Uma Etnografia Para Muitas Ausências
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social
UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrncia policial e problema social
Letcia Carvalho de Mesquita Ferreira
Rio de Janeiro
2011
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UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrncia policial e problema social
Letcia Carvalho de Mesquita Ferreira
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social do Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessrios
obteno do ttulo de Doutor em
Antropologia.
Orientadora: Adriana de Resende Barreto
Vianna
Rio de Janeiro
Setembro de 2011
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UMA ETNOGRAFIA PARA MUITAS AUSNCIAS O desaparecimento de pessoas como ocorrncia policial e problema social
Letcia Carvalho de Mesquita Ferreira
Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna
Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em
Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Antropologia. Aprovada por:
_________________________________________
Prof. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna, Presidente da Banca
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_________________________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_________________________________________
Prof. Dr. Srgio Lus Carrara
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IMS/UERJ)
_________________________________________
Prof. Dra. Claudia Lee Williams Fonseca
Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (PPGAS/UFRGS)
_________________________________________
Prof. Dr. John Cunha Comerford (Suplente)
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_________________________________________
Prof. Dra. Mara Gabriela Lugones (Suplente)
Universidad Nacional de Crdoba
Rio de Janeiro
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FERREIRA, Letcia Carvalho de Mesquita.
Uma Etnografia para Muitas Ausncias: O Desaparecimento de Pessoas
como Ocorrncia Policial e Problema Social./Letcia Carvalho de Mesquita
Ferreira. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2011.
xvi, 308 p.; 31 cm.
Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna.
Tese (doutorado) UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, 2011.
Referncias Bibliogrficas: pp. 281-293.
1. Desaparecimento de Pessoas 2. Pessoas Desaparecidas 3. Ocorrncia
Policial 4. Problema Social 5. 6. I. Vianna, Adriana de Resende Barreto. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social. III. Ttulo.
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RESUMO
O desaparecimento de pessoas um tipo de ocorrncia registrado diariamente nas delegacias
de polcia brasileiras. Ao mesmo tempo, tambm tema de eventos pblicos, dedicados a
debater e promover iniciativas para seu combate e preveno. A presente tese tem o propsito
de compreender como solicitaes, acontecimentos e ausncias mltiplas e heterogneas so
tanto classificadas como mesmo tipo de ocorrncia policial, quanto encaradas como
manifestaes particulares de um s problema social. O texto resultado de trabalho de
campo realizado inicialmente no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da antiga
Delegacia de Homicdios do Rio de Janeiro (Centro/Capital), repartio policial dedicada a
investigar exclusivamente casos de desaparecimento, e estendido para eventos da Rede
Nacional de Identificao e Localizao de Crianas e Adolescentes Desaparecidos
(ReDESAP), que rene rgos governamentais e organizaes no-governamentais que lidam
com desaparecimentos de pessoa. Ao longo de cinco capitulos, as rotinas burocrticas e os
artefatos de gesto por meio dos quais casos de desaparecimento so registrados, investigados
e arquivados por policiais so objeto de descrio. Ademais, os embates e jogos de fora
estabelecidos entre agentes sociais engajados em eventos pblicos sobre o tema, ponto nodal
da constituio do desaparecimento de pessoas como problema social, tambm so descritos.
Narrativas de casos particulares hoje arquivados no SDP atravessam todos os captulos. A
partir dos casos narrados e dos embates, artefatos e rotinas descritos, constata-se que o
registro, investigao e arquivamento de casos de desaparecimento em delegacias produzem
cotidianamente a irrelevncia desse tipo de ocorrncia, ao passo que eventos sobre o tema
esforam-se por conferir-lhe visibilidade e inseri-lo na agenda pblica. No obstante, tanto em
reparties policiais, quanto em eventos pblicos so igualmente empreendidas classificaes
que implicam processos de (des)responsabilizao. Para policiais, desaparecimentos so
problemas de famlia; para outros agentes sociais engajados no tema, desaparecimentos so problemas de segurana pblica ou problemas de assistncia social. Por meio dessas classificaes, policiais, mes de pessoas desaparecidas e gestores de polticas pblicas
posicionam-se uns em relao aos outros e constroem, juntos, denncias pblicas de mltiplas
ausncias. Enquanto a falta de uma pessoa em espaos geogrficos e teias de relaes sociais
em que se esperava que ela pudesse ser localizada objeto de comunicao em reparties
policiais, em eventos pblicos sobre o desaparecimento a falta de um Estado assistente, uma
famlia protetora e uma polcia sensvel e competente so objeto de denncia.
Palavras-chave: Desaparecimento de Pessoas, Pessoas Desaparecidas, Ocorrncia Policial,
Problema social
Rio de Janeiro
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ABSTRACT
The disappearance of people is a type of event recorded daily in Brazilian police stations. At
the same time, it is also the subject of public events dedicated to debating and promoting
initiatives to its combat and prevention. This thesis aims at understanding how requests,
events, and many heterogeneous absences are both classified as the same type of police
report, and seen as particular manifestations of a single social problem. The text is the result
of fieldwork carried out initially in the Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP), a sector of
the former Homicide Division of Rio de Janeiro devoted exclusively to investigating cases of
disappearance, and extended to events of the Rede Nacional de Identificao e Localizao de
Crianas e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), an assemblage of governmental and
nongovernmental organizations dealing with missing persons. Over five chapters, the
bureaucratic routines and management artifacts through which disappearance cases are
recorded, archived and investigated by the police are subject of description. Moreover, the
conflicts and power games between social actors engaged in public events on the theme,
which are the nodal point constituting the disappearance of persons as a social problem, are
also described. Narratives of individual cases archived in the SDP cut through all the chapter.
Based on the cases recounted and the battles and routines described, it appears that the
registration, investigation and filing of cases of disappearance by police officers routinely
produce the irrelevance of such occurrence, while events on the subject strives to turn the
issue visible and insert it into the public agenda. However, classifications entailing
assignments (and retreats) of responsibility are undertaken both in police departments, and in
public events. For police officers, disappearances are "family problems", whereas to other
social actors engaged in the subject, disappearances are "issues of public safety" or "social
service problems". Through these rankings, police officers, mothers of missing persons and
government officials position themselves in relation to each other and build together public
denunciations of multiple absences. While the lack of a person in geographic sites and webs
of social relations in which he/she were expected to be located is the subject of
communication in police offices, at public events about the disappearance the lack of a
provider state, a protective family and a sensitive and competent police are the subject of
denunciation.
Key-words: Disappearance of people, Missing Persons, Police Report, Social Problem
Rio de Janeiro
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AGRADECIMENTOS
Adriana de Resende Barreto Vianna, minha querida orientadora, costuma chamar os
casos que encontrei nos arquivos da polcia de contos da burocracia mgica. Adriana
assim: volta sempre seu olhar certeiro para as fabulaes e efeitos mgicos que todo objeto de
estudo pode despertar, desde o mais rido at o mais facilmente envolvente. Aprender com ela
os melhores sentidos da palavra autonomia, contar com sua orientao to firme quanto
carinhosa, e poder compartilhar os gostos e desgostos da pesquisa, da antropologia e da vida
so luxos impossveis de agradecer altura. Ainda assim, registro aqui meus mais sinceros
agradecimentos pelo privilgio inestimvel que contar com a leveza da sua confiana.
A Antonio Carlos de Souza Lima, agradeo por cada curso, indagao e palavra de
incentivo. Ao longo do mestrado e do doutorado, em diversas ocasies e em especial nos
Exames de Qualificao, sua presena franca e clarividente sempre me pareceu uma imensa
sorte. A ele agradeo ainda por ter me ensinado, atravs de sua prpria postura, que o trabalho
intelectual no algo que deva ficar encastelado e inacessvel, nem se pretender excepcional.
Ao lado de Antonio Carlos, o professor Moacir Palmeira levou poesia para os Exames
de Qualificao que precederam a escrita desta tese. Agradeo enormemente suas leituras,
idias e indicaes quando minha relao com o material de pesquisa era ainda bastante
confusa e, no entanto, recebeu dele uma bela dose de Carlos Drummond de Andrade.
A Cludia Fonseca, Sergio Carrara, Mara Gabriela Lugones e John Comerford, que
aceitaram compor a Banca de Defesa ao lado de Antonio Carlos de Souza Lima e Moacir
Palmeira, registro aqui meu muito obrigada por concederem tempo e ateno ao meu trabalho.
Sou igualmente grata a cada professor com que tive chance de fazer cursos e trocar
idias no PPGAS/Museu Nacional nos ltimos seis anos e meio, em especial Lygia Sigaud (in
memoriam), Federico Neiburg, Luiz Fernando Dias Duarte, Olvia Cunha, Antondia Borges
e Fernando Rabossi. Tambm aos funcionrios da Secretaria, da Biblioteca e da Xerox,
registro aqui meus agradecimentos pela presteza e dedicao. Agradeo a todos no nome da
adorvel e sempre gentil Carla de Freitas. Agradeo ainda o apoio do CNPq e da FAPERJ,
que me concederam bolsas de estudo ao longo do doutorado.
Durante a realizao da pesquisa, pude contar tambm com recursos do projeto
Polticas para a Diversidade e os Novos Sujeitos de Direitos: Estudos Antropolgicos das
Prticas, Genros Textuais e Organizaes de Governo DIVERSO, realizado no
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Laboratrio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED), Museu
Nacional/UFRJ, em convnio com a FINEP.
Paulo Esteves, amigo querido, foi quem me apresentou o Museu Nacional e apontou o
caminho que me trouxe at aqui. A ele, nem sei como agradecer pelas inmeras oportunidades
criadas e oferecidas desde minha graduao na PUC-Minas, quando fui sua aluna e
orientanda, at minha acolhida (e retorno) no Instituto de Relaes Internacionais da PUC-
Rio, agora como professora.
Adentrando o mundo que gostamos de encantar chamando de campo, registro meus
agradecimentos aos policiais do Setor de Descoberta de Paradeiros da antiga Delegacia de
Homicdios do Centro/Capital, em especial e com muito carinho ao inspetor Robson
Fontenelle, por terem partilhado comigo a preciosidade que alimenta a pesquisa
antropolgica: seu cotidiano. Nessa cidade em que tanto se pensa e fala sobre a polcia, foi
um privilgio ouvir o que pensam e falam os policiais do SDP.
