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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
REFORMA DO ESTADO E MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIOPOLÍTICA
SÃO PAULO
2012
Mário Henrique Farbelow
REFORMA DO ESTADO E MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO SOCIOPOLÍTICA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, para a obtenção do Certificado de Pós-Graduação Lato Sensu. Prof. Orientador: Prof. Dr. Wagner Tadeu Iglecias
SÃO PAULO
2012
i
AGRADECIMENTOS
Agradeço:
À minha família, em especial a meus pais, Sônia e Amauri, e a meu irmão,
Marcus, por terem sempre me incentivado e apoiado.
Ao TCESP, pela oportunidade e apoio financeiro, e à ECP, pela estrutura
disponibilizada para realização do curso.
Ao Diretor da DCG - Dr. Abílio Licínio dos Santos Silva e demais colegas,
especialmente a Lílian, pela cooperação constante.
Ao meu orientador, Prof.Dr. Wagner Iglécias, pelo apoio e dedicação.
E, finalmente, à Fernanda, pelo amor e pelo companheirismo que nos une.
ii
RESUMO
O presente trabalho teve por objetivo explorar a literatura relativa às
transformações de que o Estado foi objeto ao longo do século vinte, detendo-se
especialmente nas propostas de reforma que se iniciaram na década de oitenta e,
parece-nos, permanecem em curso até o momento, questionando de que maneiras tais
reformas tem lidado com a questão do aprofundamento das relações democráticas no
âmbito da Administração Pública, em um contexto que se caracteriza pelo deterioração
da política como esfera legítima de resolução de conflitos.
A primeira grande reestruturação dos padrões de atuação estatal foi
precipitada pela grande crise da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, que
implicou a superação do chamado Estado Liberal clássico, e deu início ao
desenvolvimento do Welfare State, nos países da vanguarda capitalista, e do Estado
Desenvolvimentista, nos países latino-americanos. Ambos se caracterizaram pelo
alargamento do âmbito da atuação do Estado, que passou a assumir a realização de
uma série de atividades antes exclusivamente relegadas à iniciativa privada. Ademais,
especialmente no caso dos Welfare States, assistiu-se a ampliação acentuada da
quantidade de benefícios sociais distribuídos pelo Estado, a ponto de, em alguns
países, o sistema de proteção social aproximar-se da chamada desmercantilização da
mão de obra, isto é, a supressão da necessidade imperiosa dos trabalhadores
venderem sua força de trabalho no mercado como única forma de sobrevivência. Os
sucessos econômicos registrados durante essa fase estimularam o crescimento
desmedido dos aparatos estatais, provocando, por volta de meados da década de
setenta, severas crises fiscais, que solaparam a capacidade de investimentos dos
Estados em quase todo o mundo. Tratou-se, a partir de então, de submetê-lo a um
novo ciclo de reformas profundas. Num primeiro momento, orientadas pelas teorias
neoliberais, que preconizavam o desmonte inconsequente dos aparatos estatais de
seguridade social e a redução de sua atividade regulatória. Logo a seguir, tendo em
vista o aprofundamento das desigualdades sociais em praticamente todo o mundo, as
reformas foram redirecionadas no sentido do fortalecimento da capacidade de ação do
Estado, sem, contudo, reconduzi-lo ao padrão de intervenção que o caracterizou
durante a vigência do Welfare State. O presente trabalho teve por objetivo explorar a
literatura relativa às transformações de que o Estado foi objeto ao longo do século
iii
vinte, detendo-se especialmente nas propostas de reforma que se iniciaram na década
de oitenta e, parece-nos, permanecem em curso até o momento, questionando de que
maneiras tais reformas tem lidado com a questão do aprofundamento das relações
democráticas no âmbito da Administração Pública, em um contexto que se caracteriza
pelo deterioração da política como esfera legítima de resolução de conflitos. É
importante salientar que estas reformas concentraram-se quase exclusivamente nos
aspectos econômico-financeiro e institucional-administrativo, descurando-se quase
inteiramente da dimensão política, a despeito da inegável crise que assola os sistemas
políticos em praticamente todo o mundo, que os expõe de maneira incontornável à
limitações dos mecanismos da democracia representativa em face das transformações
econômica, sociais e políticas provocadas pela globalização. A teoria da democracia
que predominou ao longo de todo o século vinte encerra, nesse sentido, um importante
obstáculo à renovação das práticas políticas, pois, segundo seus principais
formuladores, ela se resume, basicamente, a um mecanismo de seleção de elites
dirigentes, que competem entre si no mercado eleitoral. Apesar disso, observa-se, a
partir da década de setenta do século passado, um movimento contra-hegemônico de
resgate dos conteúdos substantivos da democracia, que procurou instituir novos
espaços de deliberação pública, onde os diversos interesses sociais são confrontados
como parte do processo de construção de compromissos coletivos. Em linha com
essas teorias, surgiram diversos mecanismos de participação social na gestão das
políticas públicas, dois dos quais são brevemente examinados na parte final deste
trabalho: o Orçamento Participativo e os Conselhos gestores.
Finalmente, elaboramos algumas conjecturas acerca das oportunidades de
interação entre os fóruns participativos e os Tribunais de Contas, as quais ensejariam,
em tese, por um lado o fortalecimento do controle social da Administração Pública e,
por outro, o aperfeiçoamento das avaliações de natureza operacional empreedidas
pelas cortes de contas.
Palavras chave: Welfare State, Reforma do Estado, Teorias da Democracia,
Participação social.
Sumário
Introdução .......................................................................................................................... 1 Capítulo 1 - Crise do Liberalismo ..................................................................................... 4 Capítulo 2 - Políticas Keynesianas e Consolidação do Welfare State .......................... 9 2.1. - As Políticas Sociais e a Desmercantilização da Força de Trabalho ......................... 13
Capítulo 3 - A Crise do Welfare State e dos Estados Desenvolvimentistas ............... 20 Capítulo 4 - Crise dos sistemas políticos ...................................................................... 28 4.1. - Vozes Dissonantes ................................................................................................... 37 Capítulo 5 - A Ofensiva Neoliberal ................................................................................. 42
Capítulo 6 - A Reforma do Estado nos Anos 90 ........................................................... 47 Capítulo 7 - Teorias da Democracia e Elitismo Democrático ...................................... 64 7.1. - A Democracia Ateniense .......................................................................................... 64
7.2. - Teorias Elitistas e Democracia ................................................................................. 69 7.3. - Recuperação da Esfera Pública ............................................................................... 78 7.4. - A Contra-hegemonia Democrática ........................................................................... 84 Capítulo 8 - Mecanismos de Participação Política: Obstáculos e Possibilidades ..... 89
8.1. - Orçamento Participativo: a Experiência de Porto Alegre .......................................... 92 8.2. - Conselhos Gestores de Políticas Públicas ............................................................... 97
Considerações Finais: o Tribunal de Contas e os Conselhos Gestores de Políticas Públicas .......................................................................................................................... 109 Bibliografia ..................................................................................................................... 114
1
Introdução
As transformações engendradas ao longo das últimas décadas em virtude
dos processos de globalização, que fortaleceram o papel desempenhado pelas
grandes corporações multinacionais na economia mundial, têm implicado em profundas
reestruturações dos Estados Nacionais em todo o mundo. A primeira delas, e
possivelmente a mais evidente, decorre do comprometimento de sua soberania, já que
as possibilidades de controle de diversos fenômenos socioeconômicos, que se
desenvolvem no interior de suas fronteiras, dificilmente podem se sujeitar às injunções
dos mecanismos de suas políticas públicas. Além disso, a complexidade das
sociedades ocidentais atuais, expressa, entre outros fatores, pelo surgimento de
diversos grupos organizados em torno de demandas específicas, concorre para a
definição dos contornos de outro desafio fundamental aos estados democráticos: sua
incapacidade de satisfazer grande parte dos anseios de sua população, cujas
reivindicações crescem em ritmo muitas vezes superior às possibilidades financeiras e
operacionais das organizações públicas satisfazê-las minimamente.
Estes fenômenos estão na raiz da crise de credibilidade e de legitimidade
dos sistemas políticos contemporâneos. De acordo com Castells, “podem-se identificar
manifestações de crescente alienação política em todo o mundo, à medida que as
pessoas percebem a incapacidade do Estado solucionar seus problemas, e vivenciam
o instrumentalismo único praticado por políticos profissionais” (Castells, 2002, pg. 404)
Ao contexto brasileiro acrescem-se, ainda, as vicissitudes de um processo de
maturação das instituições democráticas extremamente recente, se comparado à
trajetória observada nos países onde a democracia liberal se consolidou primeiramente
(casos de Estados Unidos, Inglaterra e França). Para Teresa Caldeira (2000), o caso
brasileiro caracteriza-se, ainda, pelo que ela denomina “democracia disjuntiva”, pois,
malgrado os movimentos sociais que eclodiram nas grandes cidades brasileiras nas
décadas de setenta e oitenta do século passado, cujo poder de pressão permitiu-lhes,
após longo período de rigorosa censura às liberdades individuais e políticas no país,
influir nos rumos das políticas promovidas pelos governos municipais, obtendo
melhorias expressivas das condições de existência urbana das áreas periféricas destas
cidades – a despeito desta importante experiência popular de participação, a sociedade
2
brasileira permanece atravessada pelo seguinte paradoxo: se, por um lado, as
estruturas jurídicas e institucionais garantem, formalmente, o regime democrático; por
outro, as relações sociais cotidianas permanecem marcadas por práticas
extremamente autoritárias, em decorrência das quais as liberdades civis e políticas são
sistematicamente desrespeitadas sob o consentimento – ora velado, ora deliberado –
não apenas das elites econômicas e sociais que tradicionalmente ocupam os principais
posto de comando do Estado, mas até mesmo de grande parte da população sobre a
qual recai o peso das estruturas repressivas das instituições responsáveis pela ordem
(cap. IV). Neste panorama, parece-nos especialmente relevante que mecanismos e
práticas voltados à disseminação de valores relacionados à democracia, assim como a
ampliação do âmbito das discussões e deliberações relativas a assuntos de interesse
coletivo, sejam prestigiados pelas políticas promovidas nas três esferas de governo.
Tendo em vista estas considerações, o presente trabalho procurou
compreender as principais transformações que marcaram a evolução do Estado ao
longo do século vinte, de sorte a problematizar, em perspectiva diacrônica, as
propostas de reforma de que tem sido objeto nas três últimas décadas. As
reestruturações experimentadas pelas organizações estatais refletem, em grande
medida, as orientações propaladas pela chamada Nova Gestão Pública (New Public
Management), que enfatizam os aspectos econômico-financeiros e institucional-
administrativa da organização do Estado, prescrevendo medidas destinadas a torná-lo
menos oneroso (através da realização de severos ajustes fiscais), a reduzir o âmbito de
suas intervenções na economia e a induzir o desenvolvimento de uma cultura gerencial
nas organizações públicas. Esta cultura traduz-se, grosso modo, na adoção de
estratégias e mecanismos voltados fundamentalmente à obtenção de resultados – em
contraposição à observância estrita dos procedimentos prévia e exaustivamente
fixados em regulamentos. Nesse sentido, as reformas empreendidas durante a década
de noventa em praticamente todo o mundo representaram um consistente ataque ao
modelo burocrático de administração. Como observa Creveld (2004),
“Max Weber [considerou] a administração estatal a personificação da „racionalidade voltada para fins‟,
hoje talvez não reste sequer um indivíduo no mundo que acredite serem esses seus atributos. Na
verdade, é o contrário. Em sucessivos estudos apresentados a partir da década de 1960, as burocracias
estatais foram descritas como infinitamente exigentes (a solução burocrática de qualquer problema é
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mais burocracia), egoístas, propensas a mentir para encobrir suas gafes, arbitrárias, caprichosas,
impessoais, mesquinhas, ineficazes, resistentes a mudanças e desalmadas” (p. 584/585)
Sem embargo da importância dessas medidas, há uma terceira dimensão
que tem sido frequentemente negligenciada pelos planos de reforma do Estado, os
quais ou a ignoram deliberadamente, ou somente a enfrentam no plano do discurso.
Trata-se da dimensão sociopolítica, que se refere aos padrões de relacionamento entre
Estado e sociedade, e que se remetem aos canais efetivos de participação política
franqueados à população, os quais objetivam afastar o insulamento burocrático dos
núcleos que controlam o processo decisório das organizações públicas. Nesse sentido,
interessa-nos especialmente explorar este aspecto das relações entre Estado e
sociedade, inquirindo-nos a respeito das causas da crise que se abateu sobre os
sistemas políticos contemporâneos – que, em última análise, comprometem a
legitimidade da atuação estatal. Ao final, procuramos explorar, ainda, algumas virtudes
e limitações inerentes a alguns mecanismos de participação sociopolítica, além de
esboçarmos as possibilidades de integração institucional entre os conselhos gestores
de políticas públicas e os Tribunais de Contas.
***
O estudo da Gestão das Políticas Públicas envolve, pelo menos, quatro
áreas do conhecimento que, a despeito dos muitos pontos de contacto entre si,
encerram campos de produção acadêmica distintos. São eles: a Economia, o Direito, a
Administração e a Ciência Política. O presente estudo vincula-se principalmente a esta
última, embora incursione brevemente por questões afetas às outras três áreas –
sobretudo à Economia. O presente trabalho buscou desenvolver, exclusivamente por
meio de pesquisa bibliográfica, diversos assuntos abordados ao longo deste curso de
pós-graduação em GPP – alguns dos quais figuraram no programa de mais de uma de
suas disciplinas – tais como a reforma do Estado, as teorias da democracia, as formas
de organização estatal, etc. Parece-nos que o estudo em profundidade dessas
questões é essencial para que desenvolvamos um nível mais aprofundado de
compreensão dos fenômenos com os quais nos defrontamos diariamente, não apenas
como profissionais do controle externo, mas sobretudo como cidadãos.
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Capítulo 1 - Crise do Liberalismo
O final do século XIX caracterizou-se pelo predomínio das concepções
liberais de organização econômica, tal como as engendraram autores clássicos como
Adam Smith e David Ricardo, cujas obras serviram de esteio à condução das políticas
macroeconômicas dos governos nacionais – ao menos nos países da vanguarda
capitalista – e à definição dos padrões de intervenção estatal na economia. Esse
período, que assistiu à consolidação definitiva da esfera pública burguesa,
correspondeu à vulgarização da crença na infalibilidade dos mercados como
mecanismo de alocação dos recursos disponíveis, sempre escassos e insuficientes à
satisfação das demandas materiais do conjunto da população. Adotado como dogma
pelas correntes de pensamento predominantes da época, o mercado assomava como
entidade cujas regras de funcionamento não decorriam do engenho de nenhum
indivíduo, grupo social ou regime político; sua dinâmica respondia, antes, a princípios
universais que lhes são imanentes, sendo contraproducentes quaisquer tentativas
exteriores de disciplinar seu desenvolvimento. Como observa Bento, o mercado era
representado como um “espaço neutro em relação ao poder e emancipado quanto à
dominação” (Bento, 2003, p. 03). Dessa forma, a perseguição dos interesses
individuais e egoísticos produziria, em qualquer situação, as melhores condições
sociais possíveis, ainda que os termos desta assertiva pareçam encerrar um paradoxo.
As interferências do poder estatal orientadas à promoção de uma distribuição mais
equânime dos recursos sociais existentes, de sorte a beneficiar grupos marginalizados
do sistema produtivo hegemônico, provoca invariavelmente distorções que, no limite,
agravam ainda mais as condições daqueles que se pretendia beneficiar (Raichelis,
1998).
De acordo com esta perspectiva, “os problemas sociais não ocorreriam por
falhas no sistema, mas como consequência da falta de motivação e de poupança
individual” (Zimmermann & Silva, 2009, p. 349); ou seja, os responsáveis pelas
condições de miserabilidade a que estão submetidos amplos contingentes
populacionais não são outros senão os próprios miseráveis, os quais se furtam a
envidar os esforços necessários à superação das restrições que os afligem. Como se
pode ver, o liberalismo minimiza as variáveis estruturais e conjunturais na definição das
possibilidades de inserção dos indivíduos no sistema produtivo; as desigualdades de
5
riqueza são consideradas meros reflexos dos talentos e dos esforços individuais,
estando ao alcance de qualquer um a fruição das benesses proporcionadas pelo
universo do consumo. Exclusão e pobreza não são, portanto, produtos das dinâmicas
intrínsecas à reprodução do capital, ao contrário: o desenvolvimento das forças
capitalistas, emancipadas das amarras dos estados paternalistas, proporciona as
condições indispensáveis para que todos alcancem patamares mais elevados de bem-
estar social.
A forma de organização política congruente com os princípios acima
expostos se materializa, em primeiro lugar, através da constrição do âmbito de atuação
estatal, circunscrito a um conjunto de funções voltadas fundamentalmente a garantir a
propriedade privada e a remover eventuais embaraços ao funcionamento do mercado e
à acumulação do capital. Sob esta perspectiva, ao Estado cumpre prover, unicamente,
a administração da justiça – entendida como a observância das normas jurídicas em
vigência –; a promoção da ordem pública, por meio do emprego de forças policiais; e a
submissão às obrigações contratuais ajustadas entre os particulares; subtraindo-se das
demais esferas da vida social, sobretudo daquelas associadas às dinâmicas que
regulam a distribuição das riquezas socialmente produzidas.
Em segundo lugar, a vitalidade do funcionamento do liberalismo econômico
depende da permeabilidade do sistema político à participação popular. Ou seja, o livre
mercado tende a manifestar-se de forma mais cristalina, ao abrigo de manifestações
exaltadas de populismo econômico, sob regimes oligárquicos. As democracias
constituídas ao longo do século XIX, surgidas na voga da chamada primeira onda de
democratização (Huntington), caracterizavam-se pela elevada seletividade dos
indivíduos admitidos à comunidade política de suas nações. Em todos os casos, afora
a interdição generalizada à participação das mulheres, as possibilidades de votar e ser
votado eram condicionadas à percepção de determinado nível de rendimentos anuais,
elevado o bastante para excluir os não proprietários das disputas políticas
institucionalizadas. Nestes casos, a democracia reduzia-se a um mero mecanismo de
seleção de elites dirigentes, depurada dos conteúdos substantivos que a singularizam
na história do pensamento político ocidental1.
1 As formas de manifestação dos regimes democráticos serão abordadas com maior profundidade em
6
Em razão do filtro censitário, a classe política caracterizava-se por um
elevado nível de homogeneidade social e, consequentemente, pela identidade quase
irrestrita de interesses. A reduzida margem de dissenso resultante permitiu a
disseminação de uma representação ideológica cujo prestígio perdurou por mais de
cento e cinquenta anos – desde as revoluções burguesas do século XVIII, na Europa,
até a segunda metade do século seguinte –, a despeito das críticas marxistas terem
desnudado a falácia dos pressupostos sobre os quais repousava. Nesse momento,
cada ocupante dos cargos eletivos do Estado apresentava-se não como o
representante dos seus próprios interesses individuais, ou dos interesses da classe
social a qual pertencia. Nos discursos do período, os dirigentes políticos ostentavam a
imagem de representantes de toda a nação, cujas fraturas e contradições, decorrentes
sobretudo das posições ocupadas no sistema produtivo, eram escamoteadas sob a
sombra projetada pela bem-sucedida manobra de identificação dos interesses
burgueses aos das demais classes sociais. Este contexto permitiu a instrumentalização
do Estado em favor das necessidades de reprodução do capital e, ao mesmo tempo,
repeliu as reivindicações dos demais segmentos populacionais, esquivando os
governos da adoção de políticas que representassem o comprometimento da lógica de
funcionamento dos mercados.
É importante notar, ainda, que os cânones do liberalismo econômico clássico
encerram, ainda, outro importante obstáculo ao aprofundamento das relações
democráticas, que, aliás, ainda hoje reverbera nos discursos de diversos políticos e
tecnocratas contemporâneos2. Ora, se o mercado, conduzido pela chamada “mão
capítulo dedicado às teorias da democracia.
2 Um dos últimos eventos de grande repercussão que exemplifica, mais uma vez, a noção da suposta inevitabilidade da adoção de medidas econômicas prescritas por tecnocratas foi o dos pacotes de ajuda econômica à Grécia, em 2011. A proposta do primeiro-ministro Georges Papandreou de submeter a referendo popular a aceitação das condições impostas pela União Europeia para a obtenção dos empréstimos que ajudariam a livrar o estado grego da falência, alcançou repercussão internacional extremamente negativa. A expectativa era que a população do país, caso tivesse oportunidade de se manifestar, rejeitaria integralmente o pacote de ajuda, já que este previa uma série de medidas deveras impopulares, como cortes drásticos no orçamento de programas sociais e a demissão em massa de funcionários públicos. Papandreou, acossado por forte pressão internacional, recuou, tornando sua permanência à frente do governo grego insustentável. A despeito dos acirrados protestos que se seguiram, o programa de saneamento das contas públicas foi implantado de acordo com as prescrições impostas inicialmente. O argumento que justificou a rejeição da vontade popular foi o de que não se tratava de um processo que admitia soluções de natureza política, mas unicamente a aplicação do receituário elaborado por técnicos altamente experimentados, cujo domínio de sofisticadas ferramentas econométricas permitia-lhes oferecer os melhores caminhos para a superação
7
invisível”, opera segundo regras que emanam de sua própria natureza, e sua vitalidade
tende a recrudescer na medida em que são eliminadas as resistências ao seu livre
funcionamento, a condução das políticas econômicas nacionais não pode ser objeto de
discussões de natureza política, já que se trata de uma questão estritamente técnica
em relação à qual não há alternativas viáveis – assim o garantiam, pelo menos, as
mais avançadas lucubrações das ciências econômicas do período. Os ideólogos
liberais foram extremamente hábeis em despolitizar a economia, qualificando como
irracionais os argumentos dos que se arvoravam contra os princípios e as concepções
que defendiam.
Os primeiros anos do século XX já apresentavam sinais bastante evidentes
de desgaste dos fundamentos que sustentavam o liberalismo econômico clássico. Os
exemplos de distorções provocadas pelo livre funcionamento dos mercados se
tornavam cada vez mais abundantes, embora para grande parte dos economistas do
período talvez fosse particularmente difícil interpretá-los. A prescrição de ferramentas
eficazes à eliminação dessas instabilidades envolvia a superação de dificuldades ainda
maiores do que as relacionadas à identificação de suas causas subjacentes, porquanto
os dogmas da não intervenção estatal e da capacidade de autorregulação dos
mercados encerravam barreiras cuja transposição a elite política do período não
parecia disposta a ousar. Entretanto, a marcha triunfante do laissez-faire foi
abruptamente interrompida com o crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, que deu
início a uma crise econômica de escala planetária, cuja magnitude jamais foi igualada
por nenhum dos ciclos recessivos que se seguiram durante o século XX – e início do
seguinte.
A acentuada retração da atividade econômica, bem como o crescimento em
escala geométrica do número de desempregados, provocou o agravamento das
condições sociais de enormes contingentes de trabalhadores, ensejando instabilidade
social generalizada – ao menos nos EUA e em países da Europa ocidental –, além de
devastar o clima de otimismo que caracterizou o período imediatamente anterior, no
qual a atividade especulativa nas bolsas de valores americanas atingiu níveis
da greve crise da economia grega. Evidentemente, os cálculos desses eminentes economistas nem sempre consideram o “custo humano” implicado na adoção das medidas que prescrevem.
8
espetaculares, valendo-se da virtual ausência de controles estatais sobre o fluxo das
transações financeiras. Riquezas exponenciais forjadas durante os primeiros anos da
década de vinte fundavam-se unicamente em conjecturas acerca da produtividade de
empresas americanas cujas condições objetivas de operação e lucratividade, em geral,
distanciavam-se deveras das expectativas sobre elas projetadas.
É possível afirmar que, nesse período, as negociações de papeis nas bolsas
ocorriam completamente à margem de considerações fundadas acerca das injunções
efetivas do desenvolvimento econômico do país, fazendo com que essas operações
sucumbissem a uma dinâmica absolutamente autônoma em relação às realidades que,
em última análise, deveriam refletir. O estoura da bolha especulativa, insuflada ao
longo de toda uma década, reduziu a pó diversas fortunas e lançou os Estados Unidos
em uma espiral recessiva sem precedentes em sua história, arrastando consigo, em
pouco tempo, todo o mundo ocidental, inclusive os países periféricos, como o Brasil,
cuja retração econômica, ao contrário do que vulgarmente se supõe, não poupou
sequer seu nascente complexo industrial. Possivelmente em intensidade ainda maior
do que a da euforia precedente, o pessimismo que se seguiu aos acontecimentos
dramáticos de 29 feriu gravemente o prestígio desfrutado pelos princípios capitalistas
de organização econômica junto à população de diversos países, criando
oportunidades políticas favoráveis à disseminação das ideias socialistas e ao
recrudescimento da militância dos partidos de esquerda, os quais acenavam com a
possibilidade de superação das contradições e das desigualdades inerentes ao
movimento de reprodução do capital. Neste sentido, as teorias macroeconômicas
formuladas por Keynes não se traduziam simplesmente em um conjunto de medidas
destinado a reverter o quadro recessivo e a reorganizar a economia norte-americana;
tampouco objetivavam, prioritariamente, “humanizar” o capitalismo, impondo limites à
concentração de renda e às condições aviltantes de trabalho de diversos segmentos da
população. O keynisianismo foi, antes de tudo, um esforço desesperado para proteger
o capitalismo contra o avanço socialista, cuja ameaça ganhava, na ocasião, contornos
bastante nítidos, não apenas pela sedução que seus princípios exercem sobre os que
se veem, repentinamente, lançados à miséria, mas sobretudo pelo surgimento de um
regime político de inspiração comunista no Leste europeu, trazido à lume pela
Revolução de 1917, na Rússia.
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Capítulo 2 - Políticas Keynesianas e Consolidação do Welfare State
De acordo com Keynes, a crise econômica do período foi provocada pela
insuficiência crônica da demanda agregada, ou seja, por um processo de acentuada
retração do mercado consumidor, cujo ápice foi apoteoticamente simbolizado pela
quebra da bolsa de valores de Nova Iorque. O momento caracterizou-se, portanto, pela
existência de capitais abundantes que, ante a perspectiva de retornos pouco
compensadores, foram subtraídos ou desviados das atividades produtivas. Diversas
fábricas norte-americanas passaram a funcionar com apenas parte de sua capacidade
operacional, enquanto outras tantas encerraram suas atividades definitivamente. De
maneira esquemática, pode-se dizer que a diminuição da demanda ensejou o
esfriamento das atividades produtivas, provocando a demissão de amplos contingentes
de trabalhadores, os quais, uma vez privados de sua principal fonte de rendimentos,
foram forçados a restringir seu padrão de consumo, tornando ainda mais drástica a
retração da demanda agregada. A sequência descrita encerra um movimento cíclico e
autoreiterativo, cuja solução dificilmente poderia emergir das iniciativas de seus
próprios elementos, arrebatados por uma espiral recessiva vertiginosa. Tais
acontecimentos tornaram indisfarçáveis as fragilidades da teoria do laissez-faire, cujo
arcabouço teórico não admitia a formação de monopólios – isto é, o surgimento de
agentes capazes de absorver toda a concorrência e controlar completamente a oferta
de certos produtos, determinando seus preços de forma artificial e arbitrária. Ao
concentrar suas preocupações quase exclusivamente nas intervenções “indevidas” dos
estados paternalistas, o liberalismo econômico permaneceu cego aos aspectos
destrutivos inerentes ao próprio funcionamento dos mercados. Além disso, as
impropriedades desta perspectiva foram expostas também pela chamada teoria das
externalidades, segundo a qual “os atos praticados pelos agentes econômicos no
mercado produzem consequências imprevistas por estes ou até mesmo indesejáveis,
devido à complexidade extrema da estrutura da cadeia causal das relações de troca
generalizada. A ocorrência dessas externalidades serve para denunciar as falhas da
mão invisível, o mau funcionamento do mercado, cujos atores podem produzir decisões
racionais localmente e curto prazo, porém aberrantes e desastrosas quando situadas
numa perspectiva mais abrangente” (Bento, 2003, p. 03 e 04).
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As propostas de recuperação econômicas formuladas por Keynes
objetivavam, portanto, restaurar a capacidade de consumo da população, fomentar os
investimentos produtivos e, consequentemente, ampliar a oferta de trabalho, reduzindo
a massa de desempregados a uma estreita faixa residual (pleno emprego). Para tanto,
as políticas keynesianas lançaram mão, basicamente, de três estratégias
complementares. A primeira delas concretizou-se por meio de alterações expressivas
nas políticas fiscais até então assumidas por praticamente todos os estados europeus
e o norte-americano, aumentando a carga tributária por meio da aplicação de elevadas
alíquotas aos impostos incidentes sobre grandes fortunas e heranças. Dessa forma,
buscava-se, por um lado, desencorajar o entesouramento de capitais, forçando seus
detentores a aplicá-los em atividades produtivas ou diretamente no consumo, e por
outro, o ampliação da capacidade de investimento do próprio estado. A segunda
estratégia materializou-se através da implantação de um vasto programa de concessão
de empréstimos públicos a juros baixos – significativamente menores do que os
praticados no mercado, mais uma vez almejando estimular a recuperação do consumo
e a retomada dos negócios, além de tornar pouco recompensadora a atividade
especulativa e a aplicação de capital no mercado financeiro. Sem embargo da
congruência entre as duas medidas adotadas e os objetivos que visaram satisfazer,
seus efeitos não poderiam provocar transformações expressivas de forma imediata, tal
como o exigia a gravidade do momento, seja em razão das limitações inerentes ao
metabolismo que preside a efetivação de alterações dessa magnitude, seja em virtude
das dificuldades de uma economia praticamente arruinada responder aos estímulos
que lhes eram dirigidos. Destarte, a superação da crise não poderia prescindir da
adoção de medidas mais agressivas. Este imperativo foi resolvido pelo programa de
intervenção kaynesiano – a terceira estratégia a que se fez referência anteriormente –
mediante a realização de um programa de investimentos públicos de grande
envergadura, que previa a execução de diversas obras, como a construção de pontes,
estradas, prédios públicos, etc., e que exigiam o emprego de grandes contingentes de
trabalhadores. Como se vê, a resposta à crise desencadeada a partir de 1929, nos
Estados Unidos, envolveu a redefinição do padrão de participação estatal na economia
– e em outras esferas da vida social também. Se, até esse momento, ao estado
atribuía-se um restrito espectro de funções, a maioria das quais destinadas a garantir o
11
livre desenvolvimento dos negócios privados, os acontecimentos ulteriores
patentearam a necessidade da adoção de diversos mecanismos de intervenção estatal
no concerto das relações de mercado, cuja dinâmica, ao contrário do que se pensava,
não produz, necessariamente, as melhores condições de desenvolvimento econômico
e bem-estar social. As políticas econômicas de estado abandonam a passividade que
as caracterizaram por mais de um século e assumem a tarefa de controlar diretamente
o nível da demanda agregada, cuidando, por um lado, para que o seu declínio não
importe em crises de superprodução e, por outro, para que seu superaquecimento não
desencadeie surtos inflacionários.
