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UMA “NOVA ERA” NO ATEÍSMO? RELAÇÕES ENTRE ATEÍSMO E
ESPIRITUALIDADE NA PERSPECTIVA DE SAM HARRIS
Danilo Monteiro Firmino
Doutorando em História Social
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP Email: [email protected]
A presente apresentação procura discutir certos aspectos da tese de doutorado em
andamento intitulada “Uma “Nova Era” no ateísmo: Yoga, espiritualidade ateísta e
desencantamento religioso na perspectiva de Sam Harris” com o propósito principal de
demonstrar alguns caminhos e discussões relevantes para o trabalho. Sem intencionar um
tom conclusivo, o presente trabalho busca debater e levantar hipóteses para reflexões e
investigações posteriores.
A tese tem como principal foco investigar a obra “O Despertar: um guia para a
espiritualidade sem religião” (2015), escrita por um dos mais importantes autores ateus
da atualidade, o neurocientista Sam Harris. Harrris faz parte de um grupo conhecido como
os “Quatro Cavaleiros do Ateísmo”1, representantes principais do movimento ateu
intitulado “neo-ateísmo”.
O termo surgiu no ano de 2006, quando a revista Wired publicou uma matéria
intitulada The church of the non-believers,2 destacando os cientistas Richard Dawkins,
Sam Harris e Daniel Dennett como os “novos ateístas”, homens que pretendem desafiar
a religião de maneira direta. De fato, os três autores demonstram de maneira clara a
afirmação da matéria: para eles, a religião não é apenas errada, mas maligna. O “neo-
ateísmo”, conforme afirmam vários estudiosos, não é apenas um ataque desorganizado
contra a religião, mas um movimento maior de alcance mundial (GORDON, 2011;
MOREIRA, 2014; FRANCO, 2014). Leonardo Moreira (2014) destaca que o movimento
1 Os autores Richard Dawkins, Sam Harris, Christopher Hitchens e Daniel Dennet ficaram conhecidos como
“Os Quatro Cavaleiros do Ateísmo” depois de gravarem o vídeo The Four Hoursemen (2007), onde os
mesmos discutem sobre ateísmo, ciência e religião. Na ocasião da gravação do vídeo, eram autores famosos
pela publicação dos best-sellers “O Fim da Fé” (2004), de Harris, “Deus, um Delírio” (2006), de Dawkins,
“Quebrando o Encanto: a Religião como um Fenômeno Natural” (2006) de Dennett e “Deus não é grande:
como a religião envenena tudo” (2007), de Hitchens obras consideradas os marcos iniciais do “neo-
ateísmo”. 2 Matéria disponível em: https://www.wired.com/2006/11/atheism/, acesso em 07 de outubro de 2019.
se caracteriza por não estar vinculado a uma obra ou autor, mas a uma grande quantidade
de pessoas que defendem o ateísmo de maneira politizada e pública. Danilo Firmino
afirma existir no Brasil um representante destacado do “neo-ateísmo”, a Associação
Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), associação que tem como principal objetivo
lutar pela laicidade do Estado e contra os preconceitos sofridos por ateus – sua atuação
ao longo dos últimos anos a credenciam como o primeiro movimento social ateísta
brasileiro (FIRMINO, 2018).
A origem do próprio movimento permanece em debate, embora a maioria dos
autores concordem que o atentado do dia 11 de setembro as Torres Gêmeas tenha sido o
estopim para uma organização ateísta articulada (MOTA, 2010, GORDON, 2011,
MOREIRA, 2014). Para esses autores o livro “O Fim da Fé”, de Harris, é o primeiro a
expor as ideias ácidas contra a religião de maneira direta, desencadeando então o início
do amplo movimento que iria se seguir.
