UNIVERDIDADE FEDERAL DE GOIS
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INTRODUO
O Abrigo Pedra Talhada um stio arqueolgico com pinturas rupestres localizado em
Niquelndia GO. A formao rochosa no constitui nem gruta nem caverna, mas apenas um
paredo, ao p do qual grupos humanos do passado encontraram um lugar apropriado para
acampamentos temporrios. A arte rupestre que foi pintada no paredo compe-se de
grafismos geomtricos, pequenas figuras animais, especialmente lagartos, dispersas pelo
paredo. As figuras humanas so raras e esto compostas por segmentos de linhas. Os
grafismos esto pintados nas cores vermelha, preta, branca ou ocre, principalmente em
monocromia e raramente em bicromia. As dataes do stio mostraram ocupaes de at 2.860
anos atrs.
Existem centenas de abrigos similares registrados em todo o Brasil. O estudo da arte
rupestre iniciado nos anos de 1970, mostra concentraes de abrigos em determinados
territrios regionais. Para no ir muito longe do objeto da nossa pesquisa, citamos as pinturas
rupestres do municpio de Serranpolis GO, que representam grandes figuras animais
associadas a desenhos geomtricos. Em larga escala territorial, os estudos da arte rupestre tm
identificado uma grande diversidade cultural. As diferentes caractersticas temticas e tcnicas
revelam que distintas sociedades pr-coloniais expressaram seu conhecimento cultural atravs
da arte rupestre. Paredes, lajes, grutas foram utilizados para gravar ou pintar desenhos de
figuras humanas, animais, objetos do cotidiano e sinais, registrados em boa parte dos limites
territoriais do Brasil.
A importncia da arte rupestre de Niquelndia concentra-se na sua representatividade
arqueolgica, na regio. Esse um dos raros abrigos com arte rupestre encontrado no nordeste
do estado de Gois. O stio arqueolgico Abrigo Pedra Talhada foi identificado em 1996
atravs do Projeto de Salvamento Arqueolgico da UHE Serra da Mesa PA-SALV-SM, em
conseqncia da construo da Usina Hidreltrica de Serra da Mesa. Toda a rea, que viria a
ser inundada pela formao do reservatrio de gua, foi vistoriada, e os stios arqueolgicos
encontrados foram documentados e estudados, o que possibilitou uma amostragem do passado
pr-colonial dessa regio.
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A histria foi recuperada, mas o patrimnio se perdeu. O Abrigo Pedra Talhada, bem
como todos os stios arqueolgicos encontrados na rea, foi inundado, entre 1997 e 1998, com
o enchimento do reservatrio. Os empreendedores da Usina Hidreltrica encontravam-se em
pleno direito legal, j que os bens culturais e naturais foram, ao menos parcialmente,
resguardados pelas pesquisas arqueolgicas e ambientais.
Esta dissertao est fundada nos dados e documentao produzidos durante o decurso
do PA-SALV-SM, e inclui a experincia vivenciada por mim durante o processo de
salvamento do Abrigo Pedra Talhada, complementada por pesquisas bibliogrficas e anlises
desenvolvidas no decorrer do Mestrado em Cultura Visual.
Um dos objetivos deste trabalho foi a realizao do vdeo documental/educacional
Memria da Pedra Talhada, que corresponde sntese dos dados levantados e dos estudos
realizados no Abrigo Pedra Talhada. O vdeo relata, de maneira didtica, o conhecimento
produzido atravs desta experincia, com o intuito de divulgar os resultados das pesquisas
arqueolgicas que colaboram para a compreenso da pr-histria no territrio nacional, bem
como chamar a ateno do pblico em geral para a importncia e necessidade de preservao
do patrimnio histrico e artstico do perodo Pr-Colonial.
Muitos vestgios do homem do passado ainda so desconhecidos. E so muitas as
pessoas que no compreendem o valor histrico e artstico da arte rupestre, ou de uma gama
de outros achados arqueolgicos. E somente atravs das informaes, das aes educativas,
dos registros iconogrficos e outras aes do gnero, que se passa a reconhecer tais valores.
Os achados podem criar ligaes afetiva com o lugar de origem. Qual de ns no teria uma
certa satisfao em pertencer a lugares onde foram encontrados pinturas rupestres ou qualquer
outro objeto que remetesse a sociedades muito antigas. Essa valorizao do espao no
corresponde ao vnculo de propriedade, mas das relaes humanas, de afetividades com a terra
a que se pertence, ou que ocupa, isto , com sua memria.
A perda da arte rupestre tem resultado tanto de agentes intempricos como da
populao visitante, que faz grafites sobre os desenhos, ou arranca pedaos da rocha para levar
como lembrana. Outro tipo de impacto que a arte rupestre tem sofrido resulta de grandes
empreendimentos ou da explorao de recursos naturais. A explorao de calcrio, por
exemplo, destruiu muitos registros rupestres. Dessa maneira, a proposta do vdeo se constituiu
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de grande importncia no sentido de divulgar a memria cultural levantada atravs das
pesquisas, e levar ao conhecimento pblico um local onde havia uma mostra representativa da
arte rupestre brasileira.
A minha histria pessoal com o Abrigo Pedra Talhada comeou com a participao na
pesquisa de campo realizada em julho de 1996, na abrangncia do PA-SALV-SM. Devido
experincia vivenciada em outros projetos participei como pesquisadora em arte rupestre no
referido projeto. Os estudos sobre o Abrigo Pedra Talhada que realizei ento, constituem a
base desta dissertao. A memria que se revela no vdeo no est fechada apenas nas
lembranas da autora, mas no resultado da pesquisa que levanta informaes sobre a
ocorrncia de pinturas rupestres em uma rea onde anteriormente no havia referncia a esse
tipo de manifestao.
Toda a documentao e registros dos estudos do Abrigo Pedra Talhada esto sob a
guarda do Museu Antropolgico da Universidade Federal de Gois UFG. Esse material foi
gentilmente colocado minha disposio para pesquisas adicionais, bem como, para a
realizao do vdeo. Compe-se de fotos, filmagens em Super VHS, slides, reproduo do
painel por meio digital, croquis, mapas, dataes, anlises laboratoriais, relatrios e objetos
arqueolgicos.
Desde a dcada de 1960, quando foram realizados os primeiros registros sistemticos
da arte rupestre nos limites do Brasil, diversas publicaes tm sido produzidas sobre estes
registros (PIAZZA, 1966; MARTIN, 1982; AGUIAR, 1982; GUIDON, 1982; PESSIS, 1984;
PROUS, 1984; SCHMITZ, 1984 e PEREIRA, 1993, para citar apenas alguns). Um
levantamento bibliogrfico destas obras relatrios cientficos, artigos de revistas e livros
fornece o panorama geral das metodologias empregadas no estudo da arte rupestre, bem como
das caractersticas formais da arte rupestre de diversas localidades. Mais recentemente,
algumas publicaes de maior vulto tm buscado apresentar quadros mais gerais da arte
rupestre brasileira ou no mbito regional (PROUS, 1992; PESSIS, 2003; PEREIRA, 2003).
A obra do arquelogo Andr Prous (1992) Arqueologia Brasileira tem um cunho mais
abrangente. Traz um captulo onde traado um balano dos encaminhamentos metodolgicos
que tm sido desenvolvidos para o estudo da arte rupestre. Este trabalho est voltado para as
tipologias morfolgicas ou temticas que permitem a definio das unidades classificatrias.
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Esboa, ainda, estudos comparativos com outras formas grficas indgenas e da cronologia dos
painis.
As caracterizaes tipolgicas foram agrupadas na tentativa de se delimitarem grandes
conjuntos estilsticos. Esse procedimento rene painis de arte rupestre com as mesmas
caractersticas formais e temticas. At o momento j foram caracterizadas oito tradies
estilsticas, a maior parte delas com grande abrangncia territorial. Nos estados de Minas
Gerais e Piau, onde as pesquisas nesse sentido esto mais desenvolvidas, j so identificados
traos da identidade local em reas de fronteira de grupos distintos. Mas ainda existem regies
em que a arte rupestre pouco conhecida e ser necessrio um levantamento maior desses
registros para que se possa ter um quadro mais preciso da diversidade estilstica no territrio
brasileiro (PROUS, 1992).
A pesquisa sobre a arte rupestre desenvolvida no mbito desta dissertao traz
consideraes em dois campos: o da arqueologia e o da histria da arte. A questo que se
pretende alcanar : como podemos compreender a arte rupestre. No domnio da arqueologia a
arte rupestre corresponde a um vestgio do passado remoto que, junto a outros achados permite
reproduzir o modo de vida das sociedades pr-coloniais. Sendo a arqueologia uma cincia que
nasceu do interesse pelo naturalismo, sempre esteve preocupada com a origem do homem. A
arqueologia brasileira tambm se volta para o conhecimento dos povos que ocuparam o
territrio brasileiro no passado e, quem sabe, tentar compreender processos de continuidade e
descontinuidade que culminaram nas naes indgenas encontradas aqui, quando da chegada
dos portugueses, e que tanto influenciaram a nossa cultura.
No campo da histria da arte, o interesse pelos grafismos rupestres est voltado para a
apreciao das formas estticas. No entanto, para apreci-las necessrio compreender como
o homem pr-colonial experimentava as formas estticas. Estas formas estavam incorporadas a
objetos utilitrios, seja de uso cotidiano ou ritual. O que percebvel na arte pr-colonial e
entre os indgenas seus descendentes , a arte est incorporada aos objetos sem que haja
distino entre o que utilitrio e o que esttico. Desta forma, no se pode abord-la por
meio dos objetos, mas pela classificao das formas estticas (MENESES, 1983).
Os estudos no Abrigo Pedra Talhada fundaram-se na caracterizao formal da arte
rupestre, estabelecida nos modelos j testados por Prous (1992). Por meio deste procedimento,
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a arte rupestre de Niquelndia foi definida a partir das peculiaridades a seguir: predomnio de
grafismos geomtricos sobre os figurativos animais e humanos; representao de animais em
posio esttica e individual; representao de humanos por meio de traos elementares
(cabea, tronco e membros); uso da monocromia e, em menor freqncia, da bicromia; entre
outros. O estudo comparativo com estilos regionais indicou semelhanas tanto com a arte
rupestre de Minas Gerais Tradio So Francisco e Planalto quanto com ocorrncias
localizadas no estado de Gois grafismos da regio de Serranpolis.
Esta abordagem tambm est permeada pela metodologia de Anne-Marie Pessis (2003)
que compreende os grafismos dentro de um sistema de comunicao social. Os procedimentos
da comunicao esto sujeitos a um conjunto de regras que regem as interaes sociais. O
estudo formal das figuras identifica padres que caracterizam a comunicao grfica de um
grupo. Esses padres de apresentao grfica correspondem a perfis tcnicos e identificam
culturalmente seus autores.
