UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO...um vírus lento devido aos longos tempos de incubação (> 14 meses no...
Transcript of UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO...um vírus lento devido aos longos tempos de incubação (> 14 meses no...
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS Curso de Graduação em Farmácia-Bioquímica
Bases fisiopatológicas das doenças priônicas e novas tecnologias no seu
diagnóstico e tratamento
Marina Tuan Machado
Trabalho de Conclusão do Curso de
Farmácia-Bioquímica da Faculdade de
Ciências Farmacêuticas da
Universidade de São Paulo.
Orientador(a):
Prof.(a). Dr(a) Tania Marcourakis
São Paulo
2018
SUMÁRIO
Pág.
Lista de Abreviaturas .......................................................................... 1
RESUMO .......................................................................................... 4
1. INTRODUÇÃO 5
2. OBJETIVOS 7
3. MATERIAIS E MÉTODOS 7
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO 8
6. CONCLUSÃO 35
7. BIBLIOGRAFIA 36
8. ANEXOS 42
1
LISTA DE ABREVIATURAS
ANVISA Agência de Vigilância Sanitária
BSE Encefalopatia espongiforme bovina
CJD Doença de Creutzfeldt-Jakob
FFI Insônia Familial Fatal
GSS Síndrome de Gerstmann-Straüssler-Scheinker
PrP Proteína priônica
PrPc Proteína priônica celular
PrPSc Proteína priônica scrapie, ou variante aberrante da proteína priônica
TSEs Encefalopatias espongiformes transmissíveis
2
LISTA DE FIGURAS
Fig. 1. Localização do gene PRNP no cromossomo 20. 10
Fig. 2. Conformação espacial da proteína priônica normal (PrPC) e da
proteína priônica mutada (PrPSc). 11
Fig. 3. Distribuição das encefalopatias espongiformes transmissíveis no
Brasil no período de 2005 a 2010. 12
Fig. 4. Distribuição geográfica das doenças priônicas no Brasil entre os
anos de 2005 e 2010. 13
Fig. 5. Número de casos de kuru desde 1957 até 2011. 15
Fig. 6. Visão macroscópia da secção coronal de um cérebro de paciente
portador de kuru. 18
Fig. 7. Ressonância magnética nuclear da proteína priônica de hamster. 26
Fig. 8. Proteínas biomarcadoras para doenças priônicas presentes
no líquido cefalorraquidiano. 30
Fig. 9. Imagens de ressonância magnética de uma paciente de 18 anos
com doença de Creutzfeldt-Jakob variante 32
Fig. 10. Mudança no espectro de emissão de fluorescência da tioflavina-T
em relação ao tempo. 33
3
LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Sintomas do kuru subdivididos por estágio. 18
Tabela 2. Comparação entre características clínicas observadas na doença de
Creutzfeldt-Jakob variante e a doença de Creutzfeldt-Jakob esporádica 20 Tabela 3. Tempo de incubação e sintomas clínicos da doença de Creutzfeldt-
Jakob iatrogênica, de acordo com a via de infecção 22
Tabela 4. Diferentes técnicas de diagnóstico de doenças priônicas e suas
respectivas sensibilidade e especificidade em porcentagem 29
4
RESUMO MACHADO, M. T. Bases fisiopatológicas das doenças priônicas e novas tecnologias no seu diagnóstico e tratamento. 2018. no. f. Trabalho de Conclusão de Curso de Farmácia-Bioquímica – Faculdade de Ciências Farmacêuticas – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Palavras-chave: príons, doenças priônicas, diagnóstico, tratamento INTRODUÇÃO: As doenças priônicas são doenças neurodegenerativas fatais que são causadas pelo acúmulo da proteína priônica aberrante PrPSc no cérebro, causando perda neuronal e vacuolação de neurônios. São doenças que ganharam notoriedade em 1996, quando o governo do Reino Unido emitiu um comunicado que divulgava a correlação do aparecimento da nova variante da doença de Creutzfeldt-Jakob com o consumo de carne infectada com príons, de animais portadores da encefalopatia espongiforme bovina, levando à sugestão pela Organização Mundial da Saúde que se fizesse uma vigilância global contra a doença de Creutzfeldt-Jakob. No Brasil, isso se traduziu em uma portaria do Ministério da Saúde que coloca a doença de Creutzfeldt-Jakob na lista de doenças de notificação compulsória por se tratar de uma epizoopatia que apresenta riscos para a saúde pública. OBJETIVO: Produzir uma revisão sistemática da literatura a respeito das bases fisiopatológicas das doenças priônicas, seu diagnóstico e tratamento, bem como perspectivas para o futuro acerca do tema. MATERIAIS E MÉTODOS: Uma busca abrangente da literatura foi realizada nas bases de dados PubMed, Cochrane Library, Google Scholar e LILACS. A estratégica de busca incluiu o uso de termos como doenças priônicas, diagnóstico e tratamento. RESULTADOS: As prionopatias são doenças neurodegenerativas fatais que podem ser de origem hereditária, esporádica ou adquirida. Todas as doenças priônicas têm como traços comuns a neurodegeneração com vacuolação neuronal, bem como maior prevalência em indivíduos que são homozigóticos no sítio polimórfico 129 do gene PRNP. O padrão ouro para o diagnóstico diferencial da doença é o exame anatomopatológico do encéfalo post-mortem, mas outras técnicas, como a quantificação da proteína 14-3-3 no líquido cefalorraquidiano, em conjunto com o quadro clínico do paciente, pode servir como preditor forte. Não há ainda tratamentos para estas doenças, mas estão sob investigação fármacos com ação satisfatória in vitro, bem como a ingestão oral de proteínas priônicas celulares heterólogas, impedindo a formação da proteína aberrante no cérebro e retardando o aparecimento dos sintomas. CONCLUSÃO: O mecanismo fisiopatológico pelo qual ocorre o quadro clínico das prionopatias ainda não foi completamente elucidado. Além disso, os métodos laboratoriais de diagnóstico são inespecíficos e só apresentam sensibilidade e especificidade satisfatórias para auxiliar no diagnóstico diferencial quando os pacientes já são sintomáticos, tornando o diagnóstico precoce um desafio. Já para os tratamentos, o desafio está no desenvolvimento de um fármaco que seja seguro para o consumo humano, em doses não-tóxicas e que seja capaz de atravessar a barreira hematoencefálica.
5
1. INTRODUÇÃO
Doenças neurodegenerativas têm em comum a perda neuronal de grupos
específicos de neurônios (DICKSON e WELLER, 2011). As doenças priônicas,
também conhecidas como encefalopatias espongiformes transmissíveis (TSEs),
são um grupo de doenças neurodegenerativas fatais que incluem Kuru, doença de
Creutzfeldt-Jakob, síndrome de Gerstmann-Sträussler-Scheinker e insônia familial
fatal (CHEN e DONG, 2016), causadas pela propagação molecular de proteínas
com conformação terciária anormal, conhecidas como príons (WADDELL et al,
2016).
A proteína priônica é expressa naturalmente como uma glicoproteína na
membrana celular dos neurônios e da glia, denominada PrPC – ou proteína
priônica celular (Stewart et al, 2001). Apesar de a função desta proteína ainda não
ter sido completamente elucidada, pesquisadores propuseram que a PrPC tenha
papel na neuroproteção, secreção de exossomos e no desenvolvimento do
comportamento adaptativo frente ao estímulo estressante agudo (Genetics Home
Reference, PRNP Gene, 2017).
A patogênese das doenças priônicas requer a expressão e o acúmulo da
forma aberrante da proteína priônica, chamada PrPSc (HEDGE et al, 1998) –
denominada desta forma devido ao tremor epizoótico, ou scrapie, primeira doença
priônica reconhecida – levando à degeneração neuronal progressiva e
vacuolização neuronal (CHEN e DONG, 2016). Os sintomas comuns deste grupo
de doenças são demência de evolução rápida, dificuldades em andar e mudanças
na marcha, alucinações, rigidez muscular, confusão, fadiga e dificuldades de fala
(John Hopkins Medicine, Prion Diseases).
A primeira menção histórica do tremor epizoótico, uma doença causada por
príons que acomete ovelhas, aconteceu em 1759 quando um autor alemão
desconhecido aconselhou os pastores a afastar a ovelha acometida da doença do
rebanho, uma vez que poderia haver a infecção de outros animais. A infecção em
humanos foi descrita somente no século XX, no ano de 1951, quando Ronald e
Catherine Berndt publicaram um relatório sobre o kuru.
6
O kuru foi a primeira encefalopatia espongiforme humana a ser identificada,
tendo ocorrido de forma endêmica na tribo Fore, na Papua Nova Guiné durante a
primeira metade do século XX. O kuru foi mais prevalente nesta região devido à
maior susceptibilidade dos indivíduos da tribo pela homozigose do alelo 129 do
gene PRNP, que codifica para a proteína priônica, e também aos rituais de
canibalismo. A doença é caracterizada pela degeneração neuronal, proliferação de
astroglia e microglia e pela presença de agregados amiloides (LIBERSKI et al,
2012).
