessoal e culturalmente, bem como ler autores consagrados. Há

também uma preocupação estética: Bia escolhe autores reconhecidos pela sua qualidade

literária e leva-os para a leitura fruição, numa iniciativa que me parece voltada a fomentar

esses gosto literário pautado nela, professora-leitora (MAGNANI, 1989). A partir, então,

desse dar a ler, Bia procura o lugar da afinidade, da aproximação e do enriquecimento do

repertório – um repertório requintado, note-se, o que pode confirmar a ideia de que espaços

facultados pela escola podem incrementar o conhecimento de mundo em especial no que se

refere ao conhecimento de obras consideradas importantes como seriam Poe e Borges

(SNYDERS, 1993). Quando lhe pergunto quais critérios ela usava para escolher seus textos,

comenta:

102 Chamo de leitura convencional, nesse caso, aquela feita em voz alta pelo professor. Nesse caso,

geralmente, o texto lido encontrava-se em algum suporte impresso (livro, folha avulsa, revista) e os alunos acompanhavam ouvindo.

103 Analisarei mais detalhadamente essa preferência por leituras mais “performáticas” mais adiante neste capítulo, em seção específica.

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É, eu sempre tenho guardado no meu computador um arquivo(...). Se eu vejo uma imagem bonita,

eu salvo, se eu vejo um vídeo legal, que tenha a ver, que tenha um time certo de aula (as coisas

não podem ser muito longas ainda mais nessa faixa etária em que eles estão constantemente

mudando de lugar), então eu vou salvando. Então, eu tenho uma página, na página do colégio,

minhas aulas, minhas avaliações, calendário, eu tenho de sites, que é imagem, link, tem a ver mais

com geografia, curiosidades, atualidades. E aí quando pediram que a gente fizesse essa leitura

fruição, eu passei a fazer um de leitura fruição também. Então, às vezes eu esquecia de levar o

livro que eu tinha preparado, eu falava, ah, vou mostrar esse. Mas eu chegava e o livro? Ah, ficou.

Então, eu tenho arquivo de coisas que eu acho legais mostrar, por exemplo, falei sobre Andy

Warhol, mesmo não sendo professora de artes, tem coisas que eu gosto, de quadros, né, de

Portinari, de coisas que eles estão estudando em geografia também. Então eu sempre ia salvando

esses arquivos e cantei “A Banda” pra eles, mesmo não sendo muito afinada, torturando logo sete

e dez da manhã, né, mas é divertido. Então eu achava que tinha que ser uma coisa leve, (...) que

tenha um time certo se não, se cai na rotina pode virar, se vira obrigação, pode ficar chato, então

tinha que ser divertido e tinha que ser variado.

Ao rememorar sua organização, Bia deixa entrever, no seu depoimento, o seu

cuidado com planejamento e preparação e também com a leveza do momento. Considerando

que se tratava de um momento breve (a leitura fruição, conforme orientações da coordenação,

deveria ocupar dez ou quinze minutos da primeira aula), ela buscava textos breves ou

selecionava partes, bem como outras composições artísticas como músicas – concebendo,

então, um leitor interessado em suportes e gêneros diversos, além do impresso (GARCÍA

CANCLINI, 2008):

Por isso que às vezes eu não lia um livro inteiro pra eles. Eu preferia ler um trecho que ficava a

critério deles, se eles gostassem, eles iriam atrás de ver. Mesma coisa com filme, eu não costumo

passar o filme inteiro. Eu passo um trecho que eu comento, que tenha a ver com o que eu estou

trabalhando naquele momento e falo, gente, um filme tem duas horas, duas horas e meia, muita

gente se desinteressa e aí parece que você tá querendo enrolar a aula em vez de trabalhar. Então

eu passo um trecho e se se interessar, vai atrás. E o livro foi a mesma coisa. Muitas vezes eu lia

crônicas, né, escolhia crônicas que dava mais certo e quando era um romance ou poema, que

você lia o poema na aula, depois ele vai atrás do autor se gostar. E com livros mais longos eu

também lia só um trecho, né, e depois eles ou... foram poucas vezes que eu continuei, eu lia um

trecho, daí na outra aula eu comentava, às vezes nem eu lembrava mais onde tinha parado, né, aí

continuava lendo. (…) Então, [se] fosse muito longo já começa meio que perder o fio da meada.

Bia também relata o cuidado ao escolher textos que pudessem agradar aos alunos,

bem como teve atenção à questão da duração dessas leituras. Quando pergunto a ela o que

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escolhia para ler, se mesclava textos/produções de que gostava a outros que julgasse que

poderiam agradar aos jovens, responde:

Sim, eu procurava mesclar. Eu peguei muita coisa que eu tenho, a gente tem uma biblioteca

grande aqui em casa, tem um quarto de hóspedes que é a biblioteca e meu marido lê muito, né. Eu

tenho muita influência dele. Aí eu pegava coisas que estão lá na estante, que eu gostava, que eu

planejava ler pra eles, mas também tem aqueles meus arquivos que eram coisas que eu buscava

na internet, que eu achava que eles iam gostar. Muitas vezes eu já tinha lido, ia atrás e salvava.

Nesses arquivos, eu ia variando assim, um vídeo, um poema, uma crônica, uma canção, sabe, ia

procurando fazer um arquivo variado com o objetivo mesmo de não ficar enfadonho, de não cair na

mesmice, de ficar interessante pra eles.

Eis outra preocupação externalizada por Bia: a de não enfadar os alunos, não “cair

na mesmice” - talvez a mesmice dos conteúdos e produções já apresentados comumente pela

escola, talvez conteúdos amplamente divulgados pela mídia. Bia, como os demais professores

entrevistados, se mostra engajada na ideia de que a leitura fruição precisa levar além,

proporcionar o contato com obras outras, extravasar a formação escolar tradicionalmente

reconhecida (embora, sendo uma prática escolar, se constitua, então, como formação escolar).

Talvez por conta desse cuidado em fugir à mesmice, Bia também tenha se

mostrado aberta a fazer do momento da leitura oportunidades diferenciadas de performance

(ZUMTHOR, 2014), concebendo que a leitura fruição não se restrinja apenas ao texto em si,

mas também da encenação, da disposição para partilhar com o outro.

Roberto, o mais experiente dos professores que entrevistei, também gosta de

leituras menos convencionais. Quando fui entrevistá-lo, ele começou nossa conversa dizendo

tinha lembrado naquela manhã, antes de nosso encontro, que gostava de contar histórias para

vizinhos e amigos, quando era criança e que as pessoas sempre diziam que ele era um bom

contador/orador – qualidade também reconhecida por vários alunos que entrevistei (Fernando,

Heitor e Giovane, por exemplo). Ele também fez questão de enfatizar que tinha pastas e pastas

com textos (de jornal, principalmente) que ia reunindo e que usava para fazer leitura fruição.

Sobre suas escolhas, ele diz:

É, em termos de leitura, no geral, eu lia sempre poesia (...). Eu pegava os maiores poetas da nossa

língua e lia algum poema pra eles. Eu lia Camões, por exemplo, sobre, o belíssimo soneto de

Camões. Li um trecho d'Os Lusíadas, né? E assim, vai. Carlos Drummond, João Cabral, Manoel

Bandeira. Então, a leitura era praticamente só poesia. Agora, eu procurava, então, também, falar

muito de música popular brasileira, porque a gente tem diversas efemérides, né, por exemplo,

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Lupicínio Rodrigues, há pouco tempo, cem anos; o Jamelão, que é um cantor que eles não

conhecem, né? Então, eu ponho uma música do Jamelão cantando, e chamava a atenção (...).

Tinha uma voz totalmente diferente e que, mais de noventa anos, etcetera. Então, a música

popular brasileira, leitura de poesia e as piadas foram o meu forte. Então, todo mundo sempre diz

que eu sei contar bem uma piada, né. Parece que é verdade porque todo mundo gosta de ouvir e

rir. Então, eu contava sempre alguma piada que eles poderiam ouvir e poderiam entender, (...).

Histórias em quadrinhos. Eu trazia muitas tiras. Tirava xerox e distribuía pra eles. Se divertiam

bastante, né? Então, era basicamente isso. Nas primeiras aulas, das primeiras turmas, do sexto

ano, como eu lia o nome de todos eles e falava um pouquinho o que significa, quando apareceu a

Isadora? Você sabe quem foi Isadora? A sua família deu o nome por causa da Isadora adulta, né.

A maioria era por causa da Isadora adulta mesmo. Daí eu falava para os alunos quem foi a Isadora

adulta, (...), etcetera, tal. E tinha lá, uns nomes um pouco mais difíceis. Então, "Por que que você é

chamado de Adjudei, né? Então, Adjudei... Então daí, ele explicou da onde que a família tirou, uma

sílaba de cada um dos nomes dos parentes e formou Adjudei, né. Então, é o único Adjudei que

existe no mundo. E daí, o quê que fazia? Eu pegava os artigos de jornal, porque eu tenho uma

hemeroteca bastante extensa em casa. Agora, não precisa mais, né, porque você vai na internet,

você pega o arquivo do jornal (...)... Eu até pedi a primeira página da folha do dia em que eu nasci

(...). Eles me mandaram.

No repertório de Roberto conviviam, além dos clássicos da literatura como

Camões, João Cabral, canções que podem ser consideradas preciosidades da música popular

brasileira – obras e cantores desconhecidos (Jamelão, Paulo Vanzolini), por vezes, dos alunos,

além de efemérides, piadas e curiosidades como a referida questão dos nomes. Mais uma vez,

parece que o professor Roberto, bem como Bia, Adriana e Célia considera valioso o espaço

oportunizado pela leitura fruição, escolhendo, então, para esse momento, obras literárias e

artísticas consagradas.

Confirma-se, portanto, que a literatura, ao menos para os professores que

entrevistei, se configurava como a principal escolha. Parece-me que, além (e talvez até mais)

do que a carga artística em si, esses docentes reconhecem o potencial humanizador da

literatura, como portadora da nossa cultura e o alcance que tal potencial pode ter (CANDIDO,

2004), bem como o caráter agregador do texto literário (PETIT, 2008 e 2009). Percebendo o

espaço e o tempo da leitura fruição como oportunidade, escolheram o que lhes aprazia, o que

era bonito, independente de relação com sua disciplina (ou até por se distanciar dela, como

permite entrever o depoimento de Célia). Não havia, para eles, portanto, a necessidade de

conexão direta ou mesmo rememoração à disciplina que ministravam – o mais importante era

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variar o repertório e ampliar conhecimentos dos alunos, bem como proporcionar um contato

prazeroso com o texto em questão.

Mesmo assim, eventualmente, poderia haver sim alguma leitura que se

aproximasse ou que instigasse os alunos a questionamentos relacionados a conteúdos

específicos daquela disciplina, como o professor Roberto comentou:

P: O senhor tinha, muitas vezes, essa preocupação, por exemplo, da Monalisa, de que o senhor

falou agora, (…) é uma coisa belíssima a gente perceber essa proporção do quadro. (…) O senhor

tinha essa preocupação na escolha dos textos, ou dos quadros?

R: Ah, sim.

P: De fazer essa conexão com a disciplina do senhor?

R: Sim, sempre que possível, mas não exclusivamente. Às vezes, se não tivesse nada a ver com

matemática (...)... Eu me lembro dos poemas do Manuel Bandeira, por exemplo(...). Não tinha nada

a ver com matemática, mas é muito bonito, né? Então, eu citava. E eles não ficavam perguntando

se isso daí tinha a ver com matemática,(...) mas eles sabiam que sempre que um aluno

perguntasse: "Pra quê que serve isso em matemática?" Eu nunca deixei de responder essa

pergunta pra eles(...). E com contexto, tudo, etcetera. "Você está aprendendo isso porque isso é

importante em tal aspecto da ciência, tal" (…).

Roberto reconhece que, por vezes, buscava aproximar a leitura fruição de sua

disciplina (a matemática), mas não exclusivamente. Ao citar Manuel Bandeira, outro autor

canônico da poesia brasileira, ele nos faz lembrar que, às vezes, o fundamental é apreciar e

nessa fruição sem finalidade expressa, sem utilidade aparente, é que o essencial se manifesta

como ele diz: “(...) mas é muito bonito, né?”. Aproveitar, fruir e encontrar nisso algo valioso

para sua construção pessoal , reconhecendo que o essencial é, por vezes, o inútil (ORDINE,

2016).

O único professor entrevistado que não explicita escolhas literárias é Luís. Ao

comentar como seleciona os textos, ele nos relata:

Começo pelo que gosto; quando vejo que determinados assuntos podem se comunicar (a aula do

dia com a leitura) - escolho com foco nesse sentido. Minha pretensão é que os alunos tomem gosto

pela leitura independente do tema escolhido.

Luís, bem como os demais docentes entrevistados, ressalta a importância do gosto

pessoal para escolha das leituras. Ele, como a professora Bia, explicitam a preocupação em

despertar o interesse dos alunos. Em outro trecho da entrevista, comenta, ao analisar a

recepção dos alunos aos textos que lê:

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Sinto a responsabilidade de ler algo com ênfase para que não seja uma simples leitura para

“passar o tempo” ou para cumprir uma rotina estabelecida pela escola. Os impactos percebidos se

dão quando temas muitos atuais relativos às Ciências são estabelecidos com áreas que envolvem

nosso cotidiano como, por exemplo, substâncias usadas em medicina, compostos químicos

empregados na melhoria de vestimentas, tecnologias que melhoram os dispositivos eletrônicos (os

quais eles estão constantemente em contato – celulares e computadores), entre outros assuntos.

Nesse trecho de seu depoimento, Luís enfatiza que o interesse dos alunos se dá,

por vezes, pela conexão estabelecida entre as temáticas dos textos e conteúdos científicos

relacionados ao cotidiano dos alunos – desse modo, o professor tem como um dos critérios de

escolha a conexão entre leitura e aula, buscando o momento da leitura fruição como

oportunidade para aproximar os alunos não só de repertório variado, mas dos conteúdos de

sua disciplina. Acredito que se constitui muito válida essa diversidade de leituras que traz, por

exemplo, textos de divulgação científica, incitando os alunos a ter mais atenção não só às

aulas, mas à rotina fora da escola, de modo, talvez, a ter mais atenção a fatos que seriam

vistos como banais – o que poderia fomentar um espírito crítico voltado, por exemplo, para

questões científicas.

Entretanto, analisando as entrevistas de professores e alunos como um todo, é

perceptível que as escolhas dos professores e as referências lembradas pelos alunos sugerem a

literatura como presença marcante e privilegiada no espaço da leitura fruição. Jéssica, jovem

que se define como leitora desde muito pequena, além de citar autores que se destacaram em

sua opinião, comenta gêneros e abordagens que a surpreenderam e lhe provocaram novas

posturas em relação à literatura:

J: Eu achei que (…), como você mesma falou, no Ensino Fundamental os professores investiam

muito mais nisso [na leitura fruição]. E eu sempre gostei bastante porque, normalmente, eu lembro

muito das aulas da Bia, que ela falava bastante de Edgar Allan Poe. Ela sempre lia antes. E Edgar

Allan Poe é coisa que as crianças, geralmente, as crianças gostam, né? Então, a gente curtia

bastante. E foi uma coisa que acabava estimulando, assim, porque muitas vezes eram leituras que

a gente não tinha, ou que a gente conhecia de nome, mas que a gente não tinha, e que a gente,

depois, acabava indo atrás. Os professores, mesmo, emprestavam livros. Lembro, repetidas vezes,

os professores emprestando livros depois da leitura. O F. [cita o professor de sociologia] também.

Ele trouxe uma vez rap, que eu achei muito legal. Então, foi bem importante nesse sentido, assim,

de ser um incentivo à leitura e sutil.(...)

P: Então, dando sequência a isso que você falou, você citou essa experiência do F. tiveram outros

momentos que alguma leitura te estimulou, te incentivou: Ah, vou ler esse autor. Vou buscar esse

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texto. Você lembra de alguma outra situação?

J: Lembro. Eu não lembro exatamente qual foi o professor, mas eu lembro que uma vez alguém

leu Augusto dos Anjos. Eu acho que talvez tenha sido o Roberto. E eu já tinha ouvido falar de

Augusto dos Anjos porque a gente estudou, e tal, mas passou por cima. Eu nunca tinha pegado

para ler. E aí eu lembro que, nessa aula, quando leram Augusto dos Anjos, eu e o Casimiro, a

gente ficou perplexo, assim: "Nossa, olha esse cara. Que ótimo (…) . Que maravilha! Que lindo!". A

gente foi atrás, assim, e a gente curtiu muito. A gente foi bem atrás. Eu lembro disso. Eu acho que

tiveram outras situações também.

Destacam-se nesse trecho do depoimento de Jéssica, as citações a textos literários

compartilhados na leitura fruição. Quando se refere a Edgar Allan Poe, comenta que é um

autor de que crianças gostam. Considero curioso esse comentário, porque Poe é um autor

complexo, requintado literariamente falando. Talvez a ideia de que seja apreciado por crianças

se justifique porque ele escreveu contos de suspense e terror – e talvez, para Jéssica, esses

gêneros atraiam a atenção dos mais jovens. Ou ainda, a observação dela torna visível a

importância do mediador na leitura. A mediação da professora pode ter sido tão adequada que,

mesmo sendo ainda uma criança, a estudante se encantou com um autor do universo adulto.

Vale ainda lembrar que o mesmo autor é citado por Heitor em sua entrevista, quando o jovem

analisa o interesse (ou não) que ele e os colegas tinham pelas obras lidas pelos professores:

Eu só sei que, por exemplo, o conto do “Barril de Amontilado”, sabe, eu lembro que eu olhava em

volta e tinha muita gente, “ah, isso de novo não”, sabe? Não sei, talvez por ser uma história mais

velha, sabe? Por se passar em outro contexto ou talvez pelo não interesse por esse tipo de

história, sabe.