Para a execuo do vdeo Memria da Pedra Talhada utilizei imagens de arquivo
cedidas pelo Museu Anropolgico/UFG. As imagens selecionadas apresentam a arte rupestre
local e as pesquisas de campo. O vdeo foi dividido em trs partes para contar quais os
resultados das pesquisas arqueolgicas, o que se sabe sobre as pinturas rupestres, e por fim,
relacion-las com a histria da arte. Recursos tais como animaes e entrevistas foram
utilizados para tornar mais didtica a apresentao dos temas abordados. Filmagens atuais
foram necessrias para a realizao do vdeo.
Memria da Pedra Talhada destina-se ao pblico em geral e pretende atender
especialmente aos professores como recurso adicional em sala de aula. O campo de interesse
levantado pelo vdeo corresponde ao perodo pr-colonial, abrangendo ainda, consideraes
sobre o patrimnio histrico e artstico.
A diviso dos captulos dessa dissertao agrupa a pesquisa da arte rupestre e a
estrutura do vdeo. O primeiro captulo Os primrdios da arte rupestre contextualiza o estudo da arte rupestre no Brasil, apresentando uma reviso bibliogrfica dos trabalhos
destinados a esta manifestao pr-colonial e discutindo a posio do Abrigo Pedra Talhada
dentro do cenrio Nacional. Avalia as contribuies dadas para a compreenso deste objeto
pela arqueologia e pela histria da arte.
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O segundo captulo O stio arqueolgico Abrigo Pedra Talhada, Niquelndia GO
apresenta a contextualizao do stio arqueolgico no cenrio pr-colonial e relata as anlises
realizadas a partir dos grafismos do Abrigo Pedra Talhada. Esse captulo procura contribuir
para uma ampliao das pesquisas que j haviam sido realizadas em decorrncia do
salvamento arqueolgico. A nova proposta, que compreende a arte rupestre integrada ao
sistema de comunicao social, identificou na repetio dos grafismos o estabelecimento de
padres da linguagem visual.
O terceiro captulo Registro visual da memria da arte rupestre em Niquelndia- GO
se volta para a produo do vdeo documental Memria da Pedra Talhada. Idealizado como
um recurso para fins educacionais, o vdeo sintetiza o conhecimento gerado pela pesquisa
arqueolgica e apresenta a memria de um legado perdido em decorrncia da inundao da
rea para a formao do lago que hoje alimenta a Usina Hidreltrica de Serra da Mesa. A
estrutura do vdeo composta por estratgias ou mecanismos utilizados na transmisso das
idias veiculadas. A funo de cada uma delas comentada: a narrao fora-de-campo, as
animaes, os interttulos, as entrevistas, as ilustraes, fotos e filmagens atuais. Traamos,
ainda, consideraes de como entendemos a memria dentro do vdeo, o que corresponde
tanto memria individual, circunscrita pela formao e pesquisa da autora, quanto memria
coletiva que reconhece no abrigo um bem cultural e testemunho do passado.
O resultado das pesquisas arqueolgicas aqui apresentado tem um significado relevante
para a compreenso das sociedades produtoras da arte rupestre localizadas na regio de
Niquelndia - GO. Devemos considerar que ainda cedo para dizer que as pinturas
encontradas no abrigo correspondem a uma ocorrncia isolada, visto que as prospeces
arqueolgicas no norte de Gois limitaram-se s adjacncias do Vale do Rio Tocantins
atingidas pelo reservatrio da usina hidreltrica. As pesquisas arqueolgicas ainda no
esgotaram o potencial de informaes nessa regio. No entanto, j apresentam bons resultados
no que tange presena bastante recuada, 910 a.C., dos grupos de agricultores ceramistas que
ocuparam, por curtos perodos, o Abrigo Pedra Talhada. Apesar deste trabalho apresentar uma
sntese da ocupao nesse abrigo, os vestgios arqueolgicos encontrados no solo objetos
cermicos e lticos ainda no foram comparados com os dos stios aldeias levantados no
mbito do mesmo projeto PA-SALV-SM.
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O trabalho aqui apresentado deseja contribuir para a devoluo social do conhecimento
cientfico, transformando documentos e dados em cenrios da vida do homem pr-colonial.
Alm disso, oferecemos um recurso para professores, museus e outras instituies
educacionais atravs do vdeo documental que, esperamos, poder suprir, ao menos em parte,
a carncia de materiais didticos sobre o perodo pr-colonial.
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CAPTULO I
OS PRIMRDIOS DA
ARTE RUPESTRE
Detalhe das pinturas do Abrigo Pedra Talhada, Niquelndia, GO. Fonte: Acervo do MA/UFG.
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1.1. ASPECTOS GERAIS DA ARTE RUPESTRE
A arte rupestre uma das primeiras manifestaes estticas da humanidade das quais
temos conhecimento. Outros testemunhos que tambm se conservaram at o presente so
ossos entalhados, pequenas esculturas de rocha e objetos cermicos. Alm destes, possvel
identificar, atravs dos desenhos rupestres, outras formas estticas produzidas na pr-histria,
tais como pinturas corporais, adornos para cabea, braceletes e cintas que devem ter sido feitas
em penas ou plumas.
Por arte rupestre designam-se as pinturas e gravuras inscritas em paredes rochosos ou
grandes blocos aflorados, podendo ou no constituir ambiente para o abrigo humano (SOUZA,
1997). Este termo foi cunhado para referir-se especificamente ao comportamento do homem
primitivo de representar grafismos em paredes rochosos.
A mais conhecida das interpretaes dadas aos grafismos rupestres veio tona no final
do sculo XIX em decorrncia das descobertas da arte Paleoltica da Europa Frana, Sua e
Espanha. Nesta poca, sustentava-se que o homem do Paleoltico, Idade da Pedra Lascada,
praticava uma arte mgica. Assim, as representaes de animais nas cavernas de Altamira e
Lascaux evocavam o poder mgico da imagem. O homem primitivo pintava o animal que
queria caar porque este era seu objeto de desejo. Neste sentido, a imagem estava constituda
dos desejos do homem de alcanar determinado resultado.
Esta interpretao dada por Henri Breuil (1952 apud LEROI-GOURHAN, 1964, p. 81)
para os grafismos da Europa, parece no corresponder ao significado dos grafismos situados
no territrio brasileiro, onde as representaes de animais so menos realistas. Em um cdigo
simblico a figura de um animal pode significar muito mais do que o prprio animal, podendo
comunicar as suas qualidades, fora, agilidade, fecundidade. Para que a comunicao se
estabelea, necessrio que toda a populao ou aqueles a quem ela se destina reconheam o
significado dos cdigos.
O arquelogo francs Andr Leroi-Gourhan (op cit) foi o primeiro a fazer um
levantamento integral dos grafismos rupestres do perodo Paleoltico nas grutas da Espanha e
Frana. A partir deste levantamento, o autor empregou a metodologia da topografia estatstica,
que forneceu o isolamento de conjuntos significantes e associaes de conjuntos a reas
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especficas dos paredes rochosos. Foi possvel constatar a dominncia de temas animais,
especialmente os cavalos e bisontes em detrimento dos temas humanos; e a distribuio destes
temas a locais especficos, como em paredes planas ou estreitas.
Leroi-Gouhan fez interpretaes que so tidas como controversas e exageradas1, mas
demonstrou, atravs do seu minucioso estudo, que as figuras rupestres seguem um complexo
arranjo, no sendo de modo algum expresses lanadas ao acaso de pocas diferentes.
Tambm confirmou as relaes simblicas dos grafismos, tornando simplista a interpretao
da arte mgica-religiosa anteriormente fomentada por outros pesquisadores (op cit., p. 20-21).
A complexidade da linguagem visual da arte rupestre pode ser percebida nos chamados
grafismos geomtricos. Estes so formados por linhas, pontos e figuras tais como crculos,
losangos, quadrados e outros. Do ponto de vista moderno, os grafismos geomtricos no se
referem a objetos ou conceitos reconhecveis. Porm, para o grupo que os pintou, estes eram
facilmente reconhecveis.
E certamente, esta linguagem visual dos caadores-coletores, ou homens da pedra
lascada, fazia aluso aos eventos importantes daquele povo ou s suas histrias sagradas. por
isso que o arquelogo muito prudente em dar significados aos grafismos rupestres, porque
um desenho pode ter significados diferentes em cada cultura.
Nesse momento, uma tendncia prevalece nos estudos de arte rupestre e, independente
da orientao terica, as pesquisas vm sendo marcadas por grande rigor tcnico no
que se refere descrio de formas, de painis, anlise de pigmento etc. Esse
movimento soa como uma reao srie de interpretaes fantasiosas ou pouco
fundamentadas que marcou o estudo desse campo (GASPAR, 2003, p. 35).
1.1.1. ARTE RUPESTRE NO TERRITRIO BRASILEIRO
No Brasil a arte rupestre j foi identificada em grande parte do territrio nacional.
Algumas reas, tais como, a Serra da Capivara, no estado do Piau, ou o Planalto Central, no
interior do estado de Minas Gerais, registram uma maior concentrao de abrigos com pinturas
1 Conforme comentrio de Victor Gonalves na Introduo: O mito, o rito e o resto da edio portuguesa do livro de Leroi-Gourhan (1964).
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rupestres. Isso se deve ao maior nmero de estudos nestas regies. Sabe-se que em algumas
regies o levantamento destes sinais ainda pontual.
Para uma localizao espacial da arte rupestre utilizaremos o levantamento de Prous
(1992), atualizado por Gaspar (2003), que agrupa a arte rupestre em oito tradies, a saber:
Meridional, Litornea Catarinense, Geomtrica, Planalto, Nordeste, Agreste, So Francisco e
Amaznica.
A tradio Meridional corresponde a
gravuras de temtica geomtrica, e
encontrada no Sul do Brasil e na Argentina.
No Rio Grande do Sul apresentam-se
alinhados nas escarpas do Planalto (figuras 1a
e 1b). A temtica pode ser dividida em dois
grupos. Um que se caracteriza pela ocorrncia
de crculos maiores rodeados por crculos
menores, sugerindo pegadas de feldeos. E a
outra apresenta traos retos paralelos ou
cruzados e as vezes curvos. So grafismos
denominados tridctilos, que combinam trs
traos partindo de um vrtice.
Figura 1a: Gravuras da tradio Meridional. Canhembor, Nova Palma (RS). Fonte: Prous, 1992.
Figura 1b: Gravuras da tradio Meridional. Stio Josefa (RS). Fonte: Prous, 1992.
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A tradio Litornea Catarinense tem painis gravados em ilhas litorneas do estado
de Santa Catarina. Os locais sinalizados so de difcil acesso e at mesmo perigosos, esto a
cerca de 15Km da costa. Os painis rupestres orientam-se para o alto-mar. Os desenhos so
traos geomtricos linhas sinuosas, crculos concntricos, tringulos, pontos e formas
humanas (figura 2).