Além disso, o redirecionamento do escopo das políticas econômicas foi
acompanhado pela emergência do chamado estado previdência, ou Welfare State, que
passou a garantir uma série de direitos sociais destinados a amparar a população
contra as incertezas da vida social e a proteger os trabalhadores dos excessos da
exploração capitalista. Malgrado os êxitos registrados pela economia americana, que
alcançou, em pouco tempo, índices de recuperação extremamente expressivos – os
quais restituíram-lhe a pujança alquebrada pela crise financeira de 29 –, as teorias
keynesianas e, sobretudo, o Welfare State conheceram ampla difusão somente a partir
do final da Segunda Guerra mundial, quando praticamente todos os países da Europa
ocidental, além dos EUA, os implementaram, sem embargo das assimetrias nos
resultados econômicos e na extensão dos direitos sociais garantidos pelos diferentes
estados nacionais. De qualquer maneira, as três décadas que se seguiram foram
marcadas pelo elevado e ininterrupto crescimento econômico, acompanhado de
extraordinária ascensão do padrão de consumo de toda a população – ao menos,
repitamos mais uma vez, nos países da vanguarda capitalista. Esses resultados
infundiram uma confiança quase irrestrita no papel do estado como fiador do
desenvolvimento econômico e social, em intensidade semelhante à que caracterizou a
crença amplamente difundida, até o início do século XX, na capacidade do mercado
garantir os mesmos resultados. Como observa Tony Judt (2008):
“O Estado, era crença geral, sempre seria mais eficaz do que o mercado que operasse sem restrições:
não apenas ao fazer justiça e proteger a nação, ou a distribuir bens e serviços, mas ao criar e aplicar
estratégias de coesão social, amparo moral e vitalidade cultural. A noção de que era preferível deixar tais
questões o exercício do interesse próprio esclarecido e do funcionamento do livre-mercado, para bens e
12
ideias, era considerada nos círculos hegemônicos europeus (políticos e acadêmicos) uma exótica
relíquia da era pré-keynesiana: na melhor das hipóteses traduzia a incapacidade de aprender com a
Depressão; na pior, tratava-se de um convite ao conflito e um apelo velado aos instintos humanos mais
reles” (p. 368)
É importante registrar, entretanto, que o surgimento e a extensão de uma
série de direitos sociais não podem ser creditados, unicamente, às estratégias de
recuperação da capacidade de acumulação do capital, urdidas pelos grupos políticos e
acadêmicos identificados com as classes proprietárias. Não há como minimizar a
importância dos movimentos sociais nas conquistas desses benefícios, bem como na
democratização do acesso aos cargos eletivos do Estado. A integração das camadas
populares à comunidade política dos países europeus transferiu para as casas
parlamentares os conflitos políticos que se manifestavam de forma fragmentada e
difusa no seio da sociedade, jogando por terra definitivamente as representações que
alçavam os congressos nacionais à condição de representantes de toda a nação, como
se os interesses antagônicos que a atravessavam inexistissem ou representassem
meras excrescências de importância marginal. As massas assalariadas emergem,
nesse contexto, como uma força política cuja vitalidade não podia mais ser ignorada ou
reprimida por meio da coerção física, a exemplo do tratamento dispensado à questão
social nas décadas que se seguiram aos primeiros impulsos da industrialização
europeia. O fato de todos os segmentos sociais, independentemente do padrão de
rendimentos ou da posse de propriedade privada, poderem se organizar e exigir dos
poderes públicos a satisfação de seus interesses, dadas as oportunidades de
participação política franqueadas pelo adensamento do jogo democrático, fez com que
a legitimidade dos governos eleitos estivesse estreitamente vincula à sua capacidade
de atender as demandas que se lhe apresentavam, fossem elas oriundas do grande
empresariado ou dos movimentos sociais de trabalhadores. Destarte, é possível flagrar
uma relação de dependência subjacente entre o reconhecimento do status político de
agentes antes totalmente alijados dos processos decisórios e o desenvolvimento do
Welfare State – isto é, o crescimento das burocracias públicas e das despesas estatais
com programas de bem-estar social.
13
2.1. - As Políticas Sociais e a Desmercantilização da Força de Trabalho
O Estado previdência pode ser considerado, em grande medida, como o
resultado de um pacto político que garantiu, por um lado, a retomada da estabilidade
necessária à acumulação capitalista, e, por outro, a promoção de uma série de direitos
sociais que, no limite, implicavam a desmercadorização das relações de trabalho. Ou
seja, na medida em que se estruturavam os diversos serviços públicos oferecidos pelo
estado – geralmente previstos nos próprios textos constitucionais e, portanto, alçados à
condição de direitos juridicamente garantidos – as reivindicações das classes
trabalhadoras deixavam progressivamente de se dirigirem aos empregadores e recaem
sobre as burocracias estatais. O surgimento da previdência estatal atenuou
sobremaneira os atritos entre capital e trabalho, preservando o primeiro das formas
mais acirradas de contestação, que se traduziam na disseminação de ideias socialistas
e anarquistas, e na ocorrência de ações diretas, como greves e sabotagens da
produção. Além disso, a oferta ampliada de serviços permitiu, em última análise, o
recrudescimento da produtividade da força de trabalho, porquanto a rede pública de
saúde possibilitava o rápido restabelecimento dos trabalhadores adoecidos, enquanto a
educação pública universal e gratuita elevava as capacidades intelectuais da
população em geral, o que assumia caráter especialmente estratégico para os setores
mais avançados da produção capitalista, tendo em vista a incorporação cada vez mais
acelerada de novas tecnologias aos processos produtivos. Portanto, ao contrário do
que à primeira vista os elevados dispêndios com programas de proteção social
sugerem, o Estado de Bem-Estar Social não se constituiu em detrimento ao Capital,
representando meramente um ônus que absorveu parte expressiva da lucratividade
das empresas privadas.
Por outro lado, a ampliação dos direitos sociais, materializada em programas
governamentais cujos benefícios – seja pela amplitude de sua cobertura, seja pelos
valores distribuídos à sua clientela – permitiram a elevação da qualidade de vida de
amplos segmentos populacionais, sobretudo daqueles alijados do mercado de trabalho.
Evidentemente, o sistema de proteção social consolidado pelos países da vanguarda
capitalista (basicamente Europa Ocidental, Estados Unidos e Canadá), a partir da
segunda metade do século XX, normalmente classificados pela literatura especializada
como Welfare States, não encerravam uma realidade homogênea, havendo, ao
14
contrário, diferenças acentuadas nas características e na abrangência das políticas de
bem-estar social promovidas pelos mesmos. As disparidades observadas ensejaram
diversas tentativas de definição de critérios que permitissem classificar os Estados
como efetivos Welfare States, em oposição àqueles cujos padrões de atuação
permaneciam predominantemente orientados pelas disposições do liberalismo
econômico, que predominaram até o final da Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido,
Gosta Esping-Andersen, sociólogo dinamarquês da Universidade de Pompeu Fabra,
introduziu um modelo de análise da atuação estatal que logrou grande projeção
internacional, alcançando o status de principal referência no estudo dos chamados
Estados Previdência. O autor propôs a classificação das políticas sociais de acordo
com o nível de desmercantilização da força de trabalho que proporcionam. Em outras
palavras, as análises realizadas por Esping-Andersen almejavam determinar se os
serviços públicos oferecidos pelo Estado permitiam a autonomia de seus beneficiários
em relação ao mercado, isto é, se constituíam uma alternativa viável à venda da força
de trabalho como forma de garantir a sobrevivência material dos indivíduos e suas
famílias.
O desenvolvimento das forças capitalistas provocaram, a longo prazo, o
esboroamento das formas pré-mercantilizadas de proteção social, comprometendo, por
um lado, o papel desempenhado pelos grupos familiares durante o período medieval –
no qual cada domicílio constituía uma célula econômica semiautônoma, que contava
ainda com o auxílio paternalista dos senhores em cujos domínios se localizava; e, por
outro, esgarçando os arranjos assistências proporcionados pelas corporações de ofício
citadinas, que garantiam amparo a seus membros contra a ocorrência de eventos que
os incapacitassem – temporária ou permanentemente – para o exercício de suas
atividades profissionais. Ora, a eliminação gradual dos esteios tradicionais de
sustentação material, compeliu os trabalhadores do período, cada vez mais despojados
da propriedade dos meios de produção, a oferecerem sua força de trabalho no
mercado como única forma de obterem rendimentos – o salário. Destarte, a
sobrevivência de grande parte da população dos países da Europa setentrional,
durante os séculos XVIII e XIX, permaneceu totalmente à mercê das flutuações do
mercado, num período em que a abundância da mão de obra disponível rebaixava o
15
padrão de remuneração a níveis que comprometiam a própria reprodução da força de
trabalho.
Neste estágio do desenvolvimento capitalista, o Estado liberal absteve-se de
instituir regulamentos que refreassem a superexploração da massa assalariada, já que
as relações de produção, segundo os parâmetros de organização social instituídos pela
ordem burguesa, pertenciam exclusivamente à esfera privada, permanecendo ao
abrigo das intervenções dos poderes públicos. Ademais, este período caracterizou-se
pela inexistência de políticas estatais destinadas a mitigar as dificuldades enfrentadas
pelos indivíduos não absorvidos pelo mercado – seja pela restrição estrutural da oferta
de postos de trabalho, seja pela debilidade física provocada por doenças ou pela
velhice. Os casos mais graves de penúria social eram aliviados, quase exclusivamente,
pela caridade privada, normalmente prestada por organizações de benemerência
religiosas.
Como se vê, durante mais de dois séculos o mercado de trabalho constituiu-
se na única fonte de sobrevivência para amplos segmentos populacionais. A formação
dos Welfare States correspondeu, portanto, ao processo de socialização dos riscos
inerentes à vida social, efetivado por uma série de programas assistenciais, como o
seguro-desemprego, a prestação gratuita de serviços de saúde, a previdência social,
etc., cuja instituição respondeu, na maioria dos países considerados, às exigências
expressas nos respectivos textos constitucionais, o que significa que tais benefícios
foram alçados à condição de direito social, não podendo sofrer soluções de
continuidade sob pena de responsabilização jurídica do Estado. Ora, na medida em
que permitem ao conjunto de seus cidadãos desfrutar de padrões de existência
material socialmente aceitáveis, independentemente da inserção no mercado de
trabalho, ou da proteção oferecida por outros mecanismos tradicionais de assistência
privada – como a família e as associações religiosas – as políticas de bem-estar social
promoveram, em alguma medida, a desreificação da força de trabalho, que deixou de
ser uma mera mercadoria, tal como o fora durante o período de apogeu do Estado
liberal.
De acordo com Esping-Andersen, a mensuração de algumas variáveis
fundamentais permite indicar em que medida as políticas sociais promovidas por um
16
determinado Estado logram desmercatilizar a mão de obra. A consecução deste
objetivo depende, essencialmente, da extensão dos benefícios concedidos e da
qualidade dos serviços públicos oferecidos à população. Esquematicamente, podemos
subdividir as dimensões analisadas pelo sociólogo dinamarquês em três grupos. O
primeiro deles diz respeito aos requisitos cuja satisfação condiciona o acesso aos
benefícios oferecidos pelo Estado, ou seja, em que medida os critérios de elegibilidade
dos programas sociais representam obstáculos à extensão de seus produtos a todos os
interessados em usufruí-los. Assim, “um programa garante um grau elevado de
desmercantilização, se o acesso ao programa for fácil e se o direito a um nível de vida
adequado estiver garantido, independentemente de o indivíduo ter trabalhado, ter tido
carteira assinada, ou ter contribuído financeiramente para a previdência social”
(Zimmermann & Silva, 2009, p. 353, grifo dos autores).
Além disso, o segundo grupo se refere à importância dos valores concedidos
aos beneficiários – seja por meio da transferência direta de renda, como ocorre no
seguro-desemprego, seja por meio da qualidade e da extensão dos serviços públicos
disponibilizados. Em outras palavras, a apreciação desta dimensão objetiva determinar
se as políticas sociais garantem um padrão de existência material similar ao que é
proporcionado pela média salarial praticada no mercado – ou, pelo menos, ao que é
considerado socialmente aceitável. Quando os recursos concedidos pelo Estado se
situam aquém dos rendimentos necessários à manutenção de um padrão mínimo de
consumo, ou são oferecidos por um período excessivamente curto, ocorre um
acentuado comprometimento da autonomia dos trabalhadores em relação ao mercado.
O mesmo pode ser dito nos casos em que a qualidade dos serviços públicos oferecidos
não proporciona a satisfação das necessidades básicas do público ao qual se
destinam, comprometendo sensivelmente a qualidade de vida de seus usuários.
Por fim, a última dimensão de análise proposta por Esping-Andersen se
baseia na amplitude dos diretos sociais satisfeitos pelas políticas públicas, isto é, as
situações de risco social cuja eliminação – ou mitigação – é deliberadamente assumida
pelo Estado. Alguns países capitalistas contemporâneos, por exemplo, estendem o
atendimento integral e gratuito à saúde a todos os seus cidadãos. Outros, porém,
relegam grande parte deste tipo de assistência à iniciativa privada. Naturalmente,
17
quanto maior a cobertura dos direitos sociais garantidos pelo Estado, maior a
autonomia dos indivíduos em relação ao mercado de trabalho.
A observação das variáveis indicadas acima revela que mesmo entre os
Estados normalmente caracterizados como Welfare States é possível identificar
divergências pronunciadas. Os países anglo-saxões, especialmente a Inglaterra e os
Estados Unidos, distinguiram-se ao longo do período pela influência do pensamento
liberal na organização do Estado e da economia, prevalecendo os princípios
associados ao laissez-faire em detrimento da ampla extensão dos mecanismos de
proteção social custeados pelo Estado. A força da crença na capacidade de
emancipação dos mercados jamais foi significativamente alquebrada nesses países,
mesmo após a grande Crise de 29 e os resultados econômicos logrados pelas políticas
de pleno emprego promovidas logo a seguir. Dessa forma, a despeito do crescimento
acentuado da intervenção estatal tanto na economia, como em outras esferas da vida
social, a montagem dos sistemas de previdência social realizou-se sob a perspectiva
de que os problemas de subsistência individual devem ser solucionados
exclusivamente através dos mercados, os quais transformam em mercadoria inclusive
a cobertura dos riscos a que qualquer indivíduo está exposto ao longo da vida (serviços
de seguridade privada). Ainda de acordo com o pensamento liberal, a promoção de
políticas sociais abrangentes, distribuidoras benefícios generosos a largos contingentes
populacionais, solapam os estímulos ao trabalho e enfraquecem o espírito de iniciativa
– tão caro ao sistema capitalista –, proporcionando “corrupção moral, desperdício,
ociosidade e incentivo aos vícios, como o consumo de bebidas alcoólicas” (Idem, p.
349). Portanto, em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, o desenvolvimento
do Estado de bem-estar social alcançou extensão bastante limitada, cingindo-se a
garantir benefícios pouco significativos, destinados exclusivamente aos segmentos
populacionais mais pobres – os quais eram (e ainda são) submetidos a rígidos
procedimentos de demonstração de sujeição às condições que autorizam sua
percepção.
No outro extremo situam-se os países europeus que adotaram a via política
da socialdemocracia, que trouxeram para o âmbito das responsabilidades estatais a
satisfação de um amplo espectro de direitos sociais. Conquanto não tenham alcançado
a completa desmercantilização da força de trabalho – atingi-la significaria, no limite, a
18
derrogação do sistema capitalista – tais países engendraram complexos sistemas de
proteção social, capazes de garantir a fruição de condições materiais de existência
bastante semelhantes às que desfrutam os indivíduos plenamente integrados ao
mercado formal de trabalho. Os países escandinavos foram os que mais se
aproximaram dessa realidade. De acordo com a classificação elaborada por Esping-
Andersen, Suécia, Noruega e Dinamarca, nessa ordem, atingiram os maiores níveis de
desreificação da mão de obra, superando, inclusive, as principais potencias
econômicas da Europa continental, como França e Alemanha.
Os debates acerca dos Welfare States e da desmercantilização envolveram,
ainda, o questionamento dos efeitos da ampliação das políticas sociais sobre o
adensamento da participação política dos setores mais empobrecidos da população.
Ora, uma vez emancipadas das dificuldades mais básicas de sobrevivência, cuja
superação monopolizava, até então, quase todas as suas atenções, as classes
trabalhadoras mais espoliadas, bem como os grupos marginalizados do sistema
produtivo hegemônico, podiam enfim emergir no cenário político como uma força capaz
de contrabalançar o poder exercido pelas elites econômicas e burocráticas. Em outras
palavras, segundo diversos analistas, ao proporcionar a elevação do patamar de bem-
estar social de sua população, favorecendo as condições objetivas de mobilização dos
segmentos até então alijados dos processos públicos de tomada de decisão, o Welfare
State forjou condições propícias à pulverização do poder político em escala jamais
observada na história moderna. Por outro lado, para alguns autores marxistas, os
benefícios proporcionados por este tipo de Estado representam, em última análise,
uma acomodação do Capital às pressões exercidas pelos diversos movimentos
populares – especialmente operários –, que durante as primeiras décadas do século
XX, lograram significativa projeção social, a despeito da acirrada repressão de que
foram alvo, a ponto de ameaçar a reprodução do sistema capitalista. Dessa forma, ao
invés de ampliar suas possibilidades de participação, os programas de mitigação dos
riscos sociais objetivavam, na verdade, desmobilizar a classe trabalhadora, desviando-
a de sua luta pela distribuição equânime das riquezas socialmente produzidas. Esta
interpretação permanece aferrada ao ortodoxismo da luta de classes, o qual, ante a
progressiva marginalização do setor industrial nas economias contemporâneas, tem
perdido cada vez mais o prestígio acadêmico e político que desfrutou outrora.
19
Por fim, é importante enfatizar que no Brasil, como de resto em toda a
América Latina, jamais se constituiu um verdadeiro Welfare State, mesmo se
considerarmos exclusivamente os padrões pouco exigentes do sistema de proteção
social instituído pelos países liberais. Aqui, o estatuto da cidadania permaneceu – e
ainda permanece – ao alcance de uma reduzida parcela da população, enquanto
amplos contingentes permanecem à sombra das garantias jurídicas e sociais que
caracterizam o Estado de Direito. Tal realidade não se refere apenas aos rincões
economicamente menos desenvolvidos do país, marcados pela produção agrícola de
subsistência e distantes centenas de quilômetros das principais capitais; as periferias
dos grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, congregam milhões
de indivíduos que, além da exclusão do mercado formal de trabalho, permanecem
alijados do usufruto de diversos direitos sociais básicos, como saúde, educação, lazer,
etc., embora estes tenham sido assegurados pela Carta Constitucional de 1988.
Ademais, esses indivíduos são amiúde vitimados pelas arbitrariedades perpetradas por
diversas autoridades públicas, que abusam impunemente das prerrogativas inerentes
aos cargos que ocupam.
A assistência social no Brasil enfrenta historicamente grandes dificuldades
em converter-se em políticas públicas garantidoras de direitos sociais. Aqui, a
assistência esteve relegada historicamente à prestação de auxílios emergenciais em
situações de penúria social extrema, normalmente levada a cabo por grupos privados,
sobretudo as congregações religiosas, cuja tradição remonta às ordens de
benemerência portuguesas do século XVIII. Dessa forma, suas práticas permaneceram
submetidas à lógica do assistencialismo e não da satisfação de direitos de cidadania. O
estado brasileiro jamais assumiu um verdadeiro compromisso de erradicação da
miséria e da mitigação das desigualdades sociais, concentrando suas energias, antes,
no atendimento dos interesses ligados à acumulação capitalista – caráter residual da
assistência social no Brasil (Demo, 1988). Além disso, é importante notar que
assistencialismo é uma prática que se encaixa perfeitamente à cultura política do favor,
da apropriação privada dos bens públicos. Na medida em que transforma a distribuição
de determinados benefícios, normalmente custeados por fundos públicos, em ato de
generosidade dos que viabilizam sua concessão, o assistencialismo reforça o sistema
de trocas clientelísticas que ainda grassa no tecido social brasileiro.
20
Capítulo 3 - A Crise do Welfare State e dos Estados Desenvolvimentistas
As três primeiras décadas que se seguiram ao término da Segunda Guerra
Mundial evidenciaram a importância da atuação estatal na coordenação
macroeconômica e na indução do desenvolvimento das forças produtivas nacionais.
Sem embargo do papel predominante dos mercados na execução desta tarefa,
realizada essencialmente por meio de trocas entre os particulares – que atuam
impelidos pelo princípio da maximização de seus interesses privados – os méritos da
participação subsidiária do Estado tornou-se, durante o período mencionado, cada vez
menos objeto de controvérsias, tanto nos meios políticos, como nos acadêmicos – nos
quais as correntes de pensamento ultraliberais permaneceram marginalizadas até, pelo
menos, o início dos anos setenta. Nesse sentido, as políticas públicas estatais
objetivam, basicamente, efetuar transferências de recursos a setores que os mercados
não remuneram suficientemente, seja em razão de seu comportamento eventualmente
anômalo, seja em virtude do descompasso entre a valoração determinada pela
dinâmica concorrencial e a decorrente do julgamento político da sociedade.
Ora, com base nas afirmações acima, é possível concluir que as causas
profundas das grandes crises econômicas no capitalismo associam-se,
necessariamente, à exacerbação das deficiências que caracterizaram, em um
determinado momento histórico, a atuação de um desses dois agentes fundamentais
de coordenação econômica – se não de ambos, simultânea e cumulativamente. Se a
Crise de 29 pôde ser creditada aos mercados, abandonados a suas próprias
deficiências inatas, à margem de quaisquer instrumentos efetivos de regulação, o
agravamento das condições macroeconômicas que assolou praticamente todos os
países ocidentais no início da década de oitenta, foi diagnosticado como uma crise
provocada pela deturpação do padrão de intervenção estatal nos domínios privados,
ocasionando retração acentuada das taxas de crescimento econômico (em alguns
casos recessão), elevação das taxas de desemprego e crescimento dos índices
inflacionários (Pereira, 1997).
As crises do Welfare State e dos Estados desenvolvimentistas tornaram-se
eminentes em função da intersecção de dois processos distintos, que concorreram
21
para o engessamento da capacidade de investimento das organizações estatais, além
de inviabilizarem a continuidade dos programas sociais de grande envergadura. O
primeiro deles se refere à aceleração dos processos de globalização, que não se
restringiram, como vulgarmente se imagina, ao âmbito econômico, repercutindo,
outrossim, em diversas outras esferas da vida social. Ainda que as origens do
fenômeno possam ser flagradas já nos primórdios do expansionismo europeu da Idade
Moderna, como sugeriram Paul Hirst e Graham Thompson, a globalização recebeu
impulsos sem precedentes a partir da segunda metade do século XX, em virtude da
produção vertiginosa de novas tecnologias, sobretudo nas áreas da comunicação e do
transporte, inaugurando um novo estágio do desenvolvimento capitalista global. Entre
as transformações associadas a esses eventos, gostaríamos de destacar dois fatores
fundamentais, em razão dos desafios que encerraram – e ainda encerram – para a
reorganização dos Estados nacionais e para a redefinição de suas relações com a
sociedade civil:
1) Com as novas tecnologias de comunicação e de transmissão de dados por
meios eletrônicos, os fluxos do capital financeiro adquiriram a capacidade de se
movimentar ao redor do mundo em frações de segundo, em busca das melhores
oportunidades de rentabilidade e liquidez, provocando desequilíbrios cambiais
nas economias de diversos países e condicionando a oferta de crédito para a
realização de investimentos produtivos;
2) A redução do tempo de deslocamento, associada ao barateamento dos custos
de transporte de cargas e pessoas em escala planetária, ensejaram uma nova
etapa da internacionalização da produção industrial, viabilizando a transferência
de parques industriais inteiros de países da vanguarda capitalistas para países
periféricos, onde os padrões salariais são significativamente inferiores aos
praticados no mercado de trabalho dos primeiros. A este fator associam-se,
ainda, outras importantes vantagens, tais como a desregulamentação das
relações trabalhistas, a desoneração da carga tributária, a fragilidade da
organização sindical dos trabalhadores, entre outros, que propiciam, a um só
tempo, a elevação dos patamares de lucratividade e o incremento da
competitividade dessas empresas no cenário internacional.
22
Os fatores sucintamente descritos – aos quais certamente poder-se-iam
acrescer muitos outros – estão estreitamente imbricados ao crescimento espetacular
do comércio internacional verificado nas últimas décadas – o que significa, de maneira
geral, a intensificação dos fluxos de capitais e de mercadorias ao redor do mundo. Tais
fatores concorreram ainda para o comprometimento da autonomia dos Estados
nacionais, já que as possibilidades de controle de diversos fenômenos
socioeconômicos, que se desenvolvem no interior de suas fronteiras, dificilmente
podem se sujeitar às injunções dos mecanismos de suas políticas públicas. Conforme
salienta Lúcia Gomes da Costa:
“Os espaços econômicos não mais coincidem com os espaços nacionais. A soberania política foi, em
grande medida, suplantada pela soberania econômica internacionalizada. Nesse amplo processo de
redefinição da produção capitalista, o Estado-nação é progressivamente corroído pela
internacionalização que desloca a produção, a base da criação do valor, para espaços supranacionais,
aliando-se a um sistema financeiro internacional que detém um fluxo de capital volátil que não está sob o
comando de nenhum banco central, de nenhum governo. Esse capital, livres das amarras nacionais
busca taxas de lucro mais atrativas e cria um tensionamento na economia nacional.” (COSTA, 2006, p.
86)
O outro processo a que se fez referência anteriormente, diz respeito ao
crescimento exacerbado dos Estados nacionais a partir do final da Segunda Guerra
Mundial, insuflado pelos êxitos das políticas macroeconômicas de inspiração
keynesiana, os quais proporcionaram, além da reversão dos processos recessivos
associados à desregulamentação dos mercados, o recrudescimento da qualidade de
vida de grande parte da população – sobretudo na Europa Ocidental, EUA e Canadá. A
partir desses primeiros resultados – e da já mencionada crença quase irrestrita na
capacidade dos Estados garantirem permanentemente o progresso material das
sociedades – seguiu-se um gradual, mas ininterrupto, processo de alargamento do
âmbito de atuação das organizações estatais, que passaram não só a garantir uma
gama cada vez maior e complexa de direitos sociais, como também a atuar na esfera
empresarial, explorando diretamente alguns segmentos econômicos considerados
estratégicos para o desenvolvimento nacional, como, por exemplo, a extração e a
comercialização de minérios indispensáveis ao desenvolvimento de diversos
complexos industriais (ferro, petróleo, etc.), bem como a realização de investimentos
em setores cuja exploração permanecia negligenciada pela iniciativa privada, seja
23
porque os dispêndios iniciais implicavam o desembolso de quantias excessivamente
elevadas, seja porque o retorno dos investimentos não se efetivava senão após o
transcurso de um período de tempo excessivamente longo, tornando a atividade
economicamente pouco atraente.
O Welfare State e os Estados desenvolvimentistas passaram, portanto, a
realizar vultosas transferências de rendas entre diversos segmentos econômicos,
logrando substituir os mecanismos de regulação inerentes ao mercado, avançando
sobre áreas que, até então, tinham permanecido inteiramente à mercê das dinâmicas
das trocas privadas. Evidentemente, a promoção deste novo padrão de atuação exigiu,
por um lado, o aumento das fontes de financiamento das despesas estatais, que se
efetivou por meio da espetacular elevação da carga tributária3 e do recurso permanente
ao mercado financeiro; e, por outro, do crescimento exponencial da burocracia pública,
face às necessidades de planejamento e execução dos programas e ações
introduzidos pelo Estado. Contudo, a marcha ininterrupta de ampliação dos aparatos
estatais avançou para além dos patamares que permitiam a manutenção do equilíbrio
entre Estado e mercado na coordenação das economias nacionais, em detrimento do
papel que a este segundo cumpriria desempenhar, tendo em vista que a eficiência de
seus mecanismos de alocação de recursos transcende, na maioria dos casos, a
capacidade de planejamento das burocracias públicas, já que operam de maneira
automática e espontânea. Se a ausência de Estado, ou seja, a inexistência de
controles que obliterem os vícios responsáveis pela perversão dos princípios da livre
concorrência (monopólios, trustes, economias externas, etc.) e refreiem as
externalidades negativas que o desenvolvimento capitalista acarreta – enfim, se a
omissão do Estado demonstrou ser, em médio prazo, ruinosa para a sustentabilidade
do crescimento econômico e para a elevação dos padrões gerais de bem-estar social,
o excesso de intervenção estatal não provou ser uma via mais apropriada para a
consecução dessas finalidades. Talvez o exemplo que melhor ilustre esta afirmação
tenha sido a dramática dissolução do Estado soviético, no final da década de oitenta do
século passado, que tonou manifesta a fragilidade das tentativas de substituir os
3 De acordo com Bresser Pereira, a carga tributária de diversos países saltou dos 5 a 10% praticados
pelos Estados Liberais de início do século vinte, para pelo menos 30% do Produto Interno Bruto nos Welfare States, chegando, em alguns casos (países escandinavos) a aproximadamente 60%. (Pereira, idem, p. 13)
24
mercados pelos planos de coordenação e integração econômicas elaborados pela alta
cúpula do Partido Comunista local. Em nenhuma outra região do planeta a crise do
Estado se abateu de maneira mais virulenta do que no Leste Europeu, deixando um
rastro de desemprego, pobreza e criminalidade.
Na maioria dos países ocidentais, por outro lado, a esclerose dos Estados
de bem-estar social e desenvolvimentista manifestou-se, a princípio, como uma aguda
crise fiscal, produto de reiterados desequilíbrios orçamentários. Ou seja, a arrecadação
tributária dos Estados, a despeito de sua elevação progressiva, foi incapaz de suportar
o aumento explosivo dos gastos públicos, obrigando os governos a recorrerem ao
mercado financeiro para cobrir seus déficits crescentes. Logo, porém, o prolongamento
desta situação acarretou a retração dramática do crédito público, sujeitando a
Administração a taxas de juros extremamente elevadas, as quais, se por um lado
proporcionavam alívio momentâneo para as dificuldades financeiras mais prementes,
por outro, pavimentavam o caminho que conduzia à insolvência incontornável das
organizações públicas. Além disso, a crise fiscal ensejou a banalização dos episódios
inflacionários – sobretudo nos países da América Latina – em virtude, basicamente, de
dois fatores: 1) a demanda estatal por bens e serviços pressionava acentuadamente
diversos segmentos econômicos, cuja capacidade produtiva era insuficiente para
satisfazê-la sem descurar do abastecimento dos setores privados, resultando em
aumento generalizado de preços; 2) os governos nacionais buscaram contornar o
colapso de suas finanças mediante o aumento não lastreado da oferta de moeda, ou
seja, através do incremento de sua emissão não obstante a ausência do
desenvolvimento econômico do país. É importante notar que esta segunda estratégia
reveste, em última análise, as características de um imposto, já que transfere para o
setor privado – em função da utilização de moeda “sem valor” e, consequentemente, do
aumento dos índices inflacionários – de parte do ônus decorrente das aquisições de
bens e serviços pelo Estado.
Bresser Pereira ressalta, ainda, que as crises dos anos oitenta revelaram o
esgotamento do modelo burocrático de funcionamento da máquina pública. O modelo
weberiano de organização da burocracia representou um consistente ataque às
relações patrimonialistas e clientelistas que caracterizaram a administração pública dos
25
Estados Liberais, na qual grassavam práticas corruptas ou abertamente orientadas à
satisfação de interesses particulares, em detrimento da promoção de valores
republicanos. O modelo burocrático clássico visava, fundamentalmente, a
despersonalização do desempenho das atividades públicas, mediante a formalização
dos objetivos a serem perseguidos, bem como dos meios mais eficientes para
concretizá-los, orientando-se pela seleção meritocrática dos quadros funcionais do
Estado. Embora esta forma de organização tenha logrado apreciável êxito – sem,
contudo, extirpar completamente o fisiologismo da Administração – dela decorreu
também a multiplicação exacerbada de procedimentos legais, em cuja correta
observância, muitas vezes, se esvaíam as energias e os recursos empregados por
diversas instituições públicas, independentemente dos resultados afinal obtidos. Além
disso, este enrijecimento operacional mostrou-se especialmente refratário à realização
dos ajustes exigidos pelas transformações sociais e econômicas engendradas de forma
cada vez mais célere pelos processos de globalização, solapando a capacidade das
organizações públicas responderem minimamente aos anseios e expectativas da
população, em um contexto de ampliação das reivindicações populares dirigidas às
organizações estatais. É bem verdade que o modelo burocrático de administração não
alcançou o mesmo nível de desenvolvimento em todos os países que o adotaram;
tampouco eliminou completamente outras formas de dominação concorrentes. No caso
do Estado brasileiro, conforme se verá mais adiante, a administração burocrática –
associada à gramática política do universalismo de procedimentos (Nunes, 2010) –
alcançou projeção bastante restrita (se comparada à que se observou em países
economicamente mais desenvolvidos), circunscrevendo-se, na prática, a alguns
setores da Administração pública, normalmente considerados estratégicos para o
desenvolvimento econômico do país. As práticas clientelistas, que caracterizam tanto o
período imperial quanto a chamada Primeira República, continuaram extremamente
presentes no cotidiano das relações políticas e na atuação de grande parte das
instituições públicas, a despeito dos esforços para debelá-las envidados pelo programa
de modernização da Administração implantado durante o Estado Novo.
