Uma Estética Do Corpo Deformado Das Mulheres e o Figurino Grotesco ORTECHO; SAVASSA; SANTOS

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UMA ESTÉTICA DO CORPO DEFORMADO DAS MULHERES E O FIGURINO GROTESCO José Manuel Lázaro de Ortecho 1 Luci Savassa 2 Sarah Monteath dos Santos 3 Resumo: O texto a seguir aborda alguns aspectos que ajudam a refletir sobre o “corpo deformado” e sua utilização cultural relacionada ao vestuário ou figurino no corpo/personagem feminino. Na primeira parte são apresentados conceitos sobre a relação cultural entre o sentido do sublime e do grotesco, entre a beleza e a feiura na história cultural. A partir desse contraponto introdutório, na segunda parte se traz à tona a construção histórico-cultural sobre o corpo feminino interpretado como um corpo deformado. E para finalizar, discute-se, a partir disso, o processo da construção imagética da “mulher como palhaço”. O riso, enquanto objetivo da personagem palhaço, cujo figurino, no circo, é tradicionalmente masculino, algumas vezes foi interpretada por mulheres, na condição de que estas escondessem seu corpo através do figurino deformado. A partir de 1970, quando o figurino do palhaço passa a ser reformulado, é permitindo às mulheres o acesso a esse tipo de linguagem e o surgimento destas enquanto “palhaças”. Palavras-chave: estética, corpo, figurino, mulheres, grotesco. 1 Docente no programa de Artes Cênicas na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. Coordenador do grupo de pesquisa em figurino LAFIT. 2 Discente no programa de graduação em Artes Cênicas na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. Monitora e integrante do grupo de pesquisa LAFIT. 3 Discente no programa de pós-graduação em Estética e Poéticas Cênicas, na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. Integrante do grupo de pesquisa LAFIT.

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UMA ESTÉTICA DO CORPO DEFORMADO DAS MULHERES E O FIGURINO GROTESCO

José Manuel Lázaro de Ortecho1

Luci Savassa2

Sarah Monteath dos Santos3

Resumo: O texto a seguir aborda alguns aspectos que ajudam a refletir sobre o “corpo

deformado” e sua utilização cultural relacionada ao vestuário ou figurino no

corpo/personagem feminino. Na primeira parte são apresentados conceitos sobre a

relação cultural entre o sentido do sublime e do grotesco, entre a beleza e a feiura na

história cultural. A partir desse contraponto introdutório, na segunda parte se traz à tona

a construção histórico-cultural sobre o corpo feminino interpretado como um corpo

deformado. E para finalizar, discute-se, a partir disso, o processo da construção

imagética da “mulher como palhaço”. O riso, enquanto objetivo da personagem palhaço,

cujo figurino, no circo, é tradicionalmente masculino, algumas vezes foi interpretada

por mulheres, na condição de que estas escondessem seu corpo através do figurino

deformado. A partir de 1970, quando o figurino do palhaço passa a ser reformulado, é

permitindo às mulheres o acesso a esse tipo de linguagem e o surgimento destas

enquanto “palhaças”.

Palavras-chave: estética, corpo, figurino, mulheres, grotesco.

1 Docente no programa de Artes Cênicas na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. Coordenador do grupo de pesquisa em figurino LAFIT. 2 Discente no programa de graduação em Artes Cênicas na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. Monitora e integrante do grupo de pesquisa LAFIT. 3 Discente no programa de pós-graduação em Estética e Poéticas Cênicas, na Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. Integrante do grupo de pesquisa LAFIT.

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O texto a seguir, escrito por uma tríade autoral, aborda alguns aspectos que

ajudem a refletir sobre o “corpo deformado” e sua utilização cultural relacionada ao

vestuário ou figurino no corpo/personagem feminino. Na primeira parte são

apresentados conceitos sobre a relação cultural entre o sentido do sublime e do grotesco,

entre a beleza e a feiura na história cultural. A partir desse contraponto introdutório, na

segunda parte se traz à tona a construção histórico-cultural sobre o corpo feminino

interpretado como um corpo deformado. Para finalizar, na terceira parte discute-se o

processo da construção imagética da “mulher palhaça”. Entendendo ser esta

personagem constituída por um figurino que deforma seu próprio corpo, as mulheres, ao

deformarem o figurino dos palhaços, acabam proporcionando a reflexão acerca de seu

corpo deformado pelo figurino ao longo da história, assim como do figurino deformado

pelo seu corpo neste momento.