Parecem-me instigantes essas considerações contrastantes sobre um mesmo autor,

mostrando que a percepção sobre a apreciação da literatura é muito etérea. Entretanto, há um

ponto em comum entre as avaliações de Jéssica e Heitor: nenhum deles manifestou elogio

exagerado da obra de Poe. Mesmo Heitor, que diz gostar, é crítico. Julgo importante ressaltar

isso, porque me parece que o espaço da leitura fruição também proporcionaria essa apreciação

crítica das obras, com direito à revisão do que a escola diz ser excelente – Poe é um clássico,

um autor considerado genial por muitos, mas os jovens entrevistados expressam com

moderação seu apreço e pontuam ainda que nem todos gostavam do norte-americano.

Retomando a fala de Jéssica, nota-se que ela também enfatiza o acesso aos livros –

professores trazendo os volumes e emprestando-os aos alunos – ou seja o contato com o

suporte como um elemento definidor e diferenciador da leitura que se faz, reforçando o que

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Chartier (1994, 2002) já destacou sobre o objeto cultural livro. Além de Edgar Allan Poe,

Jéssica também cita a experiência com Augusto dos Anjos e faz uma ressalva importante: ela

já conhecia o autor das aulas de literatura, entretanto, a partir do contato com a leitura fruição,

buscou o autor e leu, efetivamente, textos dele. Além disso, outro aspecto notável é a

referência a um professor que introduz o rap como leitura em sala de aula, fato que atrai a

atenção da então aluna. A referência a um gênero ainda marginalizado academicamente, o

rap, mostra a atenção que a aluna deu à escolha do professor, que ousou trazer para o espaço

escolar uma produção vista, muitas vezes, como menor ou menos digna de nota que outros

textos literários. Nota-se, então, que o espaço proporcionado pela leitura fruição torna, por

vezes, possível, a entrada de textos que, em condições escolares normais (o cumprimento do

programa, o currículo) talvez não fossem apresentados aos alunos. Assim, além dos clássicos

– como os autores citados por Célia, Bia e Roberto, por exemplo, há o espaço para inserções

outras, o que mostra mais liberdade e permite flexibilizar a própria noção do que é válido

enquanto literatura e rever e incrementar o cânone a partir das escolhas e preferências dos

leitores (ABREU, 2006).

Desse modo, as escolhas dos professores para a leitura fruição vão reconfigurando

o repertório de leituras e também podem modificar as impressões que os alunos têm dos

autores, clássicos/canônicos e outros que não o seriam. A experiência da leitura fruição pode,

outrossim, reconfigurar a própria concepção e renovar a abertura, a recepção dos alunos a

textos já conhecidos, porque parte do programa obrigatório – como Jéssica comenta em

relação a Augusto dos Anjos – convidando a (re)ler com mais atenção e interesse. Tais

afirmações são respaldadas pelas considerações de Jéssica, quando questiono se as impressões

que ela tinha sobre a literatura haviam se alterado a partir da leitura fruição:

J: Olha, não sei se a partir dessa leitura. Eu lembro que a minha visão de literatura mudou

bruscamente com o M. [cita o professor de literatura e filosofia que tivera por dois anos no Ensino

Médio]. Porque ele também fazia leitura fruição. Sempre. Sempre. Agora, eu lembrei disso. No

Ensino Médio eu tive leitura fruição pra caramba com o M. E foi quando as coisas mudaram pra

mim, que eu decidi que eu ia fazer isso, que eu ia estudar isso.104

P: Mas por que você acha que mudou? O que tinha na leitura dele que te fez mudar?

J: Tinha paixão, tinha abertura, entendeu? Eu sempre tive pouca abertura para parnasianismo,

pouca abertura para leituras de clássicos, pouca abertura para tudo isso. Eu sempre achei uma

besteira. Eu curtia beatniks, e o resto para mim podia ir para o inferno. E o M. foi uma pessoa que

me fez quebrar esses preconceitos, entendeu. Quebrar todos os preconceitos em relação a

104 Atualmente, a aluna cursa Estudos Literários na UNICAMP.

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algumas práticas de leitura, sabe? Nesse sentido o F. [professor de Geografia e Sociologia do

Ensino Médio] também fez isso também quando ele trouxe rap. Porque rap é uma coisa totalmente

marginalizada. Uma coisa que inclusive, já ouvi de vários professores falando tipo que: "Ai que

horror esse rap, vamos tirar isso." Então, quando um professor leva isso para a sala de aula, a

gente acaba tendo contato com essas coisas e a gente acaba quebrando também certos

preconceitos mesmo que a gente tinha, sabe? "Ai, não, Edgar Allan Poe é um chato. Augusto dos

Anjos é muito chato." Então, isso acaba quebrando, assim. Isso foi uma coisa que foi importante

nesse sentido, assim. Eu senti principalmente isso no M. Foi uma questão de antes e depois,

assim. Eu sou outra pessoa antes do M. e outra, depois. É muito isso. Uma quebra de preconceito

muito grande.

Embora não detalhe o que havia de tão especial na leitura do professor M., Jéssica

explicita a influência deste professor para que ela se dispusesse a ler os clássicos, a ver de

outro modo leituras tachadas previamente como canônicas. Talvez haja aí muito da

performance e da postura dos professores, da maneira como leem e dão a ler.105 Ao admitir a

“quebra de preconceito”, a jovem assume que se deixou influenciar e tocar pela leitura fruição

– fez dela, de fato, uma experiência (BONDÍA, 2002) e se estabeleceu algo além de um

vínculo acadêmico ou de conteúdo – provavelmente, inaugurou-se um vínculo afetivo com

essa leitura, esses escritores e esses professores.

Essa percepção de uma ligação intensa promovida pela e partir da leitura também

se manifesta nas falas de Fernando. Quando pergunto se houve alguma leitura que mais

marcante, ele cita Paul Valéry, autor que eu havia lido anos atrás, quando ele estava no Ensino

Fundamental – mais um autor não canônico – e completa:

Não lembro especificamente do conto ou do texto em si. Mas eu lembro que tinha alguns contos,

alguns textos que, dependendo do dia, acordava, tava meio chateado, até aquela pressão do 3o

ano, de conteúdo atrasado, né, tarefa pra fazer, conteúdo que eu não vi, e já tava chegando ali

próximo do vestibular, já dava uma angústia, alguns dias. Aí, algumas vezes, essa leitura parecia

combinava ali e dava algum conforto às vezes. (…) Dava um bem-estar. Fazia eu voltar mesmo,

vou me dedicar aqui, vou prestar atenção na aula.

Nessa fala, Fernando destaca um aspecto importante da literatura e da própria

leitura fruição: o de um provável afago, de uma possibilidade de conforto, mesmo em um

ambiente tão hostil como, em geral, se apresenta esse do 3o ano do Ensino Médio – postura

105 Pretendo discutir mais detalhadamente a questão da performance na leitura fruição em seção posterior

deste capítulo.

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que também foi endossada por outros entrevistados como Bruna e Sabrina. Fica enfatizada a

função terapêutica da leitura de um texto, sugerida por Petit (2009).

Quando os ex-alunos e mesmo os professores assinalam um componente afetivo

da leitura fruição, parece-me que a literatura, de certo modo, recupera ou reconfigura seu

“poder humanizador” (CANDIDO, 2004), atributo que pode ter sido perdido ou enfraquecido

por motivos diversos, desde a falta de interesse, passando pela imposição escolar, ou mesmo

pelo desconhecimento e pela falta de contato significativo ou mediação instigante entre leitor

e texto. Candido nos lembra que “As produções literárias, de todos os tipos e todos os níveis,

satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através dessa incorporação, que

enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo” (CANDIDO, 2004, p. 197). Mas para

que os textos literários atinjam as pessoas, ou melhor, para que sejam lidos e apreciados por

elas, é preciso disponibilizá-los, o que quer dizer apresentar, mostrar, compartilhar, ou seja, é

preciso a presença efetiva de um mediador que aproxime mais que materialmente,

afetivamente os alunos do texto (PETIT, 2008). Talvez, inclusive, fugindo dos julgamentos

dos estudos teóricos, que encaixam autores e obras em escolas literárias ou estéticas, cuja

existência plácida e coerente só faz sentido em manuais e livros didáticos. Ou seja, o que

pretendo sugerir é que a leitura literária, despida de rótulos, mas prenhe de sentido, seja pelo

modo como foi feita, partilhada, apresentada – como se pode notar que, por vezes, ocorreu em

momentos de leitura fruição – ,talvez seja uma leitura mais penetrante enquanto experiência.

Destaco ainda que a força dessa experiência deve muito, parece-me, à própria

força do texto literário em si e da sua apresentação despida de firulas hierárquicas, mas

cuidadosa e que oferecia aos alunos o contato mais direto e menos obrigatório com a arte. A

ex-aluna Renata enfatiza, em seu dizer, de modo muito sensível, como, para ela, a leitura

fruição recuperava uma espécie de status perdido da literatura:

É, na aula, a gente esquece muito disso, que a literatura é uma arte. Não, literatura é uma coisa

que você tem que saber pro vestibular. Tanto assim que a gente esquece [silêncio]. (…) E também

porque você tem literatura não na aula de literatura, na aula de gramática, no seu caso, de outros

professores, de outras matérias, e muitas vezes a matéria não tinha nada a ver com aquilo, então,

ajuda a reforçar que a literatura é uma arte, não tá necessariamente ligada a matérias...

O depoimento de Renata me chamou a atenção para o reconhecimento do caráter

artístico da literatura, uma apreciação que me parece muito madura e que vem criticar

abordagens por vezes típicas da escola que parecem esvaziar os textos desse aspecto primeiro

– o da elaboração linguística, artística do texto (CANDIDO, 2004). Segundo essa ex-aluna, as

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aulas convertem a literatura em objeto de ensino, algo para um uso prático (o vestibular) – o

que despiria a literatura de seu caráter fundamental: o de ser arte e de não estar ligada a nada

mais prático. Renata, no seu depoimento, esmiúça e escancara o que Ordine (2016) explica: o

útil, o que é produtivo, é a moeda do momento, o que pode permitir lucro quantificável e

aplicável diretamente à realidade imediata. Continuando nossa conversa, ela comenta como a

leitura fruição contribuiu para a percepção que ela tinha acerca da literatura:

P: Então, assim, você acha que mudou a sua impressão sobre leitura e literatura a partir dessa

experiência?

R: Sim. (…) Positivamente, justamente nesse aspecto de ser um lembrete de que a literatura foi

feita pra ser apreciada, é uma arte. Você vem pro colégio e tem que esquecer disso. Não, também

é uma forma de relaxar. Ficar em casa, pegar um livro, ler, ir atrás daquele autor (…) e relaxar, né?

(...)

Desse modo, nas palavras de Renata sugerem um forte apelo a uma espécie de

resgate do papel da literatura e também da postura do leitor: apreciar o texto pelo que ele é,

sem estar preocupado ou pressionado por demandas como as das avaliações externas. Enfim,

fruir porque é belo e por isso diz respeito diretamente à nossa humanidade (ORDINE, 2016).

Outra aluna que confirma o fortalecimento do vínculo com a literatura é Sabrina.

Ao perguntar se a leitura fruição teria alterado de alguma forma a relação dela com a

literatura, a jovem respondeu:

Não acho que mudou, mas acho que acrescentou (…), porque eu gosto de literatura, e a leitura

fruição só aumentou esse amor, entendeu? Porque você vê outras possibilidades, você percebe

que aquilo te dá um prazer. Quando você mesmo tá lendo, você sabe que gosta, quando outra

pessoa lê, você percebe o quanto é bom aquilo, entendeu? Acho que aumentou no sentido de

mais, criar uma relação mais íntima entre mim e a literatura, não sei se pra todo mundo, mas pra

mim. (…) Acho que a partir do momento que os outros professores tão fazendo leitura fruição, você

percebe que existe um contato entre você e o professor que tá lendo ainda diferente daquele que a

gente tava acostumado. Na verdade, tava acostumado com outro, mas você entendeu. Então, acho

que pode ter mudado sim. Porque (…) você cria um possibilidade de escutar diferente, entendeu?

A T.(professora de literatura e redação), às vezes, quando ela lia livros que a gente já tinha lido, ela

lia os livros de vestibular, trechos, quando era um trecho que a gente tinha lido, eu acho que eu

escutava como se fosse uma leitura fruição. Porque eu já tinha tido minha leitura crítica, então não

precisava ficar lá, não sei o quê, não sei o quê. Então, eu acho que... é um negócio que eu não

teria feito se eu já não tivesse tido um contato com isso. Porque você não tá acostumado, ninguém

lê pra você.

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Nas palavras de Sabrina, a exemplo do que Renata assinalara, se anuncia a

possibilidade de um fortalecimento da relação com o texto literário – além do cânone, além da

das provas avaliativas, Sabrina diz: “só aumentou esse amor, entendeu?”. No caso desta

jovem, muito do valor que ela atribui a essa relação mais estreita se deve ao papel do

mediador, da professora de literatura que, segundo a jovem, teria transformado leituras antes

obrigatórias (e talvez mais pesadas e menos prazerosas para alguns) em uma nova

possibilidade de apreciação. Sabrina reforça o fato de escutar os textos lidos em aula como

leitura fruição – talvez porque reconhecesse o cuidado, o preparo e a dedicação da professora.

Desse modo, ecoam em suas considerações, a caracterização do professor como ledor

(SCHITTINE, 2011): a professora T. lia para eles, tinha preparado, escolhido, e esse cuidado

expresso e reconhecido modificava, então, a relação de Sabrina com as obras, fazendo crescer,

como ela mesma nomina, seu amor pela leitura. Mais uma vez, o papel do mediador se

confirma fundamental (PETIT, 2008).

Do lado da professora mediadora, emerge a emoção pelo reconhecimento de sua

paixão pela literatura, em que ela, pessoa, é identificada pelo que lê (PETIT, 2009).

Comentando isso, Célia diz:

E é interessante que há pouco tempo foi meu aniversário (...), e os alunos de sétimo ano, (...)

escrevem cartinhas, tal. E uma aluna, a S. (…) escreveu: "A professora que é poesia".

Desse modo, para os alunos, bem como para os professores, a leitura fruição

configura-se, na maior parte das vezes, como sinônimo de leitura de textos literários. Embora

a proposta permita a leitura de qualquer texto, é notável que os professores, boa parte (se não,

na maioria das vezes), opte por textos literários – dos mais conhecidos ou canônicos.

4.4. A presença da literatura infantil na leitura fruição

Um dos pontos que se sobressaiu ao longo das entrevistas foram as referências

constantes dos ex-alunos à leitura de obras de literatura infantil. Os jovens, em seus

depoimentos, enfatizam a presença e o gosto pela literatura infantil. Não se trata (como talvez

alguns pudessem pensar) de exaltar tais livros devido à facilidade ou aparente simplicidade do

texto em detrimento de uma leitura mais detida, mais atenciosa. Na verdade, o que os jovens

destacam é justamente como a percepção desses textos, num momento em que reconhecem

como de maior maturidade, lhes parece interessante e desafiadora, como (re)descobrem textos

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conhecidos e encontram outros que, apesar do rótulo, lhes parecem atrativos. Para eles, textos

que antes passavam (quase) despercebidos ou pareciam ingênuos se tornam encantadores

devido à sua densidade, a suas características literárias – reconhecimento que, acredito, deve

muito a atividades e reflexões oportunizadas pela escola.

Classificações como a que define o que é literatura infantil ou qualquer outro

gênero/temática são determinadas por fatores diversos. Há, obviamente, que se considerar que

o texto classificado como literatura infantil seria, a princípio, aquele se reconhece como

direcionado à criança, escrito principalmente para ela e/ou ainda com temática própria a esse

público (HUNT, 2010) – sendo que essa delimitação foi construída histórica e socialmente.106

Ferreira (2006), discutindo o que seria e como se caracterizaria a literatura

infantil, cita Bourdieu, para o qual um livro sempre chega ao leitor com marcas de um sistema

de classificação implícito, sendo este um processo histórico, e que vai determinando o

direcionamento e recepção dos textos. Segundo a autora, tais marcas implícitas

são reconhecidas pelo leitor no polo da recepção. Um sistema sobre ordens de leitura e que se encontra disseminado no mundo da cultura. Classificações que procuram orientar o consumo de um determinado produto cultural. Marcas pensadas e implementadas no polo produtor de livros, que o editor, provavelmente, lança mão para a criança que faz parte desta cultura. (FERREIRA, 2006, p.150)

Fundamental, portanto, reconhecer-se o papel crucial que as editoras e o mercado,

enfim, têm na construção e delimitação desse gênero complexo que seria a literatura infantil,

por meio da edição de livros para crianças. Note-se que não se trata de sinônimos exatamente

– literatura infantil e livros para crianças – pois não necessariamente os livros para crianças

sejam sempre literários (sendo que a ideia de literatura é, por si só, deveras complexa e

controversa). Entretanto, para a análise que segue, tomarei a ideia de livro infantil como

referência para obras que seriam, a priori, representativas da literatura infantil.

Definir, pois, o que se encaixaria (ou não) ao rótulo literatura infantil parece ser

um tanto mais complicado do que sugerem etiquetas, catálogos e editores – afinal, significa

tentar entender quem são essas crianças, que valores e expectativas têm, que temas podem ou

não lhes ser dirigidos, uma gama de aspectos e elementos que desafia professores, estudiosos

e o público interessado. Daí entram em cena imagens e representações acerca da infância que

podem ser tão diversas quanto os autores e suas obras, alcançando mais ou menos sucesso.

106 Vários estudiosos se debruçaram sobre a questão da literatura infantil (e a escolarização da literatura) e seu percurso histórico – por exemplo, Arroyo (1968), Carvalho (1985), Coelho (1981 e 1995), Cadermatori (1987), Lajolo e Zilberman (1999), Zilberman (2003). O tema é dos mais caros e merece discussão aprofundada, entretanto, neste trabalho, limitarei minhas considerações acerca de alguns aspectos literários e escolares, por assim dizer.

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Outrossim, vale lembrar que não surpreende que obras as quais hoje recebem a etiqueta

“infantil” já foram, em outros tempos, simplesmente literatura (como é o caso dos contos de

fadas, para citar um exemplo bastante conhecido). O contrário também acontece: há obras que

nasceram direcionadas a crianças como Alice no País das Maravilhas ou Peter Pan e são

alçadas ao status de clássicos da literatura. Tais movimentos nos lembram do quão etéreas são

as classificações e como a escola, por vezes, sedimenta o que deveria questionar ou

problematizar.