Diante da importância de Sam Harris nesse movimento, o objetivo principal dessa
tese é destacar o autor em uma de suas propostas centrais: a possibilidade de
desenvolvimento de uma espiritualidade desvinculada da religião. A hipótese defendida
é que Harris procura “desencantar” a religião oriental e, principalmente, a yoga,
explicando a prática por meio da ciência, em especial da neurociência, área em que é
especialista. Embora Harris não seja o único autor a procurar explicar pela neurociência
os efeitos da yoga no corpo e cérebro humanos (PENMAN e WILLIAMS, 2015;
GOLEMAN e DAVIDSON, 2017; WRIGHT, 2018; DANUCALOV e SIMÕES, 2018;
SINGER e RICARD, 2018), o autor vai além, procurando “desencantar” a yoga e parte
da tradição oriental, tencionando demonstrar a possibilidade da existência de uma
espiritualidade totalmente afastada da religiosidade.
Segundo Harris, os estados considerados “espirituais” são processos
neuroquímicos que tiveram suas experiências monopolizadas pela religião ou doutrinas
místicas/espirituais ao longo da história. Nesse sentido, a yoga é um caminho privilegiado
para os indivíduos atingirem o “despertar”, ou seja, atingir regiões do cérebro responsável
pelo êxtase que comumente são alcançados ou afirmam ser possível alcançar apenas
através do sobrenatural e da religiosidade.
Diante da proposta de Harris, a tese citada procura investigar as relações que
parecem existir entre o pensamento do autor e as práticas conhecidas como Nova Era ou,
como vários autores nomeiam, New Age. A Nova Era surge durante os “movimentos de
contracultura” dos anos 60 (HEELAS, 1996; D’ANDREA, 2000; HANEGRAAFF,
2005), movimentos esses caracterizados por Ken Goffman e Dan Joy pela “afirmação
do poder individual de criar sua própria vida, mais do que aceitar os ditames das
autoridades sociais e convenções circundantes, sejam elas dominantes ou subculturais”
(GOFFMAN e JOY, 2007, p.4). Dessa forma, práticas sociais que valorizam a
individualidade, como os movimentos punk e o hippie, podem ser considerados como
fenômenos da contracultura. A Nova Era não escapa dessa realidade, valorizando o
individual como principal elemento na busca pela religiosidade, se inserindo de maneira
íntima nessa ampla gama de ações que surgiram nos anos 60 e fizeram parte da
contracultura (GUARNACCIA, 2010).
Amurabi Oliveira (2011) defende que a Nova Era “nasce a partir de uma
confluência de discursos e práticas, em especial, a partir do entrecruzamento do
esoterismo europeu, e das religiões orientais” (OLIVEIRA, 2011, p. 143-144). Oliveira
cita a autora Leila Amaral quando a mesma afirma que a Nova Era pode ser definida
como “a possibilidade de transformar, estilizar, desarranjar ou rearranjar elementos de
tradições já existentes e fazer destes elementos, metáforas que expressem
performativamente uma determinada visão em destaque em um determinado momento
(AMARAL apud OLIVEIRA, 2011, p. 144)”. José Magnani (1996) demonstra a ampla
variedade de práticas “esotéricas” que pertencem ao movimento da Nova Era, tais como
“sistemas divinatórios, propostas de auto-ajuda, técnicas de relaxamento e meditação (...)
exercícios de yoga, tai-chi-chuan, liangong; (...) o consumo de incenso e a crença em
duendes” (MAGNANI, 1996, p. 7-8).
Silas Guerriero (2009) expõe que, no contexto de globalização, não existem
religiões “intocadas”, pois as fronteiras são fluídas e as trocas constantes. Tal dinâmica
resulta em resistências e mudanças na religiosidade, ocorrendo assim a visibilidade de
práticas religiosas de grupos étnicos ou locais bem específicos que agora são procurados
por indivíduos dos centros urbanos ditos secularizados (GUERRIERO, 2009, p. 36). O
autor explica que a Nova Era “resgata tradições, passadas e atuais. Com as passadas
empreende um processo de recriação. Com as presentes, resignifica-as” (GUERRIERO,
2009, p. 37). Nesse sentido, a Nova Era não promove um resgate “perfeito” das antigas
religiosidades, ressignificando assim as religiosidades atuais e passadas.