Figura 2: Gravuras da tradio Litornea Catarinense. Ilha dos
Corais. Fonte: Prous, 1992.
A Geomtrica corresponde a outra tradio de gravuras; agrupa manifestaes
esparsas localizadas no Planalto, abrangendo os Estados de Santa Catarina, Paran, So Paulo,
Gois e Mato Grosso. Caracteriza-se por gravuras geomtricas, sendo quase completamente
inexistente as representaes figurativas. Em virtude da sua grande abrangncia espacial Prous
(op. cit, p. 515) a subdivide em manifestaes setentrionais e meridionais. As gravuras
Geomtricas setentrionais (figura 3a) encontram-se prximas a rios ou cachoeiras, muitas
delas em blocos que ficam submersos durante as enchentes. So predominantes as depresses
esfricas, destacando-se tambm os tridctilos. Os curvilneos se destacam na Pedra Lavrada
do Ing (PB).
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Figura 3a: Gravuras da tradio Geomtrica. Pedra Lavrada, Ing (PB).
Fonte: Prous, 1992.
Os Geomtricos meridionais (figura 3b) esto em locais fora do alcance das
enchentes. A tcnica da gravura por vezes completada pela pintura. So comuns os
tringulos com incises ou pontos e as pegadas de aves, veados, felinos ou humanos.
Figura 3b: Gravuras da tradio Geomtrica meridional. Morro do Avencal (SC).
Fonte: Prous, 1992.
Grafismos pintados esto agrupados na tradio Planalto. Encontram-se
espalhados pelo Planalto Central Brasileiro desde sua fronteira entre Paran e So Paulo
at a Bahia.O pigmento mais utilizado foi o vermelho, mais raramente aparecem o preto, o
amarelo e o branco. A temtica representa animais, que ocorrem em maior freqncia que
os desenhos geomtricos, enquanto que as figuras humanas so raras (figura. 4).
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Figura 4: Representaes de animais da tradio Planalto. Pinturas. Fonte: Prous, 1992.
A arte rupestre do Abrigo Pedra Talhada aproxima-se da tradio Planalto no que
tange ocorrncia da monocromia, que aparece mais freqentemente nas cores vermelha e
preta. Quanto presena das figuras animais, estas no so predominantes em relao aos
geomtricos, podendo representar uma variante da tradio Planalto.
A tradio Nordeste estende-se pelos estados de Pernambuco, Rio Grande do
Norte, Bahia, Cear, Minas Gerais. So pinturas monocrmicas vermelhas e alguns
stios com gravuras. Representam uma abundncia de figuras humanas agrupadas e
formando animadas cenas reconhecveis de caa, dana, guerra, cpula, rituais, etc. As
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figuras seguram armas (bastes, propulsores), cestas, etc. Entre os animais, predominam as
emas, os cervdeos e pequenos quadrpedes (figura 5).
Figura 5a: Grafismos da tradio Nordeste. Cenas da rvore. So Raimundo Nonato (PI). Fonte: Pessis, 2003.
Figura 5b: Grafismos da tradio
Nordeste. Cena de parto. So Raimundo Nonato (PI).
Fonte: Pessis, 2003.
A tradio Agreste encontra-se nos estados do Cear, Rio Grande do Norte,
Paraba, Pernambuco e Piau. Representa antropomorfos isolados ou em raras cenas de
poucos personagens. Existem vrios tipos de sinais acompanhados por animais ou figuras
humanas que costumam ser de tamanho grande. Os animais geralmente esto em postura
esttica, havendo emas, quelnios e pssaros de asas abertas e longas pernas, alguns com
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tendncia ao antropomorfismo2. H grandes figuras geomtricas bem elaboradas e carimbos
(figura 6).
Figura 6: Pinturas da tradio Agreste. Parque Nacional da Serra da Capivara (PI). Fonte: Gaspar, 2003.
A tradio So Francisco encontrada no Vale do So Francisco em Minas
Gerais, Bahia e Sergipe, bem como nos estados de Gois e Mato Grosso. Os grafismos
geomtricos so maioria em relao s figuras animais e humanas. A utilizao da bicromia
intensa nas figuras pintadas. Os raros zoomorfos so quase que exclusivamente peixes,
pssaros, cobras, lagartos e talvez tartarugas. H representaes isoladas de ps humanos,
armas (lana, propulsores), e instrumentos (cestos, tipiti, panela, maracas). As cores so o
vermelho, o amarelo, o preto e o branco (figura 7).
O painel rupestre do Abrigo Pedra Talhada, objeto de nosso estudo, apresenta certas
semelhanas com a tradio So Francisco, especialmente no que tange ao predomnio de
grafismos geomtricos em detrimento de figuras animais e humanas. Os zoomorfos tambm
2 O desenho figurativo chamado de antropomorfo quando representa a figura humana, no todo ou em partes e zoomorfo quando representa animais (SOUZA, 1997). O antropomorfismo, por sua vez, indica a figura animal com caracterizao humana, como, por exemplo, a posio ereta com os membros superiores abertos. A frontalidade da figura animal, que quase sempre representada de perfil, neste caso, seria uma tendncia ao antropoformismo. Este termo busca descrever figuras de mbito regional (como em PROUS,1992).
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correspondem queles da tradio So Francisco; so representados por lagartos, tartarugas
e emas. No entanto, a bicromia rara, sendo identificada mais claramente em grafismos
que esto em posio cronolgica mais recente nos painis.
Figura 7: Grafismos policrmicos da tradio So Francisco. Lapa do Boquete, Januria (MG). Fonte: Gaspar, 2003.
A tradio Amaznica agrupa pinturas e gravuras. Distingue-se pela presena das
figuras humanas simtricas e geometrizadas, tronco retangular preenchido por linhas
cruzadas. Os diferentes painis mostram cabeas humanas gravadas, geralmente radiadas;
bastes e linhas curvas gravadas; pinturas de retas e retngulos preenchidos com traos;
alm das figuras humanas esquemticas3 de mos dadas. So, tambm, recorrentes os
desenhos de mos, algumas vezes preenchidos com crculos concntricos (figuras 8).
3 Os desenhos esquemticos correspondem queles que representam apenas elementos essenciais para o reconhecimento do objeto real. As figuras humanas esquemticas esto representadas por tronco, membros estendidos e cabea apenas delineada, sem detalhamento de ps, mos ou articulaes que poderiam sugerir movimento.
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Figura 8: Gravuras de figuras humanas da tradio Amaznica (PA). Fonte: Pereira, 2003.
Em termos gerais, poderamos dizer que a arte rupestre no territrio brasileiro se
caracteriza pela maior quantidade da temtica geomtrica em oposio s figurativas. Esta
ocorrncia s no predominante na regio Nordeste, onde foram definidas duas tradies,
ambas com predominncia de figurativos, humanos e animais.
Estudos cronolgicos da arte rupestre europia levaram Leroi-Gourhan (1964, p. 86)
a afirmar que a arte Paleoltica comeava no abstrato e, ao longo do tempo, tendia a um
realismo cada vez mais acentuado. Esta afirmao constituiu-se de modelo para a
cronologia dos grafismos.
No Brasil, as estimativas cronolgicas parecem remeter maior antiguidade arte
rupestre da regio Nordeste que, por sua vez, representada por grafismos figurativos. Esta
questo merece a ateno de pesquisas futuras que possam determinar a cronologia dos
grafismos e levar compreenso das evolues estilsticas na arte rupestre brasileira.
Constata-se ainda que os painis gravados demonstram maior repetio dos grafismos do
que os paredes pintados.
No Abrigo Pedra Talhada, como veremos no Captulo II, h pouca repetio grfica.
Talvez isto se d em funo da tcnica, j que a pintura permite maior maleabilidade da
forma do que a gravura. Algumas anlises sobre mudanas estilsticas tm sido testadas por
Prous (apud GASPAR, 2003, p. 63) no Vale do Peruau, municpio de Januria MG. Os
desenhos do estilo So Francisco foram sucedidos por grafismos de caractersticas locais ou
influncias exteriores.
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O Abrigo Pedra Talhada uma ocorrncia isolada que ainda no foi agrupada ao
estudo das tradies. Notam-se semelhanas dos grafismos com a tradio So Francisco,
porm sem a mesma intensidade no uso da bicromia; enquanto que o uso acentuado da
monocromia poderia aproximar o Abrigo Pedra Talhada tradio Planalto, onde aparecem
as figuras animais em posio esttica, conforme ocorre no Abrigo Pedra Talhada. Estas
aproximaes poderiam corresponder a variedades regionais. A arte rupestre do estado de
Gois carece de pesquisas mais sistemticas para avaliao da correspondncia com as
demais tradies. Tal anlise poderia no s associ-la s unidades j existentes como
tambm estabelecer novos estilos.
A ausncia de registros rupestres em determinadas reas parece estar relacionada
falta de levantamentos arqueolgicos. Estes registros s passaram a ser estudados mais
intensamente h bem pouco tempo, fornecendo um quadro ainda incompleto da distribuio
espacial da arte rupestre no territrio brasileiro.
1.2. ALGUNS NORTEAMENTOS DA PESQUISA EM ARTE RUPESTRE NO BRASIL
Os primeiros levantamentos arqueolgicos sistemticos no Brasil foram realizados
na regio Sul, a partir de 1964. No incio, o estudo da arte rupestre limitava-se, em muitos
casos, ao registro e documentao dos grafismos. O interesse da pesquisa voltava-se
principalmente para as produes lticas e cermicas encontradas nos abrigos, como o
caso do relatrio realizado em 1966 pelo antroplogo Walter Piazza (1966), que descreve
apenas os testemunhos cermicos e lticos, limitando-se a apresentar as cpias dos painis
rupestres. No levantamento realizado entre os municpios de So Joaquim e Urubici, no
estado de Santa Catarina, foram encontradas trs grutas com petroglifos. A documentao
do paredo foi feita por meio de cpias no plstico. Conforme a reproduo dessas cpias,
os painis compunham-se de representaes de faces humanas ou mscaras, campos
fechados preenchidos com linhas cruzadas ou radiadas, tringulos cortados por uma trao
vertical e grafismos lineares.
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A partir da dcada de 1970, com a atuao das Misses Franco-Brasileiras nos
estados do Piau e Minas Gerais, surgem diversos artigos sobre metodologia de anlise dos
grafismos. A divulgao destes estudos tem sido feita atravs de revistas especializadas em
arqueologia, constituindo um dos principais meios de acesso s pesquisas arqueolgicas no
Brasil. Estas publicaes geralmente esto vinculadas a instituies que geram e divulgam
suas pesquisas e, embora ocorram em uma periodicidade no muito regular promovem o
acesso s informaes arqueolgicas. A ttulo de exemplo, podemos citar a Revista do
Museu Paulista da Universidade de So Paulo, os Arquivos do Museus de Histria Natural
da Universidade Federal de Minas Gerais, a revista Pesquisas, Srie Antropologia do
Instituto Anchietano de Pesquisas do Rio Grande do Sul e a revista Clio da Universidade
Federal de Pernambuco, entre outras.