Mesmo assim, por vezes, é preciso determinar e classificar. Então, o mercado,

muitas vezes, resolve a questão, simplificando as polêmicas – melhor que falar em literatura

infantil, decide-se por outra nomenclatura, mais apaziguadora:

Com uma classificação explícita, livros infantis, evitam-se as divergências, os confrontos. Com a adoção da expressão livros, o leitor de hoje é remetido a um determinado suporte impresso de textos, de grande valor no mercado (...). Com o termo infantil ao lado da palavra livros, termo que ganha e prevalece pleno de significação, o leitor antecipa tratar-se de textos escritos por adultos para um determinado público, o que exige um produto pensado, criado e disposto para ele. (FERREIRA, 2006, p. 141)

Muito comumente, a escola adota e endossa essa classificação. Acontece, então,

que os livros infantis – que seriam, portanto, de literatura infantil – são lidos pelas crianças do

Ensino Fundamental (principalmente do primeiro ciclo) e, à medida que crescem, os alunos

aprendem que há outros livros a serem lidos, melhores e mais adequados. Nesse ponto,

gostaria de fazer uma ressalva. Não se trata de negar que, espera-se, o leitor, em seu percurso,

vai amadurecendo e descobrindo novos horizontes de leitura, portanto, vai mudando

preferências e ampliando seu repertório – movimento tão caro à escola e à leitura fruição aqui

discutida. Contudo, incomoda-me (e penso que também a vários colegas meus) uma

classificação que limita e esvazia obras que poderiam ser lidas e relidas em movimentos não

de repetição, mas de redescoberta e encantamento, numa dança crescente em que o repertório

de leituras, a biblioteca individual de cada um só tem a ganhar, mesmo (ou principalmente)

quando reencontra uma obra já lida. Jorge Luis Borges, em sua experiência de mais reler do

que ler inéditos, dizia: "Nós mudamos incessantemente. Mas se pode afirmar também que

cada releitura de um livro e cada lembrança dessa releitura renovam o texto”. Então, por que

não reler livros conhecidos anos antes? Por que não revisitar autores e personagens e

contrastar impressões de ontem e de hoje sobre aquela história, aquele poema?

Propus-me, várias vezes, ler livros de crianças para meus alunos. Como o espaço

da leitura fruição mostrava-se aberto às escolhas mais diversas, fiz tal opção conscientemente,

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porém não sem certo receio. Tendo descoberto tardiamente a literatura infantil (na graduação

em Letras, em disciplinas com a professora Mônica Gentil), me encantara com suas

possibilidades de apreciação, análise e interpretação e já que, para mim (bem como para

vários professores e alunos), a leitura fruição era um momento de deleite e refrigério, achava

interessante partilhar obras então classificadas como infantis. Outra professora que acredito

partilhava também de ideias similares era Adriana. Conhecedora de um vasto repertório de

literatura infantil, sempre me indicava títulos e autores que, não raro, eu levava para ler aos

alunos – especialmente para os mais velhos. E ela também escolhia títulos desse gênero para

os seus.

Confesso que eu fazia isso, em parte, como experiência, no sentido de testar,

provocar e conhecer quais seriam as reações e apreciações dos maiores em relação a textos

que, por vezes, eram velhos conhecidos e que tinham sido relegados aos tempos de criança.

Para minha surpresa, eles gostavam muito – sobretudo os do Ensino Médio. Tal identificação

e apreciação, penso, se estendia além das justificativas primeiras que podemos supor: textos

aparentemente mais simples, curtos e a presença de ilustrações (embora tais motivos também

tenham sido citados). Dentre os alunos entrevistados, apenas Natália e Jéssica não citaram

nem comentaram a leitura de livros infantis. Todos os demais jovens, em algum momento,

fizeram referência à leitura de tais obras. Geralmente a referência a esses livros surgia quando

eu perguntava se houvera alguma leitura marcante, mais significativa. Começo recuperando as

impressões de Léo e Fernando, os dois primeiros ex-alunos que entrevistei. Relembrando a

leitura de um livro de imagens, levado pela professora Adriana, Léo e Fernando tentavam

recuperar entre si o título e o enredo da obra:

L: (…) E tinha o outro que era aquele negócio daquela fita vermelha. Lembra que tinha umas linhas

vermelhas, assim?

F: Hum, acho que eu estou lembrando.

L: Era um desenho em preto e branco.

F: Ah, tô ligado. Era um assim que tinha o desenho que parecia a lápis, aí tinha um pedaço de

barbante vermelho. Não era uma coisa assim? (…) Aí, uma hora, esse pedaço de barbante era um

cachecol, ou era uma corda para o cabo de guerra.

P: Não foi a Adriana que leu isso, não?

B: Foi. Ela substituiu a Fabi no final do ano.

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O livro a que os meninos se referem é Fico à espera, de Davide Cali, Serge Bloch

(tradução de Marcos Siscar), da Editora Cosac Naify (2010). A obra também fora mencionada

e bem resumida por Davi, outro jovem que entrevistei, por e-mail:

Foram diversas leituras marcantes ao longo desses 16 anos. Mas uma que se destacou foi feita no

ano passado (2014). Na iminência de prestar vestibular, com todos os nervos à flor da pele, minha

querida professora Fabi, a quem falo agora, teve a coragem, a firmeza e a delicadeza

característica de sua personalidade, de nos presentear com a leitura de um texto infantil. A história

era sobre uma linha, algo assim. Lembro que era recheado de ilustrações singelas e interessantes

e tinha um quê de divertido e melancólico.. Não vou arriscar o título do livro, ou a história, pois não

me lembro ao certo. Sei que, naquele momento, aquilo foi extremamente importante pra mim. Foi

como uma dose de motivação, pela simplicidade e pela complexidade, simultâneas, com a

capacidade de entreter e emocionar uma criança, e um pré vestibulando. Uma dose de motivação

quando sobram motivos, mas faltam motivações.

Davi, muito gentilmente, atribui a mim uma leitura que, na verdade, foi feita por

Adriana. Tal “confusão”, penso, tem uma razão de ser: como Adriana, eu também levava

livros infantis para a leitura fruição. Outra justificativa que me parece coerente para entender

esse aparente lapso de Davi é o fato de que, conforme já comentei, a leitura fruição pode ser

entendida como performance (ZUMTHOR, 2014), o que significa considerar que a

circunstância em si importa mais que o texto. Para Davi, num momento tão complexo como

era esse da véspera do vestibular, uma leitura leve significou um ato de coragem e

sensibilidade – ou seja, essa leitura o tocou e o marcou enquanto experiência (BONDÍA,

2002).

Sinto-me lisonjeada pelas considerações de Davi e acredito que elas devem ser

estendidas a Adriana, pois foi ela quem lera o livro, tendo o cuidado de mostrar cada

ilustração. Parece-me importante ressaltar que Léo, Fernando e Davi se lembram desse livro,

principalmente, pela questão das ilustrações – na verdade, é um livro predominantemente de

imagens, cuja história, uma bela metáfora da passagem do tempo, vai sendo construída por

desenhos que ilustram a vida desde o nascimento até a morte, sendo o fio vermelho a imagem

concreta da essência humana que alinhava os episódios vividos. É muito bonito notar como

Fernando se recorda de várias ilustrações e das modificações sofridas pelo fio, que compunha

elementos diferentes em cada página da obra, o que atesta sua atenção ao livro e à história

contada. Esse fio vermelho a que os garotos se referem perpassa todas as páginas do livro e

está presente em todas as ilustrações, sugerindo uma permanência suave, mas fundamental,

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algo como a essência mesma da vida nas mais diversas (e adversas) circunstâncias. Fiquei

muito sensibilizada quando eles se recordaram desse detalhe – pois, ainda que não se lembrem

do enredo em si ou do título, ficou a marca do elemento central que ajuda a construir a

metáfora da história – e construiu-se, para eles, uma das mais significativas leituras no espaço

dado à fruição. Uma leitura que remete à humanidade indelével em cada um de nós e que

retrata a beleza e também a dor de existir, constituindo-se, para mim, como um exemplo de

como a literatura nos toca como indivíduos e diz respeito diretamente a nossa vida e nossas

questões subjetivas e sociais (CANDIDO, 2004).

Tais depoimentos dão visibilidade ao quanto esses jovens leitores estão atentos e

que leituras profundas e ricas podem fazer, de modo a nos ensinar (a nós, professores) a rever

classificações e também modos de ler e pensar as práticas de leitura. Léo e Fernando, ainda

analisando a presença dos livros infantis, comentam mais adiante em nossa conversa:

L: Então, é o que eu ia falar, (...) essas [leituras] marcaram porque foram uma coisa, (...) primeiro,

totalmente diferente, como você falou, era meio inesperado que você chegasse com um livro mais

ilustrado, assim, infantil. E por ter uma experiência também que a gente se aproxima mais, ir

passando depois pra gente ir vendo as imagens.

F: Eu acho que ele também contribuía, também, reflexivamente. Eu vou repetir isso porque quando

a gente lê, quando criança, a gente ler historinha, "Ah o burro...", que eu lembro de um livro que o

meu irmão leu, O Burro e o Sal, "Ah, o burro sempre fazia um negócio pra se dar bem, tal." Aí, a

gente só lê aquilo e pronto, acabou. Vê a ilustração. Aí, depois, quando adulto, você retoma essa

leitura, às vezes, você faz uma leitura crítica (...). "Ah, por que ele fez essa atitude, tal?" Você

percebe alguns julgamentos de valor em cima do texto.

Os dizeres de Léo e Fernando indicam modos de ser leitores: atentos e críticos.

Suas falas se referem a potencial que as releituras desempenhariam. Léo enfatiza a questão da

imagem, elemento destacado por outros jovens, como Giovane, e também assinala a

proximidade do livro, que, aqui, deve ser entendida como a proximidade física em relação ao

suporte. Explicando: aprendi com Adriana (e também com a diretora e coordenadora deste

colégio em que trabalhei e com quem tive o privilégio de atuar em formações de professores)

que, ao ler um livro com ilustrações, é mister mostrá-las aos leitores e, depois, fazer o livro

circular entre eles. Então, à medida que o livro ia sendo lido, mostrávamos as páginas, para

que os alunos pudessem contemplar as ilustrações que compunham o sentido verbal. Isso era

algo muito peculiar dessas leituras de livros infantis. Sobre isso, Adriana, ao mencionar a

reação dos alunos aos suportes, comentou:

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A: (…) Quando eu levei Kindle [leitor eletrônico], não produziu nenhum tipo de reação diferente.

"Ah, a Adriana leu um texto". Mas o Kindle, por si, como suporte não gerou uma discussão. E eles

preferem o suporte livro, por conta da capa, por conta da edição, por conta dessas outras

possibilidades de leitura. Então, eu acho que eles preferem o suporte livro do que os eletrônicos.

(…) Eles ficaram muito, muito comovidos com a edição da Cosac,107 porque é uma edição

belíssima. Eles queriam ver as ilustrações. As ilustrações tinham um diálogo com a literatura de

cordel (...). As páginas lembram aquelas edições antigas de livro infantil. Elas são coloridas (...).

Amarelo, azul, rosa. As capas são muito bonitas. Então, eles queriam manusear. E eles querem

que eu leia os dois tomos. [risos]. Não vai ter tempo pra ler tanto conto de fadas. Contos

maravilhosos, né, não contos de fadas, contos maravilhosos ou domésticos. Mas eles gostam do

suporte livro (...). Porque ele permite (...).

P: É E tem a questão de eles manusearem depois, (...) permite isso também.

A: Principalmente os de literatura infantil, eles pedem pra ver. E esse específico dos Grimm,

porque, realmente, a edição é muito, muito bonita (...). Então, eles queriam ver, eles queriam

pegar. Eu tive uma grande amiga que dizia que o livro é pra pegar, (…) que você não pode deixar

os alunos só com vontade de ver de longe, porque o livro estraga. Então, se estragar, a gente

compra outro. Faz parte do jogo. Mas eles gostam. Isso é legal.

Esse contato direto, palpável, com o livro reforça o interesse pela leitura e pelo

livro enquanto objeto, recuperando elementos sensoriais, multimodais (ROJO, 2009), que, por

vezes, nas aulas de literatura do Ensino Médio são deixados em segundo plano (ou totalmente

esquecidos, sequer mencionados). O fascínio dos alunos pelos volumes coloridos, pelas

ilustrações, mostra, a meu ver, não só a curiosidade pela ilustração, mas a sábia ideia de que o

livro é um todo e como tal deve ser compreendido – com elementos verbais, textuais e

editoriais, como já enfatizado pelos estudos de Chartier (1998, 2000). Assim, o acesso visual

ao suporte, mesmo que este estivesse, num primeiro momento, nas mãos do professor, fora

marcante para estes alunos. Os alunos reconhecem, não raro, que as ilustrações são parte do

texto, compõem o sentido da história, dos poemas, dos diversos textos. Tal concepção pode

ser confirmada quando Léo, Fernando e Davi se lembram do fio vermelho do livro infantil

lido por Adriana, elemento fundamental daquela narrativa. Talvez isso nos faça pensar na

necessidade de dar mais atenção aos suportes e à leitura de imagens, abrindo mais espaços

para práticas escolares que contemplem a apreciação não só dos textos, mas dos livros em seu

todo, bem como de outras manifestações artísticas visuais (quadros, ilustrações, fotos, por

107 Adriana estava se referindo à edição dos contos dos irmãos Grimm, editada pela Cosac Naify em 2015 e

que ela estava lendo para os alunos do Ensino Médio, conforme comprovam outros trechos da entrevista transcritos neste trabalho.

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exemplo). Apropriar-se da prática leitora, conforme ressalta Chartier (1999), implica entrar

em um universo que traz gestos e modos de ler.

Voltando à questão da leitura da literatura infantil ou dos livros infantis,

surpreenderam-me as considerações críticas que os meus ex-alunos teciam acerca dessas

obras. Eram novos olhares e percepções sobre obras voltadas ao público infantil,

contemplando-as de modo que me parece maduro e inteligente. Por exemplo, quando falamos

das leituras para crianças que Adriana e eu levávamos para a sala do 3o ano do Ensino Médio,

Léo relembrou as sessões de cinema que ele e sua turma tiveram com um professor de

literatura:

(…) Isso lembra quando eu tinha sessões de filme com o M., e na última sessão dele, antes de ele

ir para os Estados Unidos, ele passou O Rei Leão. Eu assisti ao filme que fazia muitos anos que eu

não tinha assistido, e foi, (...) nossa, completamente diferente, sabe? Tem piada que eu acho que

eu não devo ter pegado direito quando eu era criança. Por exemplo, quando o Timão e o Pumba

estão olhando pro céu e daí, eles estão discutindo o que são as estrelas. E, o Pumba, tipo, ele

sempre ficava falando, "Tudo, por causa de gases, tudo mais". Aí eles estavam se perguntando o

que deviam ser as estrelas, aí ele (...): "Ah, eu acho que são bolas de gases, bola de gás no céu."

Sabe? Aí, o Timão (...): "Ah, para de ser bobo (...), não sei o quê, de falar besteira." E, no fundo, é

meio irônico isso. Eu não sei se as crianças entendem por que eu não sei com que idade fui ficar

sabendo que o céu era realmente.... Então, não sei, é outro olhar mesmo.

Léo parece surpreso com a complexidade e a densidade que um desenho infantil

pode oferecer a um leitor mais atento – e com repertório, obviamente. Ele reconhece que

aquela história que lhe parecia boba apresenta, na verdade, uma metáfora interessante e um

quê irônica acerca do conhecimento das estrelas. A reflexão de Léo chama a atenção para esse

potencial dos textos ditos infantis, sejam eles filmes ou livros. Tal riqueza é partilhada por

outros jovens como Bruna. Quando pedi que ela comentasse alguma leitura marcante, ela

respondeu:

Acho que justamente os livros infantis. Uma vez eu lembro que você começou a leitura e você

falou: “ Eu vou ler esse livro” – eu nem lembro que livro era -, eu lembro que você falou assim: “Ah,

porque a gente acha que é livro só pra criança e é livro adulto também”. E era muito inteligente, me

surpreendeu bastante também. Eu achei muito diferente. Falei, nossa, por que eu nunca li isso,

entendeu? Sabe, eu nunca procuraria um livro de poesia infantil, nossa. Fiquei pensando, nossa,

sabe, pais, professores, enfim, parentes percebem. Então, aquilo realmente me surpreendeu. Isso

realmente é inteligente, sabe. Então, acho que sim.

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As considerações de Bruna reverberam as minhas, mas não se limitam à

reprodução de meus comentários. A jovem confessa ter se surpreendido e se pergunta por que

nunca teria lido aquele texto antes, reconhecendo que não buscaria por si um livro de poesia

direcionado a princípio para crianças. O reconhecimento da obra como inteligente, digna de

atenção, ressalta a sensibilidade de Bruna e também sua abertura para essa experiência com

textos categorizados como mais adequados a crianças do que a jovens como ela. Seguindo

nossa conversa, ela comentou:

Uma prática importante porque estimula pessoas, mesmo leitores ou não, pelo menos, as pessoas

têm acesso, é bem diferente, poder conhecer um pouco mais, ter um pouco mais de cultura. Você

não leva um clássico pra ler na sala, sabe, só que eu acho que você não tem que ler só aquele tipo

de livro, isso que é bom, ler coisas diferentes. Você tira um pouco da cabeça essa história, isso

que você tava falando, sabe, vou ler só tal tipo de livro. Ou todo mundo tem que ler tal tipo de livro.

Então essa leitura é diferente e isso é importante. Tirarem isso da cabeça.

Quando diz “ler coisas diferentes”, Bruna está se referindo inclusive aos livros

para crianças, que haviam sido mencionados anteriormente. Ela reconhece essa necessidade

de revisão de classificações e a importância de uma abertura da escola, dos leitores para que

outras leituras se realizem. Acredito que nessas considerações estão implícitas ideias não só

de diversidade, mas de aceitar sugestões, rever concepções e rótulos, como dos clássicos ou

da literatura para crianças.

Outra jovem que apontou para a relevância da leitura de livros infantis foi Renata.