A investigação do agente causador das encefalopatias espongiformes foi
desafiadora. Pelo perfil infeccioso, pesquisadores consideraram que o agente
fosse uma bactéria, mas a hipótese foi logo descartada porque o agente foi capaz
de passar por um filtro antibacteriano. Em seguida, foi considerada a hipótese de
um vírus lento devido aos longos tempos de incubação (> 14 meses no caso do
tremor epizoótico e podendo chegar a 40 anos nas encefalopatias espongiformes
humanas), mas características do agente como resistência ao tratamento com
formalina, à digestão com nucleases, ao tratamento com ultravioleta e às
radiações ionizantes levaram então à conclusão de que o agente não é provido de
ácidos nucleicos, levantando então a hipótese de que o agente poderia ser uma
proteína, um polissacarídeo ou um fragmento da membrana lipídica.
Em 1982, Stanley Prusiner postulou que o agente infeccioso era uma
proteína parcialmente resistente a proteases, com massa molecular entre 27-30
kDa. O pesquisador chamou a proteína de príon, ou “pequena partícula infecciosa
resistente à inativação pela maioria dos procedimentos que modificam ácidos
nucleicos”. A purificação da proteína priônica levou à identificação do gene PRNP,
um gene cromossômico altamente conservado em mamíferos (MA; WANG, 2014).
Pela descoberta dos príons, Stanley Prusiner ganhou o prêmio Nobel de
Medicina em 1997 (LIBERSKI et al., 2012).
Desde 1996, quando houve a descoberta que a propagação da nova
variante da doença de Creutzfeldt-Jakob estava correlacionada ao consumo de
carne infectada com encefalopatia espongiforme bovina, a Organização Mundial
da Saúde propôs uma vigilância global de todas as formas de CJD como recurso
7
de identificação da doença de Creutzfeldt-Jakob variante (CARDOSO et al., 2015).
No Brasil, esta vigilância se traduziu na Portaria no 204 de 2016 que coloca a
doença de Creuztfeldt-Jakob na lista de doenças com notificação compulsória ao
Ministério da Saúde por se tratar de uma epizoopatia com riscos para a saúde
pública.
2. OBJETIVO(S)
O presente trabalho visa produzir uma revisão sistemática da literatura a
respeito das bases fisiopatológicas das doenças priônicas, seu diagnóstico e
tratamento, bem como perspectivas para o futuro acerca do tema.
3. MATERIAIS E MÉTODOS
O material bibliográfico foi obtido das bases de dados PubMed, Cochrane
Library, Google Scholar e LILACS até janeiro de 2018. Foram aceitos na
amostragem artigos publicados desde a primeira descrição da hipótese príon, em
1982, até dezembro de 2017, com preferência para artigos publicados em
periódicos com fator de impacto maior ou igual 35.
Foram realizadas buscas nas referências dos artigos utilizados para o
desenvolvimento do trabalho, de modo a capturar alguma publicação relevante ao
desenvolvimento do tema que não tenha sido identificada inicialmente.
Demais publicações em sites de órgãos de saúde nacionais ou
internacionais (WHO, CDC, ANVISA) foram consideradas fontes de informações
válidas e confiáveis.
3.1. Estratégias de pesquisa
Os descritores utilizados para busca nas bases de dados foram: príon,
doenças priônicas, doenças priônicas AND genética, doenças priônicas AND
epidemiologia, doenças priônicas AND diagnóstico e doenças priônicas AND
8
tratamento, com seus correspondentes em inglês. Foram aceitos trabalhos
escritos nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola.
3.2. Tipos de estudos incluídos
Para o desenvolvimento do presente trabalho foram aceitos estudos
experimentais in vitro e in vivo, revisões bibliográficas nos formatos revisões
sistemáticas da literatura, metanálises e ensaios clínicos.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1. Proteína priônica, suas funções e epidemiologia
Príons são partículas proteicas infecciosas que não apresentam ácidos
nucleicos, sendo PrPc a proteína priônica presente em membranas celulares e
PrPSc a isoforma anormal (PRUSINER, 1998). Este termo foi cunhado pelo
pesquisador Stanley Prusiner para refletir a natureza das doenças priônicas, em
que o agente infeccioso é uma proteína e não apresenta DNA ou RNA, desafiando
o dogma central da biologia (VENNETI, 2010).
A proteína priônica (PrP) é uma glicoproteína monomérica, de 35 kDa,
sensível a proteases e naturalmente presente nas membranas celulares, ligada a
elas por meio de glicofosfatidilinositol (GPI) (CAUGHEY e BARON, 2006; HEDGE
et al, 1998). Esta proteína é codificada pelo gene PRNP, presente no cérebro e
outros tecidos.
Sabe-se que a proteína priônica é peculiar devido à sua alta estabilidade e
resistência a agentes físicos, como congelamento, ressecamento, cozimento,
pasteurização e esterilização. Desta forma, ela é resistente aos principais métodos
de esterilização: calor de 90°C/1h, calor seco a 160°C/24h e autoclavagem
126°C/2h. A proteína também é resistente a baixo pH, à radiação ultravioleta, à
energia ultrassônica, à radiação ionizante (até 150 kJ) e à maioria dos
desinfetantes, inclusive formaldeído (Centro de Vigilância Epidemiológica, 2008).
9
O gene PRNP (fig. 1) está localizado no braço curto do cromossomo 20, na
posição 13 (Genetics Home Reference, PRNP Gene, 2017; VENNETI, 2010).
Fig. 1. Localização do gene PRNP no cromossomo 20. Fonte: Genetics Home Reference, PRNP Gene, 2017
O papel da proteína priônica ainda não foi completamente elucidado
(MACKENZIE e WILL, 2017), apesar estudos terem proposto que ela exerce
funções de neuroproteção, secreção de exossomos e tem participação na
formação do comportamento adaptativo frente ao estímulo de estresse agudo
(Genetics Home Reference, PRNP Gene, 2017).
A partir da demonstração que altos níveis de dopamina promovem a
agregação e acúmulo de PrPc em autofagossomos, indicando um possível papel
patológico na formação da proteína aberrante PrPSc, Luz et al. (2016) conduziram
um experimento para elucidar o papel da proteína priônica celular no metabolismo
da dopamina através da expressão de tirosina hidroxilase. Neste experimento, foi
utilizada cultura de células N2a diferenciada, via tratamento com dibutiril AMPc,
em neurônios dopaminérgicos. Inicialmente, foram avaliados os níveis de PrPc na
cultura diferenciada e foram observadas menores concentrações da proteína
expressa, apesar dos níveis de mRNA da PrPc não terem sido alterados.
Em seguida, os níveis de expressão da proteína priônica celular foram
reduzidos artificialmente utilizando RNA de interferência. Nestas condições, foram
observados aumentos nos níveis de expressão e mRNA da tirosina hidroxilase,
indicando que a PrPc tem papel supressor na expressão da tirosina hidroxilase,
embora a via pela qual essa supressão ocorra ainda seja desconhecida. Uma
possibilidade para esta relação é a ativação da transcrição da tirosina hidroxilase
através do fator induzido por hipóxia (HIF). Condições hipóxicas levam ao
aumento do HIF-1, induzindo a expressão da PrPc, que tem papel neuroprotetor.
10
Na ausência da PrPc é rompido o loop de feedback negativo que mantém elevados
os níveis de HIF-1, o que induz o promotor da tirosina hidroxilase.
Um segundo estudo conduzido por NICO et al. (2005) submeteu ratos
knockout para o gene PRNP a situações de estresse agudo, como choque
elétrico, a fim de verificar se a proteína priônica celular exibe algum impacto no
comportamento dos animais. Neste estudo, foi demonstrado que os animais
knockout para a proteína priônica exibiram uma resposta ansiosa menor a
situações de estresse agudo do que aquela observada pelos controles, sugerindo
que a PrPc tem um papel na resposta comportamental adaptativa. Além disso, os
ratos sem expressão da proteína priônica apresentaram função motora anormal
após atividade física intensa, o que pode levar a conclusão de que esta proteína
está envolvida na adaptação ou proteção da musculatura estriada frente ao
estresse físico.
A patogênese das prionopatias requer o acúmulo da forma anormal da
proteína PrP (HEDGE et al, 1998). Um dos mecanismos propostos para explicar a
propagação da proteína priônica anormal em mamíferos é através da ligação da
PrPSc à PrPc, com a consequente conversão desta última na forma patogênica, por
um mecanismo ainda não completamente compreendido (fig. 2). Essa conversão
envolve a transformação das estruturas α-hélice em estruturas β-pregueadas e é o
fator desencadeador e de progressão das doenças priônicas (VENNETI, 2010).
Fig. 2. Conformação espacial da proteína priônica normal (PrPC) e da proteína priônica mutada (PrPSc). É possível verificar que a primeira exiba uma estrutura secundária mais rica em α-hélices, ao passo que a segunda é mais abundante em folhas β-pregueadas. Fonte: Machado (2011).