Guerriero sugere que “as práticas que costumam ser classificadas como de Nova
Era são a ponta de um iceberg, a parte visível de um estilo diferente de lidar com a
espiritualidade, com o corpo e com o desenvolvimento pessoal” (GUERRIERO, 2009, p.
38 [grifo nosso]). A tríplice busca destacada por Guerriero – as formas de lidar com a
espiritualidade, com o corpo e com o desenvolvimento pessoal – encontram-se presentes
nas ideias de Harris. O autor ateu procura demonstrar que esses três aspectos podem ser
alcançados por um ateu de maneira plena através da moral guiada pela ciência, da yoga e
da espiritualidade.
De acordo com Guerriero, a Nova Era parte do pressuposto de que a “divindade”
está dentro de cada um, colocando a New Age como a “religião do self” (GUERRIERO,
2009, p. 9). A ideia de self é recorrente nos estudos sobre o fenômeno, sendo central nessa
tese. O self é o ser, nossa identidade, nosso lugar no mundo. De acordo com Charles
Taylor (1997), um dos sentidos ao se referir a uma pessoa como self significa dizer que
“elas são seres da profundidade e complexidade necessárias para ter (ou para estar
empenhadas na descoberta de) uma identidade” (TAYLOR, 1997, p. 50). O self, de
acordo com Taylor, também tem relação direta com a busca pela moralidade:
“a noção de self que o vincula à nossa necessidade de identidade pretende
apreender esta característica crucial do agir humano, a de que não podemos
dispensar alguma orientação para o bem, de que essencialmente somos (...) a posição que assumimos em relação a isso (...) só se é um self no meio dos
outros. Um self nunca pode ser descrito sem referência aos que o cercam
(TAYLOR, 1997, p. 51 e 53).
Uma das ideias principais de Harris é desconstruir o conceito de self. Dessa
maneira, acredita o mesmo, é possível acabar com a ilusão vigente que corpo e alma são
duas entidades distintas, esvaziando assim a ideia de alma. Nesse sentido, o autor ateu
acredita ser possível demonstrar como as experiências consideradas espirituais nada mais
são do que processos que ocorrem em nossa mente que foram historicamente apropriados
pela religião e pelo misticismo. O autor argumenta:
“o sentimento que chamamos de “eu” é uma ilusão. Não existe um self ou ego
distinto vivendo como o Minotauro no labirinto do cérebro. E a sensação de
que ele existe – a ideia de que você se encontra em algum lugar atrás de seus
olhos, olhando para um mundo destacado de você – pode ser alterada ou
completamente extinta. Embora as experiências de “autotranscedência”
costumem ser interpretadas em bases religiosas, não há nelas, em princípio,
nada de irracional (...) “espiritualidade” significa o aprofundamento da
compreensão e a indicação reiterada da ilusão representada pelo self”
(HARRIS, 2015, p. 17-18).
Segundo Harris, essas experiências revelam a natureza da nossa própria consciência
e do nosso psiquê, tendo que ser compreendidas nos termos da ciência moderna. Para
entender sobre a natureza humana é necessário se livrar dos dogmas que ligam a
moralidade com a religião, sendo a ciência o único caminho de investigação confiável
(HARRIS, 2015, p. 17-18). É no sentido de compreender que o self é uma ilusão que o
autor introduz a yoga e o seu estudo científico. A yoga, para o autor, leva diretamente à
dissipação do self:
“quando fazemos silêncio e meditamos durante semanas ou meses seguidos,
sem fazer mais nada (...) temos experiências que em geral estão fora do alcance
de pessoas que não se dedicaram a uma prática semelhante. Acredito que tais
estados mentais dizem muito sobre a natureza da consciência e as
possibilidades de bem-estar humano. Deixando de lado a metafísica, a mitologia e o dogma sectário, o que as pessoas contemplativas descobriram ao
longo da história é que existe uma alternativa ao feitiço contínuo das conversas
que temos conosco; há uma alternativa a simples identificação com o próximo
pensamento que brota na consciência. O vislumbre dessa alternativa dissipa a
ilusão convencional do self” (HARRIS, 2015, p. 23).