Apesar de no poder realizar um balano bibliogrfico detalhado destas publicaes,
pela falta do conjunto das colees e por no ser este o objetivo do presente trabalho,
buscamos relatar o contedo dos artigos. Em termos gerais, esses versam em trs linhas: a)
divulgao do achado rupestre; b) metodologia de anlise dos grafismos e c) estudos
interdisciplinares.
A divulgao do levantamento de reas e stios arqueolgicos com grafismos
rupestres pontual, mas fornece a diversidade de estilos presentes no territrio brasileiro.
As informaes sobre os registros rupestres deixadas por cronistas, viajantes e naturalistas
dos sculos XVII, XVIII e XIX foram utilizadas como fonte de dados para uma primeira
viso da arte rupestre no estado do Par. Atravs da sinalizao dessas informaes foram
levantadas trs reas de concentrao com grafismos rupestres: a) a regio dos rios
Araguaia/Tocantins; b) a regio do rio Xingu; e c) o Noroeste do Par. A documentao em
anlise foi feita atravs de desenhos ou fotografias. Os petroglifos mostram figuras
humanas representadas em posio frontal, com os braos e pernas fletidos para cima e para
baixo, enquanto que os zoomorfos so representados de perfil com alguma indicao de
movimento. As pinturas mostram as figuras humanas em posio esttica, algumas vezes,
s o rosto. A cabea apresenta olho, boca e nariz, enquanto que o corpo encontra-se
preenchido ou delineado com desenhos geomtricos. Esto tambm presentes figuras de
animais e grafismos geomtricos. Os pigmentos usados so o vermelho e o amarelo
(PEREIRA, 1993, p. 21-44).
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Pesquisas posteriores concentradas no Noroeste do Par registram 15 stios com
pinturas e um com gravuras a partir dos relatos documentais. Nessa ocasio, os stios so
classificados, em estudo preliminar, em trs estilos distintos (PEREIRA, 1994, p. 321-335).
No estado do Rio Grande do Norte, no municpio de Carnaba dos Dantas, foi
encontrado um conjunto de abrigos com pinturas. A primeira pista para a identificao dos
abrigos veio de um manuscrito de 300 pginas realizado entre 1924 e 1926, de autoria de
Jos de Azevedo Dantas, natural de Carnaba. O manuscrito apresenta uma coleo de
pinturas e gravuras rupestres da regio de Serid (RN). Uma expedio ao local encontrou
sete abrigos com pinturas e dez com gravuras. Os grafismos, que foram chamados de estilo
Serid caracterizam-se pela riqueza temtica, variedade das cores, trao firme, tamanho das
figuras de 5cm a 15cm, e pelo grande realismo das cenas. A boca aberta das figuras
humanas o elemento que distingue este estilo da tradio Nordeste (MARTIN, 1981/82, p.
379-382). Posteriormente, foi registrado mais um conjunto de trs abrigos com pinturas
denominado Casa Santa, na mesma regio. Um sentido mgico ou religioso foi atribudo
s cenas que se repetem nos diferentes abrigos (MARTIN, 1982, p. 55-63).
Algumas vezes o cadastramento dos stios arqueolgicos com arte rupestre constitui
de instrumento para a preservao deste patrimnio. A ameaa preservao do Lajeado de
Soledade no Rio Grande do Norte tambm chamou a ateno de gelogos da
PETROBRS. Essa iniciativa promoveu a proteo da rea, que foi cercada. Com o apoio
da PETROBRS, foram realizadas pesquisas no local, que contavam com a participao de
arquelogos, paleontlogos e espelelogos. Os resultados das pesquisas apontam para a
ocupao da rea por um grupo coletor/agricultor que teria habitado o entorno do Lajeado e
utilizado o suporte rochoso para as inscries (BAGNOLI, 1994, p.239-253).
No Vale do Sabugi, na Paraba, um conjunto de 15 stios com Itacoatiaras
ameaadas pela eroso e ao antrpica foi cadastrado. A presena dos pesquisadores na
rea volta a ateno da populao local para a importncia histrica dos sinais (MORAIS
NETO, 1994, p. 133-155).
A biologia aplicada ao estudo da arte rupestre descobre uma possvel representao
de Toxodonte, um grande animal herbvoro extinto, localizado no municpio de Central
(BA). A existncia deste animal na Amrica do Norte foi detectada desde o Mioceno
inferior ou mdio, at o Pleistoceno Superior. Na Bahia, a presena de ossos de animais
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extintos e da representao do Toxodonte nos grafismos contriburam para a hiptese da
convivncia do homem com os animais da Megafauna. A impreciso do resultado da
datao de material sseo impossibilita uma datao absoluta, mas a extino desta fauna
est estimada entre 14.000AP e 6.000AP no fim do Pleistoceno, o que poderia sugerir a
antiguidade dos grafismos rupestres (BIGARELLA et al, 1984, p. 31-37).
Outros ossos de mamferos que atualmente vivem na regio, embora em processo de
extino, foram encontrados no Abrigo da Lesma, associados a vestgios humanos. A
presena do homem foi registrada atravs de artefatos lticos, fragmentos de cermica e
moluscos, fogueiras, pinturas e ossos humanos. Neste stio, as dataes de carvo variaram
entre 1.137AP e 2.712 AP (LOCKS et al., 1993, p.69-75).
Os pesquisadores da Misso Franco-Brasileira realizaram um levantamento
arqueolgico na regio do Alto Mdio So Francisco abrangendo os municpios de
Montalvnia e Januria, em Minas Gerais, atravs do apoio financeiro do CNPq. As
dataes radiocarbnicas revelaram a ocupao da rea entre 11.000 A.P. at o perodo
histrico por diversos grupos culturais. Os abrigos com pinturas rupestres foram
classificados em estilo Nordeste e So Francisco (PROUS et al., 1984, p. 47-58).
Ainda na bacia do Rio So Francisco, na regio de Una, foram registrados seis
abrigos com pinturas e gravuras. De modo geral, as pinturas se caracterizam pelo pequeno
tamanho das figuras, algumas com apenas 3cm. As representaes de humanos tm o corpo
cheio ou apenas a linha do contorno; esto em posio frontal com braos estendidos para
cima. As figuras animais esto representadas de perfil ou com vista longitudinal, no caso do
lagarto. A noo de movimento representa aes tais como correr, pular, voar ou olhar para
trs. Os animais identificados foram: veados, aves, roedores, tatus, um lagarto, uma
possvel aranha e um provvel escorpio. Os geomtricos so, geralmente, crculos ou
semicrculos concntricos, sois e pontos (os quais o pesquisador chama de sinais
astronmicos). A tcnica correspondeu aplicao da tinta, s vezes mais lquida, s
vezes mais pastosa, com algum instrumento que serviu de pincel. As cores predominantes
foram o vermelho e o ocre; registraram-se ainda o amarelo, o preto e o branco (SEDA,
1981/82, p. 397-408).
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Um dos abrigos da regio de Una, a gruta do Gentio II, apresentou rochas com
vestgio de pinturas profundidade de 135cm. Este nvel foi datado em 8.620 100 AP,
sugerindo a antiguidade relativa das pinturas (op cit., p.399).
Outra importante experincia relatada nas publicaes especializadas correspondeu
busca de referncias para a arte rupestre atravs da etno-histria. A pesquisa em
documentos histricos mencionava a presena de indgenas guerreiros que se refugiaram
nas matas entre Minas Gerais e Bahia. Esses grupos, atualmente denominados Krenak, so
remanescentes na regio do Vale do Rio Doce MG. Ao serem interpelados sobre as
pinturas rupestres, os mais velhos do grupo identificaram os paredes pintados como
locais encantados e reconheceram alguns grafismos como pertencentes ao seu povo. Essa
experincia renovou o conhecimento cultural e a auto-estima do grupo, alm de identificar
na arte rupestre o universo cosmolgico do grupo indgena (BAETA, 1994, p. 303-320).
De modo geral, as metodologias de anlises dos grafismos constituem diversas
tentativas de se compreender a ocupao regional atravs dos grafismos rupestres. Os
estudos cronolgicos dos painis rupestres na regio do vale do Rio Peruau, pequeno rio
afluente do So Francisco, tiveram como objetivo a discriminao das unidades estilsticas
e cronolgicas da regio. Os elementos de cronologia foram baseados nas superposies,
assim como nas ptinas existente nas pinturas. A metodologia consistiu em identificar
conjuntos de grafismos que pudessem apresentar referncias temporais. A comparao de
diversos paredes com pinturas na regio estudada contribuiu para estabelecer a
estratigrafia de grafismos no stio Boquete, que serviu de exemplo. Este estudo revelou que
a tradio So Francisco, caracterizada por grafismos geomtricos bicrmicos, apresenta
fcies assinaladas por temticas diferentes (vegetais ou animais diversificados) que foram
acrescentadas produo local (SOL et al. 19881/82, p. 383-395).
Na Bahia, a metodologia de classificao dos estilos utiliza como parmetro a
metodologia aplicada por Valentin Caldern linguagem cermica. Vem dele o usado
termo tradio, que compreendido como:
...[O] conjunto de caractersticas que se refletem em diferentes stios ou regies,
associados de maneira similar, atribuindo cada uma delas ao complexo cultural de
grupos tnicos diferentes, que as transmitiam e difundiam, gradualmente
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modificadas, atravs do tempo e do espao (CALDERN apud AGUIAR, 1982, p.
92).
Valentin Caldern define as fases que compem uma tradio como seqncias
histricas de um processo evolutivo. Na arte rupestre, a tradio determinada pela
temtica e pelas formas como essa temtica interpretada, tais como movimento ou
estatismo, figuras grandes e pequenas, monocromia ou policromia etc.; enquanto que a fase
corresponde s mudanas tcnicas que ocorrem nos desenhos ao longo do tempo. O termo
fase foi substitudo por estilo, atendendo a uma concepo esttica, no estudo da arte
rupestre. (AGUIAR, 1982, p. 91-104).
Os procedimentos da pesquisa realizada na regio de So Raimundo Nonato (PI)
apresentados pela arqueloga Nide Guidon (1982), foram publicados nos Anais da 1
Reunio Cientfica da Sociedade Brasileira de Arquelogos SAB. Para a autora, o
complexo arqueolgico no simplesmente o conjunto de vestgios produzidos pelos
homens pr-histricos; constitui o levantamento de todos os dados produzidos pela
diversidade de especialistas. Esta anlise interdisciplinar permite que o objeto arqueolgico
seja visto sob diferentes enfoques.