Aos membros do comit gestor da Rede Nacional de Identificao e Localizao de
Crianas e Adolescentes Desaparecidos, sou grata pela chance de compartilhar uma causa.
Luiz Henrique Oliveira, Ivanise Esperidio da Silva, Vnia Nogueira, Laura Argllo, Elton
Galindo e Adriano Severino Santos mobilizam o que podem e o que no podem para atender
familiares de desaparecidos e procurar maneiras de lidar com casos impossveis. Em nome
deles, registro minha gratido e admirao por todos os membros da ReDESAP.
Na Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, agradeo queles que
articularam a ReDESAP nos ltimos anos e me abriram espaos e fizeram convites. Benedito
Santos, Walisson Arajo, Beatriz Brando e Denille Melo, ao coordenar e promover eventos
da rede, renem idias que me motivaram (e motivam) a pensar sobre o tema desta tese.
Tambm me motivaram e motivam, no s a pensar sobre o tema deste trabalho, mas a
deix-lo de lado em momentos essenciais, meus queridssimos amigos e familiares.
Julia ODonnell foi literalmente a primeira pessoa que conheci no Museu, e desde
aquele comeo dividimos bairros, apreenses e surpresas. Como se j no fosse tanto, Julia
colocou no mundo, ao lado do querido Leonardo Pereira, nossa pequena Helena e tudo o que,
com ela, ainda est por vir. E Fernanda Figurelli, com sua doce presena estrangeira, me
ajudou a fazer do Rio minha/nossa casa. Estou e estarei sempre espera de suas visitas.
Zoy Anastassakis, minha grega do corao, uma amiga dessas que s se faz uma vez
na vida e se leva para a vida inteira. S posso dizer que toro pelas conquistas dela
exatamente como anseio pelas minhas. E Andr Dumans Guedes, mineiro mais carioca que
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h, sempre uma inspirao para antropologias, idias e, sobretudo, para um mundo to lido,
quanto corrido. Pela gentileza de ter lido parte desta tese e escrito preciosas pginas sobre ela,
a ele devo meu melhor obrigada.
Paula Lacerda, Rita Santos, Slvia Aguio, Juliana Farias, Martinho Silva, Laura
Lowenkron, Cludia Cunha e Liane Braga esto presentes neste trabalho por seus incentivos,
leituras, comentrios e, sobretudo, desejos de que tudo desse certo no final. Em nome deles,
que acompanharam de perto resultados parciais da pesquisa, agradeo a todos com que
compartilhei as salas de aula do Museu. Liane agradeo ainda pela generosa oportunidade
de trabalho no Claves/Fiocruz, que me deu tranqilidade para escrever depois de encerrado o
prazo regular do doutorado.
Com Paula e Rita pude tambm compartilhar outras salas de aula e muitos quartos de
hotel em viagens que fizemos para realizar cursos de capacitao de atores da ReDESAP.
Admiro cada detalhe do modo honesto, decidido e ao mesmo tempo terno e colorido com que
as duas levam a vida, e no consigo imaginar melhores companhias para aquela empreitada e
para todas as outras que, tenho certeza, ainda enfrentaremos juntas.
minha companheira de desterro Camila Meireles, agradeo pelas infinitas gentilezas
e delicadezas com que preenche nossa amizade. E aos meus saudosos amigos de BH, hoje
espalhados pelo mundo, registro meu obrigada pelo carinho distncia, pela tolerncia diante
de minhas ausncias e pelas deliciosas visitas feitas nos ltimos anos.
Com minha amada irm Luciana compartilho uma famlia, uma histria e muitas
memrias, mas quero agradecer imensamente pela certeza do que ainda vamos dividir. Pelas
viagens que faremos, os lbuns de fotografia que preencheremos, as conquistas que
comemoraremos e as alegrias, surpresas e bobagens de que riremos juntas.
Meu pai, Eduardo, acompanha minhas escolhas e rumos com muito carinho, respeito e
entusiasmo. Saber que posso contar com seu apoio um conforto que no cabe em palavras.
A ele agradeo tambm pela reviso do texto e pelos comentrios deixados nos cantos das
pginas, que aplacaram muito da solido que escrever uma tese.
Minha me, Wnia, construiu nos ltimos anos uma casa que mais parece um pedao
de paraso. Busquei a imagem dessa casa todas as vezes que parei por alguns instantes diante
de dificuldades que passaram e de idias que ficaram nesta tese. Isso sempre me serviu como
uma injeo de nimo, aconchego e alegria. Coisa de me!
E ao meu amor, Srgio Veloso, devo vrios obrigadas pela companhia, pelo incentivo
e por cada uma das vezes que o ouvi tocando violo pela casa enquanto escrevia estas
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pginas. No sei se ele sabe, mas no comeo da pesquisa minha inteno (e inquietao) era
entender no s como algumas pessoas desaparecem, mas tambm como tantas outras voltam
diariamente para suas casas, tranqilas e determinadas, sem sequer aventar a possibilidade de
sair por a e perder-se no mundo. A ele agradeo por ser um dos meus melhores motivos.
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LISTA DE QUADROS E FIGURAS
Quadro 1 Classificaes de Sindicncias 48
Quadro 2 Mesas e Temas do II Encontro Nacional da ReDESAP 64
Quadro 3 Grupos de casos 124
Quadro 4 Alguns nmeros da ReDESAP 192
Figura 1 Situando o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas 240
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
BPM Batalho da Polcia Militar
Cedae Companhia Estadual de guas e Esgotos
CT Conselho Tutelar
DAIRJ Delegacia de Polcia do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro
DEAM Delegacia Especial de Atendimento Mulher
DESIPE Departamento do Sistema Penitencirio do Rio de Janeiro
DETRAN-RJ Departamento de Trnsito do Rio de Janeiro
DP Delegacia Policial
DH Delegacia de Homicdios
ECA Estatuto da Criana e do Adolescente
MJ Ministrio da Justia
MP Ministrio Pblico
FCNCT Frum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares
Fenseg Federao Nacional de Seguros Gerais
FIA-RJ Fundao para a Infncia e Adolescncia do Rio de Janeiro
HSA Hospital Municipal Souza Aguiar
HFM Hospital Ferreira Machado
ICCE Instituto de Criminalstica Carlos boli
IFP Instituto Flix Pacheco
IML Instituto Mdico-Legal
IMLAP ou
IML-RJ
Instituto Mdico-Legal Afrnio Peixoto ou Instituto Mdico-Legal do Rio de
Janeiro
INSS Instituto Nacional do Seguro Social
IPERJ Instituto de Previdncia do Estado do Rio de Janeiro
ISP Instituto de Segurana Pblica
ONG Organizao No-Governamental
PAF
PNCFC
Projtil de Arma de Fogo
Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e
Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria
POLINTER Polcia Interestadual
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PF Polcia Federal
RG Registro Geral
Rede
INFOSEG
Rede de Integrao Nacional de Informaes de Segurana Pblica, Justia e
Fiscalizao
ReDESAP Rede Nacional de Identificao e Localizao de Crianas e Adolescentes
Desaparecidos
SAMU Servio de Atendimento Mvel de Urgncia
SDP Setor de Descoberta de Paradeiros
SENASP Secretaria Nacional de Segurana Pblica
SEDH/PR Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica
SICRIDE/PR Servio de Investigao de Crianas Desaparecidas do Paran
SPC Servio de Proteo ao Crdito
SPDCA Subsecretaria de Promoo dos Direitos da Criana e do Adolescente
TJ Tribunal de Justia
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SUMRIO
Prlogo 1
Introduo 2
Uma forma para muitas ausncias 10
Atravs da porta que fica aberta 19
Organizao da tese 25
1. Nada opor: um problema de pesquisa e seus trmites 27
1.1 Por um paradeiro ou por um papel? 29
1.2 A entrada em campo e a abertura dos arquivos 36
1.3 A burocracia e seus becos: o SDP 45
1.4 A pesquisa e suas curvas: a ReDESAP 60
2. Salvo melhor juzo: uma ocorrncia policial e suas rotinas 72
2.1 Uma rotina para um fato atpico 73
2.2 De que feito um enigma 94
2.3 problema do Estado 112
2.4 (Outros) 120
3. Esgotadas todas as possibilidades: uma ocorrncia policial e seus artefatos 129
3.1 So essas coisas de todo instante 131
3.2 Aborrecimentos, conselhos e compromissos 140
3.3 Desvios, suspeitas e reputaes 149
3.4 Perturbaes, cuidados e dependncia 160
3.5 Errncia, corpos e territrios 171
4. o que me cumpre informar: um problema social e seus embates 187
4.1 Outras portas que se abrem 193
4.2 Uma rede e seus enlaces 198
4.3 Uma rede e seus ns 206
4.3.1 H famlias desestruturadas em todas as classes sociais 207
4.3.2 Minha famlia se desestruturou depois que minha filha desapareceu 211
4.3.3 No temos a estrutura necessria 222
4.4 De quantas ausncias feito um problema 227
5. Isso coisa do destino: algumas formas escorregadias de classificao 234
5.1 Sem destino certo 238
5.2 Mas com tudo arrumado 246
5.3 Algumas formas eficazes de excluso 255
5.4 Uma nota sobre participao 265
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Consideraes finais: procura de Lusa Porto 271
Referncias Bibliogrficas 281
Anexos
I. Documentos 295
II. ndice alfabtico e resumos dos casos 298
III. Membros da ReDESAP 305
IV. Eventos da ReDESAP 307
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Mais do que comer, correr ou flechar a carne
alheia, mais do que aquecer a prole sob a
palha, ns nos sentamos e damos nomes, como
pequenos imperadores do todo e de tudo. Uma
mulher dirigiu seus passos ao poente e sumiu;
sabem o que fez aquele que ela abandonou,
enquanto fitava o poente com os olhos cavos?
Ele grunhiu, e este grunhido virou o nome da
desaparecida. Ele lhe deu um nome, ele ganhou
seu nome, como um cogulo, uma reteno
daquilo que passava, confuso, por ele, um
poente paralelo ao poente diante dele.
