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EROS, PHILIA E ÁGAPE EM KIERKEGAARD
Gilmar Zampieri
Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, ó Deus do amor, de quem provém todo o amor no céu e na terra:Tu, que nada poupaste, mas tudo entregaste em amor;Tu que és amor, de modo que o que ama só é aquilo que é por permanecer em Ti! Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido, Tu que revelaste o que é o amor; Tu, nosso salvador e reconciliador, que deste a Ti mesmo para libertar a todos!Como se poderia falar corretamente do amor, se Tu fosses esquecido!(S. Kierkegaard)
Resumo: O artigo reconstroi o argumento de Kierkegaard na defesa do amor cristão em constante relação com outras formas de tratamento do amor, seja em relação ao eros platônico, seja em relação a philia aristotélia, seja em relação ao amor romântico cantado pelos poetas. A novidade cristã no tratamento do amor é pensada filosoficamente sem nunca perder o horizonte do qual parte, qual seja, a perspectiva da fé teológica. Como resultado da argumentação, advém uma ética da alteridade pré-figurada bem antes das contemporâneas filosofias do outro.Palavras-Chave: eros, philia, ágape, alteridadeAbstract: The article reconstucts the argument of Kierkegaard in the defense of the Christian love in constant relation with other forms of treatment of the love, either in relation to the platonic eros, either in relation the aristotelia philia, either in relation to the romantic love sung by the poets. The Christian newness in the treatment of the love is thought filosoficaly without never losing the horizon of the which part, which is, the perspective of the theological faith. As result of the argument, they an ethics of the other before the contemporaries philosophies of the other.Keywords: eros, philia, ágape, other
Platão imortalizou Sócrates em seus diálogos. Dos diálogos, dois são decisivos: o
Fédon apresenta Sócrates na morte; o Banquete apresenta Sócrates na vida. O Banquete é um
elogio ao amor. Mas é também um elogio a Sócrates, feito por Platão através da boca de
Alcibíades. O elogio a Sócrates é um elogio contraditório tecido por fios ora de repulsa, ora
de atração, ora de queixa, ora de defesa apaixonada. Sócrates, o amante que se confunde com
o amor, com o amado, confunde Alcibíades, que não consegue distinguir a sutileza socrática
que, ao mesmo tempo que seduz os belos jovens, espera destes que fiquem seduzidos pela
Mestre em teologia e filosofia pela PUCRS, professor de teologia na ESTEF e de filosofia no Centro Universitário La Salle (Unilasalle), Canoas, RS.
filosofia. Um irônico, esse Sócrates. Como todo irônico, difícil de ser pego. Mas não para
Kierkegaard, que bem domina a arte da ironia. Kierkegaard conhece bem o calcanhar de
Sócrates. E lhe acerta um flecha venenosa no ponto fraco. E qual o ponto fraco? A sua
concepção de amor. Pelo menos na comparação com outra concepção, a concepção cristã. O
amor platônico, cuja modelo é o próprio Sócrates, é o amor idealizado, por assim dizer,
abstrato. Abstrato porque não se retém no particular concreto – Alcibíades é prova disso em
todas as investidas frustradas de ter Sócrates como amante – mas alça vôo sem retorno, como
fica patente na escalada do amor onde há um evidente abrir mão do objeto concreto em
direção a um objeto metafísico do desejo, o bem e o belo em si que estão muito além de
qualquer corpo belo real. Além do que, o amor platônico se define por uma carência, uma
falta, pois amor é igual a desejo e desejo é desejo de algo que não se tem. O amor é, assim,
uma carência, um desejo. Bem diferente é o amor cristão que é o amor ao próximo, o primeiro
e concreto tu, fruto não de uma carência essencial, mas de um transbordamento de ser
essencial. Tão diferentes são os dois amores!
Se um dos melhores elogios feito ao amor é o de Sócrates, no Banquete de Platão,
tanto que até hoje desperta admiradores naquilo que ficou conhecido como sendo o amor
platônico ou o amor idealizado, o melhor elogio feito ao amor cristão, ou um dos melhores,
encontra-se numa obra de Kierkegaard intitulada As Obras do Amor. Nela Kierkegaard
demarca as fronteiras entre o amor (éros) platônico e o amor (ágape) cristão.
Kierkegaard opõe o amor cristão, o amor ao próximo como a si mesmo, não só ao
amor platônico, que abre mão do concreto em direção ao ideal, mas também ao amor de
amizade (philía) aristotélico e ao amor romântico e apaixonado cantado pelos poetas,
sobretudo em Shakespeare. A philía aristotélica supõe semelhança e reciprocidade. Sou amigo
de quem me agrada ou é útil, que é, por sua vez, meu amigo pelos mesmos motivos.
Aristóteles diz também que somos amigos, na sua melhor forma, pela virtude que o outro
porta em si. Amo o outro pelo bem encontrado nele e por isso o respeito, o admiro, o quero
como amigo e sou seu amigo. Nessa forma, os amigos são amigos porque são bons uns para
os outros. Nesse caso, o amigo é uma espécie de “outro eu”, um espelho de si. Para todos os
casos, a amizade necessita de correspondência, proximidade física, convívio. Bem diferente é
o amor cristão, segundo Kierkegaard, que não deve esperar nada em troca, nenhum interesse,
nenhuma reciprocidade e nenhuma seleção, pois se deve amar incondicionalmente a todos,
inclusive os inimigos e os mortos. O que se pode esperar como retorno e reciprocidade dos
inimigos e dos mortos? Contudo, esse é o critério definitivo do amor cristão.
É recorrente também a alusão aos poetas. Os poetas louvam o amor natural como uma
forma de entrega absoluta a um único outro, prometendo-lhe amor eterno enquanto durar.