11
Cardoso et al (2015) fizeram um estudo dos óbitos ocasionados por
doenças priônicas no Brasil de 2005 a 2010, por meio do Sistema de Informações
sobre Mortalidade (SIM), ferramenta do Ministério da Saúde. Neste levantamento,
foram encontrados 171.223 óbitos causados por doenças infecciosas e
parasitárias, sendo que, destes, 1 caso era de Kuru e 132 da doença de
Creutzfeldt-Jakob, o que corresponde a 0,0005% dos casos e 0,07% dos casos,
respectivamente (fig. 3).
Relativo à epidemiologia, foi observado que o gênero não é um fator de
impacto, uma vez que o gênero feminino concentrou 51,1% dos óbitos, ao passo
que o masculino contabiliza 48,9%.
Fig. 3. Distribuição das encefalopatias espongiformes transmissíveis no Brasil no período de 2005 a 2010. Fonte: Cardoso et al (2015). Em relação à distribuição geográfica, temos que o Sudeste apresenta o maior
número de notificações, com 84 casos, seguido pela região Sul (26 casos), região
Nordeste (14 casos) e região Centro-Oeste (9 casos) (fig. 4). A baixa
representatividade de casos e a maior concentração de novos casos nas regiões
Sudeste e Sul podem ser devido às redes diagnóstica e de vigilância
epidemiológica serem melhor estruturadas nestas regiões.
12
Fig. 4. Distribuição geográfica das doenças priônicas no Brasil entre os anos de 2005 e 2010. Fonte: Cardoso et al (2015). 4.2. Doenças priônicas humanas
As doenças priônicas humanas são um grupo de transtornos
neurodegenerativos fatais que podem se manifestar nas formas esporádica,
hereditária ou adquirida. São estas doenças o kuru, doença de Creutzfeldt-Jakob,
síndrome de Gerstmann-Straüssler-Scheinker e a insônia familial fatal (AGUZZI et
al, 2017; ARAÚJO, 2013; CHEN e DONG, 2016; JOHNSON, 2005; PRUSINER,
1998; VENNETI, 2010).
4.2.1. Kuru O kuru foi a primeira doença neurodegenerativa humana comprovadamente
transmissível (LIBERSKI et al., 2012). Sua primeira descrição foi feita por Carleton
Gadjusek em 1957, em que apontava que a doença existia na região do Fore, em
Papua Nova Guiné, local onde o povo praticava endocanibalismo (JOHNSON,
2005). O endocanibalismo, neste caso, era uma prática associada com amor e
13
respeito aos mortos, em um ritual em que os restos mortais do indivíduo seriam
guardados nos corpos dos membros da comunidade. (WHITFIELD et al., 2016).
No povoado de Fore, o número de mulheres adultas infectadas com kuru
era dez vezes maior do que o número de homens, ao passo que as crianças eram
infectadas igualmente, independentemente do sexo. Isso era decorrente de as
partes do corpo do morto serem distribuídos de acordo com o gênero e
parentesco. O ritual envolvia não somente o consumo do tecido infectado, mas
também as mulheres e crianças esfregavam o tecido sobre seus corpos,
permitindo inoculação subcutânea via úlceras. As observações epidemiológicas
também não reconheceram transmissão vertical da doença, visto que mães
portadoras do kuru davam a luz a filhos saudáveis.
O decrescimento do kuru começou a acontecer nos anos 1950 quando a
prática de canibalismo foi banida pelas autoridades australianas fazendo com que
a curva de infecção de homens e mulheres se aproximassem, e a curva de mortes
pela doença decaísse (fig.5) (JOHNSON et al., 2005; WHITFIELD et al., 2016).
Fig. 5. Número de casos de kuru desde 1957 até 2011. Ao fim da epidemia, o número de casos da doença que acomete homens se igualou ao número de mulheres doentes. Fonte: Whitfield et al. (2017).
14
Em 1959, William Hadlow, um neuropatologista veterinário escreveu uma
carta a Carleton Gadjusek apontando as semelhanças clínicas e patológicas entre
o kuru e o tremor epizoótico. A partir desta observação e do conhecimento que o
tremor epizoótico era uma doença exclusivamente de ovelhas e cabras, Gadjusek
estudou a transmissibilidade interespecífica do kuru. Em 1963, o pesquisador
inoculou enxertos de cérebro de pacientes diagnosticados com kuru em
chimpanzés, e os animais infectados desenvolveram a doença após um período
de incubação de 18 a 21 meses, em 1965 (JOHNSON et al., 2005; LIBERSKI et
al., 2012).
Os primeiros estudos acerca da doença levaram os pesquisadores a
acreditar que o kuru era de origem genética, uma vez que estava restrito à
população nativa de Fore, 75% dos pacientes tinham laços familiares com outros
que já tinham a doença, estudos epidemiológicos apontavam para a maior
susceptibilidade de mulheres e crianças e achados laboratoriais não apontavam
para uma doença infecciosa. Foi somente após a descoberta que a doença
apresentava um padrão de infecção que a prática de canibalismo foi apontada
como explicação para o fenômeno epidemiológico (LIBERSKI et al., 2012).
Clinicamente, o kuru é uma síndrome cerebelar atáxica acompanhada por
tremor e movimentos involuntários nas extremidades e base dos membros
(movimentos atetoides e coreiformes). Sua evolução é dividida em 3 estágios
clínicos: ambulante, sedentário e terminal. O período prodrômico precebe do
estágio ambulante da doença (tabela 1).
O período prodrômico é caracterizado por cefaleia, dores nos membros e
articulações, dores abdominais e perda de peso. Este estágio pode durar alguns
meses.
No estágio ambulante, há instabilidade sutil na marcha que progride, dentro
de um mês, para ataxia e falta de coordenação dos músculos do tronco e
membros inferiores. O estágio ambulante termina quando o paciente é incapaz de
andar sem auxílio.
A fase sedentária se inicia quando o paciente não consegue andar
sem suporte e termina quando ele é incapaz de se sentar sem suporte. Sintomas
15
que progridem nessa fase são instabilidade postural, ataxia severa, tremor e
disartria.
Finalmente no estágio terminal o paciente está acamado, incontinente, com
disfasia e reflexos primários. A demência pode ser observada nessa fase, porém
são poucos os casos que se apresentam com este sintoma (LIBERSKI et al,
2012).
Tabela 1. Sintomas do kuru subdivididos por estágio.
Estágio Sintomas
Período prodrômico Dor de cabeça, dores nos membros –
frequentemente nas articulações, com
ocasional comprometimento das
articulações interfalângicas -, dores
abdominais e perda de peso.
Estágio ambulante Instabilidade de marcha, astasia grave,
ataxia, incoordenação dos músculos do
tronco e membros inferiores, tremor de
repouso, estrabismo horizontal
convergente, nistagmo, hemiespasmo
facial e paralisia facial supranuclear.
Estágio sedentário Instabilidade postural, ataxia severa,
tremor e disartria.
Estágio terminal Incontinência, disfasia, emaciação,
perda muscular generalizada,
fasciculação, posturas distônicas fixas,
atetose e coreia.
Adaptado de Liberski et al. (2012)
Na avaliação anatomopatológica dos cérebros de pacientes portadores de
kuru, observou-se que os neurônios estavam contraídos e hipercromáticos ou
pálidos ao médoto de Nissl, com vacuolação citoplasmática. No cerebelo, as
16
estruturas pa leocerebelares foram mais severamente afetadas. Observou-se
também proliferação da astroglia e microglia, com degradação de mielina (fig. 6)
(LIBERSKI et al., 2012).
Fig. 6. Visão macroscópia da secção coronal de um cérebro de paciente portador de kuru. (a) Secção coronal sem coloração. (b) Coloração Luxol Fast Blue para avaliação da mielinização. (c) Coloração de Kanzler para avaliação de astrócitos hiperplásicos. (d) Coloração imunohistoquímica para localização da proteína aberrante PrPSc. Fonte: LIBERSKI et al (2012). 4.2.2. Doença de Creutzfeld-Jakob (CJD)
A doença de Creutzfeldt-Jakob é a doença priônica humana com maior
incidência na população, sendo o seu subtipo esporádico responsável por 85%
dos casos (JOHNSON, 2005; MACKENZIE e WILL, 2017). Em torno de 10 a 15%
dos casos estão associados com mutações no gene PRNP – denominada doença
de Creutzfeldt-Jakob genética ou familial (gCJD ou fCJD) – e 1% dos casos são
iatrogênicos, frequentemente associados ao tratamento com utilização de
hormônios ou enxertos de dura-máter. A CJD desencadeou maior interesse dos
profissionais após a identificação da sua forma variante como um distúrbio
zoonótico (MACKENZIE e WILL, 2017). Em 1996, o governo inglês reportou a
nova variante da doença e este relatório atraiu a atenção de diversas entidades no
17
mundo ao afirmar que a encefalopatia espongiforme bovina pode ser transmitida
aos humanos (CARDOSO et al, 2015).
A doença de Creutzfeldt-Jakob ocorre em todo mundo e é relatado que sua
incidência varia entre 0,5 a 2 casos por um milhão de pessoas (Centers for
Disease Control and Prevention, About CJD, 2015; HEAD et al, 2012;
MACKENZIE e WILL, 2017). Como as demais doenças priônicas humanas, a CJD
é progressiva, invariavelmente fatal, com início dos sintomas aos 60 anos e
duração média de 4-5 meses na sua forma esporádica e 13-14 meses no seu
subtipo variante (JOHNSON et al., 2005).