Nuno Ramos,
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1
Prlogo
O stimo andar do edifcio sede da Polcia Civil correspondia, naquela poca,
Delegacia de Homicdios do Rio de Janeiro Centro/Capital. Depois de devidamente
identificado na portaria, quem a ele ascendia via, assim que saa de um dos quatro elevadores
do prdio, alguns corredores e muitas portas. Todas as portas tinham placas indicando o que
funcionava e/ou quem trabalhava nas respectivas salas. De um lado, a primeira porta que se
avistava era a dos Delegados Adjuntos. Do outro, a porta da sala 709, cuja placa indicava
Seo de Descoberta de Paradeiros. Era esta sala que eu procurava naquela manh. O ms
era maro e o ano, 2008.
Logo que sa do elevador encontrei, parados diante da porta da sala 709, Maria e
Jeferson. Eles aguardavam um policial especfico, de nome Fernando, que nas palavras dela j
sabia do que se tratava. Perguntei ento se eles queriam registrar o desaparecimento de
algum parente, ao que Maria respondeu negativamente: estavam ali, ao contrrio, para pedir a
suspenso das investigaes em torno do paradeiro de uma pessoa que eles mesmos haviam
localizado. Pensando pouco e pressupondo muito, imediatamente eu disse que deveria ser um
grande alvio reencontrar algum dado como desaparecido. Para minha surpresa, Maria assim
me contestou: Pra mim no alvio nenhum. Eu preferia que ele evaporasse.
Segundo relatos de Maria, Antnio, a pessoa que ela preferia que evaporasse, era seu
ex-marido, de quem estava separada h cerca de vinte anos. Ainda que separados, viviam na
mesma casa, habitada tambm por Jeferson, atual companheiro dela. Nas palavras de Maria,
mais do que algum com quem fora casada no passado, Antnio era algum que lhe dava
muito trabalho no presente. Desaparecer, fazendo com que ela e seu companheiro tivessem
que procurar no s por ele, mas tambm pelos servios da polcia, era um exemplo desse
trabalho.
Enquanto Maria enumerava outras tarefas em que consistia o trabalho que Antnio lhe
dava, um policial saiu da sala, abrindo subitamente a porta diante da qual conversvamos. Era
o inspetor Fernando, policial que, conforme havia dito Maria, sabia do que se tratava. Ao
constatar que estvamos aguardando h algum tempo, o inspetor Fernando afirmou que no
precisvamos ter esperado do lado de fora. Poderamos ter entrado quando quisssemos, j
que, nas palavras dele, a porta do Setor fica aberta.
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2
Introduo
Em dezembro de 2009, o Instituto de Segurana Pblica do Rio de Janeiro (ISP),
autarquia estadual dedicada pesquisa e capacitao de servidores na rea de segurana
pblica, divulgou um estudo sobre casos de desaparecimento de pessoas ocorridos no estado.
Intitulado Pesquisa de Desaparecidos, o estudo teve como objetivo
mapear as ocorrncias de pessoas desaparecidas no estado do Rio de Janeiro,
no ano de 2007. A base de dados utilizada proveniente de ocorrncias
registradas pela Polcia Civil naquele perodo (...) na tentativa de traar o perfil dessas pessoas (sexo, raa, idade, nacionalidade, naturalidade, renda,
escolaridade, local de moradia e localizao da ocorrncia), alm de
identificar as circunstncias das ocorrncias e as possveis causas. (ISP, 2009)
Na solenidade de divulgao dos achados da pesquisa, diante da presena de redes de
televiso e emissoras de rdio, foram destacados os seguintes dados: em 2007, a incidncia de
casos concentrou-se na capital do estado e entre pessoas do sexo masculino que tinham entre
10 e 19 anos; outros grupos que teriam destaque numrico nos casos eram idosos, pessoas
com problemas mentais e usurios de drogas e lcool (ISP, 2009); e, da amostra de
ocorrncias analisadas, 71,3% tiveram como desfecho o retorno dos desaparecidos s suas
casas ou ao menos a descoberta de seus paradeiros. Esse ltimo percentual serviu de mote
para o momento central da apresentao da pesquisa, em que seus resultados foram
comparados ao que seria o perfil das vtimas de homicdios dolosos no estado. Contrastando
com casos de desaparecimento, homicdios dolosos ocorreriam a pessoas com idades entre 20
e 29 anos, o que indicaria que a poro da populao envolvida em desaparecimentos
distinta da composta pelas vtimas de homicdio. Ademais, enquanto mais de 80% das vtimas
de homicdios dolosos seriam homens, entre os desaparecidos essa cifra baixaria para 60%.
H algo de reconfortante na idia de que possvel definir quem so as pessoas que
desaparecem em determinado local, afirmando inclusive que essas pessoas no s so
localizadas, como tambm no so vulnerveis a certo tipo de crime e no mais das vezes
retornam para suas casas. Estive presente na solenidade de divulgao da pesquisa do ISP e o
tom de otimismo que nela reinou no me deixou dvidas a esse respeito. Por outro lado, esse
mesmo tom de otimismo me legou um conjunto de indagaes de outra natureza: a produo
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daqueles dados buscava atenuar que desconfortos e preocupaes? Se havia otimismo em sua
divulgao, qual seria o cenrio de pessimismo que ela confrontava?
Um ano antes da solenidade do ISP, a organizao no-governamental (ONG) Rio de
Paz promoveu uma manifestao em Copacabana que ficou conhecida como Protesto Forno
de Microondas. Pilhas de pneus foram distribudas nas areias da praia, de modo a expor o
que seria um mtodo de assassinato e carbonizao de corpos utilizado por criminosos,
sobretudo atuantes no trfico de drogas, nas chamadas comunidades do Rio de Janeiro. Dentro
das pilhas de pneus, pessoas e bonecos representavam as vtimas desses crimes; na frente de
cada pilha, um cartaz dizia: 9.000 pessoas desaparecidas nos ltimos 2 anos. Suspeita-se que
6.300 pessoas desaparecidas foram assassinadas.
Se o ISP separou os dois tipos de ocorrncia, afirmando que as parcelas da populao
atingidas por cada um so distintas, a manifestao da ONG exps um possvel nmero de
homicdios dolosos que estariam encobertos no universo mais amplo dos desaparecimentos.
Ao faz-lo, explicitou com bastante eloqncia alguns dos desconfortos e preocupaes a que
os resultados da pesquisa do Instituto pareciam se contrapor. Contudo, como apresento ao
longo da presente tese, um olhar detido sobre casos, sobre a rotina de pessoas que com eles
lidam e sobre eventos pblicos dedicados ao tema revela que h outras razes para certo
pessimismo em torno do desaparecimento de pessoas alm de sua possvel vinculao a
crimes como, por exemplo, homicdio e destruio de cadveres.
A prpria classificao de um conjunto de fatos como desaparecimento carrega
consigo mais incmodos que certezas. Mais do que isso, efetuada no decurso de uma cadeia
de comunicaes entre pessoas e instituies, a designao de fatos e experincias como
desaparecimento constituda por questionamentos e incertezas. Policiais, gestores de
polticas pblicas, famlias e grupos de pessoas que lidam com essa classificao, seja por
fora de suas atribuies profissionais, seja por circunstncias pessoais, vem-se envolvidos
em complexas tramas de significados volteis e imprecisos. No saber o paradeiro de uma
pessoa, comunicar esse no saber a rgos pblicos e/ou ter que registr-lo, investig-lo e
administr-lo como policial, assistente social ou funcionrio de uma ONG implica lidar com
inmeras dvidas e imprecises. Tais imprecises so obliteradas tanto em resultados de
pesquisas estatsticas que buscam traar perfis fechados, como o estudo do ISP, quanto por
protestos como o da ONG Rio de Paz, que cola desaparecimentos a homicdios.
O desaparecimento no implica uma cadeia unilinear de fatos, em que algum some,
procurado e, caso tudo acontea como esperado, localizado e retorna ordem de coisas e
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relaes em que estava inscrito anteriormente. Embora seja essa a viso recorrente no senso
comum, e embora aqueles que lidam com casos particulares muitas vezes esforcem-se para
constru-los narrativamente assim, ela no resiste a um olhar mais atento. Citado no Prlogo,
meu encontro com Maria, cujo ex-marido desapareceu e foi encontrado, sugere o quo contra-
intuitivo pode ser um caso de desaparecimento. Enquanto eu imaginava que ela estaria
aliviada por t-lo localizado, Maria preferia que Antnio evaporasse. Por outro lado, como
sugere o mesmo encontro, no necessariamente o desaparecimento relaciona-se aos
fenmenos da criminalidade e da violncia urbana. Antnio, afinal, foi dado por desaparecido
enquanto descansava da vida longe do Rio de Janeiro.
O que, ento, o desaparecimento de pessoas? A que referentes esse termo pode ou
pretende ser conectado em seus diversos usos? Se os chamados desaparecimentos polticos,
inscritos dentre as prticas de represso constitutivas de alguns regimes ditatoriais, so alvo
de debates, comisses e indenizaes, que tratamento dado ao que, por contraste, Oliveira
(2007) chama de desaparecimentos civis?
Casos de desaparecimento no qualificados como polticos so muitas vezes definidos
por desconhecimento e excluso. Freqentemente, o termo utilizado quando no se sabe
onde uma pessoa est, no se pode assegurar se ela foi vtima de crime, se optou por deixar o
local e o crculo social em que habitualmente se encontrava ou se sofreu algum acidente. A
exceo mais visvel a esse uso aparece no habitual emprego do termo desaparecimento em
casos de intempries, catstrofes e acidentes que deixam vtimas fatais cujos corpos no so
encontrados, ou vtimas com vida, mas impossibilitadas de retornar aos locais de onde saram.
Mesmo nesses casos, no entanto, no se sabe onde a pessoa est e no se pode determinar com
preciso o que lhe ocorreu.
Perguntar-se sobre o que esse termo pode significar descortina o quo escorregadias
so as idias que compem seu campo semntico. Alm de se tratar de uma classificao por
excluso, o fato designado como desaparecimento de uma pessoa se faz sempre em relao
outra ou outras. No h como desaparecer em absoluto: se a pessoa est fora do alcance de
outra, possivelmente est ou esteve ao alcance de uma terceira, inscrita em um cenrio ou
conjunto de circunstncias inacessveis apenas para a segunda. Tampouco h como
estabelecer de forma absoluta as coordenadas espao-temporais que marcam onde e quando
uma pessoa desapareceu. O mximo que se pode tentar afirmar, fazendo uso de idias apenas
aproximativas e da voz passiva, a hora e o local em que algum foi visto pela ltima vez
por outra pessoa que o conhecia ou pde reconhec-lo.