Mas, o amor que os poetas louvam é desesperado porque não pode alcançar o infinito e o
eterno. O amor eterno e infinito só pode ser fruto de um dever que vem do além, e isso os
poetas não podem alcançar e não podem admitir.
Toma-se isso como síntese daquilo que se desdobrará em vários momentos no
percurso proposto por Kierkegaard no elogio do amor cristão. O percurso se inicia com uma
sutil dialética entre o crer e amar.
1 A fé no amor como pressuposto
Kierkegaard é um pensador cristão que se posiciona criticamente contra o método
cartesiano que tem na dúvida o começo da investigação e do conhecimento. No começo não
está a dúvida, mas um ato de fé. Dizer que se deve duvidar de tudo merece uma ironia. Ora,
deveríamos duvidar da dúvida? Para o autor, a dúvida como princípio leva à autocontradição
ou à má infinitude (2003, p. 84). A dúvida não pode se constituir em começo de investigação,
nem mesmo a metódica, no sentido que através dela se chega ao ponto indubitável.
Kierkegaard, o sutil, percebe nessa forma de procedimento um desvio desnecessário, além de
equivocado. No começo e no fim está a fé e, se a fé não estiver no começo, não aparecerá no
fim como resultado demonstrado pela força dos argumentos. A fé não é fruto de um
argumento demonstrado, mas um salto, o salto da fé. É salto porque a fé não é uma prova,
mas uma decisão existencial. E, quanto maior a indemonstrabilidade, maior a fé. Disso
Kierkegaard não abre mão nem mesmo, e sobretudo, no tratamento do amor.
O início e fundamento do amor, pelo menos do amor cristão, só pode ser a fé no amor.
Isto porque o amor é uma daquelas realidades indemonstráveis: ou se crê ou não se crê nele.
Mas, o fato de ser indemonstrável não significa que não exista e não seja verdadeiro.
Ademais, se auto-enganaria quem não aceitasse essa verdade que une o tempo à eternidade.
Este é o caso daquele que só acredita vendo com seus olhos sensíveis, típicos do empirismo,
que Kierkegaard qualifica de “racionalismo insolente”. O amor é aquela verdade que existe
antes de tudo e permanece depois que tudo acabou. Os que não se apercebem disso, se auto-
enganam. Estes não se apercebem e não crêem na verdade. Mas se auto-enganam também, diz
Kierkegaard, aqueles que tomam uma inverdade por verdade, tomam a verdade por sua
aparência. Da mesma forma, aqueles que confundem o amor, com o amor de si mesmo.
Ambos os amores são conhecidos pelos seus frutos. Sim, o amor se conhece por seus frutos. O
amor humano se conhece por seu fruto. O amor de Deus também. O amor, no limite do
humano, se conhece pela sua efemeridade e transitoridade melancólica. O amor humano, que
o poeta canta, reduz-se à eternidade do enquanto dura. O amor de Deus, o amor cristão, se
conhece pela verdade da eternidade liberta da incapacidade de renunciar ao amor sensual de
si. Aquele, o amor de si, é cantado; este, o amor a Deus, é crido e vivido.
O amor se conhece pelos seus frutos. Ora, se o amor se conhece pelos frutos, tal como
a árvore, então pode-se ter a impressão de que não precisa ser crido. É verdade que o amor se
conhece pelos frutos, e isso é uma prova contra o “racionalismo insolente” que simplesmente
nega a existência do amor. Pelo fruto se conhece a árvore; o amor da mesma forma. Mas, para
Kierkegaard, dizer que o amor se conhece pelos frutos é dizer duas coisas: que ele se deixa
conhecer e ao mesmo tempo se retrai, morando no oculto, deixando-se conhecer nos frutos
que o revelam (2005, p. 22). O amor mora no oculto e se revela nos frutos. No oculto do
coração e no oculto da fonte onde brota o manancial do amor: o amor de Deus. No fundo do
coração e na fonte do amor, Deus, o amor se oculta. Por isso a imperiosa necessidade de crer
no amor.
Contudo, insiste Kierkegaard, a árvore se conhece pelos frutos. É bem verdade que a
árvore também pode ser conhecida pelas folhas, mas, se a árvore não produz fruto, então as
folhas podem ter enganado, passando-se pelo que não são. É assim que se dá também com a
cognoscibilidade do amor. O amor pode também se dar a conhecer pelas palavras do amante,
mas é um sinal incerto. Isso não significa que se deva reter a palavra, ocultando o amor e a
emoção visível. Diz Kierkegaard: “Teu amigo, tua amada, tua criança, ou qualquer pessoa que
seja objeto de teu amor tem um direito a que tu o exprimas também com palavras, quando o
amor te comove realmente em teu interior” (2005, p. 26). E isto porque a emoção não é
propriedade de quem a tem; ela pertence ao outro, a quem sua expressão cabe por direito,
dado que, a emoção pertence a quem se comove, pertence ao outro. Isso tudo é uma
manifestação do amor. Contudo, não é pelas palavras que se conhece o amor, mas pelos
frutos. O amor que só se reconhece pelas palavras é ainda um amor imaturo e falso, se esses
forem seus únicos frutos. Insistindo: o amor se conhece pelos frutos.
Mas, serão os frutos, as obras, sinal irrefutável do amor? O sutil dialético Kierkegaard
não deixa dúvidas: não. Nenhuma palavra e nenhuma obra é sinal irrefutável do amor. Ambas
necessárias, ambas insuficiente. Senão vejamos: “Não há nenhuma obra, nem uma única, nem
a melhor, da qual ousássemos dizer: quem faz isso demonstra incondicionalmente com isso o
amor. Depende de como a obra é realizada” (2005, p. 26). Nisso volta a tese de que o amor
está oculto no coração e depende do como a obra é realizada. Nas obras de caridade, mais
especiais, como dar esmola, visitar o enfermo, vestir o nu, ainda não está demonstrado ou
reconhecido o amor, “pois podem se fazer obras de amor de maneira desamorosa, sim até
mesmo egoísta, e nesse caso a obra de caridade não é uma obra do amor” (2005, p. 28).