A anlise tipolgica dos painis rupestres busca agrupar o maior nmero possvel de
elementos, encontrando os pontos de semelhanas entre os conjuntos grficos. Procura-se
manter as unidades tal como elas foram concebidas pelos homens da pr-histria. A
classificao dos grafismos em tradies, estilos, variedades feita a partir do diagnstico
dos conjuntos e no pela somatria dos exames das figuras. Atravs das anlises dos dados
pode-se estabelecer divises de estilos, cronologias, e colocar as diferentes variedades
dentro de determinadas unidades culturais (op cit., p. 346-347).
Ainda neste artigo Guidon apresenta um glossrio de termos definidos no mbito
das pesquisas e que colaboram para uma unidade da terminologia empregada no estudo da
arte rupestre. Dentre os quais separamos:
Arte. O termo arte no tem nenhuma conotao esttica. Ns o utilizamos em sua
primeira acepo, no conceito que tinha a palavra latina. Em resumo, a arte o
conhecimento que permite a realizao de uma tarefa, de uma obra qualquer.
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Interpretao. Todo conhecimento sugerido pelos indcios contidos em
representaes materiais. A apelao antropomorfo dada a um grafismo j uma
interpretao.
Tradio. definida pelos traos culturais obtidos pela anlise dos dados do
registro central. A tradio definida pela temtica (op cit., p. 348).
A metodologia de interpretao da arte rupestre apresentada por Pessis (1984)
considerava que a interpretao dos grafismos dada pelo reconhecimento das figuras.
Classifica em trs as possibilidades de identidade do grafismo: reconhecimento imediato,
reconhecimento diferenciado, grafismos puros. Esse procedimento est voltado
especialmente para o reconhecimento de aes transmitidas pelas figuras rupestres,
buscando a natureza da ao em posturas e gestos (PESSIS,1984, p.38-46; 1993, p. 7-14;
GUIDON, 1982, p. 117-128).
1.2.1. ARTE RUPESTRE NOS ESTADOS DE GOIS E TOCANTINS
A arte rupestre registrada no estado de Gois atravs do Programa Arqueolgico de
Gois4 abrange os municpios de Serranpolis, Caiapnia, Formosa, Jaragu e Itapirapu, e
ainda a regio de Monte do Carmo no Tocantins (integrado ao projeto antes da diviso do
estado de Gois). Segundo estes estudos a ocupao do Planalto Central nas divisas do
estado de Gois iniciou-se a 11.000 anos atrs. A estratigrafia dos grandes abrigos com arte
rupestre indicaram a presena dos caadores-coletores nas primeiras ocupaes e de
agricultores ceramistas nas mais recentes. Em Serranpolis a pintura parece ter sido
praticada por todas as sucessivas ocupaes. Na camada datada em 10.500 anos, aparecem
manchas de tintas, assim como nas camadas superiores. As caractersticas tcnicas das
pinturas so o uso da tinta lquida aplicada com um pincel ou dedo e o pigmento seco
riscado na rocha. O tamanho predominante das figuras de 15m a 30cm, mas existem
figuras com alguns poucos centmetros e outras que atingem at um metro. A cor mais
4 O Programa Arqueolgico de Gois foi um convnio entre a Universidade Catlica, o Instituto Anchietano de Pesquisas e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos. O acordo foi firmado em 1972 e pretendia produzir uma amostra da pr-histria do estado de Gois, pois no havia nenhum estudo nesse sentido (SCHMITZ, 1986).
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freqente o vermelho, mais raramente aparecem o amarelo, o preto e o branco
(SCHMITZ, et al.,1984).
A temtica compe-se de figuras animais, humanas e geomtricas. Os animais so
variados: lagarto, tatu, tartaruga, macaco, veado, ema, seriema, arara, papagaio e outras
aves. As figuras humanas so raras e as pisadas humanas aparecem com certa freqncia.
Os grafismos geomtricos podem ser crculos, elipses, tringulos, losangos, retngulos, e
ainda linhas retas, quebradas e curvas. As figuras podem estar vazias ou preenchidas (op
cit. 1984).
Em Serranpolis as gravuras aparecem em abrigos, junto com as pinturas. As
pinturas foram executadas, geralmente, sobre as partes mais lisas e duras da rocha,
enquanto que os petroglifos aparecem nos arenitos mais moles. Existem tambm abrigos
exclusivamente com gravuras. Neste caso, a temtica se caracteriza por geomtricos
lineares formando ngulos, figuras fechadas, crculos preenchidos com raios, grades,
elipses, ps de felinos e de humanos, folhas, entre outros. Os nicos motivos que aparecem
nas duas tcnicas so folhas e ps. A diversidade de motivos gravados no permitiu um
indicador de semelhana estilstica, porque alguns grafismos tm ampla distribuio no
territrio brasileiro (SCHMITZ, 1981/82, p. 415).
Na regio de Caiapnia as tcnicas de pintura so as mesmas empregadas em
Serranpolis a tinta lquida aplicada com pincel, a pintura a dedo e o basto seco. O
pigmento mais comum foi o vermelho, raramente aparecem o preto e a policromia do
vermelho e amarelo e/ou preto. As figuras humanas, em tamanho pequeno, cerca de 10cm,
representam cenas de ao. Entre os animais esto representados os veados, antas, tatus,
tartarugas, onas, aves, macacos e peixes. Algumas vezes os animais compem cenas com
humanos ou so representados em bandos. Os peixes, por exemplo, podem estar aos pares
ou em cardumes. Os geomtricos ocorrem em menor quantidade, correspondendo a crculos
concntricos, losangos geminados, lineares, entre outros (SCHMITZ, et al.,1984).
Em Caiapnia foram localizados trs abrigos com petroglifos em uma rea de
inmeros abrigos pintados. Os desenhos lineares e fechados aparecem juntos a ps e figuras
humanas. As cruzes so os nicos desenhos coincidentes nos petroglifos e pinturas.
Ocorrem pela tcnica de abraso e picoteamento; os sulcos so preenchidos com pintura
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vermelha ou preta, ou cria-se um fundo sobre o qual feita a gravura. O picoteamento
parece mais recente do que a tcnica de abraso (SCHMITZ, 1981/82).
As pinturas na regio de Formosa esto localizadas em pequenas grutas calcrias,
ocupando paredes e tetos. A tcnica corresponde pintura a dedo, ao pincelado e ao
desenho com o pigmento seco. O pigmento usado em monocromia o vermelho, laranja,
vinho, vermelho escuro ou negro, e em bicromia so usados o negro e o vermelho, ou o
laranja e vermelho. Os motivos so predominantemente geomtricos e, mais raramente,
figurativos, representando pegadas humanas, tartarugas, lagartos e aves (SCHMITZ, et al.,
1984).
Na Serra de Jaragu as gravuras esto sobre um bloco, localizado prximo da cidade
do mesmo nome. A temtica compe uma cena com homens, mulheres e crianas,
sugerindo uma representao ritual (SCHMITZ, 1984, et al., p. 61-64).
Trs agrupamentos de petroglifos esto registrados no Municpio de Itapirapu. Os
grafismos geomtricos so predominantes; os crculos concntricos esto presentes em
todos os stios, aparecem ainda crculos vazios, com pontos ou seccionados, alm de
lineares abertos e fechados. Os figurativos so dbios, provveis serpentes e ps com trs
dedos (op cit., p. 69-72).
Em Monte do Carmo (TO) foi localizado um stio abrigado com presena de
material cermico, ltico e sepultamentos (nove a dez ao todo). As gravuras foram
produzidas por meio de raspagem. As figuras correspondem a lineares paralelos, pontos,
curvas e ngulos, alm de figuras fechadas, tringulos, quadrangulares e retangulares. Foi
obtida uma datao de 1975 90 a.C. a 100cm de profundidade, ao passo que, nos nveis
superiores, as datas alcanam 935 60 d.C (SCHMITZ, 1981/82, p. 409-418).
A arte rupestre no estado de Gois mostra-se bastante diversificada aproximando-se
a outras tradies melhor descritas em outros estados. Na avaliao de Schmitz as pinturas
e gravuras de Serranpolis poderiam estar vinculadas tradio Planalto (MG), enquanto
que em Caiapnia, estilos diferentes um semelhante tradio Nordeste (PI) e outro So
Francisco (MG) , teriam ocupado o mesmo espao. As gravuras de um modo geral e as
pinturas de Formosa remetem tradio geomtrica presente em toda formao Planltica.
Divulgaes mais recentes da arqueologia de salvamento descrevem nove stios
arqueolgicos com arte rupestre localizados no mdio vale do Rio Tocantins. As gravuras
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constituem-se de grafismos geomtricos, entre os quais os crculos concntricos ou cortados
por linhas so abundantes. A tcnica de gravao corresponde ao picoteamento da rocha
suporte. As pinturas distribudas em trs abrigos apresentam maior freqncia de figuras
animais e geomtricas do que de figuras humanas. A variedade zoolgica representada no
abrigo Serra do Carmo 1 corresponde a lagarto, veado, peixe, e um grafismo que se
assemelha a anta ou capivara. No abrigo Serra do Carmo 3 os lagartos so de tamanho
grande, entre 40cm a 100cm. Entre os geomtricos, chamam a ateno tringulos unidos
pelo vrtice, crculos preenchidos com traos paralelos, conjuntos de pontos, entre outros.
A maioria dos grafismos foi pintada em vermelho, mas existem tambm figuras
policrmicas (ROBRAHN-GONZLEZ e DE BLASIS, 1997. p. 39-45).
1.2.2. UMA LITERATURA DE APOIO ABRANGENTE E NECESSRIA
Algumas dessas pesquisas culminaram em publicaes mais densas. O livro do
arquelogo Andr Prous (1992) intitulado Arqueologia Brasileira foi a primeira publicao
a sistematizar os resultados das pesquisas arqueolgicas no Brasil, entre elas as que se
referem arte rupestre. No seu levantamento, o autor considera que as anlises dos
grafismos tm se direcionado para caracterizar os elementos estilsticos necessrios para
que se realizem comparaes entre os diversos painis rupestres, conforme j citado. O
estudo dos estilos rupestres deve abranger tambm as mudanas formais dos grafismos que
acontecem em faixas temporais seqenciais, e que se relacionam com mudanas culturais
do contexto local (op cit, p. 511).
Pr-histria da Terra Brasilis, organizado pela lingista Maria Cristina Tenrio
(1999), um livro dedicado ao pblico em geral. Segundo a organizadora esta publicao
colabora para a difuso dos resultados das pesquisas arqueolgicas, to restritos
comunidade cientfica. Equivale-se tambm a um instrumento de informao para que o
conhecimento da existncia desse patrimnio possa contribuir para a preservao dos stios
arqueolgicos. A qualidade desta publicao encontra-se na autoria dos artigos realizados
pelos mais renomados arquelogos brasileiros e pela atualidade dos textos, que levantam
importantes temas, cobrindo, no tempo e no espao, o perodo pr-colonial.
