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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA
CONTEMPORÂNEA
WULDSON MARCELO LEITE SOUZA
Uma Excursão Pelo Contemporâneo a Partir do Conceito de Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman
CUIABÁ-MT 2012
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WULDSON MARCELO LEITE SOUZA
Uma Excursão Pelo Contemporâneo a Partir do Conceito de Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Epistemes Contemporâneas
Orientador: Prof º Dr. José Carlos Leite
CUIABÁ-MT 2012
FICHA CATALOGRÁFICA S729e Souza, Wuldson Marcelo Leite. Uma excursão pelo contemporâneo a partir do conceito de modernidade
líquida de Zygmunt Bauman / Wuldson Marcelo Leite Souza. – 2012.
112 f. Orientador: Prof. Dr. José Carlos Leite.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, Área de Concentração: Epistemes Contemporânea, 2012. Bibliografia: p. 108-111. 1. Civilização moderna. 2. Sociologia. 3. Ideologia. 4. Relações humanas. 5. Bauman, Zygmunt, 1925-. I. Título.
CDU – 316.75 Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931
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FOLHA DE APROVAÇÃO
WULDSON MARCELO LEITE SOUZA
Uma Excursão Pelo Contemporâneo a Partir do Conceito de Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman
Dissertação defendida e aprovada em: 19 de março de 2012.
Banca examinadora:
Orientador e Presidente da Banca
Prof. Dr. José Carlos Leite – UFMT
Examinador Externo
Prof. Dr. Antonio Vidal Nunes – UFES
Examinador Interno
Prof. Dr. Yuji Gushiken – UFMT
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço à minha família. Meus pais, Joarlete e Benedito, por terem
feito da educação dos filhos um propósito de vida, e pelo apoio e compreensão no
momento mais difícil de minha vida. Aos meus mais que irmãos, Juliene e Wender, com
quem compartilho angústias, afinidades e alegrias. Sem eles a jornada ficaria
praticamente impossível.
Ao meu orientador, Dr. José Carlos Leite, pelo acompanhamento dedicado, por
proporcionar-me a liberdade de pesquisar sem pressões por demandas e por indicar
autores que se tornaram fundamentais na dissertação.
Ao Dr. Antônio Vidal Nunes por aceitar o convite para compor a banca e pela amizade.
Ao Dr. Yugi Gushiken pela arguição interna da dissertação e por contribuir para o
enriquecimento deste trabalho.
À minha grande amiga, Sara Juliana Pozzer da Silveira, que, como no tempo em que foi
minha orientadora na graduação em Filosofia, ajudou-me imensamente com seus
apontamentos sempre precisos. E por uma amizade que vai muito além da afinidade
intelectual. À Dra. Denize Dall’Bello, que colaborou com seus comentários pertinentes
e seu entusiasmo para que este texto fosse envolvido pela paixão necessária que um
pesquisador deve ter por seu objeto de estudo.
Ao Dr. Luís Alves Correa Filho com o qual nas conversas sobre Zygmunt Bauman
nasceu o tema para esta dissertação.
Às minhas amigas nesta caminhada no ECCO, Albília de Almeida, Cláudia Wanessa
Poletto Rocha e Karine Krewer (cuja trilha acadêmica percorremos juntos há anos),
pelas quais tenho grande estima. Ad infinitum.
Aos funcionários do ECCO, Diego e Évila, por atenderem a todos com delicadeza e,
muitas vezes, me informando das obrigações que eu acabava esquecendo.
Aos novos amigos Fabiana Martes, Jone Castilho, Cleber Rodrigues e, em especial,
Ariadne Marinho Machado com os quais compartilhei grandes momentos nesses
últimos dois anos de livros a festas.
À Elite Borges Lopes por sua amizade e palavras sempre preciosas. Uma mulher
maravilhosa de grande importância em minha vida.
E aos amigos, que mesmo distantes, estão sempre presentes em meu coração, Renata
Braga, Milka Borges, Maureci Moreira de Almeida e Amanda Jacqueline do Amaral.
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No meu entender, o otimista é aquele que acredita que este é o melhor dos mundos possíveis. E o pessimista é aquele que suspeita que o otimista tem razão... Nesse quadro, não me identifico nem com o otimista nem com o pessimista, pois acredito que o mundo possa ser melhorado e que essa mera crença é instrumental em torná-lo melhor... Zygmunt Bauman É fácil viver no mundo conforme a opinião das pessoas. É fácil, na solidão, viver do jeito que se quer. Mas o grande homem é aquele que, no meio da multidão, mantém com perfeita doçura a independência da solidão. Ralph Waldo Emerson
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RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo a análise da contemporaneidade, segundo o
conceito de “modernidade líquida” defendida pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Ao adotar essa designação, para os tempos atuais, procuramos entender o mundo fluído
e instável no qual ocorre uma constante implosão dos valores e padrões, que em outrora
(denominado por Bauman como “fase sólida da modernidade”) percebíamos como
rígido e incontestável e que era regido por uma racionalidade técnica e fundamentado
no fortalecimento do Estado e da ciência. O propósito é verificar certas instâncias
modeladoras da vida humana, como as ideologias políticas, as demarcações de
fronteiras (sejam elas geográficas, científicas, etc.), as relações pessoais e comunitárias,
confrontando-as com o estado transitório, transnacional, flexível e mutante de um
mundo globalizado, individualizado e consumista; um mundo que transmite uma
sensação de abandono e insatisfação, marcado, como aponta Bauman, pela incerteza,
insegurança e falta de garantias e proteção. As ideias do sociólogo polonês para o que
constitui a “modernidade líquida” nos proporciona o suporte teórico para uma
investigação acerca dos assuntos relacionados e para um diálogo com autores que
investigam (ou diagnosticaram) a vida contemporânea, como Gilles Deleuze, Félix
Guattari, Nestor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony Giddens
entre outros, intentando, desse modo, construir um texto interdisciplinar.
Palavras-chave: modernidade líquida; globalização; fronteira; ideologia; relações
humanas.
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RESUMÉ
Le présent travail vise à l’analyse de la contemporanéité, selon la thèse de “modernité
liquide” détenue par le sociologue polonais Zygmunt Bauman. En adoptant la
désignation, modernité liquide, pour l’époque actuelle, nous cherchons à comprendre le
monde fluide et instable où il n’y une régulière crise de valeurs morales et les normes,
qu’autrefois (Bauman appele de la phase “solide” de la modernité), nous avons compris
comment dur e incontesté et qui a été régi par une rationalité technique et basée sur le
renforcement de l’Etat et de la science. L’objectif est de vérifier certains thèmes
centrauxs de la vie humaine, comme les idéologies politiques, la démarcation des
frontières, les relations personnelles et communautaires, les confrontant avec l’état
transitoire, transnational, flexible et mutant d’un monde globalisé, individualisée e
consumériste; un monde qui exprime un sentiment d’abandon et de l’insatisfaction
marquée, comme Bauman nous dit, par l’incertitude, l’insécurite, le manque de
garanties et de protection. Les idées du sociologue polonais par ce qui constitue la
“modernité liquide” nous offre le soutien théorique une enquête sur les questions
relatives et pour un dialogue avec les auteurs qui enquêtent (ou diagnostique) la vie
contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton
Santos, Arjun Appadurai, Anthony Giddens, entre autres, avec l’intention donc
construire un texte interdisciplinaire.
Palavras-chave: modernité liquide; globalisation, frontière; idéologie; relations
humaines.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------------- 8
CAPÍTULO I – Modernidade líquida: o contemporâneo – a novidade que se
modifica a cada passo ------------------------------------------------------------------------- 12
1.1. Modernidade sólida-modernidade líquida: passagem e não ruptura --------- 14
1.2. Leveza: a insustentabilidade dos pontos de parada ------------------------------ 23
1.3. A desforra dos nômades --------------------------------------------------------------- 32
1.4. A novidade que se expira em alta velocidade ------------------------------------- 39
CAPÍTULO II – Globalização: ruínas da ideologia e fronteiras friccionadas? --- 45
2.1. A globalização dos ricos versus a globalização para todos ----------------------- 49
2.2. Ideologia: quem cantará que precisa dela pra viver? ----------------------------- 61
2.3. A porosidade e o acirramento das fronteiras: um jogo de contradição ------ 71
CAPÍTULO III – A fragilidade dos laços humanos: da aparente felicidade ao vazio
contemporâneo --------------------------------------------------------------------------------- 79
3.1. Laços construídos, laços dissipados -------------------------------------------------- 83
3.2. Vivendo no abandono: implicações políticas --------------------------------------- 91
3.3. Consumo e identidade ------------------------------------------------------------------- 94
3.4. Fragmentos e episódios: a insustentável leveza do ser --------------------------- 100
CONSIDERAÇÕES FINAIS --------------------------------------------------------------- 104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS --------------------------------------------------- 107
FILMOGRAFIA ----------------------------------------------------------------------------- 111
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INTRODUÇÃO
A discussão acerca da modernidade – se ela foi superada, se houve uma ruptura
cuja cisão gerou a pós-modernidade (originando questionamentos sobre a validade dos
constructos modernos) ou se ocorreu, realmente, a efetivação de todos os seus
pressupostos, o que determinaria que o projeto moderno está inacabado – causa
calorosas, e muitas vezes contraditórias, asseverações. Se a modernidade, como aponta
Bauman, era um projeto de “derretimentos” de noções e fundamentos que sustentavam
um mundo tido como obscuro, provinciano, hierárquico, sacro, a pós-modernidade é um
estágio também de desintegração, na verdade, um momento de liquefação (assim como
a modernidade) de certezas que creditavam a racionalidade científica a capacidade de
prever todos os eventos naturais e atenuar seus efeitos e que os direitos sancionados por
poderes mobilizados para serem fortes e proporcionar a todos condições de desenvolver
sua individualidade seriam irrevogáveis. O impulso moderno é um passo calculado,
criativo e destrutivo; as suas fundações são frágeis, apesar da solidez transmitida. O
Estado moderno exibe a bandeira do capitalismo, e para o capital voraz nem suas
próprias criações estão isentas de sua sede devastadora.
A modernidade com o intuito de ser um modelo universal do uso da razão, de
instituições atuantes (mas não tutoras) constituiu a ideia de saberes/disciplinas plenas,
puras nas quais cada uma delas era responsável por um ramo do conhecimento. Desse
modo, a razão fora consagrada como a maneira mais segura e nítida de acessar a
verdade. A sensibilidade e o instinto foram vistos como obstáculos para efetivação de
tal conhecimento baseado na racionalidade científica. Porém, a pós-modernidade (e
conceitos como pós-colonialismo, hibridação, teses como modernidade-mundo, segunda
modernidade, hipermodernidade, modernidade líquida) configurou-se como uma fase
que retira da racionalidade tecnocientífica o “cetro” de soberana da verdade e restitui ao
conhecimento intuitivo, ao senso comum, aos instintos, às sensações porções
consideráveis de crédito no que tange ao nosso entendimento sobre o mundo.
A epistemologia contemporânea pôs em andamento abordagens argutas e
incisivas para analisar esse panorama de contestação e observação a respeito da escala
moderna até os dias de hoje. A tese de Zygmunt Bauman de um mundo em processo de
liquefação (poder-se-ia afirmar liquefeito) – marcado por “quebradiços” laços afetivos,
pela incerteza, insegurança e falta de garantias – expõe com contundência as fraturas da
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modernidade. Para Bauman, a época atual é propícia para colocar a modernidade em
avaliação. É um tempo de reflexão na qual a credibilidade e a validade das conquistas e
falhas modernas podem ser debatidas, descartadas, revalidadas. Mas a era atual se
mostra fluída, leve; há pouco espaço (ou mesmo intenção) para estabelecer rotinas; os
poderes globais agem para desmantelar os laços afetivos/nacionais/sociais para
proporcionar um aumento de fluxo de pessoas (porém nem todas têm passagem pelas
fronteiras que separam a dura realidade do sonho de uma vida menos árdua) e capital
em circulação.
Contudo, a modernidade e a pós-modernidade terminam sendo descritas com
características semelhantes por alguns autores, mesmo que o propósito seja gerar grades
de diferenças que daria proeminência a uma em relação à outra. Para Marshall Berman
(2007), a modernidade é contraditória e paradoxal. Há um conflito, uma tensão entre
uma imposição burocrática para gerenciar a vida dos cidadãos, da comunidade e uma
luta contínua pela autoafirmação. Linda Hutcheon (1991) ao propor uma poética da pós-
modernidade argumenta que tal período distingue-se pela contradição e paradoxo. É um
tempo que exibe tons de autorreflexividade, ironia e paródia que deixam em colapso o
formalismo e a engessada história moderna.
Jürgen Habermas (1990) defende que o projeto moderno, na verdade, está
inacabado. O filósofo alemão acusa os pós-modernos de serem autoindulgentes e de
efetivarem uma transcendência que era própria da modernidade para autocompreensão,
além de alegar que os pensadores pós-modernos descuidaram da observação do curso da
história. O pensamento, desse modo, tornou a-histórico.
Para Zygmunt Bauman, o ponto precípuo do debate se assenta na passagem da
modernidade sólida (de modelos hegemônicos de conduta, instituições fortes,
individualização, fronteiras, territorialidade, formatação dos Estados-nação) para a fase
líquida da modernidade (de poderes fluídos, Estados desregulamentados, individuação
exacerbada, fronteiras dissipadas, desterritorialização, laços afetivos e nacionais
frágeis). Deste modo, não há uma ruptura, mas um processo agudo de esgarçamento dos
constructos modernos, sem, no entanto, gerar sua superação ou abolição.
A modernidade líquida tem latente uma indefinição sobre o futuro de homens e
mulheres. A globalização engendrou um mundo em descontrole no qual o capital é leve
e transita com assustadora facilidade. As pessoas assumem essas características, o que
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faz com que a incerteza seja mais pungente na atualidade, tornando o aprofundamento
nas relações que se constrói durante esses deslocamentos algo raro.
O olhar lançado para analisar o mundo contemporâneo deve ser interdisciplinar.
Não somente para pôr em prática uma tendência, mas para compreender um cenário
híbrido, no qual disciplinas dialogam para forjar algum aspecto inédito, insólito, mas
sincero e condizente, que sofre os atritos e convergências dos mais diversos agentes
sociais. Para tanto, a sociologia, a antropologia, a filosofia, a literatura e o cinema foram
cooptados como recursos discursivos para engendrar uma tentativa de compreensão do
nosso momento histórico sob a luz da modernidade líquida. A escolha da tese de
Bauman se deve não apenas à afinidade com as ideias do autor, mas, também, pela
maneira penetrante de enfrentar questões essenciais (com altas doses de temor e
maravilhamento) para a contemporaneidade, a saber, a dissolução das fronteiras, a
globalização, o fim das ideologias e a fragilidade dos laços humanos.
No primeiro capítulo, a passagem da modernidade sólida para a modernidade
líquida se coloca como um problema central para o entendimento das ocorrências que
proporcionaram o esfacelamento de construções que foram erguidas para ser perenes. A
convicção de que a ciência e a individuação, junto às noções de Estado, leis, família
manter-se-iam firmes e invioláveis a qualquer ataque, ruiu com o sobejo de novas
formas de compreender as mudanças (e a necessidade delas) que o mundo apresentava.
A racionalidade tecnocientífica, cuja suposição do totalitarismo, mostrou-se insuficiente
para abarcar e significar tais alterações na estrutura moderna. E a velocidade do mundo
atual e a exigência de deslocamento – por motivos diversos – levaram à
desterritorialização e também à extraterritorialidade de uma elite global coordenada pela
fluidez e leveza de um capital que ignora fronteiras e cria novidades (temporárias) a
todo instante.
O segundo capítulo trata de questões que se sintonizam de várias maneiras: a
globalização, o fim das ideologias e o esvanecimento das fronteiras. As implicações que
relacionam esses assuntos estão enlaçadas num mercado global de mercadorias que
fomenta o livre trânsito de produtos e serviços ao mesmo tempo em que, apesar da
extraterritorialidade atual, impõem barreiras para um fluxo sem constrangimentos às
pessoas. As fronteiras ainda permanecem vigilantes aos que são considerados personas
non gratas, àqueles de quem se suspeita não estarem aptos para o consumo. O fim das
ideologias se vincula com a ideia de que a economia de mercado por defender o livre
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comércio impunha uma definitiva prova que os embates políticos eram desnecessários
para um tempo em que a competição dizia respeito a como ser efetivo na luta pelo
mercado. No entanto, tal declaração de encerramento de debates ideológicos configura a
tomada do capitalismo e de uma competição injusta, desigual como base ideológica para
a movimentação desse mundo supostamente sem ideologia.
Por fim, o terceiro capítulo versa sobre a fragilidade dos laços humanos. Não ter
vínculo que nos prendam a algum lugar é uma exigência da modernidade líquida. O que
ocasiona um complexo estado de insegurança que adiciona a incerteza atual um desejo
de mobilidade assombrado por uma vontade de estreitar os laços tornando-os
duradouros com aqueles que nos cercam. O consumismo, a identidade, a flexibilidade
como características da modernidade fluída são questões que geram desconforto e
aumentam a sensação de angústia que acompanha inúmeros “candidatos” ao sucesso e à
felicidade na era líquida. Uma breve excursão pela vida episódica e fragmentária a partir
da obra do escritor tcheco Milan Kundera conclui o capítulo.
A modernidade líquida é um tempo de novidades e uniformização, de contrastes
e tentativas de consolidação de modos de vida. Por isso, a incerteza paira sobre ela
como algo sempre presente, e por vezes, parecemos inermes ao seu efeito. Zygmunt
Bauman nos auxilia na elucidação dos pontos obscuros e no entendimento dos
mecanismos do funcionamento da globalização e do por que do consumo ter tomado o
primeiro plano na vida de homens e mulheres ao redor do planeta. Tais interrogações
nos proporcionam a adoção de uma perspectiva epistemológica que abarca áreas
distintas do conhecimento para construir um painel interdisciplinar que contribui para a
compreensão de um mundo em desintegração que corresponda a superar a incerteza e se
alimentar dela.
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CAPÍTULO I
Modernidade líquida: o contemporâneo – a novidade que se modifica a cada passo
A frase do filósofo transcendentalista estadunidense do século XIX, Ralph
Waldo Emerson1, “Quando patinamos sobre gelo quebradiço, nossa segurança depende
de nossa velocidade”, apresenta neste incipiente século XXI uma atualidade
assombrosa. Essa máxima do (e no) século da industrialização oferece, além de uma
instrutiva ilustração visual, um conselho para o agir: em situações difíceis, busque a
resolução rapidamente, para não ser atingido implacavelmente pelos problemas que ela
virá a causar. Claro que as decisões tomadas devem observar uma conduta condizente
com a busca do eu interior e considerando o proceder moral augusto de um homem
independente do pensar de terceiros, que seja superior e que leve em conta a bondade
pela bondade, acima das expectativas de recompensas e retribuições. É preciso, acima
de tudo, como diz Emerson, ter confiança em si mesmo, esse é o segredo do sucesso.
Contudo, há no dito de Emerson, uma suspeita de perigo. Perigo, o qual o nosso ligeiro
poder de decisão poderá nos deixar a salvo da provável hipotermia.
No século XXI, o excelso dito de Ralph Waldo Emerson desloca-se do agir
moral, ou pelo menos da preocupação com os seus desdobramentos, para um “safar-se”
incólume da situação de escolha, de emergência na qual nos encontramos – e esse
estado mostra-se contínuo, sem grandes intervalos entre eles, como se tudo que ocorre
devesse ser considerado os decisivos da vida. Como o Chris Wilton, personagem de
Match Point (2005) de Woody Allen, que diante lances capitais transita entre oposições,
mas opta pelas ambições individuais, que incluem assassinatos e a subjugação da
consciência às escolhas irreversíveis.
Zygmunt Bauman usa a frase de Emerson como epígrafe na introdução de seu
livro Vida Líquida, publicado, em 2005, na Inglaterra. Vida líquida que é o tipo de vida
que se consolidou nas últimas décadas; a vida que se constitui em uma sociedade
1 Filósofo estadunidense (1803-1882) criador da escola transcendentalista. Buscou de forma lírica e lógica a independência espiritual do homem. Seu pensamento foi marcado por paradoxos brilhantes e por aforismos lacônicos e enérgicos. Fonte: LAROUSSE. Volume VII, 2ª edição revista e atualizada da Enciclopédie Larousse Méthodique. Texto original Bernard Fay. Tradução Heitor Fróes. Adaptação e atualização Paulo Rónai. – Rio de Janeiro: Delta, 1968.
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moderna líquida. Segundo Bauman, “‘Líquido-moderna’ é uma sociedade em que as
condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que
aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir”
(BAUMAN, 2007b: 07). O que Bauman declara como modernidade líquida é uma fase
que se contrapõe à modernidade sólida, aquela época que desenhou e consagrou-se com
o Iluminismo, mas que tem em seu lastro o Positivismo, a Revolução Industrial, o
Fordismo e incontáveis eventos e teorias que formularam um mundo
(predominantemente o lado ocidental do planeta) governado por uma racionalidade que
definiu um savoir-faire baseado na soberania da ciência, na lógica, no cálculo, na
eficácia do planejamento, na indústria, na constância, na fidelidade aos compromissos.
Enfim, caminhou em direção à certeza e à segurança. A modernidade líquida, ao
contrário, é leve, fluída, inconstante, exibe mobilidade, carrega consigo a ideia de
transitoriedade, ela é mutante e impõe a necessidade de movimento contínuo. Contudo
traz em seu bojo a incerteza, o sentimento de insegurança, de falta de garantias e
proteção e a exigência de liberdade num processo de individualidade exacerbado.
Voltemos à observação de Emerson, quando caminhamos sobre gelo quebradiço a nossa
velocidade é que nos mantém em segurança e que nos preserva no jogo da vida ensaiada
na modernidade líquida repleta de possibilidades à espera dos mais velozes. Ser frágil e
percorrer esta trajetória em passos lentos e reflexivos pode significar falta de habilidade
na disputa-mor: a da sobrevivência.
A velocidade, no entanto, não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”, recapitular os passos já dados, examinar de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que é uma fatalidade para todos os indivíduos frágeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino (BAUMAN, 2001: 239).
Invocando Max Scheler, Bauman aponta para a importância em não se confundir
fatalidade com destino. Fatalismo é resultado de um erro de conjugação do juízo.
Portanto, os seus passos são artificiais (fruto do raciocínio – ou, muitas vezes de
motivação emocional) e compreensíveis. Significa que há maneiras de corrigi-los,
convertê-los, de encontrar saídas para os equívocos cometidos ou para as situações que,
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pelas mais diversas razões, nos envolvem. Destino é a ampla capacidade de procurar
saída para a fatalidade. “‘A imagem de nosso destino’ adverte Max Scheler, ‘só nos
abandona quando lhe damos as costas’” (BAUMAN, 2001: 240). Ou seja, quando
aceitamos que nada poderia ter sido diferente.
Se afirmarmos categoricamente que um acontecimento é irreversível caímos na
armadilha do fatalismo, passando a acreditar que é o destino que se consolida por sua
própria e irrecusável trama. Desse modo, não há espaço para perceber o que de fato
ocorreu. Nesse caso, anula-se a reflexão. E o destino deve ser encarado como reflexão.
Destino é uma construção erigida pelo pensamento, portanto, exige autorreflexão e
avaliação daquilo que nos circunda e das escolhas feitas. Dedicação que o mundo
líquido não permite. Por isso elucubrar sobre o fatalismo parece sem sentido. Parar
significa a instauração da insegurança. E a fatalidade significa responsabilizar o
indivíduo e deixá-lo abandonado à própria sorte, jogando-o, assim, direto para a crença
de um destino a ser aceito. A falta de tempo corrói a possibilidade de perceber o destino
como construção cotidiana. Por isso, o gelo fino consagrou-se como o solo que desafia
os aventureiros da vida na modernidade líquida.
1.1. Modernidade sólida - modernidade líquida: passagem, não ruptura
Em entrevista à revista Tempo Social, em 2004, Zygmunt Bauman aponta a
diferença central entre a sociedade anterior, que ele chama de “modernidade sólida” e a
vida contemporânea, na qual homens e mulheres estão enredados, a “modernidade
líquida”.
[...] a vida moderna foi desde o início “desenraizadora”, “derretia os sólidos e profanava os sagrados”, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente “reinraizado”, agora todas as coisas – empregos, relacionamentos, know-hows, etc. – tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições (BAUMAN, 2004b).
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O movimento contínuo: dinamismo e a falta de compromisso (que não pode ser
confundido com o não comprometimento com aquilo que se faz, pois se trata da não
criação de vínculos que nos prendam àquilo que fazemos no momento) marcam
indelevelmente esta época de mobilidade e mutações.
O “derretimento dos sólidos” foi a proposta de uma era que pretendia se livrar de
todos os resquícios da Idade Média e da moral de uma velha ordem que atava as mãos a
valores que impediam o desenvolvimento de pressupostos de conduta que coadunassem
com o uso irrestrito da razão. Deveres com a família, a Igreja, com os ideais locais
passaram a ser entendidos como empecilhos. As superstições, a convicção ilimitada na
Providência Divina para os negócios, as imposições comunitárias eram assaz defendidas
pelos partidários dos antigos estatutos que sustentavam a tradição e o poder feudais,
clericais, monárquicos, tidos como pouco esclarecidos pelos proponentes de uma visão
moderna do mundo. Apesar de a batalha prometer dificuldades, a hierarquia de outrora
estava em ruínas. A tarefa de “derreter os sólidos” se mostrava urgente.
Se o “espírito” era “moderno”, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta” de sua própria história - e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa intenção clamava, por sua vez, pela “profanação do sagrado”: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da “tradição” – isto é, o sedimento do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenças e lealdades que permitiam que os sólidos resistissem à “liquefação” (BAUMAN, 2001: 09).
Enfim, derreter os sólidos para erigir outros mais rígidos e imunes às sedições do
fanatismo, abandonar os vestígios de irracionalidade de uma tradição em que a
autoridade estava alhures no Absoluto das crenças sagradas.
Bauman postula que o projeto da modernidade possuía como leitmotiv a
emancipação da razão dos grilhões de um mundo que se afundava em sua ignorância.
Era preciso fundamentar novos horizontes que possibilitassem uma visão mais acurada
de uma nascente vontade de independência do pensamento. A escapatória das nebulosas
configurações de um mundo pré-moderno se assentava na racionalização das relações
econômicas, políticas e sociais.
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[...] “Derreter os sólidos” significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações “irrelevantes” que impediam a via de cálculo racional dos efeitos; [...] Por isso mesmo essa forma de “derreter os sólidos” deixava toda a complexa rede de relações sociais no ar – nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com eles (BAUMAN, 2001: 10).
Tratava-se de destruir para criar, de substituir os deteriorados alicerces pré-
modernos por blocos resistentes que se manteriam firmes em sua posição, pouco
importando que tipo de exame ou desafio fosse-lhes impostos. A modernidade, para
pensadores como Marx e Engels, desejava efetivar todo tipo de ultrapassagem em
relação a um mundo tido como obscuro, provinciano, cativo de referenciais sacros.
Segundo George Balandier (1997: 157), “É o pensamento moderno que opera rupturas,
que afasta a tradição portadora de permanência e apreende tudo sob o aspecto do
movimento sendo deste, ao mesmo tempo, o instrumento e a expressão”. Nesse cenário,
a razão instrumental se consolidou como a forma mais segura de garantir o projeto
moderno. A razão instrumental e sua base científica livraria o ser humano do medo
tornando a Natureza sem mistérios, os poderes seculares mais transparentes e
concederia aos homens o privilégio de se declarar senhores do próprio entendimento.
De Francis Bacon (método indutivo) passando por Descartes (ceticismo metodológico,
geometria analítica), Galileu (heliocentrismo), Newton (lei da gravitação universal) até
a etapa onde o apelo à razão recrudesce, o Iluminismo.
Em Dialética do Esclarecimento, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno
discutem como a Ilustração converteu-se no mito que pretendia combater. Quando a
racionalidade se imiscui em todos os setores da vida relegou a sensibilidade, os
sentimentos, as sensações, a intuição, o senso comum, os saberes locais a extratos
inferiores do processo de conhecer. Assim a razão sempre alerta produziu monstros que
prometera eliminar com o soterramento do mito, das superstições, dos medos gerados
pela incompreensão da natureza dos tempos pré-modernos.
Do medo o homem presume estar livre quando não há nada mais de desconhecido. É isso que determina o trajeto da desmitologização e do
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esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim o mito identifica o inanimado ao animado (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 29).