Kierkegaard exemplifica e tipifica algumas intenções e motivações excusas que podem estar
escondidas, no coração, nos atos de caridade:
[...] talvez perturbado por uma impressão casual, talvez com uma predileção fruto de um capricho, talvez para se livrar, talvez olhando para o lado, não no sentido bíblico; talvez sem que deixasse a mão esquerda saber o ocorria – mas por irreflexão; talvez pensando na sua própria tristeza – mas não na do pobre; talvez procurando seu alívio no fato de dar uma esmola – em vez de querer aliviar a miséria: de modo que a obra de caridade não teria sido afinal, no sentido mais alto, uma obra do amor (2005, p. 28).
Portanto, a intenção e a maneira como o ato é realizado determinam o amor e seu
reconhecimento. Contudo, mesmo isso não é suficiente para demonstrar incondicionalmente a
existência ou a ausência do amor. Até pelo contrário, pois a intenção sempre estará oculta e,
como tal, em nada ajuda na demonstrabilidade do amor. Resta um único caminho
incondicional: crer no amor. Crer no amor contra o “racionalismo insolente”; crer no amor
para além daquele que exige ver os frutos do amor. Contra o “racionalismo insolente” é
preciso crer no amor, do contrário sequer se perceberá que está presente. Contra os que
exigem ver os frutos é preciso crer no amor para ver nos frutos algo ainda mais belo do que
são. Assim como a desconfiança pode perceber uma coisa menor do que é, também o amor
confiante pode ver algo como maior do que é. Por isso, o ponto de partida só pode ser um:
crer no amor. Esse é o pressuposto de todo e qualquer elogio ao amor. É sobre esse
pressuposto que Kierkegaard avança no seu elogio ao amor cristão.
2 O amor cristão é um escândalo: tu deves amar
O amor cristão é um escândalo. O amor cristão é um escândalo porque, no limite do
humano, cantado pelos poetas, seus baluartes, fazer do amor um dever é uma contradição.
Afinal, amar não é um ato livre somente possível se for totalmente livre do dever? Contudo o
cristianismo manda: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,39). Deixemos de lado,
por enquanto, a pergunta por quem é o próximo e o como a ti mesmo e nos concentremos na
idéia de que o amor cristão é um dever e quais os frutos que se colhe desse dever.
O amor cristão é um escândalo porque é um dever. Diz o mandamento: “amarás o teu
próximo como a ti mesmo”. Que o amar seja um dever é o escândalo ou, como diz
Kierkegaard, eis a aparente contradição (2005, p. 40). E, de fato, é uma contradição, um
escândalo, visto desde a lógica do amor natural e espontâneo. Um escândalo e uma
contradição, ou um paradoxo, só possível de ser aceito no âmbito da fé. Sim, pois o
mandamento do amor é uma ultrapassagem do limite humano, irrompido pela revelação
divina e só compreendido na dinâmica da fé. Esse mandamento não poderia brotar do coração
humano e, por isso, no limite do humano, é uma contradição, um paradoxo, um escândalo. Se
no limite do humano é um escândalo, na dinâmica da revelação divina é uma novidade, não
no sentido de novidadeiro, mas no sentido de que a partir dele tudo se tornou novo. A partir
dele a eternidade entra na temporalidade e a revoluciona. Nada será como antes. Força
tamanha só poderia vir de fora do humano; só poderia ser sobre-natural. O mandamento que
porta a novidade precisa ser pensado para não deixá-lo cair no esquecimento, típico das coisas
que se tornam aceitas de geração em geração e, por força do hábito, perdem seu poder de
tornar tudo novo. Engana-se quem achar que este mandamento já faz parte do ser do cristão.
Isto seria real se, de fato, o cristão fosse cristão, ou se vivesse de fato o crístico. Mas, o
próprio cristão necessita tornar-se cristão: ser cristão é viver essa novidade. Será o cristão,
cristão? Achar que é automaticamente, diz Kierkegaard, é um auto-engano. Não basta dizer
que é; é preciso ser efetivamente e, nesse sentido, o mandamento não pode ficar na
indiferença, pois através dele tudo se tornou novo. Para Kierkegaard, a novidade precisa ser
assumida por cada um que entra na dinâmica do cristianismo, para não deixar que o bem
supremo caia numa espécie de coletividade indiferente, na negligência de um hábito rotineiro
(2005, p. 43).
Tu deves amar. Kierkegard se pergunta e pergunta ao seu leitor: alguma vez ocorreu
de alguém ler isso nos filósofos e poetas que tanto exaltaram o amor e a amizade? E não
ocorreu alguma vez de pensar que as descrições que os poetas e filósofos fazem do amor e da
amizade são muito superiores ao “tu deves amar”? Tão pobre parece o mandamento em
relação aos elogios que poetas e filósofos fizeram ao amor e à amizade. Mas, que ilusão, que
auto-engano, essa impressão imediata. Na verdade, nada é superior ao “tu deves amar”. Sua
superioridade, que só pode vir de Deus e que arranca o homem do limite humano e temporal,
manifesta-se e comprova-se pelos dons que esse dever assegura: a continuidade, a
independência e a proteção contra o desespero.