1- A EXPRESSIVIDADE DO CORPO DEFORMADO – DIFERENTE

É necessário começar refletindo sobre a abordagem construída do corpo a ser

trajado. Ou seja, partir da compreensão de que “corpo é conceito”;; ele expressa

características e discursos com aspectos psicoindividuais, antropológicos e histórico-

sociais. Nesse sentido é imprescindível entender como o criador (seja o figurinista, o

próprio ator, ou o encenador, citando alguns exemplos) ao elaborar uma arquitetura

estética está gerando noções e ideias que podem constituir um pensamento. É

importante suscitar essa consciência. O criador do figurino estabelece um discurso que:

em primeiro lugar, dialogará com o receptor; e segundo, complementa de maneira

fundamental a construção da personagem elaborada pelo ator. Se o intérprete, por meio

de sua gestualidade, cria já uma expressividade discursiva instituída no seu corpo, então

o figurino vem a complementar e reforçar a noção dessa personificação.

Abordaremos alguns aspectos que ajudem a refletir sobre a conexão da estética

histórica em relação ao “corpo deformado”. Entendemos o físico deformado como uma

estrutura “diferente” que sobressai e vai de encontro aos referentes sociais de cada

época, por contraposição, com os quais entendemos dois tipos de corpo: a) o corpo

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normal, b) o corpo belo. Para isso, será necessário entender que ambos os conceitos

estão inseridos naquilo que chamaremos como “construção normativa”. Ou seja, cada

sociedade ou cultura (entendida como grupo social antropológico) numa época

determinada (momento histórico) cria conceitos sociais de normalidade (que já é em si

mesma uma ideia abstrata); a partir disso produz ideais de beleza que de alguma

maneira possam sustentar a avaliação de normalidade criada por essa coletividade. Nem

sempre os modelos são fechados ou conflitantes. Muitas sociedades tiveram percepções

amplas e ideias suficientemente abrangentes sobre normalidade e beleza; de tal maneira

que qualquer pessoa conseguia se sentir inserida enquanto não atentasse com a vida

humana. O conflito é gerado quando a sociedade termina estruturando uma construção

normativa, no sentido de criar “regras de normalidade” que de alguma maneira

começam a ser impostas, criando marginalizações ou até devastadoras perseguições.

Ou seja, um determinado grupo social origina a ditadura do “normal/belo”. Com isto

criam-se crises que terminam gerando um anseio de libertação diante dos modelos

instituídos. A história nos deixou muitos exemplos dessa paradoxal experiência: a caça

às mulheres tidas como bruxas no contexto cristão da idade média, o conceito nazista de

superioridade da raça ária como justificativa para o extermínio dos judeus, a relação do

branco ocidental diante da negritude africana. Não terminaríamos nunca, sabemos disso.

O fato é que essa construção normativa provoca crises que geram mudanças, mas não

tardam em aparecer novas estruturas que trarão outras contradições.

Quanto ao organismo tido como normal somamos o corpo idealizado como belo,

nos aproximamos do que poderia ser considerado de “corpo sublime”. Estamos nos

referindo àquela composição físico-estética, com estruturas normativas situadas em alto

status de poder e hierarquia cultural. É ai que surgem reações ao corpo diferente: o

desprezo ao físico mutilado, disforme, incompleto, doente; o corpo julgado como falho,

feio, sujo; o corpo relacionado a uma raça vista como inferior ou a uma opção sexual

tida como indesejável... etc. (a lista poderia ser interminável). Essa estrutura física à

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margem, que está no outro extremo daquilo que é socialmente aceito no corpo histórico,

é a outra cara (oculta) de uma mesma moeda entendida como “natureza humana”.