A neuropatologia mais comumente associada a CJD é caracterizada por
degeneração espongiforme, perda neuronal, astrogliose, ativação da microglia e
acúmulo da forma anormal da proteína priônica (PrPSc) no cérebro (LLORENS et
al, 2013). Os sintomas iniciais da doença incluem problemas de memória,
mudanças na personalidade, perda de coordenação muscular, insônia e
depressão. A demência surge durante a progressão do quadro, junto com
movimentos involuntários, cegueira, fraqueza nos braços e pernas e perda da
capacidade de falar e de se movimentar (American Academy of Neurology,
Diagnosing Sporadic Creutzfeldt-Jakob Disease: Accuracy of the 14-3-3 Protein
Test of the Spinal Fluid, 2012).
Entretanto, é importante notar que os sintomas, manifestações clínicas,
duração e particularidades neuropatológicas da doença dependem da composição
do códon 129 do gene PRNP, que pode ser uma valina ou uma metionina, e do
tipo de PrP (LLORENS et al, 2013).
PARCHI et al (1996) estudaram 19 casos da doença de Creutzfeldt-Jakob
esporádica por meio do sequenciamento do gene PRNP, verificação das
características bioquímicas e distribuição cerebral da proteína priônica utilizando
os métodos de Western blot e imunohistoquímica. Foram encontrados 4 grupos de
indivíduos definidos pelo genótipo do códon 129 e dois tipos de proteínas
priônicas que diferem no tamanho e glicosilação. Foi demonstrado neste mesmo
estudo que quando há heterozigose no resíduo 129 do gene PRNP (M/V),
apresenta-se um fenótipo protetor frente ao desenvolvimento de doenças
18
priônicas, ao passo que indivíduos com homozigose (MM ou VV) são mais
propensos a desenvolver uma prionopatia e somam 90% de todos os casos de
sCJD (GILES et al, 2017; PARCHI et al, 1996).
4.2.2.1. Doença de Creutfeldt-Jakob variante Os primeiros casos da doença de Creutzfeldt-Jakob variante aconteceram
em 1994, no Reino Unido e desde então, foram reportados mais de 150 novos
casos da doença.
A CJD variante se apresenta com características clínicas diferentes
daqueles observados para a CJD esporádica, como por exemplo o início de
sintomas precoce, a predominância dos sintomas psiquiátricos e curso mais longo
da doença (tabela 2).
Tabela 2. Comparação entre características clínicas observadas na doença de Creutzfeldt-Jakob variante e a doença de Creutzfeldt-Jakob esporádica
Características clínicas CJD variante CJD esporádica
Idade de início dos sintomas 29 anos 60 anos
Tempo de sobrevida 14 meses 4 meses
Sintomas psiquiátricos precoces Comum Incomum
Ataxia cerebelar tardia Todos os casos Comum
Demência Tipicamente tardia Tipicamente precoce
Proteína 14-3-3 no líquido cefalorraquidiano
Aumentada em 50% dos pacientes
Aumentada na maioria dos pacientes
Polimorfismo no códon 129 Homozigose de metionina Homozigose e heteorizigose
Adaptada de Johnson et al. (2005)
O acúmulo da proteína aberrante no cérebro dos pacientes acometidos de
CJD variante tem localização e tempo de incubação semelhantes àqueles
observados em camundongos infectados em laboratório. A doença também
compartilha características compatíveis àquelas observadas no gado acometido
19
com a encefalopatia espongiforme bovina, indicando que provavelmente as duas
cepas de príons compartilhem a mesma origem.
Apesar de a principal via de infecção ser o consumo de carne infectada com
os príons, é possível que, com o aproveitamento total do gado pela indústria,
possa ter havido contato da mucosa ou tecido conjuntivo com um produto
contaminado, como um sabonete, feito a partir do sebo do gado (JOHNSON et al.,
2005).
4.2.2.2. Doença de Creutzfeldt-Jakob iatrogênica
O primeiro caso da doença de Creutzfeldt-Jakob variante reportado
aconteceu em 1974 quando um paciente recebeu a córnea transplantada de um
cadáver infectado. Desde então, descobriu-se que a doença é adquirida por
contato com material biológico infectado por príons, como no caso de enxerto de
dura máter, transplante de córnea, tratamento com hormônios da hipófise obtidos
de pacientes infectados e contato com produtos sanguíneos. Destas, as principais
vias de infecção são o tratamento com hormônios e o enxerto de dura máter
(tabela 3).
Em 2012, eram 226 casos de doença de Creutzfeldt-Jakob iatrogênica cuja
via de infecção é o tratamento com hormônios do crescimento. O tempo de
incubação da doença variou de 5 a 42 anos (média de 17 anos), com o
polimorfismo do códon 129 tendo impacto direto neste parâmetro: pessoas com
genótipo homozigótico de metionina são mais susceptíveis à doença,
apresentando tempos menores de incubação (30 anos), ao passo que pessoas
heterozigóticas exibem maior tempo até o aparecimento dos sintomas (42 anos).
São 228 casos no mundo de CJD iatrogênica contraída a partir de enxertos
de dura máter, sendo que 142 deles estão no Japão. Um único fabricante na
Alemanha, com distribuição mundial, é responsável pelo aparecimento de quase
todos os casos, já que o aparecimento de novos casos caminha paralelamente à
comercialização de dura máter deste fabricante.
20
Como a população japonesa apresenta uma frequência > 90% do alelo metionina
no códon 129 do gene PRNP, a avaliação da interferência do genótipo na infecção
se torna difícil, porém na avaliação dos casos que ocorreram fora do Japão, a
distribuição dos genótipos revelou que, como no caso da infecção por tratamento
com hormônio do crescimento, a heterozigose M/V no sítio polimórfico acarreta em
maior tempo de incubação (BROWN et al., 2012).
Tabela 3. Tempo de incubação e sintomas clínicos da doença de Creutzfeldt-Jakob iatrogênica, de acordo com a via de infecção
Fonte de infecção Número de casos
Tempo médio de incubação (anos)
Sintomas clínicos
Enxerto de dura máter 228 12 (1.3 - 30) Ataxia, perturbações visuais, demência
Contato com instrumentos neurocirúrgicos infectados
4 1.4 (1 - 2.3) Perturbações visuais, demência, ataxia
Transplante de córnea 2 1.5, 27 Demência, ataxia
Tratamento com hormônio do crescimento
226 17 (5 - 42) Ataxia
Tratamento com gonadotropina
4 13.5 (12 - 16) Ataxia
Transfusão de hemácias 3 6.5, 7.8, 8.3 Sintomas psiquiátricos, sensoriais, demência e
ataxia Fonte: Brown et al. (2012)
A melhor forma de abolir infecções iatrogênicas secundárias é prevenir as
infecções iatrogênicas primárias, mas como não há testes para identificar
pacientes portadores de doenças priônicas ainda assintomáticos, não é possível
eliminar totalmente o risco da infecção.
4.2.3. Síndrome de Gerstmann-Sträussler-Scheinker A síndrome de Gerstmann-Sträussler-Scheinker (GSS) é uma encefalopatia
espongiforme de origem familial, com padrão de herança autossômico e
21
dominante e apresenta penetrância completa (COLLINGE et al, 1989). Foram
descritas sete mutações pontuais relacionadas à doença, sendo a principal delas a
troca de uma prolina por uma valina no códon 102. Esta mutação foi descrita pela
primeira vez por Gerstmann em uma família austríaca (BUGIANI et al, 2000).
A GSS é uma doença priônica de interesse devido a sua fisiopatologia, cuja
característica morfológica é a formação de agregados amiloides e redes
neurofibrilares, achados que traçam um paralelo com a doença de Alzheimer
(MERCER et al, 2018).
Clinicamente, a síndrome de Gerstmann-Straüssler-Scheinker se apresenta
com uma ataxia cerebelar combinada com anormalidades posturais e declínio
cognitivo. Estes sintomas refletem o envolvimento do cerebelo, córtex cerebral e
gânglios basais. Os sintomas aparecem sequencialmente e progridem para o
comprometimento grave da postura, incapacidade de andar ereto, rigidez distônica
e deterioração intelectual. A doença pode apresentar curso muito curto ou
prolongado de acordo com a mutação genética envolvida (BUGIANI et al, 2000;
COLLINGE et al, 1989), tendo tempo médio de 5 a 6 anos, mas podendo variar de
3 meses a 13 anos (PARK et al, 2010).
Na GSS, os depósitos amiloides de PrP se localizam principalmente nas
camadas molecular e granular do cerebelo, córtex cerebral e, em menor extensão,
no tálamo e no tronco cerebral. Estes depósitos são eosinofílicos à coloração de
hematoxilina-eosina, positivos à coloração de PAS e argirofílicos (BUGIANI et al,
2000).