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5
Ademais, delegacias de polcia so procuradas por pessoas que comunicam como
desaparecimentos fatos que, aps investigaes, passam a ser designados raptos, homicdios,
seqestros ou outros crimes que anulam sua definio inicial como desaparecimentos. Nessas
ocasies, desaparecimento designa o desconhecimento e a inacessibilidade que uma pessoa
experimenta em relao ao paradeiro de outra e, ainda, o desejo de buscar ajuda e/ou delegar a
terceiros a busca por ela. Caso essa busca permita conhecer o paradeiro do desaparecido, o
termo passa a ser substitudo por outro. Um bom exemplo o caso das onze vtimas da
chamada Chacina de Acari, ocorrida em 1992 no municpio fluminense de Mag. Inicialmente
consideradas pessoas desaparecidas por alguns de seus parentes que procuraram a polcia, ao
longo das investigaes as vtimas passaram a figurar em livro (Nobre, 2005), trabalho
acadmico (Arajo, 2007) e inquritos policiais como vtimas de seqestro e homicdio. Por
fim, a despeito do fato de seus corpos jamais terem sido encontrados, algumas foram
registradas como mortas em certides de bito. Em suma, tanto quanto determinar o local do
fato algo mais complexo do que pode parecer, registros policiais que classificam um
acontecimento como desaparecimento so freqentemente passveis de negao.
No obstante ser to escorregadio, o desaparecimento de pessoas encarado,
alternadamente, como problema social decorrente da omisso ou da ineficincia de
mltiplos agentes que disputam o poder de defin-lo. Familiares de pessoas desaparecidas,
policiais civis e militares, gestores governamentais de polticas pblicas e funcionrios de
ONGs acusam-se mutuamente de serem responsveis ora pela ocorrncia de
desaparecimentos, ora pela no-soluo de muitos casos, e ora pelo dever de preveni-los.
Embora abordem o fenmeno de formas distintas e apresentem-se como plos opostos em
embates variados, porm, esses agentes partem de um ponto comum: a falta de preciso
quanto a definies e diretrizes para enfrent-lo. Dispersas por distintas searas da
administrao pblica, as competncias e responsabilidades de gerir e combater o
desaparecimento so to escorregadias e imprecisas quanto o prprio vocabulrio disponvel
para falarmos dele.
Tenho me deparado com tais imprecises desde maro de 2008, quando conheci
Maria, Jeferson, o inspetor Fernando e o caso de desaparecimento de Antnio, citados no
Prlogo. Naquela ocasio, iniciei formalmente minha pesquisa de doutorado. Atravs de
trabalho de campo no Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da Delegacia de Homicdios
do Rio de Janeiro, acompanhei a rotina de agentes da Polcia Civil que trabalham
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exclusivamente com casos de desaparecimento.1 Seguir essa rotina incluiu ler, transcrever e
analisar os documentos por eles produzidos acerca dos casos que recebem, investigam e
arquivam diariamente. Acompanhar o cotidiano de uma repartio pblica, afinal, significa
tomar contato com quadros administrativos burocrticos constitudos por funcionrios
pblicos e arquivos de documentos e expedientes. No primeiro captulo da tese, detenho-me
sobre minha entrada em campo junto aos agentes do SDP e seus arquivos.
O SDP a seo da Delegacia de Homicdios responsvel por investigar casos de
desaparecimento de pessoas registrados nas delegacias distritais compreendidas entre a 1 e a
44 Delegacia Policial (DP) do Rio de Janeiro. Todo caso de desaparecimento registrado
nessas delegacias que no seja solucionado no prazo de quinze dias remetido ao SDP, onde
deve ser investigado por um dos cinco policiais que integram o quadro ativo do Setor.2
Contudo, com considervel freqncia casos registrados em delegacias no compreendidas
entre a 1 e a 44 DP tambm so remetidos ao SDP, e o prazo de quinze dias usualmente
estendido por perodos de tempo muito variados. Entre maro de 2008 e dezembro de 2009,
com dois intervalos, freqentei o SDP regularmente. Nesse perodo, acompanhei, li e
transcrevi um total de 172 casos de desaparecimento recebidos no SDP entre 2004 e 2009.
Desse conjunto, uma seleo de 57 casos objeto de reflexo no corpo da tese.3
Minha presena no Setor levou-me a estabelecer relaes tambm com membros da
Rede Nacional de Identificao e Localizao de Crianas e Adolescentes Desaparecidos
(ReDESAP), coordenada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da
Repblica (SEDH/PR)4. A rede articula 47 instituies, entre ONGs e rgos de
1 Desde janeiro de 2010, a referida Delegacia de Homicdios (DH) passou a ter estatuto de Diviso, tendo tido
seu quadro de pessoal aumentado e sua estrutura fsica e organizacional alterada. Contudo, como encerrei a
pesquisa no SDP no ms anterior, em dezembro de 2009, fao referncia em todo o texto da tese Delegacia de
Homicdios, e no atual Diviso de Homicdios. 2 Procedimento regulado pela Resoluo 513/1991 da Secretaria de Segurana Pblica do Rio de Janeiro. Essa
resoluo objeto de reflexo mais adiante. 3 Os casos no foram selecionados a partir de critrios de representatividade e capacidade de generalizao, nem
tampouco aleatoriamente. Como adverte Small (2009), associar pesquisa de campo a esses critrios de seleo de
casos implica anular o potencial heurstico prprio do conhecimento etnogrfico. luz dessa advertncia,
escolhi para tratar mais detidamente casos particulares que proporcionam oportunidades e espaos narrativos
para a apresentao dos aspectos especficos do desaparecimento de pessoas que busco destacar. Em suma, a
escolha dos casos ela mesma uma estratgia narrativa de que fao uso tendo como finalidade algo que
caracterstico do texto etnogrfico: a persuaso do leitor. Evidentemente no se trata de buscar convencer o leitor
s expensas de compromissos com as pessoas e informaes enredadas no texto, mas sim o contrrio disso.
Afinal, uma vez que se comea a olhar para os textos de etnografia, alm de olhar atravs deles, e se percebe que eles so construdos, e construdos para persuadir, aqueles que os produzem passam a ter muito mais por que responder. (Geertz, 1988, p.181). 4 Desde maro de 2010, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidncia da Repblica (SEDH/PR)
passou a ser designada apenas Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica. Esta alterao foi
parte de um conjunto de modificaes na organizao de Presidncia da Repblica e dos Ministrios institudas
por Medida Provisria (432/2010) convertida em Lei (12.314/2010) em agosto de 2010. Como a maior parte da
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administrao pblica municipal, estadual e federal, como conselhos tutelares, rgos de
assistncia social e delegacias de polcia.5 No curso da pesquisa, passei a frequentar as
reunies do comit gestor da ReDESAP, ento composto por trs delegados de Polcia Civil, a
presidente de uma associao de mes de desaparecidos, uma conselheira tutelar, o diretor de
um programa estadual de busca de crianas e adolescentes desaparecidos e um gestor da
SEDH/PR. Ao longo do ano de 2010, participei de reunies do grupo centradas na principal
iniciativa em torno da qual a rede est mobilizada atualmente: o projeto ainda no
implementado do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas.
Alm disso, tambm em 2010 preparei material didtico (cartilha), coordenei e
ministrei curso sobre desaparecimento de pessoas intitulado Programa de Capacitao de
Atores Estratgicos no mbito da ReDESAP, idealizado pela SEDH/PR e executado em
convnio com uma ONG e uma fundao de ensino e pesquisa. O pblico-alvo do Programa
consistiu em conjunto de servidores pblicos e membros de organizaes da sociedade civil
que lidam com casos de desaparecimento de pessoas, mais ou menos diretamente, em seis
unidades da federao: Rio de Janeiro, So Paulo, Sergipe, Par, Distrito Federal e Gois. Os
debates levados a cabo nos eventos da rede em que estive presente ao longo da pesquisa, entre
eles o curso, so objeto de reflexo na tese.6 A trajetria que percorri do SDP para a
ReDESAP apresentada no primeiro captulo.
O cotidiano do SDP, na Delegacia de Homicdios do Rio de Janeiro, e os eventos
promovidos pela ReDESAP nas cidades do Rio de Janeiro, Braslia, So Paulo, Aracaju,
Goinia e Boa Vista apresentaram-me os dilemas e desafios que casos de desaparecimento
colocam para todos que com eles se envolvem, tanto em diversos nveis e searas da
administrao pblica, quanto em experincias classificadas como pessoais e/ou familiares.
Mais do que isso, a rotina da delegacia e os encontros da rede sugeriram-me que dilemas e
desafios so o que constitui o desaparecimento como fenmeno passvel, por um lado, de
enfrentamento e gesto pblica, e, por outro, de investigao antropolgica.
A ausncia de uma pessoa em lugares ou crculos em que se espera que ela seja
encontrada no a nica falta que determina um caso de desaparecimento. Ao contrrio,
muitas vezes essa ausncia apenas um de seus vrios elementos constitutivos. Tanto quanto
ela, a ausncia de definies precisas do que seja desaparecimento e sobre quem recaem as
pesquisa foi realizada antes dessa modificao, contudo, refiro-me em todo o texto da tese Secretaria Especial
de Direitos Humanos. 5 No Anexo III encontra-se a listagem dos membros da ReDESAP. 6 No Anexo IV encontra-se um quadro que compila os eventos da ReDESAP em que estive presente, listando os
locais onde ocorreram e dados sobre minha participao.
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responsabilidades de sua gesto e de seu combate determina o curso de cada caso particular.
Por isso, essa ausncia de definies o eixo em torno do qual as questes analisadas na tese
esto organizadas. Em outros termos, apresento casos com que tive contato no SDP e debates
de que participei na ReDESAP colocando em relevo essa falta de definies. O que o
desaparecimento de pessoas, nesse sentido, no apenas uma pergunta retrica ou
narrativamente estratgica que se presta a introduzir este trabalho, como utilizei acima. Antes,
trata-se tambm de uma indagao evocada pelos agentes que lidam com casos particulares,
envolvem-se em debates pblicos em torno do desaparecimento e, cotidianamente, definem,
redefinem e questionam seus significados.