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Desta obra citaremos apenas dois trabalhos que ainda podem acrescentar algumas
informaes a este levantamento bibliogrfico. Referem-se arte rupestre dos estados de
Par, Roraima e Mato Grosso do Sul. A arqueloga norte-americana Anna Roosevelt
(1999, p. 35-50, In: TENRIO, op cit.) apresenta o resultado de pesquisas realizadas na
Caverna da Pedra Pintada localizada no municpios de Monte Alegre (PA). Seus estudos
revelam que os caadores-coletores se adaptaram tambm floresta tropical. As dataes
radiocarbnicas situaram as primeiras ocupaes a 11.200 e 10.000 anos atrs, datas que
correspondem s camadas com concentrao de pigmento utilizado nas pinturas. As figuras
rupestres se constituem de grafismos geomtricos, diversos animais e cenas de caa e parto,
alm de impresses de mos de crianas e adultos.
As investigaes realizadas por Mentz Ribeiro (1999, p. 135-145, In: TENRIO, op
cit.) em Roraima abrangem a Bacia Amaznica, mais precisamente os vales dos rios
Branco, Tacutu, Uraricoera, Surumu e Cotingo. A regio foi ocupada em tempos mais
remotos por caadores-coletores-pescadores, sucedidos por grupos ceramistas. As dataes
obtidas por meio de escavaes remetem a 3.950 180 anos AP nas camadas at 110cm de
profundidade, podendo atingir antiguidade maior em camadas mais profundas. A arte
rupestre concentra pinturas e gravuras. As pinturas foram realizadas com pigmento de
colorao vermelho-alaranjada e carmim-pardacenta. As figuras tm de 15cm a 20cm e
foram efetuadas por pintura a dedo. Predominam os grafismos geomtricos, retngulos
preenchidos por grades ou linhas, elipses geminadas, crculos concntricos, linhas em
zigue-zague, entre outros. Os figurativos so sapos e lagartos.
Os petroglifos foram localizados em trs formaes rochosas distintas: morros e
serras, pequenos blocos de granito prximos aos rios, e em afloramentos de granito na
posio horizontal. A tcnica corresponde ao picoteamento e ao alisamento. Os motivos so
crculos concntricos, crculos unidos pelo vrtice ou por uma linha; entre os figurativos
esto as cabeas com olhos e bocas e antropomorfos esquematizados. Os blocos horizontais
parecem ter sido locais utilizados para polir instrumentos, provavelmente lminas de
machado, deixando depresses circulares e alongadas. As depresses circulares poderiam
ter sido resultado do polimento do corpo do objeto, e as alongadas, do gume (op cit., p.
135-145).
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Finalmente, no Mato Grosso do Sul foram registrados grandes lajedos horizontais
cobertos com imensas gravuras que abrangem 3.300m de extenso. Predominam as figuras
geomtricas, sendo comuns, entre elas, os crculos concntricos. Os grafismos figurativos
representam pisadas humanas e de animais, tais como onas, sapos e aves (SCHMITZ, p.
150-165, In: TENRIO, 1999).
Mais recentemente foram lanadas duas publicaes no mbito da arte rupestre
regional. A primeira, Imagens da Pr-Histria, da arqueloga Anne-Marie Pessis (2003)
da Universidade de Pernambuco, corresponde a um compndio sobre os grafismos
rupestres da Serra da Capivara (PI). Os grafismos desta rea foram classificados em dois
grandes conjuntos: a tradio Nordeste, caracterizada pela representao da figura humana
em cenas de ao em tamanho miniaturizado e a tradio Agreste que apresenta humanos
em postura esttica associados a grafismos geomtricos. Alm disso, Pessis oferece uma
importante anlise sobre a ocupao da Serra da Capivara por grupos que viviam da caa e
da coleta, e que foram precedidos por populaes de horticultores que se estabeleciam em
aldeias.
A segunda publicao, A arte rupestre na Amaznia, da pesquisadora Edhite
Pereira (2003) do Museu Paraense Emlio Goeldi. A autora rene 111 registros
arqueolgicos com pinturas e gravuras rupestres encontrados no estado do Par. Em termos
estilsticos, possvel identificar a originalidade das formas amaznicas em relao s de
outras partes do Brasil. As figuras humanas, predominantes na regio, esto em posio
esttica e medem cerca de 50cm, algumas vezes, apenas a cabea aparece representada. Os
grafismos geomtricos se caracterizam por linhas sinuosas.
Uma observao ampla como a que acabamos de fazer nos permite anotar algumas
questes que podem ser levantadas em torno do desenrolar das pesquisas em arte rupestre.
Uma delas a dificuldade desse vincular os estudos locais ao mbito nacional. As
publicaes apresentam um quadro bastante sinttico da arte rupestre levantada at o
momento, fornecendo comparaes ainda muito superficiais. Alm disso, a dimenso
territorial do Brasil ainda no foi totalmente coberta, sendo que muitos estados no
desenvolvem pesquisas arqueolgicas, ao passo que, em outros, os levantamentos so
apenas amostrais.
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As pesquisas em arqueologia tm se intensificado em decorrncia da arqueologia de
salvamento. reas atingidas por explorao de recursos naturais ou outros
empreendimentos devem ter seu potencial arqueolgico levantado antes de qualquer
interferncia no terreno. Os salvamentos arqueolgicos tm contribudo para que novas
regies sejam prospectadas, evitando a perda total do registro arqueolgico. As aes dos
arquelogos e dos empreendedores so fiscalizadas pelo Instituto do Patrimnio Histrico e
Artstico Nacional IPHAN, e regulamentada pela legislao Federal.
Os trabalhos analticos que se referem s tipologias da arte rupestre ainda so
insuficientes para uma completa compreenso das variedades estilsticas presentes no
territrio brasileiro. As classificaes tcnicas e temticas j definem diversas tradies,
mas algumas delas devem ser retomadas para novas avaliaes em termos de seu alcance
espacial, como por exemplo as tradies de petroglifos, que ora so muito restritas, ora so
muito amplas, sendo necessrio definir melhor o deslocamento de frentes ocupacionais e as
identidades culturais desses grupos.
Estudos de mbito regional tm se sobreposto a essas investigaes, tais como a
anlise sobre as seqncias culturais e sua distribuio espacial, os exames cronolgicos em
paredes que demonstram diferentes manifestaes, alm da tentativa de se estabelecer
comparaes etnogrficas. Estas so as primeiras abordagens para o alargamento das
pesquisas com arte rupestre.
O sentido da arte rupestre ainda obscuro. Alguns pesquisadores a vinculam a
valores mgicos ou religiosos, outros lhes atribuem significados astronmicos,
demonstrando que as anlises interpretativas ainda esto aqum do seu significado. Apesar
de encontrar referncias tais como livre expresso do artista, contedo aleatrio, arte
ingnua, ou expresses valorativas como ausncia de tcnicas sofisticadas, arte
simples, no das mais ricas, acredito que a grande maioria dos pesquisadores d a ela o
justo valor de expresso do conhecimento cultural de uma sociedade em seu tempo.
Os grafismos do Abrigo Pedra Talhada, localizado em Niquelndia GO, esto
integrados ao cenrio da arte rupestre do Planalto Central brasileiro. Suas caractersticas
formais demonstram ser uma continuidade das manifestaes encontradas no Estado de
Minas Gerais, definidas como Tradio Planalto e Tradio So Francisco. A datao mais
recuada do stio arqueolgico, de 2.860 anos A.P., pode sugerir que essa ocorrncia seja
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resultado de uma expanso territorial na direo leste/oeste, considerando que as tradies
mineiras j realizavam pinturas rupestres h cerca de 8.000 anos A.P. Porm, esta hiptese
deve ser melhor estudada, uma vez que stios rupestres situados mais oeste do Planalto
Central tambm fazem referncia aos estilos rupestres mineiros.
1.3. CONTRIBUIES DADAS PELA ARQUEOLOGIA E PELA HISTRIA DA ARTE
A prpria natureza da arte rupestre a coloca entre duas disciplinas: a arqueologia e a
histria da arte. Considerando-se que esta dissertao se desenrola em uma academia de
artes visuais, no poderamos deixar de tecer uma breve avaliao do ponto de vista das
duas disciplinas em relao a um objeto que se coloca entre o testemunho do passado e a
concepo esttica.
Os objetos estticos do passado, de culturas extintas ou distantes sempre
despertaram o interesse de museus e colecionadores. claro que este interesse estava
ligado ao pensamento histrico da poca, s vezes mais ou menos preocupados com a
relao histrico-cultural do objeto. Conseqncia disso so as espoliaes e contrabandos
das relquias das culturas extintas, praticadas desde a antiguidade.
No Brasil, a arte rupestre sempre foi eventualmente mencionada por curiosos e
cientistas de diversos ramos do conhecimento. Dentre as mais antigas referncias arte
rupestre no territrio nacional esto as cpias produzidas por naturalistas do sculo XIX,
em suas viagens pelo Brasil. Para citar apenas alguns deles, Jean Baptiste Debret (1834)
registrou as pinturas localizadas s margens do Rio Japur (figura 9) e Steinen copiou as
gravuras s margens do Rio Paranatinga, em sua expedio pelo Rio Xingu. Mas o interesse
pela preservao e estudo destes achados s veio um sculo depois.
Figura 9: Registro de Debret (1834) de pinturas localizadas s margens do Rio Japur. Fonte: Gaspar, 2003.
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1.3.1. O PONTO DE VISTA DA ARQUEOLOGIA
A arqueologia, desde o seu surgimento, no sculo XIX, preocupa-se com a origem
do homem. Advinda do interesse pelo naturalismo e decorrente do trabalho de Charles
Darwin no sculo XVIII, a Origem das espcies, diversos antroplogos e pr-historiadores
embrenham-se nas descobertas da origem do homem. Segundo o arquelogo Leroi-
Gourhan (1964, p.16), o corpo desta cincia se constri a partir das descobertas. A
paleontologia contribuiu para uma compreenso mais adequada dos achados. Atravs dela,
entende-se que a Terra muito antiga e que o desenvolvimento humano foi muito longo e
marcado por importantes mudanas geolgicas. Outras associaes com os despojos
materiais engrossam as hipteses em relao adaptao ao meio, ao desenvolvimento
tcnico, vida social.
medida que se aumenta o inventrio dos achados arqueolgicos, estes vo se
tornando cada vez mais completos. As diferenas entre as produes materiais
ferramentas, sepultamentos, arte rupestre vo sendo detectadas e se tornando mais
amplas. Um dos principais objetivos da arqueologia identificar esses padres sociais
reconhecveis por meio das semelhanas e diferenas entre suas relquias. No estudo da
cultura material no importa apenas a funo do objeto, mas tambm o seu tipo. So os
detalhes identificadores de um conjunto que distinguem um grupo cultural.