Desvendar segredos, afastar o medo e dirimir os mistérios que envolviam a
natureza são propostas que se perpetuaram pelo trajeto da modernidade. De Francis
Bacon – e sua máxima, no Novum Organum (1620), de que para entendê-la (a Natureza)
era preciso obedecê-la para dominá-la – à exploração dos minérios e reservas naturais, a
técnica foi o ponto crucial das conquistas e vicissitudes modernas. A ideia de progresso
sem o aprimoramento da técnica não seria viável. Tanto o progresso imaginado quanto a
técnica consolidada são asseverações de um mundo no qual a ciência é a principal juíza
sobre a verdade das coisas. Cálculo, previsão, verificação são termos que acompanham
os acontecimentos naturais e os eventos promovidos pelos homens. Não há mais
ilusões, ou essa era a obsessão a ser perseguida. A razão vigilante quer sondar os mais
desafiadores enigmas da natureza. Na verdade, enigmas para ciência são criptogramas
que não resistem a uma inteligência curiosa e dotada de indefectíveis técnicas para
acessá-las. A relação que se estabelece é unilateral, fechada para o diálogo e inflexível.
“O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os
homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem da ciência
conhece as coisas na medida em que pode fazê-las” (ADORNO e HORKHEIMER,
1985: 24).
A ciência deveria libertar os homens e as mulheres, essa era a expectativa que
muitos visualizaram como alcançável, fazê-los senhores de sua autoafirmação. Libertá-
los para que produzissem tempo livre e conquistassem a emancipação intelectual e
imunidade em relação às intempéries da natureza. O ardil subjacente no penetrante
discurso do conhecimento total era a dominação que ocultava. Dominar a natureza
acarretou em dominar o ser humano. A promessa de felicidade malogrou-se em
obstáculos que tornaram a emancipação quimera. Os homens e mulheres modernos
sentiram o bafejo de uma vida confortável e de problemas externos relativamente
reduzidos. Entretanto, a técnica tornou-se uma exigente auxiliar dessa vida e depois
sócia majoritária para, em seguida, resplandecer como soberana. A dedicação total ao
trabalho foi incorporada às diretrizes econômicas e sociais que apontavam para o
progresso.
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A modernidade foi construída para não ser reflexo de nenhuma outra época da
história humana. Por isso, o “derretimento dos sólidos” imperou diante qualquer
intenção de restauração. A liquidação dos antigos “sólidos” pretendia engendrar
“sólidos” cuja fortaleza seria inabalável.
Bauman aponta que a sede moderna por autogerenciamento e autoafirmação
emana dos indivíduos uma autocrítica da realidade que está sempre se fazendo e nunca
satisfeita por completo. Por mais que nos agrade um lugar e nos acomodamos a ele, a
permanência é uma luta, pois aos homens e mulheres pertence a responsabilidade do
sucesso ou fracasso dessa empreitada. A afinidade com o liberalismo faz da “era dos
sólidos” o período em que os indivíduos dependiam de suas habilidades, capacidade de
fidelidade e persistência para triunfar. Como explica Norberto Bobbio (2006: 31),
“Como teoria do Estado, o liberalismo é moderno (...)”. O indivíduo moderno em seu
estado singular dependia de sua autonomia recém-conquistada. Mas o terreno era
acidentado. O liberalismo buscava efetivar a personalidade individual; mesmo que isso
significasse a não igualdade entre todos os postulantes à autodeterminação.
Max Horkheimer defende que os traços positivos da modernidade – ou pelo
menos seu intuito – de cunho racionalista (asseverado pela ideia de liberdade)
acarretaram o advento daquilo que ousavam enfrentar: a contradição, o dogmatismo, a
imprevisibilidade, as ações tuteladas, não autônomas.
Neste processo da história das ideias reflete-se o fato histórico de que todo o social de que faziam parte as tendências liberais, democráticas e progressistas da forma cultural dominante, continha também desde o início o seu contrário – servidão, acaso, e mero domínio da natureza – o qual, força da própria dinâmica do sistema, ameaça no fim destruir com certeza os traços positivos (HORKHEIMER, 1990: 140).
Para Isaiah Berlin, a liberdade proclamada (e em tese a ideia de que a autonomia
conduziria a uma liberdade em que os obstáculos eram dirimidos pela possibilidade
crescente de autogerência das escolhas) esbarrava nos limites impostos pelas opções de
ação. As teorias liberais associavam-se com a racionalização aguda do mundo. A
liberdade era concedida para se fazer aquilo que professava uma lógica racionalista. As
opções deveriam circular pela necessidade e pela contingência, e a definição exata da
conduta excelsa por esses termos era o acessado apenas pela razão crítica. Anulado o
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impulso irracional e certificado a obediência à lei, a individualidade perfazia-se
circunscrito ao racionalismo.
Algumas portas conduzem a outras portas abertas; outras, a portas fechadas; há uma liberdade real e há uma liberdade potencial – dependendo do grau de facilidade com que algumas portas fechadas podem ser abertas, dados os recursos existentes ou potenciais, físicos e mentais. (...) Mesmo que não se possa apresentar uma lei inflexível, ainda resta o fato de que a dimensão da liberdade de um homem ou de um grupo é, em grande medida, determinadas pela série de possibilidades que se acham à disposição de sua escolha (BERLIN, 2002: 151).
As regras do jogo, os procedimentos adequados para alcançar o cume das nossas
pretensões eram impostos de “fora”. Aonde chegar e como chegar poderiam ser sonhos,
mas para realizá-los os caminhos a se seguir já possuíam placas de sinalização, e as
escolhas reduzidas não permitiam lacunas para que outsiders reconfigurassem as rígidas
regras implantadas.
Era uma época que pretendia impor a razão à realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o comportamento racional e a elevar os custos de todo comportamento contrário à razão tão alto que os impedisse. Em razão do decreto, negligenciar os legisladores e as agências coercitivas não era, obviamente, uma opção. A questão da relação com o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de formação; de fato, uma questão de vida e morte (BAUMAN, 2001: 58).
A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt deu dimensão à necessidade de
preservar o espaço privado das interferências da esfera pública; aquilo que seria do
domínio humano fora invadido por uma instrumentalização da razão que elevou à
técnica a estatura de um destino irrecusável. Os seres humanos seriam manobrados
como objetos impotentes diante das condições sociais propostas. Uma sociedade
regulada surgiu no horizonte da modernidade trazendo tanto a semente da emancipação
quanto da destruição.
A teoria crítica acusava de duplicidade ou ineficiência aqueles que deveriam ter providenciado as condições adequadas para a autoafirmação: havia limitações demais à liberdade de escolha e havia tendência totalitária
20
intrínseca ao modo como a sociedade fora estruturada e conduzida – tendência essa que ameaçava abolir a liberdade de uma vez, substituindo a liberdade de escolha pela tediosa homogeneidade, imposta ou sub-repticiamente introduzida (BAUMAN, 2001: 60).
O desenvolvimento tecnológico formou um liame com a ideia de progresso;
aliança que reforçava a penetração da razão instrumental nas decisões humanas.
Situação que obliterava o sonho de autoafirmação. A Teoria Crítica buscou, então,
produzir uma gama de defesa para impedir as prováveis restrições à plena liberdade dos
desiderativos humanos. O que precisava ser resguardado era o espaço privado dos
indícios de dominação pela esfera pública, ou seja, dos arbítrios de uma classe
dominante endossada pela força do Estado – de sua burocracia – e de um sistema
financeiro internacional – avassalador na implantação de regras favoráveis aos seus
interesses. A autonomia intelectual, de manifestação de desejos e de possibilidade de
geração de idiossincrasias contra os abusos da vida regular estavam em risco. A Teoria
Crítica fomentou o recurso de denúncia da intromissão do espírito instrumental nos
percursos de sobrevivência de homens e mulheres: do enfrentamento de Ulisses ao
canto das sereias aos variados e consolidados clichês fabricados pela indústria cultural,
a ideologia do progresso vaticinava uma sociedade espelhada pela eficácia da técnica.
Ao buscar apartar-se das imposições/armadilhas da Natureza, o ser humano produziu
uma emboscada para si mesmo: ao tentar fugir da necessidade gerou uma liberdade que
o encurralou na figura de um sujeito que pela linguagem, manipulação de ferramentas e
aplicação tecnológica conhece, controla e modifica a Natureza. Tal ideologia acabou
por anular os impulsos humanos e aprisionou o indivíduo a um processo de reificação
contínuo: produto e produtor, criador e criatura já de antemão estão afastados. A
mercadoria é a “suprema” criadora de si. O ser humano para vencer a Natureza reprimiu
seus instintos, deformou sua sensibilidade e aceitou, mesmo que tacitamente, o
tolhimento de sua criatividade. Para os pensadores frankfurtianos, a dominação da
natureza é o primeiro avanço para o domínio do homem pelo próprio homem.
A modernidade sólida elegeu seus bastiões: a racionalidade (instrumental), o
desenvolvimento tecnológico, a decodificação do mundo pela linguagem, o princípio de
identidade, a aposta no mercado mundial de comércio. Panorama propício para que tudo
ocorresse segundo a lógica do poder econômico amparado por um Estado que se
manifestava onipresente, impessoal e em conformidade com interesses de agentes
21
privados que gozavam de influência na esfera pública – instituições bancárias, indústrias
metalúrgicas, de minérios, empresas de alimentos, comunicação entre outros. Era contra
esse lado oculto da política que a voz dos defensores da autonomia crítica se levantou.
Era algo que soava como uma emergência que exigia uma solução imediata favorável
ao “partido” da esfera privada.
No mundo atual, na modernidade líquida, os papéis foram trocados. O antigo
“invasor” tornou-se “candidato” a promotor de uma sublevação. O espaço público é
tomado pela esfera privada. Os problemas de caráter político ou social recebem, ao
invés de respostas concernentes ao auditório da vida pública, ou seja, próprias do
âmbito dos poderes constituídos e da ação comunitária, ajustes vindos de iniciativas
individuais. Poder-se-ia conjecturar que tal condição é a efetivação da matriz liberal da
modernidade. O neoliberalismo econômico em defesa da economia de mercado de livre
iniciativa contaminava a esfera pública conduzindo a sua privatização. Como postula
Norberto Bobbio (2006: 89), “Na formulação hoje mais corrente, o liberalismo é a
doutrina do ‘Estado mínimo’ (o minimal state dos anglo-saxões)”. No fim, o amparo e o
apelo às ferramentas institucionais acabavam reduzidos.
Zygmunt Bauman chama a atenção, utilizando frase de Ulrich Beck, para o fato
de que vivemos consoantes à ideia que o adequado parece ser buscar uma “solução
biográfica para as contradições sistêmicas”. A sociedade contemporânea propalada,
certa vez, como “sociedade do espetáculo”2, em outra ocasião como “sociedade do
medo”3, é também a “sociedade da culpa individual”, da responsabilidade pessoal pelos
erros, mesmos que eles sejam provenientes de falhas estruturais, de instituições
contaminadas indevidamente pelos préstimos da burocracia, sejam de ordem exterior ao
sujeito ou erros históricos.
No entanto, a modernidade líquida, pela distância que a separa do apogeu da
modernidade sólida, é uma era na qual as ferramentas críticas proporcionam uma
avaliação reflexiva dos constructos e feitos da antiga modernidade. Na modernidade 2 A influente obra “A sociedade do espetáculo” de Guy Debord, publicada em 1967, denuncia a sociedade
moderna capitalista como produtora de espetáculos. Espetáculos cotidianos gerados por imagens que despertam desejos, promovem tentativas de unidade social e acarretam na mercantilização do todo social. 3 Não somente uma “sociedade do medo”, mas uma “cultura do medo”. Sobre a insegurança do mundo
atual, ver Zygmunt Bauman, Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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líquida, como estamos cientes dos equívocos modernos, temos a chance de observar
detidamente e colocar em prática preceitos e objetivos que foram plantados no cerne das
intenções modernas, mas que descarrilaram em dúbios projetos de dominação de países
hegemônicos sobre populações devastadas por profundos problemas de ordem
sociopolítica e econômica. Democracia, justiça social, liberdade são conceitos atuais
que tiveram no Iluminismo seu nascimento, porém declinaram ao longo dos séculos e
foram submetidas a pacotes de ajuda para países em situação de risco como modo de
impor regras na maneira de dirigir suas instituições, geralmente, em detrimento das
expectativas do povo local, e, mais recentemente, como justificativa para intervenções
bélicas a outro território (a invasão da coalizão liderada pelos Estados Unidos ao Iraque,
iniciada em 20 de março de 2003, é um exemplo capital de tal absurdo recurso).
Bombardeia-se em nome da democracia e da liberdade: o supremo argumento falacioso.
A modernidade líquida assiste ao fim dos sonhos modernos de um telos que se
realizaria infalivelmente. A ética pós-moderna derrubou a ideia que o progresso anda
consoante a uma perfeição a ser atingida amanhã ou depois. Há o aqui e agora. Além de
considerar que há uma pluralidade de contextos, optar por uma delas é um exercício que
demanda tempo, e tempo é algo que escasseia rapidamente na vida líquida. E com a
desregulamentação e privatização das tarefas modernas, a razão humana perdeu os
espaços coletivos que favoreciam a integração dos sujeitos atuantes e a percepção desse
uso como propriedade coletiva fragmentou-se deixando esses sujeitos entregues aos
seus próprios recursos individuais e as idiossincrasias que possam criar.
Abandonados pelos blocos de amparo para o desenvolvimento da sua
compleição individual (pelo menos a ilusão desta), homens e mulheres da sociedade
moderna líquida são brindados com exemplos igualmente individuais de vencedores que
contrariam as expectativas de insucessos ligadas a uma condição de vida adversa.
Políticas públicas capazes de sanar tais deficiências permanecem no plano da retórica e
das promessas que inundam as campanhas eleitorais.
Fracassar não é um tópico aceitável na vida líquida. Há todo um investimento no
sucesso, objetivamente perseguido ou repentino, a ideia que os homens e mulheres
devem se fazer por si mesmo predomina, e ainda mais quando as cobranças por
oportunidades e geração de empregos surgem esporadicamente em reivindicações
sindicais ou nos meios de comunicação. Em tese, espera-se que a sociedade (com o
direito de administração outorgada ao Estado) garanta com os meios possíveis às
23
chances a que todos aspiram. Com o passar do tempo – além das escolhas que já
estavam dispostas para ele – o proponente a uma vida melhor ficou a cargo de uma
dupla tarefa: a de saber lidar com as possibilidades existentes e de inventar recursos
para gerar suas próprias possibilidades quando tudo parecer nebuloso; tais recursos, sua
aplicabilidade, eficiência, desatinos e falhas, são de responsabilidade exclusiva do
sujeito. Há inúmeras possibilidades de triunfo, de escolhas e permissão para não se
apegar a nenhuma delas. O cenário que se apresenta é de incerteza, falta de segurança e
de instabilidade endêmica das opções dignas de seguir ou de exibir.
O que separa a atual agonia da escolha dos desconfortos que sempre atormentaram o Homo eligens, “o homem que escolhe”, é a descoberta ou suspeita de que não há regras preordenadas nem objetivos universalmente aprovados que se possam seguir inflexivelmente o que quer que aconteça, desse modo aliviando os que escolhem da responsabilidade pelas consequências adversas de suas opções. Ninguém impede que esses pontos de referência e essas pautas que hoje parecem fidedignas sejam amanhã (e retrospectivamente!) desmascarados e condenados como enganosos ou corruptos (BAUMAN, 2007b: 155).
Os sólidos modernos que foram edificados para suplantar os deteriorados sólidos
pré-modernos soçobraram diante do processo de “liquefação” contemporâneo, um novo
“derretimento dos sólidos” que fez eclodir uma era moderna líquida.
1.2. Leveza: a insustentabilidade dos pontos de parada
Instabilidade, inconstância, flexibilidade, vulnerabilidade e leveza são
características preponderantes da sociedade moderna líquida. Entre elas, a leveza
destaca-se por acoplar a sua definição o desapego à fidelidade e às emoções que
engendram vínculos que nos enraízam a algum lugar. Na verdade, o que se exige dos
homens e mulheres contemporâneos é a disponibilidade para se deslocar sem entraves
relacionados a compromissos de origem sentimental. A ideia de viver em trânsito, se
locomovendo e ter pouca bagagem, viajar leve, parece atraente por eliminar
consequências que a permanência nos lugares pode criar. A velocidade desse
deslocamento pressupõe a não continuidade dos laços. Isso significa que quanto mais
leve estamos, mais rápido percorreremos e mais longe alcançaremos.
24
Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais leves e superficiais eles forem, menor o risco de prejuízo. “Agora” é a palavra-chave da estratégia de vida, ao que quer que essa estratégia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante esperto fará o possível para imitar os felizes herdeiros da elite global que viajam leves; e não derramarão muitas lágrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos (BAUMAN, 2001: 187).
Planos em longo prazo são impedimentos quase que imperdoáveis. A proposta já
deve ser conhecida de antemão: viver leve para facilitar a flexibilidade, mesmo que isso
acarrete em vulnerabilidade, pois a incerteza e a insegurança são desafios a serem
vencidos, não motivos para recusar a instabilidade do mundo atual. Esse entrelaçamento
das características da modernidade líquida gera um sentimento de abandono com o qual
é preciso aprender a viver. A geração dos nascidos no final da década de 70 e início dos
anos 80 do século XX, chamada pelos sociólogos de “Geração Y”, que foi incentivada a
ambicionar em demasia e não se contentar com as conquistas e sair atrás de horizontes
sempre mais promissores se equilibra na fina espessura da corda que sustenta as cadeias
de comando e as diretrizes empresariais do mundo contemporâneo.
Ser leve é condição sine qua non para atenuar as mudanças constantes. Mas elas
ocorrem com velocidade tal que afastar a insegurança mostra-se tarefa desgastante. O
tempo para mitigar esse conflito reduz-se assim que reconhecido. No entanto, o mal-
estar permanece como uma sensação mal digerida.
Impotência, inadequação: esses são os nomes da doença da modernidade tardia, da pós-modernidade – o mal estar da pós-modernidade. Não o temor da não conformidade, mas a impossibilidade de se conformar. Não o horror da transgressão, mas o terror do infinito. Não demandas que transcendem nosso poder de atuar, mas atos esporádicos numa busca vã por um itinerário estável e contínuo (BAUMAN, 2008a: 60).
A estabilidade é ainda desejável, já que está associada à concepção de
“progresso” na vida. Nutrimos a expectativa de um sucesso levar a outro e, assim,
consolidar nossos sonhos de ascensão e conquistas. Entretanto, o atual estado de coisas
25
não é o cenário ideal para projetos além do presente e comemorações prolongadas. Há
escolhas a serem feitas; inúmeras possibilidades de escolhas. A liberdade para
experimentar as opções que se multiplicam a nossa frente não encontra as restrições
com a qual se deparava na modernidade sólida. E elas não eram excessivas. Porém, em
ambos os períodos, a escolha deveria/deve ser feita. Em outrora a escolha precisava
conter a semente da continuidade. Trabalhar em uma fábrica de automóveis poderia ser
garantia de futuro: estabilidade, promoção, dedicação à função, aposentadoria. Na
modernidade líquida cada escolha carrega consigo uma ambivalência: é livre e
necessária. A amplidão das escolhas não suscita segurança. Pode ser a aposta certa ou
errada. É um risco que devemos optar correr, “a incerteza está destinada a ser para
sempre a desagradável mosca na sopa da livre escolha” (BAUMAN, 2001: 103). E a
cada dia a confirmação dessa escolha nos persegue. Provavelmente, chegar à conclusão
de que tomamos o caminho mais inadequado naquele momento não significa estar fora
do jogo. Mas teremos que lidar com a frustração, aceitar que o erro é nosso, e apenas a
nós cabe criar saídas para a situação desventurosa. O preço cobrado pelas alternativas
dispostas à seleção da maioria é arcar com os custos dos fracassos. Será que a nossa
escolha não passava de “sombra”? Prometia aquilo que não teria condições de efetivar?
Bauman nos lembra de que no mundo líquido deve-se ter em mente no que tange às
escolhas que “nem todas são realistas; e a proporção de escolhas realistas não é função
do número de itens à disposição, mas do volume de recursos à disposição de quem
escolhe” (Idem).
Para serem bem sucedidos no tráfego louco das escolhas, os que têm recursos
financeiros e intelectuais estão em vantagem. Adquirem mobilidade e privilégios que
garantem dianteira. O risco e a insegurança são adendos à perspectivas de conquista, de
saciar o desejo. Porém, o desejo em si não é mais o objetivo. O que acaba por mover os
aventureiros é o desejar que não se satisfaça por ultrapassar a linha de chegada, mas em
procurar encontrar uma nova corrida, mesmo que o percurso seja idêntico.
Na modernidade líquida trabalho e aquisição de bens materiais são vistos e
vividos da mesma forma. O modo de vida que se sobressai tem afinidade estrita com o
consumo. E no consumo o processo de “individualização” da era da liquidez contribui
para que homens e mulheres se enredem mais na incerteza e insegurança. Por sua vez,
na modernidade sólida, uma sociedade de produtores, a estabilidade, a durabilidade, a
pretensão de que algo se fixasse eram respostas às intempéries da vida e às catástrofes
26
naturais. O indivíduo (conceito moderno) concentrava-se na produção tendo a aquisição
e o acúmulo como metas derivadas do labor. A ideia de indestrutibilidade daquilo que
se realizava era cara às intenções modernas. A aposta concentrava-se na prudência e na
durabilidade. O indivíduo moderno, com a realidade herdada já se desmoronando, ou
seja, em vias de “derretimento”, tinha que ter em mente que seria indispensável ver-se
como cidadão dali para frente; uno, mas pertencente a uma sociedade, com deveres com
as instituições que sustentavam o poder ao qual estava atrelado e não aprisionado: o
Estado. O importante era distinguir que a sociedade civil, formação de indivíduos livres
e capazes, representava a preservação desse poder. As instituições davam crédito à
esperança de manter a certeza e a confiança no centro da relação. Nos últimos séculos,
as instituições que garantiam a eficiência dessas prescrições sofreram desgastes que
abalaram sua credibilidade, quase como doenças crônicas que cedo ou tarde hão de
deixar a situação irreversível.
A racionalidade caminhava sobre areia movediça. Guerras, a persistência da
fome e da miséria, regimes políticos totalitários, uma ciência que fabricava a morte,
desemprego, infelicidade, enfim, a irracionalidade parecia estar mais presente que
anteriormente, ou se convertera, como na denúncia da Escola de Frankfurt, em algo
centralizadora que subjugou todas as outras formas do conhecer humano, projetando
sombras em vez de luz. Porém, afirmar que a modernidade líquida é uma reação
espontânea e necessária às falhas, às negligências e bestialidades ocorridas em
decorrência do uso incomensurável da razão instrumental seria incorrer em equívoco e
em declaração forçada. No entanto, as distorções aproximam-se de uma interpretação de
promessas não realizadas, ou de vigilância constante que resultaram em horrores
inimagináveis. Um mundo melhor, mais justo, mais seguro, mas transparente em
relação ao complexo jogo de poder não despontou no horizonte da idade
contemporânea.
Vivemos atualmente num tonel de incertezas. Como é preciso ser leve torna-se
impossível saber se o que deixamos para trás realmente estava obsoleto. Apesar de tudo
já conter em sua fabricação a novidade e a obsolescência, alguma coisa, talvez, tenha a
qualidade de render para além do dia do seu abandono. A incerteza não nos permite
pagar para ver. Hoje não vislumbramos mais instâncias coletivas que nos sirvam de
suporte para as nossas decisões; no processo de “individualização” da vida líquida
27
consumimos, acumulamos e descartamos sozinhos. Somos responsáveis pelo luxo e
pelo lixo de nossa sobrevivência.
Verdadeira novidade não é a necessidade de agir em condições de incerteza parcial ou mesmo total, mas a pressão contínua para desmantelar as defesas trabalhosamente construídas – para abolir as instituições que visam limitar o grau de incerteza e a extensão dos danos que a incerteza desenfreada causou e para evitar ou sufocar esforços de construção de novas medidas coletivas destinadas a manter a incerteza dentro de limites (BAUMAN, 2000: 35).
A vida na sociedade líquida de consumidores apresenta-se repleta de armadilhas,
busca expert em adotar contradições e mantê-las em um arriscado jogo de equilíbrio e
desordem. Viver no limite de um paroxismo, entre a solução e o erro, entre a sentença
de falência e a possibilidade de recuperação. É preciso entrar no jogo, comportar-se
como um jogador que intui (ou sabe) que o universo da ordem é uma pálida lembrança
da rigidez e dos cálculos que vislumbravam a subida lenta, a longo prazo até a
realização dos objetivos. Hoje abraçar as contradições reflete a disposição de um
jogador que reconhece que todo o movimento deve levar em conta a rapidez nas
escolhas/ações, ou seja, a querer os resultados a curto-prazo. É preciso aceitar as
inconveniências da incerteza e desejar o que Sartre (2006) considerou o grande feito da
burguesia: o sonho da ascensão social. A ideologia de uma “classe ascendente” que
instaurou a ideia que vencer na vida era o princípio básico da existência. A felicidade
criou vínculos com um projeto de vida ostentada pelo desejo de acúmulo de bens. E,
atualmente, é substituído, sem cerimônias, pelo capital leve e fluído.
O instantâneo e o imediato são propriedades da leveza do ser. Homens e
mulheres em trânsito, deslocando-se, assim como o capital, para paragens mais
promissoras. A velocidade na tomada de decisões, o não conformismo que cria a
impressão que se estabelecer em um lugar é estagnar-se, é a retirada voluntária e
incompreensível da vida corrente dos proponentes ao sucesso. O cenário descrito é árido
para pensar sobre identidade. Se tudo muda tão rápido nada se fixa. Ainda mais se
considerarmos a individualização profunda com a qual lidamos na modernidade líquida.
A identidade é o “calcanhar de Aquiles” de um mundo que fez da desterritorialização,
da disponibilidade e do deslocamento seus atributos fundamentais, “fixar-se muito
fortemente, sobrecarregando os laços com compromissos mutuamente vinculantes, pode
ser positivamente prejudicial, dadas as novas oportunidades que surgem em outros
28
lugares” (BAUMAN, 2001: 21). Contudo, o desejo de pertencimento a um solo ou a um
grupo permanece no espaço das volições humanas, mesmo que seja no inconsciente de
homens e mulheres, tal desejo está em confronto com o corte incondicional de todos os
vínculos. É a ambiguidade depositada no âmago da contemporaneidade.
Num ambiente de vida líquido-moderna, as identidades talvez sejam as encarnações mais comuns, mais aguçadas, mais profundamente sentidas e perturbadas da ambivalência. É por isso, diria eu, que estão firmemente assentadas no cerne da atenção dos indivíduos líquido-modernos e colocadas no topo de seus debates existenciais (BAUMAN, 2005a: 38).
Constituir uma identidade pode ser problemático, mas também é visto como
forma de resistência, como no caso de nacionalismos que buscam enfrentar o poder
avassalador da globalização ou a identidade de grupo, uma maneira de vencer a solidão,
angústia ou mero tédio da rotina. Apesar que tais tentativas geraram o atual clima de
tensão assistidos na Europa e em outros lugares do mundo: um ambiente carregado de
revolta, xenofobia e fascismo. Uma tensão cravada no cerne da disputa entre a
territorialidade e o poder abstrato extraterritorial. A vida líquida incorpora essa
ambivalência e administra a tensão dessa oposição sem, no entanto, extinguir a chama
do ardor pela padronização. Mas a identidade (não considerando o propósito de
resistência) pode ser um entrave para a compreensão de um mundo que se hibridiza,
entrecruza modos de viver, de criar, de habitar diversos; uma multiplicidade que emerge
na construção de mestiçagens que se encontram e mobilizam novos conflitos e afetos.
Esse impulso identitário pode apresentar-se como solução para aplacar a insegurança
moderna líquida dos riscos ou ser o colapso de um mundo que começa a perceber a
mutação dos modos de vida como processo de convívio com as diferenças. Essa é a
ambivalência derradeira com a qual o mundo contemporâneo terá de lidar. Por outro
lado, as diferenças são tratadas pelo capitalismo como mercadorias no jogo estratégico
do consumo ao ponto de atingir a indiferenciação dos seus locais de origem.
A hibridização isola o híbrido de toda e qualquer linha de parentesco monozigótico. Nenhuma linhagem pode alegar direitos exclusivos de propriedade do produto, nenhum grupo de parentesco pode exercer um controle meticuloso e nocivo sobre a observância de padrões, e nenhum se
29
sente obrigado a jurar lealdade a sua doutrina hereditária (BAUMAN, 2007b: 42).
Bauman nos recorda que a hibridização acaba por ser autônoma, consolidando
uma prática que não a torna independente, mas um negócio associada a uma legitimação
da extraterritorialidade. É uma nova luta e um antigo percalço que desafia a elite global
ao mesmo tempo em que serve a ela.
De qualquer modo, parece conveniente lembrar que, para o antropólogo indiano
Homi K. Bhabha, o hibridismo se assenta na chance de por em prática uma tradução que
codifique os contatos culturais atrelados à dinâmica, apropriações, conflitos que tais
encontros geram. Há, na verdade, uma zona fronteiriça pulsante na qual cultura
hegemônica e cultura subalterna, colonizador e colonizado se friccionam aguardando
uma tradução.