É precisamente a partir dessa visualização do humano na natureza que trazemos

à tona os conceitos elaborados por Victor Hugo quando escreve o que foi o principal

manifesto do romantismo francês: o “Prefácio de Cromwell”. Nesse texto Hugo disserta

sobre os conceitos de sublime e grotesco, e de como ambas as noções interagem para

compor, na modernidade, uma visão mais complexa da natureza humana e, decorrente

disso, da expressão artística.

O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada. A salamandra faz sobressair a Ondina; o gnomo embeleza o silfo. (HUGO, 2007, p. 33-34).

Visto dessa perspectiva, podemos ver como o sublime precisa do grotesco para

sublinhar sua força e ser atraente; além disso, somente com o burlesco ou o

contraproducente podemos ter noção sobre a verdadeira complexidade da natureza.

Rubens assim o compreendia sem dúvida quando se comprazia em misturar com o desenrolar de pompas reais, com coroações, com brilhantes cerimônias, alguma hedionda figura de anão da corte. (HUGO, 2007, p. 33).

Victor Hugo manifesta como a divisão estrita entre o conceito do belo com o

feio, do sublime com o grotesco, não está em simetria com a orgânica e verdadeira

percepção do universo humano. A natureza é uma conjunção, uma convivência entre

ambos os elementos de maneira indissolúvel. Tanto assim que o próprio homem, na

história da cultura, mostra como conceitos de beleza podem passar a ser grotescos;

assim como padrões originalmente grotescos, feiamente diferentes, podem se tornar

modelos de beleza. Com Hugo já se percebe que a formosura como finalidade absoluta,

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não se sustenta por si mesma na arte. Ela sempre precisou do seu contraponto para se

valorizar e atingir maior força. Assim, o grotesco é aquela parte fundamental da

natureza que dá sentido ao sublime da beleza. A antiguidade ocidental, a partir da Ilíada,

por exemplo, nos deixou muitos exemplos sobre isso: os sátiros, aqueles deuses rústicos

corporificados com rabo, cornos e pernas de bode; os cíclopes que são gigantes com um

único olho na testa; as sereias onde a metade de um belo colo nu feminino é somada à

metade inferior de um peixe.

Resta refletir sobre como isso adquire sentido. Criticar o valor histórico da

beleza? Trazer a emergência de um novo valor de beleza a ser sublimado? Relativizar,

ou seja, tornar sublime a estética aparentemente grotesca e, invertendo valores, tornar

grotesco padrões rigidamente belos da época? Percorrer os valores que vão do sentido

da beleza à feiura, do sublime ao grotesco, procurando um equilíbrio entre ambas? Será

que dessa maneira conseguiríamos gerar uma perspectiva mais humana, mais real? Sem

querer fechar a questão, terminamos essa provocação com mais algumas palavras de

Hugo:

O belo tem somente um tipo; o feio tem mil. É que o belo, para falar humanamente, não é senão a forma considerada na sua mais simples relação, na sua mais absoluta simetria, na sua mais íntima harmonia com nossa organização. Portanto, oferece-nos sempre um conjunto completo, mas restrito como nós. O que chamamos o feio, ao contrário, é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o homem, mas com toda a criação. É por isso que ele nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos. (HUGO, 2007, p. 36).

Essas questões podem ser importantes para, a partir daí, começar a refletir sobre

a estética criada no universo do feminino.

2- AS MULHERES E O CORPO DEFORMADO No texto O que é um monstro? Jorge Leite Júnior refere-se à conotação de

monstro e como a deformidade se relaciona com esta denominação, apontando de que

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forma isto acontece através dos tempos. Em um dado momento ele cita a mulher e como

ela foi considerada monstruosa na Idade Média:

Tanto figuras míticas quanto pessoas com corpos distintos, consideradas ‘deformadas’ ou ‘aleijadas’ comungam da ideia de ‘monstro’, ‘maravilha’ e, cada vez mais, de ‘periculosidade maligna’. Culminando este processo, surge a caça às bruxas no século XVI, na qual a Igreja vai identificar o ser delinquente, satânico e anormal na figura da mulher, preferencialmente a feiticeira, o corpo estranho por excelência em uma cultura fundamentalmente organizada em torno de valores inventados como “masculinos”. Não por acaso, a chamada “caça às bruxas” foi às bruxas, não aos bruxos. (LEITE JUNIOR, 2007.)