A continuidade. O amor natural e espontâneo, cujos porta-vozes são os poetas, é uma
promessa de um amor, por isso o juramento feito um ao outro. O poeta só pode abençoar um
amor que seja uma promessa, mesmo que enquanto durar. Tem que ser eterno enquanto
durar, senão o poeta não será seu porta-voz. O poeta, esse sacerdote do amor natural e
espontâneo, toma o juramento recíproco do amantes e dos amigos. Porém, do amor e da
amizade natural o poeta não diz e exige que sejam eternos; exige que jurem ser fiés um ao
outro. Juram o amor por algo que é maior do que eles? Não, diz Kierkegaard. Juram
reciprocidade no amor e que o amor assim jurado perdure, tenha duração eterna. Aqui,
precisamente aqui, diz Kierkegaard se apresenta a ambiguidade do amor e da amizade
naturais e espontâneos. Qual a ambiguidade? A ambiguidade está em que o poeta exige que o
juramento de amor recíproco seja eterno, contudo se constitui sobre algo efêmero e, por isso,
exige juramento. Para que essa ambiguidade desapareça e que o eterno seja de fato o mais
elevado, é preciso jurar pelo “dever de amar”. Mas isso o poeta não admite e não pode
suportar. O juramento não pode ser feito por um dever acima da reciprocidade dos amantes.
Com isso, diz Kierkegaard, o amor natural é uma ilusão, pois não está conscientemente
fundado sobre o eterno e por conta disso está sempre sujeito a alterar-se e a mudar. Está
sujeito à mudança e à alteração porque não está fundado sobre o “dever de amar”. Só o “dever
de amar”, só quando o amar é dever, só então o amor está eternamente assegurado e com isso
livre da melancolia e da angústia “pois não é evidente que aquilo que dure neste instante
também venha a durar no próximo instante” (2005, p. 49).
Essa insegurança só pode ser ultrapassada se o amor for um dever que irrompe da
eternidade transformando o tempo em continuidade eterna, além da duração, posto que é
chama. Quando o amor é um dever, não há mais porque querer pôr os amantes e os amigos à
prova. É exatamente isso o que acontece com o amor natural e espontâneo, constantemente
passível de se alterar. O pôr à prova é uma expressão de segurança frente à insegurança que o
caracteriza, pois segundo Kierkegaard, “aquilo que apenas se mantém, nós o provamos, nós
pomos à prova. Mas quando há o dever de amar, aí não é necessária nenhuma prova, nem o
atrevimento que a insulta ao querer provar; aí o amor é superior a qualquer prova” (2005, p.
50). Exige-se prova quando se relaciona a uma possibilidade e a possibilidade está no nível do
pode ser, como também do pode não ser. Só se requer pôr à prova aquilo que pode alterar-se,
típico do amor natural e espontâneo não fundado no “dever de amar”. A alteração pode ser de
tal magnitude que o amor pode resultar no seu contrário, o ódio. O amor que se tornou um
dever, por sua vez, não se altera, simplesmente ama e jamais odeia a pessoa amada. Quem é
superior e mais forte? O amor que pode virar ódio ou o amor que simplesmente ama?
Kierkegaard responde isso em forma de pergunta sem contudo deixar de ter uma posição
clara: “E quem é mais forte: aquele que diz ‘se nao me amares entao eu te odiarei’, ou aquele
que diz ‘mesmo se me odiares eu continuarei a te amar”? (2005, p. 52).
Kierkegaard, continuando a fenomenologia do amor imediato, natural e espontâneo,
que não está no domínio eterno do “deves amar”, diz que o amor cantado pelo poeta enfrenta
duas possibilidades de alteração às quais o amor do tu “deves amar” está imune: o ciúme e o
hábito. O amor espontâneo e natural pode transformar-se, alterar-se e passar da suprema
felicidade para o supremo tormento no ciúme. O ciúme é “uma doença do zelo” que
atormenta o amante pela possibilidade de não ser correspondido no seu amor. O ciúme é uma
doença porque o amante não vive na entrega simples e pura do amor; está preso às
comparações entre seu modo de amar e o amor retribuído. O ciumento não ousa confiar
totalmente na pessoa amada e nem se entrega totalmente. A fim de não dar demais, vive o
tormento da dispersão e acaba por não amar na simplicidade. O hábito rotineiro é uma forma
de alteração do amor imediato, o mais sutil e pérfido, pois se infiltra sorrateiramente e torna
os amantes aborrecidos, desalentados e tristes. Contudo, se o amor se submeter à
transformação da eternidade, tornando-se um dever, não conhecerá o hábito, isto porque o
eterno jamais envelhece e jamais se torna um hábito rotineiro (2005, p. 55).
A independência. Somente quando for “dever de amar” o amor está eternamente
libertado, em feliz independência. Kierkegaard trata aqui de um paradoxo. A liberdade é fruto
de um dever, o “dever de amar”. O amor natural reclama para si a conquista da liberdade e
não pode aceitar que um dever seja a fonte da liberdade. O cristianismo, contudo, diz o
contrário, o “dever de amar” é o único que liberta. Frequentemente se diz que a lei amarra a
liberdade, mas, para o cristão, diz Kiekeggard, ocorre o contrário, só a lei pode dar a
liberdade. “Sem a lei a liberdade pura e simplesmente nao existe, e é a lei que dá a liberdade”
(2005, p. 56). Estamos aqui diante de um paradoxo. Como pode a lei, o dever, ser a fonte da
liberdade? Eis o escândalo para o amor natural, mas a verdade mais genuína do cristianismo.
Essa verdade é assim formulada por Kierkegaard: o amor natural necessita do outro para amar
e ser amado. O amor natural exige reciprocidade. Se o outro lhe falta e diz: não posso mais
continuar a te amar, então a liberdade nesse nível será também poder responder: então eu
também posso parar de te amar. Mas isso não é a verdadeira independência, pois se deve ou
não continuar a amar depende de o outro querer amá-lo ou não. Ao passo que quem tiver
passado pela transformação da eternidade e tornado o amor um dever, a negativa do outro não
redunda em uma negativa do amante; pelo contrário, resulta na afirmativa: então eu devo
continuar a te amar. Alguém que não necessite da anuência do outro para continuar amando
não estará na verdadeira liberdade e independência? Só quem está na dinâmica do “dever de
amar” pode alcançar a liberdade e a independência.