Se o hibridismo é heresia, blasfemar e sonhar. Sonhar não com o passado ou o presente, e nem com o presente contínuo; não é o sonho nostálgico da tradição nem o sonho utópico do progresso moderno; é o sonho da tradução, como sur-vivre, como “sobrevivência”, como Derrida traduz o “tempo” do conceito benjaminiano da sobrevida da tradução, o ato de viver nas fronteiras (BHABHA, 1998: 311).
O antropólogo Robert Young, concordando com Bhabha, defende que o
hibridismo se posta num setor intersticial, é uma produção inquieta. Young ressalta que
o combate contra a hibridação é o resultado de uma política implícita da
heterossexualidade, ou seja, uma batalha contra a heterogeneidade para manter uma
uniformização (assim como o binarismo) das produções culturais/sociais/afetivas.
Tanta a hibridização como a crioulização envolvem fusão, a criação de uma forma nova, que possa então ser colocada contra a forma antiga, da qual a nova fora parcialmente criada (...) uma heterogeneidade, uma descontinuidade radical, a revolução permanente das formas (YOUNG, 2005: 30-31).
.
30
Entretanto, Bauman detecta que a “cultura híbrida” – global – tem um escopo
extracultural. Assim carece de uma crítica das formas de apropriação e vivência, que
significa que ela não se compromete e consome tudo o que lhe oferecem sem entender
os conflitos dos cruzamentos culturais. “Permitam-me repetir: a imagem da ‘cultura
híbrida’ é um verniz ideológico sobre extraterritorialidade alcançada ou programada”
(BAUMAN, 2007: 46). A elite global se desloca com a leveza como “insígnia” sem na
realidade promover um intercâmbio cultural.
Mas, em outro sentido, podemos considerar o deslocar-se, leve ou não, uma
aspiração a ser livre, um estímulo à criatividade que remove barreiras do tipo que as
obrigações com as raízes culturais ou as regras de identidade impõem. Mas apenas a
elite extraterritorial desfruta com tranquilidade (agora com a ameaça do terrorismo a
assombrar o seu fluxo) e prazer de tal deslocamento. Bauman percebe na literatura um
dos referenciais mais evidentes do esvaecimento das fronteiras. Ou da possibilidade de
uma abertura legítima para as diferenças existentes, por não se restringir a um único
universo linguístico, por buscar em distintas disciplinas sociais base para o enredo, para
a investigação da condição humana, além de lançar mão de recursos vistos com
desconfiança pelo meio acadêmico, como a intuição, a imaginação, a especulação dos
efeitos de uma causa. O que gera no meio acadêmico a padronização de diretrizes que
visa mais a competição pelos recursos financeiros e uma vigilância sobre a criatividade
que incentivos aos projetos que contestam e enfrentam esse estado de coisas.
Bauman vê em escritores como Beckett, Derrida, Borges entre outros, posturas
que não se prendem a preconceitos e que articulam relações que na vida corrente estão
interditas.
George Steiner, um crítico cultural contundente e altamente perspicaz, apontou Samuel Beckett, Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov como os mais importantes escritores contemporâneos. O que unia, a seu ver esses autores em tudo mais distintos, colocando-os acima dos demais, era o fato de todos eles serem capazes de se movimentar com facilidade em vários universos linguísticos diferentes. Essa contínua transgressão de fronteiras lhe permitia espiar a inventividade e a engenhosidade humanas por trás das sólidas e solenes fachadas de credos aparentemente atemporais e instransponíveis, dando-lhes assim a coragem necessária para se incorporar intencionalmente à criação cultural, conscientes dos riscos e armadilhas que sabidamente cercam todas as expansões ilimitadas (BAUMAN, 2005a: 21).
31
É certo que a literatura tem um alcance modesto (ao menos a “alta literatura” ou
a literatura que não esteja voltada para o mercado editorial). Sua influência ocorre
menos de elaborados planos de divulgação que de um encontro fortuito entre leitor e
texto. No entanto, ela aponta um caminho que evita precipitações no que concerne a
valores morais, culturais e artísticos, como nos revela Bauman a respeito de suas
inspirações sociológicas suscitadas pela literatura.
Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muitos mais insight sobre a substância das experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo, aprendi a não perguntar de onde determinada ideia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição – assunto tanto da sociologia como das belles-lettres (BAUMAN, 2004b).
A identidade pode ser uma insídia se for vivida como uma couraça que
impossibilite experimentações e o livre curso de permutas culturais. Aí reside o perigo
da defesa enfática da identidade. Assim como não observar a dilaceração dela neste
tempo líquido. Um movimento marcado pela contradição se estabelece: a identidade
garante a liberdade de definir quem nós somos ou por causa desta mesma definição
pode ser a catalisadora de conflitos que expugnem genuínas possibilidades de conhecer
modos de vida distintos.
Ser leve é uma qualidade primaz da atualidade. Na qual a identidade parece ser o
excesso de bagagem. Movimentar-se em aceleração máxima sendo que o destino
inventado para os homens e mulheres põe em xeque o propósito da autodefinição e a
associação a objetivos compartilhados, “A fragilidade e a condição eternamente
provisória da identidade não podem mais ser ocultadas. O segredo foi revelado. Mas
esse é um fato novo, muito recente” (BAUMAN, 2004b). O que está se articulando com
a exigência de leveza do nosso deslocamento e a porosidade das fronteiras é um mundo
que vende a novidade como sua meta central, que se apresenta como mutante, no qual
antigas ferramentas que alimentavam o nosso processo cognitivo pouco contribuirão
para a sua compreensão.
1.3. A desforra dos nômades
32
Fronteiras vigiadas, fortificadas, alfândegas reforçadas para barrar o indesejável.
A modernidade assistiu ao crescimento do controle pelos Estados-nação do seu
território constituído. O medo do “estranho”, do forasteiro que acompanhou a Idade
Média, e é um temor humano desde o princípio de sua trajetória, recebeu uma prática de
policiamento consoante à ascensão da técnica. Linhas limítrofes imaginadas ganharam
pontos de vigilância estratégicos, foram demarcadas para separar o solo ambicionado
como próprio dos Outros, os diferentes e possíveis invasores, talvez, ainda inimigos não
declarados; somente aqueles com os quais temos identidade deveriam ter autorização
para ultrapassá-lo. “Como o propósito da separação territorial é a homogeneidade do
bairro, a ‘etnicidade’ é mais adequada que qualquer outra ‘identidade’ imaginada”
(BAUMAN, 2001: 124). A identidade e a “etnicidade” postulavam condições para criar
um "nicho seguro” que deveria ser inviolável para estranhos e protegidos contra
distúrbios que colocassem em dúvida a constituição do território.
A modernidade sólida, época da expansão na qual o tamanho, o volume, a
densidade eram atributos de qualidade (desde que, obviamente, tivessem sua eficácia
certificada), procurou conquistar o espaço até então fragmentado, distante, indomável.
A questão do território não fugiu a essa obsessão. Inúmeros países que formam o mapa
mundi atual, há um século, viviam divididos em regiões, principados, ilhas, mas o
impulso agregador de forjar uma identidade – ou a justificativa para a dominação
política por um grupo – buscou integrar locais ímpares que sustentavam culturas, leis,
modos de vida distintos em um único bloco que modificaria o quadro geopolítico.
Assim foi com a Itália4, a Alemanha5, e, mais tarde, o caso emblemático da Iugoslávia6.
Oposições marcadas pelas diferenças étnicas eram reprimidas em nome de uma unidade
nacional baseada na partilha do poder com maior ou menor grau de concentração nas
mãos de uma etnia do que de outra, o que ocasionou, já na pós-modernidade ou segunda
modernidade, ou na nomenclatura que se queira assumir, a eclosão dessas diferenças e
os intensos banhos de sangue vistos em Ruanda, Bósnia, Timor Leste, etc.
4 Até o ano de 1860, a Itália passou por vários conflitos regionais e com países europeus, como a França, na tentativa de constituir um território que integrasse todos os reinos, Lombardia, Piemonte, Sicília etc. Em 1861, o Parlamento proclamou formalmente o reino da Itália. 5 A Alemanha, após séculos de embate, perda e anexação de territórios, tem em janeiro de 1871, pelo Rei Guilherme I da Prússia, sua fundação, constituído por 25 estados. 6 A Ex-República Socialista Federativa da Iugoslávia dissolveu-se mergulhada numa guerra civil étnica a partir do ano de 1990. As várias etnias que a compunha (croatas, sérvios, bósnios, macedônios, montenegrinos, eslovenos e albaneses) entraram em choque com a crise do socialismo e reviveram velhas feridas que eclodiram em cenas de brutalidade indescritíveis.
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O território estava entre as mais agudas obsessões modernas e sua aquisição, entre suas urgências mais prementes – enquanto a manutenção das fronteiras se tornava um de seus vícios mais ubíquos, resistentes e inexoráveis. A modernidade pesada foi a era da conquista territorial. A riqueza e o poder estavam firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra. [...] Os impérios se espalhavam, preenchendo todas as fissuras do globo: apenas outros impérios de força igual ou superior punham limite à sua expansão. (BAUMAN, 2001: 132).
Para tornar a meta da conquista do espaço algo plausível fez-se necessário tomar
posse, explorar, enfim, fixar-se, ocupar o território e assegurar o seu desenvolvimento,
segundo a vontade de seus “desbravadores”. Assentar-se no local era a estratégia para a
colonização, corporificação, invenção de uma entidade nacional entre dominador e
dominado. Para concretizar tais propósitos extinguir o nomadismo como modus vivendi
era o passo seguinte e mais trabalhoso. O sedentarismo provocava uma cisão na ideia
nômade de movimento, descoberta e congregação, de algo novo a cada deslocamento.
Alquebrar o espírito nômade submetendo-o à inclinação da modernidade: a
exploração de recursos (naturais, minerais, humanos), estabelecer instituições
arraigadas, postos de comando e vigilância eram manobras postas em prática com
relativo grau de sucesso. Os Estados-nação cumpriam essa função de legitimar a
existência de determinado espaço com um oficial sentimento de engajamento nacional.
O nômade, que não possui o charme do aventureiro, do desbravador de novas terras, de
espaços vazios, se viu preso, desse modo, a uma ordenação que obstruiu seu livre
trânsito, pois tal atuação pertencia às missões especiais do Estado (se bem que a
literatura exaltava os homens que zingravam os mares em busca do extraordinário, do
incomum). Sintoma de pré-modernidade, estigma de selvageria, de incivilidade, não
culto, o nômade fora relegado aos confins do imaginário exótico e do atraso científico.
A contestação a respeito dos valores da modernidade e da proposta de uso
irrestrito e “imaculado” de uma lógica racional – e se eles haviam redundado num
fracasso cujos efeitos denunciavam seu caráter autoritário e de preocupação evidente
com a técnica e não com o social – coincidiram ou fomentaram o descalabro do
sedentarismo é uma questão que precisa levar em consideração fatos que envolvem o
quanto os poderes atuais são realmente nômades e se o nomadismo passou a ser prática
regular entre todas as populações ou se apenas a representação econômica, seus líderes,
34
planejadores e sócios, enfim, uma elite global, aproveitam sem perturbações as
possibilidades de deslocamentos.
A economia mundial explorava o potencial transnacional do sistema financeiro
dirigido pelo espírito liberal de pouca intromissão estatal e mercado livre de comércio.
As multinacionais começaram a se expandir pelo globo terrestre reconfigurando
cenários políticos, modificando as regras locais de gerir os negócios. As fronteiras
territoriais esvaíram-se, assim que o capital, cujo poder é abstrato, iniciou o circuito sem
deixar deter-se pelo brado das instituições sedentárias.
Neste cenário, a recalcitrância do nomadismo, que sempre esteve presente ao
longo da modernidade sólida, tornou-se manifesta. A modernidade líquida compreende
uma versão do estilo de vida nômade, que passou a caracterizar, na verdade, a
extraterritorialidade de uma elite (que incorporou o não sedentarismo de tribos de
outrora. A elite global evita o assentamento, mas não se apropria – culturalmente – dos
locais por onde passa a ponto de mudar seu modus vivendi).
A nova estrutura de poder global é operada pelas oposições entre mobilidade e sedentarismo, contingência e rotina, rarefação e densidade de imposições. É como se o longo trecho da história que começou com o triunfo dos sedentários sobre os nômades estivesse chegando ao final. A globalização pode ser definida de muitas formas, e essa da “vingança dos nômades”, é tão boa quanto as outras, se não melhor (BAUMAN. 2008a: 49).
O exercício do poder na fase sólida da modernidade exigia a presença constante
e maciça em solo da representação desse poder com suas regras severas que
sustentassem seu direito de arbítrio sobre os comandados. Tal poder deveria ser
corporificado para atuar com mais precisão. Ocupar o espaço e viver o confronto in loco
faziam parte do “pacote” da dominação. Ambos os lados estavam atrelados e imersos
nessa interdependência. Na vida líquida da sociedade moderna líquida o poder viaja
leve, preza a mobilidade, não se prende a “regulamentos normativos”, se desloca,
investe em uma região, depois a abandona por outra mais convidativa e menos
intransigente. O poder que se desloca tão peremptoriamente neste tempo líquido,
dispensou as regras que visavam normatizar as relações de mercado, políticas e
culturais, pois sendo o poder atual abstrato, a sua dependência das representações locais
passa por um processo de abolição (que para alguns já está efetivado).
35
A nova hierarquia do poder está marcada, no topo, pela capacidade de se mover com rapidez e sem aviso, e na base, pela incapacidade de diminuir a velocidade desses movimentos, que dirá pará-los, associada à sua própria imobilidade. Fuga e evasão, leveza e volatilidade, estas características substituíram a presença pesada e ameaçadora como técnica principal de dominação (BAUMAN, 2008a: 49).
A deterioração dos sólidos proporcionou a ascensão de uma nova elite que
rompe obstáculos relacionados às fronteiras com a mesma facilidade que o capital
flexível e móvel. Nesse último caso, cortesia da tecnologia que possibilita com um
simples toque de tecla a transferência de milhões de dólares, marcos alemães, libras
esterlinas, reais de um extremo do mundo a outro.
A elite extraterritorial tem a sua disposição a evasão, o deslocamento contínuo, a
aceleração, e assim, dita a velocidade das ocorrências econômicas, culturais, políticas ao
redor do planeta. Os demais, que não desfrutam da liberdade consagrada à elite, são
prisioneiros do espaço ou vivem o sonho de uma existência menos dura lançando-se no
fluxo migratório. As fronteiras, para esses, permanecem como barreiras instransponíveis
que se reforçam cada vez mais e se empenham em conter o aumento do êxodo ilegal e
da ameaça de “profanação” da identidade. Uma dupla ação de policiamento e promoção
de humilhações.
Gilles Deleuze e Félix Guattari dedicarem-se a um amplo e original estudo sobre
a relação entre o sedentarismo e a vida nômade. Estes demarcaram a partir dessa relação
conflituosa pontos de oposição entre o instituído e o não reconhecido; o tradicional e o
marginal; a totalidade e o fragmento; o espaço estriado e o espaço liso. Esse jogo
complexo e tenso é a disputa entre a ciência sedentária, representada pelo Estado, e a
ciência nômade, uma máquina de guerra, que se localiza no polo oposto do aparelho
estatal, “[...] essa ciência nômade não para de ser ‘barrada’, inibida ou proibida pelas
exigências e condições da ciência de Estado” (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 20).
Porém, essa ligação estabelece atritos que acarretam resistência, perseguição,
incorporação, modificação e posterior reinício do ciclo. O nômade segue seu curso,
experimenta e como máquina de guerra prossegue forjando, trilhando caminhos que
revelem fórmulas, que não consagrem paragens seguras. O nomadismo é um estar-em-
36
direção daquilo que não se conclui. É um processo de descoberta enquanto não engessa
a descoberta em padrões que o definam. É uma fuga dos métodos de reprodução do
sedentarismo.
Reproduzir implica a permanência de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem. Mas seguir é coisa diferente do ideal de reprodução. Não melhor, porém outra coisa. Somos de fato forçados a seguir quando estamos à procura das “singularidades” de uma matéria ou, de preferência, de um material, e não tentando descobrir uma forma; quando escapamos a força gravitacional para entrar num campo de celeridade; quando paramos de contemplar o escoamento de um fluxo laminar com direção determinada, e somos arrastados por um fluxo turbilhonar; quando nos engajamos na variação contínua das variáveis, em vez de extrair delas constantes, etc. E não é em absoluto o mesmo sentido da Terra: segundo o modelo legal, não paramos de reterritorializar num ponto de vista, num domínio, segundo um conjunto de relações constantes; mas, segundo o modelo ambulante, é o processo de desterritorialização que constitui e estende o próprio território (DELEUEZE e GUATTARI, 1997: 33).
O deslocamento nômade perpetua o traço de composição do território. A evasão,
não sendo fuga, mas o avanço constante, o estupor pelas variáveis, desterritorializa
sucessivamente, cunhando um espaço liso que é a porosidade das fronteiras, seja o caso
das fronteiras geográficas ou das fronteiras entre as ciências.
Para Deleuze e Guattari, a vida nômade é um intermezzo. Um estar simultâneo:
desterritorializado em vias de reterritorializar; num espaço liso que acaba por encontrar
o estriado do aparelho estatal evadindo-se em paragens. Intervalos que, no entanto, não
o define. O nômade movimenta-se num espaço aberto, ao contrário do sedentário, capaz
de atuar apenas num espaço fechado obstruindo significantemente as passagens de um
lado para o outro. “O espaço sedentário é estriado, por muros, cercados e caminhos
entre os cercados, enquanto o espaço nômade é liso marcado apenas por ‘traços’ que se
apagam e se deslocam contra o trajeto” (Ibidem: 43).
O nômade assusta o sedentário por ser sua antítese, seu reflexo distorcido no
espelho, enfim, seu pesadelo, apesar de ser seu complemento necessário. Capaz de
perturbar a ordem, o nômade não é um desordeiro, mas a escapatória de um mundo
petrificado em trâmites burocráticos e legitimado por formulários e hierarquias
monolíticas.
O sedentário constituído pelas obsessões modernas refugiava-se no
assentamento de um espaço fechado. O nômade de outrora, observado pelos filósofos
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franceses, se movimentava de modo intensivo. O nomadismo líquido moderno, própria
de uma elite extraterritorial, como aponta Bauman, tem como atributo central a
velocidade e a velocidade é extensiva. O nômade que transita no espaço aberto adota a
pausa como processo. No mundo líquido pausas são proibidas, são erros crassos ou
manifestação da nossa fragilidade latente.
Na sociedade moderna líquida a desterritorialização é vivenciada como aval para
romper fronteiras. Aval para revalidar a imagem de homens e mulheres sem
ancoradouros emocionais, sem problemas futuros para escapar as dissoluções dos
empecilhos que poderão impedir um deslocamento porvir; o nomadismo da sociedade
líquida se diferencia assim do nomadismo do espaço liso porque, em verdade, não
planta a semente da transgressão em coisa alguma. A elite global viaja e não se enraíza
por motivos que são mais econômicos que culturais ou identitários. Como defende o
sociólogo Renato Ortiz, no mundo contemporâneo os ritos de deslocamentos são
invocados com frequência, o que reatualiza os objetos e as imagens de um mundo
transnacional cujo vazio do tempo envolve seus viajantes.
A desterritorialização prolonga o presente nos espaços mundializados. Ao nos movimentarmos percebemos que nos encontramos no “mesmo lugar”. Neste sentido, a ideia de viagem/saída de um mundo determinado encontra-se comprometida. Desde que o viajante, nos seus deslocamentos, privilegie os espaços da modernidade-mundo, no “exterior” ele carrega consigo seu cotidiano. Ao se deparar com um universo conhecido, sua vida “se repete”, confirmando a ordem das coisas que o envolvem (ORTIZ, 1994: 133).
A elite global suplanta o nomadismo, pois para ela, por se definir como
extraterritorial, qualquer local pode ser um lar, pelo motivo de tudo descaracterizar e
dar-lhe “face” comum, que é de seu agrado, lembrando a casa que deixou ou um lugar
admirável pelo exotismo. Assim, negando ao nômade a desterritorialização descrita por
Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização. É a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nômade aí encontra um território. [...] A terra não se desterritorializa em seu movimento global e
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relativo, mas em lugares precisos, ali mesmo onde a floresta recua, e onde a estepe e o deserto se propagam (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 44).
O cinema do alemão de origem turca Fatih Akin7 emana atualmente esse
sentimento de desterritorialização com criatividade e densidade no que tange as relações
socioculturais. Por mais que se fale, nesse caso, em migração e não propriamente em
nomadismo. O importante aqui é o deslocamento de um ponto para o outro. Um fluxo
que retorna ao mesmo no intuito de se encontrar, assim, engendrando o novo.
Especialmente em Contra a Parede (Gegen die Wend, 2004) e Do Outro Lado (Aud der
Anderen Seite, 2007). Em ambos os filmes, as personagens centrais são cidadãos turcos
ou de descendência do antigo Império Otomano vivendo na Alemanha. Pensamos em
diferenças culturais, choque de civilizações e relações humanas. Porém, o que emerge
com mais densidade é a sensação de zona intermediária que os protagonistas se
encontram. Nem turcos nem alemães. A identidade é rarefeita, suspensa, impedida pela
aridez da convivência entre a tradição e a permissividade que desejamos extrair do
novo. Desterritorializados é na recalcitrância que encontram a possibilidade de efetivar
o trânsito que proporcionarão a eles algo próximo a um lugar no mundo. Contra a
Parede nos fala do encontro que se dá por meio de um acordo e que levará dois seres
desterritorializados a se reterritorializar para fugir da fúria que está à espreita. Do Outro
Lado trata de não encontros nos quais a desterritorialização está implicada fortemente
nas relações que são traçadas e no modus vivendi que aparece como um algoz
incontornável.
São filmes que nos provocam instigando perguntas sobre a fluidez
contemporânea, o exílio íntimo e a dissolução das fronteiras que não apagam
necessariamente os conflitos entre as culturas mesmo que eles não sejam declarados.
O nomadismo é a constância do sentimento de desterritorialização que comporta
a pausa e o movimento, que cria para instituir o que não para de se constituir em um
espaço aberto. “A determinação primária do nômade, com efeito, é que ele ocupa e
7 Críticas a respeito dos filmes de Fatih Akin podem ser lidas no site
http://www.madamelumiere.com.br/2010/01/contra-parede-gegen-die-wand-2004.html; http://www.criticos.com.br/new/artigos/critica_interna.asp?secoes=&artigo=1532
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mantém um espaço liso: e sob este aspecto que é determinado como nômade (essência)”
(DELEUZE e GUATTARI, 1997: 80).
A modernidade líquida assume características nômades, mas as vivências que
engendra não se constituem em um espaço aberto, criativo de confronto, de inserções
benevolentes em defesa de um trânsito igualitário e sem a rispidez da vigilância
especializada em fronteiras. A modernidade líquida ainda sustenta e parece renovar pré-
conceitos contra o fluxo migratório. A sociedade moderna líquida aproxima-se, no final
das contas, da esquizofrenia. Sendo que o capitalismo que a motivou, empreendeu um
circuito de emigração que é contínua, no qual o êxodo é promessa de dias mais felizes e,
ao mesmo tempo, permite a imposição de barreiras para esse fluxo. O suposto
nomadismo atual não é uma via de mão dupla.
Enquanto a elite extraterritorial aproveita a mobilidade adquirida, as
populações da Terra ficam a disposição da vontade dessa elite de investir, gerar lucro e
firmar compromisso em seus territórios. A tarefa das populações que não possuem o
passaporte exclusivo para o deslocamento sem desconfiança é a de encontrar formas de
subsistir conforme os contornos de funcionamento das empreitadas contemporâneas
como fazem os “descolados” nesta modernidade leve. Como escreve Lúcia Santaella
(2007: 135), “Isso é possível porque existir em culturas líquidas, tal como em um jogo
performático, é aprender a se multiplicar em identidades deslizantes”.
É preciso conviver com o paradoxo e a contradição que parecem ser o estado de
todas as coisas na contemporaneidade.
1.4. A novidade que se expira em alta velocidade
Na modernidade líquida, a velocidade é essencial para a obtenção do destaque
cobiçado. Para ser exato, a extensão dessa velocidade que a elite extraterritorial usufrui
para fazer da mobilidade seu recurso “proeminente”. Quanto mais amplo for seu
resultado, mais competitiva será, e mais facilmente se logrará a dianteira obtida sobre a
concorrência, conforme dita as regras do atual poder abstrato. É imperativo, nesse jogo
que descarta os indecisos – e os que têm inúmeros obstáculos para efetivar seu
40
deslocamento –, sobressair-se pela mobilidade. “O sedentarismo, em particular, o
sedentarismo sem escolha está rapidamente deixando de ser uma vantagem para se
transformar num risco” (BAUMAN, 2008a: 58). Estar fixado, arraigado num local na
“cultura da aceleração” permite que prejuízos sejam acumulados no fim do expediente.
“É um sinal de privilégio viajar levemente e evitar apego duradouro a possessões; é um
sinal de privação estar carregado de coisas que sobreviveram ao seu uso previsto e ser
incapaz de separa-se delas” (Idem). Na modernidade líquida, privilégio e privação
carregam as marcas de uma vida pródiga ou de uma existência de dificuldade, segundo
a aptidão de viver de acordo com a flexibilidade e a incerteza, “qualidade” e
consequências principais, respectivamente, da fase líquida da modernidade.
A vida líquida, dessa maneira, tem afinidade estrita com o consumo. Ser leve
tem como propriedade a aquisição em grande quantidade, mas, também, a rapidez em
descartá-las. “Do princípio ao fim recai em esquecer, apagar, desistir e substituir”
(BAUMAN, 2007b: 9). Um modo aparentemente contraproducente de viver registra
milhares de adeptos ao redor do globo terrestre: acumular e descartar são os atos
controversos que dão sustentação ao discurso de que comprar é o supremo referendo à
ascensão social conquistada.
A sociedade moderna líquida é chamada por Bauman de “indústria de
eliminação de resíduos”. Quanto mais rápido os produtos colocados à disposição de
clientes ávidos caem em desuso, melhor é para os responsáveis por alimentar essa
fábrica de desejos. As mercadorias tornadas desperdícios são removidas e substituídas,
sua eliminação exige depósitos adequados (um dos grandes problemas contemporâneos
está justamente em que destino dar a esses resíduos). A sociedade contemporânea
rubrica, dessa forma, seu status de produtora incomensurável de detritos não totalmente
danificados.
Em uma sociedade na qual as novidades expiram em alta velocidade a pesquisa
tecnológica estará sempre em voga e com isso a criatividade e a originalidade.
Notebooks, MP4, Tablets: a técnica consagra a miniaturização dos objetos. Na vida
líquida, a leveza e a velocidade são hipervalorizadas. Por isso, pensar em termos de
fragmentos faz a diferença. O grosso dessa adição fica por conta do lucro dos que
movimentam o capital. As riquezas vultosas existem, resistem e aumentarão com o
passar dos anos. Não há nada no horizonte dos que muitos consideram como era pós-
moderna que indique o contrário.
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Na sociedade moderna líquida, o consumo é a pedra de toque dos que aspiram à
integração. O poder de compra equipara-se em relevância a luta por direitos básicos
como educação e saúde. O poder aquisitivo é fator de distinção social. Valemos pelo
que compramos e não pelo que somos. Num tom cínico há quem defina, “Somos o que
compramos”. Talvez comprar não tenha o mesmo naipe da influência política, mas dá
acesso a portas que se manteriam fechadas ou nos deixariam perdidos. O consumo em
alta voltagem tem o dom da elevação, não moral, se não aquela das relações pautadas no
que se possui – a mera impressão de felicidade, “[...] o comprar compulsivo é também
um ritual feito à luz do dia para exorcizar as horrendas aparições da incerteza e da
insegurança que assombram a noite” (BAUMAN, 2001: 96).
O ritual continua diariamente. O jogo não pode parar: novos impulsos, novas
aquisições, novos desperdícios. Permanecer na linha não aplaca a tríade tentacular da
vida líquida, a incerteza, a insegurança e a falta de proteção. Vivemos no abandono e o
consumo é o sucedâneo do prazer que não encontramos nas outras atividades humanas:
as laborais, as sentimentais, os lazeres. Apesar de perseguirmos, mesmo que seja no
inconsciente, um aceno de realização duradoura, não nos deparamos com essa sensação
no consumo.
Qualquer interação dos atores os afastaria das ações em que estão
individualmente envolvidos e constituiria prejuízo, e não vantagem, para eles. Não
acrescentaria nada aos prazeres de comprar e desviaria corpo e mente da tarefa.
A tarefa é o consumo, e o consumo é um passatempo absoluta e exclusivamente individual, uma série de sensações que só podem ser experimentadas – vividas – subjetivamente. As multidões que enchem os interiores dos “templos do consumo” de George Ritzer são ajuntamentos, não congregações; conjuntos, não totalidades. Por mais cheios que possam estar os lugares de consumo coletivo não têm nada de “coletivo”. Para utilizar a memorável expressão de Althusser, quem quer que entre em tais espaços é “interpelado” enquanto indivíduo, chamado a suspender ou romper laços e descartar as lealdades (BAUMAN, 2001: 114).