Inspirada primordialmente na problemtica antropolgica do gestar e gerir (Souza
Lima, 2002), a pergunta mais ampla que rene as questes aqui tratadas a seguinte: como
construdo e gerido o desaparecimento de pessoas no Brasil contemporneo? Ao compilar
anlises processuais sobre a instaurao e utilizao de espaos e categorias sociais que so
alvos e caues de uma burocracia destinada a geri-las, em si fragmentada, comportando
histrias de constituio muito diversa e articulando setores sociais heterogneos (Souza
Lima, 2002, p.17), Souza Lima explora o universo prescritivo e pedaggico das prticas,
tcnicas e saberes constitutivos do que, em sentido lato, podemos chamar de administrao
pblica. Conforme a abordagem do autor, em categorias jurdico-normativas, polticas
pblicas e problemas sociais, tanto quanto na crescente formao de especialistas e tcnicos
em reas temticas diversas, h mais que aplicao de regras, normas e procedimentos
burocrticos a realidades supostamente dadas ao conhecimento. Importa, portanto, investigar
os processos de mtua constituio atravs dos quais categorias, polticas e problemas
conectam-se aos mundos sociais que buscam circunscrever.
Tomada como pergunta, a dupla gestar e gerir proporciona reflexes sobre casos
particulares e debates pblicos em torno do desaparecimento de pessoas que no naturalizam
categorias e mantm no horizonte analtico a idia de que todo fenmeno tomado como objeto
de administrao pblica , necessariamente, construdo por tcnicas, prticas e saberes que
sobre ele incidem. Estabelecer a pergunta do gestar e gerir como pilar de um trabalho sobre
o desaparecimento de pessoas, portanto, significa admitir por princpio que o objeto em foco
no o desaparecimento de pessoas, e sim aquilo que construdo como desaparecimento de
pessoas, procurando compreender o processo por meio da qual se d tal construo.
A interrogao sobre a constituio e gesto do desaparecimento de pessoas desdobra-
se, aqui, em duas indagaes principais: como casos particulares de desaparecimento so
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construdos como ocorrncias policiais, e como o desaparecimento de pessoas construdo,
em outro plano, como problema social. Tais indagaes desdobram-se, ainda, em uma
terceira: a pergunta acerca das unidades e responsabilidades construdas e atribudas em casos
particulares de desaparecimento e em debates pblicos em torno do fenmeno. Famlia,
polcia e Estado so termos constantemente evocados nos referidos casos e debates, da
minha opo por me perguntar, tambm, como so construdas unidades e atribudas
responsabilidades diante de desaparecimentos de pessoas.
As reflexes incitadas pelos casos e debates apresentados na tese so devedoras de um
conjunto de etnografias que, ao tomar como objeto prticas classificadas como
administrativas, burocrticas e/ou judicirias, prestam-se a pensar sobre processos de
formao de Estado e constituio de sujeitos. Em franco dilogo com a filosofia de Michel
Foucault, tais trabalhos, que aparecem ao longo da tese no s em citaes explcitas, mas
tambm e principalmente como interlocutores com os quais gostaria de dialogar, promovem
reflexes que revelam a faceta mais dinmica e insidiosa do poder de Estado: a arte de
governar seres humanos e suas relaes (Inda, 2005). Alguns desses estudos so as
etnografias realizadas em contextos estrangeiros e compiladas por Das & Poole (2004) e Inda
(2005), alm dos trabalhos de Lugones (2004, 2009) em tribunais da provncia argentina de
Crdoba, e, com especial destaque, os estudos voltados para a realidade brasileira realizados
por Souza Lima (1995), Vianna (1999, 2002) e Schuch (2009). Tambm compem esse
quadro as coletneas organizadas por Souza Lima (2002) e Fonseca & Schuch (2009).
Almejando dialogar com os trabalhos citados, busco discutir as questes centrais
acima introduzidas ao longo de cinco captulos, cujos contedos encontram-se resumidos no
final dessa Introduo. Antes disso, faz-se necessrio ressaltar que os casos de
desaparecimento com que tive contato no SDP e que selecionei para apresentar na tese
atravessam os cinco captulos, fazendo-se presentes no corpo do trabalho como um todo.
Casos so a matria prima mais fundamental da tese, e sem referncia a eles nenhuma das
questes tratadas teria sido sequer levantada. Em suma, atravs deles que busco
compreender como o desaparecimento gestado e gerido no Brasil contemporneo.7
7 Todos os casos com que tive contato nos arquivos do SDP tiveram lugar no estado do Rio de Janeiro, o que a
princpio demandava que eu circunscrevesse meu objetivo de pesquisa ao Rio de Janeiro contemporneo, e no
ao Brasil. Porm, a pesquisa estendeu-se para eventos da ReDESAP ocorridos em outras unidades da federao,
onde conheci e conversei sobre outros desaparecimentos alm dos investigados no SDP e tomei contato com
formas de abord-los e geri-los empreendidas em outros locais, permitindo ampliar o escopo da tese.
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Uma forma para muitas ausncias
Cada caso de desaparecimento investigado no SDP equivale a uma pasta de
documentos que rene registros relativamente autnomos. Produzidos em diversas reparties
e encaminhados para o Setor em datas variadas, Registros de Ocorrncia (RO), Ofcios,
Despachos, fotografias e bilhetes pessoais, entre outros suportes materiais de informao, so
compilados ali sob o ttulo de Sindicncias.8 As gavetas dos arquivos do SDP renem
Sindicncias que so numeradas e organizadas ora segundo datas de desaparecimentos, ora
segundo datas de registros dos casos, e ora segundo suas datas de arquivamento. 9
Abrir qualquer gaveta do Setor significa encontrar maos de papis reunidos em pastas
cujos indexadores so os nomes das pessoas desparecidas. Cada pasta equivale a uma
Sindicncia. Diante da mistura de registros heterogneos reunida nas Sindicncias, a ordem de
produo e as conexes entre os papis por elas compilados s podem ser compreendidas se
nos debruarmos sobre cada pasta durante certo tempo, dedicando-nos a analisar as peas
documentais ali depositadas e a construir enredos que as renam, impondo-lhes uma ordem.
Formular enredos coerentes a partir das fragmentrias colees de documentos guardadas nas
pastas , nesse sentido, ficcionar (Ortega, 2008). No que traar percursos narrativos a partir
daqueles documentos implique construir farsas, falcias ou iluses. Antes, convertir en
ficcin ficcionar no significa dar rienda suelta a fantasias escapistas, sino inducir un efecto
de realidad a travs del uso de prticas discursivas cuyos referentes estn en disputa. (Ortega,
2008, p.61). O referente central em disputa nos registros de casos de desaparecimento, como
demonstro ao longo da tese, o prprio termo desaparecimento.
Atos oficiais de nomeao, os documentos reunidos em cada Sindicncia de
desaparecimento arrogam para si o estatuto de verdade e assim produzem verdades
autorizadas (Bourdieu, 2008), a despeito de sua heterogeneidade e aparente incoerncia. J os
enredos que se pode construir a partir deles, ao contrrio, carregam consigo tons de fico,
medida que lhes impem certa coerncia, mas induzem um efeito de realidade crucial para seu
entendimento e anlise. Enquanto freqentei o SDP dediquei-me sobretudo compreenso
daquelas peas documentais e a tentativas de construo de enredos que as ordenassem. Nessa
8 No Anexo I encontra-se um quadro listando os documentos que, em combinaes variadas, podem compor uma
Sindicncia. No quadro so apresentadas caractersticas bsicas de cada documento. 9 Trs critrios de guarda de Sindicncias podem ser encontrados nas gavetas dos arquivos do SDP. H casos
guardados em gavetas segundo o ano em que a pessoa que d nome Sindicncia desapareceu; h casos
guardados em gavetas segundo o ano em que o registro de ocorrncia de desaparecimento foi firmado em uma
DP, que muitas vezes no corresponde ao ano do desaparecimento; e, por fim, h casos em que o que conta o
ano em que o caso foi arquivado. A maioria dos casos obedece ao primeiro critrio.
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empreitada, busquei tratar os documentos que toquei, li e transcrevi como artefatos
etnogrficos especialmente reveladores de tcnicas e procedimentos burocrticos estatais
(Riles, 2006) e, ao mesmo tempo, de representaes e marcas sociais produzidas e
perpetuadas por tais tcnicas e procedimentos (Cunha, 2002). Como no deixam dvidas os
trabalhos de Souza Lima (1995), Carrara (1998), Vianna (1999, 2002), Cunha (2002) e
Lombardo (2010), apenas para ficar no mbito institucional mais prximo desta tese,
etnografias em arquivos e sobre arquivos no so trabalhos destoantes ou raros no campo da
Antropologia Social, embora muitas vezes sejam assim apresentadas. Na lida com os papis
produzidos e arquivados no SDP, sigo a trilha percorrida por esses autores e mantida aberta
por trabalhos anualmente defendidos em programas de ps-graduao e/ou apresentados em
eventos como, por exemplo, o seminrio Quando o campo o arquivo: etnografias, histrias
e outras memrias guardadas, realizado em novembro de 2004.10
Nesse sentido, encaro os documentos compilados nos arquivos que pesquisei como
precipitaes de encontros e relaes. No se tratam de encontros entre menores e policiais no
comeo do sculo passado (Vianna, 1999), entre vadios e policiais nos arredores da dcada de
1930 (Cunha, 2002) ou entre pleiteantes e administradoras de guardas judiciais em tribunais
(Lugones, 2009), embora essas dades ocupem lugar crucial na construo da tese, como
inspiraes analticas e metodolgicas. A especificidade das relaes que se precipitam nos
documentos aqui estudados decorre do fato de que eles centram-se na falta de uma pessoa, ela
mesma ausente do encontro que os produz: o desaparecido.
Da perspectiva que orientou a pesquisa e a escrita desta tese, cada pea documental
guardada nas gavetas do SDP produto de encontros entre pessoas que se dirigiram a
delegacias para comunicar desaparecimentos e policiais civis que os registraram, alm de
servidores pblicos e funcionrios de instituies diversas. Os encontros entre esses agentes e
os documentos que deles resultam implicam o emprego de recursos narrativos variados e,
determinando forma e contedo do que resta arquivado, implicam tambm a incidncia de
regras e padres de registro. Nos termos de Bourdieu, poderamos dizer que tais encontros
implicam um compromisso entre interesse expressivo e uma censura constituda pela prpria
estrutura do campo onde o discurso produzido e tambm circula. (Bourdieu, 2008, p. 131).