Os argumentos apresentados acima, que enfatizam os aspectos estruturais
e econômicos na explicação da crise dos Estados de bem-estar social e
Desenvolvimentista, são os mais frequentemente invocados pelos estudiosos que se
26
debruçaram sobre o fenômeno. Entretanto, gostaríamos ainda de mencionar
brevemente a interpretação proposta por Pierre Rosanvallon, não apenas em razão da
projeção que o autor alcançou nos debates acerca do Welfare State, mas sobretudo
em virtude de sua originalidade. Rosanvallon defende que as causas profundas para o
colapso do padrão de intervenção estatal predominante nas últimas três décadas não
podem ser surpreendidas por análises de cunho meramente econômico: a experiência
expôs o malogro dos diversos acadêmicos que procuraram determinar “cientificamente”
os limites para o crescimento das despesas públicas. A maioria dos tetos propostos foi
amplamente suplantada sem o comprometimento significativo dos padrões de
desenvolvimento econômico alcançados anteriormente – em alguns casos, inclusive,
observou-se o recrudescimento das taxas de crescimento após o incremento das
despesas públicas. Destarte, conclui o autor, a crise do Estado de bem-estar social
decorre de fatores socioculturais. Rosanvallon afirma que as políticas sociais
introduzidas nesse período lograram ultrapassar o limite de igualdade que a maior
parte da sociedade considera aceitável. Não a igualdade jurídica, esta sim
irrestritamente desejável, mas a que se refere ao padrão de fruição material desfrutado
pelos diversos segmentos populacionais. O recrudescimento dos níveis de equidade
econômica promove, no limite, o solapamento da alteridade social ao disseminar quase
ilimitadamente os bens materiais e simbólicos que até então exerciam a função de
signos distintivos para diversos grupos sociais, ou seja, ressignificavam os elementos
materiais que amparavam as identidades forjadas pelos agrupamentos humanos,
esvaziando-os dos sentidos que até então orientaram os comportamentos sociais e os
relacionamentos intersubjetivos (Bento, 2003).
A interpretação proposta por Rosanvallon reveste caráter extremamente
polêmico, sendo difícil comprovar a validade de seus argumentos. Além disso, referem-
se exclusivamente aos países da vanguarda capitalista, sobretudo aos que adotaram o
modelo socialdemocrata de organização política, que, como já mencionado acima,
lograram os maiores índices de desmercatilização da força de trabalho. No caso dos
Estados Desenvolvimentistas sul-americanos, o poder explicativo das teses de
Rosanvallon é praticamente nulo, porquanto os países deste continente caracterizam-
se justamente pela profunda dessimetria entre os segmentos mais abastados e os
grandes contingentes populacionais que se situam abaixo da linha da pobreza – com
27
especial destaque, neste particular, para o Brasil, que ocupava, até 2005, a oitava
posição no ranking internacional de desigualdade social elaborado pela ONU – com
base no índice de GINI4 – à frente apenas da Guatemala e de outros seis países
africanos, como Botsuana e Suazilândia. A despeito desta importante limitação, a
relevância da obra do mencionado autor reside justamente no fato de ter explorado
outras dimensões do fenômeno, cuja complexidade torna inverossímil qualquer
interpretação que pretenda explicá-lo por meio da identificação de uma única causa.
Ademais, representa uma alternativa às explicações de cunho meramente econômico
e, nessa medida, distancia-se sobremaneira da inclinação sempre presente – e
particularmente acentuada durante o período de hegemonia do pensamento neoliberal
– para o economicismo, o qual mantém à sombra outros fatores cuja significância,
muitas vezes, suplanta os estritamente associados àquela esfera da vida social.
4 Informação publicada na página eletrônica do Jornal Folha de São Paulo em 07 de setembro de 2005, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u112798.shtml. De acordo com o IBGE, o índice de GINI pode ser definido como a “medida do grau de concentração de uma distribuição, cujo valor varia de zero (perfeita igualdade) até um (a desigualdade máxima).” Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/conceitos.shtm
28
Capítulo 4 - Crise dos sistemas políticos
As crises que se abateram sobre praticamente todo o mundo nas décadas
de setenta e oitenta do século passado não se restringiram aos abalos provocados no
sistema econômico global. Tampouco se limitaram, de um lado, a expor de maneira
incontrastável a inadequação dos mecanismos de administração racional-burocráticos
frente às vicissitudes inerentes aos processos de globalização, e, do outro, a reclamar
a redefinição dos padrões de intervenção estatal dos domínios econômico e social. A
corrosão dos Estados de bem-estar social foi acompanhada por um proeminente
movimento de desgaste dos sistemas políticos em praticamente todo o mundo
ocidental, alcançando tanto países que revestem larga tradição democrática, quanto os
de democratização recente – e cuja trajetória ao longo do último século caracterizou-se
pela persistente instabilidade de seus regimes políticos, intercalando-se frágeis
episódios de pluralismo eleitoral a duradouros períodos autoritários, com marcante
presença militar à frente dos principais postos de comando civil. Sintomer (2010)
ressalta o crescimento sem precedentes da desconfiança do eleitorado acerca do
sistema representativo em geral, e da classe política em particular, a ponto de alguns
autores predizerem, de maneira um tanto hiperbólica, o declínio da era da política,
contra o qual as experiências forjadas sob o influxo das teorias da democracia
deliberativa, bem como dos novos mecanismos de participação direta da população na
elaboração e implantação de políticas públicas, não seriam capazes de, à margem de
outras transformações culturais de grande envergadura, fecundar novamente os
sistemas políticos a partir da transmissão das dinâmicas cívicas existentes. O autor
ressalta que a literatura especializada tem sublinhado seis causas principais
responsáveis pelo desgaste acentuado dos alicerces sobre os quais se sustenta a
democracia representativa contemporânea:
1) O desengajamento das classes trabalhadoras que, com o aprofundamento da
complexidade das relações econômicas, deixaram de se caracterizar pelo elevado grau
de homogeneidade cultural e política que manifestaram ao longo do período de
organização fordista de produção industrial. A superação deste modelo, sucedido por
técnicas mais flexíveis e complexas de organização do trabalho, concomitantemente ao
adensamento da tecnologia incorporada aos processos produtivos, redundou em uma
29
profunda diferenciação no interior das massas assalariadas, fazendo com que as
diversas possibilidades de inserção no mundo do trabalho – entre as quais a dicotomia
entre formalidade e informalidade representa apenas o nível mais elementar –
condicionassem a emergência de estilos de vida sensivelmente distintos e,
consequentemente, perspectivas, ambições e padrões comportamentais divergentes.
Em outras palavras, as transformações econômicas e sociais produzidas pelas novas
etapas do desenvolvimento capitalista favoreceram a desagregação dos elementos
identitários – forjados em torno do mundo do trabalho – que aproximaram as massas
assalariadas durante, pelo menos, a primeira metade do século XX. Ante o
estilhaçamento das identidades coletivas das massas assalariadas, o acordo sobre o
bem público e sobre as formas mais adequadas para atingi-lo torna-se extremamente
instável, afetando a legitimidade de diversas políticas públicas e da atuação estatal em
geral.
2) As sociedades pós-industriais caracterizam-se, cada vez mais, como
“sociedades de risco”: expressão que designa o fato de as forças postas em movimento
pelas novas tecnologias desencadearem consequências cuja previsibilidade escapa às
possibilidades preditivas da própria ciência. De acordo com Ulrich Beck (2011),
influente sociólogo alemão responsável pela disseminação do conceito:
“enquanto na sociedade industrial a „lógica‟ da produção de riqueza domina a „lógica‟ da produção de
riscos, na sociedade de risco essa relação se inverte. Na reflexibilidade dos processos de modernização,
as forças produtivas perderam sua inocência. O acúmulo de poder do „progresso‟ tecnológico-econômico
é cada vez mais ofuscado pela produção de risco. (...) Com sua universalização, escrutínio público e
investigação (anticientífica), eles [os riscos] depõem o véu da latência e assumem um significado novo e
decisivo nos debates sociais e políticos (...). No centro da questão estão os riscos e efeitos da
modernização, que se precipitam sob a forma de ameaça à vida de plantas, animais e seres humanos.
Eles já não podem – como os riscos fabris e profissionais no século XIX e na primeira metade do século
XX – ser limitados geograficamente ou em função de grupos específicos. Pelo contrário, contém uma
tendência globalizante que tanto se estende à produção e reprodução como atravessa fronteiras
nacionais e, nesse sentido, com um novo tipo de dinâmica social e política, faz surgir ameaças globais
supranacionais e independentes de classe” (p. 15 e 16, grifos do autor).
Ou seja, em contraste com as sociedades industriais da primeira
metade do século vinte, nas quais as circunstâncias que reclamavam a intervenção
estatal encerravam, quase sempre, realidades mensuráveis e passíveis de tratamento
estatístico, permitindo o emprego de mecanismos de seguridade altamente eficazes; na
30
sociedade pós-industrial – ou reflexiva, segundo a terminologia empregada por Anthony
Giddens – as implicações dos novos fenômenos se mostram refratários às tentativas
de determinação de suas consequências, bem como de mensuração e mitigação de
seus impactos. Talvez o processo que melhor ilustre estas afirmações seja a
intensificação da degradação ambiental provocada pelo desenvolvimento da
microeletrônica e, sobretudo, das tecnologias de aproveitamento da energia nuclear.
Grande parte da repercussão alcançada pela obra de Beck, sem embargo de suas
qualidades intrínsecas, deveu-se à catástrofe nuclear ocorrida em Chernobyl
aproximadamente na mesma época de lançamento do livro, que escancarou a
fragilidade dos instrumentos mobilizados pelo Estado – e pela própria ciência – para o
enfrentamento de situações-limite como essas. Quase três décadas depois, um novo
acidente nuclear, desta vez na usina de Fukushima, no Japão, provocou novo mal-
estar internacional, reeditando ao menos parte a perplexidade provocada por
Chernobyl, já que o desenvolvimento tecnológico ocorrido nesse período não foi capaz
de produzir mecanismos eficazes de combate aos efeitos da radiação nuclear liberada.
É importante observar que a legitimidade dos Estados de bem-estar
social e Desenvolvimentista baseou-se, fundamentalmente, na racionalidade técnica
potencializada pela especialização do trabalho e pelos métodos burocráticos de
organização (de acordo com o tipo ideal formulado por Weber), que buscaram reservar
o poder decisório das instituições públicas exclusivamente aos experts e à classe
política, estreitando significativamente as possibilidades dos cidadãos comuns – isto é,
os não versados nas técnicas administrativas do Estado – influírem nos rumos políticos
da nação e, mesmo, dos municípios onde residem. Ora, a percepção das limitações da
ciência como instrumento capaz de oferecer respostas adequadas aos novos
fenômenos produzidos pelas sociedades de risco, bem como o acúmulo de exemplos
que manifestam a fragilidade das representações que sustentam a neutralidade da
técnica – isto é, que comprovam a existência de um núcleo irredutível que testemunha
as relações de força por trás de seu desenvolvimento e utilização social – representam
um enorme desafio aos sistemas políticos contemporâneos, pressionando por novos
mecanismos de tomada de decisões políticas.
31
3) Outro fator fartamente apontado pela literatura especializada é o esgotamento
dos padrões racional-burocráticos de atuação estatal, cuja racionalidade, tal como já
mencionado acima, mostrou suas fragilidades e sua incapacidade de garantir
resultados sociais compatíveis com as expectativas dos públicos-alvo das políticas
públicas. Ao arrepio da sistematização teórica de Weber, os burocratas não se
submetem facilmente ao papel que devem desempenhar nas organizações públicas, ou
seja, não afinam seu comportamento aos parâmetros de neutralidade técnica prescritos
pelo sociólogo alemão, afastando da esfera de sua atuação profissional suas
inclinações políticas e demais disposições pessoais. Ou seja, estes servidores
provaram-se refratários à condição de meros instrumentos da organização
administrativa e frequentemente se imiscuíram em questões de natureza política,
solapando a objetividade que deveria pautar o desempenho de suas incumbências
profissionais. O modelo weberiano, segundo o qual os políticos tomam as decisões e
os burocratas as implementam de maneira isenta, empregando as melhores técnicas
disponíveis, revelou-se amplamente ilusório. Além disso, o século XX produziu
inúmeros exemplos da tendência das burocracias públicas encerrarem-se sobre seus
próprios interesses coorporativos, autorreferentes. Há que se destacar, ainda, sua
propensão ao insulamento, de modo a manterem-se ao abrigo das pressões exercidas
pelos movimentos sociais e pela participação direta dos cidadãos na definição dos
contornos das políticas públicas, sob a alegação de que estes não estão aptos a
interferir em questões cuja complexidade torna insubstituível a atuação exclusiva de
especialistas altamente qualificados.
4) Há, ainda, uma dimensão ideológica para a crise dos sistemas políticos.
Conforme salienta Sintomer, “a mobilização dos cidadãos não envolve apenas a lógica
utilitária da defesa dos interesses próprios; ela depende amplamente de ideais capazes
de construir elementos de identificação e de uma crença na possibilidade de um mundo
mais justo” (2010, p. 34). Nesse sentido, a traumática dissolução da União Soviética,
que ao longo de aproximadamente cinquenta anos figurou como uma alternativa
aparentemente viável ao capitalismo, representou um duro golpe contra os movimentos
socialistas no mundo todo, precipitando o descrédito que atualmente pesa contra as
chamadas metanarrativas (entra as quais o marxismo foi, sem dúvida, a mais
influente), que ofereciam explicações teleológicas para a evolução dos conflitos sociais,
32
dotando de sentido as ações e os projetos políticos de diversos grupos organizados.
Estes acontecimentos, que culminaram com o final da Guerra Fria e a supremacia
inconcussa dos Estados Unidos no cenário internacional, permitiram a Francis
Fukuyama, economista e cientista político nipo-estadunidense – e um dos principais
arautos do neoconservadorismo da era Reagan – a proclamar, em tom triunfante, o “fim
da história”, tendo em vista a consolidação inexorável (segundo o autor) das “vitórias”
do capitalismo e da democracia liberal em todo o mundo, cuja força centrípeta
absorveria inescapavelmente os países que ainda relutavam em reorganizarem-se
segundo os princípios desses dois modelos de organização econômica, política e
social.
Por fim, resta destacar que o nacionalismo também viu seu apelo ideológico
decrescer acentuadamente ao longo do século XX em virtude, por um lado, dos
traumas decorrentes dos conflitos armados que apelaram aos sentimentos
nacionalistas como fatores de mobilização e de acirramento de rivalidades entre as
nações beligerantes, e, por outro, pela diluição das fronteiras nacionais provocada pela
globalização.
5) A despeito do crescimento econômico alcançado nas últimas décadas, a política
tradicional não tem sido capaz de dirimir alguns problemas sociais persistentes, como a
elevação dos índices de criminalidade, a baixa qualidade da educação pública e do
atendimento em postos de saúde e hospitais públicos, entre outros. Na Europa, “pela
primeira vez em muito tempo, as novas gerações ingressam na vida ativa com
perspectivas mais sombrias do que as de seus pais” (idem, p. 29), sobretudo em
decorrência do crescimento das taxas de desemprego que, em alguns países, como a
Espanha e a Grécia, já atinge aproximadamente 50% dos jovens com até 25 anos5.
Notícia recente, amplamente divulgada na imprensa, dá conta de que o número de
desempregados na Espanha ultrapassou, pela primeira vez em sua história, a barreira
dos cinco milhões de indivíduos, perfazendo, ao final de 2011, um índice de 22,85% da
população economicamente ativa do país6. Embora a Espanha encerre uma situação-
5 Conforme notícia publicada em 02 de abril de 2012 no portal eletrônico Estadão. Disponível em
http://blogs.estadao.com.br/radar-economico/2012/04/02/desemprego-entre-jovens-na-espanha-supera-50-pela-1%C2%AA-vez-desde-1986/ (consulta realizada em 17 de abril de 2012) 6 Conforme notícia publicada em 27 de janeiro de 2012 no portal de notícias G1, disponível em
http://g1.globo.com/economia/noticia/2012/01/numero-de-desempregados-na-espanha-chega-527-
33
limite, diversos outros países de economia capitalista desenvolvida debatem-se contra
a significativa redução dos postos de trabalho dentro de suas fronteiras, em parte
devido às tecnologias poupadoras de mão de obra, mas sobretudo – como ressaltado
anteriormente – em razão da migração dos complexos industriais de empresas
nacionais para países em desenvolvimento.
Atualmente, já há diversos estudos que demonstram o agravamento das
desigualdades sociais provocado pelas políticas neoliberais adotadas em praticamente
todo o mundo ocidental, desigualdades que não se restringem ao aprofundamento das
dissimetrias entre países do norte e países do sul, mas também entre segmentos
sociais de uma mesma nação. Além disso, se de fato, como a ideologia neoliberal
vulgarizou nas últimas décadas, os diversos fenômenos socioeconômicos que se
desenvolvem no interior de suas fronteiras não podem mais ser completamente
controlados pelos Estados nacionais, é natural que o interesse pela participação
política reflua, ainda que esta assertiva esteja ancorada em um economicismo
reducionista pouco convincente. Como ressalta Diniz, “a globalização não está
comandada por forças inexoráveis e nem marcada exclusivamente por relações e
processos de natureza econômica. Está, sobretudo, sujeita a uma lógica política, que
por sua vez, tem a ver com relações assimétricas de poder, que se estabelecem entre
as potências em escala mundial” (Diniz, 2001, p.14).
6) Por fim, a crise dos sistemas políticos está umbilicalmente associada à
deterioração da função dos partidos políticos como instrumentos de mediação entre a
sociedade civil e o Estado, fato que aponta, em última análise, para a debilidade dos
mecanismos clássicos da democracia representativa, a qual, como se verá adiante, é
amiúde identificada como a “própria democracia”, a despeito de sua cada vez mais
pronunciada incapacidade de corresponder às exigências de manifestação da
soberania popular – conforme a interpretação dada a este conceito por autores
clássicos como Rousseau e Tocqueville. Homero da Costa, a partir de trabalhos de
Hanna Pitkin e Juan Carlos Monedero, afirma que:
“a representação refere-se ao ato mediante o qual um representante – governador ou legislador – atua
em nome de um representado para a satisfação, pelo menos em teoria, dos interesses deste, ou seja, „a
representação aqui significa agir no interesse dos representados, de uma maneira responsiva a eles‟
milhoes.html (consulta realizada em 17 de abril de 2012)
34
“Nesse sentido, os representantes devem ter o direito e a possibilidade de controlar e exigir
responsabilidades ao governante (...). Ou dito em outras palavras: a representação supõe uma relação
social em que existe um dominante que atua em nome de um dominado, na qual o representado pode
controlar o representante não apenas e exclusivamente através de eleições periódicas” (Costa, 2007, p.
73)
Neste contexto, aos partidos políticos – entidades que detém o monopólio da
representação e, por extensão, da formação dos governos – compete a essencial
tarefa de canalizar e articular as demandas da sociedade civil, agregando-as em planos
de ação cuja execução possa ser viabilizada mediante a mobilização dos aparatos
estatais. Ora, é justamente a respeito do cumprimento desta missão que grassa no seio
do eleitorado a percepção – amplamente confirmada por pesquisas acadêmicas – da
inadequação dos partidos políticos contemporâneos. Ao invés de atuarem como elos
de transmissão entre os anseios forjados pelos diversos segmentos sociais e o Estado,
os partidos converteram-se, sobretudo a partir da segunda metade do século passado,
em verdadeiras “máquinas eleitorais”, voltadas fundamentalmente à conquista do poder
político, não mais em razão dos compromissos assumidos junto às bases sociais que
os sustentam e legitimam, mas tão somente como forma de instrumentalizar as
posições estratégicas do aparelho de Estado em benefício dos interesses corporativos
e fisiológicos do próprio partido, ou de lobbies cujos interesses conflitam abertamente
com a promoção dos valores republicamos.
Este processo foi acompanhado, ainda, pela perda da densidade ideológica
dos partidos políticos, cujas propostas passaram a apresentar contornos cada vez mais
fluidos e indistinguíveis em relação às de outros grupos concorrentes. O aumento da
complexidade social promovido principalmente pela globalização, que importou no
surgimento de diversos movimentos sociais já não mais associados ao mundo do
trabalho (como os movimentos feminista, de defesa do meio ambiente, contra o
preconceito racial, etc.), concorreu de maneira decisiva para o aprofundamento dos
processos mencionados. Ora, o sucesso eleitoral tornava-se praticamente inviável a
partidos que focalizassem seus programas políticos em função dos interesses de
apenas um determinado segmento populacional – tal como era possível fazer, por
exemplo, durante o período em que a classe operária caracterizou-se por um elevado
nível de coesão social. Desde então, as propostas partidárias passaram a costurar,
35
muitas vezes de maneira difusa e pouco coerente, elementos oriundos das
reivindicações de diversos grupos de pressão organizados, esforçando-se por assumir
a dimensão de um discurso em nome de “todo o povo” (Costa, idem), fazendo tábula
rasa dos conflitos que atravessam as sociedades contemporâneas. Dessa forma, as
alianças eleitorais que reúnem partidos a princípio posicionados em extremidades
opostas do espectro político-ideológico são urdidas a cada novo processo eleitoral, ao
sabor de conveniências meramente pragmáticas, e há muito tempo deixaram de causar
qualquer espanto ou indignação por parte do eleitorado.
Além disso, a burocratização das estruturas partidárias, se em momento
algum deixou de caracterizar a organização dessas entidades, foi elevada a níveis
paroxísticos nas últimas décadas. Nesse movimento, os partidos políticos assumiram
progressivamente as características de corporações privadas cujos vínculos com as
dinâmicas da sociedade civil tornaram-se cada vez mais débeis, encerrando-se quase
exclusivamente sobre os seus próprios interesses corporativos. O círculo da alienação
partidária completou-se, logicamente, através da supressão do caráter democrático dos
processos de tomada de decisão internos, monopolizados por um número
extremamente reduzido de afiliados – os chamados “políticos profissionais”, geralmente
ocupantes de postos eletivos na Administração pública –, que obliteram o concurso de
praticamente todos os demais membros da legenda, esgarçando os liames entre a
máquina partidária e as bases que outrora lhe infundiram vida e sentido.
No caso do Brasil, historicamente os partidos políticos sempre foram
constituídos de cima para baixo, ou seja, sua criação decorreu quase invariavelmente
de manobras encetadas pela própria elite política, respondendo antes às vicissitudes
das disputas internas pelo poder, ao invés de exprimir a maturação política de
movimentos orgânicos da sociedade7. Talvez o único partido de relevância eleitoral que
7 Último partido político legalmente constituído no Brasil (a aprovação de seu registro nacional pelo TSE
ocorreu em setembro de 2011), o Partido Social Democrático (PSD) representa mais um episódio desta persistente característica da vida político-partidária nacional. A despeito dos esforços para justificar a manobra, envidados por Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo e principal responsável pela criação da legenda, é inegável que o PDS surge como um mero instrumento destinado a viabilizar os projetos de poder de políticos que, em seus partidos de origem, não encontravam ambientes favoráveis à satisfação de suas ambições. Nesse sentido parece-nos flagrante a ausência de qualquer fundamentação ideológica que sustente o surgimento da sigla. Conforme reportagem publicada no site do jornal “O Estado”, em 28 de setembro de 2011, “em março [de 2011], com o partido ainda em fase de formação, Kassab afirmou à Rádio Estadão ESPN que o PDS seria independente e não respondeu qual seria a
36
não se enquadre nessa moldura seja o Partido dos Trabalhadores, originado das
greves operárias no ABC paulista do final da década de setenta e inicio da seguinte.
Entretanto, sua evolução recente reproduziu os caminhos percorridos pela maioria
partidos socialistas europeus: o abandono da consistência ideológica em virtude da
adoção de estratégias abertamente orientadas as conquistas dos principais postos dos
Executivos federal, estadual e municipais.
Os processos comentados brevemente acima têm provocado o crescimento
da desconfiança popular sobre os partidos políticos, em geral, e sobre os “políticos
profissionais”, em particular. Desconfiança que se projeta, ainda, sobre outras
instituições vitais para a vida democrática, como o Poder Judiciário e outras
organizações que integram a Administração pública. De acordo com José Álvaro
Moisés, não é possível subestimar os riscos e as consequências sociais decorrentes
deste descrédito generalizado. Segundo o autor:
“No entanto, a desconfiança em excesso e, sobretudo, com continuidade no tempo, pode significar que,
tendo em conta as suas orientações normativas, expectativas e experiências, os cidadãos percebem as
instituições como algo diferente, senão oposto, daquilo para o qual existem: neste caso, a indiferença ou
a ineficiência institucional diante de demandas sociais, corrupção, fraude ou desrespeito de direitos de
cidadania geram suspeição, descrédito e desesperança, comprometendo a aquiescência e a submissão
dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a vida social” (Moisés, 2005, p. 34)
Ademais, os estudos realizados por diversos cientistas políticos europeus e
estadunidenses são praticamente unânimes ao apontar o aprofundamento da apatia
política da sociedade civil em seus países, que se manifesta fundamentalmente pela
dramática diminuição do comparecimento às urnas nas eleições para cargos
executivos e legislativos8, pelo decrescente número de filiações aos partidos políticos e
pelo estreitamento das fileiras de outros veículos tradicionais de participação política,
orientação da legenda. „É um partido que terá um programa a favor do Brasil‟, disse na ocasião”. Disponível em http://blogs.estadao.com.br/radar-politico/2011/09/28/com-psd-aprovado-kassab-reve-orientacao-do-partido/. Consulta realizada em 17 de abril de 2012 8 Nas eleições espanholas de 2011, apenas 57,6% dos espanhóis com direito a voto registraram suas
preferências nas urnas (conforme notícia do portal eletrônico do jornal Diário de Pernambuco, disponível em http://www.diariodepernambuco.com.br/nota.asp?materia=20111120170118). Já nas eleições para o Parlamento Europeu, realizada em junho de 2009 na cidade de Bruxelas (Bélgica), “o comparecimento às urnas foi de 43%, o nível mais baixo já registrado. Nas eleições de 2004, 45,47% votaram”, conforme noticiou o portal G1, disponível em http://oglobo.globo.com/mundo/europa-se-inclina-direita-em-eleicoes-para-parlamento-3195972. Consulta realizada em 18 de abril de 2012
37
como sindicatos, associações de bairro, movimentos vinculados a organizações
religiosas, etc. Na América Latina são igualmente notórios os altos níveis de
alheamento da população em relação aos processos político-partidários. Após um
breve período de euforia, engendrado pelos episódios que precipitaram a falência dos
regimes ditatoriais que dominaram o cenário político da região nas décadas de
sessenta e setenta, a persistência dos escândalos de corrupção, o decepcionante
desempenho econômico, o aprofundamento das desigualdades sociais, entre outros
fatores, frustraram as expectativas sob os regimes democráticos recém-instalados,
lançando grande parte de suas populações à letargia que a caracterizou no período
anterior.
Diante desse quadro, sem embargo da importância que essas instituições
ainda preservam nos regimes democráticos, a complexidade das sociedades atuais,
convulsionadas pelas mundializações econômica, política e cultural, expõe de maneira
bastante nítida as limitações dos partidos políticos – organizados nos mesmos moldes
que os caracterizaram ao longo do século passado – como instrumentos de
representação dos interesses forjados pelos diversos segmentos sociais. Ante este
quadro, a democracia reclama a adoção de novos mecanismos de participação
popular, que contribuam para a correção das distorções inerentes aos sistemas
representativos contemporâneos e reforcem a legitimidade dos governos eleitos.
4.1. - Vozes Dissonantes
A despeito da farta literatura referida acima, Wanderley Guilherme dos
Santos – um dos mais eminentes cientistas políticos brasileiros da atualidade – rechaça
as teses que diagnosticam o surgimento de crises na democracia representativa no
Brasil. O autor contesta todas as supostas evidências apontadas como prova do
desgaste dessa forma de organização política no país. Ao contrário da percepção
amplamente difundida pela imprensa e por grande parte da literatura especializada,
tanto o Congresso, quanto os partidos políticos em geral, alvos privilegiados de
insatisfação e de descrédito da opinião pública, funcionam de maneira relativamente
adequada, ou, pelo menos, de forma bastante aproximada ao que se observa em
países desenvolvidos, amiúde considerados modelos a serem perseguidos pelas
instituições políticas nacionais. O autor argumenta que os partidos apresentam elevado
38
grau de coerência e disciplina, e repele as interpretações que os caracterizam como
meras legendas eleitorais sem consistência programática e ideológica – e cujos
membros atuam exclusivamente segundo seus próprios interesses particulares,
assumindo posições políticas de maneira casuística, ao sabor das oportunidades de
ampliação de suas bases eleitorais, independentemente das implicações ideológicas
que esses posicionamentos encerram.
Em flagrante oposição às imagens predominantes nas representações sobre
o jogo parlamentar brasileiro, “investigações contemporâneas têm buscado avaliar as
provas em que tais juízos se sustentam, com o surpreendente resultado, para alguns,
de que praticamente a metade do tempo e da iniciativa dos deputados é dedicada a
promover regulamentos que atendam ao interesse geral da comunidade.
Evidentemente, tal como se comportam os políticos em qualquer democracia, buscam
também atender às demandas de seu eleitorado principal, pois, repetindo, é, em
princípio, para isso que são eleitos, e é esse o significado amplo de democracia
representativa” (Santos, 2007, p. 109). Destarte, o descrédito que abala o sistema
partidário no país não corresponde à realidade objetiva do desempenho de grande
parte das casas legislativas, mas à atuação de um grupo de políticos numericamente
pouco representativo, cujas práticas, orientadas pela gramática clientelística,
concorrem, por metonímia, para o aviltamento da política, normalmente associada, no
imaginário social, à corrupção e à defesa de interesses coorporativos, em prejuízo do
ideal republicano e democrático.
Além disso, Santos contesta as análises que apontam distorções
pronunciadas na representatividade dos diversos segmentos sociais no congresso
brasileiro, afastando a percepção já cristalizada de que as casas legislativas
permanecem pouco permeáveis ao ingresso das camadas mais empobrecidos da
população. A análise sociológica da composição das câmaras de deputados, federal e
estaduais, revela a presença tanto de indivíduos com alto nível de instrução
acadêmica, como pessoas consideradas analfabetas funcionais; tanto de empresários
da indústria e do setor de serviços, como de trabalhadores manuais e sindicalistas;
desde grandes proprietários rurais, até pequenos agricultores e integrantes de
movimentos sociais que lutam pela reforma agrária. A suposta falácia do controle
39
oligárquico da política brasileira, após a redemocratização ocorrida na década de
oitenta, torna-se ainda mais patente quando considerado somente o preenchimento
dos cargos eletivos da administração pública municipal; neste nível, mais do que nos
dois outros da Federação, a presença predominante de indivíduos oriundos das
classes trabalhadoras torna ainda mais insustentável o argumento da exclusão das
camadas populares dos embates políticos travados nos espaços democráticas
institucionalizados. Santos afirma que,
“Salvo oscilações, a pluralidade da representação é uma realidade palpável. Do total de prefeitos e
vereadores eleitos em 2000, o maior contingente foi constituído por trabalhadores agrícolas, já chegando
a 15,8% e ultrapassando a representação dos comerciantes, firme em 2º lugar, com 10,2% do total de
eleitos. Vinham a segui os funcionários públicos (8,4%), os profissionais liberais, professores e
advogados, com 6,9%, e, na rabeira, os proprietários agrícolas, com 3,2% do bolo” (p. 106)
Tendo em vista os argumentos esboçados acima, o autor considera que a
propalada crise dos sistemas democráticos dos países ricos é totalmente estranha à
realidade brasileira, onde os cidadãos não manifestam o desalento que caracteriza a
postura política dos europeus. No Brasil o comparecimento às urnas é expressivo – e
não declinante, como ocorre, por exemplo, na Espanha e na Grécia. Embora as
eleições realizadas na década de noventa tenham registrado um discreto decréscimo
do percentual de eleitores que participaram da votação, o pleito de 2002 voltou a
registrar um patamar semelhante ao de outras eleições livres no Brasil, como a de
19829. Santos argumenta, ainda, que apesar de existir uma inegável relação positiva
entre nível educacional e participação política, válida para todos os países, ela não
explica as oscilações dos votos nulos e brancos ao longo do tempo nas eleições
brasileiras, já que estes ora recrudescem, ora refluem, ao passo que a taxa de
alfabetização tem crescido ininterruptamente no país ao longo das últimas décadas.