Esbarramos com conhecidos, encontramos amigos, mas o interlúdio entre os atos
de compra precisa ser interrompido. Mesmo esses encontros que suspendem
temporariamente a aquisição de mercadorias nos mantém em contato com o consumo,
pois os usufruímos nas praças de alimentação dos shoppings centers ou nos espaços de
42
recreação infantil. No templo do consumo até a distração tem relação com a compra de
material ou serviço.
O flâneur que percorria a cidade e a conhecia em seus mais recônditos segredos
fora substituído pelo consumidor. O que era um passeio sem propósito definido
transforma-se em obrigação de comprar. O andar a esmo tornou-se uma visita
concentrada, localizada. O lugar exato na hora conveniente para saciar um novo desejo
de aquisição. Ou quase. Na verdade, resvala em algo semelhante à satisfação, mas que
nem chega a ser um simulacro. No entanto, tal satisfação tem que ser imediata e não
aceita adiamento. E caminhamos à procura desse prazer que se esvai assim que
alcançado. Bauman nos lembra de que a vida cercada pelo consumo na qual estamos “é
orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis – não mais
por regulação normativa” (BAUMAN, 2001: 90). Olhamos a tela do aparelho televisor,
os outdoors, as vitrines, as imagens que navegam na Internet e se fixam em nosso
monitor, somos seduzidos por uma profusão de tentações imagéticas, imagens que têm a
missão de nos capturar, de realizar um encontro com o nosso afã de possuir. Juremir
Machado Silva nos recorda que se o propósito de nos seduzir das agências de promoção
do consumo é bem sucedido, isto ocorre porque estamos dispostos a embarcar nesta
sedução.
A sedução como a paixão, alimenta-se da fome. Vive do excesso de falta. Nutre-se da vertigem pelo nada. Alimenta-se de si mesma numa espiral de gasto inútil e sem retorno. A manipulação, a persuasão e a sugestão publicitária servem sempre a uma ordem prévia, a um poder controlador e disciplinador. A sedução é inexoravelmente subversiva (SILVA, 2006: 27-28).
As imagens prorrompem um universo que dialoga com o imaginário e que se
corporifica no ato de consumo. Homens e mulheres contemporâneos são movidos por
desejos, se confundem com os objetos que cobiçam, “Na vida líquida, a distinção entre
consumidores e objetos de consumo é, com muita frequência, momentânea e efêmera, e
sempre condicional” (BAUMAN, 2007b: 18). E esses desejos estão destinados a tornar-
se prazer nos shoppings centers, que são, como Bauman constata, lugares de ação e não
de interação. Uma tentativa de preencher um vazio existencial. Mesmo que tal sensação,
não seja, propriamente, diagnosticada e racionalizada.
43
As novidades oferecidas com seu apelo sedutor, traduzido em imagens,
engendram escolhas às quais não temos escapatórias, a não ser enlaçando a opção que
desfila a nossa frente insinuantemente, apresentada como forma de obter felicidade.
Podemos adquirir inúmeras mercadorias, pois, afinal há maneiras de facilitar as
oportunidades de correr o risco aos recorrermos ao empréstimo bancário ou as ofertas
das lojas, das agências de viagens, das imobiliárias. Escolher mediante tantas opções é
um exercício trabalhoso de contemplação. Mas de uma reflexão que mesmo que
ponderada deve ser rápida. O que descartar como não mais necessário em determinado
momento, parece ser uma dúvida brutal. A inquietação causada pela variedade logo se
dissipa com a aquisição do produto eleito. A mercadoria preterida pode ser, quem sabe,
o novo objeto de cobiça em uma próxima rodada que não tarda a chegar. O desprezado
tem uma chance desde que não seja repetição. E, caso seja, tem que aparentar ser uma
cópia requintada. As novidades são tantas que logo que escolhemos uma delas o seu
poder de encantamento se transforma em monotonia.
Estes têm uma limitada expectativa de vida útil e, uma vez que tal limite é
ultrapassado, se tornam impróprios para o consumo; já que "ser adequado para o consumo" é a única característica que define sua função. Eles são totalmente impróprios e inúteis. Por serem impróprios, devem ser removidos do espaço da vida de consumo (destinados à biodegradação, incinerados ou transferidos aos cuidados das empresas de remoção de lixo) a fim de abrir caminho para outros objetos de consumo, ainda não utilizados (BAUMAN, 2007b: 17).
Até as “vedetes” da indústria do entretenimento, como as nomeou Edgar Morin,
tem prazo de validade para se extinguir, caso sua aparição esteja sedimentada na
notoriedade e não no sucesso originado de algum talento ou compleição para
autopromoção. Sina de muitos participantes do Big Brother Brasil que desaparecem
com o fim do confinamento, após a eliminação supostamente conduzida pela audiência
do programa. Novos desejos se promulgam em novas necessidades ou ganham tal
status. O que se pode apreender com nítida certeza é que a sociedade de produtores de
antanho converteu-se na sociedade de consumidores, cuja preocupação se estende entre
avaliar ofertas e um “comprar” compulsivo; uma sociedade moderna líquida de
consumidores. Nela as novidades se expiram antes que o seu real valor se realize por
44
completo. Dessa forma, nem a incerteza nem a insegurança podem deixar o palco da
vida contemporânea.
CAPÍTULO II
Globalização: ruínas da ideologia e fronteiras friccionadas?
45
Para o eminente geógrafo brasileiro Milton Santos, no que concerne a
globalização, há três mundos num só, “O primeiro seria o mundo tal como nos fazem
vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como é: a globalização
como perversidade; e o terceiro mundo como ele pode ser: uma outra globalização”
(SANTOS, 2006: 18). Entre estes três aspectos de um mundo compreendido como
universal está à distância que vai dos processos de dominação amparados por fantasias
que constituem um fluxo livre de mercadorias aos dos sonhos de inclusão e justiça
social proveniente da igualdade entre nações.
Milton Santos dedicou a vida a descortinar os eventos dos poderes monopolistas
ou oligárquicos que se respaldaram no capitalismo abstrato para difundir sua ideologia
de quanto mais atenção à economia maior a possibilidade de advir políticas de
igualdade. O pensador brasileiro denuncia esse sistema ideológico do capital que está
sempre à procura de paragens mais convidativas, ou seja, onde haja menos controle
estatal, mais isenção de impostos e falta de rigor na remessa de dinheiro para o exterior.
E a globalização não pode conter a crise gerada por essa ideologia, pois ela é o motivo
dessa crise, que mais se agudiza conforme novas metas são planejadas para garantir o
aumento do lucro e a circulação do dinheiro. A única crise que a globalização deseja
evitar é a financeira; crise que justamente incide preocupação aos grandes agentes
econômicos – banqueiros, empresários, negociantes de toda espécies –, aos baluartes
das políticas de ajuste fiscal e aos especuladores que ao prever qualquer contratempo
transferem dinheiro de um investimento para outro, de um banco para outro, de um
continente para outro num simples clique no mouse. E assim o prejuízo fica com o país
que abrigava anteriormente aquele montante que, dessa forma, não passa de espectro a
assombrar os bancos centrais do planeta.
No documentário “Encontros com Milton Santos ou o Mundo Global Visto de
Cá” (2003) de Silvio Tendler, o geógrafo expõe as fraturas do mundo tal como nos
fazem crer (a globalização como fábula) e o que vem à tona é a globalização como
perversidade. A ideologia do capitalismo abstrato faz supor um mundo global sem
fronteiras, no qual as barreiras que impediam a demanda de pessoas que saiam de seu
território em busca de uma vida mais promissoras estavam com os dias contados. No
entanto, esclarece Milton Santos, o que se assistiu foram à livre circulação de
46
mercadorias, serviços, produtos tecnológicos e do próprio capital graças à conexão do
sistema financeiro. Mas permanece proibido à entrada de refugiados, os espoliados da
globalização e da barbárie, sejam elas guerras civis ou confronto entre nações. O livre
tráfego dos indivíduos encontra resistência e as leis cada vez mais rigorosas contra a
emigração validam as preocupações de Milton Santos. A Europa do século XXI é um
continente que precisa lidar com o avanço da extrema direita que combate ferozmente à
entrada de estrangeiros vindos de países tidos como periféricos e com a proporção
assustadora do crescimento da xenofobia nos grandes centros urbanos europeus; cidades
que, em outrora, consagraram-se como cosmopolitas.
Lembrar-se das ideias de Milton Santos nos faz estabelecer uma linha de
pensamento que procura objetar os efeitos da globalização. Não apenas inquirir seus
prós e contras, mas observar as tentativas de concretização de uma mundialização da
cultura, dos direitos, das agendas políticas, do comércio de mercadorias. Mas essas
práticas abalaram o que, até então, parecia ser o suporte de uma integração entre países:
os Estados-nação. O território passou a ser um problema. O capitalismo por exigir o
dinamismo, a leveza, o deslocamento, ultrapassou a ideia de espaço, ou pelo menos,
transferiu o poder de administrar localmente (mantendo representação de feição local)
para determinação a longa distância as formas de esse poder proceder. O território
passou a ser um peso cuja mão-de-obra obstrui a velocidade das decisões, e se situar no
território ocupado tornou-se um custo dispendioso.
O jogo da dominação na era da modernidade líquida não é mais jogado entre o “maior” e o “menor”, mais entre o mais rápido e o mais lento. Dominam os que são capazes de acelerar além da velocidade de seus opositores. Quando a velocidade significa dominação, a “apropriação, utilização e povoamento” do território se torna uma desvantagem – um risco e não um recurso. Assumir algo sob nossa própria jurisdição e anexar a terra alheia implicam as tarefas caras, embaraçosas e não-lucrativas de administração e policiamento, responsabilidade e compromissos – e acima de tudo limitações consideráveis à nossa futura liberdade de movimento (BAUMAN, 2001: 215).
Zygmunt Bauman ao examinar a disposição do poder contemporâneo constata
que se sobrecarregar com o ônus de gerenciar e administrar localmente os lugares
conquistados traz consequências que se configuram como atraso: investir na
reconstrução, sustentar o poder, expandi-lo, além de sufocar prováveis sublevações.
47
O poderio da elite global reside em sua capacidade de escapar aos compromissos locais, e a globalização se destina a evitar tais necessidades, a dividir tarefas e funções de modo a ocupar as autoridades locais, e somente elas, com o papel de guardiões da lei e da ordem (local) (BAUMAN, 2001: 215).
Dessa forma, Bauman e Milton Santos percebem que a globalização vivida
como fábula não obtém êxito em subsumir com a percepção dela como perversa, em ser
vista tal com é.
Um dos pontos ideológicos em defesa da globalização pode ser encontrado nos
prognósticos que assinalam uma livre concorrência no mercado mundial de comércio.
No entanto, as grandes marcas, bancos, indústrias possuem subvenções e incentivos de
toda espécie para se instalar em algum território economicamente próspero devido à
demanda de consumo de seus habitantes/potenciais clientes de estável poder aquisitivo
ou pela mão-de-obra barata.
O discurso sobre igualdade elaborado com requinte e vernizado com a ideia de
facilidade de crédito para investir na exportação de seus produtos ludibriam os pequenos
empresários que entram em desvantagens no jogo, pois não recebem os subsídios com
os quais as multinacionais são contempladas. A livre competição é uma feroz disputa
vencida nos bastidores pelos agentes da elite extraterritorial.
Produtos do Pantanal mato-grossense podem conseguir espaço no mercado
internacional desde que estejam subscritos pela “classificação” de exótico e estejam
adornados pelos clichês que conferem aos estereótipos que cingem o artesanato, a arte
ou a manifestação cultural à “prateleira” dos produtos regionais. A competição que se
estabelece (ou as competições) diz respeito à luta contra a descaracterização que o
mercado prega. Apesar disso, é o olhar estrangeiro responsável pelo certificado de
qualidade de produtos regionais. A descoberta de nichos produtivos em lugares
recônditos alimenta um público consumidor taxado hoje de “diferenciado”. A diferença
escapa da margem e se desloca para o centro do cenário. Porém, uma nova contradição
contemporânea nasce: a diferença se incorpora aos padrões de mercado. A diferença
está acoplada a uma espécie de universalização que reduz tudo a uma fórmula. Como
escrevem Adorno e Horkheimer (1985: 139), “Apesar de todo o progresso da técnica e
48
da representação, das regras e das especialidades, apesar de toda a atividade trepidante,
o pão com qual a indústria cultural alimenta os homens continua a ser a pedra da
estereotipia”. Além disso, a concorrência desleal das grandes redes comerciais. O
capitalismo abstrato prevê a competição, mas não regula de forma igualitária as normas
desses embates; se considerarmos possível falar em normas, em plena fase líquida da
modernidade.
O trânsito de mercadorias demarca a vantagem do capital sobre os homens e as
mulheres. Estes, quando filhos do infortúnio, tentam fazer do deslocamento um modus
vivendi. Mas a vida no nomadismo não é tão receptiva para com eles como é para a elite
global. Eles se lançam num fluxo migratório que pode se deparar, ainda no meio da
jornada, com o desespero e a humilhação de uma deportação. O reforço na vigilância de
fronteiras e o maior rigor nos aeroportos e nas alfândegas geram clandestinidade e
ilegalidade. O que produz, devido à crise econômica nas nações ricas, a queda na oferta
de empregos ou a um sentimento embutido na formação nacional de temor ao
“forasteiro”, um grave aumento da xenofobia e da perseguição aos estrangeiros. Esse é,
porém, um dos aspectos da globalização. O outro são os empregos regulares que
fornecem bons salários e green card aos trabalhadores dos mais diversos países, seja
nas nações do G-7 ou em territórios dos estados emergentes.8 Porém, o cenário
preenchido com a legalidade, não atenua o crescimento dos movimentos de contestação
desse fluxo. O que inclui no processo de globalização elementos como contradição,
disparidade, efeito dominó, atitude contraproducente.
A globalização é a razão do ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo. Se alguma pergunta, por exemplo, por que os escoceses querem mais independência no Reino Unido, ou por que há um forte sentimento separatista em Quebec, não poderá encontrar a resposta apenas na história cultural deles. Nacionalismos locais brotam como uma resposta a tendências globalizantes, à medida que o domínio de estados nacionais mais antigos enfraquece (GIDDENS, 2007: 23).
8 Sobre a relação imigração, xenofobia e globalização ler o pequeno texto do geógrafo Ricardo Silva no
endereço http://educacao.uol.com.br/geografia/migracoes-e-xenofobia-motivacao-politica-e-economica.jhtm
49
A globalização se traduz por um processo complexo que ativa antagonismos ao
tempo que reduz a distância entre espaços geográficos e esboça trocas culturais
legítimas.
Entretanto, será que nesse panorama de acontecimentos intermitentes, de
condução acelerada, líquida, não se pode mais falar em ideologias e as fronteiras como
as conhecemos na era sólida da modernidade já são coisas do passado? Muitos autores
se ressentem em fazer uma defesa enfática da permanência de ideologias nos assuntos
que dizem respeito à globalização (por exemplo, Cláudio Lomnitz Adler, que não
percebe uma ideologia de comunidade, mas crê que suas condições são históricas, fruto
de um processo que abarcou inúmeros momentos dos países economicamente
hegemônicos). E, tantos outros, conclamam a dissipação das fronteiras geográficas
(como Paul Virilio e Renato Ortiz) ou de qualquer outra: científica, econômica, artística,
etc.
Neste tempo líquido são essas questões que se apresentam como fundamentais
para se tentar compreender as engrenagens que a fazem se movimentar e desvanecer
com tanta velocidade.
2.1. A globalização dos ricos versus a globalização para todos
Apesar dos inúmeros discursos de saudação em relação às particularidades
benemerentes da globalização, a escala dos rechaços ao fluxo migratório aumenta no
mundo, cujo tempo de viagem de um lugar ao seu destino está se encurtando a “olhos
vistos”. O surto de ataques a estrangeiros, do antes chamado Terceiro Mundo, na
Europa parece ser sinal de um conflito entre “o trabalho que preciso” e “o trabalho que
não quero”. Defasagem e política dos empregadores em pagar salários mais baixos sem
recompensas pelo labor insalubre levaram os nativos a uma revolta “surda” e uma fúria
“cega” contra os forasteiros. Mas as ofertas de trabalho especializado e de alta
capacidade em tecnologia conduzem milhares de pessoas a aceitar transladar para países
mais prósperos financeiramente em busca das oportunidades para desenvolver seu
potencial em produção.
50
Na globalização vivida na modernidade líquida, o trabalho parece ser seu motor
movente. Mas é um trabalho não mais baseado na estabilidade, na segurança de um
contrato entre firma e funcionário e na aspiração a promoções que elevam o empregado
na empresa. Hoje, o que conta é a disposição em correr riscos. Abraçar o trabalho como
algo que exige dinamismo, desprendimento e flexibilidade. Bauman chama a atenção
para o fato de que a presença constante de um desemprego que é estrutural deixa
obviamente todos em estado de alerta. As empresas passam por fase de
“redirecionamento”, “racionalização”, nas redações de revistas e jornais a publicação
sofre uma “repaginada”. As mudanças ocorrem intempestivamente no mínimo sinal de
fracasso que surja. Os empregos não são duráveis.
“Flexibilidade” é a palavra do dia. Ela anuncia empregos sem segurança, compromissos ou direitos, que oferecem apenas contratos a prazo fixo ou renováveis, demissão sem aviso prévio e nenhum direito a compensação. Ninguém pode, portanto, sentir-se insubstituível – nem os já demitidos nem os que ambicionam o emprego de demitir os outros. Mesmo a posição mais privilegiada pode acabar sendo apenas temporária e “até disposição em contrário” (BAUMAN, 2001: 185).
O mundo atual exige esse tipo de adequação: estar pronto para dissolução dos
laços que nos une a atividade que devemos desenvolver. Insegurança e vida precária. A
falta de segurança gera a vontade de que tudo ocorra o mais rápido possível. A
flexibilidade na globalização é um modelo comportamental. Uma capacidade instigada
prevendo a mobilidade a qual todos devem se lançar.
Apesar de dar vários passos rumo à compactação da distância entre um rincão
em Butão e um canto recôndito na Dinamarca, a globalização permanece restritiva
quando o assunto se trata da permissão para o deslocamento. A nova elite extraterritorial
aproveitando a liberdade proporcionada por todas as revoluções econômicas e
tecnológicas transformou o estar em trânsito em rotina. A questão, no fundo, não se
trata daquilo que se almeja: se é trabalho ou prazer. A demarcação de fronteiras
evaporou-se para um grupo seleto de pessoas. Não é um obstáculo que impõe
resistência para os “premiados” pelo capitalismo abstrato. Seja o espaço territorial, ou
mesmo o cibernético, esses que se movem tão velozmente são consumidores certeiros e
obstinados. Suas credenciais no mundo moderno líquido de consumo já se constituem
51
um aval para romper as fronteiras que barram os mais diversos tipos de viajante,
migrante, clandestino, andarilho, nômade.
Em 2011, na ilha de Lampedusa, assistimos recentes choques entre a polícia
italiana e refugiados da crise política na Líbia e na Tunísia9. Tal deferência passou da
indiferença, logo após a recepção dessas vítimas da intolerância política, para o
sufocamento de manifestações legítimas por um tratamento digno fazendo uso da força
repressiva institucional para contê-los. A antiga diáspora se reduz a guetos vistos com
desconfiança pela população local e foco de problemas para as autoridades. É certo que
cidades cosmopolitas, como Nova York, parecem equilibrar o êxodo migratório
forjando lugares que se estabelecem como pontos de cultura de algum país, como, para
citar algumas, a cubana, a chinesa e a brasileira. As diásporas atuais produzem nos
enfraquecidos Estados-nação constrangimentos, pois seu poder parece se restringir a
uma dupla função, a da manutenção da ordem e da estabilidade econômica. A crise
financeira de 2008 pareceu um campo fértil para os Estados, pois possibilitou a sua
interferência no jogo financeiro internacional para estancar a “sangria” ocorrida, assim,
pondo em xeque ou revertendo a sentença dos analistas sociais que determinavam o
Estado como algo desregulado e privatizado. No entanto, a bolha econômica que
estourou e abateu à Europa e aos Estados Unidos, em 2011, expôs novamente a
fragilidade dos Estados diante da especulação financeira e a facilidade que investidores
têm de transferir dinheiro de um país para outro, de comprar ou vender títulos de um
Estado, etc.10 Os Estados manobraram pela recuperação do controle econômico, mas
permanecem incapazes de proporcionar “segurança existencial” a seus cidadãos.
Ganhar essa segurança existencial – conseguir e manter em lugar legítimo e digno na sociedade humana e evitar a ameaça de exclusão – é uma tarefa deixada às habilidades e aos recursos de cada indivíduo, por sua conta. (...) O medo que o Estado prometeu extirpar retornou com uma vingança. A maioria de nós, da base ao topo da pirâmide social, hoje, teme a ameaça, embora vaga, de ser excluído, de se provar inadequado para os desafios, de ser desprezado, de ter sua dignidade negada e humilhada (BAUMAN, 2010: 89).
9 Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/09/110921_lampedusa_rp.shtml
10 Para saber mais sobre as manobras dos Estados, sintomáticas a partir de 2008, para retomar o controle
da economia ler trechos do artigo "Quand les Etats investissent la finance", (Alternatives Economiques n°262, Outubro de 2007) de Christian Chavagneux, traduzido em português, no site da Revista on line
“Carta Maior” http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15418#
52
A migração resultou numa das grandes contradições para a globalização e
interrogação no que tange ao quanto os Estados-nação estão dispostos a ceder para
abraçar a abertura apregoada pelos defensores da mundialização do comércio de
mercadorias e serviços. Num mundo de possibilidades, as figuras do miserável e do
forasteiro (esse segundo visto, agora, como potencial terrorista) inculcam mais
acusações e suspeitas que o desejo de compartilhar todas as comodidades garantidas por
uma comunidade estável. Hoje, o nomadismo é característica da elite extraterritorial. Os
nômades de antanho não circulam mais com a facilidade de outrora. E os migrantes são
responsabilizados pela queda do poder aquisitivo, pelo aumento do desemprego e pela
crescente violência nas nações ricas. Assim, a emigração que não resulta no
fornecimento de atividades que proporcionem prazer, por meio do consumo destacado
como exceção e requinte, se junta aos desvalidos sociais que residem em periferias,
favelas, bairros longínquos ou acoplados aos centros urbanos, sendo taxados como
ameaça à segurança.
[...] para alguns residentes da cidade moderna – seguros em suas casas à prova de roubo em subúrbios arborizados, em seus escritórios fortificados, nos altamente policiados centros de negócios, com carros cheios de engenhocas de segurança para levá-los de suas casas para seus escritórios – o “estranho” é tão atraente como as ondas da praia, e nada ameaçador. Os estrangeiros dirigem restaurantes que prometem experiências incomuns e estimulantes para os amigos da boa mesa, vendem objetos misteriosos e de aparência curiosa, adequados para serem os tópicos das conversas da próxima festa, oferecem serviço que outras pessoas não se rebaixariam ou não se dignariam a oferecer, acenando com pedaços de sabedoria refrescantemente diversos dos rotineiros e tediosos (BAUMAN, 2008a: 119).
A palavra experiência ressoa como atributo essencial para a aceitação do
estrangeiro. A cidade contemporânea não é angustiante para uma elite que circula com o
direito de mover-se de um lado para o outro. Faz parte do pacote de escolhas. Escolher
compõe o alicerce que fundamenta a hibridação do cenário urbano. Assim como ignorar
e selecionar quem manter fora do frutífero crescimento da “exotização” das ofertas de
consumo.
A relação que se estabelece com os estrangeiros se restringe à troca comercial: o
serviço pelo prazer. Assim que o desejo encontra sua satisfação e o prazer deixa de ser
substancial, a relação não tem porque perdurar. É um convívio profissional com tempo
53
de validade. “Os estrangeiros são fornecedores de prazeres. A presença deles é uma
quebra do tédio” (Ibidem: 120).
A pergunta que não quer calar é proveniente dos motivos de tanto espalhafato
contra a presença de “estranhos” em determinado território. Fora do âmbito político, que
fomentado por oportunismos, busca nas preocupações de uma sociedade rodeada por
perdas que fogem ao seu controle formas de tornar o “intruso” potencialmente perigoso
para a economia e valores comunitários, os apelos à rejeição a presença dos forasteiros
partem daqueles que não podem escolher, não possuem o certificado para selecionar os
serviços e muito menos interromper o vínculo quando desejar.
Não nos enganemos, o alvoroço vem de outras áreas da cidade, que os consumidores em busca de prazeres nunca visitam. Essas áreas são habitadas por pessoas incapazes de escolher quem elas encontrarão e por quanto tempo, impossibilitadas de pagar para ter suas escolhas respeitadas; por pessoas sem poder, que experimentam o mundo como uma armadilha e não como um parque de aventuras; que estão encarceradas num território no qual não existe saída para eles, mas onde os outros podem entrar e sair à vontade. O dinheiro, o único cacife para assegurar a liberdade de escolha, moeda legal na sociedade de consumo, está escasso ou é diretamente negado a eles (BAUMAN, 2008a: 120).
No filme estadunidense, “Faça a Coisa Certa” (Do the Right Thing, 1989), de
Spike Lee, temos uma das melhores exposições sobre a explosão de sentimentos
represados pelos deserdados do capitalismo abstrato. Ódio, humilhação, impotência,
preconceito, medo, angústia, tudo conduz à tragédia a partir do calor escaldante nova
iorquino e dos estranhamentos culturais e da sensação de exclusão. O fato de uma
pizzaria italiana estabelecida em um bairro de maioria afro-americana não exibir fotos
de personalidades negras gera indignação e revolta, e depois a violência policial leva à
morte de um protestante, o que vai resultar na eclosão de um distúrbio que acaba com a
destruição da pizzaria. No meio, há pessoas que querem depredar a quitanda de um
casal sul coreano amparando-se na ideia que esses lá estão para roubar seus lugares (ou
seja, o emprego e o direito ao sonho americano de riqueza) e explorá-los. Mas são
impedidos por quem percebe o jogo das classes dominantes (prioritariamente a política)
que os confina e fomenta o ódio mútuo.
54
Em busca da solução para o seu inconformismo e das perguntas que planam sem
respostas, os sedentários contemporâneos despejam sua incompreensão num dos elos
frágeis (ele é o outro) com toda aparência de forte, o estrangeiro.
Seus inimigos – os intrusos estrangeiros – parecem tão potentes e poderosos graças à própria fraqueza incapacitantes deles; a ostensiva engenhosidade e má vontade dos estrangeiros é reflexo da própria falta de poder, que se cristaliza em seus olhos como o impressionante poderio dos estrangeiros. O fraco encontra e confronta outro fraco; mas ambos se sentem como Davi lutando contra Golias (BAUMAN, 2008a: 120).
Enquanto cada um luta para fazer do seu “pedaço” um lar seguro, a elite global
sustenta várias empresas de segurança que mantêm vigilância constante sobre seu
patrimônio e a polícia barra o trânsito dos indesejados nas zonas classe A das cidades. A
globalização ainda não reduziu o grau de exclusão e os fatores de proibição para o livre
trânsito de todos pela cidade. Mesmo numa metrópole, parece possível falar em
fronteiras fortificadas. Os residenciais no coração das cidades, ou afastados delas, são o
retrato da separação entre a vida dos que podem recorrer à segurança privada e dos que
não possuem o recurso financeiro para tal. Estes creem atirados no “olho do furacão”. E
assim segue a rotina nos grandes centros urbanos.
A globalização gerou pequenos empresários bem-sucedidos, locais para turismo
distantes e deslumbrantes, conexões entre ONGs e defensores dos direitos humanos
espelhados pelos continentes. Por outro lado, triplicou fortunas, fez com que crises
econômicas afetassem o maior número de países possíveis, aumentou a competição
desleal promovida pelas multinacionais, etc.
Anthony Giddens aponta para a necessidade de perceber a globalização não
como efeito de transformações que sejam fugazes e reféns dos elementos atuais, tanto
políticos quanto econômicos. A globalização é o modus vivendi contemporâneo com
suas conquistas e suas mazelas. Giddens defende a importância de suprir as instituições
com novos suportes de proteção à vida das pessoas; não reduzir as mudanças do
presente a avanços do sistema financeiro. Ele constata que os Estados-nação já não
possuem a mesma eficiência para conduzir e controlar sua política econômica. Num
mundo, cujo clique no mouse pode transferir milhões de dólares ou euros de um banco
55
para outro do globo terrestre, pensar de maneira restritiva ao próprio território denota
perda de capacidade para gerir as mudanças aceleradas que ocorrem a cada instante. É
preciso ver tais eventos como mundiais e coligir que os riscos e perigos que ocorrem
hoje dizem menos respeito à beligerância de vizinhos que aos problemas associados à
forma de homens e mulheres lidarem com o fluxo de mudanças que atingem o cotidiano
e as instituições. Vivemos, segundo Giddens, em uma sociedade cosmopolita global.