Em geral, o diagnóstico de doenças priônicas é feito por meio de exames
anatomopatológicos. O eletroencefalograma combinado com a análise do líquido
cefalorraquidiano em busca do marcador proteico 14-3-3 podem auxiliar no
diagnóstico diferencial, mas são pouco úteis no caso de GSS, uma vez que
somente 50% dos casos são positivos para a proteína 14-3-3 e 8% apresentam
alteração no eletroencefalograma (PARK et al, 2010).
Assim, os depósitos amiloides – visíveis pela imuno-histoquímica – são
considerados a principal característica morfológica da síndrome de Gerstmann-
22
Straüssler-Scheinker e, desta forma, a doença pode ser diferenciada da doença
de Alzheimer e outras doenças priônicas.
4.2.4. Insônia Familial Fatal A insônia familial fatal é uma doença priônica autossômica dominante
causada pela troca do aminoácido ácido aspártico por uma arginina no códon 178
do gene PRNP, em combinação com a presença da metionina no códon
polimórfico 129. Nota-se que a doença de Creutzfeldt-Jakob apresenta a mesma
mutação no códon 128, porém diferencia-se da insônia familial fatal pela presença
de uma valina no códon 129 (LINDSLEY, 2017; LLORENS et al., 2017).
A doença foi reportada em 40 famílias em todo o mundo e é
invariavelmente fatal, com tempo média de sobrevivência de 18 meses após o
início dos sintomas (LLORENS et al., 2017). A insônia familial fatal afeta homens e
mulheres igualmente, com o início dos sintomas podendo ocorrer dos 36 aos 62
anos, com uma média de 51 anos (LINDSLEY, 2017).
A principal região do cérebro afetada por esta síndrome é o tálamo, região
responsável pela modulação do ciclo vigília-sono. A doença progride em quatro
estágios: no primeiro estágio, iniciam-se os sintomas de insônia e que
rapidamente progridem no curso de 3-6 meses, podendo ser acompanhados de
sintomas psiquiátricos, como crises de pânico ou paranoia. O segundo estágio é
caracterizado pelo aparecimento de depressão e ansiedade em conjunto com
mudanças de marcha. No estágio 2, sintomas psiquiátricos se tornam mais
severos e pronunciados e há hiperatividade do sistema simpático, causando
aumento nos níveis de cortisol, frequência cardíaca, pressão arterial, temperatura
corporal e respiração. No estágio 3, há ruptura completa do ciclo vigília-sono, que
pode durar até 3 meses. No último estágio, a insônia prolongada leva a demência,
mutismo acinético, coma e morte (LINDSLEY, 2017; LLORENS et al., 2017).
Os sintomas de insônia reportados por pacientes com insônia familial
fatal podem advir da redução da estabilidade do sono, da manutenção do sono, ou
ambos – decorrentes da degeneração talamocortical. Um hormônio essencial no
ciclo vigília-sono é a melatonina, produzida na glândula pineal a partir do estímulo
23
da luz. Na glândula pineal há grande concentração da proteína priônica celular.
Estudos conduzidos com ratos knockout para a proteína PrP demonstraram que
estes animais exibiam um ciclo circadiano maior do que aquele dos controles,
sendo comparável aos sintomas de pacientes com insônia familial fatal. Contudo,
quando colocados em ausência completa de luz, não se observam diferenças nos
níveis plasmáticos de melatonina entre os animais knockout e os controles,
levando os pesquisadores a acreditar que a PrPc tem um papel na tradução do
estímulo luminoso em sinal bioquímico para a produção de melatonina (ROGUSKI;
GILL, 2017).
O diagnóstico da insônia familial fatal pode ser difícil em casos onde há
ausência de antecedentes familiares de outras doenças priônicas. Exames
bioquímicos são capazes de detectar a hiperatividade simpática e o exame de
polissonografia é capaz de detectar a perturbação do sono com múltiplos
despertares, redução do sono REM e alteração desta fase por atividades afásicas,
perda de atonia muscular e apneia. Alterações na ressonância magnética estão
confinadas ao tálamo e a tomografia com 2-fluoro-2-deóxi-D-glicose revela um
hipometabolismo talâmico nas fases pré-sintomática e sintomática da doença. Os
biomarcadores normalmente utilizados no diagnóstico de demais doenças
priônicas, como a concentração da proteína 14-3-3 no líquido cefalorraquidiano
têm baixa sensibilidade para encefalopatias espongiformes de origem genética
(LLORENS et al., 2017).
4.3. Barreira Interespécie
Nos anos 1990, no Reino Unido, foi descoberto que a causa provável do
aparecimento da doença de Creutzfeldt-Jakob variante (vCJD) em humanos é o
consumo de carne de vaca infectada com a encefalopatia espongiforme bovina,
ou, como é comumente conhecida, “doença da vaca louca”. Desde então, as
doenças priônicas foram colocadas em evidência como parte das doenças
emergentes que são capazes de atravessar a barreira interespécies (PRIOLA,
2008).
24
O tópico da barreira interespécies é importante não somente devido à
infecção de humanos a partir de carne de gado contaminada. Supõe-se que o
desenvolvimento da encefalopatia espongiforme bovina aconteceu porque passou-
se a alimentar os bois e vacas com uma mistura de ossos e carne de ovelha e
gado triturados. Inicialmente, somente as ovelhas eram portadoras do tremor
epizoótico, ou scrapie, mas com o contato continuado via alimentação com a
proteína anormal destes animais e a conversão da PrPc em PrPSc nos animais, a
encefalopatia espongiforme bovina começou a se manifestar. Assim, a cepa do
tremor epizoótico cruzou a barreira interespecífica duas vezes, deixando de
infectar somente ovelhas para infectar também o gado, e por fim, os humanos
(AFANASIEVA; KUSHNIROV; TER-AVANESYAN, 2011; PRIOLA, 2008).
Todos os mamíferos expressam uma forma da proteína priônica que é
solúvel e sensível a proteases; esta fica expressa na forma de glicoproteína na
parte externa da membrana celular, presa a uma âncora de glicofosfatidilinositol
(fig. 7) (AFANASIEVA; KUSHNIROV; TER-AVANESYAN, 2011; PRIOLA, 2008).
Fig. 7. Ressonância magnética nuclear da proteína priônica de hamster. É possível verificar que a proteína está ancorada à membrana plasmática via glicofosfatidilinositol, apresenta uma região N-terminal flexível, dois domínios de folhas β-pregueadas e três domínios de α-hélices. Fonte: Priola (2008).
25
PRUSINER et al (1990) utilizaram a forte barreira interespecífica entre ratos
e hamsters para verificar a possibilidade de uma cepa de tremor epizoótico que
acomete hamsters causar doença em ratos. A fim de testar se a sequência
primária da proteína priônica influencia na infecção, os pesquisadores geraram
ratos transgênicos que expressam a proteína priônica normal de hamsters, aqui
denominada PrPh, e infectaram estes e os animais controle com a cepa de tremor
epizoótico específica de hamsters. O que foi observado neste estudo foi que os
ratos do grupo controle não apresentaram a doença no curso do experimento, ao
passo que os animais transgênicos desenvolveram o tremor epizoótico com tempo
de incubação inversamente proporcional concentração da PrPh.
A partir deste estudo, pode-se inferir que a barreira interespecífica tem
maiores chances de ser quebrada se a proteína priônica externa for igual ou
homóloga à proteína priônica do hospedeiro. Se houver disparidades entre as
sequências primárias da proteína, a infecção será prevenida. Este fato se dá
devido ao mecanismo de conversão da PrPc em PrPSc, discutido previamente, em
que o processo de conversão da proteína priônica para a sua forma anormal, pela
polimerização semeada (seeded polymerization), se baseia na ligação da PrPSc à
PrPc. Esta ligação é sensível e a mudança de um único aminoácido na estrutura
primária da proteína externa poderá alterar este mecanismo (PRIOLA, 2008).
Em 1998, KELLERSHOHN e LAURENT conduziram um estudo cinético
para verificar experimentalmente o mecanismo proposto em estudos teóricos a
respeito da propagação das doenças priônicas. Diversos destes estudos
postularam que a patogenicidade das encefalopatias espongiformes é catalisada
pela agregação da isoforma PrPSc e o sistema se apresenta com estabilidade
dinâmica.
O modelo experimental utilizado para o estudo da barreira interespecífica
consiste na inoculação de um homogenato de um doador em um hospedeiro (o
que é chamado de primeira passagem). Em seguida, é feito um homogenato a
partir de extratos do hospedeiro infectado e este é inoculado em uma nova série
de hospedeiros. O modelo segue sucessivamente; na maioria dos casos, são
26
necessárias três passagens para que a cepa se estabilize – ou seja, para que não
haja variação do tempo de incubação (KELLERSHOHN e LAURENT, 1998).
Neste estudo, foi proposto que existe uma forma intermediária da proteína
priônica, denominada PrP*, que catalisa a formação da PrPSc no hospedeiro a
partir do modelo da proteína exógena. Este intermediário apresenta propriedades
termodinâmicas e cinéticas diferentes daquelas observadas para a PrPc e PrPSc,
pode ser patogênica ou não, sensível ou insensível à proteólise, dependendo das
espécies doadoras e hospedeiras envolvidas no experimento.