Pensando a palavra deformidade e/ou deformação com o significado literal de

modificação de forma, alteração, ação ou resultado de deformar, portanto resultado de

modificar a forma estabelecida, pode-se supor que historicamente a mulher foi tida

como algo deformado, alterado, modificado segundo um certo padrão “correto” tendo o

homem como modelo.

O homem viril, seguro, racional e objetivo é visto como equilibrado e sadio,

enquanto que a mulher é tida como o “sexo frágil”;; aquele no qual, para essa visão de

mundo, estariam presentes a fraqueza, a subjetividade, a emoção e o desequilíbrio;

características supostamente ausentes no homem ou quando existentes, em “equilíbrio”.

O fator psicológico, portanto, contribuiu e contribui para a criação deste mistério em

torno da mente e da complexidade feminina e que pode caracterizá-la como um ser

obscuro e deformado.

Além deste fator, há também a questão biológica colocada contra a mulher,

discutida por Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo:

A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o epíteto “fêmea” soa como um insulto;; no entanto, ele não se envergonha de sua animalidade, sente-se ao contrário, orgulhoso se dele dizem: “É um macho!” O termo fêmea é

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pejorativo, não porque enraíze a mulher na Natureza, mas porque a confina no seu sexo. E se esse sexo parece ao homem desprezível e inimigo, mesmo nos bichos inocentes, é evidentemente por causa da inquieta hostilidade que a mulher suscita no homem; entretanto, ele quer encontrar na biologia uma justificação desse sentimento. (...) (BEAUVOIR, 2000, p. 25)

Atualmente, em uma sociedade ainda patriarcal, tudo que é diferente do

masculino é visto com preconceito. A mulher ainda é muitas vezes acusada de inferior e

submissa por ser o oposto total do masculino, e suas características psicológicas e

biológicas são colocadas contra ela de forma a condenarem-na a viver segundo regras,

desejos e necessidades masculinas.

Tais questões se refletem também no seu vestuário, que é muitas vezes julgado,

colocando a sensualidade feminina como “perturbadora” dos homens, levando-os, por

exemplo, a cometerem estupros. Infelizmente este tipo de afirmação é muito presente no

senso comum desta cultura patriarcal dominante, culpando a mulher por exibir-se em

vestimentas curtas e justas para provocar os homens. Desta forma a mulher não tem

sequer a liberdade de vestir-se como quer, refletindo uma sociedade que não aceita

diferenças e particularidades.

Simone de Beauvoir novamente traz a questão biológica da mulher e discute a

necessidade de lutar contra a hierarquização dos gêneros:

Esses dados biológicos são de extrema importância: desempenham na história da mulher um papel de primeiro plano, são um elemento essencial de sua situação. (...) Mas o que recusamos, é a ideia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia dos sexos; não explicam porque a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para sempre essa condição subordinada. (BEAUVOIR, 2000, p. 52)

3- A QUESTÃO ACERCA DO CORPO MONSTRUOSO DA MULHER Além da questão biológica e da pouca atuação feminina na sociedade, a situação

do corpo feminino visto como defeituoso parece ultrapassar séculos. No entanto, a

tentativa de escondê-lo, ou ressaltá-lo, através de maquiagens ou figurinos, não parece

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ser uma solução bem vista durante muito tempo. Como se pode perceber na citação

abaixo:

Segundo as escrituras os adornos para a beleza sempre formam um todo com a prostituição do corpo. À parte a condenação moral (e a clara intenção de polemizar com a licenciosidade do mundo pagão), fica evidente a insinuação de que a mulher se maquila com cremes e outros artifícios para mascarar seus defeitos físicos, na vaidosa ilusão de ser atraente para o marido ou, pior, para os estranhos (Tertuliano apud ECO 2007, p. 159).