Alm disso, tambm incidem sobre forma e contedo do que resta arquivado atos e artefatos
10 O seminrio foi realizado em 25 e 26 de novembro de 2004 pelo CPDOC da Fundao Getlio Vargas e pelo Laboratrio de Antropologia e Histria do IFCS/UFRJ, com o apoio da Associao Brasileira de Antropologia. (Castro e Cunha, 2005, p.3). Uma seleo de trabalhos apresentados no seminrio encontra-se publicada no
nmero 36 da revista Estudos Histricos, do CPDOC/FGV, intitulado Antropologia e Arquivos.
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que se aproximam do que Lugones (2009) chama de formas de aconselhamento e frmulas
de compromisso, como busco deixar claro ao longo da tese.11
Como os documentos guardados no SDP compem um arquivo policial, a censura que
determina sua forma e contedo em grande medida derivada das formalidades e padres de
registro resguardados pelos prprios formulrios que do corpo aos documentos, e pelas
hierarquias e cadeias de autoridade ao longo das quais se distribuem os vrios agentes que os
assinam, autorizam, colocam em circulao e/ou arquivam. Tanto as cadeias de autoridade por
que se estendem os procedimentos executados pelos policiais e demais agentes que lidam com
desaparecimentos, quanto os documentos por eles produzidos so parte constitutiva do
conjunto de prticas que fazem o Estado enquanto exerccio de poder. (Foucault, 2004). A
racionalidade governamental que orienta tais prticas, com suas formalidades, hierarquias e
padres de registro, no anula, contudo, a criatividade e habilidade narrativa dos envolvidos
na produo dos documentos sobre os casos sejam eles comunicantes de desaparecimentos,
policiais que atendem a esses comunicantes ou funcionrios de instituies no-policiais que
so envolvidos nas tramas registradas.
Em suma, por mais interessados e formalizados que sejam, registros documentais cuja
autoria remete a encontros entre funcionrios que zelam por sua forma e cidados que
demandam respostas de determinadas autoridades revelam as habilidades narrativas de todos
esses agentes. (Davis, 1987). Se pensarmos nos policiais que registram e arquivam casos de
desaparecimento, podemos notar suas habilidades para criar e manter arquivos, emblema
mximo da burocracia moderna (Riles, 2006), suas tentativas de oficializar formas de
aconselhamento e frmulas de compromisso (Lugones, 2009) e, ainda, sua destreza em exibir
um suposto controle total sobre pessoas e territrios. Se pensarmos nos cidados que vo a
delegacias de polcia solicitar investigaes em torno de um desaparecimento, por outro lado,
podemos notar suas tentativas de emprego de recursos narrativos que sejam eficazes para
diversos fins como, por exemplo, atribuir uma boa reputao pessoa desaparecida ou
revestir de suspeita pessoas enredadas nos casos. Portanto, os encontros entre agentes
11 Lugones (2009) denomina formas de aconselhamento e frmulas de compromisso as tcnicas de menorizao que observou em ato nos tribunais prevencionais de menores onde realizou trabalho etnogrfico.
Tais formas e frmulas renem, a um s tempo, a fora intrnseca da forma (o conselho) e a eficcia prpria da formalizao dos compromissos exercida por especialistas (Lugones, 2009, p.203), alm de operacionalizarem exerccios de poder que reencaminham situaes desgovernadas atravs de atuaes pedaggicas (idem, ibidem, p.203). Registradas em autos de processos judiciais, formas de aconselhamento e frmulas de compromisso cristalizam maneiras de conduzir situaes tidas como fora de controle ao deslizarem, de modo to escorregadio quanto eficaz, entre conselhos e ordens, e entre atribuies e compromissos. por meio dessas
tcnicas que as administradoras judiciais junto s quais Lugones fez sua pesquisa gestam e gerem os casos e os
grupos de pessoas diante dos quais atuam. Nos captulo 2 e 3, mostro que o trabalho da autora ilumina muitos
dos registros firmados por policiais em sua lida rotineira com casos de desaparecimento.
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envolvidos em tramas de desaparecimento produzem registros documentais censurados por
formalidades, mas que do margem no s ao uso de formas e frmulas padronizadas, mas
tambm a habilidades e estratgias narrativas.12
Para a escrita desta tese, os registros documentais com que tive contato no SDP foram
submetidos ao compromisso entre meu interesse expressivo e a censura determinada pelas
normas da escrita acadmica. Encontrados nos arquivos compilados em pastas, mas no
ordenados e enredados em tramas apresentadas com comeo, meio e fim, os registros
documentais lidos, transcritos e analisados ao longo da pesquisa foram aqui ficcionados
(Ortega, 2008, p.61) como casos de desaparecimento. Para fins de anlise, os casos so
tratados como se tivessem assim sido encontrados, sem que haja a qualquer pressuposto de
objetividade ou pretenso de narrar verdades. (Riles, 2006, 16-17). Ao contrrio, fundamenta
a construo dos casos a idia de que, sejam quais forem os artefatos etnogrficos utilizados,
inconcebvel que o intento da etnografia seja coletar dados num suposto mundo real cuja
verdade se queira descrever. Ser desprovida da pretenso de revelar a verdade, porm, no a
exime de buscar a verossimilhana (Geertz, 2009, p.13-14), reconhecer seu potencial efeito de
realidade e, sobretudo, honrar compromissos epistemolgicos e ticos com os sujeitos e
informaes enredadas no texto:
O que isso quer dizer que agir desse modo no livra ningum do nus da
autoria, mas o aprofunda. Transmitir com exatido as idias de Emawayish,
tornar seus poemas acessveis, tornar sua realidade perceptvel e esclarecer o contexto cultural em que ela existe significa colocar todas essas coisas na
pgina de maneira suficiente para que algum possa adquirir alguma
compreenso do que elas podem ser. E essa no apensa uma tarefa difcil, mas uma tarefa que no deixa de ter conseqncias para o nativo, o autor e o leitor (e, na verdade, para aquela eterna vtima das atividades alheias, o espectador inocente). (Geertz, 2009, p.190)
A seguir, para colocar em cena uma das narrativas que constru a partir dos
documentos arquivados no SDP, apresento um exemplo de caso de desaparecimento j no
12 Em sua anlise de cartas de remisso escritas na Frana do Sculo XVI, Davis (1987) une as idias de arquivo
e fico, ao atentar-se para os artifcios narrativos empregados pelos autores das cartas analisadas. Esses autores
eram pessoas que cometeram crimes e pediam perdo ao rei por seus atos, mas na escrita das cartas contavam
com o trabalho de escribas e notrios que zelavam pelas formalidades que os pedidos necessariamente deveriam
respeitar. Por mais distante que seja, no tempo e no espao, da temtica aqui focada, a obra inspiradora para
essa tese por partir do princpio de que as cartas resistem a ser analisadas a partir da dicotomia fico X verdade.
As narrativas nelas produzidas visam persuaso e dizem muito das habilidades dos suplicantes como contadores de histria, embora ao mesmo tempo digam muito sobre os limites formais que margeavam essas
habilidades. Ademais, a obra inspiradora porque, de modo semelhante ao que ocorre em alguns casos de
desaparecimento, as cartas apresentam os suplicantes como figuras moralmente ilibadas, constroem os crimes
como excepcionalidades em suas vidas e, ainda, revestem de suspeitas outros personagens das tramas que
narram.
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formato em que eles aparecem na tese. O caso escolhido o desaparecimento (e localizao)
de Antnio, protagonizado por ele, Maria, Jeferson e o inspetor Fernando, e encontra-se em
uma caixa de texto destacada do corpo desta Introduo por quatro bordas. Esse formato
utilizado para alguns casos que escolhi destacar. No obstante, h na tese menes a trechos,
passagens e fragmentos de outros casos que optei por mencionar ao longo do texto, sem
empregar o destaque formal. Utilizo esse modo de apresentao com o objetivo de
compartilhar com o leitor algo que encontrei ao longo da pesquisa, trazendo formalmente para
a tese caractersticas dos artefatos etnogrficos pesquisados.13
Minha inteno que a forma
como construo os casos espelhe, em alguma medida, a forma como os desaparecimentos de
pessoas aparecem nos documentos que li e transcrevi.14
Dos pontos de vista dos agentes envolvidos em casos particulares e engajados em
debates pblicos, designar e tratar um acontecimento como desaparecimento implica
desentranh-lo do emaranhado de atos e fatos que d corpo vida social, conferindo-lhe o
estatuto de problema e a forma de um evento narrvel com comeo, meio e fim ainda que
por fim entenda-se a perpetuao da ausncia do desaparecido, sem razes conhecidas.
Nesse exerccio, recursos narrativos especficos so utilizados, concomitantemente, tanto por
comunicantes de desaparecimentos, quanto por policiais que os registram em formulrios e,
ainda, por agentes que os denunciam em debates pblicos. Para espelhar formalmente essa
idia, optei por apresentar os casos narrando-os tambm com comeo, meio e fim, e
enquadrando-os em caixas de texto que se destacam do corpo do trabalho. Os casos que assim
aparecem na tese foram desentranhados do conjunto de papis e falas com que tive contato ao
longo da pesquisa e formulados como narrativas. Nessa formulao, utilizo como recurso
certo vaivm entre o que est firmado nos documentos e a leitura que fiz deles, aqui
convertida em escrita. Fao isso permeando a narrativa de cada caso com trechos de
documentos, que aparecem em forma de citao (entre aspas ou destacado por recuo).
Os arquivos do SDP e os encontros da ReDESAP sugerem que a classificao de um
acontecimento como desaparecimento desdobra-se na produo de fronteiras entre o que seria
da ordem do ordinrio e o que seria algo excepcional a ponto de se tornar ocorrncia policial
ou manifestao de um problema social. No obstante, os arquivos e encontros explicitam
tambm que a produo dessas fronteiras um exerccio constante e sempre incompleto:
13 Sigo a sugesto de Riles (2006), que sustenta que uma forma possvel de respondermos s prticas com que os
etngrafos tomamos contato borrowing responses from the ethnographic artifact itself (here, documents and documentary practices) onto the ethnographers own terrain. (Riles, 2006, p.25) 14 No Anexo II encontra-se um quadro que compila os casos narrados ao longo da tese nesse formato destacado.
A funo do quadro facilitar que o leitor rememore e encontre casos a partir do nome da pessoa desaparecida.