No final da entrevista, perguntei se tinha alguma questão ou observação e ela comentou:

(…) A conversa foi boa. Foi bom a coisa de quebrar aquela rotina chata, porque, por mais que a

gente goste de aprender, é chato.(...) Cansativo, ainda mais com toda aquela pressão de

vestibular. Quando você levava os livros infantis, principalmente no final do ano, com a pressão do

vestibular, ajuda a a acalmar os ânimos. Acho que foi importante pra formação.(...)

Renata assume que aprender é difícil, cansativo e considera a leitura fruição

oportunidade de refrigério, a qual, parece-me, é ressaltada pelo contexto de pressão em que

vivia e prenunciava o vestibular. Tal oportunidade de leveza é ressaltada na presença dos

livros infantis – e que, segundo a jovem, também foram importantes para sua formação. Seu

depoimento reforça a perspectiva de Snyders (1993) sobre o papel da escola proporcionar aos

estudantes a apreciação de uma “obra-prima”. Retomando o pensamento do autor, a função do

professor é mediar o processo de aprendizado da cultura e relacioná-la à produção de

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conhecimento: “(...) o saber pode ser convertido em fruição e as obras da cultura podem

demonstrar que o sentimento pode se encaminhar para a cultura” (SNYDERS, 1993, p. 93).

Embora não estenda suas considerações, parece-me implícito nas palavras de Renata a ideia

de que tais leituras se fazem significativas porque lhe dizem algo de modo sensível e único,

porque ela, leitora ativa e experiente, pode entretecer relações com outras leituras já feitas.

Nesse sentido, as considerações que Heitor faz podem ajudar. Quando peço que ele e Giovane

comentem a leitura dos livros infantis, ele discorreu:

H: Então, eu tava pensando nisso ontem, que era muito, eu achava muito interessante, porque não

era só a questão do texto, tinha a questão das ilustrações, eram ilustrações muito ótimas. Mas é

interessante também na questão dos livros infantis (...) como,(...) o negócio é simples, mas não é

necessariamente, sabe? E é algo que a gente já deixou pra trás, sabe? Então, a gente deixa, (...)

ah, na memória, muitas vezes não, mas deixa pra lá,(...), e aí então, entrar em contato de novo e

ver que talvez exista uma profundeza que a gente desconhecia, sabe, ou talvez um conceito

complicado passado com uma simplicidade, (...) isso é muito interessante pra ver, pra nós que já

temos um pouquinho mais de consciência dessas coisas, sabe. E, acho uma escolha muito

interessante, eu gostei.

G: Ah, foi o livro que eu mais comecei a prestar a atenção e era mais fácil, porque o livro era mais

curto, assim, então, eu conseguia prestar mais atenção, porque não era um texto corrido, assim.

Então, esse eu gostei bastante e aí tinha a ilustração também, pra prestar mais atenção. Esses

livros eu achei bem legal. Porque é uma coisa que a gente abandona, assim, e é muito bonito.

Em minha opinião, Heitor mostra-se um leitor muito maduro e com considerações

requintadas acerca das práticas e experiências de leitura. Primeiro, ele reconhece a

importância do processo de leitura em questão e da natureza multimodal da composição dos

textos: ele considera a ligação intrínseca entre texto verbal e texto visual, elogiando as

ilustrações, note-se. Mas ele aprofunda sua análise promovendo um movimento de revisão e

reconhecendo que aqueles textos aparentemente simples guardam uma densidade inesperada.

Giovane, na sequência, endossa essas ideias e, ainda que não teça análises extensas, fecha sua

fala com singeleza crítica impressionante: ele reconhece que nós, leitores, abandonamos esses

textos, os que nos disseram ser apenas para crianças. E, enfim, são bonitos. Talvez essa frase

final de Giovane guarde um duplo sentido talvez involuntário (mas os implícitos, conscientes

ou não, têm seu papel e sua importância): são leituras que podem ser belas por sua

apresentação visual, mas também pelo significado que constroem os leitores a partir delas.

Seja como for, a referência explícita refere-se à apreciação estética da obra. Esse fechamento

de Giovane me remete, mais uma vez, às ideias de Ordine (2016): o essencial na fruição de

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uma obra, na experiência com o artístico, é reconhecer esse aspecto, a beleza e isso nos torna

sensivelmente humanos, sem preocupar-se com eficácias e utilidades. Ressalto, porém, que tal

apreciação gratuita não significa que a escola não possa – e não deva – interferir para

desenvolver percepções e ampliar repertórios – aqui, nos interessa, em especial, o literário –

sobretudo, por meio da figura do professor, como assinala Magnani (1989).

Afins às ideias de Heitor e Giovane, outra jovem, Sabrina, também citou os livros

infantis como presença significativa na sua apreciação da leitura fruição. Quando perguntei a

ela por que os livros infantis tinham sido marcantes, respondeu:

S: Ah, porque eu acho é uma coisa que, quando a gente cresce, acho a gente não tem mais muito

contato com a literatura infantil. Eu que gosto de ler, não sei quem não gosta, mas eu que gosto de

ler, eu não leio livro infantil mais, nunca me passou pela cabeça. Eu acho que é um resgate.

Também eu acho que aí você descobre que a literatura infantil, na verdade, é muito inteligente.

Quando você é criança e lê a historinha, é legal, você não tem um olhar crítico sobre aquilo, como

que aquilo tá te afetando, nos formando enquanto pessoa. Depois que você cresce você como

aquilo tava ajudando você de alguma forma. Gostava muito quando cê lia os livros infantis, porque

aí você e olha e você fala, nossa, de fato. Você já consegue entender melhor.

P: É uma outra leitura, com outra bagagem.

S: É uma segunda leitura, com um olhar totalmente diferente, sabendo muito mais. Eu acho que

mesmo quando eu crescer, eu vou querer resgatar a leitura infantil, mesmo porque é muito legal.

Eu gosto.

Sabrina assume um reencontro com o texto infantil que pretendia continuar e

também expressa opinião similar à de Heitor: são textos, para ela, inteligentes, complexos,

dignos de uma releitura – um movimento importante para ela enquanto leitora. Em outro

trecho de nossa conversa, Sabrina, quando pergunto se os textos lidos no momento da leitura

fruição tinham sido significativos para sua experiência de leitora, comenta:

Eu li coisas que nunca, por exemplo, os livros infantis, que eu nunca ia olhar pra trás pra ler livro

infantil. Hoje eu já penso diferente, se eu for ler literatura infantil. E outros autores, poetas que a

gente não conhece. Entrar em contato com outros tipos de literatura, porque pouca gente lê poesia.

Eu escrevo poesia, então eu leio poesia. Só que não é um costume tão grande como ler literatura

normal.

Os comentários de Sabrina nesse trecho permitem entrever um pouco de sua

relação com a literatura – inicialmente, ela assume uma mudança de postura em relação a

livros e autores já conhecidos, uma reavaliação e uma inclinação a ler, conhecer obras que, até

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então, ela poderia considerar menos interessantes. Também é curioso perceber como ela

separa a poesia do que seria “literatura normal”, atestando uma espécie de foro privilegiado da

poesia.108 Em ambos os casos, da poesia e da literatura infantil, ela expressa um

reconhecimento e a vontade de ler mais, de estreitar laços como esses gêneros.

Acredito que esse reconhecimento dos alunos – em alguns casos, parece-me

encantamento – em relação à literatura infantil sugere que certos rótulos e limites precisam ser

constantemente revistos e repensados. E, por vezes, são as reações dos alunos às leituras

partilhadas que nos apontam tal modificação de postura e a necessária revisão de rótulos.

Como eu disse anteriormente, além de mim, optava por livros de literatura infantil, a

professora Adriana. Quando perguntei a ela se os alunos lhe pediam textos específicos, se

interferiam diretamente nas escolhas dela, ela discorre justamente sobre textos que seriam

reconhecidos como literatura infantil. Comentando que um aluno lhe advertira porque ela

substituíra a leitura dos contos dos irmãos Grimm que vinha fazendo nas últimas aulas,

Adriana contou:

Um aluno especificamente ficou muito bravo, bravo, entre aspas (...). É, ele faz uma brincadeira

porque eu abro o outro livro e ele diz: "Mas cadê o livro das fadinhas? O livro colorido? Eu quero o

livro colorido". Era um aluno de primeiro ano do Ensino Médio, então, ele estava num braveza que

era brincadeira (...). Mas, então, eles querem os Grimm, agora. Toda vez que eu trago uma outra

coisa, eles reclamam. Semana passada, a gente começou as aulas, por variados motivos, eu

resolvi ler A Morte do Leiteiro [de Carlos Drummond de Andrade] pra eles, e aí todos eles

perguntaram: "Cadê os Grimm? Cadê o livro dos contos de fadas? A gente quer os contos de

fadas." Então, de fato, esse livro acho que vai ficar marcante porque eles esperam por ele.

Semanalmente. Parece uma novela da Globo, né, ou um folhetim do século dezenove. (…) Qual

vai ser o conto da semana que vem? Qual vai ser o conto da semana que vem? Como é um livro

que tem dois tomos, então, tem uma coletânea imensa de contos, eles ficam na expectativa de

qual será a surpresa. Na verdade, porque, como os contos tratam de temas muito diversos, eles

ficam na expectativa mesmo (...). O que virá. Porque eles nunca sabem o que virá. Inclusive,

porque a construção que eles tiveram das histórias dos contos maravilhosos, mais famosos,

Chapeuzinho Vermelho, Gata Borralheira, João e Maria, Gato de Botas, etcetera e tal, não

correspondem à versão dos Grimm (…). Rapunzel (...) não corresponde à versão que eles (...) com

a que eles foram criados. Então, aí, os mais velhos discutem muito por que que o Walt Disney fez o

que fez. Assim, esse processo de higienização, de assepsia. (…) Aí eles buscam uma lógica. Isso

108 O comentário de Sabrina, para mim, relaciona-se diretamente à distinção que José Mindlin (1997)

elabora ao comentar sua ligação com a poesia em contraste a outros gêneros literários: é uma relação peculiar, um vínculo que pede cuidados e leitura especial. Snyders (1993) também comenta essa caráter peculiar da poesia, o que exige trato e mediação diferenciados para esses textos.

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é interessante. Eles buscam uma lógica que não necessariamente a história precisa ter. Inclusive

porque ela é um conto maravilhoso,(...) mas eles buscam uma lógica... Eles trazem uma chave de

interpretação que, em certa medida, não funciona para a narrativa. (…) Então, é interessante,

também, essas, esses lapsos aparentes que eles têm em termos de formação de leitor, que, (…) a

leitura fruição permite que você pegue e que, às vezes, eventualmente, em outras atividades de

leitura, passariam despercebido. Aí, a leitura fruição te serve pra refletir e buscar modos, não

necessariamente, de, naquele momento, fazer uma intervenção, mas num outro momento, você

percebendo isso, você poder fazer essa intervenção.

Nesse trecho do depoimento de Adriana, parece-me evidente o espanto partilhado

entre professora e alunos: estes, por não reconhecerem em histórias supostamente conhecidas,

não se identificarem com os valores e as representações encontradas outrora na infância; a

professora, porque surpresa com a insistência dos alunos e também com o olhar crítico e as

expectativas destes. No exercício de releitura de histórias conhecidas – que é, para muitos, o

primeiro contato com versões que poderiam ser reputadas como “originais” dos contos de

fadas –, os alunos expressam sua indignação, seu choque, buscam, segundo a professora, uma

lógica que nem sempre existe. Esse movimento dos estudantes, alimentado pelas leituras

frequentes da professora, que se vê incentivada a continuar partilhando as histórias dos irmãos

Grimm, põe em evidência seu processo de reconstrução de sentidos, de reelaboração de novas

chaves de entendimento e a (re)descoberta de interpretações e de novas reações àqueles textos

(PETIT, 2008). Segundo Adriana, é uma possibilidade de preencher lapsos, talvez não no

sentido de vazios, mas de brechas de leitura e interpretação que são deixadas soltas e que nem

sempre podem ser retomadas e trabalhadas em atividades regulares de leitura. Seria mais uma

alternativa importante dada pela leitura fruição. Ao encerrar suas considerações acerca da

apreciação que os alunos têm da leitura de contos de fadas, Adriana sintetiza uma outra

abertura facultada pelo espaço da leitura fruição:

Rever o texto num outro lugar que não seja aquele da infância. E isso é interessante.

Quando Adriana levava livros como os dos irmãos Grimm, ela tinha ciência de

que seus leitores, no caso do trecho destacado, não eram mais crianças – mas eram jovens que

se encantaram e se surpreenderam a perceber o quanto aqueles livros que lhes pareciam tão

ingênuos ofereciam enredos ricos e realistas e que, por vezes, destruíam interpretações

consolidadas que eles, jovens leitores, tinham daquelas histórias.

Muito frequentemente, talvez nós, professores dos alunos mais velhos (Ensino

Fundamental II e Ensino Médio), não pensemos em oferecer a eles textos como esses,

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classificados comumente como infantis. Vejo nisso pontos em comum com as experiências

relatadas por Petit (2013), quando a estudiosa francesa comenta que seria impossível fazer

uma lista satisfatória para crianças e jovens. Por vezes, as leituras que mais interessam aos

nossos alunos são aquelas que sequer tínhamos cogitado:

O leitor não privilegia necessariamente um livro que se adapte à sua experiência. Ao contrário, uma grande proximidade pode ser sentida como uma intromissão. E talvez sejam as palavras de um homem ou de uma mulher que tenham passado por provas distintas, às vezes em épocas antigas ou do outro lado do planeta, as que darão a esse leitor uma metáfora de onde extrairá forças. (PETIT, 2013, p. 27)

Como a autora enfatiza, cabe ao leitor escolher e construir os sentidos da obra –

afinal, a experiência da leitura mostra-se, sobretudo, transgressora:

(…) a leitura é algo que nos escapa. A vocês, editores ou mediadores; a mim, como pesquisadora. Aos professores, aos bibliotecários, aos pais, aos políticos. E inclusive aos leitores. O que podem fazer os mediadores de livros é, certamente, levar as crianças – e os adultos – a uma maior familiaridade, uma maior naturalidade na abordagem dos textos escritos. Transmitir suas paixões, suas curiosidades, e questionar sua profissão, e sua própria relação com os livros, sem ignorar seus medos. Dar às crianças e aos adolescentes a ideia de que entre todas essas obras, de hoje ou de ontem, daqui ou de outro lugar, existirão certamente algumas que saberão lhes dizer algo em particular. Propor aos leitores múltiplas ocasiões de encontros inéditos, imprevisíveis, onde o acaso tenha sua parte, esse acaso que às vezes faz as coisas tão bem. Onde também a transgressão encontrará seu lugar. (PETIT, 2013, p. 29)

No caso de nossos alunos e dos contos de fada, houve momento em que julgamos

que eles deveriam ler tal gênero: de preferência quando crianças – mas que fossem as versões

mais adocicadas ou, como diz a professora Adriana, as mais assépticas. Isso nos faz repensar

nossos próprios critérios de categorização e como vamos orientando as leituras dos nossos

alunos, bem como de que modo vamos classificando os textos literários, numa simplificação

por vezes empobrecedora que, por vezes, endossamos nas aulas e atividades propostas.

Mas os jovens leitores são sagazes e são, por vezes, mais corajosos que nós, seus

professores, empreendendo movimentos mais ousados nessa caça furtiva e sedutora que a

leitura pode representar (CERTEAU, 2012). Conforme comprovam os trechos destacados, a

percepção deles, jovens, acerca da literatura infantil vai muito além do que dizem os catálogos

editoriais ou o seu próprio mercado. A leitura partilhada, mediada pelo professor, ofertada no

momento privilegiado da fruição, faz repensar as classificações redutoras – enfim, o que há

são boas histórias, bons livros, independentemente dos rótulos. Eles se referem à riqueza da

possibilidade de releitura ou mesmo a descoberta de uma obra rica, uma vez que são leitores

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proficientes e que carregam experiências e repertórios variados – e aí podem, mais uma vez,

surpreender a nós, professores, com suas reações e sua abertura a tais obras.

Acredito que essa resposta dos alunos, essa disposição que me parece muito

franca à literatura infantil podem conduzir a um movimento de reavaliação não só dos rótulos,

mas da relação que nós, professores, temos com a literatura. Por vezes, vi-me, enquanto

professora de Ensino Médio, em postura de sisudez e suposta seriedade, valorizando

Literatura, assim, com letra maiúscula, excluindo ou sequer considerando obras belíssimas

que, mesmo por questões acadêmicas, ficam subjugadas numa espécie de segundo plano

escolar. Assim, acreditava que era preciso levar literatura de “gente grande”, literatura

reputada importante e valorizada. Ao descobrir o universo rico de obras da chamada literatura

infantil, desvelou-se, para mim, um novo mundo de leituras e de relação com os livros. E

também se revelou inexorável reconsiderar e reavaliar minhas ideias acerca da literatura ela

mesma (seja ela o que for).

Repensando as classificações (que por vezes nos distanciam das obras e da

oportunidade de lê-las e partilhá-las), encontrei considerações interessantes de uma autora

notável, Ana Maria Machado. Comentando o surgimento dos primeiros clássicos escritos

especialmente para crianças, ela retoma a ideia de que um livro bom assim o será para

qualquer leitor, independente de sua idade:

O escritor inglês C. S. Lewis, que escreveu para crianças uma série de fantasia ótima e de muito sucesso chamada As Crônicas de Nárnia(inaugurada pelo excelente O Leão, a Bruxa e o Guarda-roupa, 1950), afirmou certa vez que não vale a pena ler aos 10 anos um livro que não tenha o que dizer para quem o reler aos 50, em condições de fazer novas descobertas na releitura. Exceto livros de informação, é claro. Lewis tem toda razão, até nos exemplos gastronômicos que dá em seguida – de suco de groselha a gente só consegue gostar quando é pequeno, mas pão quentinho com manteiga e mel é sempre uma delícia, mesmo para quem amadurece e sofistica o paladar. Ele ainda faz outro comentário muito divertido: adultos que são ridicularizados por ficarem lendo livros infantis geralmente foram crianças criticadas por lerem livros de adulto. Ou seja, essas classificações não podem funcionar como barreiras, como sabe todo leitor rebelde que descobre sua vocação leitora e sai inventando seu próprio roteiro. (MACHADO, 2002, p. 112)

Ao comentar alguns clássicos infantis, Ana Maria Machado adverte que livros

como Alice no País das Maravilhas podem ser enganadores: parecem simples, com histórias

bobinhas, mas escondem em suas entrelinhas requintes de linguagem, elaboração de narrativa

e propõem metáforas inquietantes e, por vezes, bastante complexas. Os jovens que

partilharam a leitura fruição parecem concordar com tais ideias, ainda que não as tenham

formulado nesses termos. Atentos, eles buscam sentidos que extrapolam as etiquetas das capas

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dos livros, jogam com fazeres nas brechas do que propõe as leituras da escola. Como nos

lembra Ferreira: “São muitas e diversas, sutis e calculadas artimanhas na caça ao leitor. Mas

ele próprio pode também jogar com outros sistemas de classificação múltiplos no uso que faz

de tal livro, nos sentidos sempre mutáveis e tênues produzidos na prática da leitura”

(FERREIRA, 2006, p. 150).