Ainda neste estudo, foi descoberto que o processo patológico não se
comporta em um regime dose-resposta. A doença se desenvolve apenas se a
quantidade inoculada de PrPSc exógena superar um limiar; caso isso não
aconteça, a proteína anormal será eliminada pelo sistema e não serão observados
sinais do desenvolvimento da doença. Assim, sabe-se que, apesar de a PrPSc
estar claramente envolvida no processo patogênico das encefalopatias
espongiformes, ainda não é evidente se esta proteína é de fato o componente
infeccioso. Além disso, foi possível observar que as diversas cepas de proteínas
priônicas se adaptam ao hospedeiro conforme aumentam as passagens a partir do
conhecimento de que a doença se desenvolve em ratos apesar de o homogenato
inoculado ter origem em hamsters – e a nova cepa gerada tem tropismo por
ambas as espécies de animais.
4.4. Diagnóstico Atualmente, o padrão-ouro para o diagnóstico definitivo das doenças
priônicas só é considerado possível através de histopatologia de material
encefálico conseguido via biópsia ou exame anatomopatológico. A técnica
histopatológica de imunohistoquímica permitr a avaliação do grau de gliose
astrocítica ou a presença da proteína PrPSc in situ (KÜBLER; OESCH; RAEBER,
2003).
27
Três testes diagnósticos são geralmente usados para confirmação de
encefalopatias espongiformes. Eles são o eletroencefalograma, análise do líquido
cefalorraquidiano e ressonância magnética (tabela 4) (PUOTI et al, 2012).
Tabela 4. Diferentes técnicas de diagnóstico de doenças priônicas e suas respectivas sensibilidade e especificidade em porcentagem
Técnica de diagnóstico Sensibilidade (%) Especificidade (%)
Análise do líquido
cefalorraquidiano
14-3-3 95 93
NSE (> 35 ng/mL) 81 92
S-100 (> 4.2 ng/mL) 84 91
Tau (> 1400 pg/mL) 93 91
PrPSc 20 100
Ressonância magnética 63 92
Eletroencefalograma 66 74
NSE = Enolase neurônio específica.
Tabela adaptada de KÜBLER; OESCH; RAEBER (2003)
No líquido cefalorraquidiano de pacientes portadores de doença de
Creutzfeldt-Jakob esporádica foram identificadas duas proteínas, p130 e p131,
que fazem parte da família 14-3-3. Sabe-se que a proteína 14-3-3 tem maior
expressão no sistema nervoso central e é um marcador de dano neuronal
(LLORENS et al, 2018; VAN EVERBROECK; BOONS; CRAS, 2005).
O uso da proteína 14-3-3 como biomarcador no diagnóstico diferencial da
sCJD foi validado em estudos em todo mundo, com especificidade de 92%. No
entanto, estes resultados devem ser interpretados em conjunto com o quadro
clínico do paciente, uma vez que a elevação nesta família de proteínas pode ser
observada em pacientes com encefalite viral, síndrome paraneoplásica ou que
sofreram um derrame.
28
Resultados falso negativos também foram observados para o biomarcador
14-3-3 no líquido cefalorraquidiano em pacientes com genótipo heterozigótico
Met/Val ou homozigótico Val/Val no códon 129 do gene PRNP.
Outros biomarcadores estudados no diagnóstico diferencial da sCJD foram
a enolase neurônio-específica (NSE), S-100β, proteína beta-amiloide (Aβ1-42) e a
proteína Tau. A NSE e S-100β não apresentam sensibilidade e especificidade
adequadas para servirem como biomarcadores no diagnóstico das encefalopatias
espongiformes. Por outro lado, a concentração da proteína Tau no líquido
cefalorraquidiano apresentou especificidade de 95% e sensibilidade de 97%. A
combinação dos resultados da proteína 14-3-3 com a proteína beta-amiloide
aumentou a especificidade do teste (VAN EVERBROECK; BOONS; CRAS, 2005).
LLORENS et al. (2018) conduziram um estudo para verificar a correlação
entre a proteína tau e a proteína 14-3-3 no líquido cefalorraquidiano de indivíduos
na fase pré-clínica de doenças priônicas. Estes são biomarcadores de dano
neuronal utilizados comumente no diagnóstico de doença de Creutzfeldt-Jakob
esporádica. Para tanto, foi utilizado um modelo animal de ovelhas da espécie
Rasa aragonesa exibindo o tremor epizoótico (scrapie). Foram selecionadas 27
ovelhas, sendo 10 delas saudáveis, 8 no estágio pré-clínico da doença e 9 no
estágio clínico. Foi demonstrado que os níveis das proteínas tau e 14-3-3 estão
ligeiramente elevados em animais já em fase clínica para a doença, porém não
ouve diferença significativa nos níveis das mesmas nas ovelhas saudáveis e em
estágio pré-clínico (fig. 8).
29
Fig. 8. Proteínas biomarcadoras para doenças priônicas presentes no líquido cefalorraquidiano. (a) Quantificação da proteína 14-3-3 em unidades arbitrárias (UA) e (b) Quantificação da proteína tau em pg/mL. *p < 0,01; **p < 0,05 Fonte: LLORENS et al. (2018)
Apesar de não terem sido observadas diferenças estatisticamente
relevantes na expressão das proteínas tau e 14-3-3 entre os animais controle e os
animais em fase pré-clínica, observa-se que estes biomarcadores encontram-se
ligeiramente mais elevados, sugerindo que os mecanismos neurodegenerativos
ocorrem antes de aparecerem os sintomas.
O estudo se baseia no tremor epizoótico, mas sugere que alterações
similares podem acontecer em casos humanos de encefalopatias espongiformes,
porém confirmação desta hipótese ainda é necessária em outros estudos.
A ressonância magnética é um exame de imagem que atua como
ferramenta no diagnóstico diferencial somente da doença de Creutzfeldt-Jakob
variante. Para as demais encefalopatias espongiformes, a ressonância magnética
atua como auxiliar no descarte de demais possibilidades para o quadro clínico do
paciente.
Para a vCJD, a Organização Mundial da Saúde determina o sinal pulvinar
como um dos critérios diagnósticos da doença. O sinal pulvinar (comumente
chamado de ‘sinal do taco de hóquei’) é caracterizado como alto sinal do núcleo
pulvinar simétrico e bilateral quando comparado ao sinal do núcleo da substância
cinzenta profunda e substância cinzenta cortical (fig. 9). É importante notar que
30
este sinal só é observado em pacientes já sintomáticos e ainda não foram
encontrados relatos de alteração na ressonância magnética de pacientes na fase
assintomática.
Fig. 9. Imagens de ressonância magnética de uma paciente de 18 anos com doença de Creutzfeldt-Jakob variante, 7 meses após o início dos sintomas. Nas imagens, é possível observar o sinal pulvinar. Fonte: Macfarlane et al. (2006) Em um estudo comparativo com 36 casos confirmados da doença de
Creutzfeldt-Jakob variante versus 57 controles, o sinal pulvinar demonstrou
sensibilidade de 78% e especificidade de 100%.
Nas doenças priônicas herdadas, como a insônia familial fatal, síndrome de
Gerstmann-Straüssler-Scheinker e a doença de Creutzfeldt-Jakob familial, as
alterações observadas inespecíficas e podem ser de quatro tipos: sem alteração,
atrofia cortical, atrofia cerebelar ou redução do sinal T2 nos gânglios da base.
No caso da doença de Creutzfeldt-Jakob iatrogênica, foi reportada
hiperintensidade bilateral simétrica do núcleo caudado e putamen em 64% dos
pacientes, e hiperintensidade dos núcleos da base foi notada em pacientes que
foram infectados a partir do enxerto de dura máter (MACFARLANE et al., 2006).
O ensaio QuIC em tempo real se baseia na capacidade da PrPSc
sedimentar a proteína priônica recombinante numa conformação amiloide, capaz
de se ligar a tioflavina-T, causando uma mudança no seu espectro de emissão de
fluorescência (VAN EVERBROECK; BOONS; CRAS, 2005).
31
O uso do ensaio QuIC em tempo real no diagnóstico da doença de
Creutzfeldt-Jakob esporádica já é validado, exibindo sensibilidade de 84%. Assim,
SANO et al. (2013) fizeram um estudo para determinar se este teste pode ser
usado no diagnóstico diferencial precoce de pacientes portadores de doenças
priônicas genéticas, como a doença de Creutzfeldt-Jakob genética, insônia familial
fatal síndrome de Gerstmann-Sträussler-Scheinker.
Foram analisadas 56 amostras de líquido cefalorraquidiano de pacientes
com diferentes formas de doenças priônicas de origem genética. O ensaio QuIC
em tempo real foi positivo em todos os casos (fig. 10). É importante notar que a
maioria dos pacientes portadores de GSS e FFI tiveram resultados negativos para
as proteínas Tau e 14-3-3.