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acontecimentos construdos como casos de desaparecimento so distinguidos da vida
cotidiana ao serem narrados e registrados, mas, ao mesmo tempo, dela no so totalmente
apartados. luz das propriedades da magia, pode-se dizer que temos, tambm a, mundos que
momentaneamente se sobrepem sem que se destaquem. (Mauss, 2003, p. 150). As caixas de
texto colocadas ao longo do corpo da tese, mas destacadas pelas bordas que as delimitam, so
tentativas de dar forma a essas caractersticas dos casos.
Como o caso de Antnio bem ilustra, mesmo que construdos como eventos
extraordinrios, casos de desaparecimento so constitudos por elementos do cotidiano e so
constitutivos do cotidiano daqueles que com eles se envolvem. Ademais, so cotidianamente
geridos por meio de rotinas burocrticas.
ANTNIO
Maria e Antnio, policial civil aposentado, viveram juntos por muitos anos e esto
separados h quase duas dcadas. Logo aps a separao, Antnio voltou a viver com sua me.
Falecida a me, seguiu residindo no mesmo endereo, em companhia da irm. Em setembro de
2007, porm, o imvel foi a leilo por inadimplncia. A irm de Antnio partiu para o Mato
Grosso e ele, desde ento, voltou a residir com Maria, agora na casa que ela divide com
Jeferson, seu atual companheiro.
Questes financeiras, repletas de ambigidades, so parte constitutiva das relaes
entre Maria, Antnio e Jeferson. Segundo Maria, Antnio vive em sua residncia por no ter
meios para manter casa prpria desde o leilo do imvel em que vivia com a irm. Entretanto,
contribui considervel e regularmente para o oramento da casa onde mora com ela e Jeferson.
Certa manh de maro de 2008, contados quase seis meses que vinham morando sob
mesmo teto, Maria, Antnio e Jeferson foram at uma agncia bancria em Cascadura. L,
Antnio sacou setecentos reais de sua conta corrente e entregou a quantia, integralmente, a
Jeferson. Do banco, os trs partiram no mesmo nibus. Maria e Jeferson desembarcaram
primeiro, diante de um supermercado, e Antnio seguiu viagem. Ele estava a caminho de outra
agncia bancria, no Centro, onde depositaria certa soma de dinheiro que havia colocado na
meia antes de sair de casa.
No comeo da tarde, Maria comeou a estranhar que Antnio no retornasse para casa
e decidiu procurar por ele nas ruas do bairro onde moram. Como no obteve sucesso, telefonou
em seguida para o irmo de Antnio, Walter Lcio, que surpreso informou-lhe que Antnio
sequer sabe seu endereo. Em companhia de Jeferson, Maria foi ento agncia bancria em
que Antnio depositaria o dinheiro que portava dentro da meia, onde foram informados que
no consta o comparecimento de Antnio naquele estabelecimento. Frustradas essas trs
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buscas, no bairro, na parentela e no banco, Maria decidiu procurar a polcia para registrar o
desaparecimento do ex-marido, deciso que a conduziu a trs reparties policiais: a 29
Delegacia Policial (DP), a 6 DP e o Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da Delegacia de
Homicdios (DH).
Na 29 DP, Maria foi informada que o registro s poderia ser feito depois de passadas
48 horas do desaparecimento.15
Como Antnio havia desaparecido naquele mesmo dia,
nenhuma providncia seria tomada naquela repartio. Da 29, Maria seguiu para a 6 DP, onde
tentou mais uma vez notificar o desaparecimento. Relatou ento que seu ex-marido policial
civil aposentado e, sob a justificativa de que se tratava de questo envolvendo policial, foi
encaminhada para a Delegacia de Homicdios e instruda a procurar o SDP.
Embora no seja da competncia do SDP receber solicitaes de registro diretamente
de familiares ou conhecidos de pessoas desaparecidas, e embora no haja qualquer respaldo
legal para a justificativa do encaminhamento de Maria diretamente DH, o inspetor do SDP
que a recebeu achou por bem efetuar o registro. Tomou ento as declaraes de Maria e, a
partir delas, instaurou Sindicncia em nome de Antnio. Dentre os registros que compem a
Sindicncia, o inspetor grafou uma justificativa para a exceo concedida:
Independentemente da peregrinao sofrida por muitos familiares de
pessoas desaparecidas, fica cada vez mais notria a falta de informao
dentro do prprio organismo da Polcia Civil, seja no que diz respeito ao
registro do desaparecimento, seja a rea de sua atribuio. No ensejo de
amenizar o priplo da comunicante e melhor definir uma soluo para que
se d incio s buscas do paradeiro do cidado desaparecido, foram tomadas
a termo as declaraes ora apresentadas para conhecimento e providncias cabveis.
Passados onze dias da instaurao da Sindicncia, Maria retornou ao SDP para solicitar
a suspenso das investigaes e registrar que ela mesma havia encontrado Antnio. Ele estava
hospedado num hotel caro da cidade mineira de Juiz de Fora, onde disse estar descansando
da vida. Ao relatar esse fato, Maria pediu ao inspetor do SDP que registrasse que ela no se
preocuparia em localizar Antnio caso ele voltasse a desaparecer. Aquela era a segunda vez
que seu ex-marido desaparecia e ela desejava ser desencarregada de procur-lo se o fato
tornasse a se repetir.
Negando o pedido, o policial alertou Maria de que, se era esse seu desejo, ela deveria
se divorciar de Antnio, com quem era oficialmente casada at ento. Segundo o policial, caso
continuasse casada no papel, Maria teria obrigaes em relao a ele. Se numa dessas ele
15 Ronda os casos de desaparecimento de pessoas no Brasil o chamado mito das 48 horas. Embora no haja qualquer norma que afirme que registros de desaparecimento devam ser efetuados apenas 48 horas depois do
fato, prtica comum nas delegacias do pas que policiais passem essa informao aos solicitantes. A Lei
Federal 11.259/2005, conhecida como Lei da Busca Imediata, foi instituda para combater este mito. Contudo, ela determina a busca imediata apenas para casos de desaparecimento de crianas e adolescentes. O mito das 48 horas e a Lei da Busca Imediata so objeto de reflexo no captulo 4.
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for atropelado ou qualquer outra coisa e ela nada fizesse, poderia ser responsabilizada por
negligncia.
Diante dessa advertncia, Maria descreveu o trabalho que Antnio representa em sua
vida. O policial insistiu que a soluo para esse inconveniente seria o divrcio, nica medida
que os desvincularia definitivamente. Em resposta, Maria deixou claro que estar casada com
Antnio lhe permitia acesso a alguns benefcios dos quais ela no poderia abrir mo. O policial
ento afirmou que ela deveria ter cincia de estar agindo por interesse e de possuir
responsabilidades em relao a Antnio - como, por exemplo, reportar polcia um eventual
novo desaparecimento dele. Encerrando o dilogo, Jeferson, companheiro de Maria que at
ento permanecera calado, disse ao policial: . Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Ao se levantar para deixar o Setor, Maria por fim perguntou ao inspetor se ele no
queria checar o documento de identidade de Antnio, que ela levou consigo para comprovar
que o encontrara. Despedindo-se dela e de Jeferson, o inspetor afirmou que no havia qualquer
necessidade de checagem de documento para comprovao.16
Enquanto foi registrado como desaparecido em documentos policiais hoje arquivados
no SDP, Antnio estava descansando da vida em um hotel. Embora para Maria ele estivesse
misteriosamente ausente, o que a levou a solicitar investigaes policiais em torno de seu
paradeiro, ele havia se retirado, voluntariamente, do crculo social, das obrigaes financeiras
e do ponto no espao a que estava costumeiramente vinculado. Sendo Antnio maior de
idade, aposentado e dotado de meios materiais para tanto, no mnimo intrigante que sua
deciso de se retirar tenha sido registrada, sob o nome de desaparecimento, em uma DP.
Se no pelo simples fato de que todos ns somos eventualmente acometidos pelo
desejo de descansar da vida, ao menos a indicao de que a prpria Maria preferia que ele
evaporasse impe que nos perguntemos, afinal, por que o que se passou com Antnio
recebeu o nome de desaparecimento.17
O que significa designar um acontecimento ou cadeia
de fatos como desaparecimento? E o que registr-la em uma repartio policial implica?
Elementos do caso de Antnio oferecem pistas para refletirmos a partir destas
perguntas. Podemos notar, por exemplo, que as posses do ex-policial, importantes para a
16 Os documentos relativos a esse caso compem a Sindicncia 061/08 do SDP/DH. 17 O detetive particular norte-americano Frank Ahearn fez da possibilidade de qualquer um de ns nutrir o desejo
de descansar da vida mote para um manual, atualmente traduzido e publicado em dez pases, intitulado How to disappear: Erase Your Digital Footprint, Leave False Trails, and Vanish without a Trace (Ahearn, 2010). Em livrarias norte-americanas, encontra-se o manual de Ahearn lado a lado com seu avesso: manuais sobre como
encontrar desaparecidos e como solucionar casos de desaparecimento, como Missing Men: the story of the Missing Persons Bureau of the New York Police Department (Ayers & Bird, 1932) e Tracking - Signs of Man, Signs of Hope: A Systematic Approach to the Art and Science of Tracking Humans (Diaz, 2005).
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manuteno da casa de Maria, bem como as responsabilidades acarretadas pelo vnculo civil
entre os dois figuram nos registros como razes para que a polcia fosse comunicada do
desaparecimento. Do ponto de vista de Maria, as razes operantes seriam as primeiras; do
ponto de vista do policial que a atendeu, seria crucial que ela agisse em funo das ltimas.
O dilogo entre Maria e o inspetor do SDP sugere, ainda, que a comunicao do
desaparecimento polcia seria uma forma de garantir que, caso um acidente ou crime
acontecesse a Antnio e a polcia tomasse conhecimento, Maria fosse avisada, mas no
culpabilizada. Oficializar, comunicar e documentar a ausncia de Antnio em sua casa e em
seu cotidiano, enfim, seria uma forma de Maria desincumbir-se de possveis conseqncias da
retirada voluntria dele. Tanto quanto o casamento no papel acarreta responsabilidades, o
desaparecimento registrado nos papis de um rgo policial pode eximir um sujeito de
algumas responsabilidades. Ao mesmo tempo, o desaparecimento registrado nesses papis
pode impor polcia tarefas, encargos e, por que no, bastante trabalho.