Porém, ele diz que essa ligação não segue um imperativo coletivo sintonizado com a
vontade de todos, mas resulta da mistura de influências que é casual e não “arquitetada”.
Ela não é firme nem segura, mas repleta de ansiedades, bem como marcada por profundas divisões. Muito de nós nos sentimos presos às garras de forças sobre as quais não temos poder. [...] A impotência que experimentamos não é um sinal de deficiências individuais. Mas reflete a incapacidade de nossas instituições. Precisamos reconstruir as que temos, ou criar novas. Pois a globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos agora (GIDDENS, 2007: 29).
O comentário de Giddens mostra-se arguto e prudente ao observar que a
globalização não é apenas sintoma da desestruturação do mundo moderno, mas uma
nova forma de pensá-lo, conhecê-lo com o auxílio das tecnologias de comunicação e
dividindo problemas comuns, como o perigo do desastre ambiental.
Bauman analisando a globalização mira em seu desequilíbrio latente. Faz notar
as consequências humanas de um mundo, supostamente, interligado em alta escala. Um
mundo em movimento que não poupa os atrasados e os sedentários. Numa sociedade
individualizada é preciso manter o impulso por seguir sempre em bom estado de ânimo.
O pathos da contemporaneidade se faz presente, também, na forja da vontade de
avançar em aceleração. O personagem Larry, do romance “O Fio da Navalha” (1944),
do britânico W. Sommerset Maugham, após ser ferido durante a Primeira Guerra
Mundial, parte à procura de um sentido para a vida: transcendência e fuga das
aspirações classistas de uma elite enfadonha absorta em seu próprio mundo. A certa
altura, o narrador, que é um escritor, diz a socialite apaixonada por Larry, e que ainda
sonha em reencontrá-lo e reconquistar o seu amor, que os Estados Unidos de ambos são
56
diferentes. Não se esbarram por estarem separados por um fosso: um abismo social e de
visão de mundo. O que Larry faz ao cortar laços com a América da socialite é recusar a
sociedade moderna do triunfo capitalista. Impõe resistência às convenções da produção
industrial, da propriedade e do acúmulo de bens. Larry opta pela pausa, e, em seguida,
pela completa aniquilação dos ditames de uma ideologia que coloca a frivolidade do
luxo acima das necessidades das pessoas. Atitude condenável na modernidade sólida,
que na líquida assemelha-se a sentença de morte.
Esses mundos aos quais Larry obsta seu significado de vida, Bauman percebe
como dividido entre “turistas” e “vagabundos”. Um planeta de viajantes por escolha e
de andarilhos que são empurrados para essa condição. Pode-se movimentar pela Web
(receber e enviar mensagens para o mundo todo) ou em casa diante da TV, pois faz
sentido falar em “percorrer um percurso” sendo que as transmissões ocorrem graças ao
uso de satélites e cabos. O mundo nos chega mesmo sem o deslocamento físico. Mas,
quando se trata de corpos – de materialidade que se põe em movimento pelo afã de estar
em trânsito – há uma diferença básica que está depositada no recurso financeiro para tal
empreendimento. O rompimento do espaço seguramente pertence aos anais das
conquistas modernas. Com o aperfeiçoamento do avião, o tempo de translação diminuiu
substancialmente.
E, com as tecnologias da comunicação, o planeta inteiro está conectado. Basta
possuir um celular, notebook ou um tablet. Mil funções em um único aparelho no qual
cabe uma escandalosa porcentagem da vida de uma pessoa. O espaço se pulverizou a
olhos vistos.
No mundo que habitamos, a distância não parece importar muito. Às vezes
parece que só existe para ser anulada, como se o espaço não passasse de um convite
contínuo. O espaço deixou de ser um obstáculo.
Não há mais “fronteiras naturais” nem lugares óbvios a ocupar. Onde quer que estejamos em determinado momento, não podemos evitar de saber que poderíamos estar em outra parte, de modo que há cada vez menos razão para ficar em algum lugar específico (e por isso muitas vezes sentimos uma ânsia premente de encontrar – de inventar – uma razão). (BAUMAN, 1999: 85).
57
Assim viajamos, seja real ou virtualmente, física ou espiritualmente. A condição
nômade parece atingir até os espectadores de TV que pulam compulsivamente de uma
emissora para outra à procura de um programa que esteja de acordo com seu gosto. O
mundo atual condena a imobilidade. E o fato de se fixar já atrai razões para justificar
censuras a alguém. No mundo contemporâneo da aceleração, cobra-se até mesmo da
imaginação que se tenha mais dinamismo, alternância de cores e que evite o repouso.
“Um mundo com pontos de referência sobre rodas, os quais têm o irritante hábito de
sumir de vista antes que se possa ler toda a sua instrução, examiná-la e agir de acordo”
(Ibidem: 86). A era global institui o efêmero como mote para a produção de bens,
mercadorias e ofertas de serviços. A duração tem que ser conveniente com o impulso de
desejar, consumir e descartar. Os empregos também se submetem a era global da
aceleração. Vive-se na precariedade, pois o trabalho sendo medido pela experiência –
temporária – exige a flexibilidade independente do valor da pecúnia pelo trabalho que
se realiza. O trabalho exibe o “prazo de validade” de forma inequívoca. E, dessa
maneira, se sustenta a sociedade líquida.
Sociedade líquida de consumo (que em 1997, Bauman referindo-se a ela como
pós-modernidade, já suscitava um mal-estar preponderante), que, exigindo o
deslocamento como um dos seus pontos-mor, gerou dois tipos de condições ao que
concerne a vida contemporânea: a do turista e a do vagabundo.
Os turistas estão sempre se empenhando para manter-se em movimento. Tem
nesse desejo seu estado sine qua non. Independente de viajarem a trabalho ou prazer,
precisam da sensação de trânsito, de se verem longe de casa.
Os turistas tornam-se andarilhos e colocam os sonhos agridoces da saudade acima dos confortos do lar – porque assim o querem ou porque consideram essa a estratégia de vida mais racional “nas circunstâncias” ou porque foram seduzidos pelos prazeres reais ou imaginários de uma vida hedonística (BAUMAN, 1999: 100).
O turista vive como o frequentador de shopping center. Todos parecem
confortavelmente iguais. Qualquer diferença só faz acentuar a semelhança. Faz parte da
sedução contemporânea introduzir um elemento que distingue o lugar. Porém, que não o
desfigure a ponto de torná-lo irreconhecível para seus aventureiros.
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O lar do turista pode estar em qualquer lugar, ou melhor, ele faz dos locais de
estada um lar, pois com o espaço descomposto, a situação de inconstância passa a ser
uma vantagem. Um lar fixo, permanente, seria um empecilho para se ajustar aos padrões
cambiantes do mundo líquido.
O extremo do “deleite” do turista se apresenta na figura do vagabundo. O
vagabundo se desloca não por prazer ou por sentir sua morada como insuportável, o faz
por falta de opção. Talvez, se tivesse escolha, fosse possível recusar o movimento
forçado. Mesmo que os vagabundos não sejam partidários da vida nômade, essa é a vida
na qual os lançaram.
Se estão se movendo é porque “ficar em casa” num mundo feito sob medida para o turista parece humilhante e enfadonho e, de qualquer modo, a longo prazo não parece uma proposta factível. Estão se movendo porque foram empurrados – tendo primeiro sido desenraizados do lugar sem perspectivas por uma força sedutora ou propulsora poderosa demais e muitas vezes misteriosa demais para resistir. Para eles, essa angustiante situação é tudo, menos liberdade. Esses são os vagabundos, escuras luas errantes que refletem o brilho luminoso do sol dos turistas e seguindo placidamente a órbita dos planetas: são os mutantes da evolução pós-moderna, os rejeitados monstruosos da admirável espécie nova. Os vagabundos são o refugo de um mundo que se dedica ao serviço do turista (BAUMAN, 1999: 100-101).
O vagabundo capta os sinais de mudanças exigidos pela recente configuração do
mundo, mas não tem acesso aos seus códigos. Anda a esmo, esmagado pela
impossibilidade de seguir a passagem dos afortunados da sociedade líquida moderna. A
sua vida espelha um cárcere que impõe muitas restrições. Desterritorializado parte à
procura de um atalho que o conduza a interrupção da sedução que surge como tentação,
com a aparência de ser mais cruel que a promessa de felicidade.
Se os turistas são navegantes que escolhem a direção a tomar, os vagabundos são
obrigados a se moverem, pois, muitas vezes, o assentamento parece improvável por
serem taxados de personas non grata nos lugares em que a vida à deriva os leva. “Os
turistas se movem porque acham o mundo a seu alcance (global) irresistivelmente
atraente. Os vagabundos se movem porque acham o mundo a seu alcance (local)
insuportavelmente inóspito” (Ibidem: 101). Mas ambos lidam com dificuldades latentes.
O turista tem como espécie de quintessência a liberdade de escolha. No entanto, sem a
impressão desse direito, ele se veria atônito. O turista necessita da aparência de um
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mundo que esteja em seu ápice e a imagem dele globalizado, onde se constrói
oportunidades tão atraentes, não pode ser desprezada. As excursões, os hotéis luxuosos,
os aeroportos, os planos de viagens, tudo isso faz parte de um pacote deslumbrante.
Entretanto, o encanto está cingido pela inebriante ideia de escolha.
O vagabundo é o efeito colateral dos desejos e sonhos do turista. Ele acaba como
vítima do constante trânsito do turista que acredita ser irrefreável. Ao vagabundo não é
permitido parar nem permanecer. O seu deslocamento é simultaneamente busca e fuga.
Ambos estão atrelados a uma relação de atração-repulsão. O vagabundo é o alter
ego do turista. A imagem de sucesso que o vagabundo tem em seu mundo insalubre é a
do turista. Para o turista, o vagabundo se assemelha mais a um preguiçoso e a situação
dele aos seus olhos é insuportável. “A simples visão do vagabundo faz o turista tremer –
não pelo que o vagabundo é mas pelo que o turista pode vir a ser” (Ibidem: 106). No
entanto, nos dois casos, há outsiders e resignados. O turista outsider faz do próprio
trânsito uma maneira alternativa de vida, que não segue o roteiro padrão das viagens e
programas que o turista líquido moderno trilha obedientemente. A sua existência toca a
vagabundagem. E o vagabundo que não admira o turista como um exemplo de vida a
rastrear, faz mais que evitar ter um guru, recusa a gritaria geral que aponta o nomadismo
e o consumo como únicas felicidades desejáveis.
Tanto o turista quanto o vagabundo precisam evitar a frustração no mundo
moderno de consumidores. O vagabundo a encontra diariamente pelo motivo que
consumir o luxo (e mesmo sua imitação) passa ao largo de suas expectativas reais e de
seu orçamento. Já para o turista a frustração reside na incerteza embutida em cada
escolha, na sequência de aventuras a qual precisa se atirar. Mas uma vida distinta dessa
o assombra esporadicamente: a noção, não totalmente vaga, que a felicidade, talvez, se
encontre em um tipo de existência diferente dessa. Porém, a imagem do vagabundo é
um pesadelo que o acompanha, o tão temido “fracassado”. As aspirações de uma vida
outra são escamoteadas e guardadas no “porão”, isoladas para não mais incomodar. O
vagabundo, assim, é fabricado como um indesejado necessário, um lembrete de que se
ausentar pode ser fatal.
E assim, paradoxalmente, a vida do turista é tanto mais suportável, mesmo agradável, por ser assombrada por uma alternativa uniforme de pesadelo: a da existência do vagabundo. Num sentido igualmente paradoxal, os turistas têm interesse em tornar essa alternativa a mais terrível e execrável possível. Quanto menos atraente for o destino do vagabundo, mais saborosas serão as peregrinações do turista. Quanto pior a angústia dos vagabundos, melhor será a sensação experimentada pelo turista. Se não houvesse vagabundos, os
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turistas teriam que inventá-los... O mundo dos viajantes precisa de uns e de outros, e juntos, presos num nó górdio que ninguém parece saber (ou querer) como desatar ou cortar (BAUMAN, 1999: 107).
As imagens poéticas e desoladoras de “Paris, Texas” (1984), de Wim Wenders,
são o constrangimento da vida a ser evitada a todo custo pelo turista (ainda mais porque
ele não saberia extrair beleza e melancolia dela), mas é o cenário no qual o vagabundo
(ou o turista alternativo) desempenha sua jornada.
A globalização derrubou barreiras, até então instransponíveis, com a sofisticação
aguda das tecnologias de comunicação e com a compactação do espaço físico pela
valorização no investimento de transportes que reduziram o tempo de viagem. A elite
nômade, melhor dizendo, extraterritorial, implodiu o confinamento espacial e vive
conforme as novas regras do capitalismo abstrato. Uma desterritorialização programada
que converte a vida dos nômades de outrora e dos refugiados de sempre em pálidas
lembranças de uma existência árdua, mas necessária.
Apesar da espontaneidade, que parece soberana na contemporaneidade, falar em
ideologia, talvez, não acarrete em anacronismo. Por que se o capitalismo abstrato gera a
impressão de uniformidade nas aspirações, no modo de vida ou mesmo num
culturalismo que adentra em cantos antes inacessíveis a ele, o que nos leva a crer que as
ideologias foram abandonadas em prol de uma configuração de mundo que atenda um
ajuste que respeite as diferenças e os apelos por um planeta mais justo, menos
conflituoso? Ou será que nenhuma ideologia foi capaz de se equiparar com as vantagens
do capitalismo? Será que refutar a existência de uma ideologia dominante e sentenciar
que a era das ideologias ficou para trás, já não significa a aceitação dessa ideologia
dominante?
2.2. Ideologia: quem cantará que precisa dela para viver?
61
“Que aquele garoto que ia mudar o mundo, mudar o mundo/ Frequenta agora as
festas do “Grande Monde”/ Meus heróis morreram de overdose/ Meus inimigos estão
no poder/ Ideologia, eu quero uma pra viver”.11
Cazuza, em autoria com Roberto Frejat, anunciava em 1988, um ano antes da
queda do muro de Berlin, a percepção de que a nossa crença nas ideologias vivia uma
época de dissabor total. O que significava carregar preceitos ideológicos como
expressão segura de um modo de vida? Ou seja, ter em mente uma concepção de vida
que amarrava todos os pontos desde política à religião. Ainda mais num momento de
livre mercado acentuado que tornava Wall Street o coração financeiro do mundo e o
yuppie, um modelo a ser copiado.
Em 1989, um mundo dividido em capitalismo democrático e socialismo
comunista (agonizante) chegava ao fim; o comunismo, uma das ideologias mais
penetrantes do século XX, e motivos de controvérsias ferozes, encontrava seu
derradeiro funeral. A possibilidade de reverter esse panorama era uma pergunta que
ficava no ar. E o fim da União Soviética, alguns anos depois, praticamente,
inviabilizava contestações mais enérgicas. O triunfo do capitalismo causava em muitos
uma desilusão asfixiante.
Nas últimas décadas, um discurso recorrente é de que não há mais ideologias.
Daniel Bell postula que o fim da ideologia era o encerramento de uma era traduzida
pelas fórmulas fáceis sugeridas pela “esquerda” e, em decorrência, o fim da retórica
(ideia com afinidade liberal).
A ideologia faz com que as pessoas deixam de enfrentar problemas específicos, e de examiná-los à luz dos méritos individuais. As respostas estão prontas, e são aceitas sem reflexão; e quando as crenças são apoiadas pelo fervor apocalíptico, as ideias se transformam em armas, com resultados espantosos (BELL, 1980: 327-328).
Muitos analistas do mundo contemporâneo (políticos, economistas, jornalistas
entre outros) apontam que o livre mercado – competitivo – encerrou o confronto
ideológico. Como se no capitalismo abstrato (que engendra a globalização econômica
11
Ideologia. Autoria de Cazuza e Roberto Frejat do Álbum “O Tempo Não Para”. Cazuza ao Vivo.
Universal/1988.
62
apoiada no livre mercado) não houvesse necessidade de embates de ideias e que tal
condição fosse algo salutar, uma vez que se evitaria que os ferrenhos defensores de um
mundo que está em conflito (mesmo que não dual) fizessem emergir a pluralidade como
disputa necessária para observar se o que colocamos em prática como forma de
condução política e das relações comerciais seja realmente benéfica para todos.
A pergunta de Néstor García Canclini (1995) sobre a quem interessa apregoar o
fim das ideologias ressoa como um desafio a nossa percepção. Canclini declara que a
consolidação desse discurso importa a quem está no poder.
E nas posições de poder se aceita quem se mostrar confiável a um mercado de
diretrizes indicadas por um capitalismo preponderante e abstrato. Logo é um poder sem
face que está acima de um poder cuja face pouco relevância faz que “feição” tenha.
Como aponta Pierre Bordieu, a dominação é exercida a partir de uma complexa conexão
entre diversos agentes, sendo que é a relação entre eles que efetiva tal dominação.
A dominação não é efeito direto e simples da ação exercida por um conjunto de agentes (“a classe dominante”) investidos de poderes de coerção, mas o efeito indireto de um conjunto complexo de ações que se engendram na rede cruzada de limitações que cada um dos dominantes, dominado assim pela estrutura do campo através do qual se exerce a dominação, sofre de parte de todos os outros (BOURDIEU, 1996: 52).
No mundo globalizado, no qual o Ocidente dita as regras do jogo comercial, a
democracia é o sistema político que atua na maioria dos territórios (apesar da China, um
dos atuais líderes econômicos do planeta, ter o regime comunista como vetor político).
Pela democracia, os direitos civis consagraram-se como forma de homens e mulheres
poderem lutar e serem atendidos nas pugnas contra a força esmagadora das instituições
e entidades privadas. Mas a democracia, com o passar do tempo, demonstrou uma
incapacidade penosa de conter a sanha das empresas multinacionais e a ambição de seus
próprios políticos. As frequentes violações de leis nacionais somente aumentam a noção
do esvanecimento do poder dos Estados no que tange ao avanço global de uma
ideologia de mercado. Segundo o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos
(2007: 90), “O problema está em compreender que a democracia é parte do problema, e
temos de reinventá-la se quisermos que seja parte da solução”. E a solução passa pela
compreensão que é preciso criar idiossincrasias que levem a uma democracia não
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apenas representativa, mas uma abertura no processo político que comporte o diálogo
constante com os cidadãos, a decisão conjunta sobre investimentos públicos, prestação
de contas transparentes, etc., ou seja, uma relação estreita com a democracia
participativa, que Santos vem chamando de democracia de alta intensidade. Esta forma
de democracia poderá criar condições para que se estabeleça o que o sociólogo
português denomina de solução contra hegemônica.
Todavia, as democracias estão longe de buscar esse aperfeiçoamento.
Infelizmente, com as corriqueiras crises econômicas parece evidente que para o sistema
ideológico que sustenta a globalização a única crise que causa alarde, e que deve ser
contida, é a crise financeira, conforme depoimento de Milton Santos no documentário
de Silvio Tendler. O que deixa problemas urgentes relegados a segundo plano ou como
fonte de votos em pleitos eleitorais – um exemplo está na produção e distribuição de
alimentos que ajudaria a atenuar a fome que assola o planeta.
Um dos problemas relacionados à ideologia, talvez, pertença à ideia do que
podemos fazer coletivamente. Se na democracia a obsessão se refere à garantia dos
direitos individuais, a nossa composição com os outros na busca de preocupações
comuns parece esbarrar na impotência. Bauman observa que nossas crenças não
precisam se ajustar para tecer coerências. Ao falar da questão da liberdade no Ocidente,
ele aponta que as pessoas acreditam não precisar tomar as ruas em protesto e exigência
por mais liberdade, pois, de um modo geral, sustentam a ideia de que possuem liberdade
para se expressarem da maneira que lhes aprouver; mas, por outro lado, acreditamos que
poucos podemos ousar, mudar o estado de coisas como nos apresenta, seja individual,
em grupo ou coletivamente. E que, quiçá, modificá-las seria irracional e despropositado.
Bauman conclui que, “as duas crenças não combinam, mas cultivar ambas não é sinal de
inépcia lógica” (BAUMAN, 2000: 09).
Bauman declara que na modernidade líquida o nível de individuação atingiu tal
ponto que a atuação pública do cidadão ficou comprometida. Há uma “comunicação
esporádica entre os lados privado e público”, mas que sua limitação prejudica
desdobramentos mais incisivos. “Únicas queixas ventiladas em público são um punhado
de agonias e ansiedades pessoais que não se tornam questões públicas apenas por
estarem em exibição pública” (Ibidem: 10). Os eventos de caráter coletivo costumam ser
64
“os festivais de compaixão e caridade” (Ibidem: 11) e, no exemplo mais drástico, a
explosão de fúria contra um inimigo tornado público.
Hoje percebemos no Ocidente a mobilização pelos mais diversos tipos de
reivindicações, com o auxílio providencial das redes sociais e demais produtos das
novas tecnologias da comunicação, e no Oriente Médio assistimos às lutas para derrubar
os regimes ditatoriais baseados na força militar e na religião que empobrece a população
(impedida de expressar opinião e exigir abertura política) e enriquece governos
despóticos e seus aliados.12 No entanto, não parece ainda evidente que essas situações
gerem uma mudança concreta e paradigmática na relação liberdade individual/força
coletiva. Talvez estejamos num período de transição. Bauman nos lembra de que na
modernidade recente, essas questões depois da agitação se aquietam, e as pessoas
voltam a se dedicar a assuntos rotineiros e as coisas retomam seu estado inicial.
Em outrora o liberalismo era uma ideologia desafiadora e impudente “de grande salto a sua frente”. Hoje é auto apologia da rendição, se reduz ao mero credo de que “não há alternativa”. Esta política louva e promove o conformismo (razão da crescente apatia política) (BAUMAN, 2000: 12).
Zygmunt Bauman discute que a arte da política, algo que a democracia procura,
reside nas formas de desobstruir a passagem que leve a liberdade dos cidadãos, ou seja,
limites que traíssem preceitos convenientes à prática dessa liberdade. Mas, essa mesma
arte, previa a autolimitação, que na verdade, era a limitação do indivíduo gerida pelo
poder.
[...] para capacitá-los a traçar individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos. Esta segunda característica foi praticamente perdida. Todos os limites estão fora dos limites. Qualquer tentativa de autolimitação é considerada o primeiro passo no caminho que leva direto ao gulag, como se não houvesse nada além entre a ditadura do mercado e a do governo sobre as nossas necessidades – como se não houvesse lugar para a cidadania fora do consumismo (BAUMAN, 2000: 12).
12
Sobre A Primavera Árabe, iniciada em 2011, levante popular deflagrado em vários países do Oriente
Médio contra os regimes ditatoriais, ver Dossiê Mundo Árabe, in Revista Cult, n. 156, ano 14, abril 2011, São Paulo: Editora Bragantini, p.p. 20-45.
65
A noção errônea de suprema liberdade, ou que a liberdade individual agencie
todas as nossas ações, se encaixa perfeitamente na pretensão de uma ideologia de
mercado, pois resvala no conformismo que deveria ser evitado. Bauman defende que a
democracia ronda uma perigosa chance de resultar em conflitos pessoais absurdos se
uma visão de bem comum que proponha soluções coletivas para problemas referentes à
cidadania não for acionada. Se paga um preço elevado quando o cidadão ignora essa sua
função intransferível e permanece cultivando aversão a autolimitação, o conformismo
generalizado e a percepção da política como insignificante. O preço é o da má política,
que, inevitavelmente, resulta no sofrimento humano. “Sofrimento que decorre de
malfeitos políticos e que constitui o supremo obstáculo à sanidade política” (Ibidem:
13).
A maneira mais eficaz de dirimir esse sofrimento é recuperar a ágora, o local de
debate no chamado espaço público. É recriá-lo para discutir a desregulamentação e
privatização do Estado, a insegurança, a incerteza e a falta de proteção e garantias que
formam os principais incômodos da modernidade líquida. E é preciso fazê-lo juntos,
pois como afirma Bauman, “[...] a liberdade individual só pode ser produto do trabalho
coletivo (só pode ser assegurada e garantida coletivamente)” (Ibidem: 15). É o desafio
que se apresenta aos pleiteantes da democratização da democracia.
A tarefa se avulta gigantesca. E pelo simples motivo que manter a vida na
incerteza e definir a nossa posição no mundo como precária mantém a flexibilidade, a
competição, a desregulamentação como bases do mercado. Mas é a incerteza seu
alimento mais nutritivo.
Longe de ser veto à racionalidade do mercado, a incerteza é sua condição indispensável e seu inevitável produto. A única igualdade que o mercado promove é a provação igual ou quase igual da incerteza existencial, partilhada igualmente por vencedores (sempre, por definição, vencedores, “até segunda ordem”) e vencidos (BAUMAN, 2000: 38).
Esse cenário (prodigioso em sua “costura”) promove a separação entre
expectativa de sucesso e a felicidade. O que, de certa maneira, inviabiliza (ou, de algum
modo, contribui) a comunicação concernente à retomada do espaço público. As
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angústias e metas da vida de cada um absorvem e limitam as forças que poderiam ser
convertidas para algo além da individualidade. “O mundo contemporâneo é um
recipiente cheio até a borda de medo e frustração flutuantes desesperadamente em busca
de alguma extravasão que um sofredor possa razoavelmente esperar dividir com outros”
(Ibidem: 62), Mas são esses eventos psicológicos e as tentativas de amenizá-los, de dar
conteúdo, revolta ou soluções alternativas que preenchem o foro de exposição pública.
As celebridades, os contraventores, os participantes de reality shows, as pessoas comuns
que vencem tragédias ou escapam da miséria são assuntos dos debates que acabam
dizendo respeito a todos. Eles dão o exemplo para problemas de ordem social,
proporcionam respostas e são lumes para os desesperados. A vida privada invade o
cenário público corroendo os laços entre tribuna e política. Atitudes particulares são
colocadas em discussão e uma moral social, que descreveria os valores de uma
comunidade, perde lugar para as “soluções biográficas”, como lamenta Ulrich Beck. A
política, dessa forma, fica relegada a um intuito escapista de eleger alguém para nos
representar e nos eximir de responsabilidades sobre as decisões que eles tomam.
Um dos grandes estudiosos da cultura, o britânico Terry Eagleton observa como
moralidade e política estão em descompasso atualmente. O que conduz a
problematização da ética, pois ao deixarmos a política de lado até nossa conduta moral
no cotidiano é atingida. “Poder viver uma vida moral, o que significa dizer uma vida
satisfatória, de um tipo adequado para ser humano, depende, em última instância, da
política. Essa é uma das razões de Aristóteles não fazer distinção rigorosa entre ética e
política” (EAGLETON, 2005: 177).
Com a ética posta de lado, a extrapolação do comportamento individual
compulsivo torna-se preocupante. Bauman chama atenção para a inversão do Panóptico
de Jeremy Bentham, que Michel Foucault consagrou como o método de controle da
modernidade no qual poucos vigiam muitos, assim controlando e constrangendo a
atuação das pessoas no espaço privado, o que resultou na disciplina dos corpos e na
efetivação da administração do Estado do que antes dependia da capacidade natural
humana para autovigilância e autorregulação. Porém, essa metáfora sofre uma inversão
na modernidade líquida. Seguindo Thomas Mathïesen13, Zygmunt Bauman aponta que
13
Thomas Mathïesen (1933) é doutor em Filosofia e professor de Sociologia do Direito da Universidade
de Oslo. É considerado o mais notável pensador europeu na área do abolicionismo penal.
67
hoje muitos vigiam poucos. Agora o novo estágio reflete o Sinóptico. A vida pessoal
virou a obsessão do público. Paparazzis, revistas de fofocas, reality shows. O dito de
Andy Warhol, “que todos têm direito aos seus quinze minutos de fama”, extrapolou-se e
ganhou terreno como aspiração essencial na vida de muitos. Não desejar a fama e não
ter ambição alguma, pelo menos a de um tipo que conta, pode ser fatal. E esse é mais
um desafio para qualquer intenção de resgate relacionado à política com “P” maiúsculo.
[...] com as fontes de virtudes públicas quase inexistentes, só se pode procurar uma razão para os esforços vitais nos exemplos disponíveis de bravura pessoal e recompensas para tal bravura. De modo que vigia de boa vontade, com gosto, e pede em alto e bom som mais coisas para vigiar. Ocultar a vida pessoal à vigilância já não é do “interesse público”. [...] o sinóptico reflete o ato de desaparecimento do público, a invasão da esfera pública pela privada, sua conquista, ocupação e paulatina mas inexorável colonização. Inverteram-se as pressões sobre a linha de divisão/conexão entre o publico e o privado (BAUMAN, 2000: 77).