Santos defende que os traços de apatia política manifestados pelos
brasileiros – que se expressam, entre outras evidências, pela fragilidade da vida
9 Parece-nos que o fato de o voto no Brasil ser obrigatório, enquanto na maioria dos países europeus
não o é, representa uma divergência de condições que mitiga a utilização das taxas de comparecimento às urnas para demonstrar a vitalidade do regime democrático brasileiro. Qual seria a taxa de comparecimento caso o pleito fosse facultativo? As pessoas votam por convicção, ou para evitar os transtornos burocráticos que incidem sobre os que têm de justificar sua abstenção? Estas questões parecem-nos relevantes, embora Wanderley Guilherme dos Santos não as discuta em seu livro.
40
associativa e pelo elevado nível de alheamento em relação à atuação dos governos
dos três níveis federativos – não podem ser interpretados como evidências do mesmo
descrédito que pesa sobre o regime democrático em diversos países do hemisfério
Norte. Aqui, o problema deve-se, na verdade, a causas mais profundas, que envolvem
aspectos estruturais da configuração social brasileira. Para o autor, o país ainda é
constituído por amplos contingentes populacionais cujas condições socioeconômicas
os situam aquém de um certo limiar de sensibilidade social, abaixo do qual as
vicissitudes que abalam a sociedade não são suficientes para disparar os processos de
aguçamento das percepções de privação relativa. Em outras palavras, as severas
condições de marginalização que assolam grande parte da população brasileira
encerram uma barreira que não a permite desenvolver, por um lado, a percepção
aguçada da injustiça imanente às desigualdades objetivas que a separa dos setores
mais abastados da população, e, por outro, a perspectiva de que a superação das
restrições que a aflige encontra-se de fato ao alcance de suas forças (o horizonte do
desejo a que se refere o título do livro de Santos).
Além disso, o limiar referido acima diz respeito, igualmente, às punições que
normalmente recaem sobre os que fracassam em suas lutas pela efetivação dos
direitos sociais. No Brasil, os riscos e os custos do associativismo são extremamente
elevados para a população pobre, sobretudo à luz das chances reais de suas
mobilizações atingirem os objetivos desejados, o que a desencoraja a recorrer a estas
formas de atuação política. Destarte, Santos conclui que:
“O horizonte do desejo é algo móvel e o que o impulsiona é a relativa segurança de que o fracasso na
tentativa de alcançá-lo cobrará custo tolerável, quando a situação em que se recairá é, em si mesma, já
confortável. O limiar de sensibilidade social é definido, por conseguinte, como a pior punição possível
caso alguém ouse desejar hobbesianamente e fracasse. No caso brasileiro, o custo do fracasso consiste
em desemprego prolongado, afastando do processo produtivo, violência institucional e marginalização.
(...) Aqui, o horizonte do desejo ainda é puro desejo, sem horizonte” (p. 176).
Os apontamentos de Wanderley Guilherme dos Santos têm o mérito de
registrar alguns avanços expressivos da vida política nacional, normalmente
subestimados pela literatura especializada no assunto, ao mesmo tempo em que
chama a atenção para fatores que não se associam exclusivamente às dinâmicas
político-partidárias. De qualquer maneira, parece-nos inegável que práticas autoritárias
41
e clientelísticas ainda vicejam no tecido social brasileiro, imprimindo sua marca não
apenas no âmbito das disputas políticas, mas também em outras esferas da vida
social, tornando o estatuto da cidadania um mero simulacro de si mesmo. Por esse
motivo, ainda que os diagnósticos que apontam para a crise aguda da democracia
representativa no Brasil revelem, acima de tudo, a influência acrítica de interpretações
pertinentes a realidades distintas das que se observa no país, parece-nos que os
mecanismos de participação direta da população na gestão das políticas de Estado
permanecem fundamentais à construção de uma cultura pública renovada, congruente
com os princípios inerentes à concepção substantiva da democracia, a despeito dos
riscos – sempre presentes – de que estes canais sejam açambarcados pela lógica da
apropriação privada dos espaços públicos. Há experiências que apontam justamente
para a direção oposta, ou seja, para o recrudescimento da participação dos segmentos
mais pobres da população nos processos decisórios do Estado, bem como para o
aprofundamento do controle social exercido sobre o desempenho dos agentes políticos
e da burocracia estatal – a exemplo do que ocorreu nos Orçamentos Participativos de
algumas prefeituras municipais brasileiras.
42
Capítulo 5 - A Ofensiva Neoliberal
As correntes de pensamento neoliberal ganham força a partir das evidências
de esgotamento do modelo de intervenção estatal praticado durante o período de
hegemonia dos Estados de bem-estar social e desenvolvimentista. Sua ofensiva
avassaladora beneficiou-se, outrossim, do colapso da União Soviética e,
consequentemente, do descrédito generalizado que se abateu sobre o socialismo como
forma de organização política viável. Destarte, a necessidade de o Capital proporcionar
condições de vida superiores às desfrutadas no regime soviético, como forma de
legitimar seu desenvolvimento e desencorajar movimentos políticos que questionassem
seus fundamentos, foi repentinamente suprimida. Ante a falta de modelos que
pudessem, de fato, rivalizar com o capitalismo, era chegada a hora do desmonte dos
onerosos aparatos de seguridade social forjados pelo Welfare State, que importavam a
redução significativa das margens de lucro das empresas devido à absorção de parte
significativa de seus resultados pela pesada carga tributária necessária ao custeio de
programas universais de previdência social. Esta operação contou por fim – como
indicado no capítulo anterior – com a desmobilização da classe trabalhadora, que
perdeu a identidade que a caracterizou durante as primeiras décadas do século
passado e cujos arremedos de organização ainda remanescentes não tiveram força
suficiente para opor-se ao avanço irresistível das reformas do aparelho de estado
inspiradas pelo neoliberalismo.
Diante desse quadro, o laissez faire ganhou novo impulso e, mais uma vez,
foi utilizado como bússola da reestruturação das economias combalidas do início da
década de noventa. A crença na capacidade dos mercados se auto-regularem
espontaneamente, ao largo de mecanismos estatais de coordenação, durante mais de
três décadas estigmatizada como excentricidade associada ao datado período de
apogeu dos Estados Liberais, recuperou gradualmente seu prestígio acadêmico e
tornou-se a panaceia da recuperação do desenvolvimento econômico global. É
importante ressaltar, entretanto, que esta corrente do pensamento econômico, a
despeito do semiostracismo a que esteve relegada, continuou arregimentando adeptos
durante esse período, os mais influentes dos quais se reuniram em 1947 – isto é, no
período de maior prestígio da obra de John Maynard Keynes, com a qual pretendiam
43
polemizar – no Hotel de Mont Pelèrin, localizado na Suíça, dando origem à chamada
Sociedade de Mont Pelèrin. O objetivo deste primeiro evento, que contou com a
participação de 37 economistas – assim como das demais reuniões que se seguiram
desde então – foi a promoção de debates acadêmicos e a elaboração de estratégias
voltadas à disseminação da superioridade dos mecanismos regulatórios do mercado
frente aos instrumentos de coordenação econômica mobilizados pelo Estado. Ou seja,
Mont Pelèrin não se cingiu a promover o livre desenvolvimento de ideias e teorias de
inspiração liberal, como também articulou movimentos de expansão acadêmica e de
persuasão de políticos e burocratas de alto escalão no mundo todo. Theotonio dos
Santos salienta que, atualmente, a Sociedade “é um típico grupo de pressão, que
garante a seus membros ótimos empregos, prêmios Nobel e outras „pequenas‟
compensações” (Santos, 1999, p. 130).
Dentre os integrantes de Mont Pelèrin, Friedrich Hayek e Milton Friedman,
economistas austríaco e estadunidense, podem ser considerados os nomes mais
influentes do neoliberalismo, não apenas em razão da densidade teórica de suas
obras, mas também pelas atuações políticas e acadêmicas que desenvolveram ao
longo de suas carreiras. Ambos lecionaram na Universidade de Chicago, ou
simplesmente, Escola de Chicago (também conhecida como Escola Monetarista), que
desenvolveu, a partir dos anos cinquenta do século passado, sólida reputação no
campo do pensamento econômico ultraliberal, tonando-se a principal referência
acadêmica desta corrente teórica.
Em seu principal livro, O Caminho da Servidão, publicado ainda em 1944,
Hayek, além de esquadrinhar questões de natureza estritamente política, assumindo,
muitas vezes, as características de um libelo contra os regimes totalitários de que
davam testemunhos, naquele momento, países como Alemanha, Itália e União
Soviética, apresenta um arrazoado em favor da livre regulação da economia pelos
mercados, tendo em vista que as burocracias estatais, ainda que reúnam os
profissionais mais capacitados, amparados pelas mais sofisticadas ferramentas de
análise econômica, são incapazes de processar a quantidade de informações
necessárias ao eficiente planejamento centralizado das economias nacionais, dada a
incomensurável complexidade que caracteriza a dinâmica dos fluxos de capitais e a
44
alocação espontânea dos recursos econômicos existentes. Destarte, restaria aos
Estados rechaçar o padrão intervencionista implantado a partir da Crise de 29,
restringindo seu âmbito de atuação às funções básicas de manutenção da ordem
interna, defesa nacional e garantia dos contratos privados, aproximadamente como o
fizeram os Estados Liberais do século XIX.
De acordo com Friedman, “o Estado existe para assegurar e maximizar a
liberdade” e, consequentemente, a autodeterminação dos agentes econômicos
constitui um fim em si mesmo, não podendo ser submetido a escrúpulos de equidade
ou solidariedade social. Para o autor, a intervenção estatal representa uma ofensa de
ordem moral, pois restringe a autonomia dos agentes privados, cujos espíritos de
iniciativa e empreendedorismo passam a ser refreados pelos inúmeros
constrangimentos interpostos arbitrariamente pelo Estado. Além disso, compromete a
liberdade política, pois inibe a formação de posicionamentos autônomos pelos
beneficiários dos programas sociais, tendo em vista que a construção de convicções
políticas informadas exclusivamente por argumentos racionais e “científicos” decai ante
os compromissos implícitos que decorrem da participação em políticas sociais que
garantem o bem-estar material de seus beneficiários.
A projeção internacional desses autores e, especialmente, das doutrinas
difundidas pela Sociedade de Mont Pelèrin e pela Escola de Chicago, a partir dos anos
setenta, pode ser atestada pela criação de inúmeros institutos de análise econômica
alinhados aos princípios propalados por aquelas instituições, inclusive nos países do
Leste Europeu, que ainda há pouco permaneciam submetidos a regimes autoritários de
economia planificada. Além disso, a partir de Hayek, laureado com o Nobel de
economia em 1974, outros sete membros da Sociedade obtiveram esta prestigiosa
premiação: Milton Friedman (1976), George Stigler (1982), James Buchanan (1986),
Maurice Allais (1988), Ronald Coase (1991), Gary Becker (1992) e Robert Lucas (1995)
(Santos, 1999, p. 128)10
10
Evidentemente, como o texto do qual esta relação foi extraída data do final da década de noventa, é possível que outros integrantes à Sociedade de Mont Pelèrin tenham recebido o Nobel de economia nesta última década.
45
Já no plano das políticas macroeconômicas, a doutrina neoliberal se difundiu
mundo afora a partir dos governos Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margareth
Thatcher, na Inglaterra, conduzidos ao poder no início da década de oitenta. Ambos se
notabilizaram pela introdução de um amplo programa de corte de gastos nas áreas
sociais e de desoneração da carga tributária incidente sobre o capital, objetivando
introduzir o chamado downsizing, ou seja, o Estado mínimo11. Sem embargo do
protagonismo internacional que estes dois países exerceram nesse processo, é
importante destacar que as políticas econômicas implantadas pelo governo chileno do
General Augusto Pinochet foram pioneiras na aderência aos princípios neoliberais,
antecipando-se aproximadamente uma década em relação aos primeiros esforços
encetados por norte-americanos e ingleses – e logo em seguida por praticamente todo
o mundo ocidental. Não por acaso, Milton Friedman foi um dos principais conselheiros
para a área econômica do mandatário chileno; além disso, diversos ministros de
Estado do governo Pinochet passaram pelos bancos do curso de economia da Escola
de Chicago. As medidas antipopulares prescritas pelas correntes neoliberais, como a
dramática redução dos gastos em programas sociais, foram facilitadas, nesse caso,
pelo regime autoritário vigente no Chile, que reprimiu violentamente a oposição,
enfraqueceu os movimentos das classes trabalhadoras e restringiu drasticamente as
demandas sociais dirigidas pela sociedade civil ao Estado.
No Brasil, as primeiras iniciativas no sentido da liberalização da economia
nacional foram iniciadas pelo curto e tumultuado governo do presidente Fernando
Collor, abruptamente interrompido em virtude do processo de impeachment a que foi
submetido. Este primeiro período de reestruturação do Estado pode ser considerado
uma fase meramente negativa, pois se limitou a desconstruir os aparatos
característicos do Estado Desenvolvimentista (ou do Welfare State, nos países
desenvolvidos), ao largo de propostas efetivas de reformulação dos mecanismos
estatais de intervenção social e econômica, além de negligenciar totalmente as
11
Entretanto, a despeito dos discursos que fundamentaram as estratégias adotadas por Reagan e Thatcher, o já mencionado estudo de Theotonio dos Santos procura demonstrar que em ambos os casos não ocorreu, de fato, uma diminuição das despesas Estatais em relação ao PIB dos dois países. Ao invés disso, os gastos públicos foram subtraídos das políticas de seguridade social em favor, sobretudo, dos investimentos na área militares e da concessão de subsídios a diversos segmentos econômicos, o que contraria, evidentemente, o princípio da não intervenção estatal na economia, tão caro aos economistas da Escola de Chicago (idem, 1999).
46
questões relacionadas, por um lado, à participação popular nos processos decisórios
das organizações públicas e, por outro, à ampliação dos mecanismos de accountability,
isto é, de controle social e responsabilização dos gestores públicos. Bento conclui que,
neste momento, as propostas neoliberais buscaram “aliviar o sistema político do
volume crescente de demandas sociais que exigem maior intervenção, delimitando,
ainda que de forma negativa – através das atividades com as quais o Estado não deve
se envolver – o núcleo essencial das políticas públicas” (Bento, 2003, p. 49)
O direcionamento e o alcance dessas reformas foram predeterminados pelas
condições impostas por dois organismos multilaterais de ajuda financeira aos quais
praticamente todos os países latino-americanos recorreram, durante os anos oitenta,
como forma de mitigar os efeitos da crise fiscal que os assolava. Trata-se do Banco
Mundial e, especialmente, do Fundo Monetário Internacional (FMI), ambos
instrumentalizados por Washington para pressionar os Estados à beira da falência a
alinharem-se às novas diretrizes neoliberais, segundo os interesses do capital
financeiro internacional. Conforme observa van Creveld, “Com um quadro de pessoal
adepto da nova economia da oferta, as duas instituições [Banco Mundial e FMI]
forneceram a seus protegidos empréstimos imensos, dos quais esses países
precisavam muito. Em troca exigiram reformas abrangentes. Entre essas reformas,
sobretudo, o fim dos gastos deficitários, o desmantelamento pelo setor estatal ou
controlado pelo Estado e a liberalização dos mercados financeiros. Além disso, tinham
de criar moedas estáveis, afrouxar as rédeas dos recursos naturais, permitir a entrada
de capital estrangeiro e lhe oferecer diversos privilégios, começando pelo direito de
repatriar os lucros livremente e acabar com a instituição de „livre comércio‟ especial,
isto é, zonas isentas de impostos.” (van Creveld, 2004, p. 539)
Diante do receituário indicado acima, os Estados nacionais latino-
americanos adotaram políticas macroeconômicas destinadas a garantir amplos
superávits em moeda estrangeira, de sorte a provê-los dos recursos necessários ao
pagamento dos escorchantes juros das dívidas públicas. Em um momento de profunda
estagnação econômica, a consecução deste objetivo sustentou-se, basicamente, na
redução drástica das importações e no incentivo às exportações, viabilizados por meio
da política alfandegária e pela distribuição de subsídios aos segmentos econômicos de
47
maior inserção no mercado internacional. Não obstante os superávits das balanças
comerciais registrados nesse período, é importante observar que, no caso das
importações, sua acentuada retração não se limitou a reduzir a entrada de bens de
consumo, atingindo, inclusive, os chamados bens de capital, isto é, os insumos
requeridos por diversas cadeias produtivas, contribuindo para a redução dos
investimentos e, consequentemente, o aumento das taxas de desemprego. Além disso,
tendo em vista as pronunciadas limitações dos complexos industriais de alguns países,
a restrição da oferta até então sustentada pelas importações não pôde ser
compensada pelo incremento da produção nacional, provocando o encarecimento do
custo de vida e a elevação dos índices inflacionários. Por outro lado, o incremento das
exportações também concorreu para este resultado, já que a direção dos esforços
nacionais no sentido do crescimento da produção de bens voltados à satisfação dos
mercados internacionais se realizou às expensas do atendimento das demandas
internas, tornando escassos alguns produtos básicos da lista de consumo das famílias
(Costa, 2006).
Como se vê, o pacote de reformas neoliberais além de não proporcionar a
recuperação econômica dos países que o implementaram, como previam seus
principais ideólogos, proporcionou o agravamento das condições sociais dos setores
mais espoliados da população, aprofundando os contrastes entre estes e as elites
econômicas e políticas desses países. Ora, tais fracassos não podem ser creditados
unicamente à miopia das entidades que elaboraram tais pacotes de auxílio econômico.
Na verdade, as agendas das reformas neoliberais não objetivavam fecundar
novamente a capacidade de desenvolvimento de Estados à beira da falência, mas
antes preservar os interesses do capital financeiro internacional, ameaçados com o
risco iminente de insolvência generalizada dos países do Sul. Na verdade, este
processo representou apenas mais um episódio da “ascensão do capital financeiro e da
transferência de riqueza da esfera produtiva de cada país para um setor comandado
pelo capital financeiro internacional” (Costa, 2006, p. 88), solapando a capacidade dos
Estados realizarem os investimentos estruturais indispensáveis ao desenvolvimento
dos setores produtivos nacionais.
Capítulo 6 - A Reforma do Estado nos Anos 90
48
Os primeiros resultados sociais colhidos a partir da abertura comercial e de
outras formas de desregulamentação da economia, expuseram, mais uma vez, a
fragilidade dos discursos que defendiam a retração excessiva do âmbito de intervenção
do Estado. Se as estratégias associadas ao downsizing mostraram-se especialmente
favoráveis ao capital financeiro internacional e ao livre jogo especulativo, evidenciaram,
por outro lado, sua incapacidade de combater a retração dos setores produtivos e o
aumento da concentração de renda, tornando ainda mais críticas as condições sociais
de amplos segmentos populacionais em praticamente todo o mundo. Os eventos que
se seguiram à primeira fase de reformas dos Estados de bem-estar e
desenvolvimentista, caracterizadas pelo desmonte das políticas de seguridade social e
de intervenção estatal em domínios anteriormente reservados à iniciativa privada,
expuseram de maneira incontrastável a imprescindibilidade do Estado no
desenvolvimento econômico e social nacionais. Evidentemente, já não se tratava de
retornar aos padrões anteriormente vigentes, mas de instituir novos mecanismos de
atuação capazes de restaurar a eficiência e a eficácia das políticas públicas, além de
aprofundar a legitimidade das instituições estatais por meio de sua abertura à
participação popular nos processos de tomada de decisões. Como salienta Leonardo
Bento, esse novo Estado “é chamado a desempenhar a dupla tarefa de criar condições
atrativas para as inversões estrangeiras e de mobilizar e coordenar elementos
endógenos da economia em torno de uma estratégia de desenvolvimento. A ideia de
soberania, por sua vez, transforma-se radicalmente, ou até mesmo se inverte: de uma
barreira defensiva contra ameaças de fora, passa a constituir-se num conceito
ofensivo, que traduz a capacidade de inserção competitiva de um mercado nacional no
exterior” (idem, p. 78). Nesse contexto, a década de noventa testemunha uma nova
onda de reformas, desta vez não mais orientada pelo signo negativo da retração
inconsequente dos aparatos públicos, mas pelo surgimento e pela implantação de
novas propostas de reformulação institucional, calcadas na necessidade de fortalecer a
capacidade de ação do Estado e, ao mesmo tempo, torná-lo menos oneroso, de sorte a
não comprometer a competitividade das empresas nacionais no mercado mundial.
Primeiramente, é necessário distinguir reforma do Estado de reforma do
aparelho de Estado. A primeira se refere à organização do regime político e almeja
incrementar a governabilidade do sistema político, ou seja, destina-se a ampliar as
49
bases da legitimidade e das condições gerais de angariar cooperação social e política
para a execução dos programas e ações governamentais. A segunda diz respeito ao
aparelho administrativo da máquina estatal, ferramentas técnicas e de gestão por meio
das quais a Administração logra efetivar suas políticas, fazendo-as produzir os
resultados sociais que motivaram sua elaboração; trata-se, enfim, de uma reforma de
caráter estritamente institucional. Evidentemente, embora possam ser tratadas
didaticamente como esferas distintas, há uma relação bastante estreita entre ambas, já
que os programas executados pelo Estado podem cumprir todas as metas previamente
estabelecidas sem, contudo, satisfazer às necessidades e expectativas do público para
os quais se destinaram. Nesse caso, a alta capacidade gerencial das organizações
públicas não afasta a ilegitimidade de suas ações.
Por outro lado, mesmo que as políticas assumidas pelo Estado
correspondam fielmente aos anseios de toda a população, as limitações operacionais
de suas agências executivas podem determinar a consecução de resultados
sensivelmente inferiores aos programados, comprometendo, igualmente, a legitimidade
do governo responsável. Portanto, o sucesso de qualquer reforma depende da forma
como enfrenta ambas as questões. Como veremos adiante, o plano de reforma do
Estado adotado no Brasil concentrou-se quase exclusivamente na dimensão gerencial
e administrativa da máquina pública, negligenciando os aspectos relacionados à
participação social e ao aprofundamento da transparência dos processos decisórios
das secretarias responsáveis pela elaboração das políticas públicas, conquanto os
discursos oficiais referendem o compromisso de enfrentamento dessas questões.
A esse respeito, especificamente, é preciso ressaltar que a reestruturação
encetada nos anos noventa reedita, em grande medida, as duas experiências
anteriores de reforma institucional do Estado brasileiro, realizadas ao longo do século
vinte. A primeira delas ocorreu durante o primeiro Governo Vargas (1930 a 1945), no
qual foram envidados esforços no sentido da modernização da Administração pública
federal através da constituição de uma burocracia de tipo racional-legal, ou seja, de um
corpo de servidores altamente qualificados cuja atuação estivesse orientada
exclusivamente por critérios técnicos, segundo procedimentos previamente fixados e
exaustivamente regulados. Além disso, o período singularizou-se pela promulgação de
50
uma legislação trabalhista que objetivava controlar os movimentos operários por meio
da sujeição dos sindicatos de trabalhadores aos propósitos traçados pelo Ministério do
Trabalho.
A segunda experiência foi levada a cabo pelos governos do período militar,
duas décadas após a primeira reforma, e tal como esta concorreu para a acentuada
hipertrofia do Executivo em relação aos demais poderes da República, além de lançar
mão do insulamento de diversos segmentos da burocracia federal, alocadas em áreas
consideradas estratégicas para o crescimento econômico do país, devendo – segundo
o entendimento desposado pelos mandatários do período – permanecer ao abrigo das
pressões políticas e das dinâmicas das trocas clientelísticas.
Em comum entre os casos comentados acima, o fato de ambas as reformas
terem sido empreendidas por governos autoritários, o que ajuda a explicar a omissão
das dimensões relacionadas à esfera democrática. A respeito destes dois períodos,
Diniz conclui que:
“o ponto convergente do esforço reformador está relacionado à dimensão especificamente administrativa
da reforma do Estado, que envolveu questões relativas ao grau de centralização da máquina burocrática,
à hierarquia entre as várias unidades integrantes do aparelho estatal, à articulação entre as diversas
agências do poder Executivo, á definição dos órgãos normativos e fiscalizadores ou ainda à classificação
de cargos e carreiras. Não se verificou uma preocupação com o aperfeiçoamento dos demais poderes e,
sobretudo, com a questão fundamental num regime constitucional, qual seja, a articulação e o equilíbrio
entre os três poderes, atribuindo-se ao Executivo e às agências administrativas um amplo espectro de
prerrogativas no que concerne à formulação e implantação de políticas públicas. Aliás, a trajetória do
Estado no Brasil revela a precedência das burocracias militar e civil, que, historicamente, foram
estruturadas e definiram suas identidades coletivas antes da institucionalização, em âmbito nacional, do
sistema de representação política.” (Diniz, 2001, p. 17)
A reforma do Estado dos anos noventa foi encampada pelo Governo do
presidente Fernando Henrique Cardoso, o qual criou em seu primeiro mandato o
Ministério de Administração e Reforma do Estado (MARE), cuja direção foi confiada a
Luiz Carlos Bresser Pereira, principal mentor intelectual do Plano Diretor de Reforma
do Estado, apresentado em 1995. A proposta contida neste documento baseou-se
fundamentalmente na chamada New Public Management, ou Nova Gestão Pública
(NGP): movimento iniciado em países anglo-saxões (sobretudo Inglaterra, Nova
51
Zelândia e Austrália) nas décadas de setenta e oitenta do século passado, que buscou
transferir às instituições estatais diversas ferramentas gerenciais empregadas na
iniciativa privada. Contudo, é necessário enfatizar, desde já, que a adoção dessas
ferramentas nem sempre foi acompanhada da indispensável adaptação às
peculiaridades do setor público, reproduzindo acriticamente no âmbito da prestação de
serviços públicos as relações de consumo que caracterizam a esfera das trocas entre
agentes econômicos. Em outras palavras, diversas práticas alardeadas pelo
gerencialismo identificado à NGP negligenciam a dimensão de cidadania que subjaz às
relações entre Estado e sociedade, reduzindo os beneficiários das políticas públicas à
condição de meros consumidores, aos quais se assegura apenas a prerrogativa de
selecionar os serviços que melhor atendem a suas necessidades estritamente
individuais, e oferecer à Administração críticas e sugestões quando os benefícios
obtidos não satisfazem suas expectativas. O conceito de cliente encerra uma
perspectiva extremamente individualista, ao passo que ao Estado compete prover os
as necessidades e os interesses coletivos, definidos a partir do embate transparente e
inclusivo de razões públicas.
Além disso, as propostas da Nova Gestão Pública envolviam, ainda, a
prescrição de severos ajustes fiscais e, consequentemente, da redução do custo de
manutenção da máquina pública: tarefas cuja execução, sob os influxos das
instituições multilaterais de auxílio financeiro (FMI e Banco Mundial) e da truculência
diplomática de países como os Estados Unidos, fora iniciada – mas não concluída –
durante o governo Collor.
Justamente um dos principais desafios com que se depararam os
movimentos de reforma na década de noventa foi a delimitação do alcance dos
mecanismos regulatórios dos Estados nacionais. Não há, evidentemente, nenhuma
fórmula “científica” que permita determinar, em um dado caso concreto, qual o nível
ideal de intervenção estatal, garantindo-se o máximo de desenvolvimento econômico e,
ao mesmo tempo, o mínimo de externalidades sociais e ambientais negativas. A
decisão acerca de quais áreas devem ser objeto de regulação, e qual a extensão das
restrições e condicionantes interpostos pelo Estado, dependerá invariavelmente de
acordos de natureza política, permanecendo permanentemente sujeitos a revisões em
52
face do movediço jogo de forças políticas que de debatem em torno da questão. É
importante salientar, entretanto, que o ponto ótimo de regulação, seja ele qual for,
situa-se ao longo de uma escala de grande amplitude, limitada, em umas das
extremidades, por um padrão excessivamente interventor, que exerce forte pressão
sobre os custos operacionais das empresas nacionais e inviabiliza sua competitividade
no mercado internacional12; e na outra, a total desregulamentação das atividades
econômicas e sociais, responsável pela cristalização de um ambiente de
competitividade feroz que, no limite, ameaça bens públicos fundamentais (direitos
sociais, sustentabilidade ambiental, etc.) e põe em cheque as bases que sustentam o
próprio mercado, dando livre curso a suas tendências autofágicas (formação de trustes,
monopólios, etc.).
A interpretação acerca do projeto político e social da modernidade, sugerida
pelo influente sociólogo português Boaventura Souza Santos, remete-se justamente à
tensão entre esses dos princípios fundamentais e contraditórios: emancipação e
regulação. Segundo o autor, o “melhor dos mundos” é aquele que permite, por um lado,
o gozo das garantias proporcionadas pela regulação das relações sociais, que
asseguram previsibilidade e segurança no plano dos intercâmbios intersubjetivos; e por
outro, não estabelece obstáculos à livre expressão das vontades individuais,
mantendo-as imunes às pressões exercidas por quaisquer aparatos coercitivos. Como
se vê, os princípios mencionados encerram disposições ontologicamente conflitantes.
Santos acredita que o desenvolvimento do Estado ao longo do século vinte pode ser
interpretado à luz do jogo de forças travado em torno de ambas. Assim, no período de
florescimento e consolidação do liberalismo clássico, o princípio da emancipação
logrou grande projeção, impulsionado pela crença na capacidade de autorregulação
dos mercados. Por outro lado, o Welfare State surgiu como resultado dos esforços
voltados ao fortalecimento dos mecanismos regulatórios (Estado, comunidade, etc.),
comprometendo, em alguma medida, a liberdade de iniciativa dos agentes econômicos.
Nesta perspectiva, as propostas contemporâneas de reforma do Estado tencionam
12
Além disso, não é possível minimizar, nessas condições, os riscos dos mecanismos de regulação serem instrumentalizados em benefício de grupos de pressão socialmente pouco representativos, atendendo a interesses estritamente privados, em detrimento da satisfação do interesse público.
53
restabelecer o equilíbrio entre os princípios mencionados, dando curso a acirradas
controvérsias teórico-conceituais e acerbas disputas ideológicas (Bento, 2003).
Na tarefa de definição do nível adequado de intervenção estatal na
economia, a teoria da escolha racional foi fartamente mobilizada durante os anos
noventa, contando entre seus defensores diversos autores que alcançaram grande
projeção nas discussões sobre as reformas. Esta teoria distingue-se por desconsiderar
“a importância teórica dos outros tipos de ação em favor de um tipo específico
denominado de ação racional com relação a fins, e de outros padrões de racionalidade
em nome da racionalidade instrumental-cognitiva” (idem, p. 97). De acordo com esta
perspectiva, a busca pela maximização dos interesses individuais, orientada pelo
pragmatismo instrumental face às conjunturas que se apresentam aos agentes, é o
princípio fundamental que determina os comportamentos tanto no âmbito da economia
quanto no da política e, portanto, a dicotomia entre Estado e mercado encerra, na
verdade, um epifenômeno. Destarte, a verdadeira questão resume-se a encontrar o
desenho institucional “ideal”, cujas implicações e desdobramentos subjacentes
estimulem a adoção de comportamentos socialmente desejáveis, tendo em vista que
os indivíduos atuam invariavelmente de forma racional. Isto significa, em última análise,
a instituição de incentivos e punições a determinados comportamentos, fazendo com
que as decisões racionalmente mais congruentes do ponto de vista individual sejam
também as que promovam o maior bem-estar possível, sem o comprometimento das
liberdades econômicas. A principal limitação deste tipo de argumentação, a par do
aviltamento de outras formas de racionalidade (talvez tão significativas quanto a
instrumental), reside na pouca atenção dada às profundas assimetrias de acesso a
informações fundamentais para as ações dos agentes individuais, o que compromete
sobremaneira a “racionalidade” das decisões assumidas.