Atentando para especificidades do desaparecimento de Antnio, podemos notar que
questes financeiras, obrigaes morais e responsabilidades civis constituem as relaes entre
o policial aposentado, sua ex-mulher e o atual companheiro dela. Ademais, podemos notar
que essas mesmas questes, obrigaes e responsabilidades constituem a prpria ausncia do
primeiro, ainda que temporria, na vida dos ltimos. Ainda que tenha ganhado ares de
mistrio, tons de fato extraordinrio e estatuto de caso polcia, aparentemente destoando da
vida cotidiana de Antnio, Jeferson e Maria, o desaparecimento do primeiro pode ser visto
como parte constitutiva das relaes e eventos mais ordinrios entre os trs.
Como indicam os trabalhos de Das (2007) e Kleinman (2006), para fins de anlise
possvel e necessrio encarar o cotidiano como constitudo por fatos e acontecimentos que
colocam em questo certezas e preceitos morais que orientam os sujeitos. Alguns desses
eventos so classificados e vivenciados como excepcionais e desestabilizadores, ao passo que
a outros cotidianamente negada tal classificao. Cabem ento algumas perguntas, sobre as
quais reflito a partir da minha presena no SDP e na ReDESAP: o que faz das ausncias
narradas em casos de desaparecimento eventos extraordinrios? Que certezas e preceitos
morais so colocados em xeque nos casos? Como essas ausncias so produzidas como
ocorrncias policiais? E como ganham o estatuto de manifestaes particulares de um
problema social?
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Atravs da porta que fica aberta
Foi na data do reencontro entre Maria, Jeferson e o inspetor Fernando, narrado no caso
de Antnio, que ns quatro nos conhecemos. Mais do que isso, foi naquela data que conheci o
prprio SDP e soube que ali so investigados e arquivados exclusivamente casos de
desaparecimento de pessoa.
O inspetor Fernando um dos cinco agentes da Polcia Civil do Rio de Janeiro que
compem o quadro regular do Setor. Diferente da usual circulao entre delegacias e setores
que caracteriza a carreira da maioria dos policiais civis, Fernando est lotado na Delegacia de
Homicdios e trabalha no SDP h cerca de quinze anos. Junto a seus colegas de Setor, sua
atribuio central investigar casos de desaparecimento registrados e no solucionados em
quarenta e quatro delegacias comuns do Rio de Janeiro.18
Tais investigaes originam
registros documentais que so arquivados, organizados e contabilizados no prprio SDP com
o estatuto de Sindicncias. At o ms de setembro de 2008, encontravam-se arquivados no
SDP Sindicncias em nome de 9.293 pessoas que desapareceram, algumas delas mais de uma
vez, desde o ano de 1993. Antnio uma delas. Diariamente, segundo a escala de alternncia
e horas de trabalho seguida pelos agentes do SDP, h sempre pelo menos dois policiais
presentes no Setor. Os desaparecimentos investigados so distribudos entre os cinco, que
diante dos casos exercem o papel de sindicantes.
Os nicos instrumentos legais que regulam diretamente a forma atravs da qual a
Polcia Civil e, em particular, o SDP deve lidar com casos de desaparecimento no Brasil e no
Rio de Janeiro so a Lei Federal 11.529, de dezembro de 2005, e a Resoluo 513 da
Secretaria de Polcia Civil do Rio de Janeiro (hoje integrada Secretaria de Segurana
Pblica), de dezembro de 1991. O curtssimo texto daquela Lei determina apenas que casos de
desaparecimento de crianas e adolescentes devem gerar investigaes imediatas.19
Relativamente mais detalhada, a Resoluo, por sua vez, normatiza prazos e diretrizes para a
18 Grafo delegacia comum de modo a diferenciar as delegacias distritais, conhecidas como DPs, das delegacias especializadas. Durante a execuo da pesquisa que resultou nessa tese, havia 168 DPs no Rio de Janeiro, e cerca
de 55 delegacias especializadas. No desaparecimento de Antonio, as delegacias comuns envolvidas so a 29 DP
e a 6 DP; a especializada, por sua vez, a Delegacia de Homicdios, em cuja estrutura est inscrito o SDP. So
exemplos de delegacias especializadas que compem a estrutura da Polcia Civil do Rio de Janeiro: a Delegacia
de Proteo Criana e ao Adolescente (DPCA), a Delegacia Especial de Atendimento Pessoa de Terceira
Idade (DEAPTI), a Delegacia de Combate s Drogas (DCOD), a Delegacia Especial de Apoio ao Turista (DEAT) a Delegacia de Represso do Crime Organizado (DRACO). Para uma reflexo sobre a atuao de
delegacias especializadas, bem como sobre o conhecimento (pouco) especfico que nelas circula e produzido,
ver Nascimento (2008). 19 A Lei 11.529/2005 foi incorporada como um pargrafo do Artigo 208 do Estatuto da Criana e do Adolescente
(ECA).
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investigao policial de desaparecimentos no Rio de Janeiro, e tambm utilizada como base
legal em outros estados da federao.
Embora a Resoluo defina padres administrativos para investigao policial, a
averiguao dos arquivos do SDP ou mesmo um nico dia de observao dos trabalhos
levados a cabo no Setor permite notar que, na prtica cotidiana, a heterogeneidade o que
caracteriza o trabalho dos policiais e o conjunto de casos ali investigados. No h padro
nico de acontecimentos, definies e desdobramentos que permitam falar de
desaparecimento, sem contradies, como fenmeno unidimensional. Ao contrrio, h
desaparecimentos mltiplos e definies mltiplas de desaparecimento, e com essa
multiplicidade que os policiais do Setor trabalham.
A pesquisa indicou-me, no obstante, que tal multiplicidade no se confina no interior
das paredes de reparties policiais. Uma ampla gama de significados atribuda ao
fenmeno, cotidianamente, no s por policiais, mas tambm pelas pessoas que procuram a
polcia para comunicar desaparecimentos e, ainda, por funcionrios de instituies no-
policiais que tambm lidam com o fenmeno, como conselhos tutelares, rgos de assistncia
social e ONGs. A abordagem de funcionrios e servidores de todas essas instituies para o
tratamento de casos de desaparecimento varia de forma considervel. Basta lembrarmos a
pesquisa do ISP e o protesto da ONG carioca com que abri essa Introduo. Enquanto para o
Instituto desaparecimentos so protagonizados por jovens que deixam seus lares apenas
temporariamente, para a ONG essas ocorrncias encobrem crimes hediondos.
Para alm das abordagens de agentes que lidam institucionalmente com o
desaparecimento, tambm se distinguem bastante as abordagens dos (poucos) estudiosos
dedicados ao fenmeno. De modo excludente, h interpretaes que classificam o
desaparecimento como uma das faces da violncia urbana (Espinheira, 1999), enquanto
outras o encaram como conseqncia direta da violncia intrafamiliar (Oliveira e Geraldes,
1999) e de valores patriarcais e seus impactos sobre relaes de gnero e gerao no interior
de famlias brasileiras (Oliveira, 2007). Vistas em conjunto, essas interpretaes constrem
duas abordagens excludentes: em alguns trabalhos, as famlias de desaparecidos so
encaradas como instncias produtoras de desaparecimentos (Oliveira, 2007), ao passo que
em outros so vistas como agentes passivos que precisam ser protegidos pelos poderes
pblicos dos impactos da violncia urbana (Soares et al, 2006), apresentada como causa
primordial dos desaparecimentos.
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Pesquisar o cotidiano e os arquivos do SDP e integrar reunies da ReDESAP permitiu-
me confirmar a inexistncia de abordagens nicas do fenmeno tanto entre aqueles que o
tomam como objeto de gesto e interveno, quanto entre os que o tomam como objeto de
estudo. A variedade de casos particulares abarcada pelo polivalente termo desaparecimento
resiste a ser compreendida por qualquer perspectiva unvoca. O desaparecimento de uma
pessoa pode inscrever-se, a um s tempo, tanto na seara da segurana pblica, quanto em
tramas familiares, e pode no consistir em acontecimento decorrente de qualquer tipo de
violncia facilmente classificvel como intrafamiliar ou urbana, como sugerem,
respectivamente, Oliveira e Geraldes (1999) e Espinheira (1999).
De fato, h casos passveis de interpretao a partir da idia de violncia
intrafamiliar. Ao longo da pesquisa me foi relatado, dentre outros exemplos, que os
inspetores do SDP certa vez apuraram que um homem que comunicara o desaparecimento de
sua esposa e filho recm-nascido havia agredido fisicamente aqueles que afirmou terem
desaparecido. Nesse caso, a esposa deixara sua residncia, levando consigo o beb, para
proteger-se (e sua prole) de novos episdios de violncia conjugal. Ao longo de eventos
promovidos pela ReDESAP, de modo semelhante, ouvi inmeros relatos de casos tratados
como desaparecimentos que poderiam, ao mesmo tempo, ser classificados como episdios de
subtrao de incapazes, segundo o Cdigo Penal.20
Tais relatos enredavam pais ou mes de
crianas e/ou adolescentes que subtraram seu(s) filho(s) do poder de quem o tem sob sua
guarda em virtude de lei ou de ordem judicial, conforme prev a lei, como forma de
recrudescer conflitos conjugais.
Contudo, junto a ocorrncias desse tipo, delegacias de polcia lidam tambm com
desaparecimentos que, no decorrer de investigaes, passam a ser designados seqestro,
homicdio e/ou ocultao de cadver, crimes encarados como manifestaes da violncia
urbana na contemporaneidade. Exemplo notrio ocorrido no Rio de Janeiro a chamada
Chacina de Acari, j mencionada nesta Introduo. Outro exemplo, sem dvida menos visvel,
mas no menos representativo, o caso investigado pelo SDP de um homem que, segundo
20 Subtrao de incapazes um crime tipificado pelo Cdigo Penal brasileiro no Artigo 249. Embora sua
definio no o estabelea, em reparties policiais utiliza-se este tipo penal para tratar de casos de seqestro em
que o seqestrador o pai, a me ou o guardador de uma criana ou adolescente. Nos termos da lei, a subtrao
de incapazes consiste em Subtrair menor de 18 anos ou interdito ao poder de quem o tem sob guarda em virtude de lei ou de ordem judicial: Pena