Uma das perguntas válidas que se pode fazer na atualidade é se as instituições
políticas ainda cumpre seu papel (ou se sofreram uma vertiginosa queda a respeito dele)
de criadores de códigos e agenda. Ou, ainda, se o capitalismo abstrato, que
supostamente devastou a necessidade de ideologias, garante ao mercado o direito de
elaborá-los. Mas é uma situação que pode ser revertida? Talvez com o espaço público
voltando a ser um lugar de engajamento? Bauman acredita que sim e não. Para o
sociólogo não deveríamos pensar o espaço público relacionando-o tão somente às
atribuições das instituições representativas do Estado-nação, pois a sua capacidade para
lidar com as mudanças ocorridas da modernidade para cá com o surgimento de
complexos jogos de poder, milhares de novos personagens e espectadores e exigências
mostram-se insuficientes por permanecerem modelados pelo âmbito local. Avaliando
apenas esse aspecto, a resposta seria não. O drama contemporâneo tem proporções
globais e um espaço público genuíno para lidar com todos os “senões” dessa
globalização precisa engendrar uma política planetária. Deste modo, a resposta seria
sim. Um palco que considerasse que vivemos uma época na qual compartilhamos o
planeta mais do que em qualquer tempo no passado. É preciso reconhecer a
68
codependência em relação as nossas ações e que elas afetam a todos e que um “palácio
privado” para escapar dessa conexão, apenas adia o cumprimento dessa jornada pela
partilha dos nossos deveres e direitos.
A lógica da responsabilidade planetária visa a, ao menos em princípio, confrontar os problemas gerados globalmente de maneira direita – no seu nível. Parte do pressuposto de que soluções permanentes e verdadeiramente eficazes para os problemas de âmbito planetário só podem ser encontradas e funcionar por meio da renegociação e reforma das redes de interdependências e interações globais (BAUMAN, 2007b: 197).
Tudo o que resultar dessa iniciativa em escala global, que anula a exigência de
soluções locais (abandonadas assim a própria sorte) para problemas gerados pela
economia global, seria uma novidade, um aprendizado, mas uma conduta solidária que
confrontaria a ideia que há “efeitos colaterais aceitáveis” no jogo do livre mercado.
Num mundo híbrido é essencial recuperar o prestígio da política. Ainda mais
para sermos capazes de entender as novas configurações e criações no que tange a essa
hibridação cultural que ocorre. A sua aceitação, combate ou desprezo é de cunho
ideológico. Para o capitalismo tanto faz absorvê-lo ou não. Sempre há formas de lucrar
com ambas as posições. A luta pela convivência entre as culturas, suas rebeliões,
conquistas, já são previstas e adaptadas pelo capitalismo. Como escreve Gilberto Dupas
(2006: 169), “O capitalismo aproveita até os espasmos de rebelião para sua
acumulação”. O capitalismo abstrato nunca perde o que faz com que, invariavelmente,
as pessoas estejam decepcionadas. Seus esforços geram lucro para o sistema que abraça
aquilo que os oprime. A ideia de progresso fornece um elemento decisivo para
fundamentar a adesão à competição instituída pelo capital.
O progresso, assim como hoje é caracterizado nos discursos hegemônicos de parte dominante das elites, não é muito mais que um mito renovado por um aparato ideológico interessado em nos convencer que a história tem um destino certo – e glorioso – que dependeria mais da omissão embevecida das multidões do que de sua vigorosa ação e da crítica de seus intelectuais (DUPAS, 2006: 290).
69
O progresso foi uma ideia prodigiosa que sancionou a espetacular corrida para
fazer parte dos privilegiados que são “abençoados” com o reconhecimento de seu valor
para a “máquina capitalista”. Então acatamos certas determinações que ocorrem e suas
contradições, contrassenso em nome da unidade que nos conforte. E o capitalismo (leia-
se sociedade) se sustenta com sua capacidade de gerenciar os conflitos em prol dessa
unidade. Slavoj Zizek argumentando sobre a noção de fantasia (exemplificada com a
figura do judeu) e ideologia nos lembra de que há uma visão corporativista da sociedade
que desemboca na consagração da sociedade como um Todo orgânico que representa a
atenuação de antagonismos como consequências reais da sociedade e que embute o
mascaramento de uma perversidade.
[...] “não existe relações de classe”, a sociedade é sempre atravessada por uma clivagem antagônica que não pode ser integrada na ordem simbólica. E o que está em jogo na fantasia ideológica-social é construir uma visão da sociedade que exista, de uma sociedade que não seja antagonicamente dividida, uma sociedade em que a relação entre suas diferentes partes seja orgânica e complementar. [...] um corpo social em que as diferentes classes são assemelháveis a extremidades, cada membro contribuindo para o Todo conforme sua função poderíamos dizer que “a sociedade como corpo constituído” é a fantasia ideológica fundamental (ZIZEK, 1992: 123).
O mundo contemporâneo precisa lidar com essas armadilhas. Ou melhor, precisa
gerar idiossincrasias para percebê-las, combatê-las e classificá-las, para, então, mudá-
las. Mas é uma questão complexa. Os percursos confiáveis de outrora sofreram abalos
consideráveis e os recursos infalíveis já não existem. “Num mundo como este, o
conhecimento é destinado a perseguir eternamente objetos sempre fugidios que, como
se não bastasse, começam a se dissolver no momento em que são apreendidos”
(BAUMAN, 2010a: 45).
A busca do conhecimento se efetiva como uma “luz no fim do túnel” para
compreender esses mecanismos do funcionamento da lógica do capital, para tentar
desobstruir a noção de capital e mercado manter uma parceira que almeja uma
dominação duradoura.
As políticas do Estado capitalista, ‘ditatorial’ ou ‘democrático’, são construídas e conduzidas no interesse e não contra o interesse dos mercados;
70
seu efeito principal (e intencional, embora não abertamente declarado) é avaliar/permitir/garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado (BAUMAN, 2010a: 31).
“As Invasões Bárbaras” (2003), do cineasta canadense Denys Arcand, retratou a
decepção com o fracasso das ideologias que prometiam um mundo mais justo,
principalmente, depois de Maio de 1968, mas que culminaram na revelação de aspectos
totalitários ou contaminados pela burocratização dos arranjos institucionais. Velhos
amigos se reúnem para acompanhar os últimos dias da vida de Rémy, um intelectual
socialista, que, além de viver a derrocada das ideologias, ainda, lida com as fragilidades
dos laços afetivos constituídos com o filho, que trabalha no coração do capitalismo
londrino. O filme nos apresenta como uma estrutura política apodrecida corrompe todas
as esferas sociais. A ineficiência das instituições facilita o devoramento pelo capital das
instâncias que deveriam preservar a ética. Assim como das próprias pessoas. O
resultado é a hipostasiação das relações triviais e de suspensão da ética em nome do
triunfo do capital. “As Invasões Bárbaras” efetua uma tocante denuncia dos problemas
contemporâneos: a falta de perspectiva política, corrupção, a insuficiência do Estado, o
colapso das ideologias, a incomunicabilidade etc. Arcand deixa para o final uma
inspirada fomentação de uma “utopia” que é depositada na aquisição de conhecimento.
Na figura de Nathalie (filha de uma amiga de Rémy), que tenta se livrar do vício em
drogas, Arcand planta a semente de que nos livros e nos que eles nos revelam pode estar
a saída para iniciar a resistência ao capital e as angústias modernas, mesmo que, em
princípio, particular. Como escreve Bauman (2007b: 167), “Precisamos da educação ao
longo da vida para termos escolhas. Mas precisamos delas ainda mais para preservar as
condições que tornam essa escolha possível e a colocam ao nosso alcance”.
2.3. A porosidade e o acirramento das fronteiras: um jogo de contradições
71
Uma das obsessões da sociedade moderna líquida se baseia na redução do
espaço, e reduzi-lo significa ultrapassar de um ponto a outro o mais rápido possível. Se
a modernidade sólida praticava a defesa do território acima de todas as conjugações
efetivas de poder constituindo uma lógica do “dentro” e do “fora” para instaurar uma
rigorosa vigilância sobre as fronteiras, além de conciliar tamanho e eficiência,
justificando, desse modo, seu caráter expansionista, sua versão líquida demoliu a noção
de espaços instransponíveis. O tempo pulverizou-se com o advento do capitalismo
“leve” tornando o espaço frágil.
A mudança em questão é a nova irrelevância do espaço, disfarçada de aniquilação. No universo de software da viagem à velocidade da luz, o espaço pode ser atravessado, literalmente, em “tempo nenhum”; cancela-se a diferença entre “longe” e “aqui”. O espaço não impõe mais limites à ação e seus efeitos, e conta pouco, ou nem conta (BAUMAN, 2001: 136).
O tempo se equipara a instantaneidade. Senão realmente, ao menos na aparência.
Podemos nos encontrar a milhares de quilômetros de casa, mas uma ligação de celular
ou uma conversa pela webcan nos coloca próximos dos que estão distantes. Se, nesse
caso, a falta de “presencialidade” não é rompida, a tecnologia de fibra óptica nos dá a
oportunidade de viver uma vida nômade sem deixar de aplacar a saudade sempre que
possível. “O tempo não é mais o ‘desvio na busca’, e assim não mais confere valor ao
espaço. A quase instantaneidade do tempo do software anuncia a desvalorização do
espaço” (Ibidem: 137).
O tempo retrátil e o espaço depreciado favorecem a circulação de mercadorias e
oferece tanto uma padronização dos bens culturais quanto uma hibridização dos gostos e
desejos dos consumidores espalhados pelo planeta.
Canclini pondera que há demasiado produtos em oferta. Tudo segue o sistema
hegemônico do capital. Aquilo com que nos deparamos na rua é o que a televisão
reproduz espelhando a publicidade comercial e os lemas políticos. Estabelece-se uma
forte relação na qual um traduz o “eco” da outra.
O mercado reorganiza o mundo público como palco do consumo e dramatização dos signos de status. As ruas tornam-se saturadas de carros, de pessoas apressadas para cumprir obrigações profissionais ou para desfrutar uma diversão programada, quase sempre conforme a renda econômica (CANCLINI, 2003: 288).
72
Devemos recuperar a fala de Milton Santos de que as fronteiras se compactuam
e se “postam” como permeáveis quando se trata do trânsito de mercadorias e serviços.
Para o capitalismo abstrato, a resistência das fronteiras em relação à produção mercantil
e o bloqueio ao avanço da tecnologia de comunicação não é um negócio interessante. É
mais fácil o capitalismo punir países recalcitrantes que os Estados obterem vantagens ao
burlar ou contestar regras estipuladas pelo livre mercado. Milton Santos aponta que o
sistema ideológico que sustenta a globalização não se interpõe às barreiras brutais que
são colocadas para bloquear o fluxo de pessoas que se lançam em busca de veredas mais
promissoras que àquelas que habitam; e até espera que os Estados ajam de forma
enérgica para coibir esse tipo de trânsito. Segundo Renato Ortiz (2006), a violência na
ordem do século XXI não se expressa no monopólio territorial, mas numa diluição das
fronteiras que atingiu até os Estados Unidos pós 11 de setembro de 2001.
A globalização corresponde ao que comumente chamamos (usando uma figura
de linguagem) de “faca de dois gumes”. Ao mesmo tempo em que as fraturas da miséria
ficam mais expostas a um movimento nacionalista, justificada no suposto aumento do
desemprego e da criminalidade que a migração traz aos países que recebem o êxodo
humano que atravessa os continentes, temos uma maior abertura para a aceitação de
modos de vida distintos do regular. A tradição sofre fissuras e acomoda reivindicações
de liberdade de expressão, de manifestação religiosa, de opção sexual e os encontros
culturais e absorções de elementos de uma cultura por outra engendram a hibridação
que se tornou perceptível em um mundo em transformação. Tais mudanças geram
reações de todo tipo. Anthony Giddens discute a relação entre influência e a emergência
de novos costumes. O que ocasiona uma disputa discursiva que resulta em ações
pontuais entre um comportamento cosmopolita e um posicionamento fundamentalista.
No primeiro, a abertura para um provável estágio híbrido da humanidade, de identidades
flutuantes e, no segundo, uma defesa enfática da tradição. Ocorre um choque que instiga
a discussão acerca da porosidade das fronteiras.
A luta entre dependência e autonomia está num polo da globalização. No outro está o embate entre uma perspectiva cosmopolita e o fundamentalismo. Poderíamos pensar que o fundamentalismo sempre existiu. Isso não é verdade – ele surgiu em reposta às influências globalizantes que vemos por todos os lados à nossa volta.
73
[...] O fundamentalismo é um filho da globalização, e reage contra ela ao mesmo tempo em que a utiliza. Em quase toda a parte os grupos fundamentalistas fizeram um amplo uso das tecnologias de comunicação (GIDDENS, 2007: 56-59).
Pode-se notar que no mundo globalizado as formas de agir estão imbricadas com
as estratégias do adversário ou daqueles que se quer convencer. Esse é um aspecto
inusitado da globalização e que resvala num entendimento de que sustentar noções
muito rígidas é correr o risco de ser contraproducente.
No entanto, a premissa de que a abolição de fronteiras concernente ao livre
mercado e a competição favorecerá, em longo prazo, a redução às restrições ao tráfego
de livre de homens e mulheres enseja um engodo, pois encobre que a tecnologia, a
especialização do trabalho, a exigência de sofisticação educacional individual acarretará
num aumento do desemprego, no encolhimento do mercado de trabalho ou, pelo menos,
em número de pessoas qualificadas para ele. Além dos postos de trabalho que serão
fechados pela automatização do serviço. É preciso ter em pauta políticas públicas que
amenizem os impactos dessa escalada de contrariedades, o que supõe, como mal maior,
o acirramento da vigilância nas fronteiras. Bauman alerta que no mundo atual os ricos
parecem não necessitar dos pobres. Se antes uma “reserva de mão-de-obra” era ponto
pacífico, hoje uma massa de excluídos vaga em busca de assistência. As fortunas da
modernidade líquida se fazem virtualmente, dispensando populações inteiras que se
estigmatizam como “redundantes”.
A mentira da promessa do livre comércio é bem encoberta; a conexão entre a crescente miséria e desespero dos muitos “imobilizados” e as novas liberdades dos poucos com mobilidade é difícil de perceber nos informes sobre as regiões lançadas na ponta sofredora da “glocalização” (BAUMAN, 1999: 80).
Bauman nos lembra que o enriquecimento da elite extraterritorial e sua
mobilidade têm implicação direta com o empobrecimento dos miseráveis, e no seu
sedentarismo, privados de liberdade para se mover. A globalização, até o momento, não
resolveu esse desajuste, e está longe de uma solução quando assistimos ao Sudão, à
Somália e a Bangladesh enfrentarem antigas e novas mazelas. E vítimas neófitas
74
também se encontram na classe média mundial, que ao apelar a empréstimos e ao
crédito bancário facilitado se afogam nos juros e na especulação praticada pelos grandes
financistas (crise econômica estadunidense de 2008).
Esse cenário desolador exige que raciocinemos a respeito de que condições nos
trouxeram a esse ponto iluminado e sombrio, repleto de possibilidades e escassos em
saídas coletivas, belo e brutal, ou seja, que incorpora paradoxos sem ao menos
intencionar elucidar suas evidentes oposições.
É preciso observar a qualidade dos jogadores, não apenas no mercado, mas as
atitudes das pessoas no cotidiano e fazê-las notar que suas decisões e seus gestos afetam
a regra do jogo. E, nos revela Eduardo Giannetti, condiciona a economia e seu humor, o
que produz um resultado político que não pode ser ignorado.
Tanto a constituição econômica vigente quanto o exercício da cidadania na vida prática dependem de um processo de formação de crenças e sentimentos morais sobre o qual muito pouco se sabe de um ponto de vista científico. Uma coisa, no entanto, parece certa: negligenciar esse processo e as variações a que ele está sujeito é perder de vista um dos fatores decisivos na explicação das causas da riqueza e da pobreza das nações (GIANNETTI, 2007: 199).
Quando o que parece imperar é um enriquecimento vertiginoso de poucos e o
agravamento da situação de penúria de homens e mulheres sacrificados à miséria pelo
capitalismo abstrato, que não participa de um processo de formação de crenças e
sentimentos, como falar em fronteiras e em justiça social? A elite extraterritorial
provavelmente não se torna melancólica por causa dessa questão. Seu espírito nômade
está concentrado nos planos de viagem.
A modernidade líquida constitui-se como uma era que define o fluxo como
característica primordial. A garantia de um correr incessante é uma espécie de afã
contaminado pela incerteza. Para os migrantes do mundo líquido, seguir tal promessa
não é apenas uma aposta arriscada, mas, também, um “tiro no escuro” que pode se
deparar com a prisão, com a xenofobia, com condições de moradia precária e uma vida
subalterna. Para esses, as fronteiras não parecem deslizantes e nem o discurso das
oportunidades que resplandecem alhures tem voz tranquilizadora.
A película “Babel” (2006), coprodução Estados Unidos e México, dirigida por
Alejandro Gonzáles Iñarritu, é a obra da cinematografia atual mais instigante no que se
75
refere aos problemas contemporâneos. Babel pode ser alusão à imensa torre construída
pelos homens para atingir o céu e que foi sumariamente destruída por Deus que, em
seguida, dividiu a comunicação oral de homens e mulheres em diferentes línguas.
“Babel” explora não somente a incompreensão linguística decorrente dessa
comunicação necessária, mas as tentativas de superá-las. Contudo, o ponto crucial de
“Babel” está na discussão acerca das diversas fronteiras que se estabelecem a partir das
criações humanas e da aceitação ou da recusa do diálogo. “Babel” explora os conflitos
concernentes às fronteiras geográficas, às fronteiras da relação entre o comportamento
controverso e os preceitos da religião, às fronteiras entre a raiva e a busca da paz de
espírito, às fronteiras entre o dever e a felicidade, às fronteiras entre o preconceito e o
temor da abertura ao diferente, às fronteiras da relação entre o turista e o nativo, às
fronteiras entre política de segurança e a vida humana.
“Babel” confere vitalidade e uma contundente crítica às fronteiras globais que
não diminui o atrito comunicacional, pois o desprendimento necessário de nossos
valores que enviaria sinais para o outro de nossa disposição em efetivar uma troca de
experiência não ocorre. Fica evidente que as tecnologias de comunicação promoveram
uma sensível “independência” do tempo e reduziram o espaço para que uma fotografia
seja enviada do Marrocos para o Japão para auxiliar no esclarecimento de um grave
caso de ferimento à bala. Mas a questão das fronteiras geográficas permanece um
grande tabu e motivo de orgulho para uns (devendo ser defendida contra invasores) e
revolta para tantos outros (e também de esperança para os postulantes a uma vida
melhor).
A babá mexicana que se vê obrigada a levar os filhos dos patrões estadunidenses
para Tijuana, a fim de assistir ao casamento do filho, conhecerá o tratamento distinto
que recebe quem sai dos Estados Unidos para o México daquele que faz o caminho
inverso, do México para os Estados Unidos (mas, lembrando que em ambos os casos, o
que conta é a suspeita que lançam sobre quem está próximo a romper a fronteira). A
experiência cultural vivida pelas crianças no México se transforma em trauma perante o
fato de se encontrarem perseguidos, perdidos e vitimados pela insolação no deserto do
Arizona. A revista necessária na guarita de segurança, no retorno aos Estados Unidos,
reflete o preconceito e a desconfiança já instaurada no procedimento policial. A ida ao
México fora durante o dia, à volta na alta madrugada. O que faz aumentar o grau de
suspeita. Se algo parece suspeito, deve ser como é. Esse parece o lema que ecoa. O sinal
76
lançado pode ser “não atravesse se não tem permissão”, além do mais com duas
crianças brancas no banco traseiro do automóvel. E outras coisas que podem cair na
ilegalidade. Um duro ensinamento aprendido a base da censura constante e da não
concessão de perdão. “É a proibição de movimento, mais do que a frustração de um
efetivo desejo de mudar, que torna essa situação especialmente ofensiva. Estar proibido
de mover-se é um símbolo poderosíssimo de impotência, de incapacidade e dor”
(BAUMAN, 1999: 130).
“Babel” nos atinge com o efeito dominó da globalização, como um caso
ocorrido no Marrocos, envolvendo cidadãos estadunidenses, causa alterações na vida de
homens e mulheres em quatro países que estão localizados em continentes diferentes
(América, Ásia e África). A fronteira se compacta a ponto de forçar a relação direta ou
indireta entre as pessoas. No entanto, não se trata de fronteiras porosas, são barreiras
que sinalizam contradições, que encolhem, mas comprimem.
“Babel” é a síntese de um “caldeirão” de referenciais e paradoxos que caminha
em seu estágio de integração, discursos e ações que rebatem ou reiteram tais afirmações.
Um mundo, ainda de incompreensões linguísticas, cujas fronteiras se friccionam
expondo danos não solucionados do capitalismo voraz e da incerteza.
A antropologia foi uma das primeiras ciências a transpassar o conceito de
fronteira. Um duplo movimento de “violação”: o olhar in loco (rompendo o espaço)
lançado para as culturas por meio da investigação que ousou fugir do gabinete e do
etnocentrismo e a aplicação de outras disciplinas no método de apreensão desses
mundos, praticamente abolindo o fosso entre elas. As viagens de Bronislaw Malinowski
e do estruturalista Claude Lévi-Strauss e a engenhosidade de Fernando Ortiz foram
iniciais tomadas de posição que confluíram para um esboço de compreensão que tentava
fugir da unilateralidade e dos julgamentos apressados quando do contato cultural. A
antropologia se esmerou para traduzir as mudanças e os atritos dos fluxos culturais
globais que pareciam alterar a configuração de um mundo aferrado as suas identidades
locais e a defesa de suas qualidades nacionais ou comunitárias. A emergência de um
mundo híbrido que se moldava num transnacionalismo conduziu a um estudo e
cunhagem de termos que abarcassem esses eventos seminais. Ulf Hannerz admite o
caráter provisório de tais concepções e aponta a necessidade de depurar suas
proposições.
77
As palavras-chave da antropologia transnacional nas quais concentrei meus comentários são “fluxos”, “limites” e “híbridos”. [...] essas noções são metafóricas, de certo modo provisórias, talvez um pouco imprecisas e ambíguas, e por isso mesmo sujeitas a contestações. Tais palavras chamam a atenção quando examinamos com novos olhares o mundo que nos cerca, porque parecem proporcionar uma percepção imediata de alguma qualidade essencial do que quer que esteja tratando. É possível que as metáforas não tenham muito a ver com um “ponto de vista nativo” (embora alguns nativos possam gostar delas quando as encontram, outros não) (HANNERZ, 1997).
Hannerz aponta, ainda, a importância de detectar as ambiguidades desse
processo, mas que a mistura, a hibridação está contida (na) e contém a globalização.
Mas nos lembra de que o mundo não se harmoniza numa igualdade reconhecida.
Examina que há um luta que comporta um jogo. E que, no mundo que se hibridiza em
seus “fluxos” constantes, muitas pessoas pensam na defesa de seus modos de vida e na
pureza de suas relações culturais. O que sustenta focos de conflitos e aberturas na
modernidade atual.
Canclini nos recorda que os movimentos antiglobalização pautados em temas
que procuram unir temas comuns que celebrem a diferença, como a ecologia, a defesa
das minorias, a defesa das produções locais, a crítica às leis de mercado que prejudicam
os países pobres, a luta pela igualdade sexual, ensaiam a aliança entre essas diferenças
culturais ou religiosas, e partem do pressuposto de que tal alteridade é a garantia de um
futuro prodigioso. Por outro lado, Canclini observa que essas manifestações que
procuram o nascimento da alteridade, “mais que resolver põe em evidência as
dificuldades que persistem quando se quer articular diferenças, desigualdades,
procedimentos de inclusão-exclusão e as formas atuais de exploração” (CANCLINI,
2005: 53).
Arjun Appadurai, em seu ensaio sobre a geografia da raiva, nos revela que um
dos problemas que está relacionado à fronteira que sofre distensão, e favorece a
migração legal ou não, é o horror que a maioria nutre as formas como as minorias
podem se infiltrar na cultura hegemônica e modificá-la. Um temor ilógico que tenta
justificar-se pela defesa dos valores nacionais. Uma conduta que está na extremidade a
um posicionamento referente à globalização que a percebe como possibilidade de
integrar agendas comuns, aspirações a um mundo mais justo e transnacional no qual a
78
hibridação cultural é a aposta que se depara com os riscos, as contradições e os
obstáculos a serem enfrentados.
Os novos ativismos transnacionais têm mais espaço para construir solidariedade a partir de pequenas convergências de interesses e, embora possam também invocar grandes categorias, como os “pobres urbanos”, para construir seus programas, constroem suas verdadeiras solidariedades de modo mais específico, lógico e sensível ao contexto. Eles estão, assim, desenvolvendo uma nova dinâmica em que as redes globais são postas a serviço de entendimentos locais de poder (APPUDARAI, 2009: 100).
Na modernidade líquida, esse panorama de conflito entre nacionalismos
dogmáticos e alteridades emergentes está longe de encontrar uma resolução que atenue
a tensão. Diferentes das disciplinas científicas que já comportam uma interrelação mais
significativa, as fronteiras geográficas são palcos de disputas que o capitalismo abstrato
não pretende considerar nem por em debate. Bauman nos faz recordar que tal recusa
para perceber a intensificação desses confrontos, concernentes a mais ou menos
vigilância nas fronteiras, ocasiona não o fortalecimento dos laços, mas sua dissolução.
Um inimigo ardiloso que fomenta acréscimos à incerteza da sociedade moderna líquida.
CAPÍTULO III
A fragilidade dos laços humanos: da aparente felicidade ao vazio contemporâneo
79
O sociólogo britânico Norbert Elias, ao discutir a relação indivíduo-sociedade,
nota que uma das pré-condições que separa o homem dos outros animais, no que se
refere aos vínculos que os liga aos da espécie, é a sua capacidade de maleabilidade e
adaptabilidade e que tal habilidade faz parte de uma “historicidade fundamental da
sociedade humana” (ELIAS, 1994: 37), denotando, dessa forma, que o indivíduo
contribui para constituir a sociedade a qual pertence ao mesmo tempo em que se adapta
ao ambiente em que vive. Estabelece-se uma relação de “reciprocidade”. Zygmunt
Bauman examina o mérito de Elias em escapar da tradição alicerçada por Thomas
Hobbes, que passa por Stuart Mill, entre outros, de contrapor o indivíduo à sociedade. A
relação de oposição ou de sobrevivência recebe de Elias um tratamento de mutualidade,
cuja permuta se mostra fundamental.
[...] Elias substitui o “e” e o “versus” pelo “de” e, assim, deslocou o discurso do imaginário das duas forças, travadas numa batalha mortal mas infindável entre liberdade e dominação, para uma “concepção recíproca”: a sociedade dando a forma à individualidade de seus membros, e os indivíduos formando a sociedade a partir de suas ações da vida, enquanto seguem estratégias plausíveis e factíveis na rede socialmente tecida de suas dependências (BAUMAN, 2001: 39).
A modernidade foi a fase que engendrou a noção que o conjunto de habitantes
que formavam uma comunidade (cuja ideia se afigurava universal) era composta por
indivíduos. Uma relação bilateral diária de encenação contínua na qual o indivíduo se
libertou dos severos constrangimentos de exercer uma vida estritamente dependente dos
preceitos comunitários e deve, por outro lado, zelar pela consolidação de todo aparato
constituinte da sociedade. A autonomia pessoal gerava atritos com as obrigações sociais
dispostas para ser obedecidas. Nasce uma ambivalência significativa no “parto” da
modernidade. Um choque entremeado pelos desejos de sujeitos unos e as concessões
necessárias para o convívio social. Mas, o indivíduo na modernidade sólida somente era
caracterizado e entendido como tal no seio da sociedade. E o projeto moderno,
justamente, era pôr fim a ambivalência fazendo com que uma postura racional fosse
implantada e reconhecida como preponderante. E o sujeito livre não estava fora dessa
80
equação. Por mais que essa “relação bilateral” precisasse de uma encenação
intermitente, o que se visava era a estabilidade, a possibilidade de erigir certa
previsibilidade que tornasse evidente e efetivo a ordenação racional das sociedades.
Regulamentação e ações coletivas (um Estado forte responsável por essas medidas) da
racionalidade para fomentar a eliminação de qualquer dubiedade a respeito da aplicação
do projeto modernizador.
Mas a estruturação e a manutenção da ordem – a estruturação da condição humana – eram, agora, depois do colapso da rotina auto-representativa pré-moderna, uma dessas questões que clamavam pelo controle humano. A ideia de “estrutura” se refere à manipulação de probabilidades; um cenário é “estruturado” se determinados eventos são mais prováveis do que outros, se alguns outros são muito improváveis e se a hierarquia de probabilidades permanece relativamente constante. Por fim, manter a ordem nas questões humanas se reduz a aumentar a probabilidade de um tipo de comportamento e diminuir ou eliminar a probabilidade de outros tipos de comportamento. Se esse é bem-sucedido, o decorrer dos eventos pode se tornar previsível, e as consequências das ações, calculáveis; pode se tornar possível, em outras palavras moldar o futuro de antemão (BAUMAN, 2008a: 86-87).
A pretensão não estava depositada na antecipação de acontecimentos, mas pelo
cálculo construir os fatos que gerariam o futuro racional, o que propiciou um alto
investimento na ciência. Para isso, a individualização que se implantava precisava da
esfera pública como palco de sua corroboração e expressão. A regulamentação previa o
controle desse espaço público que, assim como os eventos, deveria se tornar previsível.