Assegurado contra o desespero. O amor imediato, natural, funda-se no desespero.
Quando ocorre o infortúnio, então o que acontece nada mais é do que a manifestação daquilo
que está desde sempre na sua base: o desespero. Quando o amor imediato vive feliz, então o
desespero apenas se oculta, esperando o momento certo do seu retorno. O que faz o amor
imediato estar fundado no desespero é o fato de, por carecer do eterno, querer fazer da paixão
imediata uma paixão infinita. Mas, como o imediato e o infinito não podem ser sintetizados,
então o amor imediato não tem outra lógica senão a do desespero. Diz Kierkegaard a esse
respeito: “Desespero consiste em carecer do eterno; desespero consiste em não ter se
submetido à transformação da eternidade pelo ‘tu deves’ do dever. O desespero pois, não
consiste na perda da pessoa amada, isso é infelicidade, dor, sofrimento; mas desepero consiste
na falta do eterno” (2005, p. 59). O desespero consiste na falta do eterno. Não há amor natural
que alcance o eterno. Por isso, sempre que se disser que se ama o outro ser humano mais do
que a si mesmo e mais do que a Deus, ama-se com a força do desespero. Só o amor que passa
pela transformação do “tu deves” pode alcançar o eterno e se proteger do desespero. O amor
fica proibido? De forma alguma. O amor que passa pela transformação do eterno não proibe;
pelo contrário, obriga a amar, visto ser um imperativo. O que fica proibido é amar daquela
maneira que não é ordenada, amar querendo possuir o outro ser humano, pois quando este lhe
falta então advém o desespero. Para sair do desespero só amando segundo o mandamento que
vem da eternidade: só assim o amor é eterno. Nenhum consolo pode ser subtituto do “tu
deves” para livrar o amor do desespero. Para quem ama segundo o “tu deves” não há morte ou
separação que faça cair no desespero. Segundo o autor: “Aquele amor que passou pela
transformação da eternidade, em se tornando dever, não está libertado dos infortúnios, mas
está salvo do desespero; no infortúnio e na boa fortuna igualmente a salvo do desespero”
(2005, p. 61). O amor que passou pela transformação da eternidade não elimina a dor e
continua se entristecendo diante das dores e perdas das pessoas amadas, mas não busca
refúgio em consolos fáceis, pois esses refúgios não são seguros e levam ao desespero. Em
qualquer situação, é preciso preservar o amor e, para isso, só amando segundo a dinâmica do
“tu deves”. Só o “tu deves amar” remove tudo o que há de mal e conserva o saudável para a
eternidade. Só o “tu deves amar” é salvífico e purificador. Qualquer outro consolo advindo da
sagacidade e da experiência será falso e, mais cedo ou mais tarde, recai no desespero. Não há
outra forma de sair do desespero senão passando pela transformação do amor que vem da
eternidade.
3 O dever de amar o próximo
O cerne do amor cristão está no dever de amar o próximo. É a grande novidade do
cristianismo e não pode ser encontrado em outro lugar, sobretudo, não pode ser encontrado
nos poetas e nos filósofos. Há um abismo instransponível entre o amor cantado pelo poetas e
louvado pelos filósofos e o amor realizado por dever no cristianismo. Esse abismo não está
em que o amor cristão oponha carne e espírito no sentido de que o carnal seja o corporal, o
físico. Esse dualismo, diz Kierkegaard, é um mal entendido. Quando o apóstolo Paulo opõe o
carnal ao espiritual o faz no horizonte do amor de si em oposição ao amor ao próximo. O
carnal é sinônimo de egoístico. O espiritual é sinônimo de abnegação. O dualismo corpo e
alma é um mal entendido.
Agora, diz Kierkegaard, o amor de si, egoísta, e o amor natural e a amizade, são
diferentes só aparentemente. No fundo são a mesma coisa, pois o amor natural e a amizade
são formas do amor de si. Por que são amor de si? Porque tomam o outro como um outro eu,
um outro si. O contraponto a esse amor natural e a amizade cantados pelo poetas e louvado
pelos filósofos é justamente o amor cristão, o amor ao próximo, sem predileção e preferência,
amor abnegado.
O que acontece no amor de si, que se volta sobre si mesmo, que se fecha em si mesmo,
também acontece no amor natural e na amizade que se dobram sobre si mesmos pela paixão
preferencial e pela amizade de predileção. O mecanismo é mais sutil, mas é o mesmo. No
amor de paixão natural e na amizade o outro ou aparece como um outro eu, um outro si, ou
como um intruso do qual a manifestação do ciúme é exemplar. Sobre isso Kierkegaard é
provocativo: “Experimente: colaca entre o amante e a pessoa amada, como determinação
intermediária, o próximo, que se deve amar, coloca entre o amigo e seu amigo, como
determinação intermediária, o próximo, que se deve amar: e tu instantaneamente verás o
ciúme” (2005, p. 74). Ora, o verdadeiro outro, o próximo, o primeiro tu, como Kierkegaard
gosta de chamar, é justamente a determinação intermediária da abnegação que se introduz
entre o eu e o eu do amor de si, ou o eu e o outro eu do amor natural e da amizade. Se essa
determinação intermediária aparece na forma de ciúme, então tanto o amor natural quanto a
amizade são formas de egoísmo, mesmo que sutil. E isso só o cristianismo pode perceber,
pois parte de uma outra perspectiva: o dever de amar o próximo.