Para Harris, esse estado mental é difícil de atingir e de estudar pelo fato da religião
nublar a potencialidade da mente humana, pois a religiosidade obriga que o cérebro
humano acredite em uma série de superstições e falácias que dificultam o nosso
entendimento sobre os estados mentais (HARRIS, 2015, p. 24). A espiritualidade age no
sentido de possibilitar a felicidade ao gênero humano, e isso ocorre no momento em que
as ilusões do self são apagadas:
“E um praticante espiritual verdadeiro é alguém que descobriu que é possível
estar satisfeito no mundo sem razão nenhuma, mesmo que seja apenas durante
alguns instantes de cada vez, e que tal satisfação é sinônimo de transcender as
fronteiras aparentes do self” (HARRIS, 2015, p. 26).
Entendendo “espiritual” como “os esforços que as pessoas fazem, através da
meditação, substâncias psicodélicas ou de outros meios, para trazer a mente por inteiro
ao presente ou para induzir estados incomuns de consciência” (HARRIS, 2015, p. 15), o
autor pretende uma “abordagem racional da espiritualidade” (HARRIS, 2015, p. 19),
separando assim os conceitos de “espiritualidade” e “religião”. Embora relacionado
usualmente com a experiência religiosa, a espiritualidade de acordo com a Organização
Mundial de Saúde possui outro significado. De acordo com Anita Neri espiritualidade se
define como:
“o conjunto de todas as emoções e convicções de natureza não material que
pressupõem que há mais no viver do que se pode ser percebido ou plenamente
compreendido, remetendo o indivíduo a questões como o significado e o
sentido da vida, não necessariamente a partir de uma crença ou prática
religiosa” (NERI, 2005, p. 71).
Dessa forma, a espiritualidade se desloca do seu sentido religioso, podendo ser
alcançado por qualquer indivíduo, mesmo os ateus. Franco (2015) demonstrou a
possibilidade do desenvolvimento de uma “espiritualidade laica”, estudando os conceitos
de autores como Luc Ferry, Comte-Sponville, entre outros. Na perspectiva de Franco, a
espiritualidade laica se coloca como
“uma prática ou uma posição ideológica que, embora rejeite a ideia de Deus e
deuses, de sobrenatural, de elementos identificados com pensamento mágico e
religioso, apontam para uma vivência de significados emocionais profundos,
que envolvem elementos como solidariedade, compaixão, ética, bem-estar,
aprimoramento do ser, da humanidade e do mundo, integração e conexão do
indivíduo com o cosmos (FRANCO, 2015, p. 102).
Outra obra relevante para o entendimento do pensamento de Harris é “O Fim da
Fé”, escrita sob a tensão dos atentados de 11 de setembro. Nesse livro, o autor procura
demonstrar como, em sua concepção, a religião é perniciosa para a sociedade, nublando
a razão e permitindo e incentivando atrocidades. É necessário, segundo o autor, que
mentes racionais se unam de maneira urgente contra o obscurantismo religioso. E, de
todas as religiões, Harris evidenciou qual acredita ser mais perigosa e que precisa ser mais
urgentemente combatida: o islamismo.
Segundo Harris, o Islã incentiva seus seguidores a atos terríveis. Não existe
muçulmano “mais” ou “menos” perigoso, pois o Islã em si é o problema e transforma
seus praticantes em assassinos em potencial. O autor não interpreta ataques “terroristas”
como uma ação praticada por uma minoria radical, mas sim como eventos que são
colocados em curso por fieis que seguem os ditames da sua fé. Assim, para Harris,
qualquer muçulmano pode praticar um ato terrorista caso tenha a possibilidade de fazê-
lo. Os muçulmanos que se utilizam do terror para alcançar seus objetivos estão apenas
colocando em prática os ensinamentos e possibilidades existentes dentro de sua fé,
externando assim o caráter irracional comum às religiões. Tendo em mente essas
afirmações, bem como diversos depoimentos de Harris que demonstram sua opinião em
relação ao Islã, a pesquisa procura investigar as afirmativas de Harris sob a ótica da teoria
do “Choque de Civilizações”, de Samuel Huntington e do “Orientalismo”, de Edward
Said.