Desse modo, soma-se às descobertas científicas e ao desenvolvimento tecnológico uma
ordenação e estabilidade social. A individualização acarretou um esforço para se
encaixar no novo padrão de comportamento alardeado como civilizado. O rompimento
com as tradições religiosas, aos menos com os dogmas mais arraigados que viam toda
ocorrência natural e feitos humanos como manifestação da Providência Divina, e com
as superstições próprias da pré-modernidade, jogavam o período anterior inteiramente
na condição de incivilizado e irracional.
A individualização surgia como um destino. Um estado irrecusável, de
constituição irrefutável que se erguia sobre os decadentes “sólidos” pré-modernos novos
“sólidos” cunhados pela asseveração de conceitos indestrutíveis. Era um mundo ditado
por regras rigorosas, inescapáveis apenas pelo uso da própria racionalidade que enredara
81
a todos em sua “teia”. O uso instrumental da razão se sobrepõe aos outros usos
potenciais. Nesse cenário, a individualidade ficara a mercê de uma propensão coletiva
das necessidades humanas.
As privações “se somaram”, por assim dizer, e se congelaram em “interesses comuns” – e foram vistas como tratáveis apenas por um remédio coletivo: “o coletivismo” foi uma estratégia atraente para aqueles que estavam do lado receptor da individualização, mas que se viam incapazes de se autoafirmar como indivíduos por meio de seus próprios e escassos recursos (BAUMAN, 2008a: 64).
Esse mesmo cenário não solapou a ideia de autoafirmação. A ambivalência que
deveria ser afastada se instalou no cerne da modernidade, proliferando a visão de uma
fenda entre o individual e o coletivo, uma comissura entre os mencionados desejos de
sujeitos unos e as concessões que todos precisavam ceder em nome da harmonia
racional do convívio social. O conflito estava instaurado. Como nos lembra Allan
Mocellim, em seu artigo “Simmel e Bauman: modernidade e individualização”, “O
grande problema da modernidade foi, para Bauman, a suposição de que a ação política –
e técnica – racionalmente orientada poderia eliminar toda a contradição do mundo. No
entanto a incerteza e a contradição são constitutivas de toda ação” (MOCELLIM, 2007:
116).
A ambivalência que seria combatida objetivamente redundou em dúvidas e
paradoxos que foram sentidos de maneira subjetiva, apesar de uma sensação que se
generalizou afetando a estrutura de um mundo supostamente estável.
A condição moderna sólida de marcha para um destino seguro de progresso das
instituições, criações e vida humana (um das ideias centrais da modernidade) estava
abalada. A individualização tornou-se cada vez mais aguda. A sonhada autonomia de
homens e mulheres atingiu um ponto em que extrapolou a ideia de emancipação
intelectual efetivada em prol da sedimentação das necessidades sociais. A prioridade
passou a ser a autoafirmação individual. As circunstâncias do mundo abarcavam a
desregulamentação e a privatização do espaço público, insegurança e instabilidade em
relação às construções racionais de um Estado provedor das necessidades de seus
membros, de instituições seguras e projetos de vida infalíveis. O mundo se expandia,
comprimiam-se as distâncias entre um ponto e outro do mapa mundi e se assistia ao
82
poder torna-se abstrato. A individualização pareceu um propósito impossível de se
desviar.
Não nos enganemos: agora, como antes, a individualização é um destino, não uma escolha: na terra da liberdade individual de escolha, a opção de escapar à individualização e de se negar a participar no jogo individualizante não faz parte, de maneira alguma da agenda. O fato de homens e mulheres não terem ninguém para culpar por suas frustrações e problemas não significa, agora mais do que no passado, que eles possam se proteger contra a frustração usando suas próprias utilidades domésticas, ou furtar-se dos problemas, como o Barão de Munchhausen, puxando-se pelas alças das botas (BAUMAN, 2008a: 64).
O peso dos fracassos e erros, das resoluções que tendiam a encontrar o porto
seguro do êxito, mas que acabaram em frustração, o problema de saúde, a falta de forma
física, a estafa mental, o ataque de nervos são considerados produtos da inabilidade de
homens e mulheres para colocar em prática e de maneira efetiva seu direito individual
de escolha. Essa, ao menos, se tornou a crença da modernidade líquida. O número de
opções a disposição resultou na individualização dos acertos e falhas. O indivíduo toma
o primeiro plano. A responsabilidade é sua, assim como lidar com as consequências fica
a seu cargo: a incerteza, a insegurança e a falta de garantias. Como nos aponta Bauman,
citando Ulrich Beck, “a forma como se vive se torna uma solução biográfica para as
contradições sistêmicas”. Toda a produção social de riscos e contradições que nos afeta,
com a construção de um mundo sustentado pela adaptação à flexibilidade, à dinâmica
das exigências de mercado, à incerteza devem (parece nos convencer os agentes do
mundo em descontrole) ser resolvida pelo próprio indivíduo, é o seu dever encontrar
saídas para as encruzilhadas que surgem no percurso.
A modernidade líquida contempla em seu arcabouço uma série de conflitos,
divergências e questões que estão no cerne das angústias contemporâneas. Alguns temas
que poderiam, anteriormente, causar (ou carregar uma semente) de esperança, hoje, são
periclitantes. O consumo como prática de formação identitária revela um problema em
relação à identidade que está além dos problemas de fronteira e aceitação em grupos de
identificação; a política-vida (aquilo que as pessoas devem fazer por si mesmas, cada
uma por si, já que há a desregulamentação e privatização das instituições aos quais elas
83
poderiam recorrer) substituindo a política da organização social (a política com “P”
maiúsculo); a individualização crescente que esbarra na necessidade de pensar o mundo
global como não separado de cada ação humana. Esses são apenas uma série de
problemas que denotam a fragilidade dos laços humanos, um amor líquido, que afeta os
homens e mulheres no seu cotidiano gerando ansiedade, deslumbramento ou
indiferença, mas, obviamente, aumentando a incerteza da vida em constante movimento.
3.1. Laços construídos, laços dissipados
A modernidade líquida enseja uma sucessão de escolhas que obstrui qualquer
pretensão de solidificação, seja de enraizamento numa comunidade ou a estabilidade no
local de trabalho. Não que as pessoas sejam obrigadas a seguir o curso de uma vida na
qual serão punidas se acaso se firmarem em algum lugar, mas são estimuladas a se
movimentar à procura de sucesso e promessas de uma felicidade que está sempre à
frente à espera no próximo ponto.
O sociólogo Richard Sennett aponta que as relações pessoais e familiares são
afetadas pela dinâmica exigida no trabalho pelo novo capitalismo. Compromissos,
convicções e lealdade são prescrições de um mundo que precisa de tempo para propagar
tais virtudes. Elas pertencem à esfera das coisas que necessitam de prazo para serem
efetivadas. Mas na contemporaneidade esse aspecto foi dirimido e o curto prazo passou
a ser uma exigência, um sintoma da fragilidade dos laços construídos, juntamente com
ideais como o de família, de comunidade, de ascensão no emprego etc.
No mundo atual, os atributos cobrados no trabalho desassociam-se da constância
e da reciprocidade dos compromissos que acompanham (ou deveriam/poderiam) a
família. A inconstância, a perda da razoabilidade no que concerne aos compromissos
mútuos e de uma pretensa afetividade àquilo a que nos encarregamos e denominados
como profissão adentrou os lares, tornando-os locais de transição, de pousada, onde a
relação pais e filhos sofre a consequência da falta de tempo, da falta de prática no
contato humano, do dinamismo voraz que prega a velocidade e a leveza como itens
centrais a ascensão na sociedade moderna.
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Esse conflito entre família e trabalho impõe algumas questões sobre a própria experiência adulta. Como se podem buscar objetivos do longo prazo num sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva do tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego (SENNETT, 2009: 27).
O mundo contemporâneo gera a impressão de uma encruzilhada. Parece
engendrar dicotomias ou oposições que não podem ser críveis de uma dialética que as
apazigue: sucesso versus afetividade, objetivo versus reflexão, dinamismo versus
compromisso. O capitalismo, como sugere Sennett, resulta em uma corrosão do caráter.
Instala uma preocupante contradição entre os desafios do trabalho atual e o desejo de
pertença comunitária e dos laços familiares.
Sennett, em A corrosão do caráter: consequências pessoais do novo
capitalismo, cita o caso de Rico, um dos entrevistados de sua pesquisa, sobre o
comportamento flexível pregado no recente capitalismo. Rico alimenta a vontade de
consolidar relações sociais perenes e de ser um pai mais presente, que eduque aos filhos
transmitindo a importância da solidez dos objetivos, do compromisso, da ética e do
afeto. Mas a competição que se estabelece no cotidiano do trabalho, no qual assumir
risco recebe tópicos específicos de alegação de urgência e comportamento flexível,
dilapida aos poucos qualquer possibilidade de um liame pleno entre o trabalho e a
aspiração a fixar-se nele e deformando o vínculo que poderia ser afável entre casa e o
trabalho que se exerce. No mundo atual instituir valores que formatem uma unidade
entre os âmbitos nos quais circulamos (casa, residências de amigos, eventos sociais, de
lazer etc.) e entre nossas experiências (de trabalho) tornou-se uma tarefa árdua, que
diante da dificuldade esbarra na obsessão ou na indiferença. Por mais que se deseje um
ordenamento em relação às coisas que nos cercam (família, comunidade, trabalho, lazer,
sonhos) criar idiossincrasias para efetivá-lo pareceria contraproducente na competição
para pertencer ao grupo dos bem-sucedidos. Sennett, ao falar de Rico, constata o drama
em se executar parâmetros de atuação que concilie valores que agregam uma vida
familiar/comunitária e a luta por espaço no mercado de trabalho.
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Todos os valores específicos (...) são regras fixas: o pai diz não; a comunidade exige trabalho; a dependência é um mal. As incertezas das circunstâncias estão excluídas dessas regras éticas – afinal, é das incertezas aleatórias que Rico quer se defender. Mas é difícil pôr em prática essas regras atemporais (SENNETT, 2009: 29).
A incerteza passa a ser uma sensação avassaladora e que pode, se não houver
resistência a ela, desembocar na corrosão do caráter. “O que é singular hoje é que ela
existe sem qualquer desastre histórico iminente; ao contrário, está entremeada nas
práticas cotidianas de um vigoroso capitalismo” (Ibidem: 33).
A produção cinematográfica “Tempestade de Gelo” (1997), dirigida por Ang
Lee, adaptação do romance homônimo do estadunidense Rick Moody, publicado em
1994, foca atenção sobre famílias residentes em New Canaan, no Estado de
Connecticut, nos anos 70 do século XX. A película aborda através das relações
familiares, no Dia de Ação de Graças, o desmoronamento das tradições que amarram
família, casa e laços comunitários; desmoronamento este propiciado pela revolução de
comportamento advinda da contracultura do final da década de 60. No entanto, o sonho
hippie de liberação sexual se choca com a emergência dos yuppies que abarca o desejo
de conquista social com um latente vazio existencial. Numa das famílias, a Carver, há o
pai ausente do convívio familiar por decorrência das viagens de trabalho que o obriga a
se deslocar constantemente para outras cidades. A sua relação com os filhos sofre de
uma incomunicabilidade lacerante. Não existe diálogo, nenhum feixe penetra a barreira
do descontentamento, expiado apenas em respostas monossilábicas referentes às
perguntas banais. A transmissão de valores perde-se diante de uma ausência que não
encontra elementos para ser superada.
Vistas de fora as famílias retratadas em “Tempestade de Gelo” poderiam ser
definidas como felizes: belas casas, filhos na escola, trabalhos que remuneram bem.
Mas o verniz da fachada não resiste ao leve toque dos dedos. Zygmunt Bauman nos
lembra de que coisas desagradáveis nos ocorrem e, geralmente, são imprevisíveis,
ocasionalmente nos pegam despreparados e a aparência de felicidade ganha contornos
incômodos.
Mesmo as vidas das pessoas mais felizes (ou, segundo a opinião comum e um tanto contaminada pela inveja dos infelizes, as mais sortudas) estão longe de
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serem livres de problemas. Pouco de nós estão prontos a declarar que tudo na vida funciona como gostaríamos que funcionasse – e até esses poucos têm momentos de dúvida (BAUMAN, 2007a: 99).
“Tempestade de Gelo” expõe a fratura entre uma espécie de aparência de
felicidade e da felicidade em agonia. Os valores foram solapados pela fragilidade da
autoridade no seio dos convívios interpessoais. O combate no mercado de trabalho –
severo, rasteiro, cuja observação da ética fica relegada a segundo plano devido à
importância dada à eficiência que reduz o tempo dos empregados nos lares e a cobrança
por resultados instantâneos – deflagrou a imperícia nas relações cotidianas. O que restou
foi evitar a consequência da derrota. Ou de tudo que lembre sua aproximação. Bauman
aponta que para muitos manter-se na caça parece uma solução. Não parar nunca. Uma
válvula de escape para fugir da reflexão.
O que resta para suas preocupações e esforços, e que deve atrair parte de suas atenções e energias, é a luta contra a derrota: tente ao menos permanecer entre os caçadores, já que a única alternativa é se ver entre os caçados. Para que seja desempenhada adequadamente e com chance de sucesso, a luta contra a derrota vai exigir sua plena e total atenção, vigilância 24 horas por dia, sete dias por semana, e acima de tudo manter-se em movimento – tão rápido quanto puder... (BAUMAN, 2007a: 109).
Em “Tempestade de Gelo” há um fio tênue entre potência e melancolia. Poder-
se-ia falar em uma “letargia efervescente”. Na sociedade estadunidense dos anos 70, que
influenciou a cultura e o comportamento no mundo ocidental, as soluções das
personagens para esconder as fraturas, as cisões, as tensões foram o relacionamento
extraconjugal marcado pela incomunicabilidade e a frieza, a cleptomania, os jogos
sexuais promovidos por adolescentes etc. Todas são soluções individuais que nem
arranham a “armadura” dos problemas estruturais que empalideceram a autoridade
moral e preencheram as expectativas com doses de desespero.
O esforço para fugir da sensação de desconforto do mundo atual se traduz na
ideia de comunidade. Busca-se empreender (no sentido de construção, com ênfase em
um negócio comercial) veredas protegidas das atribulações e perigos diários da vida
moderna líquida. A comunidade se apresenta como um oásis diante do deserto de
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brutalidade que se entende ser generalizado. Deseja-se pertencer a um grupo distinto,
exclusivo, deste modo, tornar-se extraterritorial dentro da própria cidade. Na verdade,
residir em uma fortaleza que afaste os indesejados, os que não são bem-sucedidos e que
não compartilham das mesmas ideias, aspirações, estilo de vida. A redoma de vidro
pertence ao processo de “individuação” contemporânea que nos destaca dos outros, nos
personaliza e nos integra aos que são iguais a nós. Esse é um êxito aristocrático que a
elite contemporânea arrogou para si. Porém tal distinção não forma laços entre os
membros dessa comunidade. Terrenos são adquiridos, casas (castelos ou mansões) são
erguidas e o afastamento – sintoma de status quo – é efetivado. Mas na realidade, a
ideia de comunidade já é negada de antemão. A comunidade molda e transparece a
segurança comprada e o status almejado. No entanto, não traz em seu cerne termos
como solidariedade, compreensão e abnegação. Uma questão imprescindível refere-se
ao fato que a fortaleza erguida nem é o local no qual tal elite pode ser encontrada sem
dificuldade. Sendo extraterritorial a elite está sempre em movimento. Tal inconstância
não contribui para as relações comunitárias.
O mundo habitado pela nova elite não é porém definido por seu “endereço permanente” (no antigo sentido físico e topográfico). Seu mundo não tem outro “endereço permanente” que não o e-mail e o número do telefone celular. A nova elite não é definida por qualquer localidade: é em verdade e plenamente extraterritorial. Só a extraterritorialidade é garantida contra a comunidade, e a nova “elite global” que, exceto pela companhia inevitável (e às vezes agradável) dos maîtres, arrumadeiras e garçons, é sua única e quer que assim seja (BAUMAN, 2003: 53).
Se não podemos “estacionar”, tornar o movimento insignificante, como fazer
então para ecoar um sentido real a palavra comunidade? Esse mundo deslumbrante da
“elite global” não privilegia associações e experiências de engrandecimento espiritual
mútuo. Deste modo, como nos recorda Bauman, “É singularmente inadequado para o
papel de ‘cultura global’: o modelo não pode ser espalhado, disseminado, compartilhado
universalmente, usado como padrão a imitar numa missão de proselitismo e conversão”
(Ibidem: 54). O deslocamento não concede instantaneamente a atribuição de troca
cultural ou de um multiculturalismo vivenciado. A “elite global” carrega consigo
caracteres que impedem a mistura e a absorção de novas culturas. Além do preconceito
social, há uma clara deferência a seu “lugar no mundo”, que qualquer possibilidade de
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interpretação está afastada. Bauman adverte que o estilo de vida da elite extraterritorial
não deve ser adotado pelas massas.
O que esse estilo de vida celebra é a irrelevância do lugar, uma condição inteiramente fora do alcance das pessoas comuns, dos “nativos” estreitamente presos ao chão e que (caso decidam desconsiderar os grilhões) vão encontrar no “amplo mundo lá fora” funcionários da imigração pouco amigáveis e severos em lugar dos sorridentes recepcionistas dos hotéis. A mensagem do modo “cosmopolita” de ser é curta e grossa: não importa onde estamos, o que importa é que nós estamos lá (BAUMAN, 2003: 54-55).
O cosmopolitismo não é viável para os deserdados do mundo ou para os que não
detêm as ferramentas (principalmente a financeira) que favoreçam a
extraterritorialidade. Entretanto, a viagem da “elite global” não guarda vínculos com as
viagens de descoberta. Ela não consagra o hibridismo. Observa-se a uniformização dos
lugares frequentados, das acomodações, do roteiro turístico. Enfim, de uma rigorosa
padronização. Mais uma vez estamos num mundo seletivo. Ou se adequa a ele ou se
está automaticamente excluído (ou atirado para o ostracismo). Não há uma experiência
estrangeira, o contato possui grau zero de risco em causar abalo neste mundo de
privilegiados. E este tal mundo permanece no campo da individualidade, tanto no
estrangeiro quanto na comunidade tudo permanece ocasional, sem envolvimento, sem
alterações profundas na base que a sustenta: inviabilizando a possibilidade de fuga. Os
problemas relacionados à incerteza são concretos. A dúvida, a indiferença e a falta de
confiança se completam e se anulam. Queremos algo do mundo, pode ser amor,
sucesso, dinheiro ou o respeito dos outros. Muitos desses desejos nos condicionam na
modernidade sólida e seus efeitos persistem na modernidade líquida (ou pós-
modernidade). Queremos ter absoluta certeza das nossas escolhas, de que cada decisão
tomada nos pertence, nasce da disposição que possuímos para efetivar nossas vontades.
“E o controle sobre o presente, a confiança de estar no controle de seu próprio destino, é
o que falta às pessoas que vivem em nossa sociedade” (BAUMAN, 2008a: 189). O peso
da aleatoriedade das coisas nos persegue. As soluções pertencem ao reino das iniciativas
que nos parecem ser necessárias, logo biográficas, sejam suas causas coletivas ou não.
Algo que permanece em prejuízo nessa equação de viver com os outros e buscar a
individualidade é a intimidade. Richard Sennett propôs um estudo sobre a intimidade na
era moderna. A ideia de relações íntimas projetou-se em um período de transição
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(declínio) do homem público para a vida privada. O que está circunscrito a nossa vida
particular, as coisas que se passam no interior da família, tomam o primeiro plano,
ganham destaque em local público. “A intimidade é um terreno de visão e uma
expectativa de relações humanas. É a localização da experiência humana, de tal modo
que aquilo que está próximo às circunstâncias imediatas da vida se torna dominante”
(SENNETT, 1988: 142).
A vida privada se torna tão abrangente que a vida passa a ser apenas a vida a ser
contada de modo individual. A vida íntima se transforma em uma espécie de
curiosidade pública. Mas o que ocorre na esfera privada é justamente o contrário dessa
exposição. Os relatos intrínsecos a cada um são jogados para fora das residências, mas o
desejo soberano é evitar a abertura para que o íntimo seja sondado. Há um temor, uma
tensão que perpassa a vida privada. “Quanto mais chegadas são as pessoas, menos
sociáveis, mais dolorosas, mais fraticidas serão suas relações” (Ibidem: 412). A vida
interna devassada pelo olhar do outro causa horror. Um medo plausível que não tem
vínculos somente com segredos que se deseja ocultar, mas com a dificuldade de ser
objeto de curiosidade alheia, a invasão e indiscrição que procuram e distorcem sonhos e
obsessões.
Creio que a frustração que o contato íntimo provoca na sociabilidade é, antes, o resultado de um longo processo histórico, um processo em que os próprios termos da natureza humana foram transformados num fenômeno individual, instável e autoabsorvido, que chamamos “personalidade” (SENNETT, 1988: 412).
O coletivo desponta como um emaranhado de obrigações, coerções e ditames
que cingem as opções pela vida que queremos construir. A minha “personalidade” só se
torna possível no âmbito da liberdade. Apenas como indivíduo posso me realizar. A
intimidade corrói esse terreno da liberdade, pois ela inclui a vigilância e a justificação
constante. Se homens e mulheres têm a capacidade e volições que os conduzem a se
agregarem a grupos, como lidar com a necessidade de “individuação” e se satisfazer em
relações que exigem intimidade? Em muitos casos evitar os compromissos de laços e
afinidades e apenas associar-se a alguém para ver aonde isso irá levar parece ser a
solução ideal na sociedade líquida moderna.
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“Viver juntos” também está acoplado à modalidade pós-moderna de risco.
Escolhas entre nossas asseverações e as concessões que devemos fazer. Mas viver
juntos, condição que se desvia do contrato de casamento, é uma aposta que tende a não
se basear na afinidade. Algo que precise ser revalidado diariamente. A afinidade quando
posta à disposição constante de votos de confiança ganha contornos de parentesco. As
características dos laços sanguíneos contaminam as escolhas: irrevogabilidade,
incondicionalidade, etc.
A afinidade nasce da escolha, e nunca se corta esse cordão umbilical. A menos que a escolha seja reafirmada diariamente e novas ações continuem a ser empreendidas para confirma-la, a afinidade vai definhando, murchando e se deteriorando até se desintegrar. A intenção de manter a afinidade viva e saudável prevê uma luta diária e não promete sossego à vigilância. Para nós, os habitantes deste líquido mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e durável, tudo que não se ajusta ao uso instantâneo nem permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva pode ser mais do que aquilo que estamos dispostos a exigir numa barganha. Estabelecer um vínculo de afinidade proclama a intenção de tornar esse vínculo semelhante ao parentesco – mas também a presteza em pagar o preço pelo avatar na moeda corrente da labuta diária e enfadonha. Quando não há disposição (ou, dado o treinamento oferecido e recebido, solvência de ativos), fica-se inclinado a pensar duas vezes antes de agir para concretizar a intenção (BAUMAN, 2004a: 46).
Viver juntos não demanda expectativas por trajetos seguros e metodicamente
planejados. Afinidades pressupõe aliança. Bauman aponta que a afinidade tem relação
com parentesco, pois é uma ponte que aproxima um do outro. Nelas há a afetação da
ideia do insolúvel, não pode haver insinuação de subterfúgio. Em teoria, consagra-se a
segurança dos laços indissociáveis, das semelhanças que unem e refletem as escolhas.
Viver juntos qualifica a incerteza como indispensável, na verdade, não que ela seja
preponderante no relacionamento, mas é evidenciada, posta de lado e sobrevive, até
quem sabe, ser responsável pelo término da relação. Viver juntos é uma aventura, é a
síntese dos relacionamentos modernos.
Não há como saber, pelo menos com antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída. A questão é atravessar os dias como se essa diferença não contasse, e portanto de uma forma que torna irrelevante o problema de “colocar os pingos nos Is” (BAUMAN, 2004a: 47)
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No entanto, a fragilidade contemporânea conduz, apesar do temor e da
dissolução dos vínculos parentais (daquilo que nos faz lembrar deles como grilhões), a
certa sutileza e desejo de proteção. Como tudo perde valor com a mesma velocidade de
um clique no mouse querer conservar vestígios delas parece apropriado para recordar
dias melhores ou promessas futuras.
3.2. Vivendo no abandono: implicações políticas
Indivíduo é um conceito moderno. Para a modernidade o indivíduo era
concebido em um âmbito social. Pensar em um ser Uno sem direitos e deveres era
abstraí-lo da sociedade e, certamente, prejudicial a solidificação/racionalização da vida
recém-saída do “obscurantismo” do período medieval. No projeto moderno, a
autodeterminação surge como prognóstico e exigência de um livre exercício racional
por parte de seres autônomos.
Para constituir instituições indestrutíveis, à prova de manifestações da
irracionalidade, era preciso implodir antigos pressupostos provincianos, pastorais e
intuitivos. A modernidade fora impulsionada pela destruição tida como criativa. Para a
destruição a se empreender foi necessária gerar seres produtivos, ousados e capazes da
revolução acalentada como saída para a racionalidade científica que se planeja priorizar.
Para a era produtiva e criativa que se configurava, o indivíduo deveria reunir em si a
inclinação de questionar, descobrir e conhecer. A contínua cisão/complementação
indivíduo-sociedade emergia na aurora chamada “busca da verdade”
O indivíduo como sujeito livre em uma sociedade indicava a importância da
cidadania. Mas, indivíduo e cidadão acabam por soar como contradições. O indivíduo
de jure (falso, aquele que não domina, e tão pouco conhece, os processos de atuação,
que, desse modo, não tem ninguém a quem culpar ou cobrar pelas humilhações diárias,
ou seja, homens e mulheres que não encontraram condições para autonomia e
autodeterminação) mesmo que ocupe o espaço público não exercerá sua cidadania. O
92
esvaziamento da esfera da cidadania ocorre pelo desejo de tornar os cenários privados
atraentes aos olhos de todos. O indivíduo é o foco de atenção, não o cidadão.
Gilberto Dupas percebe no confronto indivíduo-cidadão o nascimento de uma
anomia que causou a desconsideração do espaço público como lugar para o debate
político e propício para busca de adições sociais que visassem o bem comum.
(...) o indivíduo é inimigo do cidadão; e a verdadeira política só é viável com base na ideia de cidadania. Quando os indivíduos se imaginam únicos ocupantes do espaço público, acabou o bem comum; portanto, acabou a política. O público se torna escravizado pelo privado. O interesse público fica limitado à curiosidade pela vida privada das figuras públicas (DUPAS, 2006: 274-275).
O indivíduo segrega o cidadão justamente por negar-lhe voz ou campo de
atuação. A referida falta de seriedade na elevação dos nomes, e não das ideias, no
campo de batalha pela visibilidade e pelos corações e mentes da audiência, dá a
entender que o fim da política está próximo. Uma sociedade autônoma não é aquela que
opta em abandonar a política, mas a que a tem como dispositivo central em seu
cotidiano.
O indivíduo de jure não pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma autoconstituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros (BAUMAN, 2001: 50).
O indivíduo de facto (aquele capaz de se autodeterminar, que possui o controle
de seu destino e lida com as escolhas a se fazer com autonomia) precisa da sociedade e
do espaço público para sua formação. A independência de pensamento estaria ameaçada
com a completa ausência de assuntos públicos discutidos em cenários públicos. Na
modernidade fluída, a possibilidade do indivíduo de jure conquistar o status de
indivíduo de facto declina diante do esmorecimento da política com P maiúsculo, a
política do espaço público.
93
Bauman postula que uma política-vida vem ocupando, na modernidade líquida,
o lugar destinado à política que afere aos cidadãos atuantes de um Estado ou grupo
social.
Quando a política abandona suas funções e a “política-vida” assume, os problemas enfrentados pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornar indivíduos de facto passam a ser não-aditivos e não-cumulativos, destituindo assim a esfera pública de toda substância que não seja a do lugar em que as aflições individuais são confessadas e expostas publicamente (BAUMAN, 2001: 63).