Mas isso não é tudo e nem é o fundamental na caracterização do amor natural e da
amizade como formas de egoísmo. Kierkegaard diz que a preferência e a predileção do amor
natural e da amizade requerem que o amado e o amigo sejam admirados. A admiração é um
elemento essencial para que o amor natural e a amizade se constituam. Não há preferência e
predileção se não houver admiração. Essa é a dinâmica do amor natural e da amizade. Com o
próximo, contudo, isso não acontece, pois, no dizer de Kierkegaard, o “próximo jamais foi
representado como objeto de admiração, o Cristianismo jamais ensinou que se deva admirar o
próximo – devemos amá-lo” (2005, p. 74). Não é este, pura e simplesmente, o perigo do amor
de si: que tenhamos como objeto de amor alguém que admiramos? Amar os que nos amam e
nos querem bem, não é isso o que fazem também os pagãos? E não é exatamente aí que o
dever de amar o próximo se distingue do paganismo? E mais, ser amado por alguém admirado
não se contituirá numa relação que, em última análise, cai no egoístico?
Freud, que não é poeta nem filósofo e que nasceu quando Kirkegaard já estava morto
e, portanto, não era interlocutor deste, sintetizou de forma paradigmática a lógica do amor
natural e da amizade. Pelo que representa no esclarecimento do que Kierkegaard chama de
amor natural e amizade, em oposição ao amor ao próximo, veja-se o que diz Freud, que não
poderia ser mais claro: “Um amor que não discrimina me parece privado de uma parte de seu
próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo lugar, nem todos os homens
são dignos de amor” (2002, p. 57). Amar a todos ilimitadamente e indiscriminadamente,
segundo Freud, é cometer uma injustiça com o amado, pois no amor o que interessa é a
justiça. Dizer que seria uma injustiça significa dizer que o outro tem que merecer o amor que
lhe devoto. Nessa lógica, nem todos merecem ser amados. Supõe-se que alguns merecem
desprezo por não serem dignos de serem amados. Certamente, segundo a lógica de Freud, que
é em última análise a lógica do amor natural e da amizade, o filho mais novo da parábola do
filho pródigo não mereceria mais o afeto do pai e, nesse caso, o filho mais velho estaria certo
em repreender o pai por lhe ofertar um banquete no retorno. E o que dizer de Pedro, que nega
três vezes a Jesus? Certamente não era mais digno do seu amor. Bem se vê que é outra a
lógica escandalosa do amor cristão, do dever de amar o próximo.
Em contrapartida ao amor natural e à amizade, o amor ao próximo é o amor da
abnegação que expulsa tanto o amor de si quanto o amor de predileção. No dever de amar o
próximo não há lugar para a predileção e a preferência do objeto único. O amor de abnegação
também tem um só e único objeto, o próximo. Só que esse único não é um único ser humano,
como no amor preferencial, pois o próximo são todos os homens. O que é cantado e louvado
pelo poeta como sendo o máximo do amor natural – amar infinitamente uma única pessoa ao
ponto de querer morrer por ela, ou ter um punhado de amigos bons, admirados e fiéis – é
expulso no louvor cristão através do dever de amar ao próximo ilimitadamente, inclusive, para
escândalo completo, o inimigo. O amor de abnegação só é possível pelo dever e, por isso, o
mandamento ordena: ame o teu próximo como a ti mesmo.
Mas, quem é o próximo de que fala o mandamento? Kierkegaard esclarece esse ponto
em vários lugares de seu texto As obras do amor, mas particularmente num lugar ele é
definitivo. Diz:
Quem é então o meu próximo? A palavra é manifestamente formada a partir de ‘estar próximo’, portanto, o próximo é aquele que está mais próximo de ti do que todos os outros, contudo não no sentido de uma predileção; pois amar aquele que no sentido da predileção está mais próximo de mim do que todos os outros é amor de si próprio ‘não fazem também o mesmo os pagãos?’. O próximo está então mais próximo de ti do que todos os outros. Mas ele está também mais próximo de ti do que tu mesmo para ti? Não, ele não o está, mas ele está justamente, ou deve estar justamente tão próximo como tu mesmo. O conceito do ‘próximo’ é propriamente a reduplicação da tua própria identidade, ‘o próximo’ é o que os pensadores chamariam de o outro, aquele no qual o egoístico do amor de si é posto à prova (2005, p. 36).
O que os pensadores chamam de o outro, este é o próximo. O próximo não é o outro
eu, mas o primeiro tu. Esse primeiro tu é, em si, uma multiplicidade, pois o próximo significa
todos os homens. Contudo, diz Kierkegaard, em outro sentido, basta um único homem para
que tu possas praticar a lei. “‘O próximo’ ameaça assim o amor de si tanto quanto possível; se
há apenas dois homens, o segundo homem é o próximo, se há milhões, cada um deles é o
próximo” (2005, p. 37).
O próximo, o primeiro tu, é merecedor de amor incondicional por uma única razão: é
igual a ti diante de Deus. Por nenhuma outra razão ele deve ser amado, nem por sua cultura,
pobreza, humildade etc. A igualdade diante de Deus não tem nada a ver com a igualdade da
reciprocidade, correspondência e admiração requerida no amor natural e no amor de amizade.