Arrisco dizer, por fim, que as reações e os comentários dos alunos sobre a

literatura dita infantil nos remete a Drummond: não nos faria, tal classificação, pensar em algo

mutilado, que dilaceraria a criança do homem adulto? E qual o sentido de separar tão

duramente essa literatura de outras tantas? Talvez a resposta a Drummond já tenha sido dada

por Cecília Meireles (citada por Edmir Perroti), a qual, além de poeta, foi estudiosa da

literatura. Em Problemas da Literatura Infantil, a autora, ao responder a questão: “Existe uma

Literatura Infantil?”, afirma:

“Evidentemente, é tudo uma literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se considera especialmente do âmbito infantil”. Mas, se existe tal literatura, “o certo é que os livros que têm resistido ao tempo, seja na Literatura Infantil, seja na Literatura Geral, são os que possuem uma essência de verdade capaz de satisfazer a inquietação humana, por mais que os séculos passem”. Ou, ainda, “são também os que possuem qualidades de estilo irresistíveis, cativando o leitor da primeira à última página, ainda quando nada lhe transmitam de urgente ou de essencial”. Tudo isso porque “um livro de Literatura Infantil é, antes de mais nada, uma obra literária”. E esta é necessariamente dotada de uma gratuidade que, do ponto de vista do leitor, reveste-se de um caráter desinteressado do ato de leitura”. (PERROTI, 1986, p. 18)

Acredito que os alunos concordariam com Cecília Meireles – e também com

Drummond e Ana Maria Machado: literatura é literatura. Se um livro nos toca, tem qualidade

artística, proporciona a fruição estética gratuita e permite, quiçá, que nos sensibilizemos de

algum modo – ou seja, dizendo respeito às nossas experiências humanas (CANDIDO, 2004),

esse livro pode ser digno de nota. E a leitura fruição parece permitir essa variedade e essa

gratuidade, convidando à ruptura de classificações que, por vezes, a própria escola pode

reforçar e oportunizando a experiência da literatura humana e humanizadora.

4.5. Performances e modos de fazer na leitura fruição

A ideia básica da leitura fruição, em si, sempre me pareceu muito simples: ler para

o outro, numa atitude de compartilhamento, de doação de si e do texto, sobretudo,

recuperando, por vezes, práticas outras vivenciadas no ambiente familiar, como a leitura dos

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contos de fadas. A princípio, tal simplicidade consistiria em ler de um modo considerado por

muitos como convencional: muito comumente, os professores escolhiam os textos e os

levavam para a leitura em sala em suportes impressos – livros, revistas, jornais, e, por meio de

sua própria voz, partilhavam o texto (na maior parte das vezes, os alunos não tinham em mãos

o texto impresso). Nem por isso se tratava de mera oralização do texto – acredito que,

considerando o processo de escolha, preparação da leitura, o professor, além de leitor,

transformava-se em ledor (SCHITTINE, 2011), pois tinha consigo a convicção que lia aquela

obra para o outro de modo voluntário, preparado, buscando tocar seu interlocutor e aproximá-

lo do texto. Cabe ainda considerar que a leitura acontecia em momento privilegiado – no

início das aulas – e envolvia a postura do professor, o trabalho com sua voz (sendo a leitura

mais ou menos dramatizada) e a própria escolha daquele texto para determinada turma. Essa

configuração, que me parece rica e complexa, levou-me, então, a considerar a leitura fruição

como performance (ZUMTHOR, 2014). Acredito que tal consideração pode ser justificada

ainda porque, por vezes, quando perguntei aos alunos se se lembravam de textos marcantes,

por vezes, os jovens se referiam a situações de leitura em si (ou manifestações artísticas

outras) do que a textos específicos. Exemplo disso é a lembrança de Giovane:

O Roberto (...), quando ele fazia [leitura fruição], geralmente era uma piada, acho que

supostamente isso era a fruição dele. Tinha aquela dos nomes. (…) Ou quando ele tocou a gaita.

Mas ele fazia coisas no começo.

Giovane não cita um texto específico, mas se recorda das piadas e do professor

tocando gaita. Heitor, que participava da conversa, comenta, na sequência, que não sabia se

tocar gaita valeria como fruição. Ressalto que, conforme analisado anteriormente, o que se

entende como leitura fruição parece ser muito amplo. Como havia liberdade de escolha,

também havia a de performance – a ponto de professores como Bia e Roberto, por vezes,

trocarem as leituras de textos verbais por formas outras que também podem ser consideradas

leituras: a apreciação de canções, trechos de filmes, propagandas, observação de quadros –

trata-se, penso, de leituras que extrapolam o texto e buscam a leitura de outras formas de arte

de comunicação, talvez o que possamos considerar como exercícios de leitura de mundo

(FREIRE, 2009) em que, em vez de precedida, a palavra se integra e se mistura a outras

formas de expressão. Por isso considero que a leitura fruição em si é algo mais complexo do

que a leitura em voz alta – há, em jogo, o contato com o texto numa situação privilegiada; há

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o envolvimento do professor e do aluno; há a mediação da voz e, por vezes, expressões que

talvez possam ser consideradas mais teatrais.

O que me parece justificar a complexidade da leitura fruição seria, então, sua

riqueza: trata-se de uma prática de leitura que traz em si a transmutação do que seria uma

leitura convencional em leitura preparada, pensada para ser feita em voz alta, num palco

específico – ou seja, é performance que marca o aluno e o professor pela diversidade de

elementos que inclui e pelo modo como tal experiência pode marcar os

interlocutores/espectadores envolvidos (ZUMTHOR, 2014).

Um ponto, então, que se mostrou crucial à medida que eu fazia as entrevistas, foi

pensar a presença da voz como componente fundamental da leitura fruição. Tal escolha, a de

usar a voz como suporte e meio de acesso ao texto, comporta em si um valor sensorial que

modifica a relação com o texto. Petit nos chama a atenção para tal aspecto quando analisa:

Assim como as mãos que seguram uma criança, o ritmo ampara. Independentemente do aspecto riquíssimo da simbolização da linguagem, de dar forma à experiência, graças às metáforas apresentadas pelo texto (…), a leitura, particularmente de obras literárias, participará então de um nível mais próximo do sensorial e das primeiras interações que permitiram a constituição dos limites e de si mesmo. Ainda mais quando se trata de leitura em voz alta, e de poesia. (PETIT, 2009, p. 62)

Optar, pois, pela leitura em voz alta significa imprimir um ritmo – e, se

considerarmos que vários são os ledores em questão, trata-se de reconhecer várias entoações

possíveis e várias personalidades que se tornam perceptíveis no texto por meio da voz.

Significa, ainda, que há, naquele texto, algo de vívido, há um outro que se mostra e que

revela, além do texto, um pouco da sua incursão naquela obra, tornando-a pulsante, pois “A

voz vem do corpo, quer dizer, do sensível, que há em nós. A voz viva é o contrário da letra

morta e da linguagem estereotipada” , escreve a psicanalista Marie-France Castarède,

estudiosa da voz, principalmente no contexto da ópera (apud PETIT, 2009, p.63).

Apesar de reconhecido por muitos, esse aspecto sensível e sensibilizador que a

voz traz não é unânime. Nas primeiras entrevistas com ex-alunos não houve praticamente

menções a essa questão, a da leitura em voz alta em si, da importância ou não dessa

verbalização do texto, por assim dizer – confesso que mesmo eu não tinha dado à voz a

importância devida. Mas a partir das entrevistas que fiz com Heitor e Giovane, esses dois

jovens teceram comentários que me fizeram incluir o cuidado com a questão da voz como um

aspecto crucial da leitura fruição e, portanto, da pesquisa. Destaco aqui o quanto o aporte da

HO auxiliou na condução das entrevistas e do redimensionamento da pesquisa. Portelli

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(1997a, 1997b, 2001), Alberti (2004) e Amado (1995) destacam, em seus estudos, o papel da

escuta, do saber ouvir do pesquisador, que é orientado pelo outro, seu interlocutor. Os autores

sublinham esse aspecto relacional constitutivo da entrevista e que teve imenso valor no

contexto do trabalho de campo que desenvolvi.

Em certo momento de nossa conversa, quando avalia sua participação e a atenção

que dava (ou não) à leitura fruição, Heitor pondera:

H: (…) A gente tá muito acostumado a ler o texto ao invés de escutar o texto, sabe? Acho que (…)

é uma mudança na forma como o texto entra e, pra mim, acho que entra um pouco mais difícil,

sabe, quando eu tô ouvindo.

P: Por quê?

H: Não sei, acho que é por causa do costume mesmo, tô bem mais acostumado a ler. Quando eu

ouço, preciso, tipo, quando eu ouço é difícil lembrar o que já foi citado, lembrar o começo do

poema, por exemplo.

P: Se você tivesse o texto impresso, você ficava mais concentrado?

H: Um pouquinho mais concentrado, mas daí seria muito desperdício de papel. Mas mudar a forma

como eu leio no dia a dia, eu não sei dizer, acho que não.(...)

Um pouco mais à frente, Giovane endossa a opinião de Heitor quando diz:

(…) Assim, foi difícil acostumar sem o impresso, porque você fica olhando meio pro nada. Então,

começa a brisar...

Para Heitor e Giovane, a leitura fruição trazia consigo o desafio de ouvir o texto e

entendê-lo, sem contar com o apoio do texto no suporte impresso. Heitor diz acreditar que, se

lesse o impresso, estaria mais concentrado, o que mostra sua adaptação a práticas de leitura

escolares que se consagraram: leituras silenciosas, nas quais os olhos seguem as linhas no

papel, apoiando-se nelas para decifração e compreensão primeira do texto. Os dois jovens

confessam sentir dificuldade em ter atenção ao texto quando era lido em voz alta sem o

suporte impresso. Talvez essa dificuldade seja a de vários outros alunos que, por vezes, tanto

eu quanto outros professores notávamos aparentemente desatentos e desinteressados no

momento da leitura partilhada. Afinal, a proposta de ler em voz alta traz consigo algo que, à

medida que avançam os anos escolares, parece ficar em segundo plano – a leitura que

prescinde do suporte visual e que deve se fiar apenas no que se ouve. Note-se que as opiniões

de Heitor e Giovane assinalam uma perspectiva crítica à ideia poética do ritmo e da

mensagem personalizada que a leitura em voz alta ofereceria. Para eles, alunos que

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incorporaram práticas de leitura silenciosa, a leitura em voz alta poderia mais dispersar que

atrair a atenção, por vezes.

A partir dos depoimentos de Heitor e Giovane, incluí nas entrevistas questões

acerca da função da voz, sobre como a leitura em voz alta era percebida, ou seja, ainda que

um pouco tardiamente, atentei para a importância desse aspecto da leitura fruição. Outros ex-

alunos, como Jéssica, em contraste com a dificuldade expressa pelos rapazes anteriormente

citados, expressou familiaridade com a leitura partilhada em voz alta, em parte, porque

estudara em escolas em que tal prática (que ela, Jéssica, também nomeia como “leitura

partilhada” e “rodas de leitura”) era frequente. Sobre isso, a estudante comentou:

J: (…) Então, a gente já tinha facilidade, assim, de ouvir, porque a gente já tinha essa prática. Às

vezes, eu esquecia o livro, e ouvia. Ficava uma aula inteira só ouvindo a história. Eu acho que é

também uma forma de estimular a concentração do aluno, sabe, de (...) as pessoas conseguirem

prestar atenção. E é meio difícil isso, porque na hora que você chega na universidade, é uma

realidade um pouco diferente (...). Não tem nenhum carnaval, não tem nada. É a mesma situação,

o cara vai sentar numa cadeira e vai começar a falar um monte. Então, também, é uma maneira de

a gente também se policiar para começar a focar o cérebro, se concentrar.

P: Eu estou te perguntando isso, porque, às vezes, para algumas pessoas, essa coisa de leitura

em voz alta é meio desconfortante. E aí, você traz uma outra experiência, né. Como você tinha

essa vivência da outra escola, então, pra você foi sossegado lidar com isso?

J: É, eu tinha, já outra vivência mesmo. Também, na minha família, a gente já tinha... Sempre teve

muito incentivo à leitura. E com o meu pai, principalmente, ele sempre teve essa leitura

compartilhada, mesmo quando eu fiquei mais velha, não só quando eu estava aprendendo a ler. A

leitura compartilhada de artigo de jornal, meu pai sempre lia artigo de jornal e a gente ouve só, o

artigo inteiro, então, não tive dificuldade nesse sentido, assim.

Em suas reflexões, Jéssica, além de comparar a experiência de leitura fruição que

teve no colégio com práticas que julga similares de outras escolas que frequentou, analisa

ainda ecos dessa prática na universidade, no momento que vive. Para ela, ao contrário do que

expressaram Heitor e Giovane, a leitura em voz alta prende a atenção e convida à

concentração. Além disso, ela rememora experiências familiares como a leitura partilhada de

textos de jornal, feita pelo pai. Para Jéssica, a leitura em voz alta, sem o suporte impresso, não

traz problemas, ao contrário, estimula a concentração, o foco, como ela mesma diz.

Sabrina, outra ex-aluna, também vê benefícios na leitura em voz alta. Na conversa

em que tivemos, ela comentou o aspecto sensorial/sensível que as leituras em voz alta

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assumiram para ela. Quando perguntei o que ela achava da leitura fruição sendo feita desse

modo, pela voz do professor, comentou:

S: Eu acho que é mais legal do que se a gente tivesse lendo.

P: Por quê?

S: Por quê? Quase empírico isso. Porque, eu não sei, porque essa coisa de contador de histórias é

uma coisa que algumas pessoas tiveram quando crianças, mas eu nem lembro disso, de ter tido. É

muito diferente a experiência de você ler uma coisa e outra pessoa não só ler aquilo, mas tá lendo

aquilo pra você. Acho que não sei explicar.

P: Fala do seu sentimento, achei legal você ter falado essa coisa de ser empírico.

S: Porque eu não sei dar uma explicação racional. Mas é diferente, né? Eu acho que às vezes

você pode até estar prestando mais atenção. Às vezes você tá lendo e pensa em outra coisa, não

sei o quê, mas quando uma pessoa tá lendo pra você é, tipo, tá lendo pra você, entendeu? (…)

Acho que é mais interessante porque essa leitura, você não tá acostumado com ela. Eu leio as

coisas de um jeito. Quando eu leio, eu leio, eu não leio em voz alta, mas eu já sei como eu leio.

Outra pessoa lendo faz totalmente diferente do que eu leria aquela história.

S: Muda, acho que o jeito que você lê muda totalmente o sentido do texto. Se falar em peça, então,

cabô.

P: É, é verdade.

S: Mas mesmo os livros, de literatura normal, eu acho que é diferente. O objetivo que você tem

com aquela leitura. Porque quando você lia pra gente, você tinha um objetivo com aquilo, né, eu

não sei qual, mas você tinha. De alguma forma, isso transpassa. Se eu tivesse lendo, não ia

chegar, acho.

P: Então, essa coisa da leitura em voz alta, ela passa, entre coisas, pela ideia de aproximação, de

um carinho, é, de um outro olhar pra literatura.

S: É um gesto carinhoso, eu acho, você ler pra gente. Eu acho que isso por si só, só o gesto, ah,

você ler pros seus filhos pequeninhos, quando tá doente. Agora, você ler pra pessoas que são

totalmente normais, eu acho que cria uma conexão de carinho mesmo, de afeto.

P: E, no começo, porque eu acho legal você colocar desse jeito, porque a gente lê numas

situações muito específicas essa leitura em voz alta: criança, uma pessoa doente, agora, ler para

pessoas, aspas, normais, parece que não é tão habitual, ainda mais quando as pessoas são

grandes.

S: Isso não faz nenhum sentido, porque é uma coisa muito gostosa. E que faz muito bem em todos

os sentidos você ler pra uma pessoa. Eu lembro que eu lia pra minha mãe quando eu era menor,

eu queria ler coisa que eu tava lendo pra ela. Só que, com o tempo, nem passa pela minha cabeça.

Na verdade, é uma coisa que a gente podia trazer, né, pro cotidiano, porque é tudo que a gente

falou, a coisa do afeto, da outra experiência.

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Além de recuperar o elemento do ritmo e da afetividade perceptíveis na leitura em

voz alta, conforme assinalara Petit (2009), Sabrina ainda rememora outras práticas a que a

leitura fruição faz referência, como a da contação de histórias. A jovem parece reconhecer no

professor a figura do ledor. Nessa consideração, destaca-se a presença afetiva que a voz tem e

como, por meio dela, a apreciação do texto se transforma e também se realiza como algo belo

– o que me remete à sensível declaração de Mindlin, quando diz que ele e a esposa liam

(especialmente poesia) em voz alta (MINDLIN, 1997, p. 199). Tal ligação afetiva se reforça

quando Sabrina se lembra que, quando criança, lia para mãe e que foi deixando de fazer isso –

aliás, ela generaliza e sugere que deixamos, professores e alunos, de fazer isso: ler para o

outro, numa relação pessoal e afetiva marcante – percepção que retoma a ideia do leitor como

ledor (SCHITTINE, 2011) e também como mediador fundamental para que haja aproximação

e ligação com os textos lidos (PETIT, 2008). Para Sabrina, essa postura, diante e a partir do

texto, altera os sentidos e a interlocução estabelecida – ela se mostra envolvida e aprecia o

gesto e a prática. Interessante notar que, como é atriz e estuda artes cênicas, a jovem faz

referência ao texto dramático, admitindo que, nesse caso, a leitura em voz alta faz toda

diferença, reconhecendo-a como um componente importante da circulação efetiva desse

gênero textual.

Assim, Sabrina e Jéssica valorizam, pois, a ideia da leitura em voz alta. Porém,

como apresentei, outros jovens como Heitor e Giovane não expressam a mesma avaliação e

apontam para algo que merece cuidado – a dificuldade de estar parado e ouvir o outro. Talvez

pensando tanto em tal dificuldade, bem como na possibilidade de aproximação – tanto entre

obra e leitores, como dos leitores entre si – que a leitura fruição carrega em si, alguns

professores extrapolavam a leitura convencional e estabeleciam situações em que se enfatize a

leitura fruição como performance (ZUMTHOR, 2014). Parece-me, contudo, que nem sempre

é fácil diferenciar e dizer quem lia em voz alta e quem executava algo que poderia se dizer

mais performático. Pode ser que houvesse situações-limite em que a leitura ela mesma, sem

outros recursos que não a voz, alcançava sucesso, especialmente pelo elemento afetivo que se

estabelecia entre professor e aluno. Havia, outrossim, professores que se esmeravam por fazer

do momento da leitura fruição encenação, apresentação (quase) teatral, por vezes, um

verdadeiro show.

Tais encenações parecem guardar muita relação com os objetivos pessoais e

também com a personalidade dos professores. Na entrevista com a professora Bia, ela se

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lembra que, em certo dia, decidiu cantar “A Banda”, de Chico Buarque. Quando lhe perguntei

por que ela decidiu cantar ela mesma em vez de levar o CD ou um vídeo, justificou:

Porque era aquela coisa, assim, de mostrar o que eu era na idade deles. Então, era “A Banda”.

Cantei outras, mas, eu me lembro assim que eu era menina, musiquinha fácil, que você não

esquece, hoje não tenho tanta memória. Tem gente que sabe nome de música, nome de autor,

cantam trechos inteiros, né? Falo, gente, não consigo guardar nada. Mas, essas, de quando a

gente tinha a idade deles, eu lembro, né? Então, eu cantei essa. Eles adoraram, eles curtiram (…).

Eles adoram o Roberto. O Roberto com aquele vozeirão todo dele. Quando morreu o Vanzolini,109

eu queira que ele fosse cantar, mas ele falou: “Não, canto pra minha [turma]”.

Parece que o que levou Bia a cantar foi a consciência de que o espetáculo, a

encenação em si teria um peso mais considerável e marcaria de modo mais enfático os alunos.

Ou seja, a performance entendida como o todo constituído por gestos, entoação, presença e

atenção do público, enfim, todo entorno do texto e a situação de apreciação (ZUMTHOR,

2014) foram fundamentais para pensar nessa forma de compartilhamento e não outra.

Além de cantar, Bia era uma das professoras que, por vezes, substituía a leitura

em si por apresentação de vídeos ou quadros em powerpoint. Ao perguntar sobre essa opção

de variar os suportes e também os textos partilhados, a professora comenta:

B: Foi, porque eu gosto muito, né? A minha aula é, o meu plano de aula, eu não gosto de ficar

fazendo a mesma coisa muito tempo. Então, por exemplo, passo vídeo, dou a teoria, dou exercício,

volto pro powerpoint, comento alguma coisa, aí eu acho que assim a dinâmica fica melhor,

entendeu, do que você ficar toda aula dou teoria, ou toda aula dou exercício. E eu acho que essa

geração que a gente trabalha, isso é mais adequado pra sala de aula, você intercalar, a aula

perfeita nem sempre a gente consegue, porque powerpoint não funciona, a internet não rodou,

porque o som não funcionou, né? Nem sempre é isso, mas o ideal, se tudo funcionasse direitinho,

era ter, sabe, aí se muda de tática.

P: Por isso que você trouxe isso pra leitura.

B: Por isso que eu trouxe isso pra leitura. No sentido de, assim, lá é curto, cinco, dez minutos, que

sugeriram pra gente, mas variando a cada aula.

Em vários momentos de nossa conversa, Bia ressalta sua preocupação com o

tempo – não queria se estender, mas também queria que as leituras partilhadas fossem

marcantes, intensas e diversificadas. Daí se justifica sua opção pela utilização de recursos

109 Paulo Vanzolini, respeitado pesquisador, foi professor de Zoologia da USP, porém, talvez tenha sido

mais conhecido por ter sido compositor de canções como “Ronda” e “Volta por cima”. Faleceu em 28 de abril de 2013 – no dia seguinte, ocorreu a homenagem do professor Roberto, lembrada pela professora Bia.

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multimídia. Ela também reconhece o impacto da performance quando cita não só sua

experiência cantando, mas quando rememora um dos episódios, para mim, mais marcantes da

leitura fruição: o dia em que o professor Roberto cantou “Ronda” para homenagear Paulo

Vanzolini, que então havia falecido. Para mim, esse era um ponto obrigatório na entrevista

com o professor. Comecei a abordar o episódio, recuperando um pouco do contexto da leitura:

P: (…) Eu lembro de um episódio - eu até queria que o senhor comentasse um pouquinho - que foi

a morte do Paulo Vanzolini. Eu me lembro que nós estávamos na sala dos professores eu lembro

do senhor contando que o senhor cantou.

R: Cantei “Ronda” pra eles.

P: Como é que foi isso?

R: Ah, nossa, (…) primeiro, muito poucos deles conheciam “Ronda”. Eu não me lembro se algum

deles conhecia. Daí, eu contei a importância do Paulo Vanzolini para a ciência brasileira, que ele

foi um dos maiores zoólogos do mundo (...). E que ele era um boêmio. Ele foi soldado da polícia

militar na juventude. E ele fazia a ronda da Avenida Paulista. E fazendo a ronda da Avenida

Paulista, ele teve a ideia de escrever a “Ronda”, que, inclusive, era uma música que ele não

gostava muito (...). E eu falando isso para os alunos. E falei que ele teve dificuldades em gravar,

que a Inezita Barroso foi quem gravou pela primeira vez. Só que, do outro lado do disco, (...)

naquele tempo, o disco tinha só duas músicas, um lado, ela gravou “A marvada pinga”. Imagine,“A

marvada Pinga” concorrendo com “Ronda” [risos]. Então, ninguém prestou atenção na “Ronda”.

Então, foi uma música que ela ficou, ao longo dos anos, uma referência de uma música de

altíssima qualidade, tal, de muita riqueza, mas ela ficou, assim, meio escondida, meio na sombra

(...). Então, hoje, é uma glória da música popular brasileira. Eles gostavam da história da música

também. (…) Eu gosto muito de ler sobre música popular brasileira, e eu conheço bastante a

gênese dessas músicas todas (...). Eu cantei pra eles, eu mesmo, sem voz, sem condição, (...)

peguei, cheguei, e cantei a “Ronda” pra eles. Eles gostaram.

Embora diga que não “tinha condições”, Roberto era sempre lembrado pelos

alunos, no dia a dia da escola, como alguém que se poderia dizer mais literalmente

performático: ele cantava, tocava gaita, contava piadas com propriedade, enfim, assumia, por

vezes, o papel de um showman. E esse episódio em que cantou “Ronda” me é especialmente

caro, porque me lembro de como eu, professora, fiquei impressionada quando ele comentou

com os colegas na sala dos professores e também cantou um trecho. Foi impactante. E, pelos

comentários de alunos que ouvi, após a apresentação de Roberto, fora marcante também para

eles. Infelizmente, como Roberto ministrava aulas apenas para os 6os e 8os anos, não

entrevistei nenhum aluno que tenha presenciado o episódio. Contudo, ficou a impressão forte

de ter tido uma “palhinha” e daí se configurou mais concretamente para mim o que deveriam

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ser as performances desse professor, lembrado em várias das entrevistas que fiz com os

alunos.

O caso de Roberto e Bia se configuram peculiares no que se poderia chamar de

contexto da leitura fruição. Em especial, Roberto, como comentei antes, era um dos

professores mais lembrados quando eu começava a conversar com os ex-alunos. Outros

professores como eu, Adriana e Célia liam nos moldes mais convencionais, mas nem por isso

deixávamos de ser reconhecidas. Por vezes, a leitura lembrada pelos alunos era essa

convencional, sem deixar de se configurar como performance, pois incluía o texto, a voz

emocionada, a escolha do texto e o envolvimento do professor naquele tempo e espaço

configurados para que tal compartilhamento ocorresse.

4.6. Leitura fruição e (a)feições – vínculos que se estreitam

Ao terminar esse capítulo, escolhi me centrar um pouco mais nos laços pessoais

que se construíram ou se estreitaram por meio da leitura fruição. Para vários alunos que

entrevistei, essa prática de leitura permitiu conhecer não só mais autores, obras, mas também

saber um pouco mais quem eram os professores, que “pessoas físicas” existiam para além da

sala da aula e das disciplinas ministradas – tal benefício me parece digno de nota, sugerindo

que a leitura fruição é capaz de extrapolar questões acadêmicas e atingir recônditos mais

subjetivos das pessoas nela e por ela envolvidas. Os professores também confirmaram esse

estreitamento possibilitado pela partilha dos textos, confirmando a ideia de que a leitura (e,

talvez, mais ainda, ler para o outro), envolve emoção e vínculos pessoais:

Para inserir: “ “A ação de ler tem a virtude paradoxal de imprimir vigor a essa mesma vida da qual ela nos separa”, escreve José Luis Polanco. É provável que encontremos no texto as marcas do trabalho psíquico e literário realizado por um escritor mantendo-nos o mais próximo do seu corpo, de suas pulsões, das experiências sensíveis que encontrou e de seu prazer de ter podido dar-lhes uma forma simbolizada. Em eco – mas em eco difratado – o texto suscitará, em alguns leitores, não somente pensamentos, mas também emoções, potencialidades de ação, uma comunicação mais livre entre corpo e espírito. E a energia liberada, reencontrada, apropriada ocasionalmente dará força para se passar a alguma coisa, sair do lugar onde o leitor se encontrava imobilizado. (PETIT, 2009, p. 79)

Foram frequentes as referências dos alunos ao quanto se poderia conhecer os

professores e saber de suas preferências, seus interesses por meio dos textos que eram, por

vezes, apresentados, a princípio, tão desinteressadamente. Quando entrevistei Bruna e

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perguntei a opinião dela sobre a escolha livre que os professores tinham, ela adentrou o

aspecto das relações interpessoais:

Eu acho interessante porque cada um pode apresentar uma coisa, né? Não tem nenhum padrão.

(…) Sei lá, conhecer um pouco mais de cada professor, ver que cada um gosta de ler uma coisa. É

interessante ter contato com várias coisas diferentes. Quando você chegava na aula e, sei lá, lia

um livro infantil, aí chegava o Roberto, lia uma notícia de jornal. Aí chegava a Célia, lia uma poesia.

Sei lá, eram coisas muito diferentes e eram muito interessantes. Você levava vários livros

diferentes, você variava bastante. Isso era legal, porque aí a gente tinha contato com várias coisas,

a gente conhecia várias coisas e eram coisas bem diferentes do que a gente estava acostumado.

Por isso que a gente sempre prestava atenção.

Bruna elabora uma breve enumeração em que apresenta algumas escolhas

distintas de professores e ela começa essa descrição comentando que, por meio da leitura

fruição, era possível conhecer um pouco mais de cada um, sugerindo uma espécie de acesso a

facetas do professor que talvez nem sempre fossem tão explícitas. Essa opinião é

compartilhada também por Giovane:

(...) eu acho que se todos os professores fizessem, pra gente conhecer mais o professor, assim.

Você não sabe o que professor de matemática, de química, que tem uma matéria que não entra

muito opinião dele, o que que ele pensa. Então, seria legal, tipo, ter a leitura desses

professores.(...) Saber o que ele gosta de ler em casa.

Nas palavras de Giovane, ressalta-se a ideia de, por meio da leitura compartilhada,

se ter acesso a um universo mais íntimo daquela pessoa. O jovem faz ainda uma consideração

significativa a meu ver: ele reconhece que, por vezes, a disciplina ministrada não permite ou

não dá muito espaço para que o professor expresse sua subjetividade. Então, a leitura fruição

seria um canal alternativo para que essa pessoa outra se mostrasse, se desse um pouco a

conhecer. Parece-me, então, que Bruna e Giovane reconhecem que o professor em questão é,

além de mediador, uma pessoa interessante em si – o que pode impactar a relação interpessoal

e, talvez, leituras outras que esses jovens queiram fazer. Na sequência dessa conversa, Heitor,

amigo de Giovane, comentou as escolhas da professora Bia, citando novamente a leitura de

Edgar Allan Poe, feita por ela. Quando questiono o que ele, Heitor, pensava dessas escolhas

tão pessoais, ele argumentou:

H: Olha, eu acho muito legal, porque, sei lá, é entrar em contato com o professor, eu não gosto

daquele modelo antiquado, tipo, distanciamento entre professor e aluno. Acho que só se tem a

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ganhar no contato, sabe. E, enfim, acho que você também acha isso.

P: Eu acho, pelo menos, eu sempre acreditei nisso.

H: Acho que você pode continuar acreditando. É, eu acho que só se tem a ganhar nesse contato,

sei lá, eu acho interessante para o aluno que se interessa, tipo, conhecer melhor a vida, (…) os

gostos dos seus professores, sabe. Eu lembro agora que a Bia falando de Blade Runner, que é um

dos filmes preferidos dela, e ela falando da sequência final e da trilha sonora, não sei. E um dia eu

fui ver o carro dela e a trilha sonora realmente tava lá, sabe.

P: Era de verdade.

H: Era de verdade, CD, né? Aí, então, eu achei isso muito legal, porque, sei lá, às vezes a gente

prende muito o professor à matéria (...), e não é muito assim, né? Não é tanto assim(...).

Heitor destaca o papel não só de aproximação entre professor e aluno, mas de

acesso real aos gostos, aos interesses mais pessoais. Sua aparente surpresa com o CD que viu

no carro da professora atesta uma espécie de feliz encontro e descoberta alegre daquele

repertório então anunciado por Bia. Ele ainda destaca que a leitura fruição possibilitou uma

proximidade mais efetiva (e talvez afetiva), indo além do que julga ser um “modelo

antiquado”, em que aluno e professor mantêm um relacionamento mais profissional e no qual

a disciplina ministrada definiria muito quem ele, professor, seria – o que talvez queria dizer

menos diálogo efetivo e menos interação pessoal. Na sequência de nossa conversa, pedi a

opinião de Giovane e Heitor também fez observações:

G: É, então. Eu acho isso bem legal, que eu falei. Os professores, principalmente matéria tipo

matemática, química, assim, tem aula que o professor põe, assim, um comentário qualquer e você

fica sem conhecer muito o professor. A gente tem menos relacionamento com o professor, então

eu acho bem interessante esses professores fazerem também [a leitura fruição], porque,

realmente, tem esse negócio, (...) é mais legal você conhecer esse professor. O Roberto, eu

lembro, (...) falava dos filmes que ele gostava e eu cheguei a notar, marcar, assim, pra ver esses

filmes. Aquele “A troca”, eu vi.

H: Nossa, eu também vi “A troca”.

G: Aquele do espaço, esqueci o nome agora.

H: Ah, eu sei, “Contato”.

G: Isso, “Contato”, eu vi também. Então é uma coisa que, no filme assim, me influenciou bastante

por causa do Roberto mesmo.

P: Então, vocês acham, assim, que é bom como uma estratégia de aproximação, de estreitar

laços?

H: Sim, ah, e como eu tinha dito, é bom como uma estratégia de conhecer coisas, sabe, de ampliar

repertório. Descobrir o que você gosta ou talvez não gosta talvez. Acho que o único jeito de saber

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o que você gosta é saber o que você não gosta. E o único jeito de saber o que você não gosta e

gosta é conhecer as coisas.

Conforme se nota, Giovane, em vários momentos de sua fala, reconheceu e

enfatizou essa possibilidade de conhecer o professor, suas preferências, seus interesses, por

meio da leitura fruição. A seguir, quando ele e Heitor rememoraram filmes que viram por

influência do professor Roberto, além de confirmarem a influência dos gostos mais pessoais

dos professores, acredito que podemos retomar, nessa fala, um pouco de como teria se dado a

influência do mediador, no caso, o professor Roberto. Interessados pelos comentários do

professor – que sempre fora reconhecido como um cinéfilo, colecionador de filmes (inclusive

raridades), os rapazes citam filmes e mostram que se aproximaram, buscaram conhecer essa

obra. Penso que é perceptível nesse movimento que os meninos empreenderam a partir das

indicações de Roberto perceber a influência um quê afetiva do mediador, como analisa Petit

(2009), enfatizando-se que o professor não só indicou a obra, mas possibilitou um achegar-se

a ela sem medo, com confiança e, sobretudo, com interesse. Talvez esse vínculo permaneça e

se estreite para muitos dos alunos.

A aproximação é também destacada por Jéssica, quando esta jovem comentou

sobre como seu relacionamento com alguns professores mudou a partir da leitura fruição. Ao

perguntar a jovem o que ela achava de professores de disciplinas como geografia, matemática,

compartilharem suas leituras, ela respondeu:

Olha, eu acho isso incrível. Primeiro, porque (...) literatura e leitura não é uma área restrita, assim.

É uma área que, querendo ou não, todo mundo vai passar, porque todo mundo tem que ler para

fazer qualquer tipo de coisa que você quiser. Tem que ler símbolo de matemática, você tem que ler

tudo. E ver que o corpo docente do C.[colégio] tem um interesse realmente de leitura. Cada qual a

sua forma, entendeu? E tem um interesse de passar isso para os alunos. O C. [escola] tem uma

linha realmente diferente aí dos próprios colégios tradicionais, ele tem uma linha diferente aí que

não tem como negar. Não tem como negar. E você vê um professor de matemática tão apaixonado

por literatura, é uma coisa que começa a instigar as pessoas que são exatoides, por exemplo.

Então, a pessoa que está lá, e ela só curte matemática: "Ah não, eu não curto ler, eu li cinco livros

na minha vida. Eu acho horrível. Chapeuzinho Vermelho e a Cinderela, e acabei por aí". Ela ter

uma pessoa que ela admira e que é um puta de um matemático, entendeu, ter uma paixão tão

grande pela leitura. Eu não sei como é porque eu estou me colocando no lugar de outra pessoa.

Porque eu sempre tive. (...) Mas eu imagino que essa pessoa se sinta estimulada a procurar pela

leitura, porque é uma pessoa que tem um gosto aproximado com ela, tem uma visão de mundo

aproximada, sabe? E aí você vê o professor, porque o professor, querendo ou não, é um ícone,

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uma coisa que você admira, que você se espelha, e você vê ele fazendo isso, acaba te

estimulando a procurar por esse tipo de coisa.

Nas considerações de Jéssica encontramos, mais uma vez, o reconhecimento do

professor ledor (SCHITTINE, 2011) e mediador fundamental (PETIT, 2009), a aproximação

com textos variados e a ideia de que a leitura e a literatura são comuns a todas às áreas,

porque são elementos de formação humana (CANDIDO, 2004). Aliás, parece-me notável essa

ênfase na fala de Jéssica: reconhecer o caráter interdisciplinar da leitura e da própria literatura,

sabendo que práticas de leitura como a de fruição podem abarcar horizontes muito mais

amplos e estimular outros jovens a ler. Para isso, a importância do exemplo do outro, no caso,

do professor seria fundamental, reconhecendo-se, então, como marcante não só seu papel de

mediador, mas daquele que incentiva o gosto estético pela literatura (MAGNANI, 1989).

Seguindo nossa conversa, perguntei a Jéssica se, devido ao contato com a leitura fruição, sua

relação com leitura havia mudado, e ela me corrigiu:

J: Mudou minha relação com os professores.

P: Com os professores?

J: Mudou minha relação com os professores. Porque, por exemplo, o H.[professor de biologia do

3o ano], do Ensino Médio,(...) é uma pessoa que tem uma paixão muito grande por literatura,

inclusive, quer ser meu “bixo” esse ano. E ele trazia muito isso. (...) Lembro que teve uma prova

que eu fiz o ano passado, que foi a prova inteira, era baseada em poesia do século dezenove.

Inteira. Inteira. Todas as questões, sem exceção, ele colocava um poema e fazia uma questão de

biologia. E isso me fez aproximar muito dele. E consequentemente, me fez me aproximar da

matéria também. Porque era uma área que eu gosto, com uma outra área, não que eu não

gostasse, mas não tinha muito interesse. E aí, ver uma aproximação, essa interdisciplinaridade, é

muito importante. É muito importante. Se não, a gente fecha todas as disciplinas em caixinhas, e aí

você não faz ligações. São nas ligações que a gente cria coisas novas. Se a gente não fizer

ligação, a gente vai continuar reproduzindo discurso. Então, acho que, nesse sentido, é bem

interessante, mesmo, professores que não são diretamente literatos, diretamente da área,

estimulando os alunos e colocando, trazendo isso e aproximando para a matéria.

A exemplo de Heitor, Jéssica também cita, como uma leitura significativa (talvez,

que lhe tenha assemelhado à de fruição) a experiência com o professor H. e suas provas de

biologia com textos poéticos – comprovando que os alunos, leitores, atribuem outros

significados às leituras que fazem (PETIT, 2008). Tal composição inusitada fez com que ela,

aluna notadamente da área de Humanas, se aproximasse da disciplina e tivesse mais interesse

pelo conteúdo e também (talvez, principalmente) pelo professor. Descobrir numa área outra –

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no caso, a biologia – um professor interessado por poesia e arte parece ter encantado a jovem.

Foi, de fato, como conhecer uma outra pessoa.

Seguindo em seu depoimento, Jéssica ainda me disse:

É, então, aí eu acho que fica mais naquela questão com a proximidade com o professor, sabe? Eu

sempre fui uma pessoa que prezei muito pela proximidade com o professor, porque eu acho que

essa proximidade e essa quebra da visão de professor num patamar gigante e aluno num outro

patamar não é produtivo. E ver um professor performático, e tal, e se abrindo, de certa forma,

porque é uma coisa pessoal, é um gosto pessoal dele, pra gente. Mostrando o quê que ele gosta

de fazer no tempo livre dele. O quê que ele faz. Isso é muito importante, porque, sabe, estabelece

justamente essa proximidade com o professor, e a partir do momento em que você estabelece a

proximidade com o professor, você acaba melhorando no conteúdo em si. Porque, por exemplo, eu

sempre tive muito medo do Roberto. Muito medo! Porque ele é um professor rígido, ele é um

professor mais velho. Eu tive muito medo. E quando você vê ele naquela situação onde ele se

mostrava uma pessoa tranquila, uma pessoa amigável, eu tinha mais facilidade até de perguntar

para ele, tipo, as cosias dos exercícios, entendeu?

Ao valorizar o que chama de performance dos professores – e o exemplo de

Roberto é prontamente lembrado – Jéssica ainda destaca que a forma como as leituras

aconteciam também poderiam contribuir para o estreitamento de vínculos. Para ela, a leitura

fruição trazia esse bônus de ter acesso a um outro lado, (re)conhecer outras pessoas na pessoa

do professor.

Esse exemplo de Jéssica nos sugere também a ideia de como o que lemos revela o

que somos. Como sugere Pierre Bayard, citado por Petit (2009), recorremos aos livros para

falarmos de nós mesmos, tornando-os, então, “espaço privilegiado para a descoberta de si”:

O bom leitor opera uma travessia dos livros, sabe que cada um carrega uma parte dele mesmo e pode mostrar-lhe o caminho, se ele tiver a sabedoria de não parar por ali […] a linguagem pode encontrar na travessia do livro o meio para falar daquilo que geralmente nos escapa. (BAYARD apud PETIT, 2009, p.111)

Então, poder-se-ia supor que as fisionomias desenhadas pelos textos lidos

anunciam aspectos dos professores que talvez não era tão acessíveis no convívio diário, ainda

mais quando este se restringia ao tempo da aula e aos diálogos acerca dos conteúdos. Assim,

ler para os alunos seria oportunidade de, além de mediar, falar de si e dar-se a conhecer,

permitindo que laços se teçam e se estreitem.

A jovem Sabrina, em vários momentos de nossa conversa, comentou o aspecto

afetivo despertado pela leitura fruição. Eis um trecho:

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É um gesto carinhoso, eu acho, você ler pra gente. Eu acho que isso por si só, só o gesto, ah, você

ler pros seus filhos pequeninhos, quando tá doente. Agora, você ler pra pessoas que são

totalmente normais, eu acho que cria uma conexão de carinho mesmo, de afeto.

Em seu depoimento pode ser identificado um certo aspecto curativo da leitura, o

que Petit (2013) chama de leitura reparadora, capaz de fazer superar o luto, por exemplo –

função terapêutica sugerida por Sabrina, quando ela comenta em se ler para alguém doente,

por exemplo. Equiparando esse carinho de ler para os alunos àquele dos pais que leem para

confortar, quiçá para auxiliar na cura, Sabrina ressalta esse caráter não só de agregar, mas

também de reparar que a leitura fruição poderia assumir.

Além de os alunos citarem os benefícios da proximidade que se estabelecia, por

vezes, pela leitura fruição, alguns professores também comentaram tal estreitamento das

relações pessoais. Durante nossa conversa, a professora Célia mencionou várias vezes a

proximidade que se estabelecera entre ela e os alunos por meio da leitura fruição, ressaltando

que, para ela, tal prática fora fundamental, porque sua disciplina, Ciências, em geral,

trabalhava com conteúdos mais árduos, objetivos e que nem sempre convidavam a uma

proximidade mais efetiva. Quanto questionei como ela avaliava o papel da leitura fruição para

formação dos alunos, bem como a abertura que a escola dava para tal prática, Célia

argumentou:

Primeiro, assim, a proximidade do professor. Porque nós, quando chegamos na sala de aula, antes

de entrar na sala (...), a escola já nos dá várias regras, as crianças já têm várias regras. A nossa

relação é uma relação, assim, de nota. Isso é complicado para o aluno e pra nós também. Como

professora, eu demorei a perceber que eles achavam que eu os avaliava, que a nota que eu dava

em prova era aquilo que eu sentia por eles. Alguns alunos: "A Célia gosta do fulano porque o

fulano tirou nove, dez. A Célia não gosta de mim, porque eu estou sempre de recuperação." Não é

isso, mas é essa a imagem que a gente passa. Então, vamos dizer assim, na nossa profissão a

gente acaba criando alguns vínculos que não são verdadeiros (...). Pelo contrário, eu trabalho

muito mais para o aluno que tem dificuldade. Eu ajudo muito mais. Eu acabo sendo muito mais

próxima do aluno que tem dificuldade do que do outro, que tem mais facilidade, que está sempre

contribuindo para melhorar a qualidade de aula, e tal. A leitura fruição (...) mostra uma outra faceta.

Ela mostra uma faceta que não é avaliada, ela mostra uma faceta que ela é mais espontânea e ela

não é metódica, ela não tem exigências. Tanto é que ela começa dando a liberdade para o

professor, que, para mim, isso é fantástico. (...) O professor escolhe o que ele quer, tanto é que

tem colegas que fazem uma fruição bem diferente. E eu acho que quando você tem liberdade, o

aluno percebe isso (...). Se eu quiser repetir [leituras], eu repito (...). Tanto que às vezes, eles me

pedem: "Célia", por exemplo, "O dia dos meus anos", "Repete, repete que eu quero ouvir!" E aí eu

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repito. Às vezes, eles pedem. Então, é uma forma de eu chegar neles. Quando eu chego neles,

está feito o contato. E aí, tudo o que vier de mim pra eles e tudo o que vier deles pra mim flui

melhor. Então, por exemplo, eu sei que eles têm confiança em mim. (…) E quando você confia em

alguém, o conhecimento se dá melhor, sabe? Até a forma de eles conversarem comigo.

Para Célia, a leitura fruição possibilitou uma relação de confiança, suplantando

uma espécie de trato burocrático que ela percebia em seu contato com os alunos. A professora

ressalta ainda a liberdade que a prática lhe dá e como isso é importante para que os alunos

também opinem, se sintam valorizados – e se sintam parte da escolha feita. Em outro trecho

de nossa conversa, ela confirma essa confiança que se estabelece inclusive com os conteúdos

de sua disciplina, dizendo:

Muda a confiança. Mesmo porque, na fruição, às vezes, eles veem outro lado meu que eles não

veem. O lado, às vezes, de rir, ou, às vezes, de chorar. Que, às vezes, acontece, né, de cair as

lágrimas.

Célia enfatiza esse aspecto humano que se torna mais explícito, segundo ela, a

partir da leitura fruição. E seguindo a entrevista, quando voltamos a falar da questão dessa

leitura como uma alternativa a outras, obrigatórias, ela comentou:

Tem que ter, tem que dar [espaço para essas leituras]. Tem que dar, porque a vida da gente já é

tão pesada. (...) E é interessante que eu vejo que, às vezes, ao ler a poesia, que eu abro

aleatoriamente, eles encontram naquilo que eles ouvem coisas que eles estão vivendo naquele

momento. Como eu me encontro em coisas que eu estou vivendo no memento. E, às vezes, não,

mas, às vezes.. Daí que vem o vínculo da proximidade, porque, aí, aquele aluno que estava com

um determinado problema em casa, com uma determinada dificuldade, ouve eu falar daquela

dificuldade, numa outra circunstância. Embora eu não saiba do que ele está vivendo, aquilo

acalentou, aquilo deu... Então, aí parece que ele se liga a mim. Então, é interessante que, às

vezes, eles até falam sobre isso, mas não é uma coisa, "Olha, eu preciso falar com você sobre

isso." Não. É uma coisa: "Olha, eu gostei muito. Foi muito bonito. Olha mostrou um outro lado."

O depoimento emocionado de Célia mais uma vez me remete a considerações de

Petit (2009), quando esta enfatiza o caráter terapêutico, balsâmico, que a leitura pode assumir:

ao identificar-se com um texto, o leitor reconhece nesse contato um processo catártico e, no

caso, de estreitamento de confiança com o professor, o que lhe permite extravasar o que lhe é

traumático e, de alguma forma, ter alívio – quiçá superar determinada dificuldade. Enfim,

reconhecer que ele, professor, é uma pessoa, sobretudo, também vivendo dificuldades, tendo

alegrias e tristezas.

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Esse aspecto da “pessoa física” do professor também fora enfatizado por Bia,

quando perguntei a ela como sua relação com os alunos havia se modificado a partir da leitura

fruição. Em resposta, ela comentou:

B: (…) O aluno se sente mais próximo de você, porque você tá mostrando um lado seu, pelas suas

escolhas, até pelo que você tá mostrando pra eles. E eu sempre falava, ah, isso aqui eu li quando

tinha tal idade, esse livro eu ganhei, né? Quando eu li Gabriel Garcia Márquez, esse aqui eu

ganhei do meu marido, o primeiro presente que ele me deu foi esse livro, né? Esse aqui eu ganhei

do meu irmão, porque eu tinha ido bem no simulado, sabe, essas coisas? Esse aqui eu ganhei de

um outro amigo, eu ia comentando essas situações, nessa, você tá se abrindo, né? Eu sou muito

fechada, assim, com o meu particular de professora, nunca fui, assim, a chapa deles, opa, sempre

foi uma separação bem clara, né? E aí isso tornava mais próximo, né, uma maneira deles...

P: De eles se aproximarem de você.

B: É, de ver quem que tá atrás dessa fachada aí. Essa mulher que vem aqui, fala de geografia e

não sei o quê. E você vai juntando as peças, né? As pistas que as pessoas, às vezes, são veladas,

né, vai juntando o quebra-cabeça pra formar uma imagem de quem é aquela pessoa, acho que

eles têm curiosidade de saber, quem é o professor que trabalha com eles. Tinha gente que você vê

que tudo é chato, né? Às vezes você escolheu, você falou, nossa, curti tanto isso, né, tô lendo com

tanto carinho, tô olhando aquela criatura que tá me olhando com cara de tédio, mas isso é normal,

né, num universo de trinta...

Parece-me muito tocante a análise que Bia faz sobre si, sobre a sua relação

institucional com os alunos e como a leitura fruição lhe permitiu mostrar-se e achegar-se eles.

A imagem das peças do quebra-cabeça sugere a personalidade complexa de cada um e o

desafio que é para o outro, no caso, um estudante, reconhecer que os fragmentos que

compõem uma pessoa real com gostos e preferências muito além da disciplina ministrada, no

caso do professor.

Tal aproximação via leitura fruição também é atestada por Adriana, a professora

de Língua Portuguesa que entrevistei. Ao perguntar se teria havido modificação na sua relação

com os alunos, ela comentou:

Eu acho que vai aproximando mais o aluno do professor no sentido de compreender o professor

como um sujeito, como uma pessoa, não apenas só como o professor. Então, acho que esse

momento oportuniza isso, né. Que os alunos se sintam mais próximos do professor, inclusive,

porque as leituras são escolhas, livres do professor. Aí, ele leva coisas nas quais ele acredita. Ou

coisas que naquele momento ele quer compartilhar (…). O fato de que sistematicamente alguns

professores façam isso permite que eles construam essa ideia como uma comunidade de leitores,

(...) então, essa comunidade de leitores consegue entender que esse momento é um momento de

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compartilhamento. Então, ele entende que é uma escolha pessoal do professor, que não passa

pelo crivo de um caráter pedagógico, de um caráter que é uma discussão do grupo de professores,

não é uma discussão com uma coordenação pedagógica ou com a orientação pedagógica. E isso,

também, acho que é interessante. Então, acho que acaba aproximando mais o aluno do professor,

como pessoa. Então, o aluno passa a ver um lado humano do professor que, num primeiro

momento, pra ele, é muito difícil (...). Os professores são só professores, eles não são pessoas de

carne e osso, né. E, principalmente, quando o professor se emociona. Assim, a emoção do

professor no momento da leitura, também é fundamental para que o aluno o perceba como gente,

e não apenas como o professor. Então, acho que, nesse sentido, também é muito legal.

As palavras de Adriana vêm sintetizar, a meu ver, o que outros alunos e

professores entrevistados comentaram: a leitura fruição, por se apoiar na liberdade de escolha

do professor, pode mostrá-lo de um modo mais pessoal e menos institucional, o que pode

facilitar o estreitamento das relações. Em contraponto à complexidade sugerida por Bia,

Adriana vem lembrar que os professores são “carne e osso”, se emocionam, de modo a indicar

uma simplicidade que é não é simplificadora, mas que humaniza a todos.

Esse aspecto do humano, acessível, também fora ressaltado pelo professor

Roberto. Em um trecho de nossa conversa, ele recupera a ideia do professor como um sujeito

responsável pela confiança – similar ao que Célia sinalizara – e ressalta o seu potencial de

mediador capaz de criar uma atmosfera de partilha e também incentivar escolhas autônomas.

Quando perguntei se a relação que a turma ou que os alunos tinham com a sua disciplina ou

com ele se alteraram a partir da leitura fruição, ponderou:

Mudou sim. Tinham alguns alunos que me superestimavam, sabe? Tinha aluno que achava que eu

era simplesmente um sábio, que eu sabia, entendia de tudo, que podia me perguntar qualquer

coisa que eu teria condição de responder (…). Eu sempre fui muito sincero. Às vezes, me

perguntavam, e eu: "Não sei. Nunca ouvi falar, etcetea. Vou ver se eu procuro saber, etcetera."; "Já

assistiu tal filme?"; "Não, esse daí eu nunca assisti."(...)

Para Roberto, fora importante desmitificar uma imagem de “sábio” que, segundo

ele, os alunos alimentavam a seu respeito. Assumindo não conhecer determinada obra, o

professor mostra-se e dá-se a conhecer ao seu interlocutor, reforçando as conexões e

colocando-se em postura de alguém que também aprende, também está em construção.

Alguém que é, então, um aluno também.

Por fim, concluo este capítulo com o relato de uma experiência pessoal. Desde

2001 trabalho como professora do Ensino Médio. Durante esse período, mantive o que julgo

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terem sido boas relações profissionais e institucionais com alunos, colegas e superiores.

Contudo, sempre tive dificuldade de me aproximar dos alunos ou mesmo de demonstrar

minha afetividade. Assim, sou reconhecida (hoje menos) como uma professora séria, de modo

que, por vezes, tal natureza pode ser confundida com sisudez. Não culpo os jovens por isso,

minha personalidade, em si, preza pela discrição e, embora possa parecer contraditório, sou

bastante tímida. Tais características me fazem mais quieta e menos afeita à expansão. Houve

situações, com turmas muito específicas e pontuais, em que pude me aproximar e estreitar

laços pessoais e testemunhar também o carinho de meus alunos.

Trabalhando no colégio em que se desenvolveu a prática de leitura fruição

contemplada nesta pesquisa, aprendi muito em termos acadêmicos e pessoais. Creio que,

devido a meus colegas e a meus alunos, às relações que estabeleci com eles, me tornei uma

professora melhor. Foram oito anos ministrando plantões, aulas e cursos de formação,

experiências por si só enriquecedoras. Mas, num desses desfechos quase cinematográficos,

minha história com essa escola se encerrou de modo muito especial.

Quando estava prestes a deixar o colégio e não mais ser professora do 3o ano do

Ensino Médio de 2014, um fato marcou minha despedida. Era final de setembro, uma terça-

feira, sete e dez da manhã. Eu entrava na sala do 3o ano para as duas primeiras aulas de

gramática. Como sempre, eu chegava cumprimentando e vários alunos vinham me encontrar

para conversar. Era uma turma muito carinhosa e muito especial – eu os acompanhava desde o

8o ano do Ensino Fundamental. Então, fui abordada por Léo, o mesmo que depois seria um

dos primeiros entrevistados desta pesquisa. Com uma folha de papel nas mãos, ele vinha me

pedir que eu lesse aquele texto como fruição. Relutei, pedi para levar o texto para casa, para

ler, preparar minha performance (sim, me reconheço como uma ledora). Léo insistiu, dizendo

que alguns alunos da turma tinha encontrado aquele texto, tinham gostado muito e queriam

muito que eu lesse ali, naquela manhã. Aceitei um tanto contrariada, pois não gostava de ler

textos para a turma sem um conhecimento prévio, sem um certo planejamento da leitura. Dei

uma passada de olhos rápida no texto e cedi. Era uma crônica de Rubem Braga.

Todos os alunos se sentaram e fez-se imediatamente um silêncio profundo.

Estranhei, pois embora sempre tivesse tido uma ótima relação com a sala, não era comum que

os alunos se acalmassem tão rapidamente, mostrando-se tão atentos e interessados pela minha

leitura. Cumprimentei-os, avisei que ia ler o texto que me pediam e comecei. O silêncio

parecia se aprofundar e eu podia sentir os olhos atentos em mim. Lá pelo meio da crônica é

que comecei a desconfiar que eu poderia ser vítima de uma “armação”. Mal suspeitei e

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cheguei a uma linha que dizia: “Fabi, aceita ser nossa paraninfa?”. Daí foi a vez dos meus

olhos se estatelarem. Olhei para eles, quase todos sorrindo. Minha reação foi uma crise de

choro que me arrebatou por alguns minutos.

O convite que me fizeram já seria, por si só, dos mais bonitos, um gesto de

gratidão muito especial. Mas do modo como o fizeram foi especialmente significativo para

mim: eles me convidaram por meio da leitura, aquela que eles tinham certeza, eu faria em

todas as aulas que ministrasse, que eles reconheciam não só como parte de minha identidade

como professora, mas como elemento fundamental da relação estabelecida entre nós. Por

meio desse gesto, confirmou-se, para mim, o quanto a leitura fruição fora essencial, ao menos,

para minha relação com os alunos e para minha imagem de docente e pessoa.

Julgando que esse episódio era digno de nota, levei essa questão para as

entrevistas que fiz com os jovens e eles me contaram uma versão bastante similar:

escolheram-me como paraninfa e ao pensar como me contariam e convidariam, surgiu a ideia

de “misturar” o convite a um texto que seria lido na leitura fruição, por considerar essa prática

como algo que me era muito caro e característico – e também para me surpreender, como

confirmou Giovane quando perguntei sobre o assunto:

Eu lembro que a gente pensou, a Fabi sempre faz isso, então, ia ser um bom jeito de pegar você.

A “pegadinha” funcionou muito bem: tão acostumada a fazer a leitura fruição,

nem desconfiei de nada a princípio. Entretanto, a escolha dos alunos por me homenagear

desse jeito me deixou marcada com indelével emoção. E ainda que eles não tivessem

consciência do impacto dessa escolha, foi, ouso dizer, um dos momentos mais tocantes que

vivi enquanto professora.

Foi, sem dúvida, uma experiência ímpar em que algumas das principais ideias que

eu defendo, no caso, a da leitura, da literatura, da apreciação da beleza, do envolvimento pelo

texto, se concretizou no gesto simples e encantador – episódio que me fez lembrar das quantas

vezes eu me fascinei com meus professores, seus textos e exemplos: Mônica, Dantas e outros

ainda, alguns com os quais tive o prazer de dividir dias de trabalho e intervalos. Foi um

momento, breve, singelo – como era a leitura que eu partilhava com eles, para o qual encontro

tradução nos versos finais de “Memória”, de Carlos Drummond de Andrade: “(...) as coisas

findas/muito mais que lindas,/essas ficarão”. Ficaram as leituras de mestres queridos, os

textos que levei para meus alunos, a alegria e a sensibilidade que tentei partilhar. E

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permanecem lembranças, finitudes revisitadas, lindas e etéreas, que foram matéria-prima para

compor as linhas desse texto que colegas professores e meus alunos me ajudaram a tecer.

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Considerações Finais

Vivemos num mundo de histórias que começam e não acabam. (CALVINO, 1999; p. 268)

Ao concluir este trabalho, retorno ao ponto de partida: a leitura fruição como uma

prática que permite a experiência do prazer a partir dos textos – em sua variedade de suportes,

gêneros e também na forma como são apresentados e partilhados na escola. Historicamente

localizada e construída a partir de pressupostos como a valorização da leitura literária, bem

como ancorada na ideia de abertura de um espaço para que professores e alunos partilhem

textos e obras de que gostem, a leitura fruição afigura-se, então, uma outra rota possível para

incentivo à leitura e também ao diálogo e à interação. Opção não só para os alunos menores,

como ocorre frequentemente, mas também um caminho para que professores e alunos das

séries finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio partilhem repertório, ampliando

referências culturais (SNYDERS, 1993) e também estreitem vínculos intelectuais e pessoais

(PETIT, 2008, 2009 e 2013).

A partir das experiências vividas em um colégio particular de Campinas, escola

que defende a valorização da leitura como um dos pilares de seu projeto pedagógico, as

entrevistas de ex-alunos e professores mostraram alguns impactos que a leitura fruição pode

causar. Sendo uma prática cultural histórica e culturalmente construída, tal leitura partilhada

se mostra multifacetada, compreendendo desde formas mais convencionais – como o

professor que leva o livro e o lê, sem grandes dramatizações – até performances mais cênicas,

configurações distintas que dependem do que cada professor se sente à vontade para fazer ou

ainda dos gestos de leitura que cada um julga interessantes e pertinentes para aquele espaço da

sala de aula.

Apoiando-me nos pressupostos bakhtinianos do diálogo e do reverberar constante

das palavras – a minha palavra reverberando a do outro, a do outro, a minha, em círculos

concêntricos, mas nunca coincidentes -, busquei mostrar que essa prática de leitura contempla

não só o diálogo entre professores, alunos e obras, mas também outros enunciados nem

sempre tão explicitados e comentados, como a questão das leituras obrigatórias, a presença do

cânone e o olhar que alunos e professores vão construindo para tais questões.

Percorrendo, então, um pouco da trajetória que explica e justifica a presença da

obrigatoriedade de leituras – literárias, sobretudo – no espaço escolar, procurei entender em

que contexto a leitura fruição vem compor parte do cenário das práticas escolares. Não se

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trata, como tentei demonstrar, de negar o trabalho sistemático e sistematizado com a leitura,

mas sim de ampliar as possibilidade de acesso a obras, autores, assuntos por meio de uma

prática que se ancora na gratuidade, numa experiência (BONDÍA, 2002) que estimula e

convida à “alegria cultural” (SNYDERS, 1993) e à fruição essencial, a qual se faz sem

obrigação e sem compromisso com a utilização e a eficácia tecnocrática do acúmulo de

conhecimentos e conteúdos (ORDINE, 2016).

Também procurei mostrar que não raro a leitura fruição se mostrou sinônimo de

leitura literária, o que permite reforçar seus laços com outras práticas escolares, sendo

perceptíveis, em vários momentos, ecos de leitura obrigatórias no compartilhamento dos

textos levados pelos professores. Por outro lado, houve ocasiões em que as leituras oferecidas

pelos professores também permitiram aos alunos rever e ampliar referenciais canônicos, bem

como estender concepções do que seja literatura. Houve ainda situações em que a experiência

da leitura fruição permitiu estender limites e rever categorias, como nas referências à

literatura infantil.

Desse modo, parece-me que a experiência da leitura fruição, compreendida como

contato sensível com textos e autores, possibilitou, além do incremento do repertório artístico,

a revisão acerca de limites e classificações literárias, bem como reflexões sobre o que é, em si,

a leitura e que espaços são a ela facultados pela instituição escolar.

Outro aspecto que procurei destacar foi o da leitura fruição entendida como leitura

literária, permitindo o fortalecimento do papel de formação do cidadão e do indivíduo

(CANDIDO, 2004), garantindo o acesso a um bem essencial às pessoas: o direito à fabulação,

ao encantamento por meio do texto (SNYDERS, 1993). Leituras diferenciadas de textos

literários vários possibilitaram identificação e contrastes, olhar crítico e acesso à diversidade.

Assim, alunos ressaltaram além da ampliação de repertório, o quanto esse contato

aparentemente descompromissado com autores e obras diferentes daquelas habitualmente

estudadas na escola lhes foi caro – destacando-se nesse rol das leituras marcantes as

referências a obras de literatura infantil.

Esse movimento de ampliação e crescimento valeu-se não só dos conteúdos e

aspectos acadêmicos, como também dos exemplos e incentivos relatados pelos professores, os

quais assumiram os papéis de mediadores significativos (PETIT, 2009) e de ledores

(SCHITTINE, 2011), pois se mostraram cuidadosos com o preparo de suas leituras,

cautelosos (mas também ousados) com suas escolhas e atentos à recepção e reação dos alunos.

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Os alunos, por sua vez, pareceram reconhecer esse cuidado, valorizando os

professores que optavam por fazer a leitura fruição – daí um nó ao qual precisamos dar a

devida importância. Embora esteja prevista como parte (ainda que não explícita e

regimentada) do projeto pedagógico da escola, a leitura fruição foi lembrada como prática de

alguns – ao menos, para os ex-alunos entrevistados. Na verdade, a escassez descreveu-se

gradativa: os jovens comentaram ser a prática mais frequente no Ensino Fundamental, tendo

rareado no Ensino Médio a ponto de alguns entrevistados pensarem que se tratava de uma

escolha individual minha. Essa baixa adesão pode ser explicada – inclusive pelos alunos – por

demandas como provas externas e tempo escasso, sendo que, nesse caso, percebe-se ainda a

valorização de atividades que parecem ser mais úteis em detrimento de leituras que não

sofrerão avaliação ou apresentarão utilidade direta para o vestibular, por exemplo.

Entretanto, como procurei demonstrar, o fato de a leitura fruição não ser

direcionada para nenhuma atividade posterior, tampouco ser medida ou cobrada, é um dos

fatores que a torma sedutora e talvez especialmente frutífera. A gratuidade convida à fruição

voluntária, sendo o exemplo do professor leitor um atrativo e também um convite para que os

alunos se envolvam e se aproximem das obras.

Entre os pontos positivos, então, que podem ser destacados temos o acesso a

repertório literário e artístico, bem como o contato com leitores proficientes e que se preparam

para ler especialmente para aqueles alunos – os professores ledores (SCHITTINE, 2011), cujo

repertório e escolhas alçam voos não só pela vida pessoal, mas também por reflexões acerca

de sua prática e sua trajetória docente. Outro ponto que me parece digno de destaque é o

estreitamento de relações, sejam estas mais acadêmicas ou pessoais. O estreitamento de

vínculos – principalmente pelo professor que se dá a conhecer pelo texto e pode estabelecer

diálogos mais diretos e subjetivos – mostrou-se um ponto valorizado e comentado por muitos

entrevistados, fossem eles professores ou alunos.

Desse modo, acredito que a leitura fruição afigura-se como um terreno para

descoberta intelectual, confirmando o papel da escola como ambiente para contato com obras

e referências culturais não só basilares (SNYDERS, 1993), bem como oportunidade também

de (re) conhecer autores e encaminhamentos já previstos pelo currículo: o novo olhar que

autores clássicos como Augusto dos Anjos e Machado de Assis podem receber até as novas e

maduras percepções que se podem inaugurar acerca de velhos conhecidos gêneros, como a

literatura infantil. A leitura fruição é canal ainda para que comecem a circular expressões

artísticas, como a música (os exemplos de “A banda” e “Ronda” confirmam isso), as quais,

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por vezes, ainda não são reconhecidas nesse ambiente institucional – como o rap citado por

uma jovem em sua entrevista. E aqui vale lembrar a importância da performance

(ZUMTHOR, 2014): o modo particular como cada professor lia, como integrava texto,

espaço, situação, mostrou-se marcante tanto para os jovens como para seus mestres leitores.

Recorrendo mais uma vez à bela metáfora de Certeau (2012), podemos perceber,

acompanhando os depoimentos acerca da leitura fruição, como os movimentos de caça se

desenham: há busca e encontro; há fuga e cansaço; há espreita e surpresa. Os leitores –

professores e alunos – seguem conforme as trilhas que encontram, provocados por uma ou

outra descoberta, incentivados por essa ou aquela beleza, ou até desanimados frente a uma ou

outra pedra no meio do caminho.

Por fim, acredito que conhecer um pouco mais desse percurso e dessa caça nos

ajuda a pensar nossas posições e nossas práticas como docentes, tendo especial atenção ao que

dizem os alunos e também ao que relatam os professores, entendendo esses enunciados como

reelaborações e construções que carregam opiniões e avaliações – tais expressões devem

interferir em ações futuras (BAKHTIN, 2003 e 2009). Assim, parece-me fundamental tentar

compreender de que modo as trajetórias individuais traçadas a partir de cada leitura delineiam

muito mais que movimentos acadêmicos – desenham um pouco da essência de cada um, de

sua formação mais ampla enquanto ser humano e de como essa humanidade vai

constantemente se redesenhando.

Retomando a epígrafe desta conclusão, penso que a obra aberta, sem final, aqui,

não é algo ruim. Num mundo de fragmentações cada vez mais velozes e agressivas, uma não-

finalização que indique continuidade e permanência de questionamentos me parece algo

acalentador. Fica como certeza, nesse fechamento que é breve pausa em meus movimentos de

caça particulares, a ideia de que este trabalho traz algumas histórias acerca da leitura fruição –

narrativas ricamente inconclusas, posto que cada sujeito continua reverberando suas

aprendizagens e suas experiências e levando-as adiante, seja como leitura, seja como

percepção de mundo e/ou de si. Este trabalho, portanto, é um movimento a partir da prática,

mas, obviamente, não a esgota. Outros e tantos aspectos convidam a estudar, a conhecer, a

embrenhar-se em incertezas para se chegar a algumas clareiras – ou abismos. Assim, as

histórias não terminam, seguem vivas com cada pessoa que se dispuser a contar outras tantas.

Acredito que esta é uma bela incompletude, a de seguir buscando e tecendo outras versões e

outros contares que , porventura, nascerem das leituras partilhadas.

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276

Anexos

Anexo I – Roteiro base para entrevistas

Roteiro base para entrevistas – alunos e professores

1. Qual a sua avaliação sobre o projeto “leitura fruição”, em especial, sobre o gesto de ler para

os alunos?

2. Qual o papel da leitura – em especial, da leitura fruição - na formação dos alunos?

3. Como você se avalia como leitor nessa situação? Percebe impactos, reverberações dessa

prática? Quais?

4. Você se lembra de alguma história/episódio marcante? Alguma leitura foi “especial”?

Questões específicas para alunos

1. Alguma(as) leitura(s) foi mais interessante?

2. Você acha que a leitura fruição mudou, alterou ou influenciou de alguma forma sua relação

com outras leituras?

Questões específicas para os professores

1. Por que você “abraçou” o projeto, investiu nele?

2. Por que, em sua opinião, há colegas que “resistem” ao projeto?

3. Como você escolhe suas leituras? Em sua opinião, suas escolhas, de alguma forma,

“respondem” a algo ou a alguém? Você pretende “ensinar” algo com suas leituras?

4. Como você avalia a reação dos alunos?

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Anexo II – Termo de consentimento da entrevista

PROJETO DE DOUTORADO:

LEITURA FRUIÇÃO: DESEJO E DESAFIO NA SALA DE AULA

TERMO DE CONSENTIMENTO DA ENTREVISTA

Eu, _________________________________, RG nº _______________, tendo ciência dos

objetivos da pesquisa "Leitura fruição: desejo e desafio na sala de aula" cedo os direitos de

minha entrevista, realizada no dia __/___/__ para a utilização dos dados por mim produzidos

(em via impressa ou oral). Tenho a garantia de que esses dados serão expostos mantendo-se

sigilo absoluto de minha identidade. Para tanto, preencho os dados abaixo e, junto com a

pesquisadora FABIANA BIGATON TONIN, assino concordando com o exposto acima:

Endereço: ________________________________________ nº _______

Bairro:__________________Cidade:______________________________CEP:

____________Telefone:(_____)________________

e-mail:_____________________________

Campinas, ________________________ de 2015

_______________________

Assinatura da/o entrevistado/a

_______________________

Assinatura da professora-pesquisadora