Fig. 10. Mudança no espectro de emissão de fluorescência da tioflavina-T em relação ao tempo. (a) Paciente no estágio inicial de GSS, (b) Paciente portador de FFI, (c) Paciente portador de gCJD com mutação E200K, (d) Paciente portador de gCJD com mutação V203I, (e) Paciente portador de sCJD e (f) Controle.
Sabe-se, a partir deste estudo, que o ensaio QuIC em tempo real pode ser
utilizado no diagnóstico precoce de insônia familial fatal e síndrome de
32
Gerstmann-Sträussler-Scheinker. Este achado é especialmente importante na
síndrome de GSS, uma vez que os pacientes exibem sintomas leves por um ano
depois do início da manifestação da doença e o diagnóstico precoce pode ajudar
no manejo dos sintomas.
4.5. Tratamentos
A natureza fisiopatológica das doenças priônicas acontece em decorrência
do acúmulo da proteína aberrante PrPSc nos neurônios, o que afeta negativamente
a homeostase neuronal pelo bloqueio do transporte axonal, danificando
terminações sinápticas ou sequestrando proteínas essenciais. Assim, as
estratégias para o tratamento das doenças desencadeadas pela agregação
proteica incluem agentes capazes de quebra destes agregados, aumentando a
sua degradação, ou agentes bloqueadores da formação da proteína anormal. Isso
significa, do ponto de vista teórico, que se a ligação da molécula bloqueadora ao
PrPc for de alta afinidade, poderá haver estabilização da estrutura secundária da
PrPc, e, consequentemente, redução da energia livre de Gibbs do sistema. Desta
forma, a energia necessária para alterar a conformação proteica da PrPc para a
sua forma aberrante aumentará proporcionalmente, tornando a formação da
proteína PrPSc cinética e termodinamicamente desfavorável (BARRECA et al,
2018).
Nas encefalopatias espongiformes, o desafio é ainda maior na identificação
de um composto para o tratamento, uma vez que existem cepas da PrPSc,
acredita-se que existam diferentes conformações da proteína, o que explicaria o
grande espectro de características bioquímicas, neuropatológicas e clínicas
(AFANASIEVA; KUSHNIROV; TER-AVANESYAN, 2011; BARRECA et al, 2018).
Derivados tricíclicos da acridina, tais como a quinacrina e a
clorpromazepina, um antimalárico e antipsicótico, respectivamente, foram
indicados como potenciais tratamentos para as doenças priônicas, visto que, pela
experiência clínica, estes medicamentos são seguros para uso em humanos e são
sabidamente agentes que atravessam a barreira hematoencefálica. Além disso,
33
experimentos com células de rato em cultura infectadas com príons demonstrou
que a quinacrina é capaz de impedir a formação da proteína anormal PrPSc
(BARRECA et al, 2018).
Assim, Collinge et al. (2009) conduziram um estudo clínico aberto de
preferência do paciente, denominado PRION-1. Devido à rapidez de progressão
da doença e a inexistência de demais tratamentos, a randomização do tratamento
poderia não ser aceita pelos pacientes, tornando o número de participantes para
este estudo insuficiente, então após consulta com os pacientes, seus familiares e
cuidadores, o protocolo do estudo permitiu a escolha do tratamento. Assim, 106
pacientes se inscreveram, dos quais 38 optaram pelo tratamento com a
quinacrina, 67 optaram pelo placebo e 1 optou pelo tratamento randomizado.
A quinacrina foi administrada oralmente em doses de 200 mg a cada 6
horas, com diminuição da dose para 100 mg três vezes ao dia. Os desfechos do
estudo foram morte ou melhora e/ou estacionamento do quadro clínico geral do
paciente.
Dos 106 pacientes participantes do estudo, 79 faleceram, sendo 28 deles
em tratamento com a quinacrina e os demais do grupo placebo. Apesar de a
mortalidade parecer menor no grupo recebendo a quinacrina, após análise
estatística não houve diferença significativa na taxa de sobrevivência dos
pacientes com o uso do medicamento.
Haik et al. (2014) conduziram um estudo duplo cego randomizado na Itália e
na França com pacientes acometidos pela doença de Creutzfeldt-Jakob, para
avaliar o efeito do tratamento com doxiciclina. Foram selecionados para participar
do estudo 121 pacientes, sendo destes 55 na Itália e 66 na França, com taxa de
1:1 na randomização entre os grupos tratado e placebo.
A dose de doxiciclina para o tratamento dos pacientes foi de 100 mg uma
vez ao dia e o estudo contou com desfechos primários e secundários. Os
primários eram tempo de sobrevivência desde a randomização a morte do
paciente. Já os secundários foram o tempo entre a randomização e a perda da
capacidade de se alimentar, perda do controle dos esfíncteres e tempo até o
mutismo acinético.
34
Neste estudo, foi observado que não houve diferenças estatísticas
significativas nos desfechos primários e secundários nos grupos em tratamento e
placebo, mesmo quando as análises foram quebradas de acordo com as co-
variantes (idade, gênero, forma causal da CJD e fenótipo do códon 129 do gene
PRNP).
É sabido que a conversão da PrPc para PrPSc é altamente dependente da
homologia entre a sequência do inóculo e da proteína priônica celular do
hospedeiro, bem como que a presença de uma proteína priônica celular
heteróloga atua como agente inibidor desta conversão. Desta forma, SKINNER et
al (2015), para testar a hipótese de que o tratamento com proteínas priônicas
celulares heterólogas poderiam agir como tratamento contra as encefalopatias
espongiformes, conduziram um experimento em que houve infecção de
camundongos por via intracerebral com partículas priônicas de tremor epizoótico e
tratamentos com proteína priônica heteróloga de hamsters.
Os animais foram divididos em três grupos, cada um com 13 camundongos.
Os animais receberam alternativamente tratamento com altas doses de PrPc
heteróloga (0.70 mg/mL), baixas doses da proteína (0.35 mg/mL), ambos por via
oral, ou não receberam qualquer tratamento. Foi observado que o tratamento com
a PrPc heteróloga aumenta o tempo de incubação da doença, mas não a previne.
Da mesma forma, reduz os sintomas e déficit motor, bem como o acúmulo da
proteína priônica aberrante no cérebro dos animais.
Assim, é possível que o tratamento com proteína priônica celular heteróloga
possa servir como uma alternativa segura e efetiva no tratamento contra as
doenças priônicas em humanos. Apesar de os resultados serem promissores,
ainda não é possível afirmar que este tratamento pode ser utilizado, uma vez que
não há dados clínicos que suportem esse estudo.
5. CONCLUSÃO(ÕES) Apesar de se reconhecer que o acúmulo da proteína priônica aberrante
PrPSc nos neurônios exerce um papel fundamental na fisiopatologia das
35
encefalopatias espongiformes humanas, ainda é controverso se a PrPSc é a única
responsável pelo desenvolvimento da doença ou se há co-fatores envolvidos,
como a formação de um intermediário proteico ou a interação da proteína priônica
com o DNA da célula para a sua replicação. Ainda são necessários estudos a fim
de elucidar o mecanismo pelo qual as doenças priônicas se desenvolvem em um
nível molecular. Os estudos feitos hoje ainda deixam espaço para dúvidas a
respeito do mecanismo fisiopatológico.
As estratégias para o desenvolvimento de fármacos capazes de tratar as
doenças priônicas são o desenvolvimento de agentes capazes de quebra dos
agregados amiloides, característica fisiopatológica das encefalopatias
espongiformes, aumentando a sua degradação, ou agentes bloqueadores da
formação da proteína aberrante.
Apesar de haver diversos estudos que comprovam a eficácia de possíveis
fármacos in vitro e mesmo in vivo em animais, a extrapolação destes tratamentos
para uso em humanos é limitada, já que sua segurança e eficácia não foi
comprovada em estudos clínicos. Fármacos que já são usados na prática clínica
para outras finalidades apresentam desafios como a ultrapassagem da barreira
hematoencefálica ou altas dosagens para o tratamento das doenças priônicas.
A condução de estudos clínicos para estas doenças também é desafiadora,
uma vez que são doenças com elevado tempo de incubação, falta de
especificidade dos métodos diagnósticos e são raras na população. Desta forma,
o recrutamento de participantes é limitado e, em geral, recrutam-se somente
indivíduos na fase clínica da doença, com baixo tempo de sobrevida e quadro
sintomático grave – estes indivíduos, seus familiares e cuidadores podem recusar
o tratamento a fim de não prolongar o sofrimento do paciente acometido.
Os métodos diagnósticos disponíveis atualmente são altamente
inespecíficos, sendo o padrão ouro para a confirmação de uma encefalopatia
espongiforme o exame anatomopatológico do encéfalo post-mortem. Para o
futuro, com a evolução dos exames genéticos, será mais acessível a identificação
de indivíduos com maior probabilidade de desenvolver a variante esporádica das
doenças priônicas. Ainda assim não será suficiente para um diagnóstico precoce,
36
uma vez que não temos outros fatores preditores do desenvolvimento destas
patologias e a relação com a sua evolução será probabilística e não uma relação
causal.
No caso das prionopatias hereditárias, a penetrância genética é total e o
indivíduo infectado desenvolverá o quadro sintomático. Para estes casos, não há
alternativas para o tratamento ou prevenção contra o início dos sintomas.