Bresser Pereira, por sua vez, propôs definir o âmbito das regulações estatais
a partir dos diversos mecanismos de controle e coordenação econômicos e sociais
presentes nas sociedades contemporâneas. O próprio autor denominou sua proposta
de “lógica do leque de mecanismos de controle”. A partir da perspectiva funcional,
Bresser identificou “três formas de controle: o controle hierárquico ou administrativo,
que se exercer (sic) dentro das organizações públicas ou privadas, o controle
54
democrático ou social, que se exerce em termos políticos sobre as organizações e os
indivíduos, e o controle econômico via mercado.” (Ibidem, p. 37). A partir daí, o autor
estabeleceu uma hierarquia entre essas dimensões, elegendo como preferenciais as
formas de coordenação que se efetuam da maneira mais automática e difusa possível
e que, por esse motivo, prescindem da mobilização de instrumentos onerosos tanto do
ponto de vista econômico quanto do político – ou, em outras palavras, que dispensem a
adoção de políticas que consumam elevadas quantias de recursos públicos e/ou
produzam desgastes políticos aos governos responsáveis. A aplicação deste critério
resultou na seguinte classificação: “(1) mercado, (2) controle social (democracia direta),
(3) controle democrático, (4) controle hierárquico gerencial, (5) controle hierárquico
burocrático e (6) controle hierárquico tradicional” (p. 37).
Portanto, para Bresser Pereira, o mercado assoma, na maioria das
oportunidades, como o melhor mecanismo de regulação das relações econômicas e
sociais, devendo ser preterido somente quando valores fundamentais estranhos à
lógica da busca pela eficiência econômica estiverem ameaçados, como por exemplo, a
satisfação de um patamar mínimo de justiça distributiva, o atendimento das
necessidades materiais básicas de segmentos excluídos do sistema produtivo, entre
outros. A seguir, o autor considera o controle social o mais adequado ao
condicionamento das ações – e omissões – dos Estados, materializando-se, sobretudo,
a partir da organização da sociedade civil em associações e movimentos sociais que
defendam tanto prerrogativas exclusivamente corporativas, quanto interesses de
natureza geral. Não nos interessa, neste momento, discorrer sobre cada um dos
demais níveis de regulação indicados acima, mas apenas chamar a atenção para o
arcabouço teórico que orientou a elaboração e a implantação das reformas no Brasil.
O Plano de Reforma do Estado introduzido por Bresser Pereira pode ser
compreendido a partir de algumas definições básicas, que orientaram os novos
formatos institucionais propostos pelo autor. Primeiramente, Bresser definiu três áreas
distintas de atuação às quais o Estado se dedicou ao longo da segunda metade do
século vinte: “(a) as atividades exclusivas do Estado; (b) os serviços sociais e
científicos do Estado; e (c) a produção de bens e serviços para o mercado” (Pereira,
97, p. 22). Em relação a esta última, depois dos acirrados debates sobre a pertinência
55
da privatização de diversas empresas estatais nos anos noventa, observa-se
atualmente amplo consenso a respeito da subtração de atividades dessa natureza do
âmbito das competências do Estado. Assim, quaisquer atividades cuja receita obtida
mediante a venda de seus produtos – bens e/ou serviços – permita a cobertura integral
dos investimentos e dos custos operacionais incorridos em sua produção, devem ser
transferidas à iniciativa privada, que tende a desempenhá-las de maneira muito mais
eficiente do que o fizerem as organizações estatais nas últimas décadas. Nestas, a
administração dos negócios frequentemente se sujeitou a critérios de natureza política,
incompatíveis com a busca pelos melhores resultados econômicos. No contexto
brasileiro, as indicações para os principais cargos de direção das empresas estatais
foram usualmente envolvidas na lógica das trocas clientelísticas, destinadas a costurar
alianças políticas e a distribuir benefícios a apaniguados, em prejuízo da eficiência
técnica e econômica. É importante observar, porém, que esta tendência permanece
solidamente amalgamada à vida política nacional, a despeito da privatização de
diversas empresas públicas. No presidencialismo de coalização praticado no Brasil, em
que os presidentes eleitos conquistam uma votação significativamente superior ao total
de votos que sua coligação partidária obtém nas eleições para o Congresso Nacional, a
construção da governabilidade – isto é, da obtenção do apoio político necessário à
concretização de seus programas de ação – é efetuada mediante a farta distribuição de
cargos em órgãos e agências estatais a partidos que, em troca, passam a integrar a
chamada base aliada do governo (Limongi & Figueiredo, 1998). A magnitude desta
estratégia pode ser atestada pelo total de cargos comissionados que integram o quadro
funcional da União, conforme indicado na tabela abaixo:
Quadro de Referência do Poder Executivo Federal
Descrição Indicadores
Cargos de Direção e Assessoramento Superior - DAS 21.281
Percentual de DAS sem vínculo com o Estado 27,50%
Total de Cargos Comissionados 23.874
Total de Cargos e Funções de Confiança e Gratificação 81.820
Total de Servidores Públicos do Executivo Federal na ativa 869.752 Fonte: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Boletim Estatístico de Pessoal. Março de 2010 (Benini & Benini & Novaes, 2011, p. 227).
56
Estes números contrastam fortemente com padrões observados
internacionalmente. “Alguns estudiosos apontam que na média, em países como
França, Alemanha e Inglaterra, considerados países desenvolvidos e com uma
considerável rede de proteção social, os cargos de livre provimento do executivo
federal não passam de 500, enquanto que no Brasil estamos na ordem de 23 mil”
(Benini, idem, p. 228). Como se vê, o controle de cargos pelo Executivo federal,
instrumentalizado em função de interesses estranhos às exigências de eficiência e
eficácia administrativas, constituiu-se em um bastião em que os esforços reformistas
não lograram penetrar, a despeito de seu discurso em defesa do fortalecimento do
princípio meritocrático no âmbito da Administração pública. Os efeitos destes arranjos
para a racionalização dos serviços públicos e para o desenvolvimento de uma cultural
gerencial nas instituições estatais não podem ser subestimados. Édi Benini, Élcio
Benini e Henrique Novaes salientam que:
“tal „meritocracia‟ invertida é fonte de desmotivação, perplexidade e principalmente de alienação do
trabalho, dessa forma, há pouco ou mesmo nenhum incentivo a ideias inovadoras, impedindo o
crescimento profissional de quem poderá ser, sob a lógica de „cargos de confiança‟, uma futura ameaça
ao seu status” (p. 230).
As privatizações realizadas ao longo dos governos Fernando Collor e
Fernando Henrique Cardoso alienaram diversas empresas estatais, transferindo à
iniciativa privada a exploração de uma série de serviços de interesse público – como o
fornecimento de energia elétrica, de serviços de telefonia, bancos, etc. – e a extração
de recursos naturais. Em razão da grave crise fiscal que o acometia nesse período, o
Estado não dispunha de recursos para investir no incremento da produtividade e da
qualidade desses serviços. Por outro lado, à privatização de boa parte do patrimônio
público correspondeu, consequentemente, a criação de agências estatais destinadas a
regular e a controlar as empresas que assumiram a exploração comercial das
atividades mencionadas, de sorte a garantir a expansão das operações e a
observância de padrões de qualidade previamente definidos, bem como a regulação da
comercialização de produtos decorrentes de monopólios naturais, já que, nesses
casos, a formação de preços não se submete a regime concorrencial.
57
Em relação às funções que permanecem sob responsabilidade do Estado,
Bresser subdividiu-as em dois grupos distintos, conforme já indicado acima. As
atividades exclusivas do Estado são as que se submetem a regime de monopólio, ou
seja, que não admitem concorrência. Tratam-se, portanto, de atividades cuja execução
não pode ser realizada por entidades privadas, mesmo que não tenham finalidade
lucrativa e se destinem à satisfação de interesses públicos. A este grupo pertencem,
grosso modo, as funções associadas ao Estado liberal clássico, tais como: “poder de
definir as leis, poder de impor a justiça, poder de manter a ordem, de defender o país,
de representá-lo no exterior, de policiar, de arrecadar impostos, de regulamentar as
atividades econômicas, fiscalizar o cumprimento das leis” (Pereira, idem, p. 23).
Além destas, compete exclusivamente ao Estado a elaboração e a avaliação
de políticas econômicas, sociais e científicas, atividades confiadas a secretarias que
integram o chamado núcleo estratégico do Estado. Na área econômica, suas funções,
segundo Bresser Pereira, concentram-se, sobretudo, na adoção de estratégias que
garantam a estabilidade da moeda. Normalmente, na maioria dos países capitalistas,
esta incumbência é confiada aos Bancos Centrais: agências com elevado grau de
autonomia que regulam a oferta de moeda segundo as oscilações das taxas de
crescimento das economias nacionais, além de controlarem a disponibilidade de
moeda estrangeira no país, o que, eventualmente, exige a realização de intervenções –
como a compra ou a venda em grande escala de dólares – destinadas a conter
desequilíbrios acentuados no valor relativo das moedas. Ademais, os Bancos Centrais
atuam na regulação e controle dos sistemas financeiros nacionais, visando impedir o
desenvolvimento de bolhas especulativas ruinosas não apenas para as economias dos
países diretamente envolvidos, como também para todo o sistema financeiro
internacional. As duas últimas décadas foram pródigas em exemplos de eventos dessa
natureza.
As atividades que se associam à dimensão social e científica da atuação
estatal são objeto de políticas que se destinam a financiar serviços de saúde,
educação, assistência social, preservação do meio ambiente, previdência social, etc. A
prestação desses serviços não reveste o mesmo caráter monopolista que caracteriza
as atividades anteriormente mencionadas, já que a outras entidades – inclusive as que
58
almejam lucros – é facultada a possibilidade de oferecê-los. Entretanto, o fato de se
inserirem em ambiente concorrencial não dispensa a participação do Estado na
provisão desses benefícios para grande parte da população, cujas condições
econômicas inviabilizam o recurso ao mercado para a satisfação de suas
necessidades. Ademais, a atuação estatal responde a duas ordens de objetivos
essenciais, quer sejam: 1) por um lado, os serviços oferecidos satisfazem uma série de
garantias sociais intrinsecamente vinculados aos chamados Direitos Humanos
Fundamentais, cuja negligência avilta a própria dignidade das pessoas que deles se
encontram privadas, além de rebaixar o patamar civilizatório das sociedades que não
os proveem a todos os seus membros; 2) e, por outro, a fruição desses benefícios pelo
conjunto da população produz externalidades positivas essenciais ao desenvolvimento
socioeconômico do país. Como exemplo, é possível afirmar que a elevação do nível
cultural de todos os segmentos sociais, através do incremento da qualidade da
educação pública e da promoção de programas de apoio à produção científica e
cultural, eleva os níveis de produtividade do país, garantido maior competitividade de
suas empresas no mercado internacional.
Nesse ponto, Bresser Pereira introduz uma das mais importantes – e
controversas – inovações de seu Plano de Reforma. Como mencionado acima, a
atuação social do Estado se desdobra na prestação de diversos serviços, muitos dos
quais, mesmo não dispensando o afluxo dos fundos públicos, não precisam ser
executados diretamente por organizações estatais, já que não apresentam os
caracteres que distinguem as funções típicas do Estado liberal clássico. Por outro lado,
não convém que sejam confiados exclusivamente à iniciativa privada, já que se tratam
de bens cuja pura e simples mercantilização implicaria a exclusão de diversos
segmentos populacionais, que não possuem recursos suficientes para acessá-los via
mercado; por esse motivo, os serviços sociais e científicos do Estado, na maioria dos
casos, não podem ser objeto de privatização. A Nova Gestão Pública preconiza a
transferência da responsabilidade pela execução de tais atividades a organizações
sociais sem finalidades lucrativas – que recebem o título de organizações sociais (OS).
De acordo com Bresser Pereira:
59
“Se o seu financiamento [atividades das áreas social e científica] em grandes proporções é uma
atividade exclusiva do Estado – seria difícil garantir educação fundamental gratuita ou saúde gratuita de
forma universal contando com a caridade pública – sua execução definitivamente não é. Pelo contrário,
estas são atividades competitivas, que podem ser controladas não apenas através da administração
pública gerencial, mas também e principalmente através do controle social e da constituição de quase-
mercados” (idem, p. 25)
Este processo foi denominado “publicização”, de sorte a diferenciá-lo das
privatizações e terceirizações que também caracterizaram os movimentos de reforma
do Estado da década de noventa. Os ajustes que estabelecem os compromissos entre
a Administração e as organizações sociais assumem a forma jurídica de Contratos de
Gestão, nos quais são definidas as unidades de serviços, as metas de desempenho, os
padrões mínimos de qualidade e, inclusive, as áreas de flexibilização dos
procedimentos empregados na prestação dos serviços contratados.
As justificativas apresentadas por Bresser para a adoção deste tipo de
arranjo se remetem a uma segunda ordem de conceituações teóricas fundamentais à
sua argumentação. O autor insiste no caráter público dessas entidades – ainda que
sejam reguladas pelo Direito Privado – pois suas finalidades resumem-se à promoção
de interesses estritamente públicos. Ou seja:
“se definirmos como público aquilo que está voltado para o interesse geral, e como privado aquilo que é
voltado para o interesse dos indivíduos e suas famílias, está claro que o público não pode ser limitado ao
estatal, e que fundações e associações sem fins lucrativos e não voltadas para a defesa de interesses
corporativos mas para o interesse geral não podem ser consideradas privadas” (ibidem, p. 25/26)
A partir das assertivas acima, Bresser Pereira sugere uma terceira forma de
propriedade no capitalismo contemporâneo, que se distingue das duas outras formas já
consagradas pela literatura especializada, ou seja, as propriedades privada e pública
(esta considerada como sinônimo de estatal). Trata-se da propriedade pública não
estatal, que se remete, evidentemente, às entidades que integram o terceiro setor.
De acordo com os defensores da publicização, ela oferece diversas
vantagens em relação à prestação direta de serviços pelas instituições estatais, tais
como:
60
1) As organizações sociais, tendo em vista a abrangência geograficamente
localizada de sua atuação, tendem a responder mais adequadamente às
necessidades específicas dos públicos por elas beneficiados, em oposição ao
distanciamento das administrações centralizadas, alheias às realidades objetivas
das localidades em questão. A centralização burocrática logrou apreciável êxito
durante o período que correspondeu ao apogeu da organização fordista de
produção, enquanto o elevado grau de homogeneidade social admitia a
produção massificada de bens e serviços – tanto pela indústria quanto pelas
organizações públicas. Ora, o adensamento da complexidade social observado
na segunda metade do século passado concorreu para a multiplicação das
identidades sociais e, consequentemente, para a diversificação das demandas
dirigidas ao Estado. Este é um dos fatores que tornam a descentralização uma
das questões menos controversas entre propostas concorrentes de reforma do
Estado, ainda que outras justificativas sejam complementarmente invocadas,
segundo a coloração ideológica de seus defensores;
2) A proximidade entre os prestadores de serviços e o público beneficiado enseja o
adensamento do controle social exercido sobre as entidades do terceiro setor
contratadas, cujos Conselhos de Administração contam, em tese, com a
participação de representantes dos próprios beneficiários, aos quais é facultado
o acompanhamento concomitante das despesas incorridas no custeio dos
serviços;
3) A administração interna e os procedimentos operacionais adotados pelas
organizações sociais não estão submetidos às injunções legais que engessam
as entidades estatais, o que as permite atuar com muito mais flexibilidade,
amoldando-se com maior celeridade às vicissitudes dos ambientes sociais onde
desempenham suas responsabilidades. Dessa forma, podem realizar a
demissão e a contratação de novos funcionários, remanejá-los internamente,
adquirir bens e serviços emergenciais, entre outras medidas administrativas, em
um prazo de tempo significativamente inferior ao que incorreria quaisquer órgãos
do Estado, vinculados aos morosos – e dispendiosos – procedimentos exigidos
por lei;
61
4) E, por fim, a consolidação de quase mercados, decorrente da criação de
ambiente competitivo entre as diversas organizações sociais existentes, que
disputam entre si o acesso às fontes de financiamento disponíveis, dentre as
quais os recursos oriundos dos fundos públicos são, de longe, os mais
significativos. A reprodução das condições de competitividade que caracterizam
o mercado das trocas privadas objetiva induzir a elevação dos padrões de
qualidade dos serviços prestados, além de estimular o surgimento de inovações
que concorram, a um só tempo, para a redução dos custos operacionais e para
o aumento da satisfação dos usuários. Aliás, a insatisfação destes, manifesta
por meio de reclamações dirigidas aos canais de ouvidoria da Administração e
por pesquisas de opinião, pode precipitar a rescisão do contrato firmado entre a
entidade em questão e o Poder Público, o que, no limite, ameaça a continuidade
das operações da primeira.
O último argumento apresentado é, sem dúvida alguma, bastante
problemático, porquanto não há garantias – tendo em vista a ainda frágil cultura
participativa que caracteriza o ambiente sociopolítico brasileiro – que as dinâmicas de
seleção e celebração de parceiras com as organizações sociais não sejam arrebatadas
pela força centrípeta das lógicas clientelísticas e de apropriação privada dos bens
públicos. Na verdade, as constantes denúncias de fraudes a procedimentos licitatórios,
geralmente com a participação de servidores públicos, tornam duvidosa a existência de
um autêntico mercado competitivo até mesmo nas contratações de bens e serviços
oferecidos por empresas privadas. Além disso, os interesses que se consolidam em
torno destas entidades tendem a se concentrar, acima de qualquer compromisso com a
satisfação do interesse público, na perpetuidade da própria instituição – e, num
segundo momento, na ampliação do raio de suas atividades. Esta tendência choca-se,
em grande medida, com a necessidade de torná-las permeáveis à participação popular
e de sujeitá-las ao controle social de suas operações financeiras. Neste contexto, as
práticas de publicização aproximam-se excessivamente da pura e simples terceirização
dos serviços públicos, pondo por terra as motivações que animaram o recurso às
entidades do terceiro setor.
62
A participação social que, em tese, deveria ocorrer por meio do recurso às
entidades do terceiro setor circunscreve-se, na prática, à transferência de
responsabilidades pelo desempenho de funções de natureza meramente gerencial,
destituídas de qualquer dimensão propriamente política. Bento, comentando algumas
experiências de participação comunitária inspiradas pelo gerencialismo em países
anglo-saxões, afirma:
“Neste contexto, descarta-se a busca por politizar a administração pública e a prestação de serviços.
Embora os objetivos declarados dessas iniciativas da nova governança revelem preocupação com a
qualidade de seus produtos, com a eficiência gerencial, com a reversão da cultura auto-refente da
burocracia, com o incremento da propriedade pública e com o estímulo à autoajuda, na realidade a
participação é funcionalizada em relação aos interesses da administração, a qual determina as opções,
os critério de seleção e mesmo as oportunidades para a participação. Noutro plano, traduzem a
colonização burocrática sobre a participação, transformando os cidadãos em agentes administrativos,
atribuindo-lhes um papel técnico senão mesmo econômico em vez de político.” (p. 223)
Além disso, no caso brasileiro, Ana Paula Paes de Paula (2005) salienta que
as reformas não atingiram de maneira significativa o insulamento burocrático dos
chamados núcleos estratégicos do governo, que permaneceram altamente refratários à
participação popular no processo de elaboração das políticas públicas. A autora conclui
que a dimensão sociopolítica foi quase totalmente negligenciada pelas reformas
levadas a cabo pelos três últimos governos federais, que se concentraram
principalmente na dimensão econômico-financeira. Por esses motivos, urge “pensar a
reforma do Estado a partir do arcabouço teórico-conceitual fornecido pelas formulações
da teoria democrática contemporânea, segundo a qual as eleições são instrumentos
necessários, mas não suficientes para garantir o controle dos governantes pelos
governados (...) Em consequência, a ênfase desloca-se para a necessidade de criar e
fortalecer novos arranjos institucionais que possibilitem o funcionamento da democracia
nos intervalos entre as eleições” (Diniz, 2001, p. 19)
Por fim, é importante registrar que, a despeito de alguns êxitos inegáveis (do
ponto de vista do plano original da reforma), sobretudo no campo da implantação de
mecanismos gerenciais e na celebração de parcerias com as organizações sociais, a
reestruturação organizacional planejada pelo MARE, não logrou atingir grande parte de
suas metas. Tal insucesso pode ser creditado basicamente a dois fatores:
63
1) Predominância da necessidade de ajuste fiscal, o qual – acreditavam diversos
atores com poder de veto no governo FHC – colidia com a reestruturação
organizacional planejada, não apenas porque esta demandava, em algumas
oportunidades, o dispêndio recursos indisponíveis no momento, tendo em vista o
caráter imperativo concedido ao reequilíbrio orçamentário e ao cumprimento das
obrigações financeiras contraídas junto aos organismos multilaterais de ajuda
financeira; mas porque a descentralização da execução das políticas públicas
dificultava o controle centralizado das burocracias pelos núcleos estratégicos do
governo. Como salienta Fernando Rezende, “a descentralização da gestão –
especialmente de orçamentos e de gestão de pessoal – visando a autonomia
decisória, responsabilização burocrática e accoutability de resultados não se
sintonizou com os propósitos de equilíbrio fiscal” (Rezende, 2009, p. 354). Este
obstáculo evidencia, ainda, as limitações da dimensão política da reforma do
Estado no Brasil, que não foi capaz de reverter o insulamento que caracterizam
as principais instâncias decisórias do governo federal;
2) O outro fator diz respeito às resistências internas interpostas por diversos
segmentos do funcionalismo público, preocupados com a repercussão das
novas ferramentas gerenciais sobre suas carreiras e sobre os privilégios
desfrutados até então. Reformas muito profundas, como as que pretendia
implementar o MARE, costumam despertar resistências acerbas, tendo em vista
a profunda instabilidade e as incertezas que despertam; destarte, quanto mais
drásticas as mudanças programadas, maiores as chances de insucesso.
Rezende conclui, em seu estudo, que:
“A questão dos controles assume o foco principal da resistência organizada. (...). Embora a
elevação da performance seja a motivação básica para a reforma,o modo específico pelo qual os
diversos atores percebem e calculam os custos e os benefícios gerados pela mudança da
estrutura de organização do controle, é fundamental para explicar o problema da falha no plano
da implementação. Quanto mais uma dada política de reforma propõe alterar radicalmente a
forma de controle que regula a relação entre implementação e formulação das políticas públicas,
maiores as chances para o insucesso das reformas administrativas, sobretudo aquelas em
contextos democráticos, de elevada fragmentação e descontrole, bem como marcados por um
legado de reduzida performance como ilustra o caso brasileiro” (idem, p. 360/361)
64
Capítulo 7 - Teorias da Democracia e Elitismo Democrático
7.1. - A Democracia Ateniense
A democracia surgiu há cerca de dois mil e quinhentos anos, na Grécia
Antiga, mais especificamente na cidade de Atenas, tendo se consolidado plenamente
sob o comando de Péricles, comumente apontado como o principal artífice desta forma
de organização política (Mossé, 2008), embora sua gestação e amadurecimento devam
ser associados a um complexo feixe de processos iniciados, pelo menos, algumas
décadas antes do início da carreira pública de Péricles, os quais, sem conduzirem
teleologicamente para os resultados que enfim se concretizaram, prepararam as
condições socioeconômicas que permitiram à polis ateniense trazer à luz um regime
político altamente revolucionário. Se analisada sob a perspectiva da longa duração
histórica, segundo o esquema interpretativo introduzido por Braudel, a aventura da
democracia antiga pode ser caracterizada como um fenômeno efêmero, além de
circunscrito a limites geográficos extremamente modestos, a despeito da notável
influência exercida por Atenas sobre as demais cidades-estados durante todo o período
denominado Antiguidade Clássica. Entretanto, desde seu surgimento, a democracia
tem provocado reações violentas, inflamando a imaginação política tanto dos que, ao
longo da história, esforçaram-se por recuperar e reintroduzir no ordenamento político
os princípios que a singularizaram, quanto dos que buscaram obstinadamente afastar
sua implantação, ressaltando as contradições internas que a tornam um regime
ingovernável e incapaz de garantir os bens políticos e sociais que fundamentaram seu
prestígio, passando ainda pelos que, extraindo de seu arcabouço principiológico alguns
elementos fundamentais, invocaram-na como forma de justificar e legitimar seus
projetos de poder.
A democracia ateniense assentou-se, fundamentalmente, no princípio da
soberania do demos; isto significa que a titularidade do poder político era atribuída ao
conjunto dos indivíduos alcançados pelo estatuto da cidadania, que a exerciam senão
de maneira plenamente congruente com suas exigências, ao menos em intensidade
jamais igualada por nenhum outro regime democrático na história. Na Atenas de
Péricles, a representação política, base das democracias contemporâneas, cumpria um
papel apenas marginal no sistema de administração pública da polis, já que era
65
facultado a qualquer cidadão manifestar suas inclinações diretamente acerca de uma
ampla variedade de assuntos, garantindo-se inclusive o direito à palavra nas
assembleias em que se deliberavam as decisões mais importantes da cidade.
O órgão máximo da vida política ateniense era denominado Bule, ou Conselho dos
Quinhentos, de cuja composição participavam cinquenta membros de cada uma das
dez tribos que dominavam a cidade. Este grupo de indivíduos era selecionado por meio
de sorteio, ao qual estavam aptos a participar todos os cidadãos com idade superior a
trinta e cinco anos. De forma a garantir a simetria política entre as tribos, o ano era
dividido em dez períodos de igual duração, conhecidos como pritanias; a
responsabilidade pela condução dos assuntos cometidos à assembleia era confiada a
cada uma das tribos, alternadamente, pelo intervalo de uma pritania. A sequência que
determinava a sucessão desses grupos à frente do Conselho era obtida por sorteio,
repetido ao final de cada ciclo anual. Este mesmo método era empregado diariamente
para a seleção do presidente da Bule.
As decisões proferidas pelo colegiado eram obtidas por meio de consultas
diretas a seus membros, que manifestavam sua posição erguendo as mãos, após
discussões que admitiam a participação de quaisquer cidadãos, e não apenas dos
membros do colegiado. As questões menos controversas podiam ser rapidamente
apuradas, pois as posições predominantes eram facilmente conhecidas através da
observação geral da assembleia nos momentos de votação. O mesmo não ocorria
quando os partidos em disputa congregavam números similares de defensores, tendo
em vista que cada votação poderia reunir milhares de participantes. Nesses casos,
“cumpria não negligenciar nenhuma das opiniões expressas, pois a decisão era tomada
pela maioria”. Esta forma de manifestação da soberania do demos ensejava, nas
disputas mais acirradas, diversas controvérsias, havendo registros de votações cujos
desfechos foram contestados pelas partes derrotadas (Mossé, 2008, pg. 71). Além
dessas desses pleitos abertos, mais frequentemente utilizadas, em alguns casos
específicos – como, por exemplo, os que envolviam a condenação ao ostracismo – a
manifestação das decisões individuais eram registradas em cacos de cerâmica,
recolhidos posteriormente para apuração do resultado final.
66
As atribuições do Conselho envolviam, ainda, o acompanhamento e o
controle da atuação dos diversos magistrados encarregados da execução das decisões
proferidas por aquele colegiado, assim como de outras atividades inerentes à
administração da cidade. O provimento dos cargos de magistrado ocorria de duas
maneiras distintas: na maioria dos casos, o método adotado era o sorteio, a exemplo
do que se observava nos demais postos diretamente vinculados à vida política da
cidade; em outros, porém, seus ocupantes eram selecionados através de eleições.
Estas exceções ocorriam apenas para atividades que não podiam ser desempenhadas
satisfatoriamente por leigos, isto é, por indivíduos que não dispunham dos
conhecimentos técnicos e da experiência profissional indispensáveis à consecução dos
objetivos inerentes à função; da administração financeira da cidade, por exemplo,
incumbiam-se magistrados admitidos por meio de eleições, exclusivamente (Raichelis,
1998).
Por fim, da organização da administração política em Atenas participava,
ainda, a Helaia, órgão incumbido do desempenho de atribuições judiciais, cuja
composição reunia aproximadamente seis mil cidadãos simultaneamente. A Helaia
normalmente era subdividida em câmaras, às quais era confiada a apreciação de
conflitos de natureza específica, de sorte a garantir maior agilidade ao julgamento das
questões que se lhe apresentavam. Mais uma vez, a seleção dos membros deste
importante órgão efetivava-se por meio do sorteio, cujas regras não admitiam a
discriminação de nenhum grupo pertencente à comunidade política; ou seja, a qualquer
cidadão assistia o direito de ser sorteado para integrar os quadros da Helaia,
inexistindo quaisquer exigências de natureza censitária ou nobiliárquica. Seus
integrantes se desincumbiam de suas atribuições no órgão ao final de um ano, sendo
substituídos por outros cidadãos também admitidos por sorteio.
Tendo em vista que o número de indivíduos considerados cidadãos era
relativamente pequeno – os milhares de estrangeiros residentes em Atenas, os
escravos e as mulheres pertencentes a quaisquer grupos étnicos permaneceram à
margem da vida política ateniense durante todo o período –, associado ao fato de que
o provimento dos cargos e das funções encarregadas das questões políticas e
administrativas da polis se dar quase exclusivamente por meio de sorteio, sendo
67
vedado a qualquer indivíduo exercer mais de dois mandatos em praticamente todos os
postos existentes – enfim, esse conjunto de circunstâncias permitia a todos os
cidadãos participar ativamente das discussões e das deliberações políticas da cidade,
de sorte que eram raros os membros da comunidade que, ao longo da vida, não
exerceram ao menos um dos cargos acima mencionados.
A Grécia antiga foi a primeira organização política a estabelecer uma
distinção clara entre as esferas pública e privada (a exposição da maneira e dos
significados dessa cisão no mundo grego é fundamental à compreensão da esfera
pública burguesa, que serviu de base à proposta de Habermas de recuperação da
democracia contemporânea). Em Atenas, a polis era considerada o reino da igualdade
e da liberdade, onde os cidadãos podiam discutir livremente junto a seus pares as mais
variadas questões de interesse geral. Neste espaço, como já indicado acima, o nível de
riqueza dos indivíduos não condicionava a influência que cada um exercia na definição
das questões de natureza pública; a força dos argumentos defendidos durantes as
discussões revelava-se, antes, como o fator determinante na formulação das decisões
coletivas. Ao invés da riqueza, ou de quaisquer outras características distintivas, o
elemento valorizado, nesse contexto, era a capacidade de persuasão, que trazia fama
e posteridade aos grandes retóricos, dentre os quais Péricles foi o mais célebre, sem
dúvida. Em contraposição, o universo do lar era caracterizado como o espaço das
necessidades, da ausência de liberdade, onde os homens permaneciam cativos de
suas necessidades de sobrevivência material. Segundo esta concepção, liberdade e
necessidade formam pares antagônicos; a existência de um implica, necessariamente,
a exclusão do outro. A reprodução econômica da sociedade ateniense era relegada ao
âmbito do oikos (do lar), confiada à exploração da mão de obra escrava e ao trabalho
das mulheres. Circunscritas à esfera privada, as dificuldades inerentes à obtenção do
sustento dos grupos familiares não figuravam, em hipótese alguma, entre as matérias
consideradas de interesse público e, portanto, jamais eram trazidas à discussão
pública. Destarte, a condição de cidadão, isto é, o exercício pleno das liberdades
cívicas, pressupunha a superação das restrições que caracterizavam o mundo do
oikos. Em outras palavras, aqueles cujas necessidades econômicas não estivessem
plenamente garantidas, dispensando-os da luta diária pela sobrevivência, não podiam
ser considerados livres e, portanto, não integravam a comunidade política da cidade.
68
Este entendimento radica-se na ideia de que a isenção necessária à participação
política não é possível senão aos que prescindem do auxílio alheio para seu próprio
provimento, permitindo-lhes assumir seus posicionamentos em razão exclusivamente
de convicções urdidas de forma racional a partir de amplos debates públicos, e não sob
a coação de compromissos contraídos junto a seus patrocinadores. Evidentemente, a
dependência econômica aqui considerada não abrange a que vincula o chefe do oikos
à sua parentela, porquanto nesta esfera as relações são marcadas pela desigualdade –
mais uma vez em oposição ao que se observa na polis –, estando as mulheres e os
escravos, responsáveis diretos pela produção econômica, submetidos à condição de
inferioridade e dependência em relação ao chefe do grupo (RAICHELIS, 1998, cap. I).