Huntington foi um importante autor dentro do meio político e acadêmico
conservador norte-americano. Seu livro “Choque de Civilizações e a Recomposição da
Ordem Mundial”, lançado em 1996, trata-se de uma ampliação de sua teoria publicada
em 1993 no site da revista Foreign Affairs (https://www.foreignaffairs.com/), até hoje
muito influente. Huntington propôs essa teoria ainda sob o impacto da desintegração da
União Soviética. De acordo com o autor, os próximos grandes conflitos em que
envolveriam a humanidade não seriam mais de ordem ideológica ou econômica, mas sim
cultural, com um destaque importante para os conflitos religiosos. Nas palavras do autor:
“Minha hipótese é que a fonte fundamental de conflito neste novo mundo não
seja provavelmente ideológica ou predominantemente econômica. As grandes
divisões existentes na humanidade e a fonte dominante de conflito serão
culturais. Os Estados-nações continuarão a ser os atores mais poderosos nas
questões mundiais, mas os principais conflitos da política global ocorrerão
entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações
dominará a política global. As guerras civilizacionais serão as batalhas do
futuro” (HUNTINGTON, 1997:1).
Huntington acredita que depois do fim da URSS a divisão de países entre sistemas
políticos ou econômicos perdeu totalmente seu significado, sendo agora necessária a
divisão por cultura e civilização. Entendendo a civilização como uma “entidade cultural”
que pode ser compreendida como “o mais elevado agrupamento cultural de pessoas e o
nível mais amplo de identidade cultural que possuem e que distingue os humanos das
outras espécies” (HUNTINGTON, 1997:2), acredita que as pessoas podem ter
identidades diferentes dentro de uma mesma civilização, mas se reconhecem devido a
traços culturais que partilham entre si.
O autor afirma que a “identidade civilizacional” tende a crescer com o passar do
tempo, destacando a possibilidade de criação de sete ou oito grandes civilizações: “a
ocidental, a confucionista, a japonesa, a islâmica, a hindu, a eslavo-ortodoxa, a latino-
americana e, possivelmente, a africana” (HUNTINGTON, 1997:3). Segundo Huntington,
os conflitos irão ocorrer em razão dos diferentes traços culturais entre esses grandes
grupos, tendo na religião um produtor de grande parte desses enfrentamentos:
“(...) as diferenças entre as civilizações não são apenas reais, são básicas (...)
distinguem-se umas das outras pela história, língua, cultura, tradição e,
especialmente, pela religião (...) Estas diferenças são o produto do trabalho de
séculos (...) São bem mais importantes do que as diferenças entre ideologias políticas e regimes políticos” (HUNTINGTON, 1997:3).
O autor observa ainda um crescimento da “civilização ocidental” e sua influência no
globo ao mesmo tempo que ocorre no oriente um “retorno às origens”, um apego ao
tradicionalismo que pode ser uma reação ao forte impacto que as ideias ocidentais estão
causando em suas culturas. Como a religiosidade é um componente importante em
tentativas de retorno ao que pode ser considerado “tradicional”, esse retorno gera uma
série de fundamentalismos. A rivalidade proposta por Huntington está bem viva e
constantemente identificada nas palavras de Harris, que parece também entender a
“civilização islâmica” como um grande inimigo a ser combatido.
Porém, levando em consideração os pressupostos teóricos de Said, o
posicionamento de Harris – e também de Huntington – está carregado com que o autor
chama de orientalismo. O orientalismo seria uma forma de perceber o “mundo oriental”
derivada das experiências ocidentais, em interpretações que na maioria das vezes estão
carregadas de preconceito e consideram somente o ponto de vista do ocidente. Esse
comportamento é reforçado pela produção acadêmica ocidental que dissemina discursos
sobre o oriente, além da oposição reforçada constantemente entre o que é o ocidente e o
oriente, oposição essa aceita como verdade e sendo o ponto de partida de grande parte
dos estudos que versam sobre a cultura oriental.