Só pela igualdade diante de Deus é teu próximo e essa igualdade é incondicional. Diz
Kierkegaard:
O próximo não é a pessoa amada, pela qual tu tens a predileção da paixão, e nem mesmo teu amigo, por quem tu tens a predileçao da paixão. O próximo não é, de jeito nenhum, se tu és alguém culto, a pessoa culta, com quem tu compartilhas a igualdade da cultura – pois com o próximo tu compartilhas a igualdade dos homens diante de Deus. O próximo não é, de jeito nenhum, alguém que é mais distinto do que tu, isto é, ele não é o próximo na medida em que é mais distinto do que tu, pois amá-lo por ser ele mais distinto pode bem facilmente ser uma preferência, e nesse sentido amor de si mesmo. De maneira alguma o próximo é alguém que é mais humilde do que tu, isto é, na medida em que ele é mais humilde do que tu ele não é o próximo, pois amar alguém porque ele é mais pobre do que tu bem pode ser condescendência da preferência, e nesse sentido amor de si mesmo. Não, amar ao próximo é igualdade (2005, p. 81).
Esse próximo, o primeiro tu, pode parecer ainda indeterminado e abstrato, mas
Kierkegaard não permite que se faça uma leitura abstrata do outro, do próximo. O outro, o
próximo, o primeiro tu, é o individual concreto, de carne e osso. O outro é o individual
concreto com todas as suas mazelas, suas virtudes e seus defeitos. O outro é o outro que se vê.
Não como gostaríamos que fosse, com as qualidades da beleza, inteligência e graça – que
levariam a recair no amor preferencial –, mas como ele de fato é. O dever de amar, ao mesmo
tempo que universaliza, pois o dever recai sobre todos os homens, também individualiza e
materializa, na medida em que se deve amar o outro que vemos, assim mesmo como ele é.
Kierkegaard afasta-se definitivamente de Platão e de Aristóteles através do critério do dever
amar o outro que se vê. Não abre mão do particular concreto, do que se vê, como faz Platão
em direção ao bom e belo, em direção às qualidades ideais que abrem mão do empírico
concreto e nem fica no limite do amor de amizade por prazer, interesse ou virtude, como faz
Aristóteles. A novidade do amor cristão é sem precedentes. Nisso fica demarcada
definitivamente a diferença entre o eros platônico e a philia aristotélica em relação ao ágape
cristão. Sem falar da diferença substancial com o amor cantado pelos poetas pelas razões já
vistas.
Uma palavra sobre o amor a uma pessoa falecida. Para Kierkegaard, o amor a uma
pessoa falecida é o que há de mais desinteressado e, como tal, afigura-se como um paradigma
para compreender o amor cristão. Kierkegaard dedica um capítulo inteiro ao tema no seu texto
As obras do amor. O título do capítulo é A obra do amor que consiste em recordar uma
pessoa falecida. A tese é simples e por demais clara. Se o amor verdadeiro, o amor cristão, é
um amor desinteressado, um amor de abnegação, então o amor que consiste em recordar uma
pessoa falecida é, entre as obras desse amor, a mais desinteressada. Se o amor a uma pessoa
falecida permanece fiel, aí encontramos o modelo do amor desprendido, pois não há por parte
do falecido nenhuma possibilidade de retribuição.
A retribuição no amor manifesta-se em vários sentidos: através de um ganho ou
vantagem; do amor correspondido; da gratidão; da devoção etc. Aquele, porém, que está
morto não retribui em sentido algum. Há no amor a uma pessoa falecida um paralelo com o
amor dos pais com os filhos. Os pais amam os filhos antes mesmo de virem à existência e
bem antes de serem conscientes de si, isto é, quando ainda são “não-entes”. Ora, o amor a um
falecido é uma amor a um “não-ente”, a um “ninguém”, como diz Kierkegaard. Contudo esse
parelelo não é absoluto. Os pais amam um filho que ainda não veio à existência ou ainda não
é consciente de si porque depositam nele uma reconfortante expectativa de que um dia possa
lhes retribuir todo o amor a ele devotado. Segundo Kierkegaard, no inconsciente dos pais
ressoa uma esperança: “‘Nossa criancinha tem pela frente bastante tempo, longos anos; mas
durante esse tempo todo, ela nos proporciona também alegrias, e sobretudo, temos a
esperança de que ela um dia recompensará nosso amor e, se não fizer nada mais, além disso,
pelo menos tornará fefliz nossa velhice’” (2005, p. 391).
O morto, ao contrário, não traz nenhuma retribuição. Diferentemente de uma criança,
não há porque esperar pelo crescimento futuro de uma pessoa falecida, pois o seu futuro é
cada vez mais um distanciamento e um nada. Uma pessoa falecida não alegra quem a recorda,
como a criança alegra a mãe quando esta lhe pergunta quem ela mais ama e a criança
responde: a mamãe. O morto não retribui. O morto é indiferente. O morto é um ninguém , um
não-ente, dele não se pode esperar nada e, portanto, recordar dele é o amar mais
desinteressado possível. Em qualquer relação entre vivos sempre pode haver algum tipo de
esperança, espectativa de um para com o outro, mas em relação a um falecido, essa
espectativa é nula. Por isso, Kierkegaard diz que “a obra de amor que consiste em recordar
uma pessoa falecida é uma obra do amor mais livre que há” (2005, p. 392). O falecido não
impõe qualquer tipo de coação. A criança grita, o pobre mendiga, a viúva importuna, a
miséria violenta etc. Mas o falecido não tem armas, não tem meios, não tem forças, não tem
coação. O falecido não se introduz na recordação como a criança no seu grito e nem
constrange e reclama uma ação como a miséria visível. Se mesmo assim o falecido é amado e
recordado, essa será a prova do amor mais livre possível.O amor a uma pessoa falecida é o
amor mais livre e desinteressado possível.
Por fim, o amor a uma pessoa falecida só é verdadeiramente amor se for fiel
eternamente. A fidelidade não se expressa no choro enquanto o corpo do cadáver ainda estiver
aquecido. Isso pode ser cena de despedida. Não. O amor verdadeiro para com um falecido só
pode ser avaliado se não alterar a intensidade do amante, pois o amado não mais se alterará e
não envelhecerá. Para Kierkegaard, “A obra de amor que consiste em recordar um falecido é,
pois, uma obra do amor desinteressdo, mais livre e mais fiel. Vai então e exerce-a; recorda o
falecido e aprende justamente assim a amar as pessoas vivas de modo desinteressado, livre,
fiel” (2005, p. 399).