A despeito das inegáveis assimetrias que caracterizavam o universo social
ateniense, a descrição realizada anteriormente buscou chamar a atenção para os
arranjos institucionais forjados pela democracia de Péricles, que lograram dar
concretude ao ideal da igualdade política entre os cidadãos, impedindo que o poder se
concentrasse na mão de qualquer grupo ou indivíduo, malgrado as diferenças materiais
que os singularizavam. É bem verdade que contra esta afirmação pesa o fato de o
círculo de indivíduos que desfrutavam dos direitos de cidadania ser constituído por uma
minoria, dele estando excluídos os estrangeiros residentes em Atenas – embora
durante alguns breves períodos o benefício tenha sido estendido a muitos deles – os
escravos e as mulheres, as quais estiveram manietadas, durante todo o apogeu da
democracia ateniense, às injunções da reprodução material da sociedade e,
consequentemente, indisponíveis para o exercício das liberdades cívicas. É certo que
tais circunstâncias não podem ser minimizadas; entretanto, se considerada apenas a
sociedade política da polis, que congregava um número muitas vezes superior ao que
se observava nas elites das demais formas de organização política conhecidas, é
forçoso reconhecer que a pulverização do poder político alcançou níveis dificilmente
superáveis, sendo garantidas a cada cidadão as mesmas possibilidades de influir nas
decisões que afetavam os destinos da coletividade, fossem eles grandes proprietários
terra ou não, gozassem eles de conhecimentos especializados em quaisquer áreas ou
não.
69
7.2. - Teorias Elitistas e Democracia
O elitismo surge como resposta ao recrudescimento da visibilidade política
dos movimentos sociais – especialmente do movimento operário – que, a partir do
século dezenove, começaram a questionar os privilégios até então desfrutados pelas
aristocracias europeias. O acirramento dos conflitos de classe minou, gradualmente, as
hierarquias sociais que caracterizaram o Antigo Regime, solapando o prestígio dos
discursos que naturalizavam as diferenças entre os homens e justificavam, por um
lado, a dominação exercida por um seleto e restrito grupo de indivíduos e, por outro, a
sujeição pacífica de amplos segmentos sociais. Este período assistiu a universalização
do voto masculino e adulto em diversos países da Europa ocidental, bem como o
reconhecimento da igualdade jurídica entre todos os cidadãos pertencentes à nação,
independentemente do nível de rendimentos auferidos por cada um. Cerca de um
século antes, Tocqueville, ao analisar a sociedade estadunidense recém emancipada
da dominação inglesa, previra que o avanço da democracia – e da igualdade que a
fundamenta – representava um movimento irresistível, fadado a abater-se sobre toda a
Europa inexoravelmente. Este é, portanto, o contexto de surgimento e consolidação do
elitismo, cuja projeção acadêmica deveu-se, num primeiro momento, à influência
exercida pelas obras de três pensadores sociais do início do século passado: o
sociólogo franco-italiano Vilfredo Paretto, o cientista político italiano Gaetano Mosca e o
sociólogo alemão Robert Michels. A reação aos “perigos” intrínsecos à emergência das
classes subalternas, recebia, com esses autores, a “roupagem asséptica” da ciência.
Antes, porém, de comentarmos brevemente os principais argumentos da
chamada trindade do elitismo, cumpre-nos indicar que a repulsa frente ao surgimento
das massas no cenário político recebeu densidade filosófica através da obra de
Friedrich Nietzsche, já no final do século XIX. A obra do pensador alemão caracteriza-
se, em primeiro lugar, pelo recurso insistente ao irracionalismo, como forma de recusa
ao projeto iluminista de libertação do homem por meio da Razão. Em seu combate
contra o obscurantismo e o misticismo que predominavam na produção intelectual e na
organização social da Alta Idade Média, o Iluminismo acreditou que o cultivo da razão
poderia libertar a humanidade de toda a opressão que até então a subjugara. Ao final
do século dezenove e início do seguinte, entretanto, avultavam-se os episódios em que
argumentos perfeitamente racionais se tinham prestado a legitimar atos de flagrante
70
injustiça social, impondo sofrimentos atrozes a diversos indivíduos considerados
inocentes. Ora, frente a tais acontecimentos, em que medida a razão pode ser
considerada, de fato, superior a seu oposto, o irracionalismo? Eis a pergunta que
atravessa a maioria das elucubrações de Nietzsche e que dá a tônica de sua obra
filosófica, especialmente em livros como Além do Bem e do Mal (1886) e A Genealogia
da Moral (1887).
O filósofo alemão rechaça, ademais, a possibilidade de existência da
verdade, imutável e objetiva: “os conhecimentos, as crenças, as instituições e os
discursos são apenas interpretações da forma que a vida adota para fazer experiências
sobre si mesma (afirmar-se, diversificar-se, modificar-se ou... negar a si mesma)”
(Choulet, 1996, p. 381). Portanto, as busca por verdades absolutas não podem resultar
senão em construções parciais e precárias, já que as coisas refletem, inevitavelmente,
as conjunturas e as relações de poder imanentes ao próprio processo de construção do
conhecimento.
Para Nietzsche, o princípio da vontade de poder, o desejo de sobrepor-se
sobre os demais homens, ocupa a centralidade que, no discurso iluminista, fora
reservado à Razão. Analisando sua obra, Luis Felipe Miguel (2002) salienta que, para o
pensador alemão, “o objetivo que guia a ação dos organismos vivos – ou das
sociedades – não é a mera autoconservação, como muitos pensaram, mas a busca
pela própria superação, o „tornar-se mais‟” (p. 488). As hierarquias sociais baseiam-se,
portanto, na vontade de poder que cada indivíduo manifesta, existindo naturalmente um
pequeno contingente de homens em que esta qualidade atinge patamares
sensivelmente superiores ao da vontade medíocre das massas. É este fator que lhes
concede o “direito” de assumir os principais postos de comando da sociedade e do
Estado. De acordo com Nietzsche, a organização social deve arquitetar-se de modo a
garantir condições favoráveis para que as pulsões de dominação desses indivíduos
não encontrem obstáculos, permitindo-lhes realizar obras extraordinárias, condizentes
com a magnitude de suas vontades de poder. Os grandes homens jamais refreiam
suas ambições pessoais em virtude de escrúpulos de piedade ou altruísmo; a
voracidade de seus desígnios não pode ser mitigada por obstáculos de natureza moral,
a qual se presta exclusivamente a disciplinar o comportamento da plebe ignara, cujo
71
“instinto de rebanho” a predispõe naturalmente à subserviência, à sujeição ao comando
exercido pelos grandes homens. Por essas razões, o filósofo conclui que a sociedade é
inexoravelmente dividida “em vencedores e perdedores, e a democracia é uma
aberração, uma „decadência ou diminuição‟ do homem” (idem, p. 489).
Nietzsche entende que o principal problema da segunda metade do século
dezenove é, justamente, a banalização dos episódios de insubmissão das massas ao
comando dos homens superiores, ou seja, a contestação das hierarquias sociais que
emanam, em última análise, da própria natureza das sociedades humanas. Os
movimentos da classe trabalhadora, ao rejeitarem o papel que lhes cabia
desempenhar, colocavam em risco a própria continuidade da civilização ocidental.
Diante desse quadro, restava às elites reunirem forças para repelir definitivamente a
chamada “rebelião dos escravos”, que tencionava manietá-la à mediocridade de sua
moralidade covarde.
Apesar da violência de sua argumentação e do estimulo anárquico e obscuro
de suas obras, Nietzsche granjeou diversos simpatizantes, não apenas entre filósofos e
cientistas sociais, como também entre poetas, políticos, artistas, entre outros
igualmente seduzidos pela ideia de que a posição social privilegiada de que
desfrutavam não podia ser atribuída à conjugação venturosa de circunstâncias
aleatórias, mas às suas próprias qualidades intrínsecas. A obra do filósofo alemão, tal
como a dos elitistas que se lhe seguiram, ofereciam subsídios intelectuais e científicos
para a legitimação das relações de dominação que caracterizavam as sociedades do
período.
Dentre as obras associadas ao elitismo político que obtiveram maior
repercussão, a primeira delas, Sociologia dos Partidos Políticos, de 1911, foi escrita por
Robert Michels, autor cuja trajetória política iniciou-se, paradoxalmente, como militante
do partido socialdemocrata alemão (SPD), de orientação socialista, no qual exerceu
atuação destacada em diversos de seus congressos. Sua obra clássica dedica-se,
justamente, a analisar a estrutura interna do PDS, levando-o a concluir que qualquer
movimento político, ao organizar-se, conduz-se necessariamente à burocratização e à
centralização do poder nas mãos de um pequeno número de associados, afastando os
demais membros dos processos decisórios da instituição. Para o sociólogo alemão, as
72
demandas por eficiência administrativa pressionam no sentido da especialização das
funções internas de qualquer associação política, o que resulta na constituição de um
pequeno comitê diretivo e a criação de um corpo funcional exclusivamente dedicado às
necessidades operacionais da organização, rigidamente estruturado segundo níveis
hierárquicos. Se, por um lado, estes processos permitem o adensamento da
capacidade de ação dos partidos, alavancando sua visibilidade e seu sucesso eleitoral,
por outro, concorrem para a formação de um núcleo dirigente que, gradualmente, se
descola das bases sociais que sustentavam o partido. Os membros desse núcleo
desenvolvem interesses vinculados às posições que ocupam nas estruturas
burocráticas, que já não mais coincidem com os interesses dos segmentos sociais aos
quais deveriam servir. Líderes e demais funcionários da organização partidária passam
a atuar fundamentalmente em favor da preservação do status e dos privilégios que sua
nova condição lhes assegura, sufocando as possibilidades de participação dos demais
membros do partido, que veem como uma ameaça a seus propósitos conservadores.
Este processo foi denominado por Michels como a “lei de ferro das oligarquias”. O
desalento que se abateu sobre o autor a partir do resultado de suas pesquisas, fê-lo
abandonar os ideais democrático e socialista, além de aproximá-lo do fascismo italiano,
país onde construiu a maior parte de sua carreira acadêmica.
Embora tenha atribuído a suas descobertas a dimensão de uma regra
categórica e inexorável, é importante ressaltar, mais uma vez, que as generalizações
Michels fundamentam-se exclusivamente na experiência do partido socialdemocrata
alemão. As duas últimas décadas têm assistido, por outro lado, o surgimento de
diversos movimentos sociais que se distinguem justamente pela rejeição do modelo
burocrático de organização; ao invés das rígidas estruturas hierárquicas e da
especialização das funções administrativas, observa-se cada vez mais a adoção de um
padrão horizontal de relacionamento entre os membros do movimento, o qual, na
maioria das vezes, sequer possui um líder formalmente constituído. Os movimentos de
protesto contra a globalização econômica que se manifestam nos países
desenvolvidos, sobretudo durante encontros que reúnem lideranças governamentais de
diversos países, costumam assumir esta nova configuração. De qualquer maneira,
como salienta Miguel (idem), “Michels tocou em um ponto crucial para a implementação
da democracia, que é a relação entre representantes e representados. Sua teoria é útil
73
para analisar o desgaste atual dos partidos, que pode ser creditado aos vícios que ele
descreveu” (p. 497).
O segundo autor de grande projeção do elitismo político foi Vilfredo Pareto,
cuja principal obra, Tratado de Sociologia Geral, foi publicada pela primeira vez em
1916. Pareto objetivava, fundamentalmente, inaugurar uma verdadeira ciência da
sociedade a partir do modelo fornecido pela Química; em outras palavras, sua principal
ambição era identificar os elementos fundamentais que explicavam a organização e as
transformações das sociedades humanas, tal como o comportamento e as
propriedades de átomos e elétrons permitiam compreender os fenômenos estudados
pela Química. Um dos pressupostos básicos defendidos pelo autor defende que as
ações humanas têm, quase sempre, caráter irracional. As motivações apresentadas
pelos agentes são, na verdade, construções a posteriori – denominadas por Pareto de
derivações – que não presidiram efetivamente os acontecimentos que visaram
justificar. O que determina, de fato, o comportamento humano são partículas eternas e
imutáveis da personalidade, chamadas de resíduos, as quais se combinam de variadas
maneiras em todos os indivíduos.
O sociólogo franco-italiano identifica um total de 52 resíduos, os quais, após
classificá-los e agrupá-los em grupos distintos, resultam em dois padrões fundamentais
de personalidade: a que define os indivíduos integrantes da Classe I e a que determina
o pertencimento à Classe II. O primeiro grupo caracteriza-se pela argúcia e pela
flexibilidade de seus membros, o que os tornam hábeis negociadores, capazes de
costurar compromissos políticos favoráveis a seus projetos de poder. Já os do segundo
grupo, ao contrário, mostram-se particularmente refratários a arranjos dessa natureza e
apresentam comportamentos frequentemente violentos e intransigentes. “Assim, o
modelo „científico‟ de Pareto reduz-se ao velho tropo das raposas e dos leões, presente
no pensamento clássico e retomado na Renascença, entre outros por Maquiavel”
(idem, p. 492).
Outro aspecto relevante da obra ora comentada diz respeito à interpretação
que seu autor faz acerca do conceito de elite. Para Pareto, cada ramo da atividade
humana possui uma elite, que é constituída pela reunião dos membros que a exercem
com o mais elevado grau de excelência. O pertencimento à elite não está condicionado
74
à influência que seus membros exercem sobre seus pares, ou sobre a sociedade de
maneira geral, como vulgarmente se imagina. Na verdade, basta que o indivíduo
desempenhe suas atribuições profissionais e/ou intelectuais de acordo com os mais
altos padrões de qualidade que são exigidos em seu ramo de atividade. O autor insiste
que toda e qualquer atividade humana possui sua própria elite, independentemente do
prestígio social que o ramo ao qual se dedica desfruta. Congruente com seu
compromisso de neutralidade (pseudo)científica, a teoria de Pareto sequer estabelece
uma hierarquia entre as diversas elites existentes; por esse motivo, a elite dos
financistas se equivale, em termos objetivos, ao grupo dos indivíduos que melhor
desempenham, por exemplo, a atividade de varrição de logradouros públicos. O fato de
o primeiro ramo permitir o acúmulo de riquezas materiais e de amplo reconhecimento
social, não faz com que seus mais destacados integrantes participem de uma “elite
superior” à formada pelos membros mais bem-sucedidos da segunda.
Há, entretanto, uma diferença fundamental entre as elites existentes: a que
separa as governantes das que permanecem alijadas dos mecanismos de dominação
do Estado. A este respeito, o sociólogo franco-italiano ressalta, em primeiro lugar, que
o poder é necessariamente monopolizado por um pequeno grupo dirigente, sendo
ilusórias as pretensões de pulverizá-lo entre os diversos segmentos que compõem o
universo social. A seguir, Pareto introduz sua célebre – e há muito desacreditada –
teoria da “circulação das elites”, segundo a qual a estabilidade dos governos depende
do equilíbrio sempre precário entre a astúcia e a disposição para o emprego da força.
Dito de outra maneira, os governos necessitam de indivíduos de ambas as Classes
anteriormente mencionadas, em composições que se preordenem a neutralizar a
ascendência excessiva de qualquer uma das duas. Entretanto, arranjos deste tipo
estão inexoravelmente fadados a perdurarem por um período limitado de tempo, dando
início a um ciclo de predomínio crescente de indivíduos da Classe I, que, após cooptar
os melhores indivíduos das principais elites existentes, iniciam um processo de
remoção dos membros da Classe II dos principais postos de comando do Estado, já
que estes não se dobram a compromissos políticos e mantêm-se inflexíveis ante as
manobras dos primeiros. Ao verem-se marginalizados dos aparatos do poder estatal,
os leoninos constituem uma contra-elite que, com o passar do tempo, reúne forças
75
capazes de desferir um golpe mortal ao governo das raposas (as revoluções), dando
início a um novo ciclo de circulação das elites.
De acordo com Pareto, este processo é perene e imutável. As roupagens
dos acontecimentos históricos são, de fato, bastante variadas; o motor das grandes
transformações sociais, no entanto, permanece sempre o mesmo: a eterna circulação
das elites. Destarte, as grandes revoluções, em qualquer período histórico e
independentemente do substrato ideológico que as justificaram, não representam
senão mais um capítulo desse movimento eterno. Como podemos observar, o autor
não concebe a possibilidade de o poder político não ser exercido exclusivamente por
uma pequena elite dirigente, além de não conceder qualquer papel relevante à
participação popular nos processos de transformação política, que se devem
exclusivamente a atritos entre elites concorrentes.
Por fim, o último dos autores clássicos do elitismo, Gaetano Mosca, cuja
principal obra é História das Doutrinas Políticas, publicada em 1927, defende que o
domínio de uma minoria sobre todo o restante da população deve-se à sua capacidade
de organização. Ora, o acesso ao poder político exige, necessariamente, a organização
do grupo social que objetiva conquistá-lo, de modo a coordenar e racionalizar suas
ações. Fazê-lo, entretanto, implica necessariamente a constituição de uma pequena
elite dirigente, a qual, ao alcançar os principais postos de comando do Estado,
concentra em suas mãos todo o poder político, dele excluindo inclusive as bases cujos
interesses invocam, apenas no plano discursivo, para legitimar suas manobras. Miguel
observa que “a teria de Mosca também investe contra as „ilusões‟ do movimento
operário, que se propunha reunir a maioria da população e levá-la ao poder.
Impossível, segundo ele, já que a maioria nunca governa, no máximo pode entronizar
outra minoria. Portanto, é uma teoria conservadora” (p. 496).
O elitismo político é importante para o estudo das doutrinas democráticas
porque está umbilicalmente associado à concepção de democracia que se tornou,
desde sua elaboração, hegemônica não apenas nos meios acadêmicos, como também
no plano das representações sociais. Seu principal responsável foi o economista
austríaco Joseph Schumpeter, que, em 1942, veiculou-a em seu livro mais conhecido:
Capitalismo, Socialismo e Democracia. É bem verdade que sua teoria da democracia
76
ocupa apenas três capítulos da obra: o suficiente, entretanto, para revolucionar o
conceito de maneira duradoura, de tal sorte que, a despeito das críticas de que foi
objeto desde então, permanece extremamente influente tanto no âmbito dos debates
filosóficos quanto no da organização das instituições políticas. Para Miguel, esta obra
representa um verdadeiro “divisor de águas, já que, a partir dela, qualquer estudioso da
democracia tem que se colocar, em primeiro lugar, contra ou a favor das teses
schumpeterianas. Entre aqueles que foram influenciados por elas, de diferentes
maneiras, estão nomes do peso de Giovanni Sartori, Robert Dahl e Anthony Downs” (p.
498/99, grifos do autor).
O contexto em que o livro em questão foi lançado – e que certamente
influenciou as idéias nele apresentadas – favoreceu sua rápida difusão, bem como a
entusiasmada acolhida que recebeu em praticamente todo o mundo, porquanto as
ascensões do nazismo e do fascismo italiano eram interpretadas como o resultado do
excesso de participação popular na política. Além disso, tanto a União Soviética,
quanto os Estados Unidos ingressaram na Segunda Guerra Mundial sob a bandeira da
defesa da democracia. Após a vitória dos dois países no conflito, o mundo ocidental
carecia apresentar-se como o verdadeiro promotor deste modelo de organização
política e social. Entretanto, pretendia fazê-lo sem assumir todas as implicações que,
até aquele momento, envolviam o imaginário democrático, pois este, em muitos pontos,
conflitava com as demandas da acumulação capitalista. Ora, o livro do economista
austríaco se presta perfeitamente à realização desta finalidade, qual seja: a de
preservar os aspectos formais dos regimes democráticos esvaziando-os,
concomitantemente, de seu significado substantivo. Em outras palavras, na pena de
Schumpeter, a democracia se resume a um mero mecanismo de seleção das elites
políticas, dispensando permanentemente o concurso da população na administração
dos negócios públicos.
As teses de Schumpeter baseiam-se, inicialmente, na refutação da chamada
“doutrina clássica da democracia”, que, segundo o autor, definia o conceito em questão
como um modelo de organização política voltada à manifestação da soberania popular
e à realização do bem comum. Já nesta primeira aproximação, o economista austríaco
imagina identificar uma impossibilidade insuperável, já que:
77
“não há, para começar, um bem comum inequivocamente determinado que o povo aceite ou que possa
aceitar por força de argumentação racional. Não se deve isso primariamente ao fato de que as pessoas
podem desejar outras coisas que não o bem comum, mas pela razão muito mais fundamental de que,
para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum provavelmente significará coisas muito diversas. Esse
fato, ignorado pelo utilitarista devido à estreiteza de ponto-de-vista sobre o mundo dos humanos,
provocará dificuldades sobre as questões de princípio, que não podem ser reconciliadas por
argumentação racional” (p. 301)
Além disso, para o autor, os indivíduos comuns sequer logram formar
opiniões concretas a respeito de assuntos de natureza política. Seu âmbito de
preocupações restringe-se às questões práticas do cotidiano, que se remetem
exclusivamente ao plano de suas relações intersubjetivas e às injunções do mundo do
trabalho. Dessa forma, ainda que lhes fossem garantidas as oportunidades de
manifestarem-se acerca dos grandes desafios enfrentados pelo Estado, os indivíduos
ordinários certamente não as aproveitariam, pois “o cidadão típico (...) desce para um
nível inferior de rendimento mental logo que entra no campo da política. Argumenta e
analisa de uma maneira que ele mesmo imediatamente reconheceria como infantil na
sua esfera de interesses reais. Torna-se primitivo novamente” (p. 313)
Schumpeter chama a atenção, ainda, para o fato de que as massas são
extremamente suscetíveis aos apelos da propaganda política – como o atestam os
sucessos obtidos pela máquina de propaganda do regime nazista. Sem embargo da
racionalidade de que são sujeitos no plano de seus assuntos particulares, os
indivíduos, ao serem absorvidos pela massa, passam a comportar-se irracionalmente,
permanecendo à mercê de paixões e preconceitos subterrâneos; destarte, tornam-se
presas fáceis para os aparatos de manipulação política de massa.
Tendo em vista a incapacidade congênita dos indivíduos comuns para a
compreensão de assuntos de natureza política, Schumpeter propôs reduzir a
democracia a um conjunto de mecanismos eleitorais que não permitem a participação
direta na condução dos rumos políticos da nação, mas tão somente a seleção das
elites que se incumbirão de dirigi-la – estas sim compostas por um reduzido número de
indivíduos cujas faculdades intelectuais superiores os capacitam a dominar os assuntos
de competência estatal. Trata-se da chamada democracia concorrencial, que se
resume a institucionalizar a competição entre grupos políticos rivais no mercado
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eleitoral. Ora, na prática, a operação intelectual forjada pelo economista austríaco
concretiza engenhosamente a fusão entre o princípio fundamental do elitismo – isto é,
a assertiva de que apenas uma minoria pode governar – e os fundamentos básicos da
organização política democrática, ainda que, para tanto, sacrifique o conteúdo
substantivo que distinguira este tipo de regime na história do pensamento político.
Miguel conclui que:
“o modelo desenhado por Schumpeter é um retrato bastante fiel dos regimes políticos ocidentais, que
permite que eles se apresentem como verdadeiras democracias. Mas é, de fato, um rebaixamento do
ideal democrático. Significa a negação da possibilidade de qualquer forma substantiva de soberania
popular” (idem, p. 502).
7.3. - Recuperação da Esfera Pública
As novas propostas de recuperação do fundamento substantivo da
democracia decorrem, sobretudo, da retomada do conceito de esfera pública, relegada
à marginalidade pelas concepções defendidas por Schumpeter e demais teóricos da
“democracia elitista”. Esta retomada conheceu duas vias distintas; a primeira delas foi
minuciosamente desenvolvida pela filósofa alemã Hannah Arendt, e caracteriza-se,
sobretudo, pela recuperação dos sentidos atribuídos pelos gregos antigos para o
conceito em questão. A outra trilha encontrou seus primeiros desenvolvimentos na
obra clássica do também alemão Jurgën Habermas, Mudança Estrutural da Esfera
Pública, na qual o autor investe na fecundidade da esfera pública burguesa constituída
ao longo dos séculos XVIII e XIX, mas desfigurada no século seguinte em razão de
progressiva colonização pelos discursos economicista e tecnicista de que foi objeto.
Nos parágrafos seguintes procuraremos esboçar os principais argumentos
apresentados por ambos os autores, centrando-nos principalmente na proposta de
Habermas, já que esta, a despeito das diversas críticas que expuseram suas principais
inconsistências, exerce ainda forte influência sobre os debates contemporâneos acerca
da chamada democracia deliberativa.
Para Arendt, na modernidade, o único elemento comum aos indivíduos é o
fato de que todos possuem interesses particulares, os quais dificilmente aceitam
submeter às restrições e concessões inerentes aos processos de construção de
projetos coletivos. A autora ressalta a profunda atomização social que caracteriza as
79
sociedades capitalistas desde a segunda metade do século passado. Os interesses
particulares sobrepõem-se, invariavelmente, ao bem público, prevalecendo a satisfação
das pulsões de consumo estritamente individualistas. Nesse contexto, “a distinção
entre esfera pública e esfera privada deu lugar à indivisa e monolítica esfera social” (p.
185). A situação descrita por Arendt contrasta frontalmente com a vida política da polis
grega, em que ambas as esferas, como já indicado na parte incial deste capítulo,
apresentavam contorno bastante nítidos, inexistindo pontos de interpenetração entre
público e privado: este circunscrito ao universo doméstico, vinculado à obtenção da
subsistência material dos indivíduos; aquele integralmente dedicado à discussão dos
interesses públicos e, portanto, refratário à manifestação pura e simples de disposições
particulares ou corporativas.
A proposta de Arendt, grosso modo, caminha na recuperação justamente
desta concepção de espaço público, que não admite que interesses particulares,
forjados em razão das condições específicas de inserção dos indivíduos no sistema
produtivo e social, sejam patrocinados em seus fóruns de discussão e deliberação.
Arendt não reconhece a função política como salvaguarda da autonomia
individual contra o poder, tal como preconizado pela ideologia burguesa (anteparo
contra as arbitrariedades perpetradas por agentes públicos, que exorbitam de suas
funções e cometem abuso de poder). O poder não pode ser limitado, segundo a autora.
À primeira vista, esta frase parece associar-se a concepções totalitárias de organização
política. Não se trata disso, evidentemente. Seria certamente bastante surpreendente
que uma pensadora judia contemporânea à Segunda Guerra Mundial e, portanto,
observadora privilegiada do Nazismo e do Holocausto, desposasse posições dessa
natureza. Para compreendê-la adequadamente, é necessário conhecer a concepção de
poder assumida por Arendt.
Para a eminente filósofa alemã (1973), o poder “corresponde à capacidade
humana não somente de agir mas de agir em comum acordo” (p. 123). Nesse sentido,
“poder” foge completamente à esfera privada, adquirindo sentido e significado apenas
na esfera pública. “O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo
e existe somente enquanto o grupo se conserva unido. Quando dizemos que uma
pessoa está „no poder‟, queremos dizer que está autorizado por um certo número de
80
pessoas a atuar em nome delas. No momento em que o grupo do qual se originou a
princípio o poder (potestas in populo, sem o povo ou um grupo não há poder)
desaparecer, „seu poder‟ também some” (p. 123). Ao contrário do que geralmente se
admite, poder não significa dominação; não se refere às relações hierárquicas de
comando e obediência; não se relaciona umbilicalmente com violência. Pelo contrário.
Segundo Arendt, poder e violência são dois fenômenos não somente distintos mas
também opostos, na medida em que onde uma predomina completamente, o outro está
ausente. A esfera pública não é um espaço de violência, mas de debate e persuasão
por meios não-violentos, o que se coaduna perfeitamente com a definição de
Aristóteles, segundo a qual, o homem é um ser político e um ser dotado de fala.
As principais críticas às concepções de Arendt se referem, nesse caso, ao
fato da autora não admitir que interesses particulares sejam sequer discutidos na
esfera pública. Ela considera que a sociedade civil não pode realizar a devida
mediação entre o Estado e a esfera privada, já que as dissimetrias de poder
subjacentes às dinâmicas das disputas societais jamais permitiriam a satisfação de
interesses efetivamente públicos. Resta, de qualquer maneira, a dificuldade inerente à
definição de quais assuntos envolvem razões essencialmente privadas e, portanto, não
devem ser tratadas nos fóruns de discussão coletiva.
A concepção de Habermas a respeito de uma esfera pública, por sua vez,
baseia-se justamente na experiência burguesa, sobretudo no momento em que a
burguesia logrou separar o Estado da sociedade civil (entre os séculos XVII e XVIII):
esta última formada por indivíduos pensantes que se reuniam regularmente para
discutir assuntos de natureza pública, a partir de procedimentos argumentativos e
racionais. Nesse sentido, sua proposta é diametralmente oposta à apresentada por
Arendt, que utiliza como modelo a esfera pública forjada pelos gregos antigos, tal como
já indicado anteriormente.
O que seduz Habermas é a possibilidade de separação entre Estado e
sociedade civil, o que enseja o “controle sobre a atividade governamental e
administrativa, a crítica e, enfim, demandar legitimidade” (Bento, idem, p. 191).
81
Habermas identifica três níveis distintos de mediação entre Estado e
sociedade civil: a família, a esfera pública literária e a esfera pública burguesa. Os
séculos XVIII e XIX assistiram à consolidação da representação idealizada da família
burguesa como o espaço da intimidade, da solidariedade, onde os indivíduos podem,
enfim, se despir dos papéis que são coagidos a assumir em ambientes públicos. O
universo doméstico assoma como o espaço em que não predominam relações de
dominação, ou seja, onde o poder não é exercido por nenhum de seus membros, que
convivem cotidianamente como iguais, ao contrário do que ocorre no plano das
relações econômicas e políticas. Esta é, na verdade, uma concepção marcada por uma
espessa carga de idealização: tal como se observa no “mundo da rua”, as relações
entre os membros do grupo familiar são caracterizadas por uma profunda assimetria de
poder, ainda que nem os dominadores nem os dominados a percebam. Entretanto, a
representação da não incidência do poder é essencial para a constituição das esferas
públicas burguesas, nas quais se almeja, em última análise, extirpar as relações de
dominação exercidas pelo Estado.
Pode-se afirmar que este processo testemunha o deslocamento do lócus da
liberdade do universo público para o privado, promovendo a completa inversão do
padrão de organização sociopolítico observado na Atenas de Péricles.
De acordo com o pensador alemão, o primeiro elo de transmissão entre a
família e a esfera pública se dá através das discussões literárias, as quais foram
gradualmente deslocando-se da intimidade dos espaços estritamente domésticos, onde
permaneciam confinadas, para os acalorados ambientes dos cafés, solões de literatura,
entre outros espaços públicos que, nesse período, começavam a se vulgarizar nos
principais centros dos países capitalistas da Europa setentrional (sobretudo França e
Inglaterra). Um dos principais temas sobre o qual se debruçou a literatura burguesa do
século dezenove foi justamente a intimidade das relações familiares, contribuindo
sobremaneira para a cristalização (e certamente sendo influenciada por ela) da
representação já mencionada, isto é, da noção de que todos os dissabores
experimentados pelos indivíduos em suas atividades públicas (especialmente as
relacionadas ao universo do trabalho), não o acompanhavam quando, no início da
noite, cruzavam a soleira da porta de casa e, enfim, se entregavam ao aconchego do
82
lar, desfrutando da espontaneidade e da descontração que a rua lhes negara. São
justamente estes temas que são objeto das discussões literárias que ocorrem nos
novos ambientes públicos.
O fundamental, nesse caso, é a atmosfera que prevalece nesses debates,
nos quais predominava a igualdade entre os participantes das “disputas”, conduzidas
segundo a lógica da confrontação entre argumentos racionais, ou seja, pelas tentativas
de persuadir os participantes das discussões exclusivamente em razão da força dos
argumentos defendidos, sem o recurso às relações de poder que predominavam
alhures.