Em relação ao desencantar do oriente e, em especial, da yoga, Moreira (2014)
demonstrou que a proposta de “desencantamento” ocorre de maneira constante entre os
“neo-ateus”, argumentando que acabar com o “encantamento” religioso é uma das
principais estratégias do movimento. Segundo Odair Torres (2003), “o processo de
desencantamento caracteriza-se pela racionalização das atividades religiosas. Essa
racionalização concretiza-se com a ética desenvolvida pelo puritanismo ascético”
(ARAÚJO, 2003, p. 2). Essa teoria, desenvolvida inicialmente por Max Weber (2013), se
deu com a desvalorização dos sacramentos por seitas de origem protestante, em especial
as calvinistas e batistas. Assim, impuseram um estilo de vida e visão racional,
desmistificando um mundo considerado “encantado”. Dessa maneira, “a ética puritana
ascética acaba provocando também o desencantamento e racionalização do mundo. As
ações orientar-se-iam, a partir de então, ainda que não plenamente, por uma
instrumentalização moderna” (ARAÚJO, 2003, p. 3). Essa diminuição de um mundo
europeu “encantado” se deu ainda por uma soma de fatores históricos que culminaram no
processo de secularização. A secularização é fruto do processo de “desencantamento do
mundo” e, conforme teoriza Antônio Pierucci (1998), se define como o:
“resultado, consequência, de certa maneira, um ponto de chegada, uma
conclusão lógica do processo histórico-religioso de desencantamento do
mundo (...) enquanto o desencantamento do mundo fala da ancestral luta da
religião contra a magia, sendo uma das suas manifestações mais recorrentes e
eficazes a perseguição aos feiticeiros e bruxas (...) a secularização, por sua vez, nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como
manifestação empírica o mundo moderno e o declínio da religião como
potência” (PIERUCCI, 1998, p. 9).
Dessa forma, enquanto o desencantamento do mundo é um processo de
interpretação racional, colocando em dúvidas uma realidade permeada pelo sobrenatural,
a secularização ocorre em razão dessa racionalização, no sentido que a religião deixa de
ser a única doadora de sentido na vida da sociedade moderna. Porém, isso não significa
afirmar que ocorrerá o “fim da religião”, mas sim que, em teoria, parte do sentimento
religioso desloca-se do público para o privado. Conforme expõe Pierucci, o
“desencantamento do mundo, às vezes chamado pelo próprio Weber de desencantamento
religioso do mundo, ocorre em sociedades religiosas onde a magia é eliminada como um
meio de salvação” (PIERUCCI, 1998, p. 8). A Nova Era e a espiritualidade ateísta
proposta por Harris, com suas preocupações centrais girando em torno do indivíduo,
parecem frutos do processo de secularização.
Dentro dessas discussões entre “desencantamento”, “encantamento” e
“reencantamento”, a Nova Era ganha novamente destaque. Collin Campbell (1997),
acredita que a Nova Era é fruto de uma “orientalização do Ocidente”, orientalização essa
que procura fazer frente ao Cristianismo, propondo assim uma nova teodiceia. Conforme
Campbell afirma:
“a tese aqui proposta é nada menos do que a afirmação de que o paradigma
cultural ou teodiceia que tem sustentado a prática e o pensamento ocidental por
cerca de dois mil anos está sofrendo um processo de substituição – e com toda
probabilidade terá sido substituído, quando entrarmos no próximo milênio
[milênio atual] – pelo paradigma que tradicionalmente caracterizou o Oriente.
Essa mudança radical tem sido, e continua sendo, ajudada pela introdução de
ideias e influências do Oriente no Ocidente, mas o que tem sido de muito maior
importância são os desenvolvimentos culturais e intelectuais dentro da própria
civilização ocidental” (CAMPBELL, 1997, p. 6).