No estudo da arte rupestre necessrio estudar tanto as unidades grficas como o
conjunto das obras. A morfologia padro ou os detalhes tpicos determinam o estilo, que
ser til para realizar comparaes entre conjuntos diferentes. No entanto, a arte rupestre
apenas um dos testemunhos deixados pelo homem nos lugares que ele ocupou. Outros
vestgios encontrados devem ser relacionados a ela objetos lticos, cermicas,
sepultamentos, restos alimentares a fim de que se possa determinar um grupo cultural.
Os grafismos rupestres s comearam a ser sistematicamente estudados por
arquelogos brasileiros a partir dos anos de 1960, quando foram feitos os primeiros
levantamentos nos estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paran e So Paulo.
Na dcada de 1970, instalam-se em Minas Gerais e Piau as Misses Franco-
Brasileiras, que impulsionam as pesquisas arqueolgicas nestes dois estados. Com relao
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arte rupestre, buscou-se classificar os grafismos conforme padres estilsticos, iniciativa
esta que se tornou referncia para o estudo esta manifestao em todo o Brasil.
Desde o seu incio at hoje, houve muitas contribuies em direo compreenso
dessa manifestao. Em primeiro lugar, j foi registrado e documentado um grande nmero
de abrigos rochosos com grafismos rupestres em todo territrio brasileiro. Paralelamente, a
cultura material encontrada nos stios foi estudada. Na tentativa de se interpretar os
grafismos figurativos, foram identificadas, nas representaes de figuras humanas, aes
ritualsticas, de caa e cpula, bem como representaes de gnero e hierrquicas. Dentre as
representaes de animais foram identificadas diversas espcies veados, emas, araras,
lagartos, entre outros. Porm, a maior dificuldade em compreender a arte rupestre est no
fato de os indgenas atuais no se manifestarem por meio deste recurso, referindo-se aos
desenhos como pertencentes a povos antigos anteriores a eles.
Num segundo momento, buscou-se estabelecer conjuntos estilsticos que pudessem
remeter a grupos culturais, como j foi dito. Com esse intuito, os paredes com arte
rupestre foram agrupados em tradies, concentradas em determinadas regies. Foi possvel
perceber que estes conjuntos abrangem uma ampla distribuio espacial, podendo, em suas
reas de fronteira, se sobrepor ou se misturar (GASPAR, 2003, p. 45).
Mas a partir daqui h muitas possibilidades de estudo para compreender a
diversidade cultural existente na pr-histria brasileira. A associao entre arte rupestre e
outros vestgios materiais ainda imprecisa.
Em qualquer destes aspectos est concentrada a produo material do homem, e
nesse contexto que o arquelogo insere a arte rupestre. O termo arte utilizado como
referncia ao arteso e ao artefato, como frisa Prous em seu compndio sobre a arqueologia
brasileira:
Logo, devemos considerar a palavra arte neste contexto como uma simples
aproximao, lembrando alis que arte e artista tm a mesma raiz latina que
arteso; a arte o savoir faire, o conhecimento das regras que permitem realizar
uma obra perfeitamente adequada a sua finalidade. Esquecer este ponto levaria a
no entender os grafismos indgenas quando no so bonitos, julgando-os
primitivos em termos de beleza, quando seus autores, em muitos casos, no
procuravam de modo algum provocar um sentimento esttico, da mesma maneira
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que os tipgrafos no pensam, atravs do alfabeto, realizar obra de arte (PROUS,
1992, p. 510).
Atravs deste posicionamento, o arquelogo procura se eximir da compreenso
esttica para centrar sua ateno no fazer. Neste sentido, a tecnologia narra o
desenvolvimento humano.
Mais recentemente, as pesquisas arqueolgicas tm considerado a finalidade
de comunicao da arte rupestre. Ela tem sido vista como parte integrante de rituais, atravs
dos quais so reforados os mitos. tambm considerada como meio de ligao com
entidades superiores (PESSIS, 2003, p. 66).
1.3.2. O PONTO DE VISTA DA HISTRIA DA ARTE
Intrigantes questes so colocadas para aqueles que interpelam o estudo da
manifestao rupestre num contexto artstico. Quando falamos de arte rupestre estamos ou
no falando sobre arte? A apreciao que geralmente se faz, corresponde ao seu apelo
esttico ou ao seu valor histrico? Como compreender o significado deste tipo de produo
artstica?
Alguns achados do perodo Pr-Colonial so considerados objetos estticos, tais
como sinais rupestres, pequenas esculturas de pedra os muiraquits , ou adornos de
ossos polidos. No entanto, uma outra classe de objetos, os artefatos e utenslios,
apresentam elementos decorativos que tambm demonstram preocupao esttica. Muitos
vasilhames cermicos foram decorados com pinturas, incises, relevos e apliques de
elementos figurativos. Os artefatos de rochas lascadas refletem um grande conhecimento
de lapidao na produo de pontas de projteis. No entanto, estes artefatos so de uso
cotidiano, com funo utilitria.
A dificuldade de apreciar objetos arqueolgicos como objetos de arte vincula-se ao
fato de que nas sociedades Pr-coloniais as formas estticas estavam incorporadas a
utenslios e artefatos utilitrios. Os vasilhames com decorao pintada ou modelada tinham
funo de cozer, assar ou armazenar alimentos.
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Ento, como classificar estes objetos? Conforme depoimento dado pela historiadora
da arte Profa. Dra. Maria Elizia, em entrevista:
No podemos ver a arte rupestre com os mesmos parmetros existentes na arte
tida como erudita. O conceito de arte est vinculado a cada poca histrica da sua
produo. Cada perodo prioriza determinados aspectos formais para definir [o
objeto] como produo de um determinado perodo (Entrevista, 09/03/2005).
A arte rupestre constitui um elo de comunicao, no qual os grafismos so
reconhecveis por aqueles que deles compartilharam. A manifestao rupestre est ligada a
mitos, crenas, aes e gestos que nem sempre so vistos como pertencentes ordem
esttica. Neste contexto, as pinturas e gravuras rupestres correspondem aos resduos de um
acontecimento ritual.
Para o antroplogo Clifford Geertz (1997), a arte um sistema de significao que
utiliza a combinao de signos para exprimir um sentido. Para compor o objeto de arte o
artista aproveita os elementos da sua vivncia, que tambm so compreensveis pelo
expectador. Tanto um quanto o outro tm sua sensibilidade formada no mesmo contexto,
no mbito das relaes culturais. Este o campo fecundo que legitima a arte e faz com que
ela seja compreendida so os recursos do seu tempo e do seu meio.
Os homens da pr-histria produziam suas pinturas nos paredes rochosos
expressando seu sentido cultural. Ao mesmo tempo em que produziam formas, tcnicas,
elementos estilsticos, expressavam contedo simblico e valores afetivos. A arte primitiva
vai misturada vida cotidiana rituais, festividades sem que os seus autores possam
distinguir entre uma atividade e outra.
Neste sentido, as classificaes que fazemos dos objetos e das formas do passado
so puramente convencionais, realizadas a partir do ponto de vista das noes artsticas do
nosso tempo. So tentativas de se entender culturas das quais temos apenas vestgios.
Apesar da arte rupestre constituir um objeto fixo que est exposto ao consumo
visual, o seu significado social no era o de um objeto artstico. Ela tinha a finalidade de
transmitir e reforar o conhecimento cultural do grupo, provavelmente em situaes rituais.
Para Ulpiano Bezerra de Meneses (1983), o ponto frgil para a apreciao da
manifestao artstica do perodo Pr-Colonial se considerar a existncia de uma
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categoria parte de objetos definidos como artsticos. H uma tendncia de se enquadrar
objetos que no tm finalidade utilitria ao mbito artstico, tais como os adornos e
enfeites. Porm, estes objetos tiveram um significado social bastante relevante para as
sociedades pr-coloniais, transpondo a inteno esttica para a identificao de valores
como posio social, descendncia, faixa etria, entre outros.
Em seu livro Argonautas do Pacfico, Malinowiski (1978) relata como colares
ornamentais considerados objetos estticos adquirem novos significados sociais. Dentro de
uma tradio de trocas o colar representava respeito e prestgio para aquele que passava a
possu-lo.
A partir de consideraes como estas, Bezerra de Meneses opta pela anlise da
forma esttica que pode estar presente tanto em adornos e objetos sagrados, como em
artefatos e utenslios. Como forma esttica entende-se aquelas formas que no so
exigidas pelo uso instrumental do objeto, mas constituem uma chave ou um estmulo no
contato sensorial entre o observador e o mundo real (MENESES, 1983, p. 22). Este
critrio ressalta elementos formais no contexto em que atua.
Os objetos arqueolgicos do perodo Pr-Colonial mais comuns no cenrio nacional
so os vasilhames cermicos, os artefatos de rocha lascada ou polida e a arte rupestre. A
escassa ocorrncia de objetos de material sseo, conchas, madeira e fibras vegetais se deve
especialmente ao clima mido, que destruiu muito destes testemunhos, enquanto que a
existncia de outros costumes, como o uso de pinturas corporais e indumentrias, chegou
at ns por meio dos registros rupestres. Todas estas manifestaes envolvem elementos
formais especficos que caracterizam a produo dos povos Pr-Coloniais.
Mas a variedade e riqueza dos objetos estticos da pr-histria podem ser ampliadas
se usarmos como referncia as colees relacionadas ao incio do perodo Colonial no
Brasil. Diversas so as expresses plsticas: arte plumria, tranado, miangas tramadas,
mscara, cermica, escultura, entre outros.
A referncia aos objetos francamente ornados tambm pode ser encontrada nos
relatos dos primeiros exploradores e missionrios em expedies na regio amaznica. Um
relato de 1540, feito por Gaspar de Carvajal, o cronista da viagem de Orellana, descreve os
vasilhames cermicos produzidos pelos ndios Omgua.
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Havia nessa povoao uma casa de diverses, dentro da qual encontramos muita
loua dos mais variados feitios: havia talhas e cntaros enormes, de mais de vinte
e cinco arrobas, e outras vasilhas pequenas como prato, escudelas e candeeiros,
tudo da melhor loua de que j se viu no mundo, porque a ela nem a de Mlaga se
iguala. toda vidrada e esmaltada de todas as cores, to vias que espantam,
apresentando, alm disso, desenhos e figuras to compassadas, que naturalmente
eles trabalham e desenham como o romano (CARVAJAL apud CRULS, 1954, p.
17).