Logo, porém, às controvérsias literárias acrescem-se os debates acerca de
assuntos políticos, abordando tanto as decisões adotadas pelo Estado como o
comportamento de diversas autoridades públicas. A vulgarização deste tipo assunto
não transforma os cafés e os salões literários em plataformas conspiratórias, utilizadas
como base para a elaboração de planos atentatórios aos regimes políticos instituídos.
Na verdade, a esfera pública forjada por essa via não se preordenava à tomada do
poder, à constituição de estratégias para a assunção dos principais postos políticos do
Estado. Tratava-se, antes, de exercer o controle do poder, de sujeitá-lo à crítica,
forçando-o a se justificar perante um público cujas discussões se desenvolviam em
ambientes não atreitos às pressões exercidas por forças coercitivas. Tal como afirma
Bento, “na linha que conduz da família até a esfera pública, tanto literária quanto
política, passando pelas relações econômicas de mercado, um mesmo princípio que se
desenvolve e evolui sem solução de continuidade e que se constitui, segundo
Habermas, o núcleo do ideal da modernidade: a construção de espaços neutros em
relação ao poder e emancipados em relação à dominação, mesmo quando na
sociedade burguesa esse ideal nunca tenha sido realizado plenamente” (p. 220).
É importante salientar que a principal limitação da esfera pública burguesa
se refere à estrita faixa de indivíduos admitidos aos debates. Isto porque a participação
não era viável aos não alfabetizados, já que, em seus primórdios, a esfera pública se
consolidou como um espaço de discussões literárias, e, num momento posterior,
quando a política tornou-se o tema dileto de seus participantes, os debates passaram a
ser alimentados pelos textos da florescente imprensa do período – favorecida pelo
83
desenvolvimento de novas técnicas tipográficas – sobretudo na Inglaterra, onde a
atividade jornalística, a partir do século XVII, não esteve submetida a severos controles
por parte do Estado, o que favoreceu a livre circulação de ideias e de concepções
políticas, ainda que abertamente contrárias às professadas pelos grupos políticos
dominantes.
Além disso, a esfera pública burguesa foi progressivamente tolhida ao longo
dos dois últimos séculos em razão da confluência de dois processos distintos, mas
complementares. Por um lado, verificou-se a “expansão de um estado intervencionista
que assumiu cada vez mais um amplo raio de funções de bem-estar” e, por outro o
“crescimento massivo das organizações industriais que tomaram cada vez mais um
caráter semipúblico” (Thompson, 2002, p. 147). As lógicas subjacentes a esses dois
“subsistemas” (o burocrático e o economicista) colonizaram progressivamente os
espaços de discussões públicas, subtraindo-lhes a espontaneidade e a isenção de
poder inerentes ao chamando “mundo da vida”, isto é, o espaço das tradições, das
concepções não discutidas, do pré-conhecimento implícito, enfim, do pano de fundo
cultural comum a todos os indivíduos. Thompson (ibidem) ressalta que esses
desenvolvimentos:
“fizeram nascer uma esfera social repolitizada, em que os grupos de interesse organizados lutam por
uma fatia mais ampla dos recursos disponíveis, de modo que elimina, em grande parte, o papel de um
debate público permanente entre os indivíduos particulares. Ao mesmo tempo, as instituições que numa
época propiciavam um fórum para a esfera pública burguesa desapareceram ou sofreram uma
transformação radical. (...). A comercialização da comunicação de massa alterou seu caráter de maneira
fundamental: o que tinha sido, numa época, um fórum privilegiado de debate racional-crítico se
transformou em apenas mais um campo de consumo cultural, e a esfera pública emergente se
transformou num mundo fraudulento de poseudoprivacidade que é criado e controlado pela indústria
cultural” (p. 147/48)
Entretanto, a despeito da corrupção de que a esfera pública burguesa foi
objeto, o livro de Habermas chamou a atenção para a possibilidade de constituição “de
uma comunidade de cidadãos” que reuniam-se “como iguais num fórum que fosse
distinto tanto da autoridade pública do estado, como dos domínios privados da
sociedade civil e da fida familiar” para “formar uma opinião pública através da
discussão crítica, da argumentação racional e do debate” (p. 147, grifos do autor). É
84
justamente esta experiência que inspirou as diversas propostas de democracia
deliberativa que surgiram a partir do último quartel do século passado. A esfera pública
burguesa, tal como descrita por Habermas, tornou-se o principal referencial para tantos
quantos defendam o desenvolvimento de uma nova cultura política democrática,
comprometida com a livre confrontação de razões – públicas ou não – em ambientes
institucionais emancipados das lógicas do mercado e da burocratização.
7.4. - A Contra-hegemonia Democrática
Segundo Avritzer e Santos a teoria democrática hegemônica se sustenta em
três ordens de fatores distintas:
1) a primeira delas se refere à redução do ideal democrático à sua dimensão
meramente procedimental, o que dificulta – ou inviabiliza – a expressão da
soberania popular; esta, segundo Schumpeter, como já mencionado
anteriormente, não passa de uma ilusão, já que os indivíduos comuns são
incapazes de tomarem decisões racionais no terreno das grandes questões
políticas. Esta circunstância faz com que a democracia se restrinja a um mero
mecanismo de formação de governos, acessíveis na prática por uma restrita
elite política, com tendência à hereditariedade.
2) O segundo elemento é justamente o fortalecimento das burocracias públicas,
decorrente do adensamento da complexidade tanto da esfera econômica quanto
dos próprios instrumentos de intervenção do Estado, cuja tecnicidade debilita as
possibilidades de controle social.
3) Por fim, o último elemento diz respeito à “percepção de que a representatividade
constitui a única solução possível nas democracias de grande escala para o
problema da autorização” (p. 48). A idéia de representação encontrou em Stuart
Mill o seu principal e mais influente formulador. Mill considerava que era possível
a um parlamento reproduzir, em escala reduzida, o universo de interesses que
se manifestam e se confrontam na sociedade. O problema da democracia, a
partir da aceitação dessa premissa, concentra-se, fundamentalmente, na
elaboração de técnicas que permitam aprimorar a representatividade dos corpos
legislativos, de modo que as leis por eles promulgadas reflitam as relações de
85
força que, de fato, caracterizam o tecido social representado, expressando
efetivamente sua soberania
O problema da autorização implicada no conceito de representatividade –
não o único, mas um de seus mais significativos – se refere à questão da prestação de
contas pelos atos dos governos, que é apresentada, perante o eleitorado, em bloco, ao
final de cada mandato. Ou seja, os eleitores são chamados a avaliar o conjunto das
realizações do Governo, manifestando o resultado final de suas ponderações através
do voto nas eleições majoritárias. Dessa forma, não há espaços institucionais
adequados para que os cidadãos exprimam sua concordância em relação a cada um
dos programas implementados pelos governos – autorizando a continuidade de parte
deles, exigindo a adoção de correções em outros, e determinado a extinção total dos
demais. A despeito da falta de homogeneidade nos resultados logrados nas diversas
áreas de políticas públicas, a democracia representativa “pura”, isto é, depurada de
mecanismos de participação direta da população entre os períodos eleitorais, não
oferece alternativas que compensem a incontornável avaliação global dos governos a
cada quatro anos.
Entretanto, Santos e Avritzer chamam a atenção para o fato de que,
paralelamente à consolidação da hegemonia da teoria democrática elitista, que a
considera, meramente, como um mecanismo de legitimação de governos – e não de
manifestação da soberania popular – forjou-se um arcabouço teórico contra-
hegemônico que, sem romper com o procedimentalismo defendido por Hans Kelsen,
buscou apresentar a democracia como “uma gramática de organização da sociedade e
de relação entre o Estado e a sociedade” (p. 51). A concepção defendida pelos autores
reforça o compromisso com o pluralismo, não à maneira schumpeteriana, que rechaça
a possibilidade de acordos acerca do bem comum (este testemunharia uma relação de
forças entre grupos sociais concorrentes e, portanto, o bem comum não passa de uma
ilusão que dissimula as manobras de poder de alguns segmentos melhor organizados,
controladores de recursos estratégicos – materiais e culturais – para fazerem valer
seus interesses estritamente corporativos. Dessa forma, desigualdades iniciais atuam
no sentido de tornar tais desigualdades ainda mais pronunciadas), mas com um
pluralismo associado à plasticidade das formas de manifestação do “mundo da vida”,
86
ou seja, das dimensões de sociabilidade que permanecem ao abrigo da colonização
exercida pelas lógicas tecnicistas e economicistas.
Os autores reforçam o fato de que a democracia encerra, indiscutivelmente,
a forma de organização política mais apta a absorver e expressar a vicissitudes do
tecido social, cada vez mais céleres em virtude das novas tecnologias de comunicação
de massa. Para tanto, julgam necessário satisfazer duas exigências ainda bastante
negligenciadas: 1) a criação de uma nova gramática social e cultural, isto é, a
consolidação de novas formas de relacionamento social, marcadas pelo
aprofundamento do pluralismo, da tolerância, das disposições participativas, etc.; 2) e a
promoção da articulação entre dinâmicas sociais e inovações institucionais, de modo
que estas permitam a expressão política daquelas.
Destarte, a democracia não se restringe a um conjunto técnicas de
instituição de governos, mas uma forma de relacionamento social, um complexo de
práticas voltadas à tomada de decisões com base na argumentação racional e
inclusiva. Por esse motivo, democracia envolve, antes de tudo, uma dimensão cultural
fundamental, tal como já havia enfatizado Carole Pateman em seu livro clássico,
Participação e Teoria Democrática.
De acordo com Santos e Avritzer, “no interior das teorias contra-
hegemônicas, Jurgën Habermas foi o autor que abriu espaço para que o
procedimentalismo passasse a ser pensado como prática social e não como método de
constituição de governos” (p. 52). Além disso, ambos enfatizam que o princípio
defendido por Habermas segundo o qual “apenas são válidas aquelas normas-ações
que contam com o assentimento de todos os indivíduos participantes de um discurso
racional” – que lhe valeram, inclusive, críticas bastante acerbas – não significa,
necessariamente, que os regulamentos não devam ser promulgados, nem as ações
sociais correspondentes realizadas, enquanto não for objeto da concordância de todos
os possíveis interessados na questão debatida, ou seja, sem que todas as razões –
expressões da pluralidade das sociedades contemporâneas – tenham se manifestado
no debate público. Toda e qualquer norma não pode ser subtraída, em momento
algum, dos influxos de novas razões, as quais podem, eventualmente, derrogá-las ou
alterarem parte de seus conteúdos: eis o caráter inescapavelmente indeterminável e
87
dinâmico da gramática social democrática. A democracia substantiva só ocorre à luz da
livre exposição de razões e do debate entre elas, em um ambiente pluralista e
inclusivo, ao abrigo do exercício da força e da violência (que pode ser física, simbólica,
moral, etc.)
Os movimentos sociais podem ser vistos como instrumentos que concorrem
para o surgimento dessa nova gramática, pois sua atuação pública pode ressignificar
práticas políticas esclerosadas, ampliando, por um lado, os temas trazidos ao âmbito
das discussões políticas e, por outro, a inclusão de novos atores sociais, até então
totalmente alijados dos processos decisórios públicos.
Santos e Avritzer chamam a atenção, ainda, para a permanente tensão
existente entre democracia e capitalismo, já que o primeiro conceito remete-se às
noções de igualdade (não apenas jurídica) e distribuição das riquezas socialmente
produzidas, enquanto o segundo diz respeito à acumulação, à concentração de renda –
e quase inevitavelmente de poder político. É inegável que o confronto entre ambos tem
pendido acentuadamente em favor deste último, graças, inclusive, ao verniz ideológico
que a teria da democracia elitista engendrou a fim de legitimá-lo. As correntes
neoliberais trataram a “questão da nova gramática de inclusão social como excesso de
demandas” (p. 60), desqualificando-a como fator de instabilidade e, no limite, de
ameaça ao sistema capitalista.
É necessário salientar, nesse sentido, que padecem de consistência teórica
e empírica os argumentos que insistem na existência de um trade off entre eficiência e
eficácia administrativa e ampliação dos canais de participação sociopolítica. Leonardo
Bento sustenta que:
“Bons instrumentos de gestão, burocratas especializados e competentes, normas e competências
definidas não asseguram, por si só, a eficiência administrativa. A questão da governabilidade ganha
novos contornos e dimensões, tornando-se bem mais completa. O êxito das políticas governamentais
requer não apenas a mobilização de instrumentos institucionais técnicos, organizacionais e de gestão,
controlados por burocratas, mas também de estratégias políticas, de articulação e de coalizões que
dêem sustentabilidade e legitimidade às decisões, o que deverá ser feito por quem quer que ocupe o
poder, independente do grupo ou partido ou extração ideológica a que se vincule.” (p. 84/85)
88
No campo do Direito Administrativo, a complementaridade entre participação
e eficiência tem sido invocada como fundamento do chamado paradigma da
governança, defendido por diversos administrativistas contemporâneos. Tal paradigma
se remete, entre outros fatores, aos novos processos por meio dos quais são
construídas as decisões relativas às políticas públicas. Seu desenvolvimento está
intimamente imbricado ao reconhecimento da noção de “boa administração” como
direito fundamental. De acordo com a professora Vanice Lírio do Valle (2011), a
pluralidade de objetivos a serem satisfeitos, somada à complexidade inerente às
formas de organização social contemporâneas, reclamam uma capacidade de
antecipação dos efeitos decorrentes da ação pública que, na maioria dos casos,
transcende às possibilidades de planejamento das organizações estatais, sobretudo
quando as questões que requerem sua intervenção não são aquelas com as quais o
Poder Público corriqueiramente se defronta. Neste cenário, as escolhas das
alternativas que melhor promovem a satisfação dos diversos interesses que se
confrontam na esfera pública – e que, portanto, concretizam efetivamente a boa
administração – não podem permanecer cingidas aos altos escalões das burocracias
públicas. Contrariamente, os desafios que se colocam ao Estado atualmente exigem
configurações institucionais que privilegiem os influxos de outros atores sociais,
sobretudo dos destinatários finais dos serviços públicos.
89
Capítulo 8 - Mecanismos de Participação Política: Obstáculos e Possibilidades
Os mecanismos de participação política que caracterizam o arcabouço
institucional do Estado brasileiro encontram sua origem nos diversos movimentos
sociais que eclodiram a partir do início da década de setenta nas principais capitais do
país, e prosseguiram com ainda mais força durante os anos oitenta. O período
caracterizou-se pela severa repressão das liberdades civis e políticas pelos regimes
autoritários do período militar. Além disso, embora os índices de crescimento
econômico alcançassem patamares extraordinários, a concentração da renda nacional
acentuava-se cada vez mais, reduzindo grande parte da população brasileira,
sobretudo na periferia das grandes cidades, a condições de existência material
extremamente precárias. Essas localidades caracterizavam-se pela quase inexistência
de equipamentos públicos fundamentais, como postos de atendimento médico,
escolas, transporte público, etc.
Os primeiros movimentos iniciaram-se através da constituição de
associações de bairro que objetivavam justamente reivindicar perante os Poderes
Públicos a promoção de melhorias urbanas em suas regiões. Neste primeiro momento,
as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da Igreja Católica, vinculadas á Teologia da
Libertação, exerceram um papel essencial na organização e direcionamento político
desses movimentos populares, que, pouco depois, passaram a contar ainda com o
apoio de diversas ONGs – geralmente financiadas com recursos provenientes de
fundações sediadas em países ricos – cujos membros, normalmente intelectuais,
assessoravam-nos na formulação de suas estratégias de ação. Neste primeiro período,
a postura das associações de bairro e de outras formas de organização política
distinguiu-se pelo distanciamento em relação aos aparatos estatais, em reação à
postura autoritária e às práticas clientelísticas que há muito caracterizavam as relações
entre o Estado e a sociedade civil. Tratava-se de exigir da Administração a satisfação
de direitos sociais, e não a concessão de benefícios de caráter não público.
Por outro lado, na medida em que a ditadura militar rumava incontinenti para
o seu ocaso, e a vida política brasileira ensaiava a restauração das garantias
democráticas alijadas por mais de duas décadas, os diversos movimentos sociais do
90
período abandonaram, progressivamente, as estratégias assumidas até aquele
momento. Ou seja, deixaram de concentrar suas energias apenas na reivindicação de
melhorias urbanas, exigindo, outrossim, a abertura de canais institucionais para a
participação popular direta na gestão das políticas públicas. Este movimento
testemunhou um salto qualificativo de grande envergadura: as novas demandas não se
restringiam à satisfação de uma série de direitos sociais fundamentais, porquanto
abarcavam, igualmente, a possibilidade de participação democrática nos processos
decisórios do Estado por meio de canais institucionalizados. Esta nova perspectiva
orientou as agitações políticas que se desenvolveram ao longo do período constituinte.
O texto final da Carta Política do país, enfim promulgada em 1988, incorporou diversos
dos mecanismos reclamados pelos movimentos sociais, tais como o referendo, o
plebiscito e a iniciativa popular (art. 14, incisos I, II e III). Além disso, nos capítulos
dedicados aos Direitos e a Ordem Sociais, é possível observar diversos dispositivos
que preveem a participação popular na gestão das políticas setoriais do Estado, como
o fazem, por exemplo, os artigos 20413, 22714 e 23015. Há, ainda, diversas leis
infraconstitucionais que estabelecem canais efetivos de manifestação dos segmentos
diretamente interessados nos programas e ações do Estado, além de permitirem o
aprofundamento do controle social sobre a Administração.
Nos próximos tópicos deste capítulo, analisaremos dois dos principais
mecanismos de participação social existentes no Brasil. O primeiro deles, o Orçamento
13
Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:
(...) II - participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e
no controle das ações em todos os níveis. 14
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
(...) § 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do
jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:
(...) 15
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
91
Participativo, criado em Porto Alegre e posteriormente adotado em diversos outros
municípios do país, é reconhecido internacionalmente como uma das mais importantes
inovações institucionais no campo da democracia participativa, de tal sorte que até
hoje, quase três décadas após sua criação, ele continua a inspirar novas experiências
em todo o mundo. Tanto é assim que a prefeitura de Porto Alegre criou, em 2002, um
departamento exclusivamente destinado a prestar assessoria para as cidades que
manifestassem interesse em reproduzir em seus domínios as técnicas do Orçamento
Participativo (Navarro, 2003).
O segundo deles – os conselhos gestores de políticas públicas – representa
o mecanismo mais importante de democracia deliberativa existente no país, senão pela
densidade participativa que proporciona, ao menos pela quantidade de colegiados
instalados nas mais diversas áreas da atuação estatal, nos três níveis de governo.
Somente na Saúde há, desde 2005, pelos menos um conselho para cada um dos 5.506
municípios brasileiros (Cortes & Gugliano, 2010), o que, em tese, envolve mais de cem
mil representantes de usuários e prestadores de serviços nas discussões sobre os
rumos das políticas públicas do setor.
Os próximos tópicos procuram, além de descrevê-los sucintamente, explorar
algumas potencialidades e limitações tanto do Orçamento Participativo quanto dos
conselhos. Desde já, porém, é importante ressaltar que não se imagina que estes
mecanismos, por mais promissores que sejam, possam substituir totalmente a
democracia representativa clássica: a complexidade, a pluralidade e a dimensão das
sociedades contemporâneas inviabilizam qualquer ilusão de reedição da democracia
ateniense, na qual qualquer cidadão podia manifestar-se sobre todos os assuntos de
interesse público na Ágora. O objetivo que anima a introdução desses instrumentos
deliberativos é justamente o de mitigar as distorções que os sistemas representativos
em vigência provocaram, ensejando, a um só tempo, a renovação da cultura pública, o
aprofundamento da legitimidade dos governos eleitos e, por fim – e talvez mais
importante – a recuperação da política como instância indispensável à resolução dos
conflitos sociais.
92
8.1. - Orçamento Participativo: a Experiência de Porto Alegre
Após as primeiras propostas de participação social ensaiadas pela
administração de Alceu Collares, primeiro prefeito eleito de Porto Alegre após o
encerramento do período militar, o Orçamento Participativo (OP) tronou-se realidade
durante o mandato de Olívio Dutra, do PT, embora sua proposta de governo previra,
inicialmente, a participação popular somente através de conselhos de inspiração
marxista – e não exatamente por meio da discussão sobre os orçamentos municipais.
Na verdade, a criação deste formato institucional deveu-se ao fato de que, naquele
momento, as associações comunitárias porto-alegrenses já haviam adquirido, após
mais de uma década de intensa atividade política, razoável experiência nos debates
sobre os problemas que os afligiam cotidianamente nas periferias urbanas, bem como
no conhecimento dos principais mecanismos administrativos empregados pelo Estado,
a ponto de se aperceberem da centralidade dos orçamentos na execução dos planos
de governo. Era, portanto, no processo de elaboração desta peça de planejamento em
que desejavam adquirir voz ativa.
O funcionamento do Orçamento Participativo divide-se em diversas etapas.
Na primeira delas, são realizadas assembleias regionais, pelo menos uma em todas as
dezesseis regiões em se subdivide o município de Porto Alegre. A participação nesses
eventos, que contam com a presença do prefeito e/ou outras autoridades da
Administração municipal, é franqueada a qualquer cidadão, pertencente ou não a
entidades e associações de bairro, ou qualquer outra forma de organização social. As
decisões são tomadas por maioria de votos, cabendo a cada um dos participantes o
direito a um voto. Além destas. Ocorrem também as assembleias temáticas, que se
debruçam sobre cinco áreas fundamentais da gestão municipal: saúde e assistência
social, transporte e circulação, organização e desenvolvimento da cidade, cultura e
lazer e desenvolvimento econômico. As discussões encetadas nestas primeiras etapas
permitem vislumbrar, anda que maneira não muito nítida, as principais leituras que
seus participantes fazem dos problemas que assolam as regiões onde habitam, bem
como das soluções que imaginam mais adequadas à sua superação – ou, ao menos,
sua mitigação. Nestas primeiras reuniões, é realizada, ainda, a seleção dos delegados
93
regionais que participaram da próxima etapa do Orçamento Participativo: as chamadas
rodadas intermediárias de assembleias locais. A função destas reuniões é a
“hierarquização das prioridades e definição das obras sub-regionais” (Avritzer, 2009,
578). Para tanto, as áreas temáticas das políticas públicas são desdobradas em 12
temas, cinco dos quais eleitas pelos participantes da assembleia como prioritárias para
cada uma das regiões de Porto Alegre. A hierarquização final resulta da mensuração
de três critérios, que são: “o acesso anterior da população ao bem em questão, a
população da região e a decisão da população” (idem, p. 578). Cada um deles confere
pontuação que vai de um a cinco pontos. O primeiro critério mencionado avalia em que
extensão o benefício em questão se distribui entre as diversas sub-regiões. Avritzer cita
como exemplo o asfaltamento de ruas. Neste caso, quando esta benfeitoria é eleita
como prioritária pela população, os investimentos da prefeitura devem recair em
proporção inversa à extensão das vias ainda não asfaltadas nos diversos bairros de
Porto Alegre. O segundo critério objetiva beneficiar as regiões mais densamente
povoadas, já que os investimentos realizados nesses locais tendem a beneficiar um
número maior de cidadãos. Por fim, a pontuação final é complementada atribuindo-se
as maiores notas para os temas que a população elegeu como prioritários: caso a
atenção à saúde tenha sido considerada o principal objetivo a que a população deseja
ver atendido, receberá nota cinco, se for o segundo, nota quatro, e assim
sucessivamente.
Faz parte desta etapa do Orçamento Participativo, a realização de
assembleias sub-regionais, que se destinam a determinar, uma vez definidas as áreas
prioritárias de intervenção, quais obras devem ser realizadas. Assim, caso a educação
figure entre os temas com considerados mais importante naquele momento, restará
definir, por exemplo, se é necessário construir uma nova escola ou reformar as já
existentes, ou ainda, dotá-las de novas instalações de apoio pedagógico, como
quadras e bibliotecas.
As definições formuladas ao longo desta etapa intermediária são ainda
objeto de discussões finais na segunda rodada de assembleias regionais, que podem
referendá-las de maneira irrestrita ou introduzir pequenas alterações antes do
encaminhamento da proposta final ao Gabinete de Planejamento da Prefeitura de Porto
94
Alegre – GAPLAN – órgão responsável pela coordenação e elaboração do orçamento
municipal. Os trabalhos desta assembleia encerram-se enfim após a indicação dos
delegados que integrarão o Conselho de Orçamento Participativo, de cuja composição
participam quarenta e quatro membros: “dois conselheiros por cada regional (32), dois
conselheiros eleitos por cada assembleia temática (10), um representante da União das
Associações de Moradores de Porto Alegre (Uampa) e um do Sindicato dos Servidores
da Prefeitura” (ibidem, p. 579). O conselho tem a incumbência de avaliar a proposta
orçamentária do Executivo, que deve prestigiar todas as prioridades estabelecidas
pelas assembleias do Orçamento Participativo – ou apresentar as justificativas que
expliquem as causas das obras negligenciadas – e acompanhar a execução do plano
de governo, discutindo alternativas quando fatores contingenciais obliterarem parte das
realizações programadas. Este estágio acresce à dimensão deliberativa do OP o papel
de instrumento de controle dos órgãos incumbidos da execução orçamentária no
município. Ou seja, o mecanismo institucional em questão não se restringe a forjar
condições para que a população manifesta suas preferências a respeito da aplicação
dos recursos públicos, já que estabelece também mecanismos de accoutability
administrativa, os quais compelem a burocracia a cumprir suas atribuições de maneira
eficiente e eficaz, de acordo com o plano de intervenções construído através da
participação popular. A importância desta segunda função não pode ser minimizada,
tendo em vista que uma das principais deficiências das democracias elitistas
contemporâneas, sobretudo nos países mais recentemente admitidos ao conjunto das
nações democráticas, é a virtual ausência de controle popular sobre o exercício das
atividades administrativas, que dá azo ao desenvolvimento de práticas corruptas ou,
simplesmente, a sujeição do interesse público às necessidades corporativas e
autorreferentes das próprias burocracias públicas.
Avritzer chama a atenção para o fato de eu o Orçamento Participativo é uma
invenção institucional fortemente amparada nas práticas desenvolvidas pelas
associações de bairro e por outros movimentos sociais que, durante o processo de
redemocratização política do país, forçaram os limites impostos pelos aparatos
repressivos do Estado autoritário, introduziram amplos espaços de discussão dos
problemas locais e forjaram novas práticas de participação política. O OP representou,
portanto, um produto institucional engendrado segundo as novas dinâmicas da
95
sociedade civil que, naquele momento, lutava contra o alheamento estatal em relação
aos problemas dos segmentos sociais mais espoliados da população urbana,
infundindo densidade democrática no concerto das relações políticas brasileiras, até
então coagulado pelas tradições clientelísticas e autoritárias que tornavam a cidadania
apenas uma miragem.
O sucesso do orçamento participativo e a extensão da participação em suas
assembleias dependem de alguns fatores que devem ocorrer concomitantemente. O
primeiro deles diz respeito à eficácia de seus mecanismos de determinação da peça
orçamentária municipal. Os potenciais participantes desses fóruns, ou seja, todo e
qualquer cidadão, somente se motivará a se embrenhar nas discussões do OP caso
haja boas razões para acreditar que as decisões finais não serão ignoradas pelo
Executivo municipal. Em outras palavras, a participação tende a recrudescer na medida
em que o plano de obras aprovado em exercícios anteriores se converta em ações
concretas do Poder Público, em conformidade com as expectativas geradas durante o
processo deliberativo. O contrário certamente produzirá a percepção da inutilidade das
discussões e, consequentemente, o desinteresse da população em acorrer às
assembleias. A farta literatura sobre o Orçamento Participativo indica como uma das
principais causas do sucesso de Porto Alegre – responsável pelo aumento ininterrupto
do número de pessoas engajadas (pelo menos até o final da década de noventa,
período de predomínio do Partido dos Trabalhadores na cidade) nas reuniões – foi
justamente a conversão das demandas da população em programas de obras e
intervenções implantadas pelo Executivo. Já no caso de Belo Horizonte – outra
experiência de OP bastante estudada – a oscilação do número de participantes pode
ser explicado em função das incertezas relacionadas aos processos eleitorais e da
posterior substituição do grupo político que introduziu este arranjo participativo no
município, lançando muitas dúvidas e inseguranças acerca de sua capacidade
decisória.
Outro fator amplamente destacado diz respeito à tradição mobilizatória já
existente nos bairros e distritos envolvidos nas assembleias. As localidades que
contaram com elevado número de participantes caracterizavam-se pela existência de
diversas associações de bairro, comunidades religiosas de caráter político, movimentos
96
sociais, etc., os quais contribuíram para a disseminação de uma cultura política crítica e
participativa. Dessa forma, a aderência ao Orçamento Participativo se inseriu no bojo
das agitações políticas que corriqueiramente já se desenvolviam naquelas regiões.
Leonardo Avritzer realça as virtualidades dos arranjos institucionais urdidos
tanto em Porto Alegre como em Belo Horizonte, já que em ambos os casos foram
estabelecido critérios que dificultavam aos interesses particularistas – calcados na
capacidade mobilizatória e organizacional de grupos economicamente privilegiados e,
por este motivo, menos dependentes dos benefícios distribuídos pelas políticas
públicas – prevalecerem sobre disposições orientadas à redução das desigualdades
interregionais. O estabelecimento de critérios de hierarquização das áreas prioritárias
de atuação e, dentro destas, das obras que melhor correspondem aos anseios da
população, representa um importante mecanismo de promoção de justiça distributiva
na definição dos orçamentos municipais, voltados à mitigação das desigualdades
sociais que se manifestam no espaço urbano. A importância deste arranjo não se
restringe ao âmbito das realidades pragmáticas, projetando-se ainda sobre as
discussões em torno das teorias da democracia, na medida em que desfere um
consistente ataque a um dos pilares fundamentais sobre os quais se sustenta a
concepção de democracia que predominou durante todo o século vinte – e que,
embora já intensamente questionada no plano teórico, permanece hegemônica nas
representações sociais e na conformação das instituições dos regimes democráticos
contemporâneos. Trata-se da já comentada prevalência dos comportamentos
individualistas e atomizados dos atores sociais, que segundo Schumpeter e seus
seguidores – Giovanni Sartori, John Elster, Anthony Downs, entre outros – inviabilizam
a construção de consensos a respeito do “bem comum”, ainda que transitórias e
permanentemente sujeita a revisões. O autor enfatiza que:
“Ao conectar tal processo com critérios de justiça, o OP inova como teoria democrática de dois modos
coordenados: em primeiro lugar, estabelece limites ao particularismo, limites que não estão presentes
quer na versão representativa quer na versão participativa da teoria democrática. Em segundo lugar, os
interesses que são considerados legítimos no OP são justificados e, precisam ao mesmo tempo,
coincidir com os critérios de justiça explicados acima. Assim, a conexão estabelecida pelo OP entre
regras e participação democrática renova a discussão sobre o papel das formas de participação na teoria
democrática. Ela mostra que a solução weberiana para o aumento do nível de participação, que é o
97
aumento do controle dos indivíduos pela burocracia, não constitui a única solução possível para o
problema” (ibidem, p. 589)
8.2. - Conselhos Gestores de Políticas Públicas
Os conselhos gestores de políticas públicas estabelecem um novo padrão
de relacionamento entre sociedade civil e Estado, trazendo a primeira para o âmbito
dos processos decisórios intrínsecos ao segundo. Como observa Gohn, “com os
conselhos, gera-se uma nova institucionalidade pública. Eles criam uma nova esfera
social-pública ou pública não-estatal. Trata-se de um novo padrão de relações entre
Estado e sociedade, porque eles viabilizam a participação de segmentos sociais e
possibilitam à população o acesso aos espaços nos quais se tomam as decisões
políticas” (GOHN, pg. 85). Estes fóruns participativos refletem a emergência de atores
cuja atuação política estivera alijada dos arranjos institucionais até então existentes.
Tratam-se, portanto, de espaços de “explicitação de interesses em conflito, de
confronto de projetos sociais e de lutas pela hegemonia” (Correia, 2006, p. 58).