Embora a tese concorde que houve um aumento pelo interesse das práticas
orientais, em especial após os movimentos de contracultura ocorridos durante a década
de 60 e 70, não observa essa “orientalização” do ocidente a ponto de ocorrer uma possível
substituição. Embora a teoria de Campbell seja considerada no presente trabalho, será
analisada levando em consideração a proposta teórica do orientalismo de Said (2010).
CONCLUSÕES PRELIMINARES
A tese proposta acredita que, tanto o desenvolvimento histórico da Nova Era como
do próprio ateísmo tem ligação direta com a ideia de secularização proposta por Danièle
Hervieu-Léger. Para a autora, a religião perdeu seu status de doadora hegemônica de
sentido na sociedade contemporânea ocidental, sem nenhuma autoridade capaz de impô-
la em esfera pública. Segundo as palavras da autora
“Falou-se, muito equivocadamente, de “retorno da religiosidade” (...) é
necessário ter entendido que a secularização não é, acima de tudo, a perda da
religião no mundo moderno. É o conjunto de processos de reconfiguração onde
o motor é a não satisfação das expectativas que ela suscita, e onde a condição
cotidiana é a incerteza ligada à busca interminável de meios de satisfazê-las
(...) não é a indiferença com relação à crença que caracteriza nossas sociedades.
É o fato de que a crença escapa totalmente ao controle das grandes igrejas e
das instituições religiosas” (HERVIEU-LÉGER 2015:41-42)
A autora sugere que a religiosidade atual no ocidente não passa por um processo
que desenvolveu até seu fim e nem parece marcar um possível retorno ao “encantado”.
O que ocorre é a difusão de um “crer” individualista devido à perda de controle dos fieis
das grandes instituições religiosas, promovendo a “generalização de uma busca espiritual
que toca, sob formas diversas, todas as camadas da sociedade” (HERVIEU-LÉGER,
2015, p. 115). Dessa maneira, não apenas grupos religiosos e “místicos” podem procurar
ou procuram uma possível espiritualidade, mas também indivíduos ateus.
A pesquisa acredita que da mesma forma que a Nova Era consegue ressignificar as
religiões (GUERRIERO 2009, 2014; MAGNANI, 1996; SILVEIRA, 2005; OLIVEIRA,
2011; JUNGBLUT, 2006), pode ressignificar as práticas ateístas da contemporaneidade.
Assim, o trabalho procura demonstrar como as ideias de Harris encontradas em
“Despertar” (2015) podem ser interpretadas como pertencentes a esse amplo conjunto de
experiências chamadas de Nova Era, pois coloca o indivíduo no centro da busca pelo
desenvolvimento espiritual. Embora a ciência seja o argumento na construção do discurso
do autor, várias de suas práticas dialogam com ideias vinculadas em centros “esotéricos”.
Porém, como Harris “racionaliza” essas práticas interpretando-as de maneira científica,
permite ao indivíduo ateu “ingressar na Nova Era” sem estar recorrendo a nenhum tipo
de prática mística ou sobrenatural. Talvez por perceber a íntima relação entre suas ideias
e a Nova Era, Harris expõe:
“É por certo inconveniente para as forças da razão e do secularismo que, se
alguém acordar amanhã sentindo um amor ilimitado por todos os seres
sencientes, as únicas pessoas que provavelmente reconhecerão a legitimidade
da experiência desse indivíduo serão representantes de uma ou outra religião
da Idade do Ferro ou de um culto new age” (HARRIS, 2015, p. 23).
Embora afirme que suas ideias de afastam do “culto new age”, a pesquisa busca
e tem encontrado elementos que contrariam a afirmação do autor. A hipótese de que é
possível perceber elementos da Nova Era nas ideias do autor e, mais do que isso, ela tem
o poder de ressignificar o ateísmo de Harris a ponto de ser possível compreender como
um “Ateísmo new age”.
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