A arte plumria tambm foi mencionada por diversos cronistas dos sculos XVI e
XVII. Esses adornos eram especialmente usados em festas e cerimnias. representativa
desta arte a gravura que ilustra os relatos de Jean Lery de 1578 (figura 10), que mostra uma
dana cerimonial Tupinamb onde os ndios caracterizam-se com pintura corporal e
paramentos plumrios. No meio do crculo de danarinos, trs pajs vestem mantos
tambm desse material. O valor da plumria indgena produzida neste perodo se
expressava tanto na sua variedade de cores como na habilidade tcnica que demonstrava a
sua manufatura, muitas vezes fixada sobre tecido de algodo. O trabalho tcnico de
algumas peas deste perodo, pertencentes ao Museu Nacional, foi descrito na coletnea
As Artes Plsticas no Brasil, publicada em 1952.
que o forro das peas mais custosas, como os gorros com tapa-nuca e os longos
mantos, to caractersticos dos Tupinamb, era feito de um retculo de tecido
sobre o qual se fixavam pacientemente as penas, depois de previamente
amarradas, duas a duas ou trs a trs, num bastonete de pau, - isto no caso do
trabalho realizado com penas pequenas e delicadas, que no podiam ser
diretamente atadas ao tranado (CRULS, 1952, p. 4).
O que foi visto e recolhido no momento da chegada dos Portugueses no territrio
brasileiro deixou um bom testemunho da produo esttica do perodo Pr-Colonial de
sociedades extintas. Como j dissemos, as condies climticas inviabilizam a preservao
destes materiais perecveis, resistindo apenas os artefatos de rocha e cermica. Apenas
alguns registros arqueolgicos detectam a ocorrncia de uma produo esttica
diferenciada.
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Figura 10: Manto de plumria usado em dana cerimonial dos Tupinambs. Gravura que ilustra os relatos de Jean Lery de 1578. Fonte: Mtraux, 1972.
A rodela-de-fuso, de material ltico ou cermico, encontrado entre os vestgios de
aldeias pr-coloniais, revela o uso do algodo para a tecelagem. Tambm so achadas
sementes e conchas perfuradas usadas como adorno. Testemunhos como estes ltimos
foram encontrados entre os escavados no Abrigo Pedra Talhada (figura 11).
Figura 11: Concha perfurada que serviu de adorno. Stio Abrigo Pedra Talhada, Niquelndia (GO). Fonte: Acervo do MA/UFG.
A arte rupestre tem se revelado uma expresso esttica cuja produo estende-se
por um longo perodo, tendo sido registrada desde as primeiras ocupaes, h 11.000 anos
AP, at os anos imediatamente precedentes chegada dos colonizadores.
Os desenhos rupestres eram executados por meio de duas tcnicas pintura e
gravura. As pinturas eram feitas com tinta lquida aplicada com um graveto que servia de
pincel, ou com o dedo. O pigmento seco podia ser aplicado diretamente na rocha, dando um
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resultado semelhante ao giz de cera, ou em forma de p, a ser soprado sobre um molde. Os
corantes eram de origem mineral; o vermelho, a cor mais comum, era extrado do xido de
ferro. Segundo os dados copilados por Gaspar (2003), anlises fsico-qumicas de
pigmentos revelaram que a cor amarela goetita, um xido de ferro hidratado, a cor branca
era obtida de duas espcies de tinta, Kaolinita e gipsita; e o cinza, por sua vez, era uma
mistura natural dos pigmentos vermelho e branco.
A tcnica da gravura consistia em picotear ou friccionar a rocha at provocar uma
inciso, e era realizada com a ajuda de uma rocha mais dura do que o suporte a ser
decorado.
Em toda a arte rupestre os elementos formais podem ser divididos em duas
categorias: os geomtricos e os figurativos. Entre as formas geomtricas esto
representadas linhas retas e curvas, pontos, crculos concntricos, crculos radiados,
losangos, tringulos, quadrados e retngulos com preenchimento de grades. Os figurativos
mais comuns so as figuras humanas e animais, tais como mamferos, aves e rpteis. Os
vegetais e objetos instrumentais produzidos pelo homem foram raramente representados.
Entre os vegetais, foram identificados tubrculos e ps de milho. Os instrumentos so
armas, armadilhas, cestos e adornos associados s figuras humanas.
O historiador da arte busca identificar elementos iconogrficos dotados de inteno
esttica, independentemente da sua associao funo histrica. As colees agrupam
objetos estticos de uma mesma procedncia espao-temporal, abordando categorias
diferentes e materiais diversificados. Sua inteno a de promover a apreciao da
manifestao esttica, recorrendo aos elementos formais ressaltados pelo objeto.
1.3.3. MANEIRAS PARTICULARES DE SE OLHAR A ARTE RUPESTRE
Para compreenso da arte rupestre foram abordados dois pontos de vista, o
arqueolgico e o da histria da arte, que apresentaram informaes complementares a
respeito desta manifestao. A partir desses campos investigativos foi possvel entender a
arte rupestre no seu contexto social e em suas representaes formais.
Para a arqueologia, a arte rupestre est carregada de significao, na medida em que
remete ao testemunho de um ou mais grupos humanos que selecionaram um determinado
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ambiente ecolgico para seu habitat. Tiraram pigmentos de frutos e minerais para pintar a
rocha a fim de manifestar a sua viso cosmolgica natural e sobrenatural; enterraram seus
mortos, acenderam fogueiras e abandonaram suas vasilhas quebradas, deixando ali
vestgios do que faziam e do que comiam.
As formas pintadas no paredo foram produzidas pela mesma populao que
descartou os testemunhos que os arquelogos chamam de vestgios e que so encontrados
no solo dos stios arqueolgicos. Porm, estes elementos visuais so mais que
identificadores de locais de interesse para as populaes Pr-Coloniais: so os nicos
registros do imaginrio destes homens do passado.
No campo artstico, necessrio perceber o que distingue a arte rupestre de outras
artes visuais. O principal ponto que no podemos ler a arte rupestre atravs dos mesmos
critrios usados na leitura da arte produzida em outros perodos, que possuem outras
caractersticas peculiares, outras referncias culturais, enfim, outro estgio de vida social.
Em particular, porque no perodo Pr-Colonial as formas estticas estavam incorporadas
aos artefatos ou utenslios do uso cotidiano, no havendo a categoria de objeto artstico
dissociada da funo utilitria.
A abordagem da arte rupestre deve estar centrada na forma esttica condizente com
o seu tipo de produo. Nesta perspectiva, so realizadas classificaes formais
propores, volumes, simetrias, temas que definem uma srie de padres estticos. Andr
Prous ordenou os paredes rupestres identificando oito estilos com padres temticos
particulares.
O enfoque das classificaes formais ainda muito preliminar, porque em muitas
regies do territrio brasileiro no houve levantamento arqueolgico, ou o levantamento foi
apenas amostral, fornecendo resultados ainda incompletos.
A diversidade cultural no perodo Pr-Colonial um tema que ainda apresenta
muitas lacunas. Consideramos as manifestaes rupestres como sendo testemunho de uma
diversidade de grupos culturais que ocuparam as terras brasileiras. Estes grupos executaram
seus grafismos com padres formais e tcnicos, na maioria das vezes, circunscritos a
territrios delimitados, sugerindo uma correlao com diferentes identidades tnicas.
As classificaes da arte rupestre so extremamente importantes para se entender o
cenrio da produo esttica; mas medida que novas pesquisas venham associ-la aos
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demais vestgios arqueolgicos, ser possvel compreender o modo de vida dos homens do
passado e identificar alguns elementos iconogrficos comuns a todos eles.
A arte rupestre pode ser a ponte para conhecimento do imaginrio dos homens Pr-
coloniais. As analogias com estudos antropolgicos tm esclarecido alguns pontos sobre a
funo social das manifestaes rupestres. Essencialmente, esta uma expresso do
conhecimento cultural de um povo onde esto representados eventos histricos e mticos.
Mas tambm uma linguagem visual reconhecida pela coletividade e neste sentido, muitas
questes ainda podem ser levantadas sobre como funcionava esse cdigo, e em que
situaes ele era utilizado.
Estas consideraes direcionaram a produo do vdeo documental Memria da
Pedra Talhada, apresentado no Captulo III do presente trabalho. A finalidade do vdeo
colaborar para a compreenso da pr-histria no territrio nacional. E a arte rupestre, como
objeto do vdeo, comumente compreendida entre a histria e a arte. Por isso, tentamos
esclarecer como o nosso objeto de estudo transita por estes enfoques. Tanto pela
arqueologia quanto pela histria da arte, a arte rupestre vista como o produto de uma
sociedade circunscrita por sua historicidade. o testemunho de um perodo o qual tentamos
conhecer.
Como objeto de estudo da arqueologia, a arte rupestre tem fornecido muitas
informaes que complementam o cenrio Pr-Colonial, tanto no que se refere ao estudo da
territorialidade e distribuio espacial, quanto nas referncias a costumes, tais como o uso
de utenslios (cestos e armas), produtos alimentares (tubrculos e milho), cerimnias rituais,
entre outros. A histria da arte, por sua vez, ressalta a sensibilidade de sociedades ligadas
natureza e quilo que modificado pela ao humana; a transformao de objetos,
respeitando padres rgidos que revelam no um utenslio ou artefato, mas uma forma
esttica, uma sensibilidade coletiva formada a partir do seu conhecimento cultural.
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CAPTULO II
O STIO ARQUEOLGICO ABRIGO PEDRA TALHADA,
NIQUELNDIA GO
Detalhe das pinturas do Abrigo Pedra Talhada, Niquelndia (GO). Fonte: Acervo MA/UFG
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2.1. UM ESTUDO DAS PINTURAS RUPESTRES DO STIO ARQUEOLGICO
Este captulo trata do estudo e anlise das pinturas rupestres do Abrigo Pedra
Talhada. Foi realizado em duas fases. A primeira corresponde anlise quantitativa e
qualitativa realizada no decorrer do resgate do abrigo ocorrido entre 1995 e 1998. A
segunda compreende a anlise das pinturas como linguagem visual, e foi desenvolvida
como suporte para a elaborao do vdeo documental, realizado entre 2004 e 2005, no
transcurso do Mestrado em Cultura Visual. Ambos os casos so experincias de pesquisa
vivenciadas por mim e que colaboram na formao de uma base de dados para a realizao
do vdeo Memria da Pedra Talhada.
O stio arqueolgico Abrigo Pedra Talhada foi identificado em 1995, a 50m da
margem do Rio Tocantinzinho, no municpio de Niquelndia (GO) (figura 12: Mapa de
localizao). As pesquisas do abrigo estavam integradas ao Projeto de Salvamento
Arqueolgico da Usina Hidreltrica Serra da Mesa PA-SALV-SM, em decorrncia do
levantamento arqueolgico da rea afetada pela formao do lago que hoje constitui o
reservatrio de gu