Encontram-se algumas referências a esta situação na literatura clássica. Ao

discutir acerca da cosmética feminina, Umberto Eco afirma que a finalidade de tal ação

seria esconder os defeitos do corpo feminino. Tertuliano, no entanto, recorre às

escrituras religiosas, relacionando esta intenção com a prostituição feminina (ECO,

2007, p. 159).

Agradem apenas a seus maridos. E quanto mais pensarem em agradar-lhes, menos se preocuparão em agradar aos outros. Não se preocupem, ó benditas, nenhuma mulher é feia para o seu marido; agradou-lhe o bastante com seus costumes e sua beleza quando ele a escolheu (Tertuliano apud. ECO, 2007, p.160).

A partir deste pensamento de Tertuliano, tem-se, em alguns momentos, a

procura por uma apresentação das vantagens de ser uma mulher desprovida de beleza.

No Renascimento, por exemplo, tem-se, através de Ortensio Lando, uma ode à feiura

feminina, relatando, inclusive, as desgraças ocorridas devido à beleza da mulher na

História. Assim,

Alguns duvidam que seja melhor ser feio que belo (...) Certíssima coisa me parece que se Helena, a grega, e Páris, o pastor troiano, fossem tão feios quanto foram belos, nem os gregos teriam tido tanto trabalho, nem Tróia sustentaria o que foi seu extermínio final (Ortensio Lando apud. ECO, 2007, p.167).

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Entretanto, tal situação do corpo feminino ultrapassou o âmbito da pura aversão,

e, durante o Renascimento, a mulher torna-se uma presença nos divertimentos, sendo

apresentada, inclusive, uma jocosidade e às vezes até afeição à sua feiura (ECO, 2007,

p.167).

Segundo Bergson (1900, p.12), o que é diferente, estranho e monstruoso exige

da sociedade um distanciamento emocional, que pode causar uma sensação de

admiração, temor, medo, ou ainda, uma percepção do ridículo. As diversas concepções

acerca do corpo feminino parecem em alguns momentos da História levar-nos não

apenas à sua deformidade física, mas à comicidade existente em suas atitudes mecânicas

ao procurar, ridiculamente, esconder-se através de maquiagens ou outros aparatos. Em

outro momento, percebe-se que a busca por uma linguagem que trate de excrementos,

ou sexo, também relaciona-se ao cômico. Assim,

(...) Por outro lado, nas culturas em que existe um forte senso de pudor, o gosto por sua violação manifesta-se através do oposto do pudor, que é a obscenidade. Pode-se exibir comportamentos obscenos por raiva ou por provocação, mas com muita frequência a linguagem ou o comportamento obscenos simplesmente fazem rir, basta pensar na satisfação com que as crianças apreciam dizer ou ouvir piadas sobre excrementos (ECO, 2007, p. 131).

Segundo Bergson, a criação de um personagem cômico resulta, para ele de um

tipo que se desvia do senso comum desejado pela sociedade. Este tipo, ainda apresenta a

possibilidade de suscitar uma insensibilidade através da apresentação de vícios ou

virtudes exagerados. Afirma,

O cômico, dissemos, dirige-se à inteligência pura; o riso é incompatível com a emoção. Mostrem-me um defeito por mais leve que seja: se me for apresentado de modo a comover minha simpatia, ou meu temor, acabou-se e já não há mais como rir dele. Escolha-se, pelo contrário, um vício profundo e mesmo, em geral, odioso: ele poderá tornar-se cômico se, mediante artifícios apropriados, conseguir-se que eu fique insensível. Não quero dizer com isso que o vício será cômico; afirmo é que poderá tornar-se cômico. É preciso

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que ele não me comova, eis a condição realmente necessária, embora certamente não seja suficiente (BERGSON, 1980: 74).

Tal visão de cômico identifica-se no processo de criação da personagem

palhaço, cuja função na sociedade parece relacionar-se com a noção de uma pessoa

rústica, maltrapilha, que de alguma forma não se não identifica com os costumes sociais

vigentes da época. Interessante observar, no entanto, que todas as épocas e culturas

apresentam um tipo que se aproxima desta personagem. Segundo Bergson, o riso

suscitado por essa personagem liberta a sociedade, ainda que momentaneamente da

tensão e do estresse de viver segundo as normas exigidas pela sociedade (1900, p.18).