Recuperando o axioma de Ralph Waldo Emerson, “Quando se patina sobre gelo
fino, a segurança está na nossa velocidade”, pode-se entrever uma regra da política-
vida, ou ainda, uma saída para o enfraquecimento das ações coletivas (de ordem
política, institucional) para as demandas de “interesses comuns”, seja saúde, trabalho
etc. O processo enfático de individualização da recente etapa da modernidade infligiu
aos membros de cada sociedade (ocidental) o jugo do “cuide de sua própria vida”. Um
equilíbrio forçado se faz necessário na corda-bamba dos eventos coletivos que
encontram olhares incrédulos, soluções improvisadas ou repostas automáticas de
homens e mulheres que devem corresponder a tais eventos. Porém, a afirmação (e seria
uma triste constatação) de que uma política-vida, ou a responsabilidade total e
inapelável de todos os nossos erros e acertos, é o estágio final de autonomia moderna
seria um grande equívoco. A individualidade, como intenção modernizadora de homens
e mulheres, previa a autodeterminação e a capacidade de respostas convincentes e
independentes dos sujeitos, entretanto não o desamparo institucional e a invasão da
esfera pública pela intimidade de cada um (leiam-se celebridades, políticos, psicopatas
ou os afortunados com “quinze minutos” de fama). O indivíduo deve procurar meios
para se beneficiar como os louros dos seus sucessos e arcar com as consequências dos
erros. Não há atalhos proporcionados por entidades originários de uma política com P
maiúsculo. Para Bauman, “Como tarefa, a individualidade é o produto final de uma
transformação societária disfarçada de descoberta pessoal” (BAUMAN, 2007b: 31). A
individualidade (a luta para sua efetivação) se assinala como um perigo para os vínculos
sociais. O esmorecimento gradativo dos laços que uniam uma pessoa a cada membro da
sua comunidade, ao mesmo tempo em que atribuía a ela (evidentemente aos
94
componentes aptos desse conjunto) a liderança das decisões coletivas, desperta uma
crise, uma contradição, esta última incorporada plenamente à comunidade ou a se
destacar das centenas de vozes que a formam. No entanto, o poder coletivo deteriorou-
se diante da exacerbação da individualidade. Contudo esse panorama não traduz uma
liberdade irrestrita perante as escolhas que temos ou devemos fazer.
Embora o destino e o dever da livre escolha sejam premissas tácitas ou reconhecidas da individualidade, não são suficientes para assegurar que o direito a esta possa ser usado. Portanto, a prática da individualidade não necessariamente ao padrão imposto pelo dever da livre escolha. Na maior parte do tempo, ou em alguma ou em várias situações, muitos homens e mulheres consideram a prática da livre escolha fora de alcance (BAUMAN, 2007b: 33).
Corre-se atrás do “pote de ouro”. A imagem de uma ilha de desesperados na qual
querer não é poder, definitivamente, seria um exagero, mas a dificuldade da
individualidade de jure concretizar sua passagem para uma individualidade de facto
provoca angústia e um tipo de aflição não salutar.
A reconquista do espaço público é uma tarefa que exige a anuência de todos os
partícipes do coletivo que assistem à perda desse referencial da partilha do bem comum.
Tal proposta denota um risco incomensurável. Risco que os habitantes da
sociedade moderna líquida correm simultaneamente à incerteza que cada passo
transporta.
3.3. Consumo e identidade
A modernidade líquida exibe a marca de uma sociedade de consumidores.
Compra e venda em ritmo frenético. A busca por uma satisfação que deve permanecer
irrealizável, eis o pressuposto meticuloso dos “engenheiros” deste maquinário. Na
verdade, a desconfiança de que é assim que funciona a engenhosa rede voraz de
acúmulo e descarte, serve ao propósito de alimentar os desejos e impulsos e levar esse
sistema para frente. “A não-satisfação dos desejos e a crença firme e eterna de que cada
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ato visando a satisfazê-los deixa muito a desejar e pode ser aperfeiçoado – são esses os
volantes da economia que tem por alvo o consumidor” (BAUMAN, 2007b: 106). A
insatisfação é quem dá continuidade ao jogo. É certo que é preciso vontade, aguçar o
desejo, cobiçar ardentemente. Porém, a insatisfação garante o ciclo de aquisição,
despesa e produção de entulhos.
Bauman refere-se a uma síndrome consumista que norteia a sociedade de
consumidores. Parece aceitável alegar que o problema não esteja no consumo, mas na
organização social que dá relevo aos atos da compra e venda, de presença em eventos,
de qualquer ação social independente do ambiente como parte constitutiva de um ritual
de status e de prazeres supostamente necessários. A síndrome consumista impregna os
contatos sociais, a política-vida sofre desse contágio, o que conduz ao beco sem saída de
integrar-se ou aguentar as consequências de não saber quais são as novidades da última
hora.
A sociedade de consumidores se ressentiria se não houvesse novidades a todo o
momento. A novidade, sempre fresca e inédita, funciona como suprimento desta
indústria. “Na hierarquia herdada dos valores reconhecidos, a síndrome consumista
degradou a duração e promoveu a transitoriedade. Colocou o valor da novidade acima
do valor de permanência” (Ibidem: 110). A aquisição e o descarte, o querer e o possuir
toda a distância entre eles foi pulverizada. As coisas surgem e desaparecem. O prazer
realizado já é negado no princípio da volição pelo objeto. O desejo nasce sacrificado
pela velocidade em que será exaurido. No fundo, não como uma mácula da vontade,
mas como uma marca de seu nascimento, está a certeza de que logo o fim do objeto
acalentado como essencial chegará. “Entre os objetos do desejo humano colocou a
apropriação, rapidamente seguida pela remoção de dejetos, no lugar de bens e prazeres
duradouros” (Idem).
As novidades movimentam um mercado global onde o consumo torna-se um
imperativo. Como sentencia o historiador estadunidense Eric Hobsbawn (2000, p. 78),
“Para os profetas de um mercado livre e global, tudo o que importa é a soma de riqueza
e o crescimento econômico sem qualquer referência ao modo como tal riqueza é
distribuída”. Esse sistema aperfeiçoa a ideia de que possuir/apropriar é fruto de um
desejo espontâneo e não uma necessidade criada. Sem entrar no mérito de uma séria
questão, a do papel da publicidade, a disputa entre espontaneidade e estímulo tem pouca
relevância diante da procura em atender a vontade de comprar. É preciso ter reservas
96
para assegurar defesas contra a imprevisibilidade dos acontecimentos. Não é mera
questão de status ou compulsão. Há toda uma “parafernália” que estimula os impulsos e
preocupações, as quais a síndrome consumista já espalhou como forma de aumentar a
receita. Porém, nada desse jogo de sedução e declaração de necessidades inadiáveis
aproxima-se da felicidade prometida.
E assim, permitam-me repetir, a sociedade de consumo não é nada além de uma sociedade do excesso e da fartura – e portanto da redundância e do lixo farto. Quanto mais fluido o ambiente de suas vidas, mais os atores precisam de objetos potenciais de consumo para proteger suas apostas e garantir suas ações em relação aos caprichos do destino (rebatizados na linguagem sociológica de “consequências imprevistas”). O excesso, contudo, aumenta a incerteza das escolhas que se esperava que eliminasse, ou pelo menos aliviasse ou reduzisse – e assim o excesso nunca é suficientemente excessivo. A vida dos consumidores é uma infinita sucessão de tentativas e erros. É uma experimentação contínua – mas não de um experimentum crucis capaz de conduzi-los a uma terra de certezas mapeadas e sinalizadas de modo fidedigno (BAUMAN, 2007b: 111).
O mundo do consumo pode ser descrito como um cenário em ebulição. É um
cenário no qual os clientes devem circular sem obstáculos, sem desperdício de tempo.
O mercado de consumo fomenta o modo imediato de se ter aquilo que se deseja. O não-
desperdício de tempo passa a ser o desperdício de objetos que estão na moda e que
depois se tornam refugos, cujo destino é ao lado de entulhos em algum depósito de
lixo.
Para não desperdiçar o tempo de seus clientes, nem prejudicar ou impedir suas futuras mas imprevisíveis alegrias, o mercado de consumo oferece produtos destinados ao consumo imediato, de preferência para um único uso, seguido de rápida remoção e substituição, de modo que os espaços de vida não fiquem congestionados quando os confusos pelo turbilhão da moda, pela atordoante variedade de ofertas e o ritmo vertiginoso de sua mudança, não podem mais recorrer à capacidade de aprender e gravar – e assim precisam (e o fazem com gratidão) aceitar as garantias de que o produto atualmente em oferta é a “coisa”, “a coisa mais quente”, o “must”, aquilo “(com/em) que devem ser vistos” (BAUMAN, 2005b: 46).
A modernidade fluída carrega inúmeros signos que estão espalhados em vitrines,
outdoors, nos catálogos de loja e sites. As imagens têm um ímpeto voraz. Elas nos
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devoram, assim como as devoramos. A moda as multiplica, cinge nossas opções, define
o que é in ou out ou ainda qualquer termo que sirva para decretar o que ainda pode ser
usado ou o que está ultrapassado. As imagens e a voracidade explícita com que são
geradas captam e engendram desejos. Praticamente, não há como evitá-las. Elas
invadem/estão no real e no virtual. Exigem nossa atenção e se exibem como ofertas de
prazer. Parece que não há nada a ser desvelado, tudo é flagrante. Como nos explica
Baudrillard (2002: 133), “A virtualidade aproxima-se da felicidade somente por
eliminar sub-repticiamente a referência às coisas. Dá tudo, mas sutilmente. Ao mesmo
tempo tudo esconde”. É um jogo desgastante, porém envolto pelo prazer. No entanto, a
satisfação nunca é plena, é alçada para o próximo alvo de nossa volúpia. “O sujeito
realiza-se perfeitamente aí, mas quando está perfeitamente realizado, torna-se, de modo
automático, objeto; instala-se o pânico” (Idem).
A sociedade global apresenta-se como o epicentro dessas demandas por
imagens. Contudo, não há como determinar o seu ponto culminante. Algo como uma
nascente ou o ponto final não existe. A sua geografia é ampla. Ela abarca dicotomias
(Ocidente-Oriente) divisões (centro- periferia) e as mais singelas e maniqueístas formas
de dualidades. Segundo Renato Ortiz (2005: 146), “A globalização das sociedades e a
mundialização da cultura fazem parte de um processo que atravessa as sociedades
nacionais. Ela corresponde, portanto, à formação de outro tipo de singularidade social (a
“sociedade global”)”. Para Ortiz, o declínio da sociedade nacional decorre da formação
da própria modernidade-mundo que atinge todos os países. A globalização não é
entendida como uma ameaça externa.
Um mercado global de objetos e imagens que condiciona modos de vida os cria
e os sustenta. Uma plataforma, uma enxurrada de objetos e imagens distintos, que
ressalta a diferença, mas encaixa a todos em uma uniformização que torna o estar
“longe de casa”, a viagem há tanto tempo planejada, em uma contínua imersão no
cotidiano. Hotéis, roupas, aeroportos, shoppings: o idêntico salta aos olhos como
novidade. Tecnologia 3D, best-sellers, música pop, concursos de beleza, cassinos. A
diversão é embalada com o atendimento Vip. E, entretanto, somos mais um no “mar de
gente” talhada para ser especial.
Há maneiras menos apocalípticas de tratar o volume de imagens que nos chegam
minuto a minuto. E o “verniz” de novidade que isso implica. Maffesoli fala de um
equilíbrio que se constrói ao curso da origem ao do desaparecimento da imagem. Um
98
momento em que ela se despe de sua agressividade e se integra as nossas relações como
aquilo que está presente nas coisas que nos cerca.
O medo da imagem, tal como uma serpente marinha, ressurge regularmente, quando uma maneira de estar-junto dá lugar, progressivamente, a uma outra, com a inquietude que não deixa suscitar. Há um momento de pânico diante da coisa nova, e por isso misteriosa, que ainda não se domina bem, e que progressivamente irá encontrar seu equilíbrio: a imagem em sua manutenção, em seu declínio ou em seu nascimento (MAFFESOLI, 1995: 96).
Gilles Lipovetsky, em entrevista coordenada por Bertrand Richard, aponta que
graças “a individualização do social e o enfraquecimento dos modelos culturais (...) e
por fim, o acesso amplo à informação proporcionado pela mídia e pela internet” (2007:
75) os consumidores têm para si a vantagem da escolha, de uma liberdade antes negada.
Há uma autonomia que possibilita o enfrentamento dos ditames do mercado.
O antropólogo Massimo Canevacci considera o Shopping Center um local de
produção de valor. Em uma metrópole comunicacional, repleta de imagens (que gritam,
regurgitam, engendram outras imagens), a identidade pós-moderna desemboca no
templo do consumo. Se há décadas atrás, a fábrica detinha a função de formadora dos
códigos sociais, hoje o shopping agrega os signos, confirma, refuta, converge às
convenções sociais.
O shopping é o contexto onde o consumo se torna produtor de valores e não apêndice à produção. É o herdeiro da fábrica e, neste sentido, certamente há aqui uma continuidade com as passagens estudadas por Benjamin, há aqui também uma descontinuidade ainda mais significativa. O espaço do consumo também é agora diretamente produtor de valores (CANEVACCI, 2008: 97).
Admitimos que o tema consumo provoca uma tempestuosa controvérsia. Falar
em consumo, de qualquer modo, exige observar com cuidado a relação de um mundo
forjado por volições referentes à aquisição e a identidade que se configura a partir destes
milhares de estímulos que brotam de diferentes fontes.
Antes pertencer a um grupo, um exclusivo grupo, contava muito sobre quem
éramos. Formávamos laços, sejam elos com o núcleo familiar, com a nação, com a
99
“turma” com a qual tínhamos afinidades e nos acolhia. Seleção, fidelidade, honra eram
palavras que ressoavam no compromisso afiançado entre os membros. Tais laços ou
vínculos pretendia-se que fossem indissolúveis. Contudo, na modernidade líquida, a
fidelidade não consta como principal elemento da relação entre os associados. Pode-se
pertencer a quantos grupos se desejar. Basta conhecer os itens que sustentam cada um:
desde a história a ser adepto do vestuário. A realidade se mostra cambiante. Distintos
modos de vida se interpenetram. As coisas mudam com rapidez. Uma mixórdia que se
ampara na velocidade das trocas revela um consumo que afeta a identidade assim como
os relacionamentos.
O território da construção e da reconstrução da identidade não é a única conquista da síndrome do consumo, além do reino das ruas luxuosas e dos shoppings centers. De forma gradual mas incansável, toma conta das relações e dos vínculos entre os seres humanos. Por que os relacionamentos seriam uma exceção ao restante da vida? (BAUMAN, 2007b: 115).
Em um mundo no qual a flexibilidade é uma característica primordial, as
relações sofrem com o dinamismo e a falta de “liga” que as faça candidatas a resistir por
longo período. A fragilidade desses laços decorre também da condição de ambivalência
que marca a modernidade fluída. Como sustentar o que se quer, se logo somos
impelidos a desejar algo diferente? De certo modo, a identidade parece ser, como na
frase de Romeu, da peça clássica shakespeariana “Romeu e Julieta”, “um joguete do
destino”. Mas na realidade há opções. Escolhemos entre elas; são acessos que estão
dispostos à nossa frente, e quem sabe, nos levem a uma vida distinta (engrandecedora).
“A ambiguidade do contexto de vida, se me permitem utilizar essa noção
espalhafatosamente modernista, é ‘funcional’ para a condição pós-moderna”
(BAUMAN, 2008a: 92).
A identidade pressupõe vínculos, pois a afirmação “Todo homem é uma ilha”
parece não ter sentido numa complexa rede de relações e encontros que a vida em
sociedade produz. Mas a dissolução dos laços obstruiu uma alteridade possível. A
flexibilidade e a leveza exigidas no mercado de trabalho resplandecem no horizonte das
relações interpessoais. Na modernidade líquida nos deparamos com seres humanos
100
“sem vínculos”, um amor líquido que pouco ou nada retém de um impulso de
preservação das uniões ocasionais/casuais.
O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu “valor monetário” (BAUMAN, 2004a: 96).
O “Outro” não é reconhecido a partir de sua alteridade, mas num restrito espaço
dedicado aos parceiros no tour pelos prazeres do consumo. A solidariedade precisa ser
resgatada e vivida com mais transparência. Na verdade, ela permanece como um
sentimento indispensável seja em nome da manutenção da chama da amizade, ou seja,
da identidade que comprove que não vivemos no abandono.
Quando a identidade perde as âncoras sociais que faziam parecer “natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós” a que possam pedir acesso (BAUMAN, 2005a: 30).
3.4. Fragmentos e episódios: a insustentável leveza do ser
A vida líquida moderna permite a difusão de parceiros sexuais. Os frágeis laços
da modernidade fluída não podem proporcionar o certificado de durabilidade das
incursões amorosas como ainda permanece desejável para muitos. Este é um dos
aspectos que envolvem a nossa vida em companhia dos outros. O amor líquido é o
sentimento que permeia as relações que sucumbiram as dissoluções dos vínculos
humanos. Desse modo, não contamos na vida com o que podemos reter
sequencialmente. A vida moderna líquida se mostra fragmentária e episódica.
Reconstruir passagens dela é uma tarefa colossal, de esforço geralmente ingrato.
101
(...) a vida fragmentária pós-moderna é vivida num tempo episódico e, uma vez que os eventos se tornam episódios, só podem ser colocados em uma narrativa histórica coesa postumamente; enquanto está sendo vivido, cada episódio tem apenas a si mesmo para fornecer todo o sentido e objetivo de que precisa ou que é capaz de reunir para manter-se no rumo e termina-lo (BAUMAN, 2008a: 163).
A educação pós-moderna, ou os processos educacionais, foi abalada pela perda
do sentido histórico e da compreensão imediata de um mundo afeito a fugacidade e
predisposto a evitar a rotina. As relações sofreram os eflúvios de uma sociedade que aos
poucos (mas gradativamente) não premiava mais a constância como elemento chave. No
mundo fragmentário, a insegurança é um agente de mobilização das ações, o que torna
tudo precário. Aí um fragmento constitui por si mesmo uma situação plena na qual não
é possível emendar os “nós” que ligam um fato a outro.
O escritor tcheco Milan Kundera é um dos principais autores a observar o
mundo contemporâneo fragmentário e episódico. Situações repletas de incidentes e
relações iniciadas sob a égide da incerteza transitam em suas tramas que abarcam desde
estudos de comportamento a obsessões, da burocracia ao fim da esperança na sociedade
moderna.
No conto de Kundera “O jogo da carona”, do livro Risíveis Amores (1985b), um
casal de namorados em viagem, após uma parada num posto de gasolina, decide iniciar
um jogo no qual ele é um desconhecido e ela uma jovem que pede carona. Durante a
encenação do passatempo angústias afloram e o amor pensado como um sutil
entrelaçamento entre corpo e alma é rompido, quando o corpo, no caso da moça, é
desejado e oferecido como o de uma prostituta. As personalidades fingidas anulam as
reais fazendo com que a sensibilidade, que era entendida como base da união dos jovens
amantes, não resistisse ao jogo. Desse modo, o corpo cobiçado e possuído com um
prazer inimaginável anteriormente, impede que a história do amor surja e impeça que
aquele fragmento da vida se torne toda a verdade. Bauman assinala que “Como apontou
Milan Kundera em Les Testaments Trahis, o ambiente de nossas vidas está envolto em
neblina, não na escuridão total, na qual não veríamos qualquer coisa nem
conseguiríamos mover (...)” (BAUMAN, 2008b: 19).
Viver na neblina é uma condição que requer atenção, na qual os perigos estão à
espreita ou a nossa frente, devemos nos resguardar. A “certeza” procura artimanhas para
102
mover as precauções efetivas contra os perigos. Mas, por mais que estejamos
concentrados e municionados, não há como se antecipar à imprevisibilidade dos
acontecimentos. Kundera expressa o quanto as relações sofrem com os contornos
surpreendentes que cada ação ganha. Como o bilhete enviado por Ludvik a
namoradinha Marketa que se encontrava em um estágio de formação do Partido
comunista, no romance A Brincadeira. Os dizeres, “O otimismo é o ópio do gênero
humano! O espírito sadio fede a imbecilidade. Viva Trótski!” (KUNDERA, s/d: 39),
encerra uma vida de perseguição ao jovem: de expulsão do Partido ao campo de
trabalho forçado. Contudo, nesse romance de 1967, há uma armadilha da memória. A
marca do passado carrega no presente e no futuro, que o horizonte aponta, um desejo de
vingança. A vingança destitui o presente do encadeamento de uma história possível.
Cada ação presente esgota-se no esforço da encenação. É um episódio, trecho de uma
peça teatral. No fim, o passado parece não determinar o presente, é apenas um
fragmento lançado no tempo.
A vida fragmentada tende a ser vivida em episódios, numa série de eventos desconectados. A insegurança é o ponto em que existir se desmorona em fragmentos, e a vida em episódios. A não ser que algo seja feito em relação ao rodante espectro da insegurança, a restauração da fé nos valores estáveis e duráveis tem pouca chance de ocorrer (BAUMAN, 2008a: 202).
A insegurança insurge contra o amor. É uma sensação contumaz que inibe a
irrupção de um envolvimento sem arestas e desconfiança. A grande obra de Kundera
sobre a insegurança é A Insustentável Leveza do Ser (1985a). A existência se revela
pontuada por absurdos. Se a vida nos expõe à indefinição, à constante dúvida sobre se
as coisas são inéditas e irreproduzíveis ou se são frutos da repetição num eterno retorno
que nos coloca diante do mesmo fato. Os casais Teresa-Thomas e Sabina-Franz estão
imersos nesses problemas numa Praga marcada pela invasão russa em 1968. Para a vida
fragmentada-episódica, Kundera acrescenta a leveza. A leveza do ser está na existência
sem fardo. Ela contém a negação da responsabilidade pelos eventos, pelos sentimentos,
pelo que há de fortuito na vida. Quando se vive a dimensão das coisas, a carga do viver
torna-se insuportável; porém essa carga pode num determinado momento, quando
assumida pela vontade, representar a razão da existência.
103
Italo Calvino, em sua formidável conferência sobre a leveza, postula que “A
Insustentável Leveza do Ser” revela a dilacerante condição humana do irresistível peso
de viver. Peso esse contido nas mais diversas formas de opressão, “(...) a intricada rede
de constrições públicas e privadas acaba por aprisionar cada existência em suas malhas
cada vez mais cerradas” (CALVINO, 1990: 19). Como sugere Calvino, as nossas
escolhas direcionam-se para a leveza que as coisas aparentam, no entanto, o seu peso
insustentável acaba por sobrevir.
Homens e mulheres tentam nesta modernidade fluída conservar a leveza nos
gestos e fazer com que da relação se possa extrair tudo que ela pode proporcionar. Deste
modo, ela será fugaz, sem significado e um apelo a um estreitamento já vitimado pela
frouxidão. Bauman (2004a: 70) deduz que, “Em si, a união sexual é de curta duração –
na vida dos parceiros, é um episódio”. Citando Kundera, Bauman observa que o
episódio não se origina da ação anterior e nem produzirá efeito no que está por vir.
Porém, nada indica que um episódio não possa principiar uma ligação entre o ato
precedente e o posterior. Um episódio pode gerar uma estranha modificação. As dúvidas
estarão pairando sobre os contatos em princípios casuais. A incerteza e a insegurança
permanecerão como tormentos e características da vida líquida moderna.
Observando a constatação de Bauman em “A Arte da Vida”, podemos intuir pelo
menos a linha de fuga da condição de refém da incerteza: enquanto estivermos em atrito
com a incerteza já estaremos costurando uma felicidade possível.
A incerteza é o habitat natural da vida humana – ainda que a esperança de escapar da incerteza seja o motor das atividades humanas. Escapar da incerteza é um ingrediente fundamental, menos que apenas tacitamente presumido, de todas e quaisquer imagens compósitas de felicidade (BAUMAN, 2009: 31-32).
104
Considerações Finais
O mundo da modernidade líquida tem como marca indelével de seu percurso a
transição da sociedade de produtores para sociedade de consumidores. Na modernidade
sólida, a produção cumpria as funções contraditórias de distinção e aprisionamento do
indivíduo ao sistema. Na sociedade líquida moderna, o consumo passa a conceder o
direito à incorporação na esfera da cidadania. O consumo e a cidadania tornam-se
antíteses que consagram uma vida líquida, fragmentária e episódica. Somente pode ser
considerado cidadão aquele que consome. Porém, como as instituições em condição de
degradação, os Estados-nação desregulamentados e privatizados e os vínculos sociais
fragilizados, o termo cidadania sofre certo esvaziamento. Sem a garantia das instituições
criadas para assegurar a efetivação da individualidade e defender a comunidade dos
desmandos de um poder centralizado e dos desrespeitos às leis, houve um considerável
aumento no descrédito ao Estado-nação. O capital abstrato, que viaja leve e sem
dificuldade para romper fronteiras, se tornou na modernidade líquida muito mais fluído
e independente. O trânsito do capital, assim como das mercadorias e dos serviços, não
encontra (a não ser quando esbarra em políticas protecionistas) impedimento para
travessar fronteiras. Nesses casos, não há vigilância. Porém, quando se trata de pessoas
– emigrantes, viajantes do “Terceiro Mundo” – as fronteiras permanecem fortificadas e
as políticas de migração correspondem a uma prioridade do capital: entra quem tiver
condições de consumir. Um fato recente (2012) elucida este ponto. O governo
estadunidense decidiu facilitar a entrada de brasileiros no país, pois estes ocupam os
primeiros lugares entre os que mais gastam, fazendo girar uma economia combalida por
ter sido seriamente afetada pela crise financeira de 2008.
A globalização ainda divide o grande contingente humano em dois. Para
Bauman entre turistas e vagabundos, entre aqueles que têm crédito e aqueles que não
têm permissão para se deslocar (ou caso o faça não encontra o conforto do primeiro
grupo – os dos turistas). É um mundo cingido que possui aspectos devastadores. Há
uma elite extraterritorial e há grupos que vivem um estado de desterritorialização
contínuo. Esta tensão afeta as formações identitárias, que são muito menos claras neste
tempo líquido. Fato que não pode ser considerado excelente nem desprezível.
Instabilidade e mutação que são peculiaridades do mundo líquido.
105
A incerteza, a insegurança e a falta de proteção caracterizam a modernidade
líquida e estão presente nas mais diversas esferas de atuação humana. Se a descrença na
racionalidade tecno-científica liberou o pensamento e deu as sensações e outras formas
de conhecer um espaço para especular e gerar novas verdades, também fomentou a
incerteza em relação aos nossos parâmetros cotidianos. A moral pós-moderna é
atravessada por dúvidas, o que de certa maneira, facilita a exigência de leveza que o
capital impõe aos seus postulantes ao sucesso (assumir responsabilidades com a
empresa e não se comprometer com coisas extras ao trabalho, contudo nem esse
compromisso com a empresa deve ser indissolúvel), da falta de laços que nos segure a
algum lugar. Os deslocamentos são cada vez mais velozes. E a velocidade nestes
tempos líquidos é a qualidade mais estimada.
As certezas edificadas pela lógica racional moderna de um mundo onde a ciência
proporcionaria o fim das mazelas humanas ruíram com os altos índices de violência e
guerras tornadas mais sangrentas pelo apoio da tecnologia, com a não erradicação da
fome, com o sentimento de desamparo em relação ao Estado. A modernidade líquida
poderia ser descrita como uma época da frustração. No entanto, para Bauman, ela deve
– ou deveria – ser reflexiva e de resistência, de desvelamento dos poderes que
massacram as esperanças de milhares. É um tempo que não produz respostas, mas que
favorece perguntas que precisam ser lançadas como sementes para germinar. A
reconstrução do espaço público e o estabelecimento de uma democracia que seja global
são fundamentais para qualquer projeto que pretenda engendrar mudanças na
insegurança geral a respeito dos dispositivos legais que possuímos para efetivar tais
mudanças.
Se o cenário é aparentemente desesperador, também é oportuno para fazer as
perguntas essenciais para um mundo interdependente no qual a indiferença e o lucro
voraz já causaram muitos danos. Apesar de não haver uma fórmula mágica, há ao
menos a vontade de construir uma agenda comum para a humanidade determinada pelo
respeito às diferenças.
Os desafios contemporâneos estão lançados, sejam eles políticos, sociais,
culturais ou econômicos, e a geração atual vive a contradição do individualismo versus
o sentimento comunitário e a visão do que irá ocorrer está envolto em neblina. A
incerteza como fator constitutivo da vida demanda a ousadia para evitar o medo e a
inércia, mas as maneiras de enfrentá-los parecem sem efeito no momento. A união de
106
milhões pelas redes sociais gera a esperança a um tempo perdido, contudo seus
resultados até o presente são inócuos, pois pouco altera a política dos donos do capital e
dos Estados que protegem esse capital. Um mundo de incerteza (e injustiças) que
precisa com urgência das contestações que farão da autorreflexão parte essencial da
agenda diária da humanidade.
107
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Contra a Parede (Gegen Die Wand, Alemanha/Turquia, 2004). Direção: Fatih Akin.
Duração 123 min.
Do Outro Lado (Auf Der Anderen Seite, Alemanha/Turquia, 2007). Direção: Fatih
Akin. Duração 122 min.
Encontros com Milton Santos ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá (Brasil, 2006).
Direção: Silvio Tendler. Duração 89 min.
Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing, EUA, 1989). Direção: Spike Lee. Duração
120 min.
Match Point (Match Point, EUA/Reino Unido, 2005). Direção: Woody Allen. Duração:
93 min.
Paris, Texas (Paris, Texas, Alemanha/França/EUA, 1984). Direção: Wim Wenders.
Duração 150 min.
Tempestade de Gelo (The Ice Storm, EUA, 1997). Direção: Ang Lee. Duração 113 min.