4 Para uma ética da alteridade
Kierkegaard ficou estigmatizado como sendo um filósofo ensimesmado, um
melancólico incapaz de sair de si e autor de uma filosofia marcadamente intimista, beirando
ao individualismo e ao solipsismo. Não percorremos o todo da filosofia de Kierkegaard e de
seus intérpretes para demostrar ou desconstruir essa concepção. Apenas indicamos um
caminho possível de leitura de As Obras do amor que aponta para uma ética positiva que aqui
chamamos de ética da alteridade. Ética da alteridade? Sim, ética da alteridade. Bem antes de
Levinas, encontramos em Kierkegaard a formulação explícita de uma étida da alteridade, do
outro. Uma ética formulada pelo princípio do “tu deves amar o próximo como a ti mesmo”.
Mas, o amor é do campo da ética ou da estética? Nas mãos de Kierkegaard o amor é
do campo da ética porque é um dever. A estética está no campo do prazer, do belo; a ética está
no campo do dever. O que eu devo fazer, não do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista
da ação prática, é a pergunta que orienta a ética. Ora, o “tu deves amar o próximo como a ti
mesmo” diz respeito ao campo da ação prática e, portanto, é uma questão ética. O amor
cristão é mais que um sentimento, pois é elevado à categoria de um dever. E diante de um
dever estamos no campo ético.
Poder-se-ia objetar que Deus e a Bíblia já não servem de argumentos de autoridade em
filosofia e que portanto uma ética fundada no dever de amar por um mandamento divino,
depois de Kant, já não é possível de ser aceita racionalmente, pois parte do pressuposto da
heteronomia e, para Kant, a ética só pode ser ética da autonomia – dar a si mesma a própria
lei. Certamente é uma objeção poderosa e assumida quase que unanimamente pelos filósofo
modernos e contemporâneos. Não pretendemos enfrentar essa objeção que, a nosso ver, não
se aplica a Kierkegaard, porque desde sempre assumiu a postura clara de que está falando a
partir do horizonte cristão e, portanto, desde a perspectiva da fé. O fundamento da ética da
alteridade em Kierkegaard é, nesse aspecto, marcadamente teológico, sobrenatural, sem
contudo abdicar do argumento racional marcadamente filosófico. Não é uma ética
irracionalista, mas uma ética argumentada, sob um pressuposto da fé. Sobre esse debate
remetemos a um texto esclarecedor de Álvaro Luiz Montenegro Valls intitulado Sobre o dever
de amar (2000, p. 105ss).
Importa esclarecer em que sentido a ética cristã fundada no mandamento do amor é
uma ética da alteridade. O raciocínio de Kierkegaard a esse respeito é banstante esclarecedor.
Parte do mandamento “tu deves amar o próximo como a ti mesmo”. O próximo é ao outro, ao
“primeiro tu” e não um “segundo eu”. O próximo é o que se deve amar. E de que forma? O
mandamento diz: “como a ti mesmo”. Pressupõe-se o amor a si mesmo. É natural que cada
um se ame a si mesmo, para isso não há necessidade de um mandamento. Mas, sobre esse
pressuposto do amor natural a si mesmo, levanta-se o mandamento do amor ao próximo. O
mandamento, o sobrenatural que vem de Deus, é o dever de amar o próximo. Como? Como a
si mesmo. O mandamento não diz que se deve amar a si mesmo. É natural que cada um ame a
si mesmo. O que não é natural, e é um dever sobrenatural, é o amar ao próximo, ao outro. Ora,
o acento do mandamento está todo no próximo. Essa insistência para com o amor ao próximo
é genuinamente uma insistência ética, por ser um dever, e a ética que aí se afigura é a ética da
alteridade.
O amor ao próximo, ao “primeiro tu”, ao outro, não é um amor abstrato, idealizado. O
amor ao próximo é concreto, sensorial, sob o critério do próximo que se vê. Não se trata de
um amor estético ou erótico, mas ético, pois não se deve amar o outro belo, charmoso, de boa
aparência etc. Trata-se de amar o outro assim mesmo como é. Não importando como é.
Kierkegaard lembra, a esse propósito, a parábola do bom samaritano dizendo que se trata de
amar o que está aí, necessitado, ultrajado, humilhado, sem beleza estética. Kierkegaard
gostava de brincar com a máxima de Sócrates que dizia que devemos amar as mulheres feias.
Sim, as feias devem ser amadas, as belas dispensam o dever. O próximo, nesse sentido, é o
feio.
O amor cristão não é platônico, porque não é idealizado, mas é amor concreto ao tu
que se vê; nem é aristotélico, porque este requer reciprocidade; nem poético, porque vem do
infinito; nem é freudiano, porque não tem preferência. O amor cristão é o amor ao próximo,
ao tu, ao outro, incondicionalmente, sem espererar dele qualquer retribuição senão seria um
amor de si, um amor natural, que para tanto não necessitaria de mandamento. O mandamento
do amar é escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. O verdadeiramente cristão tem
pois como critério ético o amor ao próximo e só quem ama ao outro que vê pode amar a Deus
que não vê. Dito de outra forma, quem não ama o próximo que vê, não pode amar a Deus que
não vê.
Referências bibliográficas
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
KIERKEGAARD, Soren A. É preciso duvidar de tudo. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. As obras do amor. Petrópolis: Vozes, 2005.
VALLS, Álvaro. Entre Sócrates e Cristo. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.