Além disso, a inclusão nos processos decisórios dos segmentos sociais para
os quais se destinam as ações e os programas implementados pela Administração
reverbera os argumentos que apontam para a virtuosidade desses mecanismos para o
aprimoramento da qualidade dos serviços públicos prestados. Vera Schattan Coelho
argumenta que:
“Esses „novos espaços‟ têm como fundamento a ideia de que boa parte da atual
incapacidade das políticas públicas em promover mudanças substantivas no status quo
resulta da não-inclusão (sic) dos destinatários dessas políticas nos processos
decisórios. Ou seja, cresce a aposta de que as políticas se tornaram mais reposnsivas
às necessidades da população à medida que esta for incluída nos processos
decisórios. Afinal, quem melhor do que a própria população para conhecer os
problemas que a afetam ou saber a qualidade dos serviços que está recebendo?”
(Coelho, 2007, p. 77/78)
Os conselhos, em geral, vinculam-se a alguma área específica das políticas
públicas do Estado, como educação, saúde, assistência social, meio ambiente, etc.
Sua composição reúne além de representantes do próprio governo – muitas vezes os
98
titulares das pastas relacionados ao setor em questão (secretários, nos casos de
municípios e Estados, e ministros, na esfera Federal) –, representantes de prestadores
de serviços e de profissionais da área e, ainda, representantes de usuários dos
serviços públicos. As vagas destinadas a estes dois últimos grupos são normalmente
ocupadas por membros de associações profissionais (como sindicatos e entidades de
classe) e de movimentos sociais (que podem ou não assumir o modelo das
organizações sociais), respectivamente. A princípio, nenhum segmento exerce papel
preponderante nos fóruns, já que sua composição é paritária: cada setor representado
responde por um terço das vagas disponíveis, o que reforça a natureza democrática
desta forma de participação sociopolítica.
Os conselhos não se limitam a apresentar propostas de ações e programas,
ou seja, não se restringem a participar da construção de soluções para os problemas
sociais definidos como de intervenção prioritária. Eles revestem, ainda, a condição de
instrumentos de controle social, na medida em que é facultado a seus membros o
acompanhamento concomitante das operações financeiras e da execução do programa
de governo dos respectivos Executivos (municipais, estaduais e federal). Neste sentido,
encerram um nível adicional de controle sobre os atos praticados pela Administração
Pública, além do realizado pelos setores de controle interno dos próprios órgãos
estatais e do controle legislativo empreendido com auxílio dos Tribunais de Contas.
Conquanto não sejam uma criação recente na vida institucional brasileira, já
que figuravam nas estruturas do Estado desde a década de 30 do século passado, o
estabelecimento de conselhos conheceu grande impulso após a redemocratização da
vida política brasileira, consagrada com a promulgação da Constituição Federal de
1988. Estudo realizado por Draibe (1998) verificou que dos 27 conselhos federais
analisados pela autora, somente quatro deles foram instituídos antes da década de
oitenta, ao passo que a criação da maioria ocorreu ao longo da década de noventa,
período em que foram aprovadas diversas leis destinadas a regulamentar alguns dos
mais importantes dispositivos constitucionais (p. 05). A tabela abaixo relaciona os
conselhos identificados pela autora:
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Conselhos de Gestão de Políticas Públicas na Esfera Federal
Área Conselho Sigla
Assistência Social
Conselho do Programa Comunidade Solidária* CS
Conselho Nacional de Assistência Social CNAS
Fórum Nacional de Secretários Estaduais de Assistência Social
Fonseas
Fórum Nacional de Secretários Municipais de Assistência Social
Fongemas
Ciência e Tecnologia
Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia CNTC
Conselhos de Direitos
Conselho de Coordenadoria Nacional para Integração das Pessoas Portadores de Deficiência
Corde
Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
CDDPH
Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos
CFGDDD
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
Conanda
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CNDM
Cultura Conselho Nacional de Política Cultural CNPC
Educação
Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras
CRUB
Conselho Nacional de Educação CNE
Conselho Nacional dos Secretários de Educação Consed
União Nacional dos Dirigentes de Educação Undime
Meio Ambiente Conselho Nacional do Meio Ambiente Conama
Previdência Social
Conselho de Gestão de Previdência Complementar CGPC
Conselho de Recursos de Previdência Complementar
CRPC
Conselho Nacional de Seguridade Social CNSS
Conselo Nacional da Previdência Social CNPS
Saúde
Conselho Nacional de Saúde CNS
Conselho Nacional dos Secretários de Saúde Conasem
Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde
Conass
Trabalho
Conselgo Nacional de Imigração CIMG
Conselho Curador do FGTS CCFGTS
Conselho Deliberativo do FGTS Codefat
Conselho Nacional do Trabalho CNT
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* O programa Comunidade Solidária, instituído pelo Decreto nº 1.366/95, foi substituído pelo Programa Bolsa Família (Lei Federal nº 10.836/04), ao qual se associa o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA). Fonte: Draibe, 1998.
Nem todos os conselhos indicados acima apresentam as características
anteriormente mencionadas; parte deles não reúne representantes dos destinatários
finais das políticas públicas. Além disso, alguns possuem caráter deliberadamente
opinativo, restringindo suas finalidades à emissão de pareceres e informações quando
provocados pelas autoridades públicas competentes.
Sem embargo das contribuições que estes colegiados podem oferecer à
Administração e à Gestão Públicas, interessam-nos, neste trabalho, os conselhos
paritários, que abarcam um escopo mais amplos de objetivos, envolvendo desde a
elaboração de diagnósticos acerca dos problemas relacionados à sua esfera de
atuação – passando pela identificação de casos pontuais que requerem a intervenção
emergencial do Poder Público – até a proposição de diretrizes para a formulação e
implantação de políticas públicas, podendo influir de maneira significativa na gestão
dos projetos elaborados pelas secretarias de governo, em todas as suas fases de
execução, ou seja, desde o planejamento das ações até o oferecimento do serviço à
população-alvo.
Por outro lado, o caráter vinculante ou não das decisões proferidas pelos
conselhos encerra uma questão ainda bastante controversa, entregue a filigranas
jurídicas. A eficácia das disposições emanadas por estes fóruns participativos não se
encontra pacificada até o momento. No caso, por exemplo, dos conselhos de saúde, o
artigo 1º, parágrafo 2º da Lei Federal nº 8.142/90, que regulou a participação da
comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde, dispõe que:
Art. 1° O Sistema Único de Saúde (SUS), de que trata a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, contará,
em cada esfera de governo, sem prejuízo das funções do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias
colegiadas:
(...)
§ 2° O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por
representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na
formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente,
101
inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do
poder legalmente constituído em cada esfera do governo. (grifo nosso)
Ora, se é deliberativo, suas decisões não podem ser ignoradas pelos
respectivos Executivos. Estes devem sujeitar-se à vontade emanada dos debates e
discussões desenvolvidas pelos colegiados – mesmo porque, em tese, aos
representantes governamentais é garantida a oportunidade de participar
democraticamente de todas as suas resoluções. Entretanto, há diversos exemplos de
deliberações que não foram acolhidas pelas Secretarias ou Ministérios
correspondentes, sem que razões tecnicamente fundamentadas tenham sido
apresentadas para justificar a adoção de alternativas contrárias às indicadas pelos
conselhos. Um caso emblemático desta tensão entre os Executivos e os fóruns
participativos é o da rejeição pelo Conselho Nacional de Saúde (acompanhado, nesta
questão, por seu homólogo no âmbito do Estado de São Paulo) da publicização dos
hospitais públicos, isto é, a transferência da responsabilidade pela execução de
serviços ambulatoriais e hospitalares às organizações sociais, através da celebração
de contratos de gestão. As razões da desaprovação deste modelo na área da saúde
envolvem uma série de questões extremamente relevantes, tais como a tendência à
privatização dos serviços de saúde, o fato de os cuidados dessa natureza incluírem-se
no rol das incumbências exclusivas do Estado, entre outros fatores. A despeito disso,
tanto a União quanto grande parte dos Estados da Federação – especialmente o
Estado de São Paulo (Sano & Abrucio, 1998) – têm recorrido fartamente à publicização
não apenas para a prestação de serviços de saúde, como também de educação,
cultura e lazer.
O boicote aos conselhos pelos Executivos produz, inevitavelmente, o
desestímulo ao ingresso de representantes de prestadores de serviços, profissionais e
usuários, que tendem a afastar-se dos colegiados em função das resistências
ferrenhas interpostas por agentes políticos e burocratas, que procuram reduzir os
conselhos à mera função consultiva e homologatória. Dessa forma, os governos logram
excluir a participação de movimentos sociais e associações que não se alinham
ideologicamente ao grupo político-partidário no poder, transformando os colegiados em
instrumentos dóceis a seus propósitos. Nessas circunstâncias, estes fóruns assomam
como mecanismos ordinários de legitimação de políticas e ações adotadas à margem
102
dos influxos dos diversos grupos sociais diretamente interessados nos respectivos
serviços públicos. Atuando de maneira subserviente, os conselhos podem chancelar a
adoção de políticas cujos objetivos subjacentes visam satisfazer interesses não-
públicos, isto é, programas de ação que respondam, acima de tudo, a interesses
essencialmente privados, como, por exemplo, os de natureza meramente partidária ou
eleitoreira, que buscam a permanência de determinados grupos políticos à frente dos
postos de comando do Estado; ou de poderosos lobbies econômicos, que almejam
benefícios que conflitam com as necessidades de amplos segmentos da população,
etc.
Há evidentemente uma dissimetria de poder entre os participantes dos
conselhos já que os representantes governamentais dominam uma série de
informações cruciais que normalmente não estão disponíveis aos dois outros
segmentos. Além disso, nem sempre os profissionais da área da saúde (ou, mutatis
mutandis, da educação, da assistência social, de defesa dos direitos da criança e dos
adolescentes, etc.) e, sobretudo, os usuários dos serviços do SUS dominam as
minúcias inerentes às atividades administrativa e burocrática. Dessa forma, os anseios
manifestados por esses dois segmentos podem ser obliterados em face de justificativas
– apresentadas pelos governos – cuja validade aqueles não detém capacidade técnica
para apreciá-las em profundidade. Ora, a mitigação deste importante obstáculo ao
adensamento da dimensão participativa dos conselhos pode encontrar acirradas
resistências por parte dos próprios Executivos, que não veem os mecanismos
participativos senão como empecilhos a seus planos de governo previamente
elaborados. Nessas circunstâncias, políticos e burocratas adotam uma série de
estratégias destinadas a esvaziar os conselhos, sonegando-lhes dados fundamentais,
apresentando informações propositalmente truncadas, subtraindo das pautas de
discussão as questões que o governo considera essenciais, entre outras.
Neste contexto, da paridade numérica dos segmentos representados,
garantida por lei, não decorre automaticamente a equivalência da magnitude das forças
que contrapõem nos colegiados. A este respeito Gohn ressalta que:
“Em relação à paridade, ela não e apenas uma questão numérica, mas de condições de uma certa
igualdade no acesso à informação, disponibilidade de tempo, etc. a disparidade de condições para
103
participar de um conselho de membros advindos daqueles advindos da sociedade civil é grande. Os
primeiros trabalham em atividades dos conselhos durante seu período de expediente de trabalho normal
remunerado, têm acesso aos dados e informações, têm infra-estrutura de suporte administrativo, estão
habituados com linguagem tecnocrática, etc. Ou seja, eles têm o que os representantes da sociedade
civil não têm (pela lei, os conselheiros municipais não são remunerados nem contam com estrutura
administrativa própria). Faltam cursos ou capacitação aos conselheiros de forma que a participação seja
qualificada em termo, por exemplo, da elaboração e gestão das políticas públicas” (p. 92)
Em pesquisa realizada junto aos conselhos de saúde da cidade de
Blumenau (06 Conselhos Regionais e 44 Conselhos Locais), que se baseou em
entrevistas não estruturadas realizadas com representante dos usuários dos serviços
entre os meses de julho a agosto de 2006, Inês Pellizzaro e Raquellen Milbratz
elaboraram algumas conclusões acerca do funcionamento dos colegiados naquela
cidade que revelam os principais obstáculos com os quais esta forma de participação
sociopolítica se defronta normalmente. Os resultados encontram-se sintetizados nos
itens abaixo:
1) Muitos conselheiros acreditam que seu papel se restringe à apresentação de
reivindicações pontuais às autoridades de saúde do município, negligenciando,
consequentemente, tanto suas prerrogativas de participação na definição das
prioridades de investimento e da arquitetura dos programas e ações promovidas
pelo Executivo, como de acompanhamento da aplicação dos recursos
destinados ao setor. Destarte, dentre os temas abordados nas reuniões,
prevalecem os relativos à “falta de medicamentos, falta de profissionais e a
qualidade do atendimento nas unidades [básicas de saúde]”, ao passo que “são
pouco enfatizadas as questões estruturais, relacionadas à formulação e
execução da política de saúde” (p. 09);
2) As discussões geralmente não se caracterizam pelo embate entre perspectivas
distintas acerca das questões em pauta, isto é, o processo decisório não se
caracteriza pela manifestação e pelo confronto de razões públicas distintas, que
concorreriam para revelar a multidimensionalidade e os interesses que subjazem
aos assuntos discutidos. A maioria dos conselheiros entrevistados revelou “que
a tomada de reuniões se dá por consenso” (p. 05), segundo uma dinâmica em
que a perspectiva de um dos participantes (ou de um grupo deles) prevalece
104
sem que suas inconsistências e limitações tenham sido discutidas pelos demais.
Prevalece, pois, a passividade da maioria dos representantes dos usuários, que
são facilmente “neutralizados” pelos representantes dos dois outros segmentos
– especialmente o governamental;
3) Diversos conselheiros, sobretudo os representantes dos usuários, não
compreendem plenamente as discussões travadas nos fóruns, sobretudo
quando versam sobre aspectos técnicos e financeiros da prestação dos
serviços. São poucos os conselheiros que dominam minimamente o arcabouço
conceitual e legal do Sistema Único de Saúde, caracterizado por sua intrincada
cadeia de transferência de recursos entre os três níveis governamentais e pela
complexa organização dos sistemas de atendimentos médico-hospitalares.
4) Grande parte das regiões abrangidas pelos conselhos estudados pelas autoras
caracteriza-se pela debilidade da tradição mobilizatória e participativa de sua
população, o que pode ser atestado, entre outros fatores, pelo reduzido número
de associações e movimentos sociais formalmente constituídos ao longo das
últimas décadas. Além disso, as entrevistas revelaram a fragilidade dos vínculos
estabelecidos entre os representantes dos usuários e as comunidades que, em
tese, justificam sua atuação no colegiado. As limitações evidentes da cultura
política local compromete a representatividade das posições defendidas por
estes conselheiros, que tendem a assumir posições que não necessariamente
coincidem com as que seriam referendadas pelos usuários, caso a estes fosse
facultada a possibilidade de manifestar-se diretamente;
5) Diversos entrevistados referiram-se à falta de autonomia e à passividade dos
representantes dos usuários, tolhidos por melindres que se remetem à
autoridade conferida a outros participantes pelos títulos acadêmicos que
ostentam e pelo domínio que possuem acerca do funcionamento dos aparatos
burocráticos. Nesses casos, como salientam as autoras, “a subalternidade de
uns e superioridade de outros, evidenciam que os conselhos constituir-se em
canais que reproduzem a submissão da sociedade civil aos interesses
dominantes, desmobilizando-a na luta para a efetivação dos direitos sociais” (p.
08);
105
6) Como já indicado anteriormente, as decisões proferidas pelos conselhos
exercem pouca – ou nenhuma – influência sobre os rumos dos programas e
ações executados pelos Executivos municipais, que, em geral, permanecem
pouco permeáveis à participação sociopolítica dos setores populares na gestão
de suas políticas públicas. Prevalece, na Administração dos três níveis de
governo no Brasil, o insulamento das instâncias decisórias, quer porque se
objetiva privilegiar os caracteres “estritamente técnicos” dos problemas em
questão, subtraindo-os da lógica das disputas político-partidárias; quer porque
os aparatos do Estado foram capturados por interesses privados e/ou
corporativos, que conflitam com as medidas destinadas a favorecer o interesse
público. Em ambos os casos, o resultado é a cristalização de um sentimento de
baixa eficácia política e, consequentemente, o desânimo por parte dos
movimentos sociais potencialmente interessados em participar dos colegiados;
7) Por fim, a pesquisa revelou a prevalência, mesmo entre os representantes dos
segmentos de usuários e de prestadores de serviços/profissionais, de algumas
entidades melhor estruturadas e capazes de mobilizar maior volume de recursos
(materiais, financeiros, simbólicos, etc.) em benefício de seus interesses
corporativos, lançando mão do espaço franqueado pelos conselhos para
patrocinar seus interesses privados por dentro do próprio Estado.
Blumenau não parece constituir uma excrescência no cenário político
brasileiro. Ao contrário, as limitações e deficiências apontadas por Pellizzaro e Milbratz
podem ser igualmente observadas na grade maioria das cidades brasileiras, talvez com
algumas poucas – e louváveis – exceções. De qualquer maneira, os resultados da
pesquisa indicados acima compreendem um padrão que reflete as condições
enfrentadas por grande parte dos conselhos de saúde de todo o país. Tais dificuldades
são, inclusive, recorrentemente invocadas por parte da literatura especializada como
provas das limitações imanentes dos conselhos gestores como instrumentos de
adensamento das relações democráticas entre Estado e sociedade civil. Soraya Vargas
e Alfredo Gugliano (2010), embora reconheçam algumas potencialidades inerentes ao
funcionamento dos colegiados, ressaltam seu caráter predominantemente corporativo.
A tendência de que grupos pouco representativos exerçam uma influência
desproporcional na condução dos processos decisórios, devido à sua maior
106
capacidade organizacional – que normalmente reflete seu melhor acesso a bens
políticos, econômicos e culturais essenciais –, associada à capacidade dos governos
de todas as esferas lançarem mão de expedientes ilegítimos para obterem a
cooperação dos conselheiros à realização de seus propósitos, fundamentam as teses
que consideram que “o participante [dos conselhos] é um defensor de interesses
particulares na condição de habitante de determinada região ou de usuário ou
beneficiário de políticas públicas” (p. 53). O chamado neocorporativismo não reconhece
aos conselhos a condição de espaços efetivos de deliberação pública, capazes de
facilitar a emergência dos “interesses gerais”, a partir de discussões transparentes e
imunes às coerções do poder. O inevitável desequilíbrio entre seus participantes, e o
controle de suas atividades pelos Executivos (do qual depende até mesmo o espaço
físico em que suas reuniões ocorrem), impedem que os conselhos exerçam um papel
congruente com os objetivos que inspiraram sua criação, quer seja: a promoção da
igualdade política entre todos os cidadãos, garantindo direito à voz a grupos
historicamente excluídos dos mecanismos decisórios do Estado.
Por outro lado, “um número crescente de estudos (...) sugere o oposto: sob
certas circunstâncias, esses foros podem não só incluir os segmentos sociais menos
privilegiados, mas também desempenhar papel significativo na definição das políticas
públicas” (Coelho, 2007, p. 79). As circunstâncias a que se refere a autora são,
basicamente, três:
1) As condições institucionais assumidas pelos colegiados para viabilizar a
participação dos diversos grupos sociais potencialmente interessados na área a
que se vincula o conselho. Em outras palavras, esta dimensão se refere às
normas que regulam o acesso de cidadãos e entidades da sociedade civil aos
postos destinados aos representantes dos usuários, bem como as possibilidades
de acompanhamento das discussões por indivíduos que não integram os
colegiados. Assim, estes tendem a ser mais democráticos quanto menores
forem os óbices interpostos à livre apresentação de candidaturas às vagas
existentes. Esta dimensão abrange ainda as definições acerca do período de
exercício do cargo de conselheiro, as possibilidades de reeleição, as regras para
a definição das questões controversas, os meios de divulgação das eleições,
107
entre outros. Coelho também considera fundamental a existência de “contatos
sistemáticos entre conselho, sociedade civil, sistema de saúde e o sistema
político, por acreditarmos que, com a intensificação dos contatos, os conselhos
tornam-se mais conhecidos, aumentando a probabilidade de eleições mais
competitivas” (p. 87);
2) A densidade mobilizatória da sociedade civil, ou seja, a quantidade de instituições
sem finalidades lucrativas que se dedicam à promoção de interesses de
natureza coletiva – e, sobretudo, o número de indivíduos engajados nessas
instituições. Como já abordado em outros capítulos do presente trabalho, este é
um dos principais desafios para o desenvolvimento da democracia no Brasil, já
que sua cultura política permanece fortemente marcada pelo autoritarismo e
pelas relações patrimonialistas que caracterizaram a formação histórica dos
espaços públicos no país;
3) E, por fim, a disposição dos gestores públicos em prestigiar os conselhos de
políticas públicas. O compromisso desses agentes com tais mecanismos de
participação se expressa através da disponibilização das informações
indispensáveis à apreciação das questões analisadas, de maneira tempestiva e
em linguagem que permita a compreensão de todos os envolvidos – inclusive
daqueles que não têm familiaridade com as rotinas técnicas e burocráticas da
Administração; o preenchimento dos postos reservados ao Estado por agentes
efetivamente empoderados, isto é, autorizados a assumir compromissos em
nome do Governo; e, sobretudo, a disposição em assimilar todas as decisões
proferidas pelos colegiados, apresentando, sempre que estas revelarem-se
tecnicamente inviáveis, as justificativas que impediram sua efetiva implantação.
Estas atitudes são fundamentais para que os participantes desenvolvam senso
de eficácia política e, consequentemente, sintam-se encorajados a acorrerem
aos fóruns de participação sociopolítica existentes.
Em suas pesquisas a respeito da atuação dos conselhos de saúde da cidade
de São Paulo, Vera Coelho procurou verificar justamente em que medida as variáveis
indicadas acima concorreram para a ampliação da participação social na Administração
pública. A autora centrou suas análises nos Conselhos Locais de Saúde instituídos
108
durante a gestão da prefeita Marta Suplicy, 2000-2004. Foram criados 31 colegiados:
um para cada região administrativa em que se subdivide a cidade. Os levantamentos
apontaram que nas localidades onde apenas um ou dois dos fatores considerados
obtiveram pontuação superior à da média de toda a cidade – segundo critérios
definidos pela autora – a quantidade de participantes dos conselhos permaneceu
extremamente reduzida, o que revela a insuficiência de qualquer um deles para,
isoladamente, determinar a densidade participativa e o caráter inclusivo dos
colegiados. Entretanto, esta afirmação não pode ser estendida às regiões onde as três
ordens de fatores estudadas obtiveram índices positivos. Coelho conclui que:
“Os resultados apresentados (...) confirmam as conclusões dos autores mais otimistas: as var iáveis
identificadas desempenham papel importante na explicação do perfil dos conselhos estabelecidos na
cidade. Entretanto, nossos resultados vão além, na medida em que demonstram a importância da
presença simultânea, na subprefeitura, de gestores comprometidos com o projeto de participação social,
de associativismo popular e cidadãos dispostos a participar nas políticas de saúde e de um certo
reconhecimento sobre como organizar instituições participativas” (p. 92)
109
Considerações Finais: o Tribunal de Contas e os Conselhos Gestores de Políticas Públicas
Uma vez assumida a importância dos espaços voltados à participação social
nos processos decisórios das instituições públicas, e tendo em vista a pertinência de os
mecanismos de controle da Administração atuarem de maneira coordenada (Torres,
2004), as considerações finais deste trabalho procurarão explorar, brevemente, as
possibilidades de interação entre os Tribunais de Contas e os conselhos gestores de
políticas públicas.
Conforme indicado no capítulo anterior, um dos principais obstáculos
enfrentados pelos representantes dos prestadores de serviço e, sobretudo, dos
usuários dos serviços públicos é justamente o desconhecimento acerca das
particularidades inerentes aos procedimentos operacionais empregados pela
Administração, bem como sobre o arcabouço legal que regulamenta a atuação dos
órgãos e dos agentes públicos em cada uma das áreas de intervenção estatal. Tais
conselheiros frequentemente desconhecem – ou conhecem precariamente – as
injunções decorrentes, por exemplo, da lei de licitações, das técnicas de controle
contábil das operações financeiras, dos procedimentos de elaboração das peças
orçamentárias, etc. Além disso, muitas vezes, sequer dominam os fundamentos da
legislação pertinente à sua área de atuação, já que muitas delas são, de fato,
extremamente complexas, como ocorre, por exemplo, com o Sistema Único de Saúde,
que além dos aspectos técnicos vinculados especificamente à área médica,
caracteriza-se por um intrincado sistema de transferência de recursos entre os três
níveis governamentais (União, Estados e Municípios). Como ressaltado anteriormente,
esta situação estabelece uma dissimetria fundamental entre os representantes
governamentais e os demais participantes dos colegiados, que, no limite, pode obliterar
a efetiva participação destes últimos nas decisões proferidas pelo conselho e
inviabilizar o exercício do controle social sobre os atos da Administração. O despreparo
dos conselheiros põe em risco os principais objetivos que inspiraram a criação dos
colegiados: o rompimento do insulamento burocrático e o combate às práticas
clientelistas que ainda hoje grassam no tecido social brasileiro, impedindo que os
110
conselhos se convertam em instrumentos efetivos de renovação da cultura política
predominante.
Parece-nos que, nesse sentido, os Tribunais de Contas, tendo em vista, por
um lado, a alta especialização de seu quadro de servidores, versados nas minúcias
legais que disciplinam a atuação do Estado, e, por outro, sua vocação eminentemente
pedagógica, já amplamente desenvolvida junto aos órgãos jurisdicionados, podem
desenvolver, outrossim, atividades de orientação destinadas especificamente aos
participantes dos colegiados de representação paritária, permitindo-lhes compreender
com maior profundidade as especificidades da atuação estatal. Nesse sentido, as
Cortes de Contas figurariam como um fator de equilíbrio entre os diversos agentes
engajados nas discussões e deliberações dos conselhos, reduzindo as assimetrias de
poder que normalmente se estabelecem entre seus membros, além de capacitá-los a
exercer de maneira qualificada o controle social. Ademais, contribuiriam ainda para o
adensamento do senso de eficácia política dos participantes, revertendo a tendência à
desmotivação que se abate sobre os que se veem alijados dos processos decisórios.
A outra oportunidade de integração entre estas instituições remete-se às
fiscalizações de natureza operacional que os Tribunais de Contas passaram a
desenvolver, sobretudo, a partir da última década, com amparo do disposto, no caso do
Estado de São Paulo, no art. 33, inciso V de sua Carta Constitucional16, que estabelece
a possibilidade da realização de avaliações sobre o desempenho operacional dos
órgãos e entidades públicas. Estes trabalhos objetivam não apenas analisar a sujeição
dos atos da Administração às prescrições legais pertinentes, mas também apurar o
cumprimento das metas previamente estabelecidas para os programas e as ações
executadas pelo Estado, analisando, ademais, os aspectos organizacionais da
máquina pública que, porventura, obstruam a consecução dos objetivos que
justificaram a criação dos programas em questão. Este tipo de fiscalização pode, ainda,
16
Artigo 33 - O controle externo, a cargo da Assembléia Legislativa, será exercido com auxílio do Tribunal de Contas do Estado, ao qual compete:
(...) V - realizar, por iniciativa própria, da Assembléia Legislativa, de comissão técnica ou de inquérito,
inspeções e auditoria de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, do Ministério Público e demais entidades referidas no inciso II;
111
concentrar-se no exame de outros aspectos fundamentais da atuação estatal, como por
exemplo, a transparência, a publicidade, a economicidade, a eficiência, entre outros.
Trabalhos dessa natureza, dada a profundidade das questões e a
multiplicidade de ferramentas analíticas que normalmente mobiliza, exigem um tempo
maior de preparação, se comparado ao tempo despendido nas fiscalizações de
legalidade. Dependendo, naturalmente, do tamanho da equipe envolvida e da
complexidade do programa analisado, uma fiscalização operacional pode demorar de
três a oito meses e, consequentemente, não é possível que todas as políticas previstas
no orçamento sejam examinadas todos os anos. Destarte, é necessário que a cada
exercício seja estabelecido um novo plano de fiscalização, que selecione apenas um
grupo relativamente pequeno de programas e ações. Normalmente, esta operação é
amparada pela aplicação de uma série de critérios objetivos, como, por exemplo, o
montante de recursos destinados, o número de beneficiários atendidos, a abrangência
territorial, etc.
Parece-nos que, neste ponto, estabelece-se mais uma oportunidade de
aproximação entre os Tribunais de Contas e os conselhos. A montagem do plano anual
de fiscalização operacional pode incorporar, paralelamente à aplicação dos critérios
mencionados, algumas solicitações encaminhadas pelos participantes dos colegiados,
de modo a municiá-los das informações que consideram relevantes para suas
deliberações.
Parte da literatura especializada em avaliações de programas
governamentais ressalta que um de seus principais objetivos é, justamente, oferecer
subsídios para que os gestores públicos tomem decisões gerenciais fundamentadas,
contribuindo para o incremento da eficiência e da qualidade dos serviços oferecidos à
população. Worthen, Sanders e Fitzpatrick (2004) enfatizam que o propósito
fundamental deste tipo trabalho é:
“ajudar as pessoas que tomam decisões. Seu fundamento lógico é de que informação avaliatória é parte
essencial de decisões inteligentes e o avaliador pode ser eficiente trabalhando para administradores,
legisladores, diretorias e outros profissionais que precisam de boas informações avaliatórias. (...). Ao
enfatizar níveis diferentes de decisões e de pessoas que tomam decisões, essa abordagem lança luz
sobre quem vai usar os resultados da avaliação, como deve usá-los e sobre que aspecto(s) do sistema a
112
pessoa está tomando decisões. Pessoas que tomam decisões são o público ao qual a avaliação
concentrada na administração se dirige, e as preocupações, as necessidades de informações e os
critérios de eficiência dessa pessoa que toma decisões orientam o estudo (p. 151)”
Se as avaliações operacionais não podem negligenciar as necessidades dos
gestores, sob pena de não contribuírem de nenhuma maneira para o aperfeiçoamento
da gestão pública, parece-nos fundamental que correspondam, da mesma forma, às
demandas por informações apresentadas pela sociedade civil (através de seus
representantes que integram os conselhos), pois é a esta que, em última análise, se
destinam os esforços envidados pelos órgãos de controle externo. Ao fazê-lo, parece-
nos, os Tribunais de Contas não apenas ofereceriam uma importante contribuição para
o adensamento do caráter deliberativo dos colegiados, como também abririam seus
processos internos de trabalho aos influxos da participação social.
Além disso, os conselhos podem contribuir para a realização das
fiscalizações operacionais de duas outras maneiras:
1) Na fase de planejamento dos trabalhos, os agentes dos Tribunais empreendem
uma série de diligências – tais como visitas de estudo a equipamentos públicos,
entrevistas com usuários e gestores, pesquisas bibliográficas, etc. – destinadas
a apurar os principais problemas enfrentados na execução do programa em
questão. Esta tarefa pode ser facilitada através das contribuições dos
representantes dos prestadores de serviços e dos usuários que, por estarem
familiarizados com as dificuldades enfrentadas no setor, podem ajudar a
identificar os caminhos mais promissores para o sucesso da fiscalização;
2) A tarefa de avaliação envolve, necessariamente, a definição de critérios e
padrões que permitam julgar a qualidade dos serviços prestados pelos órgãos
públicos. A partir de que nível um determinado benefício pode ser considerado
satisfatório? A resposta para esta pergunta pode envolver diversas dificuldades,
pois sua definição normalmente exige a aplicação de conhecimentos
especializados em áreas bastante específicas, para as quais não há, no quadro
funcional dos Tribunais, profissionais com a formação acadêmica apropriada.
Dessa forma, a definição de um padrão de qualidade na área da educação pode
exigir o domínio de conhecimentos pedagógicos avançados. Contudo, se os
113
agentes de fiscalização não dispõem desses conhecimentos, é bastante
provável que pelo menos parte dos membros dos conselhos de educação os
detenha. Este tipo de interação pode facilitar os trabalhos de avaliação e, ao
mesmo tempo, dotá-los de maior densidade analítica.
Parece-nos, portanto, que existem algumas oportunidades relevantes de
aprofundamento das relações institucionais entre as Cortes de Contas e os fóruns
participativos, permitindo ganhos relevantes para ambos os lados.
114
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