3.1- A PERSONAGEM PALHAÇO Clown: subst. masc.1. Artista de circo que suscita o riso pelo seu

figurino, sua maquiagem, suas réplicas e seus trejeitos. (REY-

DEBOVE, 1999, p.177.trad. nossa)

A partir da definição existente acerca da palavra palhaço, percebe-se que a

mesma é geralmente identificada como uma inadequação social que provoca o riso.

Desta forma, escolheu-se, para tanto, analisar a personagem Augusto, enquanto um dos

tipos de palhaço existentes, para compor esta parte do artigo. Tal escolha foi feita por

considerar que o mesmo possui uma inadequação moral, física e de figurino. De acordo

com a definição existente no dicionário Le Robert de Poche, encontra-se: Auguste: 2. n.

masc. Palhaço com maquiagem violenta e caricaturada (2008: p. 52. trad. nossa).

Segundo Pantano (2007: p. 45) esta personagem tem seu figurino constituído por um

tamanho superior ao normal, e o tamanho de seus sapatos é propício às quedas

necessárias para compor sua personagem.

3.2- AS MULHERES PALHAÇAS Durante muito tempo, esta personagem foi defendida por alguns artistas e

estudiosos como sendo masculina. De acordo com o autor francês Tristan Remy, seria

necessário que as mulheres escondessem seu corpo no figurino da personagem palhaço,

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e não permitissem ao público que a percebessem enquanto mulher (REMY, 1945, p.

439-440).

Por sua vez, as artistas igualmente francesas Annie e Valerie Frattellini, que

atuaram durante muito tempo enquanto uma dupla de clowns, afirmavam e defendiam

que esta personagem é assexuada (SILVA, 2001, p. 113. Tradução nossa).

Se as concepções acima têm influência direta ou não no circo, ainda não

sabemos. Igualmente desconhecida é a atuação feminina no ambiente circense enquanto

palhaça. Sabendo-se que em alguns casos historicamente datados, foi necessário que

essas mulheres aparecessem sob o figurino dos palhaços, escondendo seu gênero

feminino (CASTRO, 2005, p. 220).

As mudanças ocorridas nos anos 1970, que desembocaram no surgimento das

Escolas de Circo, permitem que a arte da palhaçaria seja ensinada ao público em geral,

inclusive às mulheres. Atuação esta que permite o surgimento das mulheres palhaças.

Em alguns momentos, o corpo feminino, ora monstruoso, ora sedutor, parece modificar

o figurino tradicional do palhaço que deformava o corpo masculino. Este figurino

parece ser deformado pelos corpos femininos. Embora exista um tipo universal para a

construção da personagem palhaço, as características individuais do artista acabam

participando deste momento de criação (PANTANO, 2007, p. 52), tornando-se nos dias

atuais uma personagem internalizada.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta breve exposição acerca do figurino do palhaço que deforma o corpo, e a

relação com o corpo feminino que muitas vezes deforma o figurino do palhaço, permite

que a personagem palhaça surgida a partir dos anos 1970 leve-nos à reflexão acerca de

uma nova concepção de palhaço na atualidade, e do surgimento da personagem palhaça.

Desta forma, o grupo de pesquisa LAFIT conclui suas atividades no semestre lançando

a importância da reflexão acerca do corpo que deforma o figurino e do figurino que

deforma o corpo.

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Abordando a concepção de monstro na sociedade, e tomando a personagem

palhaço como modelo para essas discussões, procurou-se observar como as mulheres

foram construindo essa personagem palhaça atualmente.

Referências Bibliográficas:

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Miliet. 10. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

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Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar editores. 1980.

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Janeiro: Família Bastos, 2005.

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Celia Berretini. São Paulo: Perspectiva, 2007.

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<http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=29&id=340 >, acesso em

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PANTANO, A.A. A personagem palhaço. São Paulo: UNESP, 2007.

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