Já para os casos em que a infecção acontece por via externa – no caso dos
tipos iatrogênico e variante –, cabe a prevenção. Já se pratica a vigilância dos
casos de infecção do gado e outros animais passíveis de consumo humano, bem
como o descarte de materiais biológicos provenientes de indivíduos sob suspeita
de serem portadores de príons.
6. BIBLIOGRAFIA
AFANASIEVA, E. G.; KUSHNIROV, V. V.; TER-AVANESYAN, M. D.. Interspecies
Transmission of Prions. Biochemistry (Moscow), Rússia, v. 76, n. 13, p.1375-
1384, 2011.
BARRECA, Maria et al. Pharmacological Agents Targeting the Cellular Prion
Protein. Pathogens, [s.l.], v. 7, n. 1, p.27-42, 7 mar. 2018. MDPI AG.
http://dx.doi.org/10.3390/pathogens7010027.
BRASIL, Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria no 204 de 17 de
fevereiro de 2016. Define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de
doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e
privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 fev. 2016. p. 23-24.
BROWN, Paul et al. Iatrogenic Creutzfeldt-Jakob Disease, Final Assessment.
Emerging Infectious Diseases, [s.l.], v. 18, n. 6, p.901-907, jun. 2012. Centers for
Disease Control and Prevention (CDC). http://dx.doi.org/10.3201/eid1806.120116.
37
BUGIANI, Orso et al. Neuropathology of Gerstmann-Straüssler-Scheinker
Disease. Microsc. Res. Tech, [s.i], v. 50, n. 0, p.10-15, 2000.
PARCHI, Piero et al. Molecular basis of phenotypic variability in sporadc creudeldt-
jakob disease. Annals Of Neurology, [s.l.], v. 39, n. 6, p.767-778, jun. 1996.
Wiley-Blackwell. http://dx.doi.org/10.1002/ana.410390613.
CARDOSO, Camila Abdalla de Oliveira et al. Avaliação epidemiológica dos óbitos
por doenças priônicas no Brasil sob o enfoque da biossegurança. Cadernos Saúde Coletiva, [s.l.], v. 23, n. 1, p.2-10, mar. 2015. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201500010002.
CAUGHEY, Byron; BARON, Gerald S.. Prions and their partners in
crime. Nature, [s.l.], v. 443, n. 7113, p.803-810, 19 out. 2006. Springer Nature.
CHEN, Cao; DONG, Xiao-ping. Epidemiological characteristics of human prion
diseases. Infectious Diseases Of Poverty, [s.l.], v. 5, n. 1, p.1-10, 2 jun. 2016.
Springer Nature.
COLLINGE, J. Molecular neurology of prion disease. Journal Of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry, [s.l.], v. 76, n. 7, p.906-919, 1 jul. 2005. BMJ.
COLLINGE, John et al. Safety and efficacy of quinacrine in human prion disease
(PRION-1 study): a patient-preference trial. Lancet: Neurology, [s.I], v. 8, p.334-
344, abr. 2009.
38
DICKSON, Dennis W.; WELLER, Roy O. (Ed.). Neurodegeneration: The
Molecular Pathology of Dementia and Movement Disorders. 2. ed. International
Society of Neuropathology. Wiley-Blackwell, 2011.
GILES, Kurt; OLSON, Steven H.; PRUSINER, Stanley B.. Developing Therapeutics
for PrP Prion Diseases. Cold Spring Harbor Perspectives In Medicine, [s.l.], v.
7, n. 4, p.1-19, 17 jan. 2017. Cold Spring Harbor Laboratory.
http://dx.doi.org/10.1101/cshperspect.a023747.
HAÏK, Stéphane et al. Doxycycline in Creutzfeldt-Jakob disease: a phase 2,
randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Lancet: Neurology, [s.I], v. 14,
p.150-158, 8 jan. 2014
JOHNSON, Richard T. Prion diseases. The Lancet: Neurology, Baltimore, v. 4,
p.635-42, out. 2005.
KELLERSHOHN, Nicolas; LAURENT, Michael. Species barrier in prion diseases :
a kinetic interpretation based on the conformational adaptation of the prion
protein. Biochemical Journal, Grã Bretanha, v. 334, n. , p.539-545, jul. 1998.
KÜBLER, Eric; OESCH, Bruno; RAEBER, Alex J. Diagnosis of prion
diseases. British Medical Bulletin, [s.I.], v. 66, p.267-279, 2003.
LIBERSKI, Pawel P. et al. Kuru: Genes, Cannibals and
Neuropathology. Neuropathol Exp Neurol, [s.i.], v. 71, n. 2, p.92-103, fev. 2012.
LINDSLEY, Craig W.. Genetic and Rare Disease of the CNS. Part I: Fatal Familial
Insomnia (FFI). Acs Chemical Neuroscience, [s.l.], v. 8, n. 12, p.2570-2572, 20
dez. 2017. American Chemical Society (ACS).
39
LLORENS, Franc et al. Cerebrospinal Fluid Prion Disease Biomarkers in Pre-
clinical and Clinical Naturally Occurring Scrapie. Molecular Neurobiology, [s.l.],
p.1-6, 23 mar. 2018. Springer Nature. http://dx.doi.org/10.1007/s12035-018-1014-
z.
LLORENS, Franc et al. Fatal Familial Insomnia: Clinical Aspects and Molecular
Alterations. Current Neurology And Neuroscience Reports, [s.l.], v. 17, n. 4,
p.1-7, 21 mar. 2017. Springer Nature. http://dx.doi.org/10.1007/s11910-017-0743-
0.
LLORENS, Franc et al. PrP mRNA and protein expression in brain and PrPcin CSF
in Creutzfeldt-Jakob disease MM1 and VV2. Prion, [s.l.], v. 7, n. 5, p.383-393, set.
2013. Informa UK Limited. http://dx.doi.org/10.4161/pri.26416.
LUZ, Marcio Henrique Mello da et al. Expression of Tyrosine Hydroxylase is
Negatively Regulated Via Prion Protein. Neurochemical Research, [s.l.], v. 41, n.
7, p.1691-1699, 15 mar. 2016. Springer Nature. http://dx.doi.org/10.1007/s11064-
016-1885-1.
MA, Jiyan; WANG, Fei. Prion disease and the ‘protein-only hypothesis’. Essays In
Biochemistry, [s.l.], v. 56, p.181-191, 18 ago. 2014. Portland Press
Ltd. http://dx.doi.org/10.1042/bse0560181.
MACHADO, Cleiton Fagundes. Estudo funcional de mutantes da proteína príon celular associados às doenças de príon. 2011. 139 f. Tese (Doutorado) - Curso
de Ciências, Oncologia, Fundação Antonio Prudente, São Paulo, 2011.
MACFARLANE, R G et al. Neuroimaging findings in human prion disease. Journal Of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry, [s.l.], v. 78, n. 7, p.664-670, 18 dez.
2006. BMJ. http://dx.doi.org/10.1136/jnnp.2006.094821.
40
MERCER, Robert C. C. et al. A novel Gerstmann-Sträussler-Scheinker disease
mutation defines a precursor for amyloidogenic 8 kDa PrP fragments and reveals
N-terminal structural changes shared by other GSS alleles. Plos Pathogens, [s.l.],
v. 14, n. 1, p.1-33, 16 jan. 2018. Public Library of Science (PLoS).
http://dx.doi.org/10.1371/journal.ppat.1006826.
NICO, Patrícia Barreto Costa et al. Altered behavioural response to acute stress in
mice lacking cellular prion protein. Behavioural Brain Research, [S.I.], n. 162,
p.173-181, mar. 2005.
PARK, Min Jeong et al. A Case of Gerstmann-Sträussler-Scheinker
Disease. Journal Of Clinical Neurology, [s.l.], v. 6, n. 1, p.46-50, 2010. Korean
Neurological Association (KAMJE). http://dx.doi.org/10.3988/jcn.2010.6.1.46.
PRIOLA, Suzette A.. How Animal Prions Cause Disease in Humans. Microbe,
[s.I.], v. 3, n. 12, p.568-575, out. 2008.
PRUSINER, Stanley B. et al. Transgenetic studies implicate interactions between
homologous PrP isoforms in scrapie prion replication. Cell, [s.l.], v. 63, n. 4, p.673-
686, nov. 1990. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/0092-8674(90)90134-z.
PUOTI, Gianfranco et al. Sporadic human prion diseases: molecular insights and
diagnosis. Lancet: Neurology, [s.i.], v. 11, p.618-628, 2012.
ROGUSKI, Amber; GILL, Andrew. The Role of the Mammalian Prion Protein in the
Control of Sleep. Pathogens, [s.l.], v. 6, n. 4, p.58-69, 17 nov. 2017. MDPI AG.
http://dx.doi.org/10.3390/pathogens6040058.
SANO, Kazunori et al. Early Detection of Abnormal Prion Protein in Genetic
Human Prion Diseases Now Possible Using Real-Time QUIC Assay. Plos One,
[s.I.], v. 8, n. 1, p.1-4